Você está na página 1de 15

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Programa de Pós-graduação em Geografia


Departamento de Geografia
Geografia e Movimentos Sociais
Prof. Carlos Walter Porto-Gonçalves
Aluno: André Fernandes de Caldas.

Ciberespaço: Nem panaceia, nem ágora de uma nova


democracia participativa

Um ensaio sobre as manifestações de Junho de 2013.

Porto Alegre, 2022


No mês de Junho de 2013, São Paulo virou o epicentro de um “terremoto
político” que gerou uma onda sísmica que atingiu mais de trezentas cidades
espalhadas por todo o país. O Brasil inteiro parou para acompanhar o levante popular
que se seguiu após a manifestação de aproximadamente duas mil pessoas no dia 07
de junho em São Paulo. Até então, o que era para ser um protesto pacífico do
Movimento Passe Livre (MPL) pela revogação do aumento de 0,20 centavos da
passagem de ônibus aprovada pelo então governador do estado de São Paulo,
Geraldo Alckmin do PSDB, com o inusitado apoio do prefeito da cidade de São Paulo,
Fernando Haddad do PT; acabou gerando a maior manifestação popular da história do
Brasil depois que foi duramente reprimida pela polícia em episódio dantescos de
extremo abuso de poder, coação e criminalização dos movimentos sociais. No dia 20
de junho, já somavam 1,25 milhões de pessoas em mais de 130 cidades espalhadas
por todo país.

Durante todo o mês de junho, diversos foram os esforços feitos por intelectuais,
acadêmicos e pela imprensa para buscar entender quais foram as origens da revolta e
quem eram os principais sujeitos que a articularam. Notória foi a entrevista concedida
pelos representantes do Movimento Passe Livre (MPL) no programa Roda Viva da
TVE enquanto os atos ainda esquentavam as ruas de São Paulo numa clara tentativa
por parte da grande mídia de “dar nome aos bois”. No entanto, outras questões
continuaram a surgir na medida em que os protestos do MPL se somaram com a
articulação dos Comitês Populares da Copa e se territorializaram nas ruas dos
grandes centros urbanos. A cada dia de protesto, a adesão popular aumentou graças
ao papel que as redes sociais e o jornalismo independente (com destaque para a
atuação do Centro de Mídia Independente – CMI e a então surgida Mídia Ninja)
tiveram na informação e divulgação em tempo real do que realmente acontecia nas
ruas, contradizendo o discurso da grande mídia que adotou uma postura
extremamente conservadora de criminalização dos movimentos, taxando-os de
“baderneiros”, “vândalos” e “revoltosos de classe média”1. Como não lembrar a
comparação feita com a organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC),
pelo comentarista Arnaldo Jabor durante a transmissão do Jornal Nacional da Rede
Globo?2

Apesar da tendenciosa cobertura da mídia corporativa, o número de pessoas


que aderiam aos protestos só fez aumentar. Conforme defendido por Antunes (2013),
1
Para um maior aprofundamento sobre o papel da mídia alternativa na cobertura das manifestações, ver a dissertação
de mestrado da jornalista Tiana Ellwanger: Manifestações de junho de 2013: como experienciamos, esquecemos e
lembramos na contemporaneidade. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura) - Programa de Pós-graduação
em Comunicação e Cultura, Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017.
2
Visto em https://globoplay.globo.com/v/2631566/
as manifestações foram adquirindo características de um movimento polimorfo,
multidiferenciado, heterogêneo, polissêmico e policlassista. As questões principais que
surgiam passaram a girar em torno dos possíveis rumos que as manifestações iriam
tomar e se teriam ou não sucesso na conquista de seus objetivos. Hoje, somam-se a
estas, outras questões essenciais: Quais as repercussões das manifestações de junho
de 2013 para os desdobramentos políticos que se seguiram, como a derrubada da
presidenta Dilma Russef através do golpe de 2016? Teriam as manifestações
influenciado indiretamente na ascensão dos grupos de direita e extrema-direita como
os movimentos de caráter neoliberal e conservador como Movimento Brasil Livre
(MBL) e Vem pra Rua, gestados durante as manifestações com o intuito de disputar os
rumos dos protestos e que ajudaram a eleger o presidente Jair Bolsonaro em 2018?

