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Resenhas

o Escravismo Brasileiro nas Redes do Poder:


comentário de quatro trabalhos
recentes sobre escravidão colonial

o feitor ausente estudo sobre a escravidão urbana


no Rio de Janeiro, de LeiJa Mezan Algranti. Petrópolis,
Vozes, 1988, 224 p.

Os leigos e o poder irmandades leigas e política


colonizadora em Minas Gerais, de Caio Cesar Boschi.
São Paulo, Ática, 1 �86, 254 p .

Campos da violência, de Sílvia Hunold Lara. São Paulo,


Paz e Terra, 1988, 384 p.

Ideologia e escravidão os letrados e a sociedade


escravista no Brasil colonial, de Ronaldo Vainfas. Pe­
trópolis. Vozes. 1986,168 p.


Laura de Mello e Souza
Estudo! Históricos, Rio de Janeiro. vol. 2, R. 3, 1989. p. 133·152.
134 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3

estudo da escravidão no Brasil dos estudos sobre escravidão, foi a


é hoje um dos campos mais percepção da necessidade de se estu·
férteis de nossa historiografia, dar o escravismo colonial. O estudo de
sobretudo em função do Cente· Freyre, como todos sabemos hoje, é
nário da Abolição, quando se multi· absolutamente atemporal e impreciso
plicaram as publicações de trabalhos em termos históricos - para não falar
e teses universitárias. Parece·me que em geográficos. Os trabalhos da es·
este correspondeu ao terceiro grande cola sociológica paulista incidiram
momento dos estudos sobre escravidão todos sobre o período final da escra·
brasileira no século XX. vidão, quando já não se podia falar
O primeiro foi marcado pelos tra· que ela integrasse um sistema, dado
balhos de Gilberto Freyre e pela visão que engastava·se nos quadros da na·
do escravismo paternalista, doméstico ção independente, e não da colÔnia.
e doce, como o açúcar das plantations A partir dos trabalhos de Ciro Caro
nordestinas, e teve como conquista doso e de Fernando Novais, o s histo­
fundamental a percepção da importân. riadores erigiram o escravismo colo­
cia da escravidão nas relações sociais nial em um dos seus temas preferen·
do país e a tomada de consciência da ciais de estudo e se deram conta de
mestiçagem. O segundo foi caracteri· que muitas das formulações dos so­
zado pelos estudos cient{ficos saídos ciólogos valiam para o século XIX,
das universidades brasileiras, princi· mas não para os séculos anteriores.
palmente da Universidade de São Havia, pois, que resgatar significados
Paulo, e centrados no enfoque socio­ perdidos e ir à raiz das coisas.
lógico das relações sociais e na dis· Seria difícil e maçante tentar 11m
cussão da natureza capitalista da eco­ balanço geral da produção historio­
nomia escravista. São deste momento gráfica recente, de cunho universitá·
os trabalhos de Florestan Fernandes e rio, voltada para a problemática da
Roger Bastide sobre as relações sociais escravidão e, a meu ver integrante
J

entre brancos e negros e a integração deste terceiro momento. Procurarei


do negro na sociedade de classes além enfocar quatro trabalhos que, além de
das teses de Fernando Henrique Caro sua relevância, apresentam traços c0-
doso e Otávio lanni sobre capitalismo muns o suficiente para justificar ana·
e escravidão no Sul do país. Um des· lisá·los em conjunto. Encontram·se ne·
dobramento desta última etapa foi a les representadas quatro universidades
discussão sobre a natureza capitalista brasileiras - a USP, a UFMG, a UFF
ou não da escravidão e a tentativa de e a Unicamp -, amostragem signifi·
entendimento do sistema escravista cativa da abrangência do tema na
colonial como um modo de produção atual pr.odução historiográfica univer·
específico. Ocorrida na década de 70, sitária em nosso país. Os trabalhos e
tal discussão opôs alguns dos princi· seus autores são os seguintes: O feitor
pais centros universitários do país, ge· ausente, de Leila Mezan Algranti
rou muitos equívocos, mas também (1988), Os leigos e o poder, de Caio
alguns trabalhos definitivos, como os Cesar Boschi (1986), Ideologia e es·
de Ciro Flamarion Santana Cardoso, cravidão, de Ronaldo Vainfas (1986)
Antonio de Barros Castro, Jacob Go­ e Campos da violência, de Silvia Hu·
render e, sobretudo, Fernando A. nold Lara (1988). Estas publicações
Novais. O grande legado deste mo· constituem teses universitárias defen·
mento, verdadeira inflexão no curso didas entre 1981 e 1986, acusando
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com nitidez o percurso atravessado posições de Novais e de outras de


