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A crise econômica mundial do final dos anos 70 e início dos 80 marca o ponto de partida da
ascensão da Nova Direita como força político-ideológica23. O seu muito oportuno discurso —
fundamentado no pensamento de Hayek, Friedman, os teóricos de Public Choice etc.24 —
proporciona uma explicação para a crise e uma proposta para sair dela. Sua explicação parte do
postulado de que o mercado é o melhor mecanismo dos recursos econômicos e da satisfação das
necessidades dos indivíduos. De onde se conclui que todos os processos que apresentam obstáculos,
controlam ou suprimem o livre jogo das forças do mercado terão efeitos negativos sobre a
economia, o bem-estar e a liberdade dos indivíduos.
No pós-guerra, esses processos negativos derivaram, segundo a Nova Direita, do
intervencionismo estatal, expresso na política econômica keynesiana e nas instituições de
bem~estar. O intervencionismo aumentou como resultado da democracia representativa, eleitoral e
nas corporações, principalmente nos sindicatos. Isso ocorre porque a democracia representativa
facilita a organização de grupos com interesses corporativistas, que formulam demandas
impossíveis de serem cumpridas, atuam como grupos de pressão e votam em bloco em função da
promessa partidária de satisfazer suas demandas,o que tende a incrementar a intervenção estatal e
a restringir o livre mercado e a iniciativa individual 25. Teriam sido esses os processos que, segundo
os neoliberais, levaram à atual crise econômica política e moral.
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21. Idem, p. 50.
22. ESPING-ANDERSEN, op. cit.
23. DUNLEAVY, P. & O'LEARY, B., Theories of the State, Londres, MacMillan, 1987.
24. Idem. Veja-se também PIERSON, op. cit. e GEORGE-WILDING, op. cit
25. Veja-se, por exemplo: LERNER, L. e GARCIA REGGIO, A., "El discurso neoliberal en Ias políticas sociales", Cuadernos Médicos Sociales, n. 58,
1991, pp. 33-46.
Os neoliberais também sustentam26 que o intervencionismo estatal é antieconômico e
antiprodutivo, não só por provocar uma crise fiscal do Estado e uma revolta dos contribuintes, mas
sobretudo porque desestimula o capital a investir e os trabalhadores a trabalhar. Além disso, é
ineficaz e ineficiente: ineficaz porque tende ao monopólio econômico estatal e à tutela dos
interesses particulares de grupos de produtores organizados, em vez de responder às demandas dos
consumidores espalhados no mercado; e ineficiente por não conseguir eliminar a pobreza e,
inclusive, piorá-la com a derrocada das formas tradicionais de proteção social, baseadas na família e
na comunidade. E, para completar, imobilizou os pobres, tornando-os dependentes do paternalismo
estatal. Em resumo, é uma violação à liberdade econômica, moral e política, que só o capitalismo
liberal pode garantir.
Sob esse ponto de vista, a Siolução da crise consiste em reconstituir o mercado, a
competição e o individualismo. Isto significa, por um lado, eliminar a intervenção do Estado na
economia, tanto nas funções de planejamento e condução como enquanto agente econômico direto,
através da privatização e desregulamentação das atividades econômicas. Por outro lado, as funções
relacionadas com o bem-estar social devem reuzidas. Usando o mesmo argumento, a competição e
o individualismo só se constituiriam como forças desagregando os grupos organizados, desativando
os mecanismos de negociação de seus interesses coletivos e eliminando os seus direitos
adquiridos27. Isto seria conseguido com a desregulamentação e flexibilização da relação trabalhista
e reduzindo as normas e contribuições trabalhistas fixadas no contrato coletivo. Por último, seria
preciso combater o igualitarismo, pois a desigualdade é o motor da iniciativa pessoal e da
competição entre os indivíduos no mercado. Apesar de todo esse antiestatismo, os neoliberais
querem um Estado forte, capaz de garantir um marco legal adequado para se criarem as condições
propícias à expansão do mercado.
No campo específico do bem-estar social, os neoliberais sustentam28 que ele pertence ao
âmbito privado, e que as suas fontes "naturais" são a família, a comunidade e os serviços privados.