Este ensaio surge com o intuito de tentar entender como a Geografia poderia
ajudar-nos a compreender as questões apontadas acima e para isso, vamos partir de
algumas premissas caras à Geografia que nos servirão para direcionar as reflexões
aqui propostas:

1. As manifestações têm sua origem na luta pela redução da tarifa de ônibus


que é em sua essência uma luta pela melhoria do serviço de transporte
público e na luta dos Comitês Populares das Copas contra as políticas de
despejo e remoção das populações afetadas pelas obras de infraestrutura
da Copa do Mundo de 2014. Temas caros aos estudos geográficos sobre:
reforma urbana e o direito à cidade.

Esses podem ser considerados fatores de interesse direto da geografia e seu


foco nos estudos do espaço urbano e da territorialização/territorialidade dos
movimentos sociais urbanos. Vamos ainda discorrer a respeito de outros temas de
igual importância para a geografia, como:

2. A importância da compreensão do ciberespaço enquanto categoria


geográfica, uma vez que a organização em rede e a territorialização
desses movimentos no ciberespaço mudou completamente o caráter de
sua mobilização, saindo do controle destes movimentos e adquirindo o
caráter de movimento de massas heterogêneo, gerando repercussões
políticas em escalas mais amplas em um curto período. Ou seja, ganha-se
uma nova espacialidade e uma nova temporalidade, graças à cobertura em
tempo real dos protestos e da capacidade que ferramentas como facebook
e twitter ofereceram na mobilização de manifestantes em mais de 300
cidades em todo país. Fenômeno nunca visto em nossa história.
3. Um outro ponto a ser abordado é o que Castells chama de Espaço Híbrido
e que pode nos ajudar a compreender melhor a natureza dos movimentos
sociais e sua relação com ciberespaço através do olhar da geografia.

Arriscamos dizer que foi justamente no momento em que se perde o enfoque


das questões urbanas que as pautas de reivindicações acabam se dispersando
para temas mais genéricos, mas que mesmo assim, tem a ver com a precarização
do trabalho pelas transformações oriundas do capitalismo cognitivo-cultural, crise
das instituições democráticas representativas e sua cooptação pelo capital
financeiro e grandes corporações.

De acordo com Zibechi (2013), é fundamental buscar a origem das jornadas de


2013 nas lutas que aconteceram desde 2007 com a crescente organização do
MPL e com a criação do Comitê Popular das Copas durante os Jogos
Panamericanos de 2007. As raízes destes movimentos estão nas lutas pelo direito
à cidade e por uma reforma urbana essencialmente anticapitalista, pois se colocam
contra a segregação socioespacial e à especulação imobiliária que oprime as
camadas mais pobres da população mantendo a exclusão de classe, racial e de
gênero.

A abordagem do autor busca se diferenciar das análises que julgam as


jornadas como levantes espontâneos, geralmente atrelados ao discurso de que
suas origens se deram pelas redes sociais de “forma mágica” e espontânea, como
se fosse um mero levante de descontentamento popular pré-político.

Difere também da posição defendida por Cocco (2013) e Castells (2013) de


que as jornadas fariam parte de um todo maior em conjunto com a Primavera
Árabe, Occupy Wall Street e o Movimento 15M espanhol; as ditas “revoluções 2.0”
que expressam a insatisfação política da classe média. Retornaremos mais
adiante com esse tema, dedicando maior atenção às diferenças e semelhanças
entre estes movimentos.

De acordo com essa perspectiva genealógica proposta por Zibechi, tanto o


MPL, quanto o Comitê Popular das Copas foram os responsáveis por
verdadeiramente trazer o conteúdo necessário para as mobilizações. Propostas de
Reforma Urbana e o direito à cidade eram os pontos centrais que davam coesão
aos dois movimentos. O primeiro defendendo o princípio da tarifa zero como direito
constitucional e o segundo reivindicando justiça social e o direito à moradia para as
famílias que sofreram com as políticas de remoção e despejo praticadas pelas
obras de infraestrutura para a Copa do Mundo, lutas em sua essência
anticapitalistas. Uma luta contra o que Zibechi (2013) chama de “extrativismo
urbano”, já que o transporte urbano é condição primordial para a reprodução do
trabalho urbano e incide sobre o trabalhador precarizado o ônus de arcar com um
dos maiores valores de transporte público do mundo que consome
aproximadamente 30% do salário-mínimo.

