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O filósofo alemão Nietzsche viveu de 1844 a 1900, e mesmo assim, foi capaz de antecipar

algumas questões que marcaram a vida e o pensamento dos séculos XX e XXI. Hoje, Nietzsche
ainda desperta um grande interesse, tanto no meio acadêmico, como fora dele. O número de
teses no mundo sobre Nietzsche é impressionante, imenso. Nietzsche vende ainda hoje,
mesmo que as pessoas não o consigam acompanhar, devido à sua erudição, e é preciso ter um
certe trato para conseguir entendê-lo. Quando você se relaciona com o pensamento de
Nietzsche, uma coisa evidente desde o início é que Nietzsche é extremamente crítico,
principalmente à história da filosofia.

Nietzsche é um pensador do século XIX, século é marcado pela euforia moderna – de forma
geral, um século marcado pelo máximo da crença na ciência e no pensamento como um
veículo de transformação social, principalmente a ciência, visto através dela que as dores
seriam resolvidas.

Se a ciência produz cada vez menos alegrias em si mesma e gera cada vez mais alegria
colocando sobre suspeita os confortos da metafisica, da religião e da arte, então a maior fonte
de prazer a qual a humanidade deve quase toda sua qualidade humana fica empobrecida. Uma
cultura elevada, portanto, deve dar ao homem um cérebro duplo, duas câmaras cerebrais por
assim dizer, uma para experimentar a ciência e outra para experimentar a não ciência.

Ademais, Nietzsche estuda grego arcaico, a Ilíada, Homero, os gregos pré-socráticos, cujos
pensamentos são anteriores ao nosso modo de pensar, modo de pensar que nasce com
Sócrates e Platão. O que caracterizava os pré-socráticos era a Arte, como mediação entre as
coisas. A idéia de verdade não era clara, não era uma idéia que ainda tinha sido
inventada. Então, o que marcava o pensamento pré-socrático era o pensamento fundado
no devir, que é a vida como um processo de transformação constante, ou seja, tudo muda o
tempo inteiro, nada é fixo. Tudo gira em torno desse fluxo contínuo, tudo é transformação.

Nietzsche era atraído pela idéia da transformação, ponto importante na filosofia de alguns
filósofos pré-socráticos. Para Heráclito, por exemplo, nenhuma transformação acontecia por
acidente, e sim, eram movidas por uma espécie de força divina. Está presente em todas as
coisas materiais, e mantém tudo num fluxo perpétuo de transformação. Para Nietzsche, os
pré-socráticos eram os verdadeiros filósofos – que conjugaram de igual maneira a arte, o
pensamento e o saber.

Nietzsche era filho de pastor, e seguia uma linhagem de pregadores, tradicionalmente. Estava
inserido numa cultura cristã extremamente rígida. Essa guerra travada entre a modernidade, o
cristianismo e o pensamento arcaico teve algum efeito na mente de Nietzsche, fazendo
explodir um pensamento extremamente rico para a época e que marca o fim do século XIX. O
que é fato é que o século XIX passa – obrigatóriamente – por Nietzsche.

O encontro com o pensamento arcaico, deu a Nietzsche uma visão crítica e bastante ácida do
cristianismo e da modernidade. Deste choque surgiu um pensamento afirmativo da vida, que
se colocava como uma alternativa às ilusões criadas pela religião e pela ciência. Para Nietzsche
não existe nada que salve a história da filosofia. Ele monta uma máquina de guerra contra o
pensamento. Para ele, o pensamento e a história do conhecimento humano, é a história da
negação da vida, é a história de uma ilusão, da construção de um modelo de homem que não
existe e que jamais existirá. Para Nietzsche, o homem construiu uma imagem de si muito
superior ao que consegue ser, e corre atráz dessa imagem. Então, Nietzsche tira esse
antropocentrismo – que é o homem se sentindo o máximo – e diz: “desce deste lugar.” Ele
olha hoje (século XIX) e vê como as coisas funcionam, e ao compará-las com o homem arcaico
ele entende que a vida está presente no pensamento. Um pensamento vivo: cheio de cheiros,
de sabores, marcados pelo corpo, pela arte, e que esse grande eixo – que seria o pensamento
socrático-platônico (século V a.C) – faz um corte muito grande na história do pensamento.
Assim, se antes do século V a.C, Platão – que é onde oficialmente começa a história da
filosofia… -se antes desse período o ser humano se relacionava com a vida, como o
desconhecimento que a vida é e tinha um certo pudor em relação a ela, exatamente por se
tratar de um desconhecimento, de uma intensidade que muda o tempo inteiro, ou seja, se o
homem antes do século V a.C não tinha nem o sonho de dominar e controlar as forças da
natureza, a partir do V a.C isso muda radicalmente. Nietzsche exagera sobre Platão. Platão é
menos perigoso do que Nietzsche pensa: “em relação a Platão, sou um cético fundamental, e
nunca estive em condição de concordar com a admiração que há corrente entre os eruditos…
Em meio à grande fatalidade do cristianismo, Platão é esta fascinação dúbia chamada “Ideal”,
que tornou possível para as naturezas nobres da antigüidade compreender mal a si mesmas e
pôr os pés sobre a ponte que conduziu até a “cruz”.”

