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MARGINAL

Don Marcos
Direitos autorais do texto original © 2018 Don Marcos

Todos os direitos reservados

Ilustração da capa: Galdino83


Para os personagens descritos no decorrer das próximas pági-
nas. Eles são reais, estão vivos. Caminham pelas ruas, passam
ao nosso lado e respiram o mesmo ar que a gente. São de carne
frágil. Quando feridos, o sangue escorre e a alma chora, igual a
todos nós.
“Se o ser humano fosse menos egoísta e pensasse no efeito que
pequenas ações causam para o resto da vida de outras pessoas,
viveríamos em um mundo mais sensível, consciente e altruísta.”
Marginal
ÍNDICE

O ASSALTANTE
A NOVINHA
A TRAVESTI
O VENDEDOR
SOBRE O AUTOR
CONTATOS
O ASSALTANTE

O país se comove com a morte de um bebê e a mãe em decorrên-


cia da troca de tiros entre três assaltantes e um policial à paisana
durante uma tentativa de assalto a um ônibus. Basta acessar as
redes sociais ou ligar a TV para receber o peso da notícia nas
nossas costas.

Este primeiro ensaio com personagens tem o objetivo de narrar,


de forma simples e direta, todas as situações que antecederam
essa tragédia causada por uma bala perdida. História não muito
diferente do que acontece nas mais diversas comunidades espa-
lhadas pelo mundo. Vamos começar por um dia comum na vida
dos três jovens protagonistas do assalto.

Qualquer semelhança com a realidade, não é mera coincidência.


Desejo uma boa leitura.

Os três assaltantes estavam sentados na praça da comunidade


em que moravam, conversando sobre uma festa ocorrida na noite
anterior, onde bebidas alcoólicas, drogas e adolescentes estavam
no cardápio aos montes. O assaltante, dono da arma que em bre-
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ve irá disparar a bala assassina do bebê e da mãe, acendeu a
seda que enrolava as pitadas de maconha jogadas dentro. Era
um dos talentos dele. Fazia essa ação com o mesmo cuidado e
delicadeza em que, na noite passada, fez uma adolescente gozar
em sua língua.

“Passa logo aí, mano.” pediu um dos seus dois amigos, compa-
nheiros desde a infância vivida em centros comunitários.

“Foi mal, parceiro. Toma aí.” Entrega o cigarro de maconha, que


começa a circular pela boca dos três assaltantes.

Essa cerimônia se repetia todas as vezes antes de escolherem o


ônibus que seria a próxima vítima. Era um ritual que, feito a pri-
meira vez antes de um assalto bem-sucedido, entrou na cultura
dos três assaltantes como sendo o primeiro passo para que o
sucesso se repetisse nas tentativas seguintes.

Muito engraçado esse ponto de vista de obter o sucesso em algo.


Para eles, seria descer do ônibus com o dinheiro e pertences dos
passageiros que, por uma falha da coincidência da vida, se tor-
nam os próximos números nas estatísticas de pessoas assaltadas
pela falta de segurança a qual a sociedade civil trabalhadora está
destinada.

O bem-estar de alguns depende da infelicidade de outros? Se


avaliarmos bem a nossa própria construção histórica, infelizmen-
te, a resposta é positiva. Podemos trazer à lembrança o sequestro
de homens e mulheres ocorrido em terras africanas com o intuito
de escravizá-los e obrigá-los a trabalhar para sustentar a base
rica das sociedades burguesas espalhadas pelo mundo. Também

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podemos citar o fato dos patrões que exploram e humilham ao
máximo as necessidades de sobrevivência dos funcionários para
manterem o emprego através de uma demanda exaustiva e qua-
se escravista. É como se o homem precisasse subir os degraus
do sucesso sentados nas costas daqueles os quais a sociedade
veste como eternos necessitados. Talvez esse homem, sentado
nas costas de um necessitado, nem tenha a consciência de que
ele é peça fundamental para a roda gigante da desigualdade so-
cial se manter girando, pois foi modelado dessa forma pela pró-
pria família, acreditando que o que faz também pode ser chamado
de altruísmo, já que paga mensalmente um mísero salário para o
funcionário sanar parte das dívidas acumuladas pela necessidade
de se manter vivo. Ou seja, gerando energia para a roda gigante,
que sempre volta para o mesmo ponto, desfavorecendo os que
servem como assentos.

O assaltante que enrolou o baseado lembrava de um assalto co-


metido dias atrás. Dia em que estava com a cabeça esquentada
após uma briga com a mãe alcoólatra, acusada por ele de ter
roubado do irmão algumas notas de dinheiro. Dinheiro que deu ao
irmão para uso das passagens de ida e volta da escola.

