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2272 Texto - Do - Artigo 3751 1 10 20091119
2272 Texto - Do - Artigo 3751 1 10 20091119
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Laura de Mello e Souza
Estudo! Históricos, Rio de Janeiro. vol. 2, R. 3, 1989. p. 133·152.
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das por muitos dos jovens historiado parte final do trabalho defende po
res brasileiros, O leitor ausente peca sição intrigante e de certa forma po
em alguns momentos por simpatizar lêmica de que, nas cidades, o público
com uma compreensão absolutizadora cresce sobre o privado, com o Estado
do escravismo, para a qual este seria punindo os escravos que se insurgiam
quase um modelo abstrato e dotado de contra a ordem pública e sobrepondo
uma rigidez que conflita com as seus direitos e interesses 80S dos se·
novas realidades surgidas nas aná nhores. Estes muitas vezes levavam
lises mais recentes, fundamentadas em seus escravos indisciplinados às aula·
pesquisa documental minuciosa. Um ridades policiais para que os castigas
exemplo: "O trabalho assalariado é sem, tendo autonomia de decidirem
imprescindível para o capitalismo. sobre o número de açoites a serem
Mas no escravismo ele é tão insignifi dados, mas podendo receber uma re
cante que seu desaparecimento não cusa da polícia, caso esta considerasse
alteraria em nada o sistema" (p. 69). que a vitima não apresentava as con
Verdadeira em termos gerais, a afir dições ffsicas necessárias. Na corte
mação merece nuance. A própria aná joanina, portanto, O Estado não s6 in
lise que a autOra faz do escravo ao terferia na relação senhor-escravo.
ganho relativiza esta noção de um como dava a última palavra. Se isto
escravIsmo puro, aSSLnl como a cons- ocorria devido à maior proximidade
• •
[sistema."
Constituíram bolsões arqueológicos,
Desde o inicio do trabalho está nos quais foi possfvel preservar for
clara, desta forma, a preocupação em mas africanas como o reizado, 8 coo
desvendar o outro lado das irmanda gada, O candomblé.
des, o seu atrelamento e subordina O grande mérito de Os leigos e o
ção à coroa e aos governantes da ca poder é mostrar que, numa sociedade
pitania que, como dom Lourenço de escravista e colonial, ambigüidades e
Almeida (1721-1732), Gomes Freire contradições não podem ser perdidas
de Andrade (1735-1762) ou dom Ro de vista. Há portanto que enxergar
drigo José Menezes (1780-1783), fo as irmandades como aparelhos de p0-
ram também provedores de tais insti der e, simultaneamente, como formas
tuições. Boschi revela que o poder de organização sob muitos aspectos
local penetrava as irmandades, simul autônomas, espelho das contradições
taneamente conferindo-lhes status e se do universo colonial. A discussão lem
beneficiando com o que delas extraía. bra aquela referente à natureza da
Documenta a utilização que das ir urbanização nas Minas: teria sido ela
mandades fizeram os monarcas por imposta pelo Estado ou correspondi
tugueses para melhor levarem a cabo do ao anseio das populações minera
sua política normalizadora, voltada doras, à sua necessidade de organi
para o policiamento e dominação da zação?
complexa população colonial - desde
Assim como Algranti acredita que
muito cedo os Compromissos das ir
a policia do ruo se impôs aos senho
mandades seguiam para Lisboa e,
res nas primeiras décadas do século
antes da aprovação, recebiam altera
XIX, Boschi conclui que o Estado
ções da pena do Conselho Ultrama
metropolitano acabou limitando o p0-
rino ou da Mesa de Consciência e
tencial organizatório - e virulento -
Ordens_
das irmandades mineiras, notadamen
Evidentemente, as irmandades não te as de negros libertos e de escravos.
