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Capítulo Dois - Boatos da Taverna

Royce não poderia dizer ao certo o que é que tanto lhe atormentava. Isolado em um canto da
taverna, observava tudo ao seu redor com o mesmo olhar frio que dirigia a um inimigo no
campo de batalha. Afinal, não podia dizer que se encontrava realmente entre amigos.

Naquele momento, Colin o observava em silêncio. Royce brincava com a caneca, passando o
dedo de leve na borda do copo vazio, fingindo até então que não prestava atenção aos olhos
negros do homem que estava sentado ao seu lado. Para qualquer estranho, Royce poderia
parecer apenas mais um soldado de aspecto sombrio, mas para Colin que já o conhecia há
anos, sabia que todo aquele mau humor de devia a um único motivo.

Colin era três anos mais velhos, e as pessoas sempre diziam não enxergar muita diferença entre
um e outro. Os dois tinham a mesma altura e portes invejáveis, frutos de anos de treinamento.
Mas enquanto o cabelo de Royce era de um loiro quase tão branco quanto uma nuvem, os de
Colin eram negros como a noite. Como conseqüência da guerra e da falta de tempo que ela
proporcionava para um homem, tinham a cabeleira bem abaixo dos ombros. Naquele momento
Royce mantinha os fios amarrados em um rabo, dando destaque para o rosto, enquanto Colin
sempre tinha o hábito de deixá-los soltos. Mesmo desse modo os olhos verdes se realçavam
sobre as grossas sobrancelhas. Com tantas dessemelhanças, não demorou a entender porque
diziam que eram tão parecidos. Fisicamente eram diferentes, e muito. Por dentro, eram como
irmãos gêmeos. E, naquele momento, Royce estava com vontade de matar o seu irmão.

Não sabia qual dos dois era mais tolo: Ele, por ter se deixado arrastar para aquela taberna, ou
Colin, por pensar que ele poderia perder a calma num lugar daqueles.

Havia pelo menos vinte homens na taverna, espalhados nas mesas de carvalho e outros poucos
acotovelados na curvada bancada que percorria todo o lado direito da grande sala. Quando o
soldado Royce apareceu na soleira, o homem atrás da bancada o olhava boquiaberto. Mas não
era só ele, e de repente, sentiu-se como um homem de três cabeças. Não tinha dúvidas que
estava sendo atração por ali, uma vez que ele próprio sabia sobre seu apelido de “Royce, o
solitário”. Todos os outros soldados conheciam Royce Malfoy o suficiente para saber que ele
não gostava de se misturar. E, se não fosse por Colin que o tinha arrastado até ali sob ameaça,
teria ido embora ao mesmo instante em que entrou.

- Venha – afirmou Colin, puxando-o pela manga da túnica verde – Vamos nos sentar ali.

Quase uma hora depois e três copos de cerveja esvaziada, o movimento convenientemente
tendeu a cair. Com isso, foram-se também a maioria dos olhares curiosos. Pouco tempo depois
e ninguém mais parecia surpreendido que Royce Malfoy tivesse decidido se juntar com simples
relés mortais. Royce tinha quase certeza que o fato de estar acompanhado a Colin que ia lá com
freqüência, tinha ajudado para isso.

- Será que dá pra parar com isso? – sussurrou Colin, olhando para o copo em que Royce
brincava – Está me dando nos nervos.

- Se está irritado, podemos ir embora. Não sugeri que viéssemos.

Pelo canto do olho, viu que Colin fez um gesto de negação.


- Nem pensar – afirmou o amigo, com convicção – Quero terminar de ouvir. Foi para isso que
viemos.

Já tinha alguns minutos que Colin insistia em prestar atenção a uma conversa na mesa ao lado.
Royce revirou os olhos, não acreditando que o amigo estivesse se prestando aquele papel
ridículo. Ele por outro lado não estava interessado, pois sabia exatamente o que se costumava
discutir naqueles tipos de conversa. Todos sabiam.