Romper ese mecanismo de control, modificar el lugar que tiene reservada la clase
dominante para los de abajo, ¿no es una lucha anticapitalista? El MPL sostiene que la
Tarifa Zero es una lucha de todos y cambia todo, un medio de subvertir el orden de los
transportes y toda la estructura de la ciudad. La movilidad urbana es puesta en
cuestión por la segregación espacial, social, racial y de género (…) Las grandes obras
para el Mundial y las Olimpíadas van en la misma dirección. La población pobre de Rio
está siendo desplazada hacia las periferias norte y oeste mientras se convierte el
centro de la ciudad en espacio para el turismo y los negocios, con la construcción del
Puerto Maravilla para que atraquen cruceros y los turistas visiten el Morro da
Providencia en teleférico sin ser molestados por los que aún sigan viviendo en la
favela. Los mega eventos son un momento crucial para imponer un proyecto de ciudad
que crea nuevas centralidades, refuerza otras y convierte los barrios pobres en “zonas
de sacrificio”, en el entendido que los sacrificados son sus habitantes. ¿Cómo no
considerar la lucha contra la especulación inmobiliaria como parte de la lucha
anticapitalista? (Zibechi, 2013, p.30).

A luta contra o aumento da passagem de ônibus se faz sentir por todos aqueles
trabalhadores precarizados que sentem que suas vidas estão sendo sugadas pela
gestão desumana do espaço urbano. É ao mesmo tempo uma batalha cotidiana pela
garantia política do usufruto dos recursos econômicos e materiais do espaço urbano e
uma batalha contra a coisificação do mundo pelo liberalismo e suas instituições que
tentam “evitar que el tiempo y el espacio de lo social afecten negativamente a la
naturaleza individual y asocial de los átomos que, sin embargo, deben interactuar
como único medio de realizar sus fines y satisfacer sus necesidades” (Tápia, 2008).

As mobilizações deram voz à insatisfação de um precariado que seria a


espinha dorsal dos protestos de rua de junho de 2013. “O precariado, formado por
jovens-adultos escolarizados, mas com inserção precária nas relações de trabalho e
vida social, constitui a “camada média do subproletariado urbano” (Alves, 2013).
Na visão de Alves (2013), o governo do PT teria focado em gastos sociais
destinados ao “subproletariado pobre” como políticas de concessão de créditos,
programas de transferência de renda e financiamento de políticas habitacionais
impulsionados pelo “boom” das commodities, aumentando o poder de consumo dessa
camada da população, mas criando um endividamento do trabalhador que o colocou
em extrema vulnerabilidade assim que este ciclo econômico entrou em declínio. Por
outro lado, a redução nos investimentos públicos em saúde, educação e tecnologia; a
desindustrialização crescente frente o rentismo e a flexibilização das leis trabalhistas
deram a tônica para um neodesenvolvimentismo incapaz de trazer soluções para o
avanço do capitalismo cognitivo-cultural.

Desta forma abre-se uma crise de representatividade onde o Estado, lugar da


política institucional e das demais instituições que mediam seu diálogo com a
sociedade civil, perde sua legitimidade. O PT perde seu contato com suas bases
sociais históricas, ao mesmo tempo que em nome de sua governabilidade, se
compromete com uma agenda político-econômica neoliberal, voltada para os
interesses do grande capital.

Los movimientos sociales son formas de recreación organizativa o de vida social a


través de una intensa y conflictiva relación con el resto de la sociedad civil y el estado,
en la condición de la movilización, es decir, de desorganización parcial y temporal de
los lugares, tiempos y fines de la política. Un movimiento social exige un
reordenamiento pequeño o grande de la sociedad y del estado, y empieza haciéndolo a
través del desbaratamiento de las relaciones políticas de poder establecidas para la
reproducción de las desigualdades existentes. (Tápia, 2008).

Há, então a perda da capacidade das instituições, desde seu lugar político
estabelecido, de compreender as necessidades e demandas do precariado, que
revoltoso, busca criar não-lugares políticos, solidários, autônomos e horizontalizados.
Um fazer político selvagem que quebra os paradigmas do fazer político institucional.