Por isso, o Estado só deve intervir com o intuito de garantir um mínimo para aliviar a pobreza e
produzir serviços que os privados não podem ou não querem produzir, além daqueles que são, a
rigor, de apropriação coletiva29. Propõem uma política de beneficência pública ou assistencialista
com um forte grau de imposição governamental sobre que programas instrumentar e quem incluir,
para evitar que se gerem "direitos". Além disso, para se ter acesso aos benefícios dos programas
públicos, deve-se comprovar a condição de indigência. Rechaça-se o conceito dos direitos sociais e
a obrigação da sociedade de garanti-Ios através da ação estatal. Portanto, o neoliberalismo opõe-se
radicalmente à universalidade, igualdade e gratuidade dos serviços sociais30.
As estratégias concretas idealizadas pelos governos neoliberais para reduzir a ação estatal no
terreno do bem-estar social são: a privatização do financiamento e da produção dos serviços; cortes
dos gastos sociais, eliminando-se programas e reduzindo-se benefícios; canalização dos gastos para
os grupos carentes; e a descentralização em nível local31 .
Nota-se que a crítica neoliberal ao Estado de bem-esar é centrada em oposição àqueles
elementos da política social que implicam desmercantilização, solidariedade social e coletivismo.
Essa crítica condena os direitos sociais, o universalismo, a dissociação entre benefícios e
contribuição. trabalhista, além da administração-produção pública de serviços; ou seja, os elementos
que caracterizam principalmente sobretudo o Estado de bem-estar "social- democrata". Por isso, a
aplicação das suas orientações implica destruir as instituições e concepções fundamentais do
mesmo.
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26. PIERSON, op. cit., p. 48.
27. Para uma versão latino-americana desta posição, ver: PINERA, J., La Revolución Laboral en Chile, Santiago, Zig-Zag, 1990.
28. GEORGE-WILDING, op. cit.
29. Veja-se, por exemplo: Financing Health Servicies in Developing Countries.An Agenda for Reform, Washington D. c., The Worid Bank, 1987.
30. GEORGE-WILDING, op. cit.
31. TAYLOR-GOOBY, op. cit.
No entanto, isto não ocorre no que diz respeito ao Estado de bem-estar liberal, que pode
assimilar as orientações neoliberais, acentuando o domínio do mercado no campo social.
No âmago do projeto neoliberal repousa a tentativa de se impor um novo padrão de
acumulação, [com o intuito de desencadear] uma nova etapa de expansão capitalista que, dentre
outras coisas, implicaria um novo ciclo de concentração de capital nas mãos do grande capital
internacional 32. A condição política para o êxito deste projeto é a derrota ou, pelo menos, o
enfraquecimento das classes trabalhadoras e das suas organizações reivindicatórias e partidárias.
Neste contexto, torna-se primordial destruir as instituições de bem-estar social, por constituírem
uma das bases da ação coletiva e solidária que diminuem a força desagregadora da competição entre
os indivíduos no mercado de trabalho33. A essa necessidade política acrescenta-se o objetivo
econômico de destruir as instituições públicas, para estender os investimentos privados a todas as
atividades econômicas rentáveis. Nesse esquema, é importante o papel que desempenham os
seguros e a produção privada dos serviços sociais, como demonstra o complexo médico-industrial
norte-americano, por exemplo, uma das atividades econômicas privadas mais importantes dos
EUA 34.
A revisão dos fatos demonstra a existência de consideráveis discrepâncias entre o discurso
neoliberal e o conteúdo das políticas sociais dos governos nele inspirados35. Dessa maneira, os
governos puderam vencer a resistência quanto à retirada do Estado da economia. Porém, quando
propõem abandonar a sua obrigação de garantir os direitos sociais, transformam o tema numa
controvérsia política com implicações eleitorais de primeira ordem. Por isso na prática, não tem
sido possível desmantelar as instituições sociais básicas, e dependendo tanto das relações entre as
forças políticas como da sua popularidade mesmo entre os eleitores favoráveis á Nova Direita 36 . E
neste sentido tem se confirmada a “irreversibilidade” do Estado de Bem-estar 37 .