Os bruxos eram o assunto principal em uma roda de amigos numa taberna. Ultimamente em
cada canto, fosse em uma taverna, em um castelo, ou até mesmo no campo de batalha, Royce
podia ouvir os murmúrios sobre os indícios de “homens poderosos que viviam entre os mortais”
– era assim que a maioria costumava descrevê-los. E quando o assunto começava, raramente
alguém conseguia parar.

- Ouvi dizer que vieram do sul – disse um rapaz jovem, baixinho, que havia lutado ao lado de
Royce – Estão tentando se misturar no meio dos ingleses.

- Isso é mentira! – gritou o outro, com uma pontada de receio – Ninguém pode dizer que são
realmente bruxos!

Houve alguns murmúrios em volta, concordando com a afirmação.

- Não? – voltou a dizer o rapaz jovem – Pois eu tenho lá minhas dúvidas. Estão se tornando uma
praga desde que chegaram aqui, só semana passada foram dois campos inteiros destruídos!

- Você está se esquecendo das aldeias saqueadas – avisou um – Houve uma aldeã que
sobreviveu ao ataque. Ela chegou a dois dias em Trontsville e contou tudo. Um deles queimou a
casa dela apenas com os olhos!

- Olhos? Você está certo disso?

- Confio em minha fontes – respondeu o homem, com um ligeiro olhar de desdém, como se
não acreditasse que alguém poderia desconfiar do que ele estava dizendo.

Royce revirou os olhos, divertindo-se com a ignorância alheia. Se conteve para não deixar
escapar uma sonora gargalhada. Boatos, esse era com certeza a fonte do rapaz. Até então – e
ele ignorava o fato de que havia voltado para o lar não tinham nem um dia – Royce nunca tinha
ouvido falar de “imigrantes bruxos”. Por um momento, lembrou-se que o clã de Terried se
encontrava exatamente ao sul, e pensou se um dos homens dele não teria feito algo além da
conta que pudesse ter chamado a atenção. Sempre havia um engraçadinho por ali que gostava
de colocar suas habilidades com a varinha em prática, mas, ao mesmo tempo, a simples idéia de
ver um deles dizimando uma aldeia por pilhagem lhe parecia impossível. Olhando para Colin,
podia adivinhar que ele havia pensado o mesmo.

- Só de pensar que estão vivendo entre nós já me sinto apavorado – admitiu um terceiro
homem – Não voltamos de uma guerra para agora nos preocuparmos em travar outra com
esses homens!

- Homens? – gritou agora um desconhecido – Esses bandos não são humanos! São monstros!
Destroem tudo por onde passam!
- Ora, John, - reprimiu o amigo - Não se esqueça dos boatos. Dizem que muitos deles
trabalham para Guilherme. Até mesmo cheguei a pensar que aquele Terried podia ser um deles.

- Não sei, não imagino Terried um bruxo. – falou o homem - Já pensou que Guilherme pode
não ter conhecimento que entre seus soldados existem esses... animais? Não consigo pensar
que eles trabalhem ao nosso lado, se misturando com a gente.

O gesto de concordância foi geral entre os demais presentes.

- Nicolas disse que viu um com os próprios olhos na guerra. Era escocês. Matou quatro homens
nossos em questão de segundos.

Todos voltaram-se imediatamente para o homem sentado em um extremo da mesa. Royce


sempre acreditava que Nicolas podia mentir com grande habilidade, mas dessa vez, não
duvidava de sua palavra. Um bruxo era mesmo capaz de cometer tal ato, quando quisesse.

- Se eu visse um bruxo agora, acabaria com ele. – disse o homem, estufando o peito com
orgulho – Guilherme deveria caçá-los como porcos. Esses renegados se escondem porque
sabem que não são fortes o suficiente para a gente. É uma pena não ter nenhum aqui agora!