Este espacio que configuran los movimientos sociales es un campo de fuerzas más
que un lugar de la política. En tanto hay movilización de fuerzas, demandas y
proyectos, se ocupan lugares, hay un recorrido de las acciones, pero éstas tienden a
no estabilizarse e identificarse con un lugar delimitado e institucionalizado de la política;
cuando ocurre esto se vuelven simple sociedad civil. En este sentido, el campo de
fuerzas configurado por los movimientos sociales es un no lugar político; es una zona
de tránsito del conflicto social, es también como el viento que pasa y puede arrancar
algunas cosas de raíz y mover otras de su lugar. Los movimientos sociales instauran la
fluidez de la sociedad civil y la problematización del orden político. Es la parte de la
sociedad que hace las preguntas y hace la crítica de la irracionalidad de algunas
formas y principios de organización social y de distribución. Los movimientos sociales
son la forma y sujeto de reflexión conflictiva de las sociedades sobre sí mismas. (Tápia,
2008).
Sob uma perspectiva bastante influenciada pelo conceito de Multidão3 proposto
por Negri e Hardt (2005), Cocco (2013) classifica as jornadas de junho de 2013 como
um exemplo de “Revolução 2.0”, o que aproximaria as características das
manifestações de Junho de 2013 das manifestações como a Primavera Árabe, o
Movimento Occupy nos EUA e o 15M na Espanha. Essa análise é compartilhada
também por Castells (2013) que traça um perfil comum dos movimentos:

 Papel fundamental das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s) para


consolidação de redes de solidariedade.
 Componente emocional que parte da indignação (raiva) à solidariedade
(esperança).
 Princípios de organização pautados na autonomia, horizontalidade e ausências
de lideranças centralistas.
 Movimentos se territorializam de forma autônoma no espaço híbrido.
reproduzido dialeticamente na relação entre ciberespaço e espaço urbano,
numa escala ao mesmo tempo global e local.

Castells (2013) atribui um peso grande ao papel das Tecnologias da


Informação e da Comunicação (TIC’s) na construção de um novo fazer político,
onde o espaço da autonomia seria o locus do fazer político dos novos movimentos
sociais. Em suas palavras, “as redes sociais da internet mobilizaram apoio
suficiente para que as pessoas se reunam e ocupem o espaço público,
territorializando seu protesto” (Castells, 2013). Os movimentos sociais só se
consolidariam enquanto tal, no momento que as práticas territoriais no ciberespaço
ganham materialidade no espaço urbano através das ocupações de praças e nos
protestos de rua. Essas práticas de solidariedade e autonomia seriam o reflexo das
transformações necessárias para que haja uma luta contra a democracia
tecnocrática e representativa, em um movimento de transição para um modelo
democrático participativo.

3
Para Negri e Hardt (2005), a Multidão é o corpo não unificado, é um conjunto de singularidades que
age, cria e transforma. Ela retoma a noção de multiplicidade como substantivo, uma diferença que se
mantém diferença por sua própria potência de expressão. Corpo biopolítico coletivo que desenha novos
modos de relação, novas formas de produção.
Procuramos partir do pressuposto de que o ciberespaço é uma das dimensões
do espaço geográfico4, ou seja, uma forma de espacialidade e ao contrário do que se
propaga tanto de forma positiva, quanto negativa; as ações sociais dentro do
ciberespaço não serão aqui vistas neste ensaio, nem como mera panaceia, nem como
ágora de uma nova sociedade democrática e participativa. Iremos tratar o ciberespaço,
enquanto uma dimensão da espacialidade geográfica, que possui contradições
inerentes ao seu processo de produção. Assim como o espaço geográfico, o
ciberespaço é produzido através dos movimentos contraditórios da sociedade. Ele é
locus das relações de poder entre diversos sujeitos que entram em conflito entre si por
disputas em torno das formas de reprodução da vida, seja no campo simbólico, seja
no material e tendem a reproduzir as desigualdades do espaço “real”.

Os movimentos sociais também têm uma íntima relação com o ciberespaço e


nele também definem sua própria maneira de apropriação para realizar suas
estratégias de r-existência. Já em 1994, os Zapatistas praticavam o ciberativismo no
que podemos considerar como uma ação pioneira no combate as Fakenews. Através
de sites e blogs o movimento zapatista pode desconstruir a narrativa criada pela
grande mídia a respeito do movimento5.

