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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

FILHOS DE 2013: JORNADAS DE JUNHO E PRIMAVERA SECUNDARISTA NA


ESTEIRA DO NOVO TEMPO DO MUNDO

GUARULHOS
2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

MARINA GONÇALVES DE OLIVEIRA – 113.020

THIAGO GOMES DE MELO – 113.031

Monografia apresentada como forma avaliativa da UC


Lutas Sociais e Direito à Cidade.

Docentes: Prof. Dra. Joana Barros e Prof. Dr. Gustavo


Prieto

GUARULHOS

2019
Introdução

Os protestos ocorridos em junho de 2013 conhecidos como Jornadas de Junho,


foram desencadeados pela demanda da revogação do aumento das tarifas no
transporte público da cidade de São Paulo que iam de 3,00 para 3,20. As
manifestações levaram em seu ápice cerca de 1,5 milhão de pessoas às ruas em
mais de 120 cidades espalhadas pelo país, tendo como protagonista o Movimento
Passe Livre (MPL). O MPL tem momentos importantes na sua origem como a
Revolta do Buzu (Salvador, 2003) e Revolta das Catracas (Florianópolis, 2004 e
2005) e tem pautado e construído inúmeras lutas em torno da democratização do
acesso ao espaço público através da gratuidade do transporte coletivo.

Se iniciando em São Paulo, as primeiras manifestações dessa jornada aglutinaram


um número pequeno entre 4 e 6 mil pessoas. É no dia 13 de junho que esses
protestos se espalham pra outras cidades e passa a tomar proporções maiores.
Devido ao massacre protagonizado pela polícia militar nas ruas do centro de São
Paulo, com invasão de estabelecimentos, 300 detidos e inúmeros feridos, os
protestos pela revogação da tarifa passa a tomar proporções gigantescas.

A ação direta e os confrontos entre os manifestantes e a polícia é marca da jornada


de junho colocando em voga a retomada das ruas como espaço de reivindicações
populares. A ocupação da rua se deu de diversas formas, inclusive com a pichação
de palácios, vidraças quebradas, ocupação do Congresso Nacional. Os discursos
sobre tal configuração dos atos variaram entre a demonização e caracterização dos
manifestantes como vândalos, incivilizados até a legitimação da revolta popular que
estava em curso. O fato é que Junho abriu a janela para a rua e novas formas de
fazer política.

As grandiosas manifestações de Junho aglutinou uma grande parcela da juventude


que nunca havia tido contato com política e com um movimento social dessa
magnitude. Sendo assim, contribuiu para inserção dessas pessoas, mesmo depois
da jornada, em diversos coletivos, movimentos e organizações. Nesse sentido, como
reflexo de Junho, podemos conceber a onda de ocupações de escolas
protagonizada por estudantes secundaristas de São Paulo no ano de 2015, contra o
projeto de reorganização escolar proposta pelo governo do Estado.
A Primavera Secundarista vai retomar muitos dos elementos presentes nas
Jornadas de Junho. A ação direta vai mais uma vez estar no centro do repertório
político daqueles que se manifestam.

Para analisar a relação e o caminho traçado por esses movimentos utilizaremos as


contribuições de Paulo Arantes, no que diz respeito ao novo tempo do mundo
marcado pelo encurtamento do horizonte de expectativas e novas configurações das
classes trabalhadores e métodos de luta. Somado a Arantes, articular o trabalho de
Henri Lefebvre sobre o direito a cidade e a caracterização dos polos urbanos hoje é
fundamental para entender o processo de reconhecimento do sujeito transformador
através da disputa e ocupação do espaço/território. E por fim, também faremos uso
das formulações de Rosa Luxemburgo sobre o protagonismo das massas nas lutas
populares, fazendo contraponto a concepções dogmáticas sobre o papel dos
partidos e sindicatos.

Filhos de 2013: Jornadas de Junho e Primavera Secundarista na esteira do


novo tempo do mundo

Paulo Arantes no ultimo capitulo de seu livro “O Novo Tempo do Mundo” vai analisar
o motor que moveu o maior protesto de massas da história recente brasileira, assim
como a nova forma de fazer política que esse movimento apresenta, materializando
a rejeição de métodos tradicionais da esquerda e uma ruptura com o processo de
institucionalização das lutas populares que triunfou no ano de 2002 com o início do
ciclo petista.