Parecia que a provocação era dirigida exatamente a mesa deles. Os lábios dele se contraíam,
frios. Seu temperamento forte nunca fora muito útil quando se tratava de esquivar-se em
brigas. Colin percebeu quando os olhos cerraram-se na medida em que as gargalhadas
começaram a ecoar pela taberna.

- Royce, escute. – avisou Colin, - Não vale à pena.

- Ele não lamenta por não encontrar um bruxo? Vou dar esse gostinho a ele.

Royce estava prestes a se levantar, quando Colin o puxou pelo braço.

- Fique sentado – ordenou ele – Não quero ser o responsável por ter que detê-lo, mas farei se
for preciso.

- Me solte – disse friamente sem olhá-lo.

Estavam chamando a atenção. Os homens que antes conversavam agora tinham parado para
observar a cena. Percebendo, Royce cedeu, sentando-se novamente.

- Assim está melhor. – falou Colin – Na verdade, não sei se iria mesmo impedi-lo. Estou no
ensejo de fazer o mesmo. – lançou um olhar de raiva para os três outros homens sentados, que
agora se distraíam com as próprias canecas de cerveja.

- Não vou tolerar isso. – falou Royce - Eu carrego o brasão de Guilherme no meu peito!

- Acha que isso faz alguma diferença a eles? Por favor, me poupe de seus momentos de glória.
Todos aqui servimos ao mesmo propósito. Você, eu, Medrick, Angus...

- E esses idiotas – completou, indicando a mesa ao lado.

- Esses idiotas são necessários para seu grande renome. São peões enquanto nós somos as
torres, Royce. Lembre-se disso quando quiser matar um deles.

O silêncio reinou por algum momento, enquanto se concentravam nas cervejas amargas e frias.
Olhando para o seu copo, Royce daria tudo por uma cerveja amanteigada. Permitiu-se por um
momento se distrair, pensando naquela mais nova invenção de Angus. Tinha-o criado antes que
Royce precisasse partir para a guerra. Colin e Royce consideravam Angus como um pai, apesar
do pouco tempo para visitar o ancião. Royce gostava de ouvir seus conselhos, e Colin estava
sempre pronto para lhe contar seus feitios durantes às batalhas. Desta vez - pensou ele - os
dois teriam bastantes histórias para contar ao ferreiro.

Nunca chegara provar a bebida ¹ de Angus, mas o drinque que levava uma mistura de chás,
manteiga e açúcar mascavo , parecia-lhe melhor do que aquilo que estava tomando. E Angus
havia prometido que seu precioso drinque tinha o dom de “esquentar” a alma. Era tudo o que
Royce estava precisando no momento.

- Colin, será que não ouviu o suficiente? – perguntou irritado, impulsionado pelos próprios
pensamentos.

- Calma, Royce. – pediu ele - Sempre há o gran finale. Quero saber o que aconteceu por aqui
durante esses três anos.

Royce estava certo de que não tinha mais nada para ouvir. Por um momento, pensou melhor...
talvez, uma vez ou outra, tivesse escutado sobre bruxos que vinham do sul. Não poderia dizer
se sabia ao certo, pois, nos campos de batalha, ao cair da noite, soldados se reuniam para
discutir sobre os bruxos. Era nesse momento que Colin, Royce, assim como muitos outros,
mantinham-se afastados para a própria segurança. Temiam em falar mais do que deveriam.
Afinal, era comum que todos estivessem curiosos para saberem mais sobre eles.

Quem começara os boatos, Royce não sabia dizer. No entanto, tinha quase certeza que a culpa
daquilo tudo vinha de inimigos, e não dos próprios companheiros. Guilherme em seu reinado
jamais permitiria que uma guerra entre seu povo começasse, disso estava certo. Por isso, não
restava dúvida que os atraques provinham de estrangeiros.

Uma voz subitamente o despertou de seus devaneios.

- Ei, Royce – disse , pegando-o de surpresa – Sua espada não foi feita pelas mãos dele? –
Nicolas Grant havia perguntado, e agora subitamente todos os rostos da taverna haviam se
voltado para ele. Royce o examinou por algum momento, sem entender.