A internet permitiu com que a articulação entre os movimentos sociais se


tornasse maior assim como a interlocução com setores mais amplos da cidade. Como
no Brasil em 2013, os protestos do MPL contra o aumento da passagem de 0,20
centavos acabaram se tornando uma manifestação em massa. A identificação de uma
multidão composta em sua maioria pelo precariado vai às ruas num rompante de raiva
impulsionado pela circulação de imagens e relatos da repressão policial. Essa
indignação popular ajudou a construir uma rede de solidariedade ampla aglutinando
diversos movimentos ampliando também as pautas das manifestações. Ou seja:
expande a escala de atuação dos movimentos sociais com uma potência capaz de
atingir mais de 300 cidades em todo o Brasil.

A estratégia territorial desses movimentos no ciberespaço se deu através das


redes sociais como Facebook e Twitter, nos canais de vídeo como Youtube e nas
4
Guilherme Carvalho da Silva (2013) em sua dissertação de mestrado O ciberespaço como categoria geográfica
defende, ancorado na obra de Milton Santos, que a análise do espaço geográfico, enquanto relação dialética entre
sistemas de objetos e sistemas de ações, também pode se estender para o ciberespaço.
5
Jill Lane (2003) em seu artigo Digital Zapatistas faz um traçado histórico bastante completo das articulações
territoriais zapatistas no ciberespaço.
mídias alternativas. Foi através da combinação desses métodos e táticas virtuais,
concomitante aos protestos de rua, ocupações de espaços públicos e articulações via
assembleias gerais presenciais, que os movimentos realmente ganharam corpo. O
que estava ali potencialmente sendo construído no ciberespaço, ganhou forma e
práxis no espaço urbano. Para Castells (2013) essa relação simbiótica daria origem a
um espaço híbrido que ele chama de Espaço da Autonomia.

Esse híbrido de cibernética e espaço urbano constitui um terceiro espaço, a


que dou nome de espaço da autonomia, porque só se pode garantir autonomia pela
capacidade de se organizar no espaço livre das redes de comunicação, mas ao mesmo
tempo, ela pode ser exercida como força transformadora, desafiando a ordem
institucional disciplinar, ao reclamar o espaço da cidade para seus cidadãos.
Autonomia sem desafio torna-se retirada, Desafio sem uma base permanente para a
autonomia no espaço dos fluxos equivale a um ativismo interrompido. O espaço da
autonomia é a nova forma dos movimentos sociais em rede. (Castells, 2003, pg. 75).

No entanto, não podemos ser ingênuos e crer que os TIC’s são por si só o
meio e o fim para o êxito das conquistas das lutas sociais. O ciberespaço e suas
ferramentas de comunicação e difusão de informação estão em disputa constante. As
instituições que pareciam incapazes de entender o que estava acontecendo nas ruas e
que realmente não estavam preparadas para lidar com essa nova forma de se
manifestar politicamente, transformaram radicalmente sua postura diante das
manifestações. O primeiro impulso, tanto da mídia corporativa, quanto dos governos
em nível estadual e municipal foi criminalizar e reprimir violentamente as
manifestações. Na medida que imagens do despreparo da polícia viralizava na mídia
alternativa, depois que jornalistas e outros cidadãos não envolvidos diretamente nos
atos começaram a ser atingidos por balas de borracha e depois que prisões arbitrárias
e ilegais começaram a ser relatadas6, é que o discurso das grandes redes de
comunicação mudaram radicalmente e passaram a tentar cooptar as manifestações,
generalizar as pautas de luta e criar campanhas de adesão de movimentos de direita
contra o governo federal.

Grupos como Movimento Brasil Livre (MBL) e Vem Pra Rua foram hábeis em
se apropriar das práticas cibernéticas e passaram a agir de forma bastante eficaz em
sua estratégia de disputa por território dentro do ciberespaço. Absorvendo a tática dos
movimentos que deram início à jornada de 2013 e aperfeiçoando-as, esses grupos
tiveram considerável êxito em capturar as pautas de descontentamento popular e
arregimentar seguidores descrentes com as políticas progressistas do governo do PT.
O resultado disso foi uma renovação do quadro político da dita direita liberal e
6
No dia 05 de junho de 2014, a ONG Anistia Internacional emitiu um relatório com vastas evidências de uso excessivo
de força e abuso de poder por parte das forças policiais durante os protestos de Junho de 2013. Em:
https://memoria.ebc.com.br/cidadania/2014/06/anistia-internacional-aponta-abusos-e-violencia-policial-durante-
protestos-de. Muitos analistas apontam a criação da lei nº13.360/2016, conhecida como Lei Antiterrorismo, pelo
governo da presidenta Dilma Roussef como fruto dos protestos de Junho 2013.
conservadora no Brasil que mais adiante, de forma oportuna, apoiou o golpe de 2016
e a eleição do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro em 2018.

