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UNICAMP-UFABC-CNPq
Resumo
O paper tem como questão: qual o cenário das ações coletivas no Brasil em
2020, com a pandemia do Covid- 19 e como analisá-lo? Para responder são
investigados grupos de autonomistas, progressistas, socialistas e
conservadores. Atos de resistência, solidariedade e de confronto. Quais seus
repertórios, como se organizam e se expressam em isolamento social? Parte
dos atos advém de grupos organizados como coletivos atuando via redes
sociais. Que novidades eles trazem? Podem ser chamados de movimentos
sociais ou são uma nova forma de ação coletiva? E os movimentos clássicos, de
luta pela terra, emprego, moradia? Como agiram/reagiram às reformas
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A Década de 2010
Faz-se necessário uma breve retrospectiva dos fatos para situar o debate sobre
ações coletivas durante a Covid19. A década de 2010 iniciou-se sob a sombra
da crise financeira de 2008, e foi marcada pelo encolhimento da economia em
várias partes do globo, desemprego, aumento das desigualdades sociais,
reformas do estado, perda de direitos dos trabalhadores, ressurgimento de
grupos conservadores e do nacionalismo, e protestos sociais. O povo nas ruas
em manifestações tornou-se usual e não apenas prática de sindicatos,
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Ao final de maio de 2020, após quase três meses de quarentena, com atos
públicos presenciais nas ruas apenas do grupo antidemocrático, manifestações
de grupos progressistas retornam às ruas, com demandas pró-democracia, em
defesa da democracia. Isto em um momento em que a curva de infectados e de
mortos pelo Covid-19 estava em ascensão, e, em meio a grave crise sanitária, e
a crise econômica-social emergindo com o aumento do desemprego, explode
novas facetas da crise política, com a demissão de dois ministros da saúde em
um mês, a saída do Ministro da Justiça, denúncias de interferência na Polícia
Federal, e crise entre os poderes do Estado. Tudo isso mobilizou diferentes
setores sociais para a luta em defesa da democracia. Manifestos, Campanhas e
Movimentos Sociais vieram à público, saíram às ruas, alguns já existentes,
outros novos. Tentaram se reinventar, serem propositivas, não só reativos.
(ALMEIDA, 2018), cabe também aos brancos lutarem contra todas as formas de
racismo (SCHWARCZ, 2020).
De outro lado, como afirma Della Porta, “Eu penso que desde WEB 1.0 até a 2.0
você teve transformações na capacidade dos indivíduos de produzir suas
próprias formas de comunicação, telefones, iPhones e assim por diante. E isso
mudou ... como posso dizer? Isso transformou as estruturas dos movimentos
sociais. Jeffrey Juris falou de uma mudança de uma lógica de rede para uma
lógica de agregação. Assim, é verdade que algumas dessas novas tecnologias
permitem movimentos de tipo instantâneo, mobilização muito rápida, mas
também desmobilização rápida, porque elas [as novas tecnologias] tornam a
estrutura da organização menos relevante. Mas, ao mesmo tempo, penso que
os ativistas dos movimentos sociais estão cientes dos desafios. Então você tem
pouquíssimas campanhas baseadas apenas em mídias sociais. E, pelo
contrário, se você pensar na chamada Primavera Árabe, ou nos Indignados, ou
nos movimentos no México e assim por diante, há um uso das mídias sociais,
mas também há muitas preocupações sobre a reocupação física dos espaços.
(DELLA PORTA, 2019: 386).
Na pandemia cada um faz de seu confinamento uma ficção pois fala, vê, escreve
e envia sinais para quem quiser. As novidades tecnológicas foram apropriadas
rapidamente pelos agentes econômicos que as transformaram não apenas em
meios de comunicação social mas fontes geradoras de empregos precários e
renda, como o comércio On Line e os entregadores de alimentos, os motoboys
que passaram a ser, em grande maioria, ‘cicloboys’, com longas distâncias e
cargas pesadas para entrega em suas bicicletas. Este contexto gerou também a
emergência da organização dos motoboys que chegaram a paralisar o trânsito
nas capitais. O invisível, ao se tornar visível, deu espaço também para a
organização, para a luta.
em cada uma há diferenças em seu interior. Neste texto, vou dar destaque a uma
autora que até a década anterior foi sempre associada a Teoria da Mobilização
Política, depois rebatizada como Teoria do Confronto Político, de TILLY,
TARROW, McADAM e outros: Donatela Dela Porta. Na década de 2010, DELLA
PORTA resgata elementos da estrutura econômica da sociedade, e não apenas
as questões políticas, aproximando sua abordagem das análises dialéticas
críticas ao enfatizar a questão das classes sociais, não enfatizando
exclusivamente aspectos institucionalistas.
novas categorias teóricas são necessárias para explicar uma realidade onde se
observa o confronto de duas correntes: o racionalismo (defesa da ciência, do
saber científico, e defesa da vida humana) e o não racionalismo (que se
aproveita das emoções fragilizadas daqueles acuados pelo medo e pelo
desemprego, para proporem soluções irracionais, voltadas para o mercado). Isso
tudo em um cenário de guerras culturais e disputas de narrativas. Talvez teorizar
sobre as emoções para além das abordagens de recorte exclusivamente
psicologizantes, ver as possibilidades que as emoções podem despertar na ação
coletiva, na linha que assinala Dela Porta: “Eu penso que as emoções são
importantes, porque elas produzem espirais positivas. Então elas [as emoções]
mudam as pessoas. Essa é uma das lições em movimentos sociais: você precisa
de esperança para se mobilizar, e acho que alguns desses eventos estão dando
esperança. É um desafio, mas não diria que é um momento em que basta
sobreviver à grande regressão. É um momento de luta, eu acho. (DELLA
PORTA, 2019:387).