Os valores que Niezsche acredita que a história do conhecimento nos deu, a nossa história
seguiu o leito de rio que foi cavado por uma interpretação do homem do mundo, que é uma
interpretação socrática-platônica. Segundo Niezsche, nossa civilização é vítima de uma única
interpretação do mundo, e essa é a interpretação socrática-platônica, que acredita, entre
outras coisas, que o pensamento, a idéia, é superior ao corpo… que acredita que o mundo não
é apenas o que a gente vive, e esse mundo é determinado pela idéia, pelo pensamento, mais
que o corpo.

Em “República”, Platão descreve um diálogo entre Sócrates e Glauco, onde o filósofo sugeriu
que seu amigo imaginasse uma sociedade que tivesse vivido permanentemente dentro de uma
caverna, vendo apenas as projeções nas paredes da caverna do que se passa do lado de fora. –

Pois agora, meu caro GLAUCO, é só aplicar com toda a exatidão esta imagem da caverna a
tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é
a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo
inteligível…. Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com
muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal
de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e
da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para
agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos.

Sócrates e Platão – nessa perspectiva o pensamento é um só… E esse pensamento matou a


pluraridade e o devir, ele matou o processo extremamente rico de pensamento que existia na
Grécia arcaica. A mitologia Grega é uma forma de interpretar o mundo, não é um delírio de
gente antiga, pré-filosófica – pelo contrário, é uma interpretação belíssima que parte da arte
como mediação, e não da verdade. Então, “como eu sei que eu nunca vou saber o que o
tempo é, tenho clareza que a vida é muito superior a mim”, – veja que mesmo sem noção
científica do infinito e das galáxias, que parece que são infinitas – eles tinham a clareza de que
a relação do homem com o mundo era uma relação de submissão, ou seja, a vida como um
jogo de forças intensíssimo e infinito é muito superior ao homem. Então, o que o homem
precisava fazer era criar uma interpretação sobre o mundo, mas jamais tinham a intenção de
conhecer o mundo. A partir daí, os homens criaram perspectivas de interpretação do mundo
utilizando os mitos. Bruno Snell (1896 – 1986), por exemplo, diz que é muito possivel imaginar
que o Grego não acreditava exatamente no mito, nem deixava de acreditar – aquilo era a única
coisa que ele tinha para se relacionar com o mundo, então o Mito era uma realidade. Assim –
“como eu sei que nunca vou saber como o mundo é porque sou apenas um ser humano, eu
crio coisas que me façam entender o mundo.”

Segundo os mitos de criação gregos, no início dos tempos só existia o Caos – um vazio sem
forma do tamanho de todo o universo – do qual se originou Gaia, a terra, Tártaro – o
submundo e Eros – o amor, o mais belo de todos os deuses. Do Caos também saíram o Érebo –
a escuridão do submundo e Nyx – a noite. Da união entre ambos, nasceu o Dia. Gaia deu a luz
a Urano, o céu estrelado e com ele teve diversos filhos, entre os quais Oceano – o mar,
Chronos – o tempo, o mais jovem e o mais terrível de seus filhos. Chronos, sob ordens de Gaia
castra Urano e se casa com sua filha Rea com quem tem filhos que mais tarde se revoltam
contra ele e assumem o poder. Estes novos deuses dividem entre eles a autoridade: Zeus, por
exemplo, fica com os céus, Poseidon com os mares e Hades com o submundo.