O motor das manifestações colocado por Arantes, de acordo com os objetivos e


estratégias do próprio MPL, foram às questões em torno do direito a cidade que vai
desde a revogação do aumento da tarifa até a ocupação das ruas como retomada
de um espaço coletivo de reivindicações. O aumento da tarifa se enquadra num
reforço da lógica mercantil e captura a livre circulação da cidade, fazendo do
transporte público uma mercadoria. A discussão levada a cabo pelo movimento,
aponta que a existência de uma tarifa para acessar o serviço de transporte é
excludente uma vez que limita significativa parcela da população em se locomover
pela cidade e acessar os seus serviços. A locomoção das populações situadas nas
periferias cada vez mais é restrita a chegada aos seus postos de trabalhos.

Pautando a tarifa zero se visualiza uma cidade fora dos limites do capital, sendo
assim o ato de pular a catraca uma representação desse horizonte que anseia uma
cidade que viabilize a livre circulação por ela. Os princípios e estratégias do MPL
disponibilizados no site do movimento deixam claro:

[...] a luta pela Tarifa Zero não tem um fim em si mesma. Ela é o instrumento
inicial de debate sobre a transformação da atual concepção de transporte
coletivo urbano, rechaçando a concepção mercadológica de transporte e
abrindo a luta por um transporte público, gratuito e de qualidade, como
direito para o conjunto da sociedade; por um transporte coletivo fora da
iniciativa privada, sob controle público (dos trabalhadores e usuários).

O MPL deve ter como perspectiva a mobilização dos jovens e trabalhadores


pela expropriação do transporte coletivo, retirando-o da iniciativa privada,
sem indenização, colocando-o sob o controle dos trabalhadores e da
população. Assim, deve-se construir o MPL com reivindicações que
ultrapassem os limites do capitalismo, vindo a se somar a movimentos
revolucionários que contestam a ordem vigente. 1

No entanto, Arantes alerta para o fato de que a gratuidade do transporte por si só,
na verdade não representa ameaça ao capitalismo uma vez que é vista com bons
olhos até por membros do setor financeiro como o BNDES. A real ameaça aos
domínios do capital está na mudança das relações de poder dentro dessa ordem. O
processo reivindicativo em torno dessa demanda é que abre margem pra uma real
transformação no modus operandi da atual cidade. A apropriação dos espaços
públicos pela população marginalizada abre a possibilidade de reconfigurar o espaço
e as relações de poder contidas nestes.

O trabalho de Arantes nos permite justamente ver Junho de 2013 como


manifestação dessa ameaça a lógica do capital. Tomando a cidade como um
instrumento, o MPL apresenta um novo modelo de lutas sociais no Brasil, quando
investe na ação generalizada de tomada das ruas como meio direto de luta, de
forma horizontal e permanente.
A cidade é usada como arma para sua própria retomada: sabendo que o
bloqueio de um mero cruzamento compromete toda a circulação, a
população lança contra si mesma o sistema de transporte caótico das
metrópoles [...] é assim, na ação direta da população sobre a sua vida - e
não a portas fechadas, nos conselhos municipais engenhosamente
instruídos pelas prefeituras ou em qualquer uma das outras artimanhas
institucionais -, que se dá a verdadeira gestão popular. Foi precisamente
isso que aconteceu em São Paulo quando, em junho de 2013, o povo,
tomando as ruas, trouxe para si a gestão da política tarifária do município e
revogou o decreto do Prefeito que aumentara a passagem em vinte
centavos. (ARANTES, 2014)

O espaço proporcionado por essas manifestações levou a implosão do limite entre


ilegalidade e legitimidade. Assistiu-se, assim, uma série de “ações profanatórias” de
depredação dos patrimônios públicos e privados que na contramão do discurso
midiático mostram forte conotação política. A depredação de faixadas de bancos e
de diversos prédios públicos na esplanada dos ministérios em Brasília mostram o
descontentamento com a dominação do capital sobre a vida dos habitantes da
cidade e com o sistema político.