- Do que está falando? – perguntou rispidamente.

- Angus! Do que mais acha que estamos falando?

O som daquele nome sendo pronunciado subitamente lhe deixou preocupado.

- Não estava prestando atenção na sua conversa – afirmou ele. Não tinha vontade de se dirigir a
Nick, mas mesmo assim, concordou – Sim. Minha espada foi feita pelas mãos dele.

Nicolas olhou para a lâmina afiada que pendia ao lado do quadril de Royce, e soltou um
assobio de aprovação.
- É uma pena que ele não possa mais fazer armas como essas – disse, com evidente sarcasmo.

- Porquê? – perguntou Colin, que nunca havia se importado com os mexericos de Nick.

- Por onde andaram desde que voltaram para casa? – perguntou Nicolas, espantado -
Realmente não estão sabendo, não é?

- Não tivemos tempo de circular por aí para ouvir os rumores, Nicolas – afirmou Colin, entre
dentes. – E do que, exatamente, não estamos sabendo?

Grant sacudiu a cabeça, fingindo-se desapontado.

- Angus ficou cego há duas semanas.

Algo na voz dele lhe disse que não estava lamentando. Colin empalideceu de repente,
assimilando a notícia. Angus, cego... Royce não sabia o que pensar.

- O que exatamente, aconteceu? - as palavras de Colin saíram falhadas, sem nenhuma emoção.

- As pessoas estavam com medo de Angus. Você sabia que ele pode ser um dos... bruxos?

Não foi preciso dizer mais nada. Tinha entendido tudo. Royce sentiu o sangue ferver de ódio
em seu corpo.

- Quem cometeu essa barbárie? – perguntou, pronto para sair atrás do homem e matá-lo com
suas próprias mãos.

- Não foram os próprios aldeões se é isso que quer saber – explicou Nicolas, - pois acreditam
que Angus não tenha ligação com eles. Não sei de nomes. Angus estava há duas semanas fora,
em uma vila onde os ataques estão começando a ser constante. Um grupo o acusou de
participar da chacina que estão fazendo com os aldeões.

- E por isso, o puniram? Sem um julgamento? – Royce estava quase gritando.

- Foi um aviso. – Nicolas esclareceu de um jeito que parecia fazer toda a diferença - Se ele
voltasse a aparecer nas terras dele, eles o queimariam na fogueira.

- Isso é ilegal. – vociferou Colin - Não podem queimar pessoas na fogueira!

- Parece que dessa vez as pessoas irão abrir uma exceção.

A máscara inexpressiva de Royce tornou-se um rosto de ódio. Cerrando os punhos, ele esperou
que os homens continuassem a se explicar.

- Qual é Royce, ele pode ser um bruxo! – John exclamou.

- E isso faz dele culpado?

- Certamente que sim. – declarou ele, não notando que estava correndo um grande risco ao
dizer aquelas palavras para Royce.
- O Rei toma conhecimento disto? – perguntou Colin, incrédulo.

Houve um grande silêncio antes de Nicolas responder.

- Você sabe que estávamos três anos longe de casa. É difícil saber se Guilherme toma algum
conhecimento. Mas... eu não duvidaria muito. Se Guilherme aceita esses homens consigo, por
um lado não mostra muito o seu afeto por eles.

John fez um gesto de descaso.

- Se Angus for mesmo um bruxo, então não só mereceu seu castigo como merece ser queimado
na fogueira assim como o bando de renegados que estão se infestando sobre o sul. E eu estarei
pessoalmente lá para assisti-lo no dia de sua morte.

Pronto. Aquilo era demais para Royce.

Nada mais importava quando tirou a varinha por debaixo da capa. Mas no mesmo instante em
que agiu, duas mãos fortes o agarram e o jogaram de volta a cadeira. Um barulho rompeu nos
ouvidos de Royce, e antes que se desse conta, viu John estatelado no chão. Surpreso com a
cena, olhou para Colin.

