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tência de uma idéia capaz de trazer para a sua órbita filmes, espetácu-
los e instalações, como se estes não tivessem sido frutos de discussões
e caminhos próprios.
Reconhecer tal procedimento é também constatar que o estudo
cuidadoso das obras qualificadas como tropicalistas, na maioria das
vezes, traz à tona a singularidade do processo e das motivações que
propiciaram sua realização. No que diz respeito ao Teatro Oficina e à
encenação de O rei da vela, as análises geralmente evidenciam tal tra-
jetória, isto é, o impacto que o filme Terra em transe teve entre os inte-
grantes do grupo, ao lado da recuperação de Oswald de Andrade e de
seus escritos para os debates da década de 1960.5
Tais referências ao filme de Glauber Rocha começaram a cons-
truir o elo entre este e o espetáculo O rei da vela, principalmente no
que se refere à existência de perspectivas de redimensionamento das
interpretações sociais, políticas e estéticas sobre o Brasil daquele pe-
ríodo. Posteriormente, esta cadeia de referências ganhou um elo, que
contribuiu de maneira definitiva para a elaboração de uma idéia de
Tropicalismo, advindo das ponderações de Caetano Veloso sobre a in-
corporação de suas expectativas estéticas nestes trabalhos e na obra de
Oswald de Andrade, em particular, como revelou em uma entrevista
ao poeta Augusto de Campos:
Telles, Amir Haddad, Moracy do Val, Jairo Arco e Flexa, entre outros, o
Teatro Oficina surgiu encenando peças escritas por seus próprios com-
ponentes, como A Ponte, de Carlos Queiroz Telles, e Vento forte para
um papagaio subir, de José Celso Martinez Corrêa, em pequenos espa-
ços ou em residências particulares. Desse ponto de vista, o seu nasci-
mento não foi marcado por nenhuma iniciativa de transformar a cena
teatral no País, de maneira distinta do Teatro de Arena, que buscou sis-
tematicamente a constituição de uma dramaturgia e de um teatro na-
cionais, comprometidos com as lutas de segmentos subalternos da so-
ciedade brasileira.
Em verdade, neste período, a sua produção pode ser considerada
híbrida, uma vez que não possibilitou a constituição de uma “identi-
dade”. Pelo contrário, esta se afirmou muito mais pela presença de seus
componentes do que pela existência de uma perspectiva definida de
atuação. Nesse período, ainda próximo dos integrantes do Arena, o
grupo encenou Fogo frio (Benedito Ruy Barbosa), sob a direção de Au-
gusto Boal, e A engrenagem (roteiro cinematográfico de Jean-Paul Sar-
tre adaptado por Boal e Zé Celso), na temporada de 1959-1960.
Assim, em meio a um debate que envolveu as idéias nacionalistas
do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), as perspectivas de
revolução democrático-burguesa, defendidas pelos segmentos progres-
sistas da sociedade, e as teses do engajamento político, advogadas pelo
mencionado filósofo francês, o Oficina assumiu o caminho da profis-
sionalização. No período anterior a 1964, encenou textos de diferentes
dramaturgos, entre os quais estiveram Augusto Boal, Clifford Odetts,
Tennessee Williams,Valentin Katáiev. Concomitantemente a estas mon-
tagens, foi ministrado um curso voltado para a interpretação, sob a res-
ponsabilidade de Eugênio Kusnet, ator russo radicado no Brasil, a par-
tir dos ensinamentos de Konstantin Stanislavski.
O resultado deste empreendimento teórico e prático foi, em
1963, o espetáculo Pequenos burgueses (Máximo Gorki), que na
ção coletiva Gracias señor. Neste mesmo ano, um novo grupo começou
a emergir e apresentou O casamento do pequeno burguês (Bertolt Brecht),
direção de Luís Antonio Martinez Corrêa, e Três irmãs (Anton Tche-
cov), direção de Zé Celso. Em 1974 houve novas criações coletivas para
os espetáculos As criadas (Jean Genet) e Ex-amor, um caso de polícia
(Luiz Fernando Guimarães). Neste mesmo ano o teatro foi invadido,
sob a acusação de tráfico de drogas. Vários membros foram presos, en-
tre eles Zé Celso. Após noventa e três dias foram absolvidos e Zé Celso
partiu para Portugal. Em meio a essas produções, não se deve esquecer
que em 1968 Zé Celso dirigiu, fora do Oficina, o espetáculo Roda viva
(Chico Buarque de Hollanda), bem como no decorrer de 1970 foi ro-
dado o filme Prata palomares, projeto no qual estiveram envolvidos mais
diretamente Renato Borghi, Ítala Nandi e André Faria.