pelo estudo da escravidão nos últimos Maria Sylvia de Carvalho Franco.
anos. Oe uma forma ou de outra, to­ E especialmente curiosa a posição
dos eles discutem as relações entre de dois dentre estes trabalhos: O fei­
escravidão e poder, inaugurando seara tor ausente e Campos da violência,
até então muito pouco explorada pe­ que poderiam ser vistos, respectiva­
los estudiosos do assunto. A natureza mente, como ponto de partida e ponto
econômica e social do escravismo é de chegada. Em O feitor ausente, que
obviamente analisada, mas sob nova cronologicamente é o primeiro desta
ótica e nova hierarquização, subordi­ série, estão os embriões das principais
nada muitas vezes ao esmiuçamento questões debatidas pelos demais his­
das relações de poder nas suas múlti­ toriadores; em Lara, estas são levadas
plas gradações, do macroscópico ao às últimas conseqüências, mantendo­
microscópico. O caráter dinâmico do se algumas, enquanto outras são dis­
escravismo como articulador das rela­ solvidas. Todos os quatro trabalhos
ções sociais é praticamente pressupos­ se encontram na encruzilhada de pers­
to, ilustrando bem o desprestigio em pectivas teóricas renovadoras, da filo­
que se encontra hoje a compreensão sofia de Foucault ao marxismo pe­
institucional da escravidão. culiar de Thompson e Linebaugh, va­
Sob um pano de fundo comum, as lendo-se da história das mentalidades
perspectivas teóricas dos autores va­ e do cotidiano, atrelando-se, portanto,
riam: a influência do marxismo de às linhas mestras que definem a his­
Lucien Goldmann em Vainfas, aliada toriografia contemporânea.
às análises de ideologia de Eliseo Ve­ Apresentado como dissertação de
rón; a presença de Althusser em Bos­ mestrado em 1983, na USP, o feitor
chi, que, como Algranti, incorpora ausente parte de uma questão aparen­
também o enfcque de Novais acerca temente marginal à problemática do
do antigo sistema colonial; em AI­ escravismo brasileiro: a da escravidão
granti e em Lara, a leitura cuida­ nas cidades. Como perspectiva teóri­
dosa dos historiadores norte-america­ co-metodológica, foi portanto precur­
nos que estudam a escravidão, funda­ sor, procurando lançar luz sobre o
mentais para que a primeira repense sistema como um todo a partir de fe­
a questão da escravidão nas cidades nômeno considerado de menor impor­
tância - o que boje é considerado
(Richard Wade, Mary Karasch) e a
procedimento fundamental por alguns
segunda redimensione a problemática
dos historiadores ditos das mentalida­
do paternalismo (Eugene Genovese);
des, como Robert Oarnton (O grande
em ambas, ainda, a influência de Mi­
massacre de gatos, Boemia liter6ria e
chel Foucault (sobretudo em Vigiar e
revolução) e Carlo Ginzburg (Miti -
punir) e da historiografia inglesa vol­
emblemi - spie, ainda sem tradução
tada para criminalidade e classes so­
entre nós). Leila Algranti acredita
ciais (notadamente a coletânea AI­
que, ao invés de negar o escravismo
bion's Patal Tree); em Lara, mais es­ ou de constituir fissura na sua orga­
pecificamente, nota-se o endosso de nização - conforme considerou R.
certas posições de Thompson e Line­ Wade para os Estados Unidos (Sla­
baugh quanto à problemática mais very in lhe cities) - a escravidão ur­
teórica do marxismo, e ainda uma in­ bana reforça o sistema escravista. Nas
corporação hastante peculiar de certas cidades, a escravidão sequer teria tido
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caráter mais brando, sua especificida­ necessanos maIS pnslOnelros, e a arll�


• • • • • • •

de ilustraria o quanto são tortuosos os manha de retê-los na prisão mais tel11�


caminhos da dominação e como são po do que o necessário persistiaJl (eil.
diversas as formas através das quais p.80-81).
dominadores e dominados interagem_ Voltando-se com cuidado para li
Como se verá a seguirJ Sílvia Lara vida cotidiana e acreditando nela en­
levará adiante preocupações deste contrar respostas elucidativas acerca
tipo. do modo de constituição peculiar da
Algranti atenta ainda para a ques­ escravidão nas cidades, Leila Algranti
tão complexa da convivência entre desvenda o seu caráter violento e ras­
industrialização (ou os seus primór­ treia os crimes insignificantes, os
dios, agora designados por prato-in­ pett)'crimes que pontilham o dia-a-di"
dustrialização) e mão-de-obra escrava, e acusam subrepticiamcnte, muitas
que estudos recentes vêm mostrando vezes sem fragor, mas numa constân­
ter sido maior e mais freqüente do cia surda, a insatisfação latente da
que se imaginava década atrás. O ma­ camada escrava. Mais uma vez. estc
terial sobre o qual constrói sua argu­ trabaUlo se mostra precursor: além de
mentação é constituído basicamente ser entre nós um dos primeiros estu­
dos documentos da I ntendência de do� voltados para a vida cotidiana
Polícia do Rio de Janeiro, que a par­ das camadas subalternas, preocupa-se
tir de 1808 muitas vezes desempenhou com a violência miúda das pequenas
na corte a função que nas fazendas infrações, chamando atenção para o
do interior geralmente cabia ao feitor relevo dos fenômenos aparentememe
c ao mando senhorial. Valendo-se com negligenciáveis. Detecta especificida­
proveito da historiografia inglesa - des. como a forma peculiar, basica­
na qual a coletânea Albion's Fatal mente urbana, do trabalho do escravo
Tree, com importantes artigos de Li­ ao ganho - cuja análise constitui um
nebaugh, Thompson e Douglas Hay, dos pontos altos do livro -, diferen­
parece cada vez mais ter sido um divi­ ciando-o daquele com que é freqüen­
sor de águas -, O feitor aLlsente es­ temente confundido pela historiogra­
boça ainda a relação entre uma socie­ fia: o trabalho do escravo de aluguel.
dade disciplinar na Europa e o con­ Através do modo de vida dos escravos
trole da sociedade escravista, pro­ ao ganho, AIgranti chama a atenção
curando compreender esta última no para os "bolsães de liberdade" que
contexto mais amplo da sociedade do li escravidão comportava - e que
Antigo Rcgime. Como nos grandes Sílvia Lara detectará também no meio
centros urbanos europeus do período, rural, na região de ClImpos dos Goi­
na corte carioca do tempo de dom tacazes: "O sistema de escravos ao
João VI aproveitavam-se prisioneiros ganho adaptava·se perfeitamente à
escravos - os libambos - nos servi­ cidade, pois era comum se necessitar
ços públicos, o que não deixa de re­ de Irabalhadores para serviços provi­
presentar lima face curiosa, coloniall sórios que duravam um dia, ou mes­
do Grallde Fechamento, conforme mo algumas horas" (p. 49). Alguns
atesta uma carta lapidar do chefe de desses escravos chegavam a mOrar so­
polícia: "Com O crescimento da cida­ zinhos, "levando uma vida de 'liber­
de e a construção de novos edifícios, dade' no cativeiro" (p. 49).
a situação agravava-se conforme o Abrindo caminhos de pesquisa e
rempo passava. e cada vez mais eram preconizando tendências hoje abraça-
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das por muitos dos jovens historiado­ parte final do trabalho defende po­
res brasileiros, O leitor ausente peca sição intrigante e de certa forma po­
em alguns momentos por simpatizar lêmica de que, nas cidades, o público
com uma compreensão absolutizadora cresce sobre o privado, com o Estado
do escravismo, para a qual este seria punindo os escravos que se insurgiam
quase um modelo abstrato e dotado de contra a ordem pública e sobrepondo
uma rigidez que conflita com as seus direitos e interesses 80S dos se·
novas realidades surgidas nas aná­ nhores. Estes muitas vezes levavam
lises mais recentes, fundamentadas em seus escravos indisciplinados às aula·
pesquisa documental minuciosa. Um ridades policiais para que os castigas­
exemplo: "O trabalho assalariado é sem, tendo autonomia de decidirem
imprescindível para o capitalismo. sobre o número de açoites a serem
Mas no escravismo ele é tão insignifi­ dados, mas podendo receber uma re­
cante que seu desaparecimento não cusa da polícia, caso esta considerasse
alteraria em nada o sistema" (p. 69). que a vitima não apresentava as con­
Verdadeira em termos gerais, a afir­ dições ffsicas necessárias. Na corte
mação merece nuance. A própria aná­ joanina, portanto, O Estado não s6 in­
lise que a autOra faz do escravo ao terferia na relação senhor-escravo.
ganho relativiza esta noção de um como dava a última palavra. Se isto
escravIsmo puro, aSSLnl como a cons- ocorria devido à maior proximidade
• •