“Não fui à escola hoje. Quando fui pagar a passagem, o dinheiro


que você me deu não estava mais na minha bolsa” relatou o irmão
do assaltante.

“Como assim, cara? Dei a você ontem após você ter me dito que
o vale dado pelo governo tinha acabado. Sua mãe passou a noite
em casa?”

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“Sim, ela dormiu em casa ontem.”

“Tá explicado então. Não pode sentir nada com cheiro de dinheiro
que a buceta coça logo. Vou resolver isso!”

“Mano, por favor… Não faz nada com mainha não.”

O pedido do irmão não serviu de muita coisa. O Assaltante colo-


cou a arma na cintura, subiu na moto e foi em direção da casa em
que o seu irmão e a mãe moravam. O irmão se tremia e chorava.
Se arrependeu de ter falado sobre a vergonha passada no ônibus
ao ter que descer e voltar para casa por falta de dinheiro.

A mãe alcoólatra já se encontrava bêbada, jogada no sofá da


casa. O seu filho que ganha dinheiro às custas de retirar dos ou-
tros o que o suor os dera, entrou sem bater.

“Cadê você?” gritou ele quando colocou o pé direito dentro da


casa sem reboco.

“Oi, filho… Veio trazer algum dinheiro pra sua mãe?” A pergunta
saiu em tom irônico.

“Dinheiro você já tem, roubou do seu filho mais novo para gastar
com bebida. Não perdeu a mania de tirar dos filhos para sustentar
o álcool que te faz ficar cada vez mais desprezível.”

A vontade de bater nela era grande, mas se segurou, pensou no


irmão. O máximo que fez foi derrubar uns móveis e assustar a
bêbada. Ela se encolheu contra uma das paredes, como um cão
que recebe a bronca do dono após ter feito alguma traquinagem.

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A raiva descontada nos móveis que nada tem a ver com a situa-
ção é resultado de algo que vem se acumulando desde muito pe-
queno. A vida dele sempre foi difícil, não tinha nem sapatos para ir
à escola. Os colegas perturbavam com ele devido a isso; lancha-
va a péssima comida oferecida pela escola para saciar a fome;
o pai nunca apareceu diante dele para dizer: “Filho, eu te amo”.
O assaltante nunca chegou nem a saber como era o formato do
rosto do pai. A mãe gastava o dinheiro com jogos de azar e com
bebidas, pois eram o escape da realidade sofrida na qual vivia.

Devido a própria experiência, o assaltante não deseja que o seu


irmão mais novo passe pelas dificuldades que foi obrigado a pas-
sar. Tira uma porcentagem do lucro dos roubos para sustentar
o irmão e dar-lhe o que nunca teve. Deseja que o irmão chegue
onde nunca foi capaz de chegar. Nos tempos de inocência, so-
nhava em ser um médico rico, mas a estrada da vida o fez se-
guir um caminho diferente. Não pela falta de capacidade, mas sim
pela falta de apoio da família e da sociedade.

A lembrança do dia da briga com a mãe desapareceu junto com a


última tragada de maconha. Os três levantaram-se, andaram uns
quarteirões, pararam um ônibus, subiram e anunciaram o assal-
to. Mais um assalto bem-sucedido, “graças ao exu que me guia”
disse o assaltante que preparou o baseado no início da história
corrente.

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Após esse dia, resolveram dar um tempo. A onda de assaltos a


ônibus fez com que a polícia da cidade e a própria população
ficasse mais atenta. Estava ficando cada vez mais arriscado, já
que movimentos sociais pediam mais segurança no transporte
público. É muito injusto você sair de casa, escondendo o apare-
lho telefônico em qualquer canto possível do corpo para que não
fosse achado, ou até mesmo sair com um aparelho mais antigo,
chamado popularmente como “celular do ladrão”. É muito injusto
um trabalhador, que não sobra nem 2% do salário após o dia de
pagamento, perder seus pertences para alguém que apontou a
arma para a sua cara e você entrega porque pensa na família que
o espera após o desaparecer do sol.

A população encarcerada pelo uso diário do transporte público so-


fre a cada segundo quando algum desconhecido sobe no ônibus.
Ainda mais aqueles que a sociedade caracteriza como marginal:
pele preta, vestes rasgadas, sandália havaiana branca encardida
e um moicano pintado de uma cor qualquer. Um crime interno
quando se pensa que aquele jovem caracterizado será o vilão do
dia e anunciará o assalto. Se existisse alguma penalidade judicial
para cada vez que esse pensamento discriminatório aparecesse
entre os arbustos de divagações, teria que criar uma penitenciária
a cada 1km para poder suportar esses preconceituosos. Nem o
governo teria subsídios o suficiente para manter tanta gente por
trás das grades, e nem muito menos trabalhar a ressocialização
dessas pessoas, que não podem ver um ser humano mais escuro
para servir de motivo para cruzar a rua e continuar o caminho na

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calçada do outro lado.