As manifestações de Junho de 2013 serviram para mostrar que há uma


indignação popular muito grande contra as políticas neoliberais implementadas desde
o final da ditadura. A alternância no poder entre partidos de direita, centro-direita e
centro-esquerda comprometidos demais com a agenda neoliberal do capital financeiro
mundial que desmonta cada vez mais o Estado, jogando-o em uma profunda crise de
representatividade política gera uma profunda crise de representatividade das
instituições governamentais. No entanto essa indignação que tomou as ruas se
desvirtuou de seu processo inicial e tornou-se uma catarse coletiva sem objetivos
claros e rumos definidos. Houve sim, o êxito momentâneo que levou à redução da
tarifa de ônibus, no entanto, o potencial de luta pela Reforma Urbana anticapitalista foi
ofuscado estrategicamente por pautas genéricas contra corrupção e por maiores
investimentos em educação e saúde. Em 2014, a presidenta Dilma anunciou um
conjunto de propostas como o direcionamento de uma porcentagem do lucro do Pré-
Sal para a educação, a criação do programa Mais Médicos e um possível plebiscito
popular para dar início a uma reforma política. No entanto, após sua vitória nas
eleições de 2014, seu governo deu uma guinada de cento e oitenta graus, nomeando
um representante do capital financeiro para ocupar o cargo de ministro da fazenda,
aumentou o valor dos juros e aplicou várias medidas de austeridade fiscal.

O que queremos ressaltar neste ensaio é que está em disputa essa indignação
do precariado. Uma vez mobilizada essa indignação, no meio das jornadas, perde-se o
controle da liderança das manifestações por parte do MPL que se retira no dia 20 de
março e abre espaço para cooptação por parte de movimentos neonacionalistas
endossados pela grande mídia. O que nos leva a refletir sobre as reais possibilidades
de transformação que esses tipos de manifestações podem gerar. Assim como nas
demais “revoluções 2.0”, os desdobramentos de suas ações eram imprevisíveis.
Arriscamos, no entanto, a dizer que toda e qualquer mobilização da sociedade civil
que venha das lutas de perfil autônomo, horizontal, é espaço de disputa política e
talvez essa seja a grande vantagem desses tipos de manifestação, trazer a política
para o cotidiano das pessoas.

O ciberespaço é, portanto, local de disputas no campo político da sociedade.


Suas ferramentas são a solução para a transformação política? Não. O fazer político
ainda está nas ruas, nos encontros presenciais, nos debates e nas assembleias, no
entanto suas podemos nos permitir pensar que essas ferramentas políticas são sim,
importantes para o design de novas possibilidades do fazer político. A questão maior é
quais serão as estratégias que os movimentos sociais criarão para disputar
territorialmente esse espaço, definindo suas práticas de territorialização e
estabelecendo suas territorialidades virtuais?

Os movimentos sociais têm uma íntima relação com o ciberespaço e nele


também definem sua própria maneira de apropriação para realizar suas estratégias de
r-existência. Em 1994, os Zapatistas praticavam o ciberativismo no que podemos
considerar como uma ação pioneira no combate às Fake News. Através de sites e
blogs o movimento zapatista pode desconstruir a narrativa criada pela grande mídia a
respeito de suas ações.

Diferentes tipos de movimentos sociais hoje estão de maior ou menor forma


se territorializando no ciberespaço. Cada um segue estratégias diferentes, mas é
notório no Brasil a utilização do meio cibernético pelo MST, MTST, Movimentos
Negros e indígena e movimentos sociais de sexualidade e de gênero. A análise
socioespacial cibernética das relações de poder e como são construídas suas
territorialidades no ciberespaço nos permite de antemão afirmar que as suas práticas
de territorialidade ciberespacial vem na direção de corroborar na autoafirmação de sua
territorialidade no espaço geográfico.

Em documento redigido em 2011 pelo Departamento de Defesa dos Estados


Unidos da América, o governo norte-americano passa a adotar como um dos pilares
para a defesa de sua soberania territorial, a construção de uma “estratégia para
operação no ciberespaço” (Strategy for Operating in Cyberspace)7. Passa-se a tratar o
ciberespaço como um campo operacional assim como terra, ar, mar e espaço sideral,
o que demonstra que a gestão territorial no âmbito estatal da maior potência bélica e
econômica mundial, considera o ciberespaço como uma das dimensões a ser levada
em conta para a defesa de seu próprio país dada a crescente dependência tecnológica
criada pela digitalização das relações sociais.