Em Junho podemos ver um verdadeiro embate pelo domínio da rua, despertando o


medo das classes dominantes. Por isso, assistimos a resposta truculenta pelo
aparelho repressivo do Estado, que transformaram a ruas em palco de guerra. Mas
se deparam com manifestantes que não fogem mais da polícia e estão decididos a
continuar ocupando as ruas. A ação direta é, dessa forma, o marco fundamental da
transição de um número irrisório de manifestantes para a casa do milhão. Com isso
fica clara a ascensão do direito a cidade como eixo central, e não de uma forma
superficial, mas com propósito de realmente mudar a relação de poder. Essa
reivindicação vai se refletir em cada nova ocupação de espaços públicos.

Paulo Arantes interpreta a resposta truculenta dada as Jornadas de Junho a partir


de uma “razão pacificadora”, que se manifesta tanto na ocupação militar das favelas
do Rio de Janeiro quanto na tentativa constante de criminalização de manifestantes
colocando-os como oponentes do Estado e incivilizados que ameaçam a ordem.
Além disso, faz parte dessa “doutrina” a política adotada pelo governo Lula, de
diluição de “possíveis insurgentes” através de programas assistencialistas e de uma
cidadania controlada. Essa lógica de pacificação visa com base no discurso da “boa
governança, desenvolvimento econômico e segurança pública” (ARANTES, pg. 430)
fazer a manutenção do capital diante de sua crise. Assim, objetiva remover da “rota
do progresso” aqueles que sejam taxados como ameaça.

A partir de 2002 as lutas populares e sua capacidade auto organizativa passaram a


ser minadas por uma cidadania denominada por Arantes como “controlada”, ou
“entrincheirada” nos termos do antropólogo James Holston. Investiu-se para que os
movimentos fossem diluídos na institucionalidade, deixando modos “incivilizados” de
reivindicação e adotando a participação em conselhos e na elaboração de políticas
públicas para sanar as demandas dos trabalhadores e camadas populares. Para
ilustrar esse contexto de burocratização dos movimentos, Arantes narra o que houve
com as lutas por moradia:

Foi preciso muitos mandatos, ONGs, gabinetes, administração,


universidades, e sobretudo muito empenho sincero de trabalhadores sociais
envolvidos na elaboração e aplicação das mais diversas política públicas
para canalizar as lutas populares … essa onda participativo-governativa
acabou orientando “a ação direta da desobediência civil (o ciclo de
ocupações) na direção da prática responsável de quem faz estatutos e
participa de conselhos. (ARANTES, 2014)

Há, portanto, a interrupção de outro processo que vinha ocorrendo, que é o de


consolidação de uma cidadania insurgente a partir da população periférica de
territórios autoconstruídos. A cidadania regulada e a doutrina de pacificação, sejam
através das UPP’s seja através da institucionalização da luta, visou domesticar
populações e neutralizar os potenciais insurgentes. Junho vem então demarcar a
ruptura com esse processo de apassivamento e a retomada de uma cidadania
insurgente.

Retorna a cena, assim, a ação direta e a desobediência civil através da ocupação


das ruas pelas massas. No seio desse movimento germina a vontade e a força para
a transformação da forma vigente das relações de poder, da configuração da cidade
e da vida. O estabelecimento de uma nova ordem exige um processo de
aprendizado e de acumulo, e como mostra Arantes, os novos movimentos
anticapitalistas são caracterizados pela supervalorização do processo enquanto um
meio de aprendizado e de reinventar a nossa existência. Valorizando também o
protagonismo das massas e o processo em que se dá a construção das lutas, Rosa
Luxemburgo possui importantes formulações sobre o caráter pedagógico da
experiência direta.

Para Rosa Luxemburgo, um movimento de massa é desencadeado pela mesma,


não sendo possível que este seja uma ação “fabricada” e imposta. O
posicionamento da líder revolucionária vai contra ao posicionamento vanguardista
adotado por Partidos Comunistas tendendo a substituição da massa por um grupo
de intelectuais e lideranças destacados.

Luxemburgo faz crítica à subestimação das parcelas não organizadas em partidos


ou sindicatos, reiterando o papel pedagógico da luta. É na prática que, para ela, a
consciência de classe atinge as camadas menos experientes.