A sociedade se juntou e lutou para que houvesse mais policiais


nas ruas, pois o que acham que precisam é de um remédio ime-
diatista que nem esse. Os jornais impressos, o Rádio, a TV e a In-
ternet estão sendo bombardeados com depoimentos e vídeos de
flagrantes dos roubos pela cidade. Um caos. Logo em ano de elei-
ção, não se pode deixar a população desamparada. O governo
começa a se mexer: novos policiais são contratados para fazer a
sutura paliativa para garantir o voto daqueles iludidos, que acham
que a segurança social é apenas ver policiais novatos no meio
da rua. Não sabem (ou fingem que não sabem) que até chegar o
ato de um jovem pegar uma arma e praticar o roubo, uma série
de acontecimentos, um conjunto de emoções e uma necessidade
emergencial antecedem o pensamento de segurar a arma contra
o rosto de outro ser humano igualmente indefeso socialmente fa-
lando. Não se preocupam em arrancar o problema da violência
enquanto só tem a raiz, mas sim quando ela começa a dar os fru-
tos. Aniquilam os frutos ao invés de trabalharem na árvore toda.

Toda essa movimentação fez o trio de assaltantes dar uns passos


para trás e deixar tudo se acalmar. Sabiam que essa quantidade
de policiais nas ruas é momentânea. Enquanto estavam tirando
umas semanas de folga, bebem, se drogam e levam as menores
de idade que aliciam na frente da escola para a casa de um de-
les, as deixam bêbadas, drogadas, e fazem sexo com as carnes
novas. Elas adoravam estar na presença deles, perguntavam dos
assaltos, se já levaram tiro, se já mataram alguém. Quando as
respostas eram positivas, o tesão delas aumentavam. Pediam pra
segurar as armas usadas nos assaltos, apontando para a parede

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e fingindo serem ladras destemidas, como nos filmes norte-ame-
ricanos. O status adquirido pelo trio deixava tudo mais fácil para
eles dentro da comunidade, até mesmo levar para cama as me-
nores de idade que ficavam loucas e rebolavam mais que o nor-
mal quando os viam na frente da escola. Eles escolhiam a dedo,
pareciam estar escolhendo as melhores carnes no açougue. Para
as rejeitadas, só restavam sentir inveja das que subiam nas motos
dos conhecidos ladrões.

“Tua mãe está caída, bêbada, na entrada do campo.” disse um


moleque, admirador anônimo do assaltante principal dessa nove-
leta, quando chegou correndo, respirando ofegante, onde o recep-
tor da mensagem estava sentado, fumando um cigarro e bebendo
uma lata de cerveja. Esperava conseguir algum tipo de aproxima-
ção com esse favor. A figura do criminoso era o seu objetivo de
vida, pois ele conseguia tudo com facilidade, enquanto o seu pai
trabalhava mais de 8 horas por dia e nunca sobrava dinheiro nem
para comprar um calçado novo para substituir a já remendada
sandália do filho. Então, um pai e uma mãe precisam driblar com
sabedoria essa realidade tão presente na vida dos filhos, onde os
ditos marginais se tornam ídolos e influenciadores na moldagem
da personalidade de quem os admira.

A lata de cerveja e o cigarro foram deixados para trás. O ronco da


moto podia ser escutado de longe quando ele foi de encontro à
mãe para socorrê-la. Não pensava nela, mas sim no irmão mais

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novo. Não queria que ele visse a mãe naquele estado deplorável.
O irmão é a figura inocente que ele tenta salvar da realidade cruel
do mundo como se fosse a parte bondosa sobrevivente na sua
alma.

A mulher estava rodeada de pessoas, ninguém parecia se impor-


tar em levá-la para o hospital mais próximo. Os mais jovens tira-
vam foto e gravavam vídeos. Usariam as imagens capturadas na
próxima postagem em alguma rede social com o intuito de ganhar
visibilidade momentânea às custas da pobre mulher que se en-
contrava com o rosto sujo de areia, fedendo a álcool, vômito e
urina seca.

