Você está na página 1de 3

O ativismo urbano e o valor de uso do espaço público

GUILHERME WISNIK

15/11/2015 02h03
RESUMO Arquiteto e professor da USP comenta ciclo de debates com grupos que atuam no espaço público
em distintas frentes. Um dos organizadores dos encontros, ele resenha os temas principais e mostra que o
atual ativismo urbano se pauta pela ideia de ocupação temporária do espaço público, dando-lhe valor de
uso.

Neste ano de 2015, com a direção da antropóloga Sylvia Caiuby no Centro Universitário Maria Antonia (USP),
criamos um ciclo de seminários chamado "Inquietudes Urbanas". Focalizando discussões sobre a relação
entre a dimensão conflitiva do espaço urbano e o papel formador do ensino universitário público, o ciclo
tem abordado temas candentes, como a violência contra a mulher, o uso do crack em espaços públicos, a
discriminação contra LGBT, a intolerância religiosa, a segurança e o sistema penal, e as várias formas de
ativismo urbano, entre outros.
A grande atenção que esses debates têm despertado é, me parece, um sinal positivo em relação às possíveis
formas de diálogo crítico entre a universidade pública e a sociedade, em uma região central da cidade.
Em particular, organizei duas edições do evento. Uma, agora em novembro, intitulada "Plano Diretor, Por
Quem, Para Quem", com Nabil Bonduki e Guilherme Boulos, e outra em agosto, intitulada "Ativismos na
Cidade: Fricções entre o Público e o Privado". Concebida em parceria com Thiago Carrapatoso, essa edição
do "Inquietudes" ocorreu em duas sessões em semanas consecutivas, e é a ela que vou me referir nesse
artigo.
O ponto de partida foi o convite a diversos grupos ativistas que têm atuado em São Paulo, criando uma roda
de conversa aberta em que os diversos pontos de vista pudessem ser colocados e debatidos.
Foram convidados representantes dos coletivos Arquitetura e Gentrificação, Assalto Cultural, A Batata
Precisa de Você, Casa Latina, Casa da Lapa, Casarão do Belvedere, Casa Rodante, Coletivo BijaRi, Coletivo
Cartográfico, Contra-filé, Política do Impossível, Sistema Negro, Terreyro Coreográfico, Wikipraça, e o
performer e ativista Paulinho Fluxus.
Obviamente é impossível resenhar aqui todas as questões que apareceram nessas noites de debates. Mas
certamente uma das percepções mais evidentes que tive a partir daí foi a existência de um grande dissenso
no interior daquilo que chamamos inicialmente de movimentos ativistas. O que não foi exatamente uma
surpresa, pois, como já estava afirmado no título do debate, a questão urbana era trazida à público através
da noção de fricção, isto é, de conflito.
Nesse encontro havia grande heterogeneidade: grupos de arte urbana, de teatro-dança, de urbanismo
tático, grupos feministas, grupos ligados a movimentos negros e ativistas políticos voltados à denúncia de
vulnerabilidade social em espaço urbano.
E não só havia discordâncias quanto ao uso e ao sentido das palavras "grupo" e "coletivo", por exemplo, mas
também claras demarcações de diferenças entre posicionamentos de grupos ligados à arte e ao urbanismo,
de extração predominantemente universitária e de classe média, e de grupos ligados às questões raciais, de
gênero e mais diretamente sociais, vinculados às periferias.
ELITISMO
Em particular, foi criada uma situação aguda no momento em que se acusou de elitistas movimentos como
o Parque Augusta, A Batata Precisa de Você, ou as várias correntes que debatem em São Paulo a
transformação do Minhocão em parque. Pois seriam, todos esses, movimentos de classe média
intelectualizada que se preocupa apenas (ou prioritariamente) com as áreas centrais da cidade, e não com
as periféricas.
Nessa hora, uma das pessoas presentes, que se identificou como um morador da periferia, observou que o
espaço público é em essência um problema do centro, e não da periferia, pois lá, segundo sua opinião, as
pessoas usam muito mais as ruas como espaço de convivência cotidiana, independentemente de isso ganhar
ou não o nome de "público".