Isso demonstra que o Estado considera o ciberespaço como campo estratégico


para garantir o exercício do seu poder e cria suas formas de gestão territorial do
ciberespaço. São estratégias de defesa para guerras cibernéticas, para ataques
hackers a sites e bancos de dados do governo; e para combate a campanhas de fake
News que ajudam a influenciar eleições ao redor do mundo.

7
De acordo com documento redigido pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América – Stratagy for
Operating the Cyberspace: “Though the networks and systems that make up cyberspace are man-made, often privately
owned, and primarily civilian in use, treating cyberspace as a domain is a critical organizing concept for DoD’s national
security missions. This allows DoD to organize, train, and equip for cyberspace as we do in air, land, maritime, and
space to support national security interests. Furthermore, these efforts must include the performance of essential
missions in a degraded cyber environment”.
Setores da direita parecem ter também compreendido a crescente importância
dessa disputa e deram um passo a frente, se organizando em verdadeiras campanhas
virtuais extremamente agressivas fazendo uso das TIC’s para espalhar
desinformações nas principais redes sociais da internet. São verbas milionárias gastas
na criação de conteúdo digital (Fake News) transmitidos através de disparos
constantes coordenados por complexos mecanismos de inteligência artificial. Tem se
tornado cada vez mais visível os escândalos que demonstram as conexões entre
organizações de direita com as Big Techs, grandes empresas de tecnologia que
monopolizam o mercado de dados, hoje visto por vários especialistas como uma
commodity (verdadeiros “latifúndios de dados”) produzem uma verdadeira guerra dos
algoritmos programados para controlar a circulação de informação no ciberespaço.

As chamadas “bolhas ideológicas” criadas pelo direcionamento seletivo


baseado nos dados estruturantes dos perfis de usuários são instrumentos primordiais
dessa segregação ciberespacial. O uso amplo e irrestrito dos dados para estes fins
demonstra na verdade uma tendência muito forte de estabelecer mecanismos de
controle dentro de um ambiente que deveria ser para trocas supostamente abertas,
livres e colaborativas. Cada vez menos há liberdade no ciberespaço para a
programação livre. Vemos marcos regulatórios da internet serem criados com o
“nobre” objetivo de combater ilegalidades na rede, mesmo assim a ilegalidade, assim
como no “mundo real” passa a dominar os “circuitos ocultos” das redes do submundo.
A “deep web”, rede que conforma uma divisão do conteúdo da rede mundial de
computadores (world wide web) quanto à indexação feita por mecanismos de busca
padrão, seria o maior exemplo dessa reprodução da “realidade” no campo “virtual”. Os
marcos regulatórios da internet se assemelham cada vez mais a tratados geopolíticos
que estabelecem a partilha do mundo virtual pelos Estados e pelas Big Techs. Muito
semelhante à regulação do sistema-mundo. Por vezes os interesses dos Estados
esbarram com os interesses das Big Techs, assim como no “mundo real”, em uma
complexa disputa territorial, no entanto, uma coisa é certa: estamos cada vez mais
distantes do sonho de criação de uma ágora democrática e participativa.

As manifestações de junho de 2013 abriram o precedente para que setores de


uma nova direita organizada articulasse estratégias de cooptação e redirecionamento
das lutas nas ruas. O crescente discurso antipolítico, passou a se tornar a tônica dos
levantes, abrindo frente para a ascensão do neofascismo. E foram justamente os
neofascistas aqueles que melhor dominaram as estratégias de disputa territorial no
ciberespaço criando campanhas para insuflar o ódio contra a “velha política” e
principalmente contra o PT. O discurso de extrema-direita esteve claro na votação no
congresso pela cassação do mandato da presidenta Dilma Roussef e depois na
eleição de Bolsonaro em 2018. Foi na campanha deste que a extrema-direita
conseguiu aumentar muito sua presença no ciberespaço. Houve um crescimento muito
grande no número de blogs, canais de youtube, podcasts, grupos de whatsapp e
Telegram. O conteúdo gerado nessas plataformas, junto com o suposto uso de robôs
para disparo de Fake News, teriam servido como um elemento novo dentro da
campanha para a presidência em 2018. Esse processo foi tão escândaloso, que o
Tribunal Superior Eleitoral vem assinalando estratégias para conter a disseminação de
informações falsas, levando o governo a entrar em confronto direto para exigir das Big
Techs medidas de combate às Fake News, como banimento de perfis e contas de
usuários nas redes sociais acusados de serem os responsáveis por essa prática.