O filho da mulher caída chegou de moto, apertando a buzina de


forma contínua para abrir caminho entre o aglomerado de pes-
soas que se criou ao redor da bêbada. Minutos antes, no meio
do caminho, viu um táxi parado, um senhor e uma mulher conver-
sando encostados nele. Se aproximou em atitude ameaçadora,
tanto que as duas pessoas que conversavam se prepararam para
serem assaltadas pelo bandido. A mulher, ao ver a moto vindo em
sua direção, pegava no celular pensando consigo mesma como
livrar o pertence das mãos do motoqueiro. Nem sequer pensava
se levaria um tiro ou não. O que precisava era safar o aparelho
telefônico. Nesse ponto de vista, hoje em dia salvar o celular de
ser levado é mais importante do que sair sem nenhuma perfura-
ção causada por um projétil. Talvez porque o celular custou duas
vezes mais que o salário que ganha fazendo serviços domésticos
em casa alheias.

“Parceiro, me acompanha pra socorrer uma pessoa.” falou de for-

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ma objetiva o assaltante ao frear a moto centímetros de distância
do carro. Essa frase foi o suficiente para acalmar o coração da
mulher. Respirou aliviada ao ter a certeza que o celular sairia ile-
so.

O táxi o acompanhou, chegou logo atrás da moto que buzinava


para abrir caminho para ele. O que veio de moto, desceu da moto;
o que veio de carro, desceu do carro. Com a ajuda de uns homens
da comunidade, colocaram a mulher no banco traseiro do táxi.
Ajudaram pelo fato de terem reconhecido o assaltante de ônibus
e queriam ganhar alguma credibilidade com ele, que no final da
boa ação dos ajudantes nem sequer agradeceu. O taxista partiu
com toda velocidade permitida na rua que estava. O motoqueiro
foi logo atrás.

A bêbada foi atendida rapidamente na unidade hospitalar da pre-


feitura, pois estava em uma situação emergencial. Escutava-se
sussurros de desaprovação dos outros pacientes quando ela en-
trou sem muita burocracia, já que uma das atendentes conhecia
o assaltante e não queria ver uma confusão dentro do hospital,
além do fato da mulher socorrida estar visivelmente mal. Mes-
mo numa situação emergencial como essa, as pessoas ainda se
acham no direito de que haja um respeito de ordem de chegada,
fruto da necessidade inerente e egocêntrica do ser humano em
defender apenas o seu bem-estar.

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“Estamos aqui já fazem horas e nada de sermos chamados.”

“Toda vez é isso. Vem esses que não querem nada com a vida,
nem trabalham, mais fodidos que a buceta de uma puta, e pas-
sam na frente da gente.”

“Depender do governo para cuidar da gente é foda. Nem se res-


peita a ordem de chegada. Estou aqui já fazem três horas.”

“Até um cabaré é mais organizado que isto aqui.”

Essas são algumas das reclamações escutadas se esperarmos


junto dos que são obrigados a usar o serviço oferecido pelo go-
verno devido a condição financeira, dependendo dos médicos
que são pagos pelo governo.

A bêbada foi examinada, o pulso e respiração estavam normais.


O que aconteceu foi a falta de glicose no sangue, o estômago
vazio e a fraqueza das pernas que não suportaram o corpo, cuja
mente apagou pela falta de alimentação e o álcool em excesso.
Já estava sendo medicada de forma correta, só era questão de
tempo para se recuperar e receber alta. O assaltante ligou para a
sua tia, pois não queria ficar o tempo todo no hospital com a mu-
lher que nem considerava como mãe. Esperou por algum tempo
enquanto fumava um cigarro do lado de fora do prédio. Ao ver a
tia de longe, subiu na moto, rodou a chave e esperou a mulher vir
ao seu encontro.

“Tome pra senhora, tia.” Entregou umas notas de dinheiro para


ela. “Se precisar de mais algo, pode me ligar. Vou esperar meu
irmão na escola e vou levar ele pra passar um tempo comigo.”

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“O que você vai dizer ao seu irmão?”

“Não sei, ele não merece se preocupar com a mulher que rouba o
dinheiro dele ir para a escola.”

Foi embora sem dizer mais nada. A sua tia ficou olhando até ele
virar a esquina e sumir.

Os irmãos estavam juntos há horas. Passearam, comeram em


lanchonetes e se encheram de besteiras até não aguentar mais. A
cada esquina atravessada, o assaltante olhava atento para todos
os lados, sempre preocupado em quem estava se aproximando.
Ele estava sendo com o caçula o que sempre desejou que um pai
tivesse sido com ele: amigo e companheiro. Os dois pareciam pai
e filho, se davam muito bem.