Isso não significa que não tenham ocorrido mudanças nas políticas sociais. Embora o Estado
de bem-estar, seja liberal, seja social-democrata, não tenha sido desmantelado, há sinais de que
estão se reestruturando38. Ao contrário do que o discurso prescreve, a estrutura e os benefícios
básicos mais importantes não têm sido afetados; os principais cortes têm se dado nos programas
contra a pobreza39 e naqueles em auxílio aos grupos desamparados4o. As implicações sociais
negativas desse processo agravam-se porque os efeitos da política econômica sobre o emprego, os
salários e a distribuição da renda provocam um aumento da pobreza relativa e absoluta, e da
exclusão social41. Por outro lado, nos países europeus, ocorre uma tendência à "americanização" das
políticas sociais. Ou seja, manifesta-se o fortalecimento do Estado de bem-estar liberal, aumentando
o domínio do mercado no campo social42; essa é a expressão concreta de que esta forma de Estado
pode assimilar a plataforma neoliberal.
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32. VALENZUELA, op. cit.
33. ESPING-ANOERSEN, op. cit.
34. BOOENHEIMER, T., "The fruits of empire rot on the vine" in Soe Sei & Med, v. 28, n. 6, 1989, pp. 531-38.
35. Veja-se, por exemplo: NAVARRO, V., 'The welfare state, part of the problem or part of the solution" in Sistema, Madri, 1990 e PIERSON, op. cit.,
pp. 141-215
36. NAVARRO, op. cit., 1990.
37. Veja-se, por exemplo: THERBORN, G., ROEBROEK, 1.;' "The irreversible Welfare State" in lnt J. Health Serv, v. 16, n. 3, 1986, p. 332, e OFFE,
c.,Contradicciones en el Estado de Bienestar, Mexico, CNCA-Alianza, 1991.
38. Veja-se, por exemplo: ESPING-ANOERSEN, op. cit. e PIERSON, op. cit.
39. BROWN, 1. L., GERSHOFF, N. & COOK, J. T., "The politics of hunger" in Int J. Health Serv, v. 22, n. 2, 1992, pp. 221-38.
40. HIMMELSTEIN, O., WOOLHANOLER, S. & WOLFE, S., "The vanishing health care safety net: data on uninsured Americans" in int J. Health
Serv, v. 22, n.3, 1992, pp. 381-96.
41. DAVIS, op. cit. e ESPING-ANOERSEN, op. cit., p. 255.
42. Veja-se, por exemplo: ABRAHAMSON, P., "Welfare and poverty in the Europe of the 1990s: social progress ar social dumping?" in intt J. Health
Serv, V, 21, n. 2, 1991, pp. 237-64; MARKLUND, S., Paradise Lost?, Lund, Arkiv, 1988; NAVARRO, op. cit., 1991; e TERRIS, M., J Publie Health
Poliey, v. 13, n. I, 1992
Política social do neoliberalismo latino-americano
Antes de começar a análise do neoliberalismo latino-americano, é preciso ter cuidado com a
aplicação do termo, para não incluir, sob a mesma denominação, processos com ocnteúdos e
significados diferentes. Por exemplo, austeridade no gasto público não é necessariamente
“neoliberalismo”, se não vier acompanhada de um processo acelerado de privatização,
desregulamentação financeira, abertura externa, desregulamentação e flexibilização das relações
trabalhistas, reestruturação das políticas sociais etc. Além disso, é preciso notar que a adoção das
políticas neoliberais como programa de governo não ocorreu simultaneamente, nem seguiu a
mesma trajetória ou o mesmo ritmo em todos os países, devido às condições políticas particulares.
Inclusive os casos exemplares, Chile e México, apresentam diferenças pelo fato de o processo
chileno já ter passado pelo período de amadurecimento, enquanto o mexicano não se encontra ainda
plenamente consumado43. Apesar destas reservas, há elementos que permitem sustentar a ocorrência
de ensaios neoliberais na maioria dos países da região nos últimos 15 anos44.
Mesmo com suas variações, observa-se que o processo de implantação do projeto neoliberal
nos países da América Latina apresenta algumas diferenças cruciais em relação ao dos países
capitalistas avançados. Os fatos mostram que aqui estão sendo aplicadas políticas mais ortodoxas,
ao mesmo tempo em que se instrumentalizam não somente os postulados de política econômica,
mas também, e mais radicalmente, os de política social. Assim, a retração do Estado e a cessão de
espaços ao capital privado ocorre tanto na esfera econômica como na do bem-estar social.
Na sua tentativa de gerar "confiança" nos investidores e reconstituir a taxa de lucro, o
neoliberalismo promove com suas políticas uma acelerada redistribuição regressiva da riqueza.