Junho de 2013 foi sem sombra de dúvida um marco na história do Brasil, e os


desdobramentos de seus acontecimentos, suas repercussões futuras dizem muito a
respeito dos desafios que deveremos encarar frente à constante precarização do
trabalho nos grandes centros urbanos do país. Ao mesmo tempo nos indica o
desgaste do modelo de desenvolvimento que oscila entre o neodesenvolvimentismo e
o neoliberalismo, que vem gerando uma crise de legitimidade dos lugares da política
institucional. Frente a este desafio, nos cabe dar a devida atenção às formas com que
os movimentos sociais veem articulando suas lutas e suas territorialidades. Os
movimentos de junho de 2013 nos fazem refletir sobre novas formas de pautar suas
lutas nas ruas. Novos fazeres políticos pautados em valores que dialogam muito mais
com os princípios da autonomia, da horizontalidade e de polissemia que inaugura
rumos incertos e inesperados. São movimentos que não buscam um fim em si, mas
deixam em aberto a construção subjetiva da multidão que o compõe e seu anseio por
um novo devir.

Neste sentido, inaugura também se organizam em novas territorialidades que


nos fazem ater a complexas relações de poder que não se restringem apenas ao
espaço geográfico como estávamos acostumados a pensá-lo. Ele é articulado na
lógica reticular e possui uma espacialidade e temporalidade inédita. Em questões de
dias, a luta nas ruas de São Paulo ganharou as ruas de todo o país. Podemos até
questionar sobre o processo político em que isso se deu, mas o fato é que existe uma
nova lógica, que é a lógica da articulação entre espaço virtual e espaço urbano que
amplia as repercussões escalares da luta social. Se antes havia a disputa nos chãos
de fábrica, nas escolas, nas associações de bairros, agora há a disputa nos meios
cibernéticos. O ciberespaço não deve ser visto como o locus da promessa da solução
da desigualdade causada pelo capitalismo, mas também não deve ser subestimado.
Nem panaceia, nem ágora de uma nova democracia participativa perfeita.
Bibliografia

Alves, Giovanni: Precariado: a espinha dorsal dos protestos nas ruas das 353
cidades brasileiras – Entrevista especial com Giovanni Alves. Cadernos IHU
Ideias – ano 11, nº 191, 2ª ed. – 2013. Instituto Humanitas, UNISINOS; São Leopoldo,
Brasil.

Antunes, Ricardo: As rebeliões de Junho de 2013. Observatório Social da América


Latina - Año XIV, Nº 34 - Noviembre de 2013, CLACSO; Buenos Aires, Argentina.

Castells, Manuel: Redes de Indignação e Esperança: Movimentos sociais na era


da internet – Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2013.

Cocco, Giuseppe: Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho


imaterial nas metrópoles - Entrevista especial com Giuseppe Cocco. Cadernos
IHU Ideias – ano 11, nº 191, 2ª ed. – 2013. Instituto Humanitas, UNISINOS; São
Leopoldo, Brasil.

Da Silva, Guilherme Carvalho: O ciberespaço como categoria geográfica –


Dissertação de Mestrado; GEA/IH/UnB; Brasília, 2013.

Ellwanger, Tiana: Manifestações de junho de 2013: como experienciamos,


esquecemos e lembramos na contemporaneidade. Dissertação de Mestrado -
PPCC, Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017.

Negri, Antoni; Hardt, Michael: Multidão: Guerra e democracia na era do Império.


Grupo Editorial Record, Rio de Janeiro, 2005.

Lane, Jill: Digital Zapatistas. The Drama Review 47, 2 (T178). Copyright, New York
University and Massachusetts Institute of Technology, 2003.

Tápia, Luis: Política Selvaje. Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales -


CLACSO; La Paz, 2008.

Zibechi, Raúl: Debajo y detrás de las grandes movilizaciones. Observatório Social


da América Latina - Año XIV Nº 34 - Noviembre de 2013, CLACSO; Buenos Aires,
Argentina.

Você também pode gostar