O assaltante se satisfazia ao perceber o brilho intenso nos olhos


do irmão. Era como se sua alma também estivesse sendo con-
templada pelo momento de companheirismo e felicidade que nun-
ca teve naquela idade. Não falou nada sobre a mãe, disse apenas
que queria passar um tempo junto com ele, já que, depois da
entrada na vida do crime, evitava ficar perto devido a possíveis
retaliações de inimigos e, principalmente, de policiais. O mais ve-
lho sabia que o mais novo não ignorava o modo em que ganhava
a vida, mas preferia não falar nada a respeito, pois não queria
influenciar de forma negativa as escolhas dele.

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Demorou 24 horas para que a bêbada internada tivesse alta. A


irmã levou-a para casa após muita insistência, pois tinha a inten-
ção de evangelizar a pobre mulher e livrar-lhe da vida de álcool e
vergonhas na rua. Nos dois primeiros dias, a mãe do assaltante
estava determinada a deixar o álcool, a mudar de vida e focar
em algo que fizesse valer a pena viver. Perdera quase todos os
dentes, os que sobraram estavam pobres e quebrados devido às
quedas no meio das estradas; o cabelo nunca mais foi o mesmo
da adolescência, momento da vida em que era objeto de desejo
dos homens de todas as idades.

Sua irmã a chamou para ir à reunião litúrgica da igreja, mas logo


deu uma desculpa dizendo que estava cansada, com dores nas
pernas e na cabeça. Não era mentira, mas as dores não eram
fortes o suficiente para fazer com que não caminhasse uns quar-
teirões e passasse a maior parte do tempo sentada, escutando as
passagens bíblicas e os sermões do pastor. A convalescente ficou
sozinha na casa.

Sozinha, começa a procurar nos cômodos algo que pudesse ser


vendido, mas que não fosse facilmente notada a falta. Estava se
rendendo à necessidade do vício. Lutava contra o corpo, que pe-
dia para beber alguma mistura química com uma porcentagem de
álcool. Conhecia uma barraca próxima dali. Precisava apenas de
algo que pudesse ser penhorada em troca de uma ou mais doses.
Procurou, procurou, mas não achou nada. A irmã não deixou à
mostra nada que pudesse ser adquirido e vendido com facilidade,
pois anos atrás passou por uma situação parecida com ela. Não
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ia confiar facilmente até que ela se recuperasse do vício de vez
por todas. A viciada nem sequer podia sair da casa, pois as portas
estavam trancadas pelo lado de fora. Suava, tremia, não sabia o
que fazer. Os lábios ressecaram pela necessidade que passava,
os olhos piscavam freneticamente, não conseguia nem parar um
segundo sentada no sofá.

Gritou de agonia, pois percebeu que nunca conseguirá controlar o


vício. Foi ao banheiro, procurou por algo que nem sabia o que era.
Foi no armário da despensa e achou uma garrafa de álcool fecha-
da. Em desespero, abriu com os dentes e deu um longo gole. Uma
ânsia de vômito subiu-lhe à garganta. A garrafa de álcool caiu no
chão, espalhando o líquido. Sentiu pena de si mesma. Chorou,
quebrou as unhas que restavam quando se jogou no chão, em
desespero, e começou a arranhar o piso de forma histérica, como
se isso fosse tirar do corpo aquilo que reclama o álcool que não
consome há dias. O sangue era visível no piso e nas pontas dos
dedos, mas a dor causada no corpo não supera a dor na alma ao
ser espancada covardemente pela força do vício.

A irmã chegou e se deparou com a cena descrita. Chorou ao ver


a mulher estirada no chão, encolhida como uma criança desam-
parada na rua, com as pontas dos dedos ensanguentadas e o
rosto machucado por ela própria. Os móveis espalhados devido
aos movimentos aleatórios quando se jogou no chão. Jurou que
tiraria a irmã do vício, mesmo que fosse a última coisa que faria
na vida. No outro dia, chamou o grupo da igreja e o pastor para
orar pela viciada, que entrou em luta contra os que foram a aju-
dar. Se debatia na cama, jogava objetos contra a porta do quarto
quando era aberta. Desistiram, deixaram para a próxima vez, que

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não irá existir, já que no dia seguinte a bêbada foi encontrada pelo
sobrinho de 10 anos com os pulsos cortados por uma faca de pão
no quarto que estava dormindo nos dias em recuperação. Com o
sangue perdido, já não era possível socorrê-la. O funeral foi no
dia seguinte. O seu filho mais velho não foi.

