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Os Acontecimentos da Semana Santa (Emil Bock) - Festas Cristãs

são quaisquer restos dos acontecimentos físicos, pois estes só poderiam captar o estado
pré-pascal dos fatos do Gólgota. O significado da vitória pascal é que, doravante, o corpo
espiritual do Cristo, tecido de luz, poderá reluzir em tudo o que é terreno. Pão e vinho, sendo o
verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue do Cristo, são o medicamento da nova vida
conquistada através da vitória pascal. Neles, a homeopatia espiritual atravessa o mundo, tendo
como portadores os homens ligados ao Cristo. A sabedoria do Cristianismo original em torno
deste mistério, expresso, por exemplo, por Inácio de Antióquia, pode ser reconquistada em
nossa época através do pensamento claro treinado pelas Ciências Naturais: pão e vinho são os
medicamentos da imortalidade.

Os altares do sacramento renovado também têm a forma de um túmulo. E, quando as


paróquias se reúnem em torno dos altares, sempre está presente o princípio do sábado da
Aleluia. Somos os que esperam diante do santo túmulo. Sabemos que nosso altar não precisa
abrigar relíquias. O medicamento está presente quando o Cristo está presente, no pão e no
vinho. As arqui-imagens da mesa e do túmulo se interpenetram. E à mesa do Senhor podem
novamente estar presentes os nossos mortos. Aqueles que atravessam a morte após terem se
ligado intimamente em vida ao novo sacramento indubitavelmente saberão achar este Santo
Sepulcro, mais facilmente até do que achar seus próprios túmulos. As almas não mantêm mais
relação intensiva com os corpos de que se despojaram. Mas, quando nos reunimos em torno
do altar, eles podem estar conosco e assim reforçar nosso relacionamento com o mundo
espiritual. Os novos altares circundam-se com a mesma trama de arqui-imagens que envolvia o
sepulcro nas redondezas das plantações do Monte Sion. Está sanado, aqui, o abismo entre
este e aquele mundo e, invisivelmente, floresce o jardim pascal onde nossa alma, como Maria
Madalena, pôde ver o Ressurreto como jardineiro de um novo mundo. De dentro para fora a
escuridão saturnina é iluminada pelo sol pascal.

CORRESPONDÊNCIAS COM A ÉPOCA ATUAL

O drama da Semana Santa, com sua graduação planetária, possui significado em qualquer
tempo. Em momentos cruciais de transformação na história da humanidade este drama adquire
importância atual em todos os seus detalhes. O que sucedeu em Jerusalém, historicamente,
torna-se transparente para as arqui-imagens de validade eterna fundamental. Épocas inteiras
podem reconhecer-se (no espelho desse drama). É o que sucede nos temporais apocalípticos
da nossa época. Estamos atravessando uma Semana Santa em grande estilo.

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A excitação e as comoções que agitam os povos, tanto as guerras quanto as que são sentidas
apenas no íntimo das almas, têm sua origem apenas aparentemente no plano físico. Em
realidade, elas nascem pelo ingresso poderoso, na existência terrena, de forças e entidades
supra-sensíveis. A nova vinda do Cristo é como uma grande e cósmica entrada em Jerusalém.
A humanidade sente em surdina o advento ruidoso do mundo espiritual. Nos brados de guerra
e de paz da atualidade traduzem-se, misturados, os “hosanas" e os “crucifique-o”. No entanto,
estando as almas aprisionadas pelos hábitos materialistas, o grito de ódio prevalece
amplamente sobre o canto de louvor.

Nitidamente revela-se ao nosso redor a lei da segunda-feira santa. A vida espiritual tradicional
entra em crise. Não vemos acaso tanta coisa que ainda há pouco parecia em plena flor e alta
estima agora com o aspecto de uma árvore seca? Muitos templos estão ruindo e só permanece
o que é autêntico. Implacavelmente o sol do destino expõe à luz do dia o que está obsoleto ou
degenerado.

As forças marcianas acendem os fachos do Apocalipse. Quem consegue penetrar além da


superfície dos fenômenos, reconhece que, por trás das lutas externas são travadas lutas
espirituais. A luta da luz contra as trevas é travada por sobre as cabeças dos homens e na
terra existe um grande perigo: que mesmo aqueles que, se estivessem suficientemente
acordados poderiam lutar pela luz, desertam também para o lado das trevas. No obstante, um
pequeno grupo a serviço do sol espiritual pode ser vitorioso. A estes será dada como outrora
aos discípulos no Monte das Oliveiras - o eco espiritual de seus esforços, a visão apocalíptica
através da qual poderão reconhecer o de suas árduas lutas e sofrimentos.