foram apenas braços do poder metro Nascidas de baixo para cima, "de livre
politano na colônia. Surgiram, com as vontade dos habitantes", as irmanda
cidades e com elas, da necessidade des desde cedo foram cooptadas pelo
que a população mineira teve, desde Estado, que as manipulava de cima
os primórdios, de se organizar e se para baixo. Concessões podiam ser
estruturar em terras sujeitas à insta feitas de parte a parte, refletindo a
bilidade, à imprevidência, à itinerân própria natureza do exercício do po
cia da empresa aurífera. Agregaram 'der nas Minas - grande jogo de
elementos pobres e de cor, sempre alternância entre violência e contem
leigos, para os quais representavam a porização -, mas havia momentos em
possibilidade de uma sepultura de que as posições se mostravam irredu
cente e afugentavam um pavor que tíveis. Em 1771, Pombal se empenha
encontrou expressão em trovas popu va em suprimir confrarias e irmanda
lares: des de natureza mais acentuadamente
popular, respeitando as referentes às
"Nêgo véio quando morre camadas superiores da população e,
vai na tumba do bangüê como tais, mais facilmente transfor-
RESENHAS •
139
máveis em instrumentos de defesa dos vidão por parte dos escravos, e Boschi
interesses do Estado. Na mesma épo faz suas as palavras de Carlos Orum·
ca, a realidade apontava em sentido mond de Andrade, para quem o obje
contrário: a maioria dos oragos (p. 62) tivo das irmandades foi "adormentar
invocava Nossa Senhora do Rosário, nos homens de cor o sentido de re
a santa querida dos negros. Para es· beldia, conduziodo-os para o êxtase
tes, as irmandades foram "um local
•
religioso" (cit. p. 171). Este é apenas
privilegiado de afirmação das identi· um dos lados da questão. Para além
dades culturais, étnicas ou sociais", da tensão entre a macrofísica e a mi
representando com freqüência meio crofísica do poder, as irmandades re·
de proteção contra os rigores do escra· presentaram um espaço privilegiado
vismo. Mas nem por isso perderam os para simbolizaçães, e talvez nestas es
traços de instituição européia identi· teja uma outra chave para a sua inte
ficada com a política colonizadora e, ligibilidade. Promovendo festas de
decorrentemente, com a escravidão. alto significado ritual - como o
Para Boschi, portanto, as irmanda· . Triunfo Eucarístico de 1733 -, patro
des acabaram sendo instrumento de cinando as artes - simbolizadoras
um sincretismo planeiado que escamo dentre todas as manifestações huma·
teava "o permanente conflito de clas nas -, traduziram cotidianamente na
ses ( . .. ) que permeou todo o período religião seus momentos de euforia, de
colonial" (p" 69). A clareza dos obje temor e de desespero, invocando então
tivos não impediu que o percurso os Passos da Paixão de Cristo e nele
fosse tortuoso: o Estado necessitava espelhando seus anseios de colonos es
das irmandades para "conservar a pezinhados.
tranqüilidade e a subordinação neces Ideologia e escravidão examina a
sária para os povos" (cil. p. 105), ao sociedade escravista da colônia sob
mesmo tempo em que elementos das enfoque diverso. Se Algranti e Bosehi
classes dominantes viam tais organiza vasculharam as relações de poder no
ções como criminosas, danosas aos Es seio da formação social. Vaiofas eeo
tados soberanos, pseudamente religio tra sua análise na produção dos letra
sas mas, na verdade, Uconventículos dos coloniais, nos escritos dos homens
sediciosos" que insuflavam as rebe que pensaram o escravismo de fins do
liões. século XVII a fins do século XVIII:
Os leigos e o poder é o mais ins· Antonio Vieira, Jorge Benci, André
tigante livro produzido pela historio João Antonil, Manuel Ribeiro Rocha,
grafia brasileira sobre as irmandades Nuno Marques Pereira. Algumas des
de Minas Gerais. Assentado em do tas visões se constituíram em ideolo
cumentação muitas vezes inédjta, le gias que acabaram penetrando a his
vantada em arquivos portugueses, é
toriografia da escravidão. Analisá-Ias,
simultaneamente um trabalho raro de
entender os motivos de sua força per
pesquisa empírica e de reflexão ana·
suasória e de sua perpetuação são
lítica. Parece·me, entretanto, muito
preso à expectativa da revolução es· objetivos básicos do estudo. Ao exe·
crava, ou seja, à perspectiva que as cutá-Io, Vainfas discute a produção
culta a sociabilidade negra do ponto historiográfica brasileira mais recente
de vista das possibilidades de produ sobre o assunto, procedimento comum
ção da revolta. As irmandades não também a Sílvia Lara, mas ausente
foram catapulta à negação da escra- nos dois autores antes examinados.
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sua análise na versão ideológica das não a sua venda, recusando-se a tra
letras na colônia, vendo o discurso balhar para senhores que não os agra
dos letrados como alternativo ao dis davam -, afirma serem esquemáticas
curso pragmático do mundo senhorial. muitas das análises reincadoras do
Há momentos em que a separação oao escravo e mostra que a contradição
é tão nítida, passível de ser esquema entre coisa e pessoa era permanente e
tizada: inseridos na regra corporativa se achava presente não apenas no dis-
RESENHAS 14 I
persuasIva.