O amigo empunhava a varinha para os ocupantes da mesa ao lado. Todo o corpo estava rígido,
em posição de ataque. Sulcos haviam brotado de seu rosto, e não era preciso ser um gênio para
adivinhar que Colin tentava se controlar para não dar o mesmo destino aos outros quatros
homens. Não sabia dizer se era medo ou surpresa que estampada as feições deles.

Tentou controlar a própria raiva, pois sabia que era ele quem teria que agir naquele momento
se não quisesse ver o amigo em apuros. E, pelo rosto de Colin, teria que ser rápido.

- Muito bem, alguém mais gostaria de enfrentar um bruxo? – Colin falou.

- Deus! – gritou o estaleiro, surpreso quando viu a varinha na mão de Colin, levando
imediatamente as mãos a altura do rosto, como se estivesse sendo assaltado – Bruxos! Vocês
não são bem vindos aq... – mas calou-se quando Colin mudou seu alvo em direção a ele.

- E então, Colin. – murmurou Royce, os olhos percorrendo de um rosto a outro, parando no


amigo - Acha que agora ouviu o bastante para lhe satisfazer a curiosidade?

- Sim. – foi só o que murmurou, sem desviar a atenção dos alvos.

- Então sugiro que baixe isso – ele pediu, cauteloso – Não temos mais nada para fazer aqui.

Colin lentamente cedeu, para o alívio de Royce. Não que talvez isso pudesse fazer alguma
diferença, pois, de uma forma ou de outra, ele já estava se preparando para usar do feitiço de
obliviate.

- A propósito: Ele não está morto. – disse Royce, apontando para o corpo - Mas vai ficar fora de
circulação por algumas horas. – ressaltou, antes de murmurar o feitiço para que todos
esquecessem subitamente daquela cena.

Ao abrir a porta, uma rajada de vento entrou pela fresta, levantando o pó do chão de terra
batida. Já lá fora e arrastando Colin consigo, Royce permitiu-se observar o luar da noite. Uma
brisa suave, branda, relaxou os ombros rígidos e doloridos do soldado. A atmosfera era até
saudável, comparado a toda tensão que estavam tendo lá dentro há algum tempo. Mas,
olhando para Colin andando de um lado para o outro, percebeu que nada poderia acalmar a
preocupação do rapaz.

Sem a necessidade de trocarem alguma palavra, os dois caminharam em silêncio até que o
barulho da estalagem se transformasse em apenas um murmúrio de vozes distante. Um grupo
de homens rodopiava pelo campo junto a uma moça, visivelmente bêbados. Quando passaram
por eles, a moça simplesmente se atirou sobre os braços de Royce, como um objeto pesado.
Royce se desvencilhou a tempo de provocar uma confusão, se sentido enjoado com aquela
cena. Não havia nada pior do que um bando de trouxas que curtiam uma farra por estarem de
volta em casa.

Royce vivia com pessoas comuns há muito tempo para saber como agiam. Para ele, nada do
que faziam para se distrair o atraía. Muitos naquela noite estavam fora de suas casas, festejando
a volta dos soldados que sobreviveram ao martírio de três anos. Contrariado Royce tinha feito o
mesmo quando Colin o decidiu arrastar para a estalagem em vez de permitir que voltasse para
seu pequeno quartinho de fundo atrás de um estábulo. Apesar das provocações do amigo,
Royce jamais trocaria o lugar pelas acomodações da corte. Odiava pensar em viver entre os
burgueses.

Apesar de tudo, aquela noite ele havia se igualado a muitos que procuram uma cerveja em uma
roda de colegas. Ou como muito outros, e esse era o caso – que tentavam descobrir as
“novidades” que circulavam pela vila. E sobre o que tinha ouvido, Royce não sabia o que pensar.
Era como se as informações ainda demorassem um pouco para serem assimiladas.