Cada vez mais inequivocamente os homens são colocados diante de decisões íntimas: ou
encontram o caminho que leva à atitude sacramental da plenitude anímica ou sofrerão a
maldição da inquietude, da angústia, do nervosismo, que os precipitará no abismo da loucura.
Devem escolher entre Maria Madalena e Judas.

Sob o peso do destino não existe quase mais ninguém que, ao menos por instantes, não tenha
estado perto do mistério da quinta-feira santa, com sua luz de esperança para o futuro. A
questão é apenas se a consciência se mantém firme, se desperta como a de João, se
submerge no torpor do sono getsemânico, como Pedro, que renegou o Senhor, ou se até
mesmo sucumbe ao demônio como a do Judas, que o traiu.

O verdadeiro mistério de nossa época consiste na renovada presença do Cristo entre os

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homens. É possível perseguir as igrejas cristãs, exterminar o Cristianismo; o Cristo, ele próprio,
pode apenas ser novamente flagelado, coroado de espinhos e crucificado. Isto acontece não
só por parte dos adversários como também por parte dos próprios cristãos. Não surpreende
que sol se cubra e os elementos se enfureçam. A ira de Deus flagela o mundo com o castigo
de tempestades. Não obstante, o aspecto oculto, interior, de tudo isto é o infinito amor divino. O
Cristo que é, ele próprio, o amor cósmico, morre mais uma vez para penetrar nesta terra, para
salvação também daqueles que o perseguem e o crucificam.

Finalmente, toda a humanidade está esperando diante de um sepulcro. Começa a atual lei do
sábado da Aleluia. As massas rochosas que mantêm sepultado o Cristo e, com ele a
verdadeira imagem do homem, incluem não só as fabricas e os supermercados, mas também
as igrejas. Tudo o que existe de enrijecido entre os homens é o próprio sepulcro rochoso.
Encontramo-nos na véspera de uma manhã pascal ou terão sido em vão todas as provações e
os sofrimentos? Poder-se-ia pensar que a humanidade, em meio às catástrofes que ela própria
provocou, esteja mais afastada do que nunca do mistério Ressurreição. Entretanto, naquela
época também houve terremotos até na madrugada do domingo de Páscoa e, portanto,
podemos esperar que nos tremores da terra e da alma que abalam nossa época também
esteja o Anjo do Senhor, que afastará a pedra do sepulcro.

APÊNDICE

O MOTIVO DA "SAÍDA" NA NOITE DA QUINTA-FEIRA SANTA

Os quatro evangelhos não coincidem quanto ao momento da noite da quinta-feira santa em


que Jesus deixa o cenáculo e começa o caminho do Getsemane. Temos aí um exemplo de
como a linguagem das contradições nos evangelhos revela importantes mistérios, mesmo
quando as contradições se referem a detalhes aparentemente não essenciais.

Em Mateus e Marcos a cena da Santa Ceia é descrita de forma bastante coincidente. Após
sentarem-se á mesa, Jesus e os discípulos relatam primeiro a anunciação da traição com as
perguntas e respostas que se seguem. Esta conversa é a zona de prova após a qual se realiza
o mistério sacramental: bênção e distribuição de pão e vinho. Segue-se a misteriosa palavra de
Jesus, que ele não mais beberá da parreira até que o faça de novo no reino de Deus. Logo

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após os comensais cantam o hino e Jesus sai de casa com os discípulos em direção ao Monte
das Oliveiras. É importante, aqui, que nos dois primeiros evangelhos a conversa do cenáculo é,
de certo modo, continuada a caminho de Getsemane. Se no cenáculo foi anunciada a traição,
agora é anunciada a negação do Cristo por Pedro. Antes disto, o Cristo diz aos discípulos:
“Nesta noite todos vos aborrecereis comigo”. Além disto, é pronunciada a severa palavra da
distração, derivada em grego do nome da escuridão. É verdade que a ela se segue logo a
anunciação da Páscoa. Jesus diz aos seus discípulos que, após sua ressurreição, ele os
precederá a caminho da Galiléia. Como Pedro se defende, dizendo que ele não se aborrecerá
com o Cristo, este vai além, anunciando a negação. Segue-se a cena de Getsemane.