O filho mais novo da falecida foi morar com a tia. Ela recebeu uma
boa quantia de dinheiro do irmão dele para ajudar-lhe no susten-
to. Aceitou porque não concorda em ver uma criança tendo como
influência um irmão criminoso. Pegou o valor alto entregue por
ele, apesar do discurso moralista que dava quando tinha encon-
tros litúrgicos em sua casa. O dinheiro até ajudaria a pagar umas
dívidas atrasadas. Apesar da hipocrisia, gostava do garoto e que-
ria ajudá-lo a seguir uma estrada diferente da mãe e do irmão.
Salvar ele seria a sua redenção por não ter conseguido libertar a
irmã do vício que a matou.

O órfão não precisou mudar de escola, já que a casa de agora


não era tão distante a ponto de ser obrigado a mudar de local de
estudo. Demorou, mas se acostumou com a nova rotina. O irmão
mandava dinheiro e o encontrava quando podia, só não ficava
muito tempo perto. Às vezes estava próximo ao irmão, mas o ob-
servando de longe, até mesmo sem ele perceber a sua presença.
Cada vez mais o seu coração se apertava, já que sabia que um
dia nunca mais o veria da mesma forma. Tinha consciência de
que estaria morto ou seria um dos homens nas estatísticas que

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indicam a superlotação dos presídios no país, o inferno dos ban-
didos vivos.

Uma tv ligada em um barzinho anuncia a tragédia dentro de um


ônibus após um assalto. Uma mulher e um bebê são mortos por
uma bala perdida em decorrência da troca de tiros entre os assal-
tantes e um policial à paisana que se encontrava dentro do trans-
porte público. Os três bandidos morreram durante a fuga. O po-
licial à paisana ficou ferido em um dos ombros, logo mais voltará
ao trabalho e receberá uma medalha por bravura (sem ninguém
perguntando se os inocentes estariam vivos se ele não tivesse
sacado a arma). A mãe, que perdeu a vida no mesmo momento
que o primeiro e único filho, um dia será esquecida pela mídia e
pelos grupos sociais que farão protestos contra a polícia e a falta
de segurança, até que outra mãe passe pela mesma situação e
se torne a história principal temporária nos canais de comunica-
ção. Não irá demorar a acontecer outro fato trágico desse. Feliz
estarei quando nunca mais acontecer.

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Horas antes da notícia, o trio não fumou a maconha ritualística


antes de assaltarem um ônibus. Para mudar um pouco a rotina,
cheiraram fileiras de cocaína. Estavam decididos, sedentos, ins-

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tigados. Espancariam alguém até a morte só por pura diversão.
Tinham bebido metade de um whisky puro e o sangue fervia; as
mãos pediam para serem usadas contra o rosto de alguém indefe-
so. Até as armas brilhavam mais, como se dissessem aos donos
que estavam prontas para serem usadas a qualquer momento,
e que não iriam deixá-los na mão. As armas têm a prerrogativa
de deixar o homem que as empunha com um poder ilusória de
imortalidade. Guardaram as armas dentro do calção e foram ca-
minhando pelas ruas da comunidade.

No meio do caminho, avistaram um grupo de meninas que anda-


va na direção oposta. Entre elas, uma chamou atenção: estava
de vestido curto, modelando o corpo perfeito, e uma tatuagem no
pescoço em formato de coração. Era uma verdadeira princesa,
deveria ter uns 15 anos de idade, mas o corpo era de uma mulher
na casa dos 20 anos. As meninas sorriram ao ver que o trio estava
as paquerando. Quando se aproximaram, o assaltante principal
mordeu os lábios, olhando fixo para a dona do pescoço marcado
pelo coração. Disse:

“Que buceta gostosa… papai lambe todinha!”

Os amigos riram pela já conhecida ousadia do companheiro. As


meninas sentiram um pouco de medo, pois, quando chegaram
perto, notaram o volume alto na cintura dos paqueradores. Re-
conheceram as armas que eles carregavam por debaixo das ca-
misas. Os dois grupos se afastaram e cada um foi para o seu
destino. Iremos conhecer a história trágica da dona da tatuagem
na próxima noveleta.

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Com a forte insegurança, muitos motoristas de ônibus não para-


vam quando tinha um grupo de jovens negros e mal arrumados
no ponto de parada. Uma atitude de preconceito generalista que
fez muitos passageiros reclamar pela falta de respeito de alguns
motoristas em ignorar quando sinalizavam para o transporte pú-
blico. Então, o plano do trio foi o seguinte: o que tinha menos cara
de criminoso pegaria o ônibus em três paradas antes de onde os
outros dois estariam esperando. Foi difícil chegarem a um con-
senso sobre isso. Quando chegasse perto, ele daria o sinal para
que o motorista parasse, fazendo-o pensar que algum passageiro
iria descer do ônibus. Assim que as portas se abrissem, os com-
panheiros de crime bastavam invadir o ônibus e dominar tranqui-
lamente toda a situação. Já tinham feito isso outras vezes, é coisa
rápida a ser feita. Como diziam: “basta firmar o pensamento em
exu viramundo e o resto era com ele.”