tatação de que o trabalho escravo nos do aparelho estatal ou se era fenôme­


centros urbanos voltava-se para as ati­ no próprio ao ambiente das cidades,
vidades que visavam O mercado in­ s6 o estudo do fenômeno em outras
terno. mostrando uma outra face da zonas urbanas da colônia poderá di­
escravidão: não apenas essencial à zer, conclui a autora.
economia exportadora, mas também A vida urbana e suas relações com
sustentáculo da economia interna da o escravismo são também o pano de
colônia, uma e outra sendo vistas fundo de Os leigos e o poder, traba­
como um todo integrado. Justamente lho que procura dar conta das rela­
devido ao fato de ser o seu um tra­ ções entre irmandades leigas ou con­
balho pioneiro, talvez fosse mais difí­ rrarias das Minas sctecentistas - a
cil a Algranti dar conta das tensões região mais urbanizada da colônia na
entre evidências empíricas - que época - e o Estado português, abso­
emergiam de documentação inexplo­ lutista e colonizador. Muitos dos es­
rada - e modelos teóricos então con­ tudiosos de temas mineiros viram nas
sagrados. irmandades leigas das Minas apenas
um indício da estrutura mais flexível
Especialmente scnsívd em captar a
" democrática da formação social na­
natureza da escravidão urbana, do
quela região, aberta a formas organi­
poder do estado sobre a popu lação
zatórias populares. Caio Cesar Boschi
�scrava nas cidades, o seu modo de .
e menos romantlco ou IOgenuo e
. .. . '"

vida pautado n8 violência e semeado


toma como epígrafe um verso de Gon­
de pequenas infrações. Leil. Algranti
zaga nas Cartas chilenas:
lança também elementos importantes
para o entendimento da oscilação en­ "Não há, meu Doroteu, não há
tre violência e cordialidade, que os [um chefe
estudiosos têm mostrado ser central bem que perverso seja, que
ao escravismo, e que ela detecta na [não finja
documentação da polícia carioca. A pela religião um justo zelo.
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e, quando não o faça por virtude, os parente vão dizendo:


sempre, ao menos, o mostra por urubu tem que come- . ..