Como resultado direto do desemprego ou do subemprego, do arrocho salarial e de medidas fiscais
regressivas, o neoliberalismo provoca então um processo maciço de empobrecimento e uma
crescente polarização da sociedade entre ricos e pobres45. Embora esta seja uma tendência geral, na
América Latina é particularmente dramática e envolve a absoluta maioria da população. Assumindo
a definição restritiva da pobreza (a não-satisfação do mínimo em alimentação, habitação, saúde e
educação), cerca de 50% dos latino-americanos está nessa categoria46. Além disso, ao incluir nos
setores médios os assalariados e trabalhadores organizados, o empobrecimento adquire um novo
perfil de classe. Diante de tão notável retrocesso, a "questão social" volta a se apresentar com força
renovada e a gerar um alto grau de conflito político.
Conforme assinalado acima, as quatro estratégias concretas da implantação da política social
neoliberal são o corte dos gastos sociais, a privatização, a centralização dos gastos sociais públicos
em programas seletivos contra a pobreza e a descentralização47. A privatização é o elemento
articulador dessas estratégias, que atende ao objetivo econômico de abrir todas as atividades
econômicas rentáveis aos investimentos privados, com o intuito de ampliar os âmbitos de
acumulação, e ao objetivo político-ideológico de remercantilizar o bem-estar social. Porém, atingir tais
objetivos sem sobressaltos políticos que ameacem o seu cumprimento impõe a necessidade de se legitimar
ideologicamente o processo de privatização e de gerar as mudanças estruturais necessárias. É nesta lógica que se
inscrevem as outras três estratégias.
A transferência de parte das responsabilidades sociais do Estado aos investimentos privados
e a expansão da produção dos serviços sociais como âmbito direto de acumulação dependerão de
ações estatais específicas dirigidas à geração de um mercado estável e garantido, e à resolução das
contradições políticas geradas pela imposição dos postulados neoliberais.
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43. LAURELL, A. c., La Política Social en Ia Crisis. Una alternativa para el sector salud, México, Fundación F. Ebert, 1990.
44. Veja-se, por exemplo: Adjustment in Latin America. How much has happened. Banco Mundial, Informe Anual de 1992 apud La Jornada
17/09/1992, p. 26.
45. Veja-se, por exemplo: NAVARRO, op. cil., 1991; e DAVIS, op. cit.
46. CEPAL, op. cit.
47. Veja-se, por exemplo: TAYLOR-GOOBY, op. cil. e LAURELL, op. cit.
É necessário compreender que, apesar de a privatização ser o objetivo central, só interessa
na medida em que a administração de fundos e a produção de serviços possam se converter em
atividades econômicas rentáveis. Por isso, nos países latino-americanos, onde a maioria da
população é pobre, deve-se esperar tão somente um processo seletivo de privatização dos benefícios
sociais, incentivado por políticas estatais dirigidas à criação de um mercado disponível e garantido.
Isso depende, por sua vez, fundamentalmente de três condições: que seja criada uma demanda para
os benefícios ou serviços privados, o que só ocorre quando os serviços fornecidos pelo setor público
são tidos como insuficientes ou de má qualidade; que sejam geradas formas estáveis de
financiamento para cobrir os altos custos dos benefícios ou serviços privados; e que o setor privado
tenha a suficiente maturidade para poder aproveitar o incentivo à sua expansão, representado pela
retração estatal.
A primeira dessas condições está diretamente relacionada ao corte dos gastos sociais
públicos —- justificado pela crise fiscal do Estado —-, pois, visto deste ângulo, significa um
deliberado desfinanciamento das instituições públicas; tal desfinanciamento causa seqüelas de
deterioração e de crescente desprestígio das instituições públicas, as mesmas que ajudaram a criar a
demanda ao setor privado e a tornar o processo de privatização socialmente aceitável.
Neste contexto, convém destacar que a crise fiscal dos Estados latino-americanos não se
deveu, como se insinua, a gastos sociais excessivos, mas basicamente à questão da dívida pública,
provocada por mudanças nas relações econômicas nacionais e internacionais. Assim, técnicos da
ONU48 calculam que a taxa de juros da dívida externa aumentou nos anos 80 de 4 para 17%,
levando-se em conta a queda nos preços dos produtos de exportação dos países subdesenvolvidos.