As conversas apenas insinuadas com breves palavras têm significados diferentes conforme
ocorram antes ou depois da saída. A saída em si, assustando os discípulos, deve ter
provocado um estado de enlevo em suas almas. A palavra da distração ainda acentua mais
este enlevo. A compreensão deste fato significa uma chave para a compreensão da misteriosa
frase sobre a Galiléia: esta frase foi dita a almas em estado de enlevo e seu conteúdo também
se refere a um tal estado. Apenas são totalmente diversas as paisagens da alma para as quais
levam o enlevo do momento e o enlevo posterior, pascal. É isto justamente o que se reflete no
enigmático surgimento do motivo galileico, cujo sentido não é exterior, mas interior. A
anunciação da negação, também feita a almas em estado de enlevo como que se refere, ao
mesmo tempo, a um futuro estado de enlevo. Primeiro trata-se inteiramente de um enlevo cujo
principal portador será Pedro. Talvez seja o hálito de mistério que já pode ser percebido na
frase sobre o beber  a parreira, um primeiro anúncio de que todas as palavras e todos os
processos desta noite desembocarão em um enlevo inicialmente trágico, mas depois através
da morte do Cristo, salvador.

No evangelho de Lucas, as conversas da Ceia se tornam mais detalhadas. Forma-se já uma


transição para os grandes discursos de despedida do evangelho de João. O importante é que
Lucas não divide os pronunciamentos em dois grupos, antes e depois da saída. Em Lucas,
aquilo que Marcos e Mateus relatam como tendo sido falado a caminho de Getsemane, já é
enunciado no cenáculo. Chama especialmente a atenção o fato de até mesmo a negação ser
anunciada antes da saída do cenáculo. À saída, segue-se diretamente a cena de Getsemane.
Em compensação, todas as palavras citadas por Lucas em relação à Ceia são de um caráter
enigmático que só se elucida se forem compreendidas como tendo sido faladas a almas em
estado de enlevo. Até mesmo a estranha discussão entre os discípulos sobre quem seja o
maior, particularmente enigmática por ter lugar após a comunhão, leva logo às palavras do
Cristo que, em Lucas, representam o paralelo do lava-pés do evangelho de João, devendo ser
entendida como um sintoma do enlevo que está se apoderando dos discípulos. Com maior
razão ainda, o pronunciamento sobre as duas espadas e as perguntas e respostas que o
acompanham, só pode se tornar compreensível se o considerarmos como sendo palavras de
enlevo. Interiormente a saída já ocorreu, tanto para Jesus quanto para os discípulos, embora
Lucas só relate mais tarde a saída física do cenáculo. Só assim se explica o aparentemente
insignificante, mas em realidade, muito elucidativo contraste entre Lucas e os dois primeiros

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evangelhos, ou seja, Lucas relata o anuncio da negação como tendo sido feito no cenáculo e
não rio exterior. Em Lucas, a saída física está relatada em horário posterior, porque Lucas
torna mais explícito, em sua descrição, o processo interior da saída.

A metamorfose apenas iniciada no evangelho de Lucas, no de João se intensifica. É verdade


que João nada diz sobre a instituição do pão e do vinho, mas na descrição do lava-pés e da
ceia do Passah, aqui salientados em seus detalhes, enquanto nos outros três evangelhos não
são mencionados, estão entretecidos os anúncios da traição e da negação. Depois, antes de
serem relatadas a saída exterior e a ida para Getsemane, o evangelho de João nos conduz por
três capítulos ao longo dos assim chamados grandes discursos de despedida, que culminam
com a oração. Por causa disso, o anúncio da negação dirigido a Pedro, que em Mateus e
Marcos é feito no caminho para Getsemane e em Lucas, no interior do cenáculo, recua um
grande passo para o interior.

O evangelho de João é o que menos deixa perceber o deslocamento do nível de consciência


provocado pelo estado de enlevo. O transcurso Físico dos acontecimentos nele é mais
nitidamente constatável, o que significa que as palavras e os fatos são por ele apreendidos
com a consciência desperta e racional, enquanto nos outros discípulos, e depois também nos
três evangelistas, provocam um estado de enlevo.