Daí, quando passa para a filosofia pré-socrática, o que os homens pensam? Já não querem
mais o mito, querem olhar para o mundo e tirar da relação imediata com o mundo alguma
interpretação. É um outro momento muito interessante. “O que é o mínimo?” – É a água – diz
Tales, e neste sentido, cada um dos primeiros filósofos vai dizendo sua própria versão: água,
fogo, os quatro elementos etc, e a maioria deles dizem que o mínimo do mínimo é o devir,
o vir-a-ser constante, um processo de transformaçao constante, e nós fazemos parte deste
jogo e desconhecemos porque, afinal, ele não teria nem princípio nem fim. O tempo nunca
começou e nunca vai acabar. O tempo é um fluxo que alimenta a ele mesmo. Nós nascemos e
morremos, mas o tempo não tem nem princípio nem fim. Porque eles pensam isso? Porque a
mitologia grega não tem um deus originário. A vida na mitologia grega sempre existiu,
ninguém criou o mundo. Não há um criador. Como na religião grega, que é mitológica, não há
um principío originário para o mundo, também não existe verdade. Então, Nietzsche, ao invés
de pensar como todos de sua época, cujo pensamento era “Quem tem a verdade?” – olha de
longe – que é uma das característica artísticas de Nietzsche, a de um pensador-poeta, cheio de
metáforas – ao invés de pegar a filosofia no interior dela, como mostra a história da filosofia…
ao invez de seguir a seqüência de alguém… ao invéz de perguntar “isso é falso ou verdadeiro, é
verdade ou erro?” – ele pergunta: “Para quê e por que a verdade?”.

A Origem do Nosso Conceito de Conhecimento – Nietzsche, 1882

Não será o instinto do medo que nos obriga a conhecer? Porque “o que é familiar é conhecido”,
Erro dos erros! O que é conhecido é habitual; e o habitual é o mais difícil de ‘conhecer’, isto é,
de ver como problema, isto é, de ver como estranho, afastado, ‘fora de nós’…” (355)
A verdade não é produto de nossa curiosidade humana, em descobrir como as coisas são. A
verdade é produto do nosso medo da morte. A verdade é a necessidade de se estabelecer no
mundo a duração, a verdade é produto de uma necessidade psicológica de duração. Então, por
não sermos capazes de lidar com a vida como ela é, o que acontece quando abrimos mão do
terno e da gravata, e as nossas pulsões e paixões começam a ter o mínimo de chance de
aparecer, nós, por não nos sentirmos fortes o suficiente para afirmar a vida como ela é,
construímos a idéia de verdade. A história do conhecimento humano é a história da criação e
da cristalização da idéia da verdade.

No mundo em que os problemas estão de tal forma evidentes, é muito fácil termos uma
postura negativa, recusando o presente em nome de um futuro promissor, ou mesmo
recusando qualquer promessa de felicidade futura. O niilismo reflete essa negação da
realidade, e é exatamente contra esta postura que Nietzsche se posicionava.

O que Nietzsche fez pela história da humanidade foi clarificar que o homem construiu uma
história para si mesmo, chamada niilismo: quando todos os valores superiores perdem a razão,
perdem a importancia. No século XVII, começa o processo de desintegração: o paraíso depois
da morte, a verdade divina etc. Aquilo que Platão construiu no século V a.C como pensamento,
o cristinismo assumiu como religião. Então, essa vida é um erro, porque ela faz parte dos erros
dos sentidos. O pensamento, que é a essência pura, estaria depois da morte. Assim, a
existência de dois mundos, em que esse que vivemos é um erro e o outro é a verdade – se
aproxima da visão judaico-cristã, de que essa vida é um erro e a outra seria um paraíso. Então,
a mescla do movimento intelectual que acontece na Grécia, onde nasce a filosofia, com a
cristianização do mundo, faz Nietzsche concluir que o cristianismo é o platonismo do povo. O
povo não teria acesso ao pensamento de Platão, mas, traduzido através da religião, passa a tê-
lo. Então, primeiro é o niilismo negativo, nega-se a vida em prol de uma outra. Daí passamos
para a morte de Deus – esta que é a marca da modernidade.