Somado à desregulamentação fínanceifa,isso acabaria provocando o crescimento desmesurado do
serviço da dívida pública. Para garantir o seu pagamento, impuseram-se programas de ajuste que
tambtm tiveram por objetivo reduzir o déficit público. A única forma de solucionar essa equação foi
cortar outros itens do gasto público, destacando-se o social, que caiu aceleradamente49..Essa
dinâmica representa uma inusitada transferência de recursos públicos para o capital especulativo,
através do pagamento de juros às custas das já precárias condições de vida da maioria da população.
O caso mexicano é bem ilustrativo: de 1980 a 1989, o serviço da dívida pública cresceu de 3.3% do
PIB para 13.7%, enquanto os gastos sociais caíram de 8.1% para 6.9% do PIB 50
Outra forma de incrementar a demanda privada, proposta pelos técnicos do Banco Mundial
(BM)51, é a cobrança dos serviços públicos, com o que se pretende transformá-los em mais uma
mercadoria. A introdução do benefício/serviço público, na lógica do mercado, é obrigá-lo a
competir em preço e qualidade com o serviço privado. Dois argumentos justificam essa proposta.
Primeiro: é injusto o erário público pagar por um bem "privado" — ou seja, consumido por
indivíduos particulares — como seria o caso, por exemplo, dos serviços educativos e de saúde,
porque isso significaria que uns se apropriam dos recursos públicos e outros não. Segundo: a
cobrança dos serviços proveria o setor público de recursos para elevar o seu reduzido orçamento —
considerado uma variável imutável —, baseando-se ainda no princípio da austeridade estatal. Com
essa medida, seriam atingidos três dos objetivos neoliberais: remercantilizar os bens sociais; reduzir
o gasto social público, e suprimir a noção de direitos sociais.
Contudo, tal argumentação só consegue se manter de pé apoiando-se nos postulados (não-
explícitos) de que os indivíduos vivem isolados, e ocorrem ao mercado em igualdade de condições,
e com os mesmos recursos, e contabilizando isoladamente cada ato de consumo do serviço-
benefício social.
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48. Human deve!opment Report, op. cit.
49. Ver The World Bank, op. cit., 1987, p. 198, quadro 11.
50. Terceiro Informe de Governo, México, Poder Executivo Federal, 1991.
51. The World Ban, op. cit., 1990.
Por exemplo, embora cada intervenção médica seja dirigida a um indivíduo somente —
apropriação privada,na terminologia neoliberal·—,numa perspectiva temporal todos são
beneficiados por ter assistência médica garantida, tanto porque, é altamente provável que precisem
desses serviços médicos várias vezes na vida, como também porque terão certeza de poder recorrer
a esses cuidados médicos quando for necessário.
Para garantir a segunda condição do processo seletivo de privatização — conseguir formas
estáveis de financiamento para custear os benefícios ou serviços privados — há, teoricamente,
dois mecanismos possíveis. Um deles consiste em comprar os serviços-benefícios do setor privado,
com fundos públicos, através do credenciamento desses serviços; essa modalidade dificilmente
prospera no esquema neoliberal, cuja proposta de restrição ao gasto público choca-se, devido aos
altos custos, com o pagamento dos serviços privados. Outra forma é mediante o incremento da
indústria
de seguros privada que converte o financiamento num negócio em si mesmo, o que significa
deslocar o controle sobre pesados recursos financeiros aos grandes consórcios do capital financeiro,
principal beneficiário dos projetos neoliberais.
No Chile e em parte no México52, optou-se por uma combinação desses mecanismos,
introduzindo-se um seguro obrigatório de capitalização individual. O repasse ao setor privado da
parte rentável destes fundos, públicos pelo método de cobrança, é' realizado de forma diferenciada,
de acordo com o tipo de benefício. Assim, os benefícios que podem ser administrados sob um
estrito princípio de equivalência - o reembolso ao segurado não excede o que foi pago - passam
diretamente à administração privada. É o caso, por exemplo, dos fundos de pensão de capitalização
individual, hoje em moda em toda a América Latina. Esta transação implica entregar aos grupos
financeiros o controle sobre a poupança forçada os trabalhadores.
Para outros benefícios, como é o caso dos serviços de saúde, são estabelecidos mecanismos que
permitem estratificar a população em função da sua capacidade de pagamento e probabilidade de
adoecer. Dessa forma, constituem-se dois sistemas paralelos de administração de fundos e prestação
de serviços —- o privado e o público—, com livre adscrição dos segurados a um ou outro sistema.