uma guerra contra a cultura oficial, a cultura do consumo fácil. Pois com
o consumo não só se vende o produto mas também se compra a cons-
ciência do consumidor (...). Um filme como Terra em transe, dentro do
pequeno público que o assistiu e que o entendeu, tem muito mais eficá-
cia política do que mil e um filmecos politizantes. Terra em transe é po-
sitivo exatamente porque coloca quem se comunica com o filme em es-
tado de tensão e de necessidade de criação neste país.12
O PROCESSO DE RADICALIZAÇÃO
DA CENA TEATRAL DO OFICINA
to, em princípio, era uma peça bem simples, com uma estrutura dra-
mática pouco desenvolvida. As personagens não eram complexas, as
situações e condições sociais eram primárias e de narrativa pouco so-
fisticada, com seus objetivos expostos de maneira simples e direta: mos-
trar que na sociedade de consumo as expectativas e os ídolos são fabri-
cados para que com eles o público se identifique. Todavia, este texto
ingênuo, sob o aspecto dramático, nas mãos de Zé Celso ganhou di-
mensões agressivas, com o intuito de radicalizar a cena, transgredir os
limites entre palco/platéia, e principalmente romper com a idéia do
teatro como contemplação. Instaurou, assim, uma proposta que ficou
conhecida como teatro de agressão:
O corpo social de 68 ainda está preso. Não há anistia para ele. Ainda há
exilados e banidos; e os que ficaram só podem se exprimir caretamente.
Qualquer assunto dessa época será portanto (sic) tratado sem a sua com-
ponente decisiva. Se os discursos não partirem dessa realidade física e
tentarem enquadrar as coisas em escolas, modos, rótulos de militância
serão discursos suspeitos que servirão uma vez mais para se botar a pe-
dra tumular em cima de uma das experiências coletivas mais ricas que o
Brasil teve em sua história, gérmen, semente de um Brasil futuro.
Com todos os erros e desacordos, a vivência humana desse corpo so-
cial rejeitado é decisiva para se entender tudo — inclusive e principal-
mente o tropicalismo. Sim, o chamado “tropicalismo” não tem só a ver,
mas foi influenciado por tudo isso; é produto direto desse movimento.
Ou melhor: o tropicalismo nunca existiu. O que existiu foram ruptu-
ras em várias frentes. E essa que chamaram de tropicalismo foi uma pe-
quena manifestação dessas rupturas na área cultural. Uma nesga. Meu
corpo se mexia por todos os movimentos inspiradores do corpo social de
68. Esses movimentos, corpos celestes em transação, mexiam com tudo.
PATRIOTA, R. The Tropicalist Scene in Teatro Oficina, São Paulo. História, São
Paulo: v.22, n. 1, pp. 135 a 163, 2003.
: This essay will discuss the trajectory of Teatro Oficina (São
Paulo), during part of Brazilian military dictatorship (1964-1972), so
that one can think about the historicity of its performances and many
artistic works named tropicalists.
NOTAS
1
Este artigo é parte da pesquisa financiada pelo CNPq, intitulada O Brasil dos Anos
60 a partir das experiências estéticas e políticas do Teatro de Arena e do Teatro Ofici-
na, de São Paulo: uma contribuição à História da Cultura.
2
Instituto de História — Universidade Federal de Uberlândia — 38408-100 —
Uberlândia — MG.