O assaltante escolhido separou o dinheiro da passagem. Estava


sozinho na parada com outras pessoas que esperavam o mesmo
ônibus. Os outros dois já estavam apostos quilômetros à frente,
esperando a mensagem do celular que confirmaria o ônibus no
qual o amigo estava.

O assaltante fingiu ser um passageiro comum, pagou a passagem


normalmente. Ajudou até a uma senhora de idade a subir com
duas sacolas pesadas. Ela agradeceu a boa vontade do falso pas-
sageiro, que respondeu com um balançar de cabeça imparcial. Al-
guns que se encontravam sentados no ônibus desconfiaram dele,
acharam que seria um provável assaltante, mas ao verem essa
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boa ação, ficaram com o coração aliviados.

O bom samaritano se dirigiu para um dos bancos de trás. Enquan-


to caminhava para o fundo do ônibus, desviou de um vendedor
que anunciava os produtos oferecidos e olhou para uma mãe sor-
ridente ao brincar com o bebê em seus braços. Um momento de
felicidade entre mãe e filho que será interrompido em breve por
um pedaço oval de chumbo lançado por uma cápsula de pólvo-
ra. Se notarmos bem, a vida não é nada diante de um pequeno
projétil, que tem o poder de desabar o teto da família mais bem
estruturada ao ser usado de forma injusta. Ao sentar, mandou a
mensagem para o celular dos amigos com a numeração e o nome
do ônibus. O vendedor desceu no caminho, metros antes da pa-
rada que os criminosos estavam esperando. Sua vida será narra-
da no último conto desse livro, e veremos a luta diária de quem
procura ganhar o pão de cada dia com dignidade, desafiando os
preconceitos sociais e a inveja alheia.

O motorista do ônibus visualizou a sinalização do pedido de pa-


rada, reduziu a velocidade, parou e abriu as portas traseiras. Os
assaltantes subiram às pressas e sacaram suas armas, apontan-
do-os na direção dos passageiros, ameaçando-os e distribuindo
coronhadas quando alguém se mostrava resistente ao que pe-
diam. O assaltante, filho da bêbada que se suicidou, bateu com
força na testa do cobrador, que tentou fazer corpo mole ao abrir a
gaveta com o dinheiro arrecadado da viagem.

“Vamos, meu camarada! Não me faça gastar uma bala com uma
pessoa inútil como você. Já paguei cadeia, acha que tenho algo
a perder aqui? Não vai ser novidade para mim não, pai!” gritou o

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assaltante para o cobrador, encostando a ponta da arma contra o
rosto dele.

“Calma, parceiro! Tô abrindo a gaveta. Calma!”

O sangue escorria pelos olhos enquanto entregava o dinheiro. Os


outros colocavam os pertences das vítimas numa bolsa, iam de
cadeira em cadeira. Os passageiros se tremiam de medo, pedin-
do aos céus que os marginais os deixassem em paz o mais rápido
possível. A mãe balançava o bebê, que chorava sem parar. O pe-
queno anjo sentia o perigo do momento e o que viria a acontecer
a ele e à mãe se nada de milagroso acontecesse. O choro estava
sendo um aviso para que ela saísse dali. A mãe, entretanto, igno-
rante na linguagem do choro das crianças recém-nascidas, não
deu importância ao aviso cada vez mais estridente do filho. O cho-
ro deixava o trio invasor cada vez mais nervoso. Em uma cadeira
próxima, um homem sentado esperava a sua vez para entregar
os pertences aos recolhedores. Sua mão direita escondia uma
pistola no banco, ferramenta de trabalho nas horas como policial.
Estava pronto para usá-la. Bastava o instante perfeito para sur-
preender os criminosos.

O clima ficava mais tenso: o Choro do bebê estava agoniante; a


gritaria dos assaltantes para que as vítimas fossem mais ágeis
na entrega; os pedidos de calma e de misericórdia dos passagei-
ros; os carros que passavam de lado, ignorando o que ocorria no
ônibus parado. Alguns motoristas olhavam para dentro do trans-
porte público, mas passavam rápido demais para poder entender
o que de fato estava ocorrendo. Entre os carros que passavam,
ouvia-se buzinas de reprovação pelo ônibus estar atrapalhando o

26
andar do trânsito.

