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Foucault Entrevista Ao Le Monde
Foucault Entrevista Ao Le Monde
DO "LE MONDE"
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2111200424.htm
Michel Foucault já concedeu muitas entrevistas, mas poucas vezes falou sobre aquilo que o
liga de maneira íntima à escrita, à qual ele chegou tarde e por necessidade. Nesta entrevista
de 1966, ainda inédita e dada a Claude Bonnefoy após o lançamento de "As Palavras e as
Coisas" [Martins Fontes] -e conservada no Centro Michel Foucault-, o filósofo francês fala
de suas dúvidas, convicções e de sua relação íntima com a escrita.
O sr. poderia explicar como abordou a escrita?
Uma de minhas lembranças mais constantes -certamente não a mais antiga, mas a mais
obstinada- é a das dificuldades que tive para escrever bem. Escrever bem no sentido em que
se entende o termo na escola primária, ou seja, criar páginas de escrita bem legíveis.
Acredito -na verdade, tenho certeza- que, em minha classe e minha escola, eu era o mais
ilegível. Isso continuou por muito tempo, até os primeiros anos do ensino secundário.
Assim, minha relação com a escrita era um pouco complicada, um pouco sobrecarregada.
Mas existe outra recordação, bem mais recente. É o fato de que, no fundo, eu nunca levei
muito a sério a escrita, o ato de escrever. O desejo de escrever só surgiu forte em mim
quando eu tinha cerca de 30 anos. Para chegar a descobrir o prazer possível da escrita, foi
preciso estar no exterior.
Eu estava vivendo na Suécia e me via obrigado a falar ou o sueco, que conhecia muito mal,
ou o inglês, que praticava com muita dificuldade. Meu conhecimento fraco dessas línguas
me impediu de dizer o que eu realmente queria durante semanas, meses, até mesmo anos.
Eu via as palavras que queria dizer sendo travestidas, simplificadas, tornando-se como
pequenas marionetes irrisórias à minha frente, assim que as pronunciava.
Nessa impossibilidade de usar minha língua própria, percebi, em primeiro lugar, que esta
possuía uma espessura, uma consistência, que ela não era simplesmente como o ar que
respiramos, uma transparência absolutamente insensível, mas que tinha suas leis próprias,
seus corredores, suas linhas, seus declives, suas costas, suas irregularidades -em suma, que
tinha uma fisionomia e que formava uma paisagem na qual podíamos caminhar e descobrir
em volta das palavras, das frases, de repente, pontos de vista que não apareciam até então.
Nessa Suécia em que tinha que falar uma língua que me era estranha, compreendi que podia
habitar minha língua, com sua fisionomia repentina particular, como o lugar mais secreto,
mas mais seguro, de minha residência nesse lugar sem lugar que é o país estrangeiro no
qual nos encontramos.
Quando o sr. começou a escrever, houve uma reviravolta, então, com relação a essa
concepção primeira e desvalorizadora da escrita?