A morte de Deus – quando a ciência nasce, a religião perde o valor. Exemplo: antes se rezava
para passar uma dor de cabeça, hoje, se vai ao médico. Não é necessário pensar que Deus não
existe, mas fato é que ele vai automaticamente para segundo plano. No niilismo negativo…
a ciência entra no lugar de Deus…

Este é o niilismo da modernidade. Diferente do religioso, ele não quer morrer, mas cria uma
nova ilusão: o futuro, onde tudo será melhor. Então, a idéia do devir, do futuro, também tira o
homem do tempo e do devir e do conflito que a vida é tanto como a idéia da morte.

Esse niilismo cristão-platônico-moderno, fundamentaria nossa moral, a relação que vivemos


hoje: negação do corpo, das sensações que levam ao erro e ao pecado, negação do agora e do
aqui, negação da contradição e do conflito, negação de tudo o que se transforma e a
construção de uma imagem idealizada de si mesmo e do outro.

Para Nietzsche, todo idealismo era uma espécie de niilismo, à medida em que o idealista
quando adota valores tão elevados, refugia-se num mundo que nega a realidade que o cerca.
Em vez de fazer uma filosofia a partir do mundo, como Nietzsche pretendia, o idealista tenta
mudar o mundo através de sua filosofia já pré-concebida. Ele escreveu: “O idealista é
incorrigível. Se é expulso do seu céu, faz um ideal do seu inferno.”
- Você idealiza o filho, sua própria vida, que nunca atinge – o ideal é a felicidade, a felicidade é
o valor ideal. Fantasia-se muito sobre a felicidade… cria-se concepções falsas. O ideal não tem
as transformações que o acontecimento tem. Nunca ninguém vai viver um ideal. É impossível
atingir um ideal. Tanto no niilismo negativo como o reativo há a desvalorização da vida
presente. O primeiro em nome de valores elevados, em nome da verdade, do paraíso. O
segundo em nome do progresso que a modernidade garantiria no futuro. A resposta de
Nietzsche ao niilismo é a superação do homem no presente. Dia após dia.

Quando ele fala do Super-homem, ele se refere ao homem que parte da afirmação da morte,
um homem que arquiteta e inventa a si mesmo ao contrário de aceitar um conceito pré-
estabelecido, que tem coragem de lidar a cada segundo de sua vida com o conflito que é a
escolha de cada situação, e não atribui isso nem a Deus, nem a moral estabelecida, nem aos
pais, nem a geração passada. Entende que independente de sua história, existe um instante
supremo: este - e esse instante é o seu gesto que determina. Ele não tem consciencia deste
gesto. Mas é o instante e a capacidade de ler a si mesmo, rever a si mesmo, construir a si
mesmo que faz desse homem forte. Nietzsche abre a idéia para o homem que se supera, que
se inventa no presente.

Assim falou Zaratustra, 1885.

Até agora todos os seres têm apresentado alguma coisa superior a si mesmos; e vós, quereis o
refluxo desse grande fluxo, preferis tornar ao animal, em vez de superar o homem? A alma
olhava o corpo com desprezo, e então nada havia superior a esse desdém; queria a alma um
corpo fraco, horrível, consumido de fome! Julgava deste modo libertar−se dele e da
terra. Irmãos meus, dizei−me: que diz o vosso corpo da vossa alma? Não é a vossa alma,
pobreza, imundície e conformidade lastimosa? O homem é um rio turvo. E preciso ser um mar
para, sem se toldar, receber um rio turvo. Pois bem; eu vos anuncio o Super−homem; é ele esse
mar; nele se pode abismar o vosso grande menosprezo.

Esse homem não é represetnado por Bush nem por Bill Gates, por exemplo. Pelo contrário – o
forte vai para o campo de batalha lutar. O poder que se estabeleceu no mundo é o poder da
fraqueza, da covardia, não o poder da força. O poder da força é o poder de enfrentamento
com as contradições e com a vida e a morte. Esse é o homem-forte, é na verdade, um homem
essencialmente frágil, por isso sensível, e por isso ético.

BIBLIOGRAFIA
Transcrição por Matheus Venâncio, 2009 – UNIFRAN – Universidade de Franca
Fragmentos diversos – Café Filosófico

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