Inconscientemente eles haviam avançado até a floresta. Era o único lugar onde poderiam
conversar sem interrupções. Acostumado aos dez anos, para Royce, as matas era quase uma
espécie de segunda casa. Conheci-a como a palma de sua mão, explorando as partes e
familiarizando cada esconderijo que, dez anos depois, dera-lhe a vantagem de ser um soldado
mais do que experiente no assunto.

Quando chegaram próximo ao riacho, Colin parou de repente, e se voltou para ele. Seu rosto
mostrava-se preocupado pelos mexericos que haviam escutado na estalagem. Antes que
começasse a falar, Royce exclamou:

- Muito bem. O que aconteceu com o “não vale a pena, Royce”? – disse, forçando uma voz
grossa para se igualar a de Colin.

Colin revirou os olhos e fez um gesto de descaso.

- Me poupe de seus sermões – pediu ele – Não fiz muito, perto do que você desejaria fazer com
aqueles homens.

O sorriso brotou nos lábios de Royce.

- Tem razão. – concordou – Mas não precisava ter ficado com toda a diversão. Podia ter me
deixado derrubá-lo naquele momento.

A atitude fria de Colin mostrou que não achava nenhum pouco engraçado aquele comentário.
- Está levando na brincadeira, Royce? Eu luto por três anos, e o mínimo que eu espero é
encontrar um pouco de paz por aqui!

Royce meneou a cabeça, distraindo-se com um graveto no chão em que brincava com a ponta
do pé. Era incrível que, de uma hora para outra, sua raiva pudesse ter diminuído assim tão
rápido.

- Acho que está dando uma ênfase maior do que a necessária. Não me parece muito ruim o que
eu ouvi – mas a verdade é que ele estava tão preocupado quanto Colin.

- Não? Os homens que estavam lá dentro são os que trabalham na corte. São da linha de frente
como nós, da elite, se assim eu posso dizer. Se tivéssemos ouvido de aldeões eu não teria
colocado muita fé, mas eles sabem exatamente o que estão dizendo. Acha que podem ser
bruxos ingleses?

- Acho pouco provável. Você mesmo ouviu o que disseram: “vieram do sul”. Quer dizer que
ninguém os tinham notado por aqui antes. Se for realmente verdade o que estão dizendo por
aí, então são rostos novos.

- Mas e sobre Terried? Ele mora no sul, não mora? Pode ter provocado alguma coisa nesses
últimos anos. Sempre achei aquele sujeitinho um tanto arrogante.

- Terried nunca recebeu boa fama, mas é um bom homem. – as palavras saíram artificiais, e
Colin franziu o cenho, surpreso com a declaração - É prudente demais para cometer uma
besteira dessas. Não, não acho que ele tenha alguma participação nisso tudo. Mestre o comeria
vivo se soubesse que alguém do clã de Terried está tentando dar uma de rebelde e colocar as
“maguinhas” de fora apenas para se exibir.

- Seja como for, vamos descobrir amanhã.

Royce franziu o cenho.

- Do que está falando? – perguntou surpreso.

- Nós vamos amanhã até o sul fazer uma visita a Terried. – respondeu, como se fosse a resposta
mais óbvia do mundo.

No mesmo instante, Royce começou a gritar.

- Uma ova que vamos!

Ao contrário da reação de Royce, Colin soltou uma gargalhada diante ao comentário.

- Pensei que ele havia dito que era um homem bom. – desdenhou ele.

- Eu já disse que não vou. – repetiu, em tom de ameaça, ignorando-o - Vá você.

- Royce, não seja idiota! Está se comportando como uma criança birrenta. Não acredito que
ainda esteja ressentido pelo o que aconteceu entre você e Terried. Já faz tanto tempo!
- Doze anos, especificamente. – explicou ele, como se não fosse muito - Depois que voltamos
daquela visitinha ao Egito. – remoeu a lembrança com amargura. Dois dias depois, Royce havia
sido expulso de seu próprio clã.