Diante disso, mesmo reconhecendo os riscos de transformar em virtude aquilo que é resultado da carência,
é preciso admitir que questões oportunas se desdobram a partir dessa discussão.
É verdade que a onda ativista atual no Brasil, conectada à agenda das primaveras e dos movimentos "occupy"
pelo mundo, incide prioritariamente sobre espaços centrais das cidades. O mesmo pode ser observado nos
casos do Ocupe Estelita, no Recife, e da Praia da Estação, em Belo Horizonte, por exemplo. Mas nem por isso
podem (ou devem) ser considerados necessariamente elitistas, como se centro e periferia fossem lugares (e
conceitos) mutuamente antagônicos.
É evidente que os espaços centrais das grandes cidades –que de fato associamos mais à noção canônica de
"espaço público"– deveriam ser lugares de convivência e de autorreconhecimento não apenas dos
moradores da região (aliás, muitos deles de classe baixa), mas dos habitantes da cidade como um todo.
Muito a propósito, em um lugar como a Cidade do México, quase todos os parques e praças do centro são
desprovidos de grades e ficam lotados de pessoas e de tendas de comércio informal nos finais de semana,
já que o preço do transporte público lá é sensivelmente baixo.
Um segundo ponto importante que decorre daquela referida discussão é a necessidade de precisar melhor
o sentido dessas ações ativistas, e, ao lado disso, o próprio conceito de espaço público.
Diferentemente da maioria dos movimentos sociais surgidos no Brasil no período da redemocratização,
ligados em geral à pauta da habitação social e voltados para a construção de uma política de Estado, esses
movimentos atuais ampliam a agenda de discussão nas direções da reivindicação do transporte e dos
espaços públicos, pressionando os órgãos do Estado, mas, ao mesmo tempo, agindo com certa autonomia
em relação a eles. Isto é, guardam uma relativa distância da chamada política oficial. Por trás disso estão, a
meu ver, algumas questões de fundo.
RESSACA
Em primeiro lugar, esses movimentos surgem, no início da década atual, em meio a uma ressaca geral com
relação às promessas da política oficial. O horizonte otimista descortinado no início do milênio, com a criação
do Estatuto da Cidade e do Ministério das Cidades, tendo como baliza a perspectiva de reforma urbana, se
mostrou decepcionante.
Ao mesmo tempo, e de forma contrastante, a inclusão de classes mais baixas no círculo do consumo durante
esse período, somada às manifestações de junho de 2013 e às reais ações urbanas voltadas ao interesse
coletivo na cidade de São Paulo, durante a gestão Fernando Haddad, deram à pauta urbana um sentido de
máxima urgência.
Assim, atuando sobre o espaço urbano muitas vezes através do uso cotidiano, sem uma agenda política
necessariamente clara, o que muitos desses grupos ativistas parecem querer promover, segundo a minha
impressão, é o acesso público e democrático a espaços mais bem qualificados e a serviços básicos de
infraestrutura, como ônibus, trem e metrô.
E, se historicamente o conceito de espaço público nasce, na Grécia Antiga, encarnando a dimensão política
em oposição total aos espaços da vida privada –a política como prática da cidade, "polis", contraposta à
economia como administração doméstica, "oikos"–, a atitude de muitos coletivos ativistas que hoje usam e
ocupam temporariamente praças e outros espaços de cidades pelo mundo parece voltar-se menos a esse
horizonte canonicamente público do que à noção de "comum" ("common"), tal como definem Antonio Negri
e Michael Hardt.
Estaríamos, assim, menos próximos da praça em que se realiza o julgamento de Sócrates do que das ruas de
bairros periféricos de São Paulo, ao mesmo tempo violentas e formadas por redes comunitárias de
sociabilidade e comércio informal.
O "comum" supõe uma aproximação ao espaço público que não exclui a dimensão privada. Não me refiro
aqui às políticas de Parcerias Público-Privadas, mas à ação, transformação, ocupação e eventual gestão
temporária dos espaços públicos por grupos da sociedade civil, em geral coletivos e autogestionários.
Nesse sentido, não se espera mais por uma ação paternalista do Estado, feita de cima para baixo, mas deseja-
se construir coletivamente uma vida pública de forma mais horizontal e colaborativa. Daí a generalização da
expressão "apropriação do espaço público", referida ao uso temporário desse espaço, e não à sua posse.
Um dos maiores paradigmas do "common" é o Zuccotti Park, em Nova York, onde em 2011 aconteceu o
movimento Occupy Wall Street. Ocupação que só pôde ocorrer porque aquele lugar não era exatamente
público, e sim um espaço privado de uso público (uma "bonus plaza"), que, por isso, não poderia ser invadido
pela polícia.
Com efeito, ainda que as ações concretas de urbanismo tático e resistência a projetos de privatização de
espaços de interesse público promovidas por esse grupos ativistas sejam pontuais e insuficientes diante da
escala e complexidade das grandes capitais brasileiras, elas são formadoras de uma nova e importante
consciência cidadã. "A cidade é nossa, ocupe-a", diz o slogan do Ocupe Estelita, ao lado de outro chamado
"Recife cidade roubada". Queremos as cidades de volta. Não por seus valores de troca, mas por seus valores
de uso.
GUILHERME WISNIK, 43, é professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto na FAU-USP e vice-diretor
do Centro Universitário Maria Antônia.

Você também pode gostar