Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Durante todo o mês de junho, diversos foram os esforços feitos por intelectuais,
acadêmicos e pela imprensa para buscar entender quais foram as origens da revolta e
quem eram os principais sujeitos que a articularam. Notória foi a entrevista concedida
pelos representantes do Movimento Passe Livre (MPL) no programa Roda Viva da
TVE enquanto os atos ainda esquentavam as ruas de São Paulo numa clara tentativa
por parte da grande mídia de “dar nome aos bois”. No entanto, outras questões
continuaram a surgir na medida em que os protestos do MPL se somaram com a
articulação dos Comitês Populares da Copa e se territorializaram nas ruas dos
grandes centros urbanos. A cada dia de protesto, a adesão popular aumentou graças
ao papel que as redes sociais e o jornalismo independente (com destaque para a
atuação do Centro de Mídia Independente – CMI e a então surgida Mídia Ninja)
tiveram na informação e divulgação em tempo real do que realmente acontecia nas
ruas, contradizendo o discurso da grande mídia que adotou uma postura
extremamente conservadora de criminalização dos movimentos, taxando-os de
“baderneiros”, “vândalos” e “revoltosos de classe média”1. Como não lembrar a
comparação feita com a organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC),
pelo comentarista Arnaldo Jabor durante a transmissão do Jornal Nacional da Rede
Globo?2
Este ensaio surge com o intuito de tentar entender como a Geografia poderia
ajudar-nos a compreender as questões apontadas acima e para isso, vamos partir de
algumas premissas caras à Geografia que nos servirão para direcionar as reflexões
aqui propostas:
Romper ese mecanismo de control, modificar el lugar que tiene reservada la clase
dominante para los de abajo, ¿no es una lucha anticapitalista? El MPL sostiene que la
Tarifa Zero es una lucha de todos y cambia todo, un medio de subvertir el orden de los
transportes y toda la estructura de la ciudad. La movilidad urbana es puesta en
cuestión por la segregación espacial, social, racial y de género (…) Las grandes obras
para el Mundial y las Olimpíadas van en la misma dirección. La población pobre de Rio
está siendo desplazada hacia las periferias norte y oeste mientras se convierte el
centro de la ciudad en espacio para el turismo y los negocios, con la construcción del
Puerto Maravilla para que atraquen cruceros y los turistas visiten el Morro da
Providencia en teleférico sin ser molestados por los que aún sigan viviendo en la
favela. Los mega eventos son un momento crucial para imponer un proyecto de ciudad
que crea nuevas centralidades, refuerza otras y convierte los barrios pobres en “zonas
de sacrificio”, en el entendido que los sacrificados son sus habitantes. ¿Cómo no
considerar la lucha contra la especulación inmobiliaria como parte de la lucha
anticapitalista? (Zibechi, 2013, p.30).
A luta contra o aumento da passagem de ônibus se faz sentir por todos aqueles
trabalhadores precarizados que sentem que suas vidas estão sendo sugadas pela
gestão desumana do espaço urbano. É ao mesmo tempo uma batalha cotidiana pela
garantia política do usufruto dos recursos econômicos e materiais do espaço urbano e
uma batalha contra a coisificação do mundo pelo liberalismo e suas instituições que
tentam “evitar que el tiempo y el espacio de lo social afecten negativamente a la
naturaleza individual y asocial de los átomos que, sin embargo, deben interactuar
como único medio de realizar sus fines y satisfacer sus necesidades” (Tápia, 2008).
Há, então a perda da capacidade das instituições, desde seu lugar político
estabelecido, de compreender as necessidades e demandas do precariado, que
revoltoso, busca criar não-lugares políticos, solidários, autônomos e horizontalizados.
Um fazer político selvagem que quebra os paradigmas do fazer político institucional.
Este espacio que configuran los movimientos sociales es un campo de fuerzas más
que un lugar de la política. En tanto hay movilización de fuerzas, demandas y
proyectos, se ocupan lugares, hay un recorrido de las acciones, pero éstas tienden a
no estabilizarse e identificarse con un lugar delimitado e institucionalizado de la política;
cuando ocurre esto se vuelven simple sociedad civil. En este sentido, el campo de
fuerzas configurado por los movimientos sociales es un no lugar político; es una zona
de tránsito del conflicto social, es también como el viento que pasa y puede arrancar
algunas cosas de raíz y mover otras de su lugar. Los movimientos sociales instauran la
fluidez de la sociedad civil y la problematización del orden político. Es la parte de la
sociedad que hace las preguntas y hace la crítica de la irracionalidad de algunas
formas y principios de organización social y de distribución. Los movimientos sociales
son la forma y sujeto de reflexión conflictiva de las sociedades sobre sí mismas. (Tápia,
2008).
Sob uma perspectiva bastante influenciada pelo conceito de Multidão3 proposto
por Negri e Hardt (2005), Cocco (2013) classifica as jornadas de junho de 2013 como
um exemplo de “Revolução 2.0”, o que aproximaria as características das
manifestações de Junho de 2013 das manifestações como a Primavera Árabe, o
Movimento Occupy nos EUA e o 15M na Espanha. Essa análise é compartilhada
também por Castells (2013) que traça um perfil comum dos movimentos:
3
Para Negri e Hardt (2005), a Multidão é o corpo não unificado, é um conjunto de singularidades que
age, cria e transforma. Ela retoma a noção de multiplicidade como substantivo, uma diferença que se
mantém diferença por sua própria potência de expressão. Corpo biopolítico coletivo que desenha novos
modos de relação, novas formas de produção.