3
Entre os trabalhos que mais repercutiram, encontram-se: CALADO, C. A divina
comédia dos Mutantes. São Paulo: Ed. 34, 1995; FAVARETTO, C. A invenção de Hé-
lio Oiticica. São Paulo: EDUSP, 1980; e Tropicália, alegoria alegria. São Paulo: Kai-
rós, 1979; NETO, T. Os últimos dias de Paupéria. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad,
1982; VELOSO, C. Alegria, alegria. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, s/d.
4
PAIANO, E. Tropicalismo: bananas ao vento no coração do Brasil. São Paulo: Sci-
pione, 1996, p. 22.
5
Esta afirmação pode ser constatada, pelo menos, em dois importantes trabalhos
sobre teatro brasileiro. O de Armando Sérgio da Silva, primeiro estudo da trajetó-
ria do Oficina, faz a seguinte afirmação: “Outro fator importante para a concreti-
zação desse encontro foi o cinema de Glauber Rocha, principalmente Terra em
Transe. Depois de assistir a este filme, que retratava, por meio da ópera tragicômi-
ca, a desilusão das esquerdas e a falência do populismo, José Celso começou a achar
que o teatro brasileiro perdia a liderança para um cinema inquietante, arrojado,
inovador, confuso como a própria realidade circundante. O teatro brasileiro con-
tinuava em uma timidez estética incompreensível. A montagem do texto de Os-
wald de Andrade deveria ser uma devoração estética e ideológica de todos os obs-
táculos encontrados. Nesse sentido, deveria ser um espetáculo iconoclasta,
antidogmático, criativo e absolutamente livre. Entusiasmado pelo texto, José Celso
iria promover uma espécie de massacre teatral, uma deglutição de formas fixas.”
SILVA, A. S. Oficina: do teatro ao te-ato. São Paulo: Perspectiva, 1981. p. 145. O se-
gundo, de autoria de Edélcio Mostaço, também adota o meu registro interpretati-
vo ao dizer: “retomar as melhores constituintes do espírito de 22 foi a capital tare-
fa do Oficina para as novas gerações, com sua encenação desabusada de Oswald
de Andrade. Discurso insurrecional, O Rei da Vela não deixaria mais o mesmo tea-
tro brasileiro na consciência das novas gerações. Se a montagem, dedicada ao Glau-
ber de Terra em Transe, capitalizou uma série de inquietações generacionais que
andavam pelo ar, representou por tudo e para todos o nascimento do tropicalis-
mo. Caetano Veloso confessou ter escrito Tropicália sob a influência da montagem,
bem como inúmeros outros criadores culturais passaram a referenciar-se em an-
tes e depois de O Rei da Vela. MOSTAÇO, E. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opi-
nião — um interpretação da cultura de esquerda. São Paulo: Proposta Editorial,
1982, p. 103.
6
CAMPOS, A. de. Conversa com Caetano Veloso. In: ___. Balanço da Bossa e ou-
tras bossas. 5ª ed., São Paulo: Perspectiva, 1993, pp. 204-205.
7
No que se refere à encenação de O Rei da Vela, além dos trabalhos já menciona-
dos anteriormente, esta interpretação encontra-se também no estudo de CALA-
DO, C. Tropicália: A História de uma Revolução Musical. 2ª ed. São Paulo: Ed. 34,
2000 e no livro de MACIEL, L. C. Geração em transe: memórias do tempo do tro-
picalismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, entre outros.
8
SILVA, A. S. Oficina: do teatro ao te-ato. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 35.
9
Sobre este assunto, consultar: MACIEL, L.C. Quem é quem no teatro brasileiro. Es-
tudo sócio-psicanalítico de três gerações. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janei-
ro, pp. 48-68, jul. 1968. Caderno Especial n. 2 — Teatro e Realidade Brasileira.
10
MACIEL, L. C. Geração em Transe. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, pp. 164,
165 e 166 (grifo no original).