Com estas notas encaminho para a seguinte conclusão: sem colocar a questão
das classes sociais não é possível compreender as desigualdades
contemporâneas (que sempre existiram, não foram criadas pela pandemia) e
não é possível alavancar as demandas identitárias para além dos protestos; e
para além das conquistas de reconhecimento jurídico, de inscrição de leis. Mas
também não se pode ignorar o papel da subjetividade, das emoções, numa
sociedade onde predomina o relacionamento virtual, onde as narrativas
modelam e mudam as opiniões das pessoas. Tem-se que avançar na questão
de mudança cultural na sociedade, para que as leis sejam respeitadas, para que
o reconhecimento seja efetivo. Volto novamente para Della Porta, em mais duas
citações, na mesma entrevista:
“.. não se trata apenas de olhar para o tipo de base estrutural dos movimentos
sociais, mas ainda é preciso entender quando e em que direção esses tipos de
conflitos de classe estão se desenvolvendo. Então a política ainda é importante
para mim, as agências de movimentos ainda são importantes para mim, mas
isso precisa ser combinado com questões de classe. Em seguida, outro tipo de
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Breve Conclusão
Ou seja, oportunidades políticas têm sido apropriadas por vários grupos, com
projetos de vida e mundo muito diferentes, e este ponto das teorias de Tilly e
Tarrow são importantes. Mas os pontos desta teoria focalizados excessivamente
em análises institucionais, tem de serem revistos. As teorias identitárias são
ainda muito importantes nas análises de grupos específicos, como os
movimentos de mulheres, povos indígenas e negros. Mas terão de ser revistas
no que diz respeito ao foco exclusivo nas identidades culturais. Estes grupos
avançaram em suas pautas e conquistas, adquiriram visibilidade, porque
politizaram as demandas, no campo das desigualdades, injustiças e processos
de significação e subjetivação da realidade social, mas as políticas identitárias
criaram também divisionismos (LILLA, 2018). Talvez a discussão tenha que
trilhar para universos mais amplos. A questão das classes tem de entrar no
debate, tem que analisar a intersecção das diferentes questões em jogo. Há
também a necessidade de fundamentar novas categorias teóricas para explicar
a realidade. Hoje os movimentos sociais mais ativos passam pela questão das
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O poder das redes sociais é uma realidade que veio para ficar. Associamo-nos
aos analistas que afirmam: as forças democráticas e progressistas precisam se
unir, superar divergências regionalizadas e ideológicas, e passem a dialogar e a
utilizar as redes para a construção de novos rumos, em direção ao retorno da
democracia, a reafirmação de seus valores e a reconstrução de seus processos.
A polarização esgarça o tecido democrático e reduzi-la é um dos grandes
desafios da atualidade, para que líderes populistas possam ser destronados.
Colocar a questão da democracia no centro dos debates leva-nos a dar
visibilidade as demandas, aos movimentos sociais, a exemplo do que tem feito
clássicos e contemporâneos sobre o tema ((PRZEWRSKI, 2020; MOUNK, 2019;
LEVITSKY e ZIBLATT, 2018; DIAMOND, 2017; RANCIÈRE, 2014; NOBRE,
2013; TILLY, 2007), entre outros.
Referências
ALONSO, Angela. 2017. “A política das ruas: protestos em São Paulo de Dilma
a Temer”. Novos Estudos. No especial: Dinâmicas da crise: 49-58. São
Paulo: CEBRAP.
ALONSO, Angela. AI-conquistas e paneleiros. In Folha de São Paulo,
25/04/2020.p B21
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MOUNK, Yascha O povo contra a democracia. Por que nossa liberdade corre
perigo e como salvá-la. SP. Companhia das Letras.2019
que-mudaram-o-mundo/index.htm#100-dias-que-mudaram-o-mundo. Acesso
09/04/2020.
WILLIAMS Raymond. Cultura. São Paulo. Editora Paz e Terra. 2ª edição – 2000.
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Maria da Glória Gohn-Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e pós-
doutoramento em Sociologia pela New School University, Nova York, EUA. Professora
Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
e Profa. Visitante Sênior da Universidade Federal do ABC (UFABC) no Programa de
Pós Graduação em Políticas Públicas. Pesquisadora 1A do CNPq. Foi profa. visitante
da Universidade de Córdoba e da Universidade Complutense de Madri. Fez estágio de
pesquisa na Fundação Rockfeller em Belágio/Itália, e na UNESCO. Atua nos seguintes
temas: movimentos sociais, participação social, educação não formal, associativismo,
cidadania e políticas públicas. Publicou 22 livros e inúmeros artigos.
http://lattes.cnpq.br/8315862641929394