“Assim, um ano de revolução deu ao proletariado russo essa “educação” que trinta anos de
lutas parlamentares e sindicais não podem artificialmente dar ao proletariado alemão.”
(LOREIRO, 2018: 94)

Abordando a forma greve de massas da luta proletária, Rosa reconhece esta como
emergência de uma necessidade concreta e histórica. Nesse sentido, o elemento
espontâneo da luta de massas é valorizado uma vez que essa luta é despertada por
uma imensa gama de motivações que não podem ser calculadas e para se
transformar em um movimento de massas efetivo e verdadeiramente popular, deve
aglutinar grandes parcelas do proletariado. Seguindo essa abordagem e
relacionando com as Jornadas de Junho, constatamos um movimento
autoconvocado e que se proclama independente de partidos, se colocando
frontalmente contra os métodos praticados pela esquerda convencional. Inaugura
assim essa nova cara da política, caracterizada pelo autonomismo. Assim como
Rosa descreve, ainda que as manifestações de junho tenham sido protagonizadas,
sobretudo por grupos apartidários estes demonstraram naquele momento a
potencialidade radical que estes grupos “não organizados” detêm e traz à tona uma
nova forma da luta na cidade, a da ação direta.

Contudo, mesmo dando a devida consideração a espontaneidade e aos setores não


organizados, Rosa Luxemburgo ainda reconhece o papel de direção do Partido. O
Partido não pode impor verticalmente quando, onde e como a luta vai se dar, sendo
isso determinado em maior parte pela conjuntura e pelo leque de motivações que
não podem ser previstos, como já foi dito. No entanto, em Rosa, o Partido ainda
possui uma função diretiva de estar junto às massas e apresentar suas formulações
táticas e estratégicas. Já em Junho, vimos um verdadeiro rechaço aos partidos
políticos sendo vedada a utilização de bandeira dos mesmos. Hoje existem diversas
leituras sobre as consequências dessa postura, no entanto, não será possível
discorrer neste momento.

Ainda assim, é evidente que Junho deixou um legado extremamente importante para
a juventude e toda classe trabalhadora. Sobretudo jovens, tiveram seu primeiro
contato com uma movimentação política nesse cenário emblemático da história do
Brasil. Por certo, acreditamos poder dizer seguindo a formulação de Rosa, que
Junho levou consciência política a uma parcela significativa da população, que após
esse episódio passou a se organizar em inúmeros coletivos, organizações políticas,
comitês de bairro, etc. Já é corrente também a leitura da onda de ocupações
secundaristas em São Paulo, que vamos discorrer mais a frente, como um reflexo
direto das Jornadas.

Assim também, como Rosa coloca de pressuposto pra efetividade de um movimento


de massas, Junho trouxe as ruas amplas parcelas do proletariado com suas novas
configurações, características de nosso tempo. Logo, essa nova configuração vai ser
pra Arantes determinante para a nova caracterização da classe trabalhadora e
consequentemente da forma que sua luta contra o capital assume. Retomando
James Holston, Arantes aponta para a constituição de “novos cidadãos” que se
formam “não por meio das lutas trabalhistas, mas pelas lutas pela cidade”. Assim, a
luta desse “novo cidadão” vai se resumir em embates por mudanças socioespaciais
que coloquem em jogo a dominação do capital sobre as nossas vidas através da
cidade.

A concepção política de que a ação autônoma das massas populares cria um


espaço público inteiramente diferente do espaço público burguês (LOUREIRO,
2008) é compartilhado entre as formulações de Rosa e movimentos sociais
contemporâneos que praticam ocupações de territórios como ato político, como é o
caso do MST. Com isso, retornamos ao caráter pedagógico da luta, em que os
sujeitos se formam no processo, assim também como os novos movimentos
anticapitalistas apontados por Holston e reiterado por Arantes. A auto-organização
desses espaços, seja a rua, seja terra, seja prédios e terrenos baldios promove um
aprendizado que não se tem em nenhum outro lugar a partir do rompimento com a
tradição de obediência e alienação. Na luta coletiva se ressignifica e reconstrói o
espaço e seus próprios valores.