11
Aliás, esta idéia foi corroborada por Ítala Nandi, na seguinte passagem: “os labo-
ratórios com Luís Carlos Maciel evoluíam de forma maravilhosa. Não fazíamos
nenhuma cena preestabelecida, quer dizer, não partíamos de um texto que nos su-
gerisse as circunstâncias propostas para o laboratório. Eram importantes os de-
poimentos pessoais baseados no gestual: queríamos estudar os gestos fundamen-
tais que as adquirem em função de seus ofícios, ou seja, o gesto dos bancários, dos
políticos, dos médicos, dos estudantes, etc. Havia nesses laboratórios uma fonte
fantástica de aprendizado. Quantas coisas poderíamos entender através do corpo!
Já estávamos ensaiando os primeiros passos para chegar às teorias de Grotowski,
que iríamos utilizar dois anos depois, em Na Selva das Cidades. Numa noite, sen-
tados no Bar Cervantes, Zé Celso e eu observamos que todos os homens que en-
travam, ao subir o degrau, davam uma ajeitada no saco; um gesto rápido, como se
ninguém estivesse percebendo. Era um gesto usual, só que lá estavam dois loucos
estudando os gestos das pessoas. De tanto morrer de rir, concluímos que ajeitar o
saco era uma verdadeira obsessão masculina. Mais tarde esse gesto foi estilizado e
usado, em momentos precisos, pelos principais personagens de O Rei da Vela, num
efeito cênico genial”. NANDI, I. Oficina: onde a arte não dormia. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1989, pp. 68-69.
12
CORRÊA, J.C.M. O Poder de Subversão da Forma. Entrevista realizada por Tite de
Lemos, aparte, n. 1, TUSP, mar./abr. 1968. In: STAAL, A.H.C. Op. cit., pp. 98-99.
13
Sobre o impacto do filme Terra em Transe no debate político e cultural do País,
consultar os seguintes trabalhos: RAMOS, A. F. Terra em transe: a desconstrução
do populismo. In: DAYRELL, E.G.; IOKOI, Z.M.G. (orgs.). América Latina: desa-
fios e perspectivas. Rio de Janeiro/São Paulo: Expressão e Cultura, EDUSP, 1996, v.
4, pp. 477-492.
RAMOS, A. F. Terra em transe: estética da recepção e historicidade. ArtCultura.
Uberlândia: UFU/NEHAC, v. 4, n. 5, pp. 56-62, dez. 2002.
14
Tais premissas podem ser encontradas na seguinte transcrita a seguir: “depois de
ajudar a mistificar a boa consciência burguesa, antes e imediatamente após o Gol-
pe, qual poderia ser a eficácia política do teatro hoje? O que poderia atuar politi-
camente sobre a platéia dos teatros progressistas, vinda majoritariamente da pe-
quena burguesia em lenta ascensão ou da camada da “alta burguesia” da classe
estudantil? O que vai exatamente procurar esse público que, dentro de uma certa
instabilidade de opções, beneficia-se aos poucos das raras e magras possibilidades
oferecidas pelo subdesenvolvimento brasileiro? No teatro, e no caso de toda a nos-
sa cultura, esse público, em geral, tem procurado consumir as justificativas da me-
diocridade de soluções que o seu status proporciona enquanto participação na vi-
da nacional. Justificativas ideológicas que têm girado em torno de um maniqueísmo
que o coloca como vítima — emocionada ou gozadora — das pedras do seu ca-
minho. Isto é: os militares, os americanos, o burguês “reacionário” (o adjetivo é
necessário). Essas “desculpas” estão impedindo sua realização e uma participação
mais profunda no processo brasileiro; ao teatro se vai para rir ou chorar por causa
delas. A justificativa moral: “Nós somos o bem e não temos nada com isso.” Ou en-
tão a justificativa historicista: “Essa situação medíocre de hoje é um momento do
processo. Nós somos os termos de uma contradição, mas como canta Vinícius de
Moraes: ‘um dia virá e eu nem quero saber o que este dia vai ser, até o sol raiar’.
Bom...vamos esperar por esse dia...Ou então essa ideologia pode ainda beneficiar-
se da imagem mística do homem brasileiro “sempre de pé”: “o sertanejo antes de
tudo é um forte”; o carcará que “pega, mata e come”. E não se dá uma transforma-
ção social. Esse é o público mais progressista”. CORRÊA, J.C.M. O Poder de Sub-
versão da Forma. Entrevista realizada por Tite de Lemos, aparte, n.1, TUSP, março
e abril de 1968. In: STAAL, A.H.C. Op. cit., pp. 95-96.