[sistema."
Constituíram bolsões arqueológicos,
Desde o inicio do trabalho está nos quais foi possfvel preservar for­
clara, desta forma, a preocupação em mas africanas como o reizado, 8 coo­
desvendar o outro lado das irmanda­ gada, O candomblé.
des, o seu atrelamento e subordina­ O grande mérito de Os leigos e o
ção à coroa e aos governantes da ca­ poder é mostrar que, numa sociedade
pitania que, como dom Lourenço de escravista e colonial, ambigüidades e
Almeida (1721-1732), Gomes Freire contradições não podem ser perdidas
de Andrade (1735-1762) ou dom Ro­ de vista. Há portanto que enxergar
drigo José Menezes (1780-1783), fo­ as irmandades como aparelhos de p0-
ram também provedores de tais insti­ der e, simultaneamente, como formas
tuições. Boschi revela que o poder de organização sob muitos aspectos
local penetrava as irmandades, simul­ autônomas, espelho das contradições
taneamente conferindo-lhes status e se do universo colonial. A discussão lem­
beneficiando com o que delas extraía. bra aquela referente à natureza da
Documenta a utilização que das ir­ urbanização nas Minas: teria sido ela
mandades fizeram os monarcas por­ imposta pelo Estado ou correspondi­
tugueses para melhor levarem a cabo do ao anseio das populações minera­
sua política normalizadora, voltada doras, à sua necessidade de organi­
para o policiamento e dominação da zação?
complexa população colonial - desde
Assim como Algranti acredita que
muito cedo os Compromissos das ir­
a policia do ruo se impôs aos senho­
mandades seguiam para Lisboa e,
res nas primeiras décadas do século
antes da aprovação, recebiam altera­
XIX, Boschi conclui que o Estado
ções da pena do Conselho Ultrama­
metropolitano acabou limitando o p0-
rino ou da Mesa de Consciência e
tencial organizatório - e virulento -
Ordens_
das irmandades mineiras, notadamen­
Evidentemente, as irmandades não te as de negros libertos e de escravos.
foram apenas braços do poder metro­ Nascidas de baixo para cima, "de livre
politano na colônia. Surgiram, com as vontade dos habitantes", as irmanda­
cidades e com elas, da necessidade des desde cedo foram cooptadas pelo
que a população mineira teve, desde Estado, que as manipulava de cima
os primórdios, de se organizar e se para baixo. Concessões podiam ser
estruturar em terras sujeitas à insta­ feitas de parte a parte, refletindo a
bilidade, à imprevidência, à itinerân­ própria natureza do exercício do po­
cia da empresa aurífera. Agregaram 'der nas Minas - grande jogo de
elementos pobres e de cor, sempre alternância entre violência e contem­
leigos, para os quais representavam a porização -, mas havia momentos em
possibilidade de uma sepultura de­ que as posições se mostravam irredu­
cente e afugentavam um pavor que tíveis. Em 1771, Pombal se empenha­
encontrou expressão em trovas popu­ va em suprimir confrarias e irmanda­
lares: des de natureza mais acentuadamente
popular, respeitando as referentes às
"Nêgo véio quando morre camadas superiores da população e,
vai na tumba do bangüê como tais, mais facilmente transfor-
RESENHAS •
139

máveis em instrumentos de defesa dos vidão por parte dos escravos, e Boschi
interesses do Estado. Na mesma épo­ faz suas as palavras de Carlos Orum·
ca, a realidade apontava em sentido mond de Andrade, para quem o obje­
contrário: a maioria dos oragos (p. 62) tivo das irmandades foi "adormentar
invocava Nossa Senhora do Rosário, nos homens de cor o sentido de re­
a santa querida dos negros. Para es· beldia, conduziodo-os para o êxtase
tes, as irmandades foram "um local

religioso" (cit. p. 171). Este é apenas
privilegiado de afirmação das identi· um dos lados da questão. Para além
dades culturais, étnicas ou sociais", da tensão entre a macrofísica e a mi­
representando com freqüência meio crofísica do poder, as irmandades re·
de proteção contra os rigores do escra· presentaram um espaço privilegiado
vismo. Mas nem por isso perderam os para simbolizaçães, e talvez nestas es­
traços de instituição européia identi· teja uma outra chave para a sua inte­
ficada com a política colonizadora e, ligibilidade. Promovendo festas de
decorrentemente, com a escravidão. alto significado ritual - como o
Para Boschi, portanto, as irmanda· . Triunfo Eucarístico de 1733 -, patro­
des acabaram sendo instrumento de cinando as artes - simbolizadoras
um sincretismo planeiado que escamo­ dentre todas as manifestações huma·
teava "o permanente conflito de clas­ nas -, traduziram cotidianamente na
ses ( . .. ) que permeou todo o período religião seus momentos de euforia, de
colonial" (p" 69). A clareza dos obje­ temor e de desespero, invocando então
tivos não impediu que o percurso os Passos da Paixão de Cristo e nele
fosse tortuoso: o Estado necessitava espelhando seus anseios de colonos es­
das irmandades para "conservar a pezinhados.
tranqüilidade e a subordinação neces­ Ideologia e escravidão examina a
sária para os povos" (cil. p. 105), ao sociedade escravista da colônia sob
mesmo tempo em que elementos das enfoque diverso. Se Algranti e Bosehi
classes dominantes viam tais organiza­ vasculharam as relações de poder no
ções como criminosas, danosas aos Es­ seio da formação social. Vaiofas eeo­
tados soberanos, pseudamente religio­ tra sua análise na produção dos letra­
sas mas, na verdade, Uconventículos dos coloniais, nos escritos dos homens
sediciosos" que insuflavam as rebe­ que pensaram o escravismo de fins do
liões. século XVII a fins do século XVIII:
Os leigos e o poder é o mais ins· Antonio Vieira, Jorge Benci, André
tigante livro produzido pela historio­ João Antonil, Manuel Ribeiro Rocha,
grafia brasileira sobre as irmandades Nuno Marques Pereira. Algumas des­
de Minas Gerais. Assentado em do­ tas visões se constituíram em ideolo­
cumentação muitas vezes inédjta, le­ gias que acabaram penetrando a his­
vantada em arquivos portugueses, é
toriografia da escravidão. Analisá-Ias,
simultaneamente um trabalho raro de
entender os motivos de sua força per­
pesquisa empírica e de reflexão ana·
suasória e de sua perpetuação são
lítica. Parece·me, entretanto, muito
preso à expectativa da revolução es· objetivos básicos do estudo. Ao exe·
crava, ou seja, à perspectiva que as­ cutá-Io, Vainfas discute a produção
culta a sociabilidade negra do ponto historiográfica brasileira mais recente
de vista das possibilidades de produ­ sobre o assunto, procedimento comum
ção da revolta. As irmandades não também a Sílvia Lara, mas ausente
foram catapulta à negação da escra- nos dois autores antes examinados.
140 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3