Quanto ao sujeito transformador, para o sociólogo e filosofo Henri Lefebvre não é


diferente. O homem, através da sua mobilização politica e social no espaço,
exercício do direito a cidade, podem provocar transformações na vida urbana. A
própria cidade é obra de seus habitantes, sendo o homem o sujeito de sua história.
Dessa forma, as Jornadas de Junho ilustra bem a força transformadora da luta
fundada na disputa pelo espaço, se apropriando deste e desafiando a lógica de
dominação do capital.

A luta pelo direito a cidade é importante na medida em que a cidade, em Lefebvre


não existe em si, somente em sua morfologia, mas é por definição um modo de
viver, em qual se compartilha determinados comportamentos e relações de poder. A
cidade contemporânea, portanto, exprime o modus operandi do sistema capitalista e
é moldada nas condições perfeitas para a dominação das pessoas. Lefebvre vai
analisar todo processo de industrialização e suas implicações para com a cidade.
Para isso, o autor faz um panorama histórico apresentando a cidade antecedendo a
industrialização, com isso elucida a cidade oriental, arcaica e medieval – esta última,
juntamente com seu caráter político, comercial, artesanal e bancário.

Fundada na supressão do valor de uso, e ascensão do valor de troca, a cidade


industrial é caracterizada pelo acumulo populacional e uma organização urbana
vinculada às trocas, ao dinheiro e ao comércio. A industrialização da cidade é um
processo controverso, uma vez que leva a desurbanização. O autor afirma que a
realidade urbana depende do valor de uso (confronto das diferenças, encontros,
conhecimentos e reconhecimentos recíprocos de modos de viver), quando o que a
industrialização faz é suprimi-lo:

a cidade e a realidade urbana dependem do valor de uso. O valor de troca e


a generalização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, ao
subordina-las a si, a cidade e a realidade urbana, refúgios do valor de uso,
embriões de uma virtual predominância e de uma revalorização do uso.
(LEFEBVRE, 2001: 14)

Neste movimento, a realidade urbana, ao mesmo tempo amplificada e


estilhaçada, perde os traços que a época anterior lhe atribuía: totalidade
orgânica, sentido de pertencer, imagem enaltecedora, espaço demarcado e
dominado pelos esplendores monumentais. (LEFEBVRE, 2002: 26)

Com a predominância, portanto, do valor de troca na cidade, voltamos ao debate da


mercantilização da vida e do acesso restrito ao transporte publico, sendo este
também transformado em uma mercadoria. Sendo a cidade construída socialmente
e historicamente, nos parâmetros da sociedade capitalista e industrial ela carrega a
segregação, exclusão e marginalidade. Ocasionando o que o autor chama de
“implosão-explosão” da cidade, em que o tecido urbano possui menos
diferenciações e divisões do trabalho. Ao mesmo tempo as concentrações urbanas
são gigantescas, as populações se amontoam atingindo grandes densidades. E os
núcleos urbanos antigos explodem. As pessoas passam a se deslocar para as
periferias e os apartamentos nos centros urbanos são substituídos por escritórios.
Assim, o lugar destinado aos trabalhadores é o do conceito de “habitat”. Para estes,
as praças, os monumentos, locais para encontros desaparecem.

Esse processo de segregação ainda fica claro no Brasil com as remoções forçadas
no Rio de Janeiro durante a preparação para os megaeventos – Copa em 2014 e
Olímpiadas em 2016. Os episódios de remoções neste período mostra a batalha
ainda atual de milhares de trabalhadores que habitam em assentamento não
regularizados. Essa, dentro outras atrocidades cometidas em nome dos
megaeventos foram rechaçados e o ano de 2014 é marcado também por inúmeros
confrontos com a policia de manifestações que exigiram “padrão fifa” para saúde,
educação, transporte etc.

Com todo esse parâmetro apresentado com base nessas inúmeras formulações,
pode ser verificar que para as Jornadas de Junho, o aumento da tarifa foi a centelha
para um marcante revolta popular, mas que representa somente “a ponta do
iceberg”, afinal “não é só pelos 20 centavos”. Marca, portanto, o ápice do
esgotamento de uma politica de pacificação, marcada pela violência policial contra a
população periférica, do descontentamento com uma participação cidadã sem poder
(controlada), com as remoções forçadas e demais manifestações sobre a lógica do
capital sobre o direito a cidade. Insurge então a vontade politica de transformar os
moldes impostos pelas classes dominante por meio de ações na contramão. O
movimento tem sua vitória atingindo sua meta a curto prazo (a revogação da tarifa),
no entanto, sem deixar de preservar a bandeira da desmercantilização da vida. A
nova forma politica que se apresenta deixa seus rastros nas inúmeras lutas que
vieram a seguir.