- No momento não dá para pensar nisso – avisou Colin – Sei que você e Terried nunca irão se
entender, mas agora precisamos deixar as desavenças de lado. Não gostei do que ouvi na
estalagem, e estou preocupado.

- O que não é o suficiente para que eu me rebaixe e volte para o sul. Já pensou no fato de ele
não querer me receber?

- Ele não terá escolha – e, vendo a pergunta estampada no rosto de Roce, explicou – Já se
esqueceu do que os outros bruxos fazem depois que retornam da guerra?

- Aposto que não se juntam em estalagens para ouvir fofocas – lembrou Royce, com amargura.

Colin ignorou o comentário.

- Eles se reúnem em um congresso um dia depois da volta dos soldados. Todos os clãs da
região se reúnem e se encontram para discutirem a situação dos bruxos ingleses perante
Guilherme. Haverá muitas pessoas amanhã, e Terried não terá outra escolha se não deixar que
você participe da assembléia.

- Pois eu não vou.

Colin esboçou um sorriso, em tom de desafio.

- Você vai Royce, nem que eu precise levá-lo arrastado atrás de meu cavalo. E juro que farei
isso.

Royce franziu o cenho diante ao comentário. Tinham o mesmo porte físico, a mesma força, e
praticamente foram criados juntos. No entanto, três anos mais velho, e Colin sempre tinha se
achado no direito de tratá-lo como um filho malcriado.

- E então, Royce?

Alguns segundos se passaram antes que Royce respondesse.

- Está bem. Quero esclarecer está história. Mas não espere por um tapete vermelho amanhã.

Colin concordou, enquanto jogava pedrinhas no riacho.

- Isso me faz lembrar que temos outro assunto a resolver antes de partimos para o sul: Angus.
Vamos vê-lo amanhã pela manhã.

Royce sentiu uma agitação passar pelo corpo. Não tinha pensado no amigo desde que saíra da
estalagem.

- John falou sobre queimar bruxos. Não há uma lei que impeça isso, há?

- Não. Apenas um papel que para mim não significa muita coisa.
Royce olhou para ele, espantado.

- Está falando sobre os Registros de Regis? Colin, esse “papel” é o que nos ajudaria acaso
começasse uma guerra entre bruxos e esses... esses trouxas! – conseguiu dizer, sem encontrar
outro adjetivo mais adequado no momento.

- Pois eu acho que é exatamente isto o que está para acontecer, Royce. Nossa identidade já não
é mais nenhum segredo. Posso ver que estamos prestes a começar uma guerra. E da piores.

- Não acho que possamos chegar a tanto. – falou, com sinceridade.

Mas no fundo, bem no fundo, não estava tão certo de suas palavras.

=**=

O fogo queimava a palha em uma investida impetuosa, agressiva, espalhando as brasas pelo
véu negro que se estendia acima dos homens. O bruxo observava, em silêncio.

Toda a vila tinha sido queimada. Mais uma. Diferente das outras vezes, não tinha intenções de
deixar os moradores impunes. Um simples fogaréu não era um castigo - disso ele sabia bem.
Uma ou duas semanas, e todos reconstruiriam suas casas novamente. Não - pensou ele, com
uma ligeira ansiedade. Esses homens precisavam de uma punição. E uma da qual jamais se
esqueceriam...

O bruxo, montado em seu garanhão de porte negro, altivo e vigoroso, contemplava a sua
própria obra prima: O fogo havia simplesmente se alastrado por muitos metros além da aldeia,
queimando não só as casas, como as plantações e punindo o solo fértil da região. Satisfeito,
seus lábios se contorceram em um leve sorriso.

Na realidade, queria rir as gargalhadas. Mas não se atreveu a emitir som algum. No fundo de
seu coração, intuía que um comportamento tão indigno o faria parecer com um monstro mais
do que com um homem e, certamente, não era essa a imagem que queria passar a seus
seguidores. Afinal, era um homem, não um animal.