Já no capílUlo introdutório, Vain­ e portadores de uma visão de classe,


ras s� mostra contrário à historiogra­ os jesuítas apresentaram produção li­
fia que vê a rebeldia negra como fruto terária nem sempre homogêneal pois
da crueldade do senhor, representada pretendiam-na simultaneamente histó­
sobretudo pelos trabalhos de Décio ria da missão jesuítica no Brasil e his­
Freitas, J. Alípio Goulart e Clóvis tória da escravidão no mundo colo­
Moura. Acredita que estes autores an­ nial. Disseminados pelo conjunto do
daram pouco no sentido de desmontar território, os jesuítas seriam os únicos
o caráter da violência escravista, in­ a terem na colônia uma visão totaU·
vertendo o esquema de Gilberto Frey­ zante, possível de ser comparada à
re, "pintando com obstinação os hor­ percepção metropolitana dos domínios
rores da escravidão, e destacpndo a do ultramar. Esta "dupla inserção",
coerção, sobretudo a violência risica, contraditória para Vaioras, seria vista
como a viga mestra do sistema" (p. de forma diferente por Sílvia Lara,
15). Criticando o senhor bondoso ce­ que capta nas falas dos senhores de
lebrizado em Casa-gral1de & senzala, escravos, registradas pelos processos­
teriam construído a imagem inversa da crime de Campos no século XVIII.
"escravidão-cárcere". acabando upri_ as mesmas preocupações dos letrados
sioneiros do paradigma que querem com o universo das relações escra-
combater: para explicar a 'rebeldia vistas.

negra' precisam de um senhor cruel" Outro tema abordado


tanto por
(idem). Vainfas quanto por Lara é O das vi­
Para Vainfas, ideologia e poder são sões dos escravos como coisa e pessoa.
faces da mesma moeda, combinando Um dos pontos altos de Ideologia e
. .
em graus vanavcls persuasao e coer- escravidão é o capítulo "Esboço ideo­
, -

ção. Como decorrência, é impossível lógico da escravidão", em que mostra


"pensar as práticas escravistas quer como a percepção idílica do novo
como exclusivamente paternalistas, mundo levou à percepção do escravo
quer como puramente coercilivas" (p. como coisa, enquanto o avanço da co­
16). Estas posições serão retomadas lonização construía paulatinamente a
e desenvolvidas por Sílvia Lara, que percepção do calivo como pessoa. Esta
contesta a análise da rebeldia e da vio­ se deveu em grande parte à ocorrência
lência centrada no quilombo - mais das revoltas escravas, notadamente
óbvio e aparente - e, a partir de Palmares: através delas, patenteava-se
Maria Sylvia de Carvalho Franco e 3 dimensão humana do escravo, que
de Eugene Genovese, monta uma re­ tinha emoções e sentimentos, podendo,
leitura da noção de paternalismo, en­ portanto, fugir e se revoltar contra a
tendendo·o como síntese de violência ordem senhorial. Para Lara, esta divi­
e de benignidade. são é impossível; rastreando a parti­
Sem negar o conteúdo ideológico cipação dos escravos no seu próprio
das práticas sociais, Vainfas centra comércio -O fato de aceitarem ou

sua análise na versão ideológica das não a sua venda, recusando-se a tra­
letras na colônia, vendo o discurso balhar para senhores que não os agra­
dos letrados como alternativo ao dis­ davam -, afirma serem esquemáticas
curso pragmático do mundo senhorial. muitas das análises reincadoras do
Há momentos em que a separação oao escravo e mostra que a contradição
é tão nítida, passível de ser esquema­ entre coisa e pessoa era permanente e
tizada: inseridos na regra corporativa se achava presente não apenas no dis-
RESENHAS 14 I

Curso metropolitano oficial, como na Do discurso jesuítico. C�I,' projeto­


prática cotidiana de senhores e es­ limite teria ganhado a hiSlllriografia
cravos. contemporânea. Na sua visão adocica·
Para Vainfas, portanto, acaba ha­ da do escravismo brasileiro, Gilberto
vendo divisão entre ideologia e prá­ Freyre incorporaria a idéia do projeto
tica social. Através de um longo pro­ cristão ao destacar a base familiar da
cesso, que vai da consciência idílica colonizaçao e valorizar o universo da
da terra à compreensão da escravidão escravidão doméstica. Na visão opos·
como problemática, os letrados colo­ la, assentada na denúncia da escravi·
niais se convencem da legitimidade da dão violenta e desumana, seria ainda
escravidão africana. Porém, insatisfci� o discurso jesuítico na sua vertente
tos com as práticas sociais vigentes, pedagógica e voltada para a punição
constr6em normas para tornar a cs� persuasiva que se faria presente. "A
cravidão mais estável, duradoura, pro­ atualidade dos discursos coloniais pa­
dutiva e violenta. Cria-se, desta forma, rece ser, assim, bem maior e mais pro·
um novo projeto ideológico como ai· funda do que se supõe", constata
ternativo às práticas vigentes. Vainfas. Ao desmomar com brilho -
mesmo se, as vezes. um tanto mecam·
, .