A Primavera Secundarista em 2015, no estado de São Paulo, é um exemplo de


continuidade. Este movimento tem seu inicio com a circulação da proposta de
reorganização escolar vinda do governo do Estado. A politica de reorganização
visou o fechamento de 94 escolas e a modificação de 1464 escolas que passariam a
oferecer somente um ciclo de ensino. De modo geral, mais de 300 mil estudantes
seriam deslocados.

Dentro de um contexto de intenso sucateamento das escolas publicas a proposta


não foi bem recebido pelos estudantes já que as péssimas condições se
intensificariam, reforçando a superlotação das salas de aula e da tendência
neoliberal de privatização da educação. Após diversas manifestações publicas e
sem serem ouvidos, a onda de ocupações é desencadeada, indo de 9 escolas
ocupadas na primeira semana a mais de 200 na segunda.

É retomada, assim, pelos estudantes secundaristas a tática de ocupação a fim de


reverter uma politica imposta pelo Estado. Se o objetivo deste ultimo era fechar
escolas, os estudantes decidiram por toma-las para si, reconfigurando todo seu
funcionamento e criando um sentimento de pertencimento a este espaço.

Se apropriando do espaço e realizando atividades nunca propostas antes, as


ocupações proporcionaram espaços formativos e coletivos para estudantes não só
sobre mercantilização e sucateamento do ensino, mas também sobre temas mais
amplos como a redução da maioridade penal, questões de classe, gênero, raça e
sexualidade. Além de debates, aconteceram inúmeras oficinas e manifestações
culturais. Tudo contribui por pensar uma escola voltada a comunidade escola:
estudantes, professores e moradores, fazendo com que a escola seja para além da
sala de aula e de transmissão de conteúdo, mas que seja um espaço de troca, de
convívio. Muda-se a lógica de somente estar na escola, e aplica-se a de fazer a
escola.

As ocupações, assim como Junho, são caracterizadas por seu caráter autônomo e
horizontal, sendo arquitetada toda uma estrutura organizativa que viabilizasse a
participação de todos nos rumos do movimento. Os documentários “Acabou a Paz” e
“Lute como uma menina” mostram bem como se deu a organização estudantil. Em
cada escola os ocupantes se organizam por comissões (limpeza, comunicação,
cozinha, formações) onde todos deveriam cooperar para a manutenção da mesma.
Já a linha politica dos estudantes em luta era definida por meio das assembleias que
ocorriam diariamente em cada ocupação. Para evitar o isolamento e potencializar
suas ações, os secundaristas logo construíram um Comando de Ocupações que
reunia representantes de todas as escolas ocupadas em reuniões semanais.

O movimento de ocupações, em paralelo com as Jornadas de Junho, foi um


processo acionado por estudantes secundaristas independentes que em sua maioria
esmagadora nunca havia participado de nenhum movimento politico de tal
envergadura. No caminhar da luta muitos estudantes passaram a se engajar
politicamente reconquistando, inclusive, para o ambiente escolar, alunos que outrora
havia evadido. Assiste-se então, mais uma mobilização erguida sem o protagonismo
de formas tradicionais organizativas.

A ocupação do espaço escolar foi para muitos a construção de uma outra forma de
viver aquele ambiente, produzindo reconhecimento e pertencimento coletivo nos
termo de Lefebvre. E no que diz respeito ao caráter pedagógico da luta, como
abordado por Rosa Luxemburgo, os estudantes secundaristas se inseriram desde
muito cedo na escola viva da luta, se forjando desde já para as lutas que se seguem.
Muitos desses estudantes hoje se organizam em diversos coletivos e organizações,
inclusive dentro do MPL.

Esta movimentação, claramente, despertou o descontentamento do governo do


Estado. Representando a subversão da lógica do ambiente escolar e
consequentemente uma ameaça a ordem estabelecida de formação de seres
obedientes, o governo do Estado investiu numa truculenta repressão aos estudantes
com violentas reintegração de posse de escolas ocupadas, prisões e contenção de
atos e trancamentos de vias.