Tanto mais emocionante é reconhecermos como, no evangelho de João, o tema da saída


ainda ressurge mais uma vez de maneira significativa: no início do 18º capítulo, antes das
palavras “e quando Jesus acabou de falar assim, saiu com os discípulos” já lemos, em meio
aos discursos de despedida, no final do 14° capítulo: “Levantai-vos e partamos deste local” ou,
na tradução de Rudolf Steiner: “Se vós também estais preparados, podemos tranquilamente
deixar este local”. Se esta frase de Jesus não for desprezada como insignificante, veremos que
ela é capaz de despertar a seguinte concepção: os três últimos capítulos dos discursos de
despedida em João teriam sido falados enquanto Jesus e os discípulos já se levantavam da
mesa preparando-se para sair da casa. A maior parte dos discursos de despedida seria,
portanto, pronunciada na soleira da porta. Não poderíamos ter uma descrição mais explícita da
saída interior que precedeu a saída física, do que esta do final do 14º capítulo do evangelho de
João. Os discursos de despedida ressoam da alma do Cristo que já começou a desligar-se do
corpo; e nas almas dos discípulos, enlevados pelo medo e pelo susto, só é captado, desses
discursos, um reflexo relampejante ainda registrado de certa forma em Lucas, mas ausente na
descrição sumária, puramente exterior, de Mateus e Marcos. Somente na alma de João que,
desde a recente ressurreição do Lázaro, habita dois mundos, é capaz de manter o equilíbrio
entre o enlevo do Cristo e o enlevo dos discípulos. Ele acompanha, compreendendo, a alma do
Cristo que se revela ao desligar-se sem ser arrastado para o enlevo sombrio, escorpiônico, dos
outros discípulos e, por isso, é capaz de captar as palavras sagradas daquela instrução na
Santa Ceia.

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DA VISÃO DO CRISTO

Em comparação com os três primeiros evangelhos, predominantemente imaginativos, o


evangelho de João se apresenta como propriamente inspirativo. Enquanto a espiritualidade dos
outros culmina em imagens, o elemento do evangelho de João é a palavra como tal. Ele dispõe
de cunhos verbais em si bastante inaparentes, mas que conferem acentuação luminosa a
certos pontos culminantes da vida do Cristo. Pela repetição destas fórmulas “joaninas” surgem
figuras plácidas (silenciosas) que evidenciam importantes etapas e desenvolvimentos
interiores.

Entre essas expressões verbais, uma das mais íntimas é a que normalmente se traduz por:
“ele ergueu seu olhar”. Repete-se em três trechos: cap. 6,3 - antes da alimentação dos 5.000;
cap. 11,41 - antes da ressurreição do Lázaro: cap. 17,11 - antes da oração.

Antes da alimentação dos 5.000, a locução somente caracteriza conteúdo perceptivo. Jesus vê
chegar a ele uma multidão. Antes da ressurreição do Lázaro e antes do final solene dos
discursos de despedida, estas palavras introduzem palavras de oração, como se o erguer do
olhar contivesse uma especial orientação em direção ao Pai: “Pai, dou-te graças”, “Pai, chegou
a hora”. Enquanto se acredita que Jesus viu uma multidão faminta através de uma percepção
física, existe um abismo separando o primeiro trecho dos dois outros.

Entretanto, este modo de compreender é provado errôneo já pelo fato de não estar escrito ele
"vê", mas ele “tem a visão" da grande multidão. Nos três trechos, a fórmula exprime a entrada
do Cristo em estado de visão supra-sensível. A tradução exata é a que R. Steiner deu, de João
17, 1: “Jesus transportou-se para a visão espiritual”. Nisto, o importante é saber que esse
estado não leva apenas a percepções, mas também ao contato com as realidades
contempladas e às origens superiores das forças. Cada vez efeitos especiais resultam dessa
visão que, de fato, é muito mais do que um simples erguer de olhos devoto.

Os três trechos têm um prelúdio no 4º capítulo, onde Jesus convida os discípulos a erguerem
seus olhos: “Olhai os campos, como estão brancos para a safra”. (4, 35). Jesus abre aos

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discípulos a visão interior do estado da humanidade.

O primeiro dos três trechos se relaciona diretamente com isto: a multidão que o Cristo vê
chegar não está fisicamente presente; trata-se da humanidade futura que aparece em espírito.
A alimentação é antes uma provisão de forças para os discípulos em sua missão apostolar do
que uma manifestação momentânea de gente presente. Nos outros dois trechos podemos
perceber que a visão do Cristo está intimamente ligada ao estado de oração de sua alma e
que, de modo geral, oração e visão se ligam por íntima relação causal.

Os três trechos não são idênticos entre si. Apresentam uma gradação crescente em relação à
esfera sobre a qual se dirige a visão e cuja força é invocada.

No final, o fruto da visão do Cristo não é tão perceptível como na alimentação dos 5.000 ou na
ressurreição do Lázaro. Mas não é menos importante: é todo o abençoado destino futuro dos
discípulos.

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