Procuramos partir do pressuposto de que o ciberespaço é uma das dimensões
do espaço geográfico4, ou seja, uma forma de espacialidade e ao contrário do que se
propaga tanto de forma positiva, quanto negativa; as ações sociais dentro do
ciberespaço não serão aqui vistas neste ensaio, nem como mera panaceia, nem como
ágora de uma nova sociedade democrática e participativa. Iremos tratar o ciberespaço,
enquanto uma dimensão da espacialidade geográfica, que possui contradições
inerentes ao seu processo de produção. Assim como o espaço geográfico, o
ciberespaço é produzido através dos movimentos contraditórios da sociedade. Ele é
locus das relações de poder entre diversos sujeitos que entram em conflito entre si por
disputas em torno das formas de reprodução da vida, seja no campo simbólico, seja
no material e tendem a reproduzir as desigualdades do espaço “real”.
No entanto, não podemos ser ingênuos e crer que os TIC’s são por si só o
meio e o fim para o êxito das conquistas das lutas sociais. O ciberespaço e suas
ferramentas de comunicação e difusão de informação estão em disputa constante. As
instituições que pareciam incapazes de entender o que estava acontecendo nas ruas e
que realmente não estavam preparadas para lidar com essa nova forma de se
manifestar politicamente, transformaram radicalmente sua postura diante das
manifestações. O primeiro impulso, tanto da mídia corporativa, quanto dos governos
em nível estadual e municipal foi criminalizar e reprimir violentamente as
manifestações. Na medida que imagens do despreparo da polícia viralizava na mídia
alternativa, depois que jornalistas e outros cidadãos não envolvidos diretamente nos
atos começaram a ser atingidos por balas de borracha e depois que prisões arbitrárias
e ilegais começaram a ser relatadas6, é que o discurso das grandes redes de
comunicação mudaram radicalmente e passaram a tentar cooptar as manifestações,
generalizar as pautas de luta e criar campanhas de adesão de movimentos de direita
contra o governo federal.
Grupos como Movimento Brasil Livre (MBL) e Vem Pra Rua foram hábeis em
se apropriar das práticas cibernéticas e passaram a agir de forma bastante eficaz em
sua estratégia de disputa por território dentro do ciberespaço. Absorvendo a tática dos
movimentos que deram início à jornada de 2013 e aperfeiçoando-as, esses grupos
tiveram considerável êxito em capturar as pautas de descontentamento popular e
arregimentar seguidores descrentes com as políticas progressistas do governo do PT.
O resultado disso foi uma renovação do quadro político da dita direita liberal e
6
No dia 05 de junho de 2014, a ONG Anistia Internacional emitiu um relatório com vastas evidências de uso excessivo
de força e abuso de poder por parte das forças policiais durante os protestos de Junho de 2013. Em:
https://memoria.ebc.com.br/cidadania/2014/06/anistia-internacional-aponta-abusos-e-violencia-policial-durante-
protestos-de. Muitos analistas apontam a criação da lei nº13.360/2016, conhecida como Lei Antiterrorismo, pelo
governo da presidenta Dilma Roussef como fruto dos protestos de Junho 2013.
conservadora no Brasil que mais adiante, de forma oportuna, apoiou o golpe de 2016
e a eleição do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro em 2018.
O que queremos ressaltar neste ensaio é que está em disputa essa indignação
do precariado. Uma vez mobilizada essa indignação, no meio das jornadas, perde-se o
controle da liderança das manifestações por parte do MPL que se retira no dia 20 de
março e abre espaço para cooptação por parte de movimentos neonacionalistas
endossados pela grande mídia. O que nos leva a refletir sobre as reais possibilidades
de transformação que esses tipos de manifestações podem gerar. Assim como nas
demais “revoluções 2.0”, os desdobramentos de suas ações eram imprevisíveis.
Arriscamos, no entanto, a dizer que toda e qualquer mobilização da sociedade civil
que venha das lutas de perfil autônomo, horizontal, é espaço de disputa política e
talvez essa seja a grande vantagem desses tipos de manifestação, trazer a política
para o cotidiano das pessoas.
7
De acordo com documento redigido pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América – Stratagy for
Operating the Cyberspace: “Though the networks and systems that make up cyberspace are man-made, often privately
owned, and primarily civilian in use, treating cyberspace as a domain is a critical organizing concept for DoD’s national
security missions. This allows DoD to organize, train, and equip for cyberspace as we do in air, land, maritime, and
space to support national security interests. Furthermore, these efforts must include the performance of essential
missions in a degraded cyber environment”.
Setores da direita parecem ter também compreendido a crescente importância
dessa disputa e deram um passo a frente, se organizando em verdadeiras campanhas
virtuais extremamente agressivas fazendo uso das TIC’s para espalhar
desinformações nas principais redes sociais da internet. São verbas milionárias gastas
na criação de conteúdo digital (Fake News) transmitidos através de disparos
constantes coordenados por complexos mecanismos de inteligência artificial. Tem se
tornado cada vez mais visível os escândalos que demonstram as conexões entre
organizações de direita com as Big Techs, grandes empresas de tecnologia que
monopolizam o mercado de dados, hoje visto por vários especialistas como uma
commodity (verdadeiros “latifúndios de dados”) produzem uma verdadeira guerra dos
algoritmos programados para controlar a circulação de informação no ciberespaço.
Alves, Giovanni: Precariado: a espinha dorsal dos protestos nas ruas das 353
cidades brasileiras – Entrevista especial com Giovanni Alves. Cadernos IHU
Ideias – ano 11, nº 191, 2ª ed. – 2013. Instituto Humanitas, UNISINOS; São Leopoldo,
Brasil.
Lane, Jill: Digital Zapatistas. The Drama Review 47, 2 (T178). Copyright, New York
University and Massachusetts Institute of Technology, 2003.