O chefe de gabinete da secretaria de educação declarou guerra aos estudantes,


prometendo desqualificar e desmoralizar o movimento, taxando os como vândalos.
Mas o efeito foi o inverso, a taxa de aprovação do governador caiu drasticamente
enquanto o apoio popular as ocupações cresciam. Depois de meses de inúmeras
ações os secundaristas conseguiram que o projeto de reorganização fosse
suspenso (mas não cancelado) e ainda a queda do secretário de educação
Hermann Voordwald.

Assim como 2013, as ocupações secundaristas são lidas dentro do que Paulo
Arantes denomina de encurtamento do horizonte de expectativas. Ivan Ferreira, da
Auditoria Cidadã da Dívida Pública SP, no documentário “Acabou a Paz” reforça
essa ideia:

A esquerda trabalha muitas vezes com uma visão messiânica de futuro.


Então o que esse movimento mostra aqui é que não é o futuro, o amanhã
que vai ser construído quando as condições necessárias forem
conquistadas. É hoje, é aqui e agora que ta acontecendo o movimento.

Por fim, deixamos um trecho do Manifesto do Comando das Escolas em Luta de


dezembro de 2015 publica na página Não Feche Minha Escola:

Manifesto do Comando das Escolas em Luta

Os atos de rua eram uma tática que se mostrou ser uma ferramenta de luta
eficiente em junho de 2013, na revolta contra o aumento da tarifa, e nós,
secundaristas, acreditávamos que seria igualmente efetiva para derrubar o
projeto autoritário do Estado de reorganização. Após ficar outubro inteiro
fazendo dois atos por semana e não recebendo nenhuma atenção por parte
do governo e da mídia, vimos que deveríamos mudar de tática. Naquele
momento deixamos de ocupar as ruas e decidimos ocupar aquilo que já
deveria ser nosso: as escolas.

No começo das ocupações o governador Geraldo Alckmin acreditou que


iríamos nos desmobilizar e que nosso movimento não iria pra frente, mas
errou, e errou feio. O que fizemos? Ocupamos mais de 200 escolas,
boicotamos o SARESP, e trancamos muitas vias importantes de diferentes
pontos do Estado de São Paulo em uma semana, mostrando que nós,
secundaristas, não só sabemos nos organizar, mas que temos muita força
para além das entidades burocráticas que ele está acostumado a dialogar.
Com essa pressão dos de baixo, os de cima balançaram ao ponto de um
deles cair, o ex-secretário Herman Voorwald, e o Geraldo teve que voltar
atrás publicamente com o decreto. Enxergamos a desocupação de muitas
escolas que tem se dado nesse momento não como o fim de uma luta, mas
como uma mudança do caráter dela.” (dez, 2015)
Bibliografia

ARANTES, Paulo. Depois de Junho a paz será total. In: ARANTES, P. O novo tempo do
mundo. São Paulo: Boitempo, 2014.

LEFEBVRE, Henri. Industrialização e urbanização: noções preliminares. In: LEFEBVRE, H.


O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001, p. 11-34.

LEFEBVRE, Henri. Da cidade à sociedade urbana. In: LEFEBVRE, H. A revolução urbana.


Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 13-30.

LUXEMBURGO, Rosa. Greve de massas, partido e sindicatos. In: LOUREIRO, Isabel (org.).
Rosa Luxemburgo e o protagonismo das lutas de massas. São Paulo: Expressão Popular,
2018, p. 77-100.

LOUREIRO, Isabel. Rosa Luxemburgo e os movimentos sociais contemporâneos: o caso do


MST. Crítica Marxista. São Paulo, 2008, p.105-116.

Movimento Passe Livre. Perspectivas Estratégicas. <Disponível em:


https://www.mpl.org.br/>. Acesso em 06 jul. 2019.

PRONZATO, Carlos. Acabou a paz, isto aqui vai virar o Chile. 2016. (1:00m06s). Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=LK9Ri2prfNw>. Acesso em 06 jul.

COLOMBINI, Flávio; ALONSO, Beatriz. Lute como uma menina. 2016. (1:16m17s).
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8OCUMGHm2oA>. Acesso em 06 jul.
2019.

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