O ponto-chave deste modelo é o direito do sistema privado de não aceitar os segurados de "baixo
pagamento-alto risco", porque a sua cota não consegue cobrir o prêmio, enquanto o setor público é
obrigado a aceitar a todos. Nas atuais condições de deterioração das instituições públicas, os
segurados com alta cotização tendem a escolher o sistema privado. Assim, são absorvidos pela
iniciativa privada justamente aqueles com alta capacidade de pagamento e baixo risco de adoecer
que contribuem mais do que consomem -, e sistematicamente segregam-se para o setor público
aqueles de baixa renda ou alto consumo — os pobres, doentes e os velhos, que consomem mais do
que cotizam53•.
Essa situação leva o sistema público a um círculo vicioso de deterioração, ao assistir, com
seus recursos limitados, tanto os pobres como os velhos e os mais doentes, enquanto o sistema
privado floresce e obtém lucros elevados. O caso chileno ilustra essa dinâmica, já que esse tipo de
(contra)reforma resultou numa polarização do sistema de saúde: de um lado, o sistema público, que
atende 84% da população com 59% do orçamento, e, de outro, o sistema privado (os Isapres), que
atende 16% da população, dispõe de 41% do orçamento da saúde, e alcança uma rentabilidade
média de 40% sobre o investimento54.
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52. Veja-se, por exemplo: PINERA, 1., El Cascabel al Gato, La Batalla por la Reforma Previsonal, Zig-Zag, 1991, e LAURELL, A. C., "Sistema de
Ahorro para el Retiro: Primer paso de Ia privatización de Ia seguridad social" in Coyuntura, n. 22, 1992, pp. 7-9
53. Veja-se, por exemplo: WHITIES, D. & SALOMON, J. W., "The proprietarization of health care and the undervelopment of the public sector" in
Int J. Health Serv, v. 17, n. I, 1987, pp. 44-64, e BODENHEIMER, T., "Should we abolish the private health industry?" in Int J. Health Serv, v. 20, n.
2, 1990, pp. 199-220.
54. REQUENA, M., "EI financiamiento dei sistema chileno de salud necesita ser reestructurado" in Salud y Cambio, v. 3, n. 7, 1992, pp. 12-19.
.
No caso mexicano, calcula-se que, dos atuais segurados do sistema público, só 20%
constituem o mercado potencial dos seguros privados de saúde, mas esses contribuem com 45% do
orçamento. Se eles se deslocassem para o sistema privado, o sistema público ficaria com 55% do
orçamento atual para atender a 80% dos segurados e sofreria um novo desfinanciamento,
comparável ao do período 1982-1990 55.
Uma das formas de preparar o terreno à mudança radical nos sistemas de seguro/previdência
social e diminuir a resistência política a tal medida é promover, com incentivos fiscais, o seguro
privado paralelamente ao público. Isso significa transferir indiretamente recursos públicos a
empreendimentos privados, mediante o sacrifício de recursos fiscais do Estado. Uma vez montado o
duplo sistema de seguros para uma parcela da população, é fácil questioná-Io para legitimar a
adoção do sistema acima descrito56.
A terceira condição da privatização seletiva - a capacidade do setor privado de responder à
demanda — resolve-se, no que conceme à administração de fundos, com a existência prévia dos
grandes grupos financeiros, cuja expansão e integração foi facilitada pela desregulamentação
financeira. A respeito da ampliação da produção privada de serviços, em muitos países já existia um
setor privado forte, desenvolvido com a ajuda da sub-rogação na seguridade social pública5?, e que
se insere com facilidade no novo esquema de financiamento. Outros países, com uma importante
produção de serviços públicos em instalações próprias, como o México, demonstraram possuir um
setor privado importante, embora pouco visível58. Mas, caso ele falte, os especialistas do BM
recomendam59 que o Estado proporcione estímulos ao setor privado, como créditos e subsídios
iniciais. Ressalva feita ao obstáculo das restrições do mercado pelas novas formas de
financiamento, pode ocorrer um elevado crescimento dos serviços privados, mas com a nova
característica de se inserirem num sistema dominado pelo capital financeiro.