contra os historiadores "vitimistas",
Na construção racional dos letrados
Lara dirigindo suas baterias contra
coloniais não se abria espaço à con·
estes e ainda contra os que integram a
tradição. Para o autor, isto explica o
"escola sociológica paulista". No ge
fato de Palmares aparecer minimiza
rai, a posição crítica de ambos é extre
do nestes escritos, o inimigo social
mamente fecunda e, de fato, aponta
muitas vezes convertido em inimigo
militar, retiranda.-se o potencial via· novos problemas. No livro de Vainfas,
lento e contestatário do quilombo cartesiano e, no limite, quase esque·
mático, as críticas e 8S posições apre
la para atribuírem-se-Ihe qualidades
guerreiras. No discurso dos letrados, sentam-se mais definidas. Já Sílvia
as contradições de classe foram, no li Lara fez uma opção deliberada pelo
mite, diluídas no projeto cristão as avesso dos esquemas, preferindo antes
sentado em base familiar. O projeto desn:ontar do que remontar. Este de
escravista-cristão dos jesuítas consti· salinho tem os seus encantos e tem os
tuiu, desta forma, O limite de cons seus senões. A estrutura mais nuida e
ciência possível no Brasil colonial. aberta suscita várias idéias. mas tam-
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,
público "porque estas duas instâncias vidão no Brasil. Evitam olhar ápenas
tinham objetivos divergentes em rela para O pólo co!onial e procuram as
ção 00 controle dos cativos, ainda que vinculações com a sociedade de An
pudessem estar associadas em mo tigo Regime. A fpoca Moderna foi o
mentos e circunstâncias específicas" momento da montagem dos aparelhos
(p. 340). O caráter público - do de poder. e sua atuação se fez sentir
méstico do escravo expressava·se no fundamente no Brasil colonial: na ar
fato de sua resistência se operar nes ticulação da Polícia do Rio de Janei
les dois níveis: "Tanto podia, na re ro, na constituição de irmandades de
lação direta com seu senhor, recusar· negros muitas vezes manietadas pelo
se ao trabalho, fugir ou conseguir sua Estado metropolitano, na estruturação
alfonia, quanto apelar para a instân das ordens missionárias - como a dos
cia judicial ou pública para questio jesuítas -, que nas colônias se torna
nar o poder de seu senhor ou conse fam também senhoras de escravos e
guir sua liberdade" (idem). As consi produtoras de uma ideologia escravis
derações de Lara lançam luz e com ta específica, na adoção de normas
pletam, desta forma, a problemática disciplinorcs que regiam as atitudes,
de Leila Algranti: a interferência do na endosso do castigo exemplar que,
Estado no relação senhor-escravo. no limite, atingia feição de suplício,
Situando-se numa espécie de de no constituição, enfic-" de uma peda
sembocadura, Campos da violência gogia do medo.
corresponde a um momento importan Quando Sílvia Lara se mostra con
le das pesquisas sobre escravidão no trária à separação das relações sociais
Brasil. Oferecendo uma alternativa à em relações de produção e representa
análise macroscópica da violência, ções feitas destas relações, po!emiza
chamando - como Algranti - a com as discussões da década passada
atenção para os fenômenos aparente acerca da viabilidade de tlm modo de
menle negligenciáveis, mostrando a produção colonial escravista. Sua crí
resistência molecular dos atos dos es tica bibliográfica, assim como a de
cravos no seio do escravismo, Sílvia Vainfas, revela que a violência do es
Lara politi... o enfoque do objeto e cravismo não pode ser analisada em
esclarece, de uma vez por todas, termos de juízo de valor nem unilate
acerca do equívoco das análises cen ralmente, sem que se considere a vio
Iradas na violência mais aparente. Se lência das relações escravistas como
a leitura dos discursos letrados é ir um todo. Viu-se atrás como Vainfas
retocável e definitiva, o aproveita mostra a força ideológica assumida
mento dos documentos às vezes deixa pelo discurso letrado, incorporado
a desejar, as transcrições se fazendo pela historiografia do século XX sem
muito constantes e nem sempre se ar· crivo analítico. Ao ler a sociedade es
ticulando com as formulações mais cravista pelo prisma das irmandades
leóricas. Mas estas são questões de ou da escravidão urbana, Caio Bos
forma q�e em nada comprometem o chi e Leila Algranti comprovam que a
brilho do todo. natureza das cidades coloniais é
Em grau variável, todos os traba essencialmente escravista e elucidado
lhos aqui analisados procuram um ca ra do escravismo colonial. Pesquisa
minho novo para se entender a escra· documental cuidadosa, análise detida
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dos textos, paciência em enfrentar ar mostrar, em bloco, como ler a escra
quivos brasileiros e portugueses e vidão sob a luz de métodos renovados.
apreço pela narrativa histórica são ou
tros traços comuns destes trabalhos_ Laura Mello e Souza é professora do De
Dando seqüência e muitas vezes pole partamento de História da Universidade
mizando com os estudos sociológicos de São Paulo e autora do livro O diabo
e a Terra de Santa Cruz; feitiçaria e
mais gerais das décadas anteriores, os religiosidade popular no Brasil colonial
historiadores brasileiros começam a (São Paulo, Companhia das Letras, 1986) .