Apesar da análise sensível e brilhan·


te dos texlOS dos letrados, a ideologia camente - o discurso dos letrados co­
escravista adquire, na leitura de Vain­ loniais, o autor nos deixa a constata·
fas, quase que um caráter finalista, ção melancólica de que, em pleno
progressivo. Legitimada a escravidão, século XX, a historiografia estaria
há que controlá-Ia pelo trabalho, com­ ainda a repetir a ideologia que foi o
preendido de duas formas antagôni­ limite de consciência possível no iní­
cio do século XVII!.
cas: em Vieira, como o máximo de
transfiguração do social; em Benci e Campos da violência tem muitos
Antonil, como atividade produtiva. pontos comuns, mas também algumas
Após o controle, esboça-se a necessi­ divergências mais fundas com relação
dade de uma pedagogia. Por fim. há a Ideologia e escravidão. Ambos são
fixação de normas justas. racionais e corrosivos com a produção historio­
cristãs que possibilitem a pUllição gráfica sobre escravidão nos últimos
anos - Vainfas voltando-se mais

persuasIva.
contra os historiadores "vitimistas",
Na construção racional dos letrados
Lara dirigindo suas baterias contra
coloniais não se abria espaço à con·
estes e ainda contra os que integram a
tradição. Para o autor, isto explica o
"escola sociológica paulista". No ge­
fato de Palmares aparecer minimiza­
rai, a posição crítica de ambos é extre­
do nestes escritos, o inimigo social
mamente fecunda e, de fato, aponta
muitas vezes convertido em inimigo
militar, retiranda.-se o potencial via· novos problemas. No livro de Vainfas,
lento e contestatário do quilombo­ cartesiano e, no limite, quase esque·
mático, as críticas e 8S posições apre­
la para atribuírem-se-Ihe qualidades
guerreiras. No discurso dos letrados, sentam-se mais definidas. Já Sílvia
as contradições de classe foram, no li­ Lara fez uma opção deliberada pelo
mite, diluídas no projeto cristão as­ avesso dos esquemas, preferindo antes
sentado em base familiar. O projeto desn:ontar do que remontar. Este de­
escravista-cristão dos jesuítas consti· salinho tem os seus encantos e tem os
tuiu, desta forma, O limite de cons­ seus senões. A estrutura mais nuida e
ciência possível no Brasil colonial. aberta suscita várias idéias. mas tam-
142 EsTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3
,

bém dificulta que se capte com cla­ produção e em representações feitas


reza os passos da autora e o sentido sobre estas relações. Portanto, o dis­
mais profundo de algumas de suas curso dos letrados coloniais não é au­
críticas_ tônomo, não pode ser lido em sepa­
Apesar de bem escrito, Campos da rado das relações cotidianas entre se­
violência torna-se às vezes de leitura nhores e escravos.
difícil, o que em nada diminui sua im­ Para compreender a natureza do
portância: é um livro definitivo, afe­ controle social na colônia, Silvia Lara
tando várias das concepções daqueles remete à questão da apropriação de
que travam conhecimento com as suas_ capital que, verificando-se em dois
Neste sentido, ele amarra questões de níveis, condicionava duas formas dis­
todos os três estudos analisados até tintas de dominação: a senhorial (pre­
aqui e relativiza muitas de suas cer­ sente na relação senhor-escravo) e a
tezas_ II um somatório deles na me­ colonial (presente na relação melrópo­
dida em que trabalha em todos os ní­ le-colônia). A autonomia da relação se­
veis: esmiuça a vida cotidiana atra­ nhor-escravo ante a exploração colo­
vés de processos-crime, baseia-se em nial gerava tensão entre os interesses
Consultas e outros documentos 0[[­ metropolitanos (gerais) e os senhoriais
ciais da metrópole portuguesa, analisa (particulares). O controle social da
os discursos dos letrados e discute metrópole incidia sobre a dominação
com a bibliografia sobre escravidão_ dos vassalos, enquanto o dos senhores
Como Vainfas, propõe-se a destrincbar se voltava para o domínio dos escra­
o fenômeno em estudo através dos vos. No cotidiano, a dominação se­
documentos e dos dados empíricos e, nhorial era sentida como pessoal:
simultaneamente, a entender e si­ além do nome próprio e do local de
tuar-se frente à produção historiográ­ origem, os escravos traziam a indica·
fica_ ção: "escravo de fulano de tal". Não
Lara partilha com Vainfas a preo­ eram apenas escravos: eram escravos
cupação em repensar a relação entre de tal ou tal senhor.
violência e escravidão tal como se ma­ Para que se realizasse a apropria­
nifestou na historiografia, consideran­ ção senhorial, a dominação deveria
do-a o "pano de fundo comum a todo ser garantida pelo controle da escra­
o conjunto da bibliografia" (p_ 19)_ varia através da disciplina. "Assim
Seu enfoque, entretanto, incide no pIa­ como se ministravam os sacramentos
no do cotidiano: é nele que vai ten­ para ordenar a consciência, ministra­
tar perceber o modo pelo qual "senho­ vam-se castigos para ordenar e disci­
res e escravos viviam e percebiam sua plinar o corpo dos escravos para o tra­
prática" (p_ 21), a violência do se­ balho" (p. 54), salienta a autora. Mais
nhor se manifestando no castigo e na do que o caráter compulsório, é a dis­
dominação, enquanto a do escravo se ciplina da escravidão que importa à
corporificava na falta, na transgres­ análise, atrelando o Brasil escravis­
são, na viol.ação do domfnio senho­ ta à emergência da sociedade discipli­
rial, enfim, na rebeldia_ A escolha das nar na Europa. Se este viés tem seus
práticas cotidianas não é fortuita, pois problemas, limitando em muitos pon­
no cotidiano se integram as instâncias tos a compreensão do escravismo co­
do social, no econômico e do ideol6gi­ lonial na sua especificidade hist6rica,
co. Lara acredita que não se pode se­ permite entretanto que a autora su­
parar relações sociais em relações de plante os vícios presentes na historio-
R E SENHAS 143

grafia afeita à relação coerção-vio­ ção e do mando político na colônia.