15
SILVA, A.S. Op. Cit, p. 161 (grifos no original).
16
Sob este tema, consultar, entre outros: FAVARETTO, C. Tropicália — alegoria e
alegria. 2ª ed., São Paulo: Ateliê Editorial, 1996; VASCONCELLOS, G. Música Po-
pular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
17
NANDI, I. Op. cit., pp. 134 a 136.
18
“A geração de Roda viva não tinha nenhuma ilusão de ‘subir no sistema’ dos re-
presentativos. Seria coro, figuração, massa...sem o menor respeito ou atração pelo
estrelato. Sua força estava no coletivo. Foi esse coro que invadiu a cena, impôs seu
gosto, sua estética, suas relações de produção e criação. Foi esse coro que avançou
sobre o público, ocupou a sala, saiu para a rua e foi empurrado de volta para a jau-
la do palco, através dos dois atentados do Comando de Caça aos Comunistas. No
dia 16 de dezembro, estreava, com o AI-5 Galileu Galilei, de Brecht. Uma grade
imensa foi colocada na boca da cena, no lugar da cortina; os atores de cinza; o co-
ro do Oficina enjaulado, sem poder tocar ou olhar para o público. Não havia plu-
mas, cores, palmeiras ou bananeiras. Onde estava o Tropicalismo? Ele não estava
... mas o movimento continuava numa luta surda dentro do Oficina: coro versus
representativos. Houve um primeiro round explícito na Selva das cidades e uma vi-
tória do coro com Gracias, señor.” CORRÊA, J.C.M.C. Longe do trópico despótico
— Diário, Paris, 1977. In: STAAL, A.H.C. Op. cit., p. 130.
19
MARCUSE, H. O fim da utopia — exposição de Marcuse. In: —-. O fim da uto-
pia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, pp. 11-47. Nesta conferência, Herbert Mar-
cuse abordava as possibilidades revolucionárias existentes na década de 60 e, nes-
tas circunstâncias, afirmou: “O debate sobre socialismo, a meu ver, ainda não
esclareceu convenientemente as novas qualidades a que me referi. Mesmo entre
nós, o conceito de socialismo foi entendido preponderantemente como um con-
ceito relacionado ao desenvolvimento das forças produtivas e ao incremento da
produtividade do trabalho, de acordo com uma tendência mais do que legítima
em face do nível produtivo no qual foi elaborada a idéia do socialismo científico,
mas hoje — pelo menos — contestável. A nossa tarefa atual é a de discutir e defi-
nir, sem nenhuma inibição e com o risco de parecermos brutais, a diferença quali-
tativa que se manifesta entre a sociedade socialista como sociedade livre e as so-
ciedades existentes. E é precisamente aqui que, na busca de fórmulas capazes de
sintetizar as qualidades novas da sociedade socialista, deparamo-nos quase natu-
ralmente (pelo menos comigo sucedeu assim) com as qualidades erótico-estéticas.
O fato de que a diferença qualitativa da sociedade livre consista precisamente nes-
sa função de conceitos (na qual o conceito de estético é tomado em sentido origi-
nário, ou seja, como desenvolvimento da sensibilidade, como modo de existir) su-
gere, por sua vez, uma tendencial convergência entre técnica e arte e entre trabalho
e jogo. Não é seguramente um acaso o fato de que hoje, entre os intelectuais de
vanguarda da esquerda, Fourier volte a se tornar atual, e que uma nova edição das
opera omnia desse autor tenha recentemente aparecido em Paris, nas edições Anth-
ropos. Como os próprios Marx e Engels reconheceram, foi precisamente Fourier
quem colocou em evidência, pela primeira e única vez, essa diferença qualitativa
entre uma sociedade livre e uma sociedade não-livre, sem recuar espantado (co-
mo o fez Marx, pelo menos em parte) diante da necessidade de tomar como hipó-
tese uma sociedade na qual o trabalho se torne jogo, na qual inclusive o trabalho