A estratégia de centralizar os gastos sociais ,em programas de incrementar o domínio do
mercado mediante a retirada dos fundos públicos para o financiamento de benefícios sociais
universais. Desta maneira, para apreciar plenamente o significado dessa estratégia, é preciso
analisar o contexto global do projeto neoliberal e particularmente no que se refere à dinâmica
gerada pelo processo de privatização seletiva. Teoricamente, ninguém pode se opor a uma política
que canalize recursos aos que menos ou nada têm, mas adquire um significado diverso quando,
concretamente, tal política implica remercantilizar os benefícios sociais, capitalizar o setor privado,
deteriorar e desfinanciar as instituições públicas.
O processo global de empobrecimento provocado pelas medidas econômicas neoliberais,
associado ao ataque aos direitos sociais, tem causado convulsões sociais e resistência política
organizada. Diante desta situação, muitos governos latino-americanos mudaram seu discurso,
negando, inclusive, que o seu projeto tenha inspiração neoliberal. Por exemplo, o governo mexicano
nomeia-se "liberalismo social", apesar de suas políticas seguirem ponto por ponto o ideário
neoliberal60. Os organismos financeiros internacionais, como o BM e o FMI, compartilham a
preocupação sobre os efeitos políticos de seus programas de "ajuste e mudança estrutural", e
também eles inovaram seu discurso, procurando justificar as privatizações e a retração estatal na
esfera do bem-estar social como o melhor caminho de se alcançar maior eqüidade, já que ao poupar
recursos dos programas universais, o Estado pode usá-Ios para subsidiar os pobres com programas
sociais básicos 61
_______________
55. LAURELL, A. C. "Privatización y capital financiero en salud" in Salud y Cambio, v. 4, n. 13, 1993.
56. Idem.
57. Veja-se, por exemplo: CORDEIRO, H., A Indústria da Saúde no Brasil, Rio de Janeiro, Graal-Cebes, 1980, e BELMARTINO, S., "Políticas de
salud en Argentina" in Cuadernos Médico Sociales, n. 55, 1991, pp. 13-34.
58. Veja-se, por exemplo: LAURELL-ORTEGA, op. cit.
59. The World Bank, op. cit., 1987.
60. LAURELL, A. C., "Entrenando ideología: escondiendo hechos" in Coyuntura, n. 23, 1992, pp. 12-14.
61. Veja-se, por exemplo: The World Bank, op. cit., 1987; MESA-LAGO, op. cit.; GRIFFIN, C. Strengthening Health Services trough the Privare
Sector, IFC Discussion Paper n. 4, Washington D. C., The World Bank, 1989.
Isto levou à implantação de programas estatais para "aliviar a pobreza", apoiados
financeiramente pelos organismos internacionais, que têm como objetivo declarado garantir níveis
mínimos de alimentação, saúde e educação para a população carente62 . Contudo, a simples
comparação da magnitude da pobreza e dos recursos dedicados a esses programas evidencia que
estao mUlto longe de alcançar seus objetivos. Além disso, tais programas emergentes tendem a ser
manipulados discricionariamente pelo Poder Executivo63. Estes fatos permitem afirmar que os
programas contra a pobreza têm na América Latina um objetivo oculto: assegurar uma clientela
política em substituição ao apoio popular baseado num pacto social amplo, impossível de se
estabelecer no padrão das políticas neoliberais64. Tais programas são, dessa forma, uma tentativa
de evitar o problema de ter de se dirigir para uma economia desregulamentada de livre-mercado,
sem com isso provocar processos políticos contrários que anulem o projeto.
Finalmente, a descentralização neoliberal não tem por objetivo democratizar a ação pública,
mas, principalmente, permitir a introdução de mecanismos gerenciais e incentivar os processos de
privatização65, deixando em nível local a decisão a respeito de como financiar, administrar e
produzir os serviços. Foi essa uma das orientações centrais do Novo Federalismo reaganiano, o qual
enfrentou uma feroz resistência por parte dos Estados confederados, já que era pretexto para
diminuir os recursos federais destinados aos serviços públicos. Na América Latina, uma
descentralização com estas características tem sido enfaticamente' defendida pelos organismos
financeiros internacionais, condicionando empréstimos para programas sociais à descentralização e
à contraprestação financeira das administrações políticas locais, geralmente, em 30% do orçamento
total. Fica difícil compreender como esta política poderia gerar eqüidade em países com
desigualdades regionais tão graves.