leneia. O racionalismo dos debates le­ Lara não se estende sobre este tópico,
trados sobre o castigo é um indicio de mas fornece as bases para o seu de­
que este não era posto em xeque: sem senvolvimento. "O poder do Governo
ser incondicional, o castigo era incon­ sobre a nação é proporcionado ao grau
testado, tratava-se de um direito dos de união que existe entre o direito de
senhores. Era contra o primeiro, mas mandar e a vontade de obedecer -
não contra o segundo, que se batiam para a execução das ordens faz toda
os intelectuais e moralistas do século a diferença haver ou não desejo de as
XVII e XVIII, pregando o castigo mo­ cumprir - e nascendo a vontade do
derado e corretivo, e sendo, nesta ati­ bom efeito que resultou ou se espera
tude, acompanhados pela prática dos das ordens, segue-se que acertar au­
senhores na região dos Campos dos menta o poder, e que não acertar di­
Goitacazes. Escravos também não con­ minui o poder", dizia em 1803 o mar­
testavam o castigo em si, mas seu ex· quês de A1orna, usado como eplgrafe
cesso: ele aparecia, portanto, como na­ à segunda parte de Campos da violên­
tural para as diferentes instâncias da cia. Pouco mais de meio século antes,
as autoridades administrativas das Mi­
sociedade.
nas Gerais captaram com grande sen­
Sem ser incondicional, o castigo p0-
sibilidade a slntese entre brandura e
dia, vez ou outra, ser exemplar, cons­ rigor, necessária à manutenção do
tituindo então estratégia e dispositivo mando: "Faz preciso misturar o agro
para a reprodução da exploração do com O doce", recomendava Gomes
trabalho. Nestas ocasiões, voltava-se Freire de Andrade na Instrução que
para o futuro, nos quadros da pedago­ dirigiu ao irmão José Antonio, seu in­
gia do medo: "prevenindo rebeliões, terino no governo das Minas. Em Re­
atemorizando poss{veis faltosos, ensi­ gimento a Martinho de Mendonça de
nando o que era ser escravo, manten­ Pina e de .Proença, também governa­
do e conservando os escravos, enquan­ dor interino desta capitania, a coroa
lo escravos, continuamente" (p. 96). recomendava alguns anos antes: "Con­
fio de vós que usareis sempre daquela
A leitura de Lara afasta-se, portan­
moderação e suavidade que é conve­
to, das que veriam a escravidão como niente, e que, nos casos em que for
assentada no castigo arbitrário e des­ necessário, mostrei todo o vigor e re­
regrado - a uescravidão-cárcereJl de solução". As sutilezas moleculares da
que fala Vainfas - e se preocupa não dominação senhorial tinham, portan­
mais com o tratamento dispensado ao to, contrapartida no mundo da poli­
escravo, mas com a análiSe dos meios tica: "Sempre me persuadi", diria um
e instrumentos de controle social, con­ terceiro governante mineiro na déca­
solldação e perpetuação do escra- da de 80, "de que uma bem calcula­
vlsmo. da e dirigida prudência seria suficien­

Se a escravidão era a relação fun­ te em quem governa, para ganhar o


dante da formação social brasileira e coração dos homens e obrigá-los com
se constitula em slntese complexa de uma força voluntária a cumprirem 8S
violência e de benignidade, oscihindo suas obrigações, sem que aparecessem
muitas vezes entre estes dois pólos an­ conduzidos mais que pela própria
tagônicos e complementares, fica mais vontade, e sem que percebessem mão
fácil entender a natureza da domina- Superior e estranha que desse os mo-
144 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3

vimentos às suas ações··.· A união ficados do ouro, e as de Manuela Car­


destes contrários foi traço dominante neiro da Cunha I em "Sobre a servi·
no período colonial porque, acirran­ dão voluntária: outro discurso. Escra­
do-se ao limite os mecanismos da do­ vidão e contrato no Brasil colonial",
minação senhorial, os escravos fu­ de que o liberto nem sempre era livre,
giam. morriam ou se sublevavam. permanecendo sob O domínio senho­
pondo em risco a continuidade da do­ rial e podendo ser reescravizado: "As
minação de senhores sobre escravos; marcas da dominação escravista iam
por outro lado, acirrando-se ao limite muito além das marcas corporais e do
os mecanismos da dominação política, estigma da cor . .. " (p. 268).
os colonos conspiravam, se amotina­ Evidencia-se, portanto, que o escra·
vam e punham em risco a integridade vismo era também uma microfísica do
da colônia. Relações sociais escravis­ poder, atuando molecularmente e indo
tas e relações políticas entre metrópole além das fronteiras da violência mais
e colônia apresentavam, assim, coerên­ óbvia. Não eram apenas o grilhão ou
cia marcante. Ao devolver um escravo o tronco que impediam o escravo de
ao seu senhor em 1799, recomendava­ rugir. assim como não era a coerção
lhe a coroa "que o não castigue pela pura c simples que explicava a escra·
fugida ( ... ) e que o trate para o futu­ vidão. Esta era tecida cotidianamente,
ro com humanidade e brandura" (cil. nas relações complexas e contraditó­
p. 32 2) . rias entre senhores e escravos. "Todo
Se em C ampos da violência a um universo de relações pessoajs en·
união dos contrários é, no plano da carregava-se de identificar os cativos e
política, antes sugerida do que esmiu­ reafimlar sua condição, lembrando­
çada, no plano das práticas cotidianas lhes quem era seu senhor e controlan­
ela é examinada com detalhes, mos­ do-lhes as atividades. Angélica, Paulo,
trando a dialética de luta e acomoda­ Antonio, Pedro e tantos outros podiam
ção presente nas relações sociais de ter saído de suas fazendas, mas os la­
senhores e escravos. A região dos ços que os prendiam a seus senhores
Campos dos Goitacazes serve, assim, conLinuavam alados e eram cuidado­
como evidência empírica para relati­ samente vigiados por todas as pessoas
vizar alguns dogmas da historiografia com quem se encontravam" (p.236).
brasileira sobre a escravidão. Refor­ Em "O público e o privado", Lara
ça-se, por exemplo, a idéia da "bre­ parece levar às úllimas conseqüências
cha camponesa" e das atividades de a idéia do poder como um monstro
subsistência a que se dedicavam os tentacular e multiforme. Relativiza a
escravos: plantavam roças, criavam idéia de que o poder público - a jus­
galinhas e porcos. Introduz-se a suges­ tiça - esteja submetido ao poder pri­
tão polêmica de uma maior mobilida­ vado - os interesses senhoriais -
de dos escravos. Mostrando não ser só pois não vê nestes uniformidade;
no meio urbano que se moviam livre­ além disto, detecta no poder, tanto o
mente: em Campos. havia um ir e vir público quanto o privado, uma no­
constante, mesmo às altas horas da tável capacidade metamorfose adora.
noite. Confirmam-se algumas constata­ Neste contexto, o escravo era simul·
ções, como as minhas, em Desclassi· taneamente um inimigo doméstico e