Como qualquer um procurava uma gratificação pessoal. Um caminho em sua vida na qual
pudesse seguir em frente, sem questionar os valores disto. Não se envergonhava pelo que
estava fazendo com aquelas pessoas, que agora corriam desesperadas sem direção, rostos
agoniados tentando fugir como crianças apavoradas pela perseguição de seus homens. Era
inútil que ainda pensassem em alguma chance de poderem escapar.

Desde cedo estavam ciente de que aquela aldeia era muita próxima aos campos de Terried.
Logo mais, e seus homens teriam companhias. A idéia de uma luta era mais do que tentadora, e
não duvidava que, se quisesse, sairia vitorioso. Mesmo que para ele a idéia de lutar com outros
bruxos não o agradasse do mesmo modo em que sentia o prazer de mostrar a aqueles aldeões
quem estava no comando.

Talvez estes fossem exatamente sua gratificação. Não concebia a idéia de receber ordens de
gente comum, e jamais se sujeitaria a isso. Mas também havia algo mais – outra vez
experimentava essa excitação, a magnífica euforia que tinha vivido quando começou com os
ataques... Oh sim. Dessa vez, esse tinha sido melhor.
Quando um de seus seguidores apareceu em sua frente, toda a magia do fogo e da vasta
destruição foram subitamente deixadas de lado. Ao olhar para o homem, de repente, sentiu-se
como um idiota conduzindo um bando de crianças. Claro que no meio de seus homens havia
soldados poderosos, mas a maioria não passavam de aprendizes que ainda teriam um longo
caminho para trilhar. Aquele era um deles.

- O que pensa que está fazendo? – perguntou ele, enquanto observava a aldeã acorrentada aos
pés dele. Sentiu uma repulsa inexplicável ao ver seu soldado afagar os cabelos loiros dela, como
um pai que consola uma criança.

- Acho que vou pegá-la como minha escrava – parecia que falava de um prêmio que havia
conquistado com muito suor.

O bruxo revirou os olhos. Amadores. Ainda tinham muito que aprender.

- São trouxas, nada mais do que isso. Não servem para nada. Mate-a.

Viu o rosto contrariado de seu homem, mas sabia que ele obedeceria à ordem se hesitar.
Sempre o obedeciam cegamente, assim como Terried e outros obedeciam a Guilherme. Ele
jamais se curvaria a outro homem que não fosse um bruxo.

Ao invés da varinha, o outro bruxo retirou a espada de sua cintura. A mulher tentou se debater,
mas era inútil. Quando estava prestes a receber o golpe, novamente o bruxo ouviu uma
segunda ordem.

- Deixe-a viver.

O soldado olhou confuso para ele.

- Mas você acabou de dizer...

- Mudei de idéia – disse, tendo em mente outro destino para aquela mulher – Traga-a aqui.

Relutante, ele obedeceu à ordem. A mulher fora colocada aos pés do cavalo, como um saco de
farinhas. O bruxo a observou por um instante, antes de falar.

- Ficara encarregada de espalhar por aí o que aconteceu com a sua aldeia. Vão fazê-la falar,
então, se perguntarem sobre o rostos, você marcará bem o meu para lhes contar em detalhe. Se
pedirem um relato, então você contara minuciosamente como homens poderosos destruíram
tudo. E se perguntarem nomes... – hesitou por um instante, sentindo um tremor em seu corpo –
Então você falará que o intitulado “Mestre” esteve aqui.

Pronunciou as últimas palavras de forma lenta e saborosa, de modo que a fizesse entender. Era
necessário que ela transmitisse a alguém seu recado. Olhando para ela, percebeu que a
prisioneira daria o recado no mesmo instante em que fosse liberada. E quando isto
acontecesse...

Deus! Quando isto acontecesse, então o clã de Terried teria uma grande e inesperada surpresa...

O mestre esperou que a mulher desaparecesse na floresta, antes de ordenar a seus homens que
batessem em retirada. Afinal, precisavam descansar o resto da noite.

Para que repetissem seus feitios amanhã.

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