O conjunto das políticas sociais criadas pelos governos latino-americanos de inspiração
neoliberal procuram, assim como na Europa, uma reestruturação na atuação estatal, que o aproxima
do Estado liberal, ou seja, de sua "(norte)-americanização". O que não deixa de ser uma tendência
carregada de significado, face à perspectiva da integração de um bloco econômico regional liderado
pelos EUA. Se, como ocorreu no Chile, o processo de privatização seletiva da seguridade social
acabar se impondo, com a consolidação de um sistema dual de "seguros-produção de serviços
privados" e "seguros-produção de serviços públicos", não resta dúvida de que isso irá se traduzir
num crescente domínio do mercado no âmbito dos benefícios sociais e de sua remercantilização.
Isso na verdade significa a negação do conceito de "direitos sociais" cujo cabal cumprimento,
embora na realidade nunca tenha sido garantido, subjaz na responsabilidade estatal à educação e à
seguridade social baseada no princípio solidário66. Esta seguridade social baseia-se financeiramente
na distribuição do orçamento entre todos os cidadãos com direito a isso e permite oferecer serviços
iguais a todos, em função dos problemas a assistir e não do montante cotizado. Num processo de
distribuição muito desigual da renda, esta redistribuição tem grande importância, e coloca ao
alcance de todos os segurados serviços inacessíveis, se fossem para ser adquiridos do mercado. Esta
dinâmica se nula ao se abandonar o princípio solidário, e se optar pela criação de um sistema
paralelo regido por critérios de lucro e equivalência, através do qual se transferem vultosos fundos
públicos para mãos privadas, ao invés de utilizá-l os com um critério social de solidariedade. Pode
ser que este sistema tenha efeitos positivos sobre os dados de crescimento econômico, pela
expansão dos serviços privados. Porém, ao invés de produzir um desenvolvimento social, o
sacrifica, já que os programas públicos de "subsídio" aos pobres proporcionam-Ihes menos
benefícios que a seguridade social solidária.
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62. Veja-se, por exemplo: The World Bank, op. cit., 1990; LEVY, S., Poverty Alleviation in México, Working Papers, World Bank, 1991; e Banco
Mundial, Informe Anual 1992, apud La Jornada, 17/09/1992.
63. Veja-se, por exemplo: DRESSER, O., "Neopopulist Solutions to Neoliberal Problemas", apud Proceso, n. 828, 1992, pp. 10-14.
64. Veja-se, por exemplo: BURKETT, P., "Poverty crisis in the Third World: the contradictions of World Bank policy" in Int J. Health Serv, v. 21, n.
3, 1991, pp. 471-80; e DRESSER, op. cit.
65. The WorId Bank, op. cit., 1987.
66. ELMER, A., Svensk Social Politik, Estocolmo, Liber, 1989.
A reestruturação do Estado segundo o paradigma liberal causa diferentes efeitos na América
Latina, em relação à .Europa, e inclusive aos EUA. Assim ocorre porque um Estado liberal sub-
desenvolvido não pertence a nenhum-dos três “mundos do bem-estar capitalista" assinalados por
Esping-Andersen. Pertence ao mundo do capitalismo selvagem, pelas próprias características de
pobreza maciça na sociedade, exacerbada por suas políticas.
Em condições de pobreza majoritária, de subemprego e desemprego e de salários
minúsculos, o "bem-estar privado" comprado no mercado ou negociado no contrato coletivo da
empresa oferece alternativa somente a uma minoria. Além disso, os serviços públicos tomam-se
absolutamente insuficientes, pela drenagem sistemática de recursos para o sistema privado; isso não
ocorre nos países desenvolvidos. A eliminação das instituições solidárias e coletivistas, tal como
prescreve a doutrina liberal, não só nos distancia do universalismo dos direitos sociais como nos faz
avançar em direção ao passado.Estamos saindo do século XX, mas para entrar no século XIX,
ressuscitando o Estado assistencialista.
Apesar de tudo, as próprias implicações do projeto neoliberal minam suas possibilidades de
êxito. Já se delineia um novo cenário político em que, sob formas diversas e freqüentemente
espontâneas, estão se confrontando grandes contingentes —- unidos pelo empobrecimento e pela
falta de esperança — com pequenas minorias —vertiginosamente enriquecidas e investidas do
poder que emana do controle sobre as decisões econômicas. Esse confronto mostra, aliás, o quanto
estão equivocados aqueles que acreditam que tenhamos chegado ao fim da história ou mesmo à
implantação estável do projeto neoliberal na América Latina.
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