•Utilizo aqui a análise desenvolvida por mim em Desclassificados do ouro. Rio de


laneiro. Graal. t983. p. 97-98.
� E S E N H I\ S 145

público "porque estas duas instâncias vidão no Brasil. Evitam olhar ápenas
tinham objetivos divergentes em rela­ para O pólo co!onial e procuram as
ção 00 controle dos cativos, ainda que vinculações com a sociedade de An­
pudessem estar associadas em mo­ tigo Regime. A fpoca Moderna foi o
mentos e circunstâncias específicas" momento da montagem dos aparelhos
(p. 340). O caráter público - do­ de poder. e sua atuação se fez sentir
méstico do escravo expressava·se no fundamente no Brasil colonial: na ar­
fato de sua resistência se operar nes­ ticulação da Polícia do Rio de Janei­
les dois níveis: "Tanto podia, na re­ ro, na constituição de irmandades de
lação direta com seu senhor, recusar· negros muitas vezes manietadas pelo
se ao trabalho, fugir ou conseguir sua Estado metropolitano, na estruturação
alfonia, quanto apelar para a instân­ das ordens missionárias - como a dos
cia judicial ou pública para questio­ jesuítas -, que nas colônias se torna­
nar o poder de seu senhor ou conse­ fam também senhoras de escravos e
guir sua liberdade" (idem). As consi­ produtoras de uma ideologia escravis­
derações de Lara lançam luz e com­ ta específica, na adoção de normas
pletam, desta forma, a problemática disciplinorcs que regiam as atitudes,
de Leila Algranti: a interferência do na endosso do castigo exemplar que,
Estado no relação senhor-escravo. no limite, atingia feição de suplício,
Situando-se numa espécie de de­ no constituição, enfic-" de uma peda­
sembocadura, Campos da violência gogia do medo.
corresponde a um momento importan­ Quando Sílvia Lara se mostra con­
le das pesquisas sobre escravidão no trária à separação das relações sociais
Brasil. Oferecendo uma alternativa à em relações de produção e representa­
análise macroscópica da violência, ções feitas destas relações, po!emiza
chamando - como Algranti - a com as discussões da década passada
atenção para os fenômenos aparente­ acerca da viabilidade de tlm modo de
menle negligenciáveis, mostrando a produção colonial escravista. Sua crí­
resistência molecular dos atos dos es­ tica bibliográfica, assim como a de
cravos no seio do escravismo, Sílvia Vainfas, revela que a violência do es­
Lara politi... o enfoque do objeto e cravismo não pode ser analisada em
esclarece, de uma vez por todas, termos de juízo de valor nem unilate­
acerca do equívoco das análises cen­ ralmente, sem que se considere a vio­
Iradas na violência mais aparente. Se lência das relações escravistas como
a leitura dos discursos letrados é ir­ um todo. Viu-se atrás como Vainfas
retocável e definitiva, o aproveita­ mostra a força ideológica assumida
mento dos documentos às vezes deixa pelo discurso letrado, incorporado
a desejar, as transcrições se fazendo pela historiografia do século XX sem
muito constantes e nem sempre se ar· crivo analítico. Ao ler a sociedade es­
ticulando com as formulações mais cravista pelo prisma das irmandades
leóricas. Mas estas são questões de ou da escravidão urbana, Caio Bos­
forma q�e em nada comprometem o chi e Leila Algranti comprovam que a
brilho do todo. natureza das cidades coloniais é
Em grau variável, todos os traba­ essencialmente escravista e elucidado­
lhos aqui analisados procuram um ca­ ra do escravismo colonial. Pesquisa
minho novo para se entender a escra· documental cuidadosa, análise detida
146 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3

dos textos, paciência em enfrentar ar­ mostrar, em bloco, como ler a escra­
quivos brasileiros e portugueses e vidão sob a luz de métodos renovados.
apreço pela narrativa histórica são ou­
tros traços comuns destes trabalhos_ Laura Mello e Souza é professora do De­
Dando seqüência e muitas vezes pole­ partamento de História da Universidade
mizando com os estudos sociológicos de São Paulo e autora do livro O diabo
e a Terra de Santa Cruz; feitiçaria e
mais gerais das décadas anteriores, os religiosidade popular no Brasil colonial
historiadores brasileiros começam a (São Paulo, Companhia das Letras, 1986) .

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