Faltavam dois passageiros entregarem os pertences, o policial à


paisana e um senhor de idade. A mãe foi perdoada, estava já
numa situação complicada tentando acalmar os ânimos do bebê.

“Faz esse menino parar de chorar, pelo amor de Deus! Que infer-
no!” gritou um dos assaltantes, irritado, fazendo a mãe ficar mais
trêmula, orando internamente, firmando o pensamento em Deus.
O bandido pensou até em dar um tiro na criança e na mãe de tão
extasiado que estava, mas a ideia logo foi rejeitada pela sua men-
te. Nunca matou uma criança, e não seria agora que mataria. Não
chegou a esse ponto de desprezo pela vida humana, ainda mais
de um ser inocente como um bebê. E logo esse, que nada mais
fazia do que tentar alertar a mãe da tragédia que estava prestes
a acontecer.

O policial respirou fundo, esperou alguns segundos, ajeitou a arma


na mão. Os dois recolhedores se aproximaram da sua cadeira.
Um tiro foi escutado. Foi tudo tão de repente. O filho da bêbada
suicida começou a atirar na direção do policial, sem lembrar que
na mesma direção estavam pessoas inocentes. Entre elas, a mãe
com o bebê, que chora todos os choros que valeram pela infância
toda. Se soubesse que uma dessas balas seria a responsável
pela tragédia que será falada durante semanas nos jornais e nas
mídias sociais, nem sequer teria apontado a arma para o fundo do
ônibus. Teria descido e fugido logo.

O assaltante que segurava a bolsa com os pertences recolhidos


soltou tudo, espalhando os objetos e dinheiro no chão. Ao tentar

27
pegar a arma da cintura, a deixou cair. De forma a trapalhada, e
até cômica, foi engatinhando até recuperar a arma e voltar a atirar
em direção ao policial, que mostrou destreza no manejo da arma.
Os passageiros se jogaram no chão, assustados, segurando a
cabeça e apertando as palmas das mãos contra os ouvidos, como
se isso fosse salvá-los das balas que sobrevoam rapidamente so-
bre suas cabeças. Estilhaços de vidros caem por cima deles. O
susto é tão grande que a cada pedaço de vidro que vai contra a
pele os fazem pensar que é uma bala perdida que encontrou uma
vítima inocente durante o tiroteio.

O bandido atrapalhado acertou o policial no ombro, fazendo per-


der o controle da arma e deixando-a cair de lado. Os outros dois
assaltantes conseguiram fugir enquanto o policial estava se re-
compondo para atirar. O bandido se levantou e apontou a arma
para o rosto do policial. Puxou o gatilho. Não tinha mais balas.

“Tivesse sorte, cara.” falou.

Fugiu, deixando todos os pertences arrecadados no chão do ôni-


bus.

O barulho durante o tiroteio foi tão intenso que ninguém notou o


silenciar do bebê, que agora dorme para sempre, abraçado forte-
mente à mãe, com a cabeça pendida para frente, encostando o
queixo na cabeça da criança. Ambos foram atingidos pela mesma
bala fatal. Uma cena tão triste que nem palavras consigo encon-
trar para descrever tamanha tragédia. As pessoas se levantavam
aos poucos. O círculo de sangue estava cada vez maior ao redor
das costas do recém-nascido, cujos os olhos cerrados seguravam

28
as últimas lágrimas que não tiveram forças para cair.

12

O trio se dividiu. O atrapalhado se debandou sozinho para um


lado, os outros dois fugiram juntos. Carros da polícia foram acio-
nados e a caçada começou. Os policiais juravam que só iriam
descansar quando encontrassem e matassem os três, mesmo se
eles não mostrassem resistência alguma.

O atrapalhado foi o último a morrer. Não esboçou nenhum tipo de


atitude ameaçadora quando dois carros da polícia o trancaram
em um beco.

“Acabou pra tu, camarada” afirmou um dos policiais que o tinham


na mira da pistola.

“Ajoelha, ajoelha!” mandou outro.

O futuro assassinado não tinha mais o que fazer, sentia que não
passaria mais do que 5 minutos vivo. 6 policiais o rodearam, todos
apontando as pistolas em direção da cabeça do homem ajoelha-
do.

“Safado, filho da puta!”

“Matou um bebê inocente e a mãe dele por conta de uns troca-


dos!”

Ao escutar isso, ele olhou assustado para o policial que informou

29
o fato. Não acreditou no que estava escutando. Não admitia ser
cúmplice na morte de um ser inocente. Tentou perguntar: “Como
assi…?”, mas foi logo interrompido:

“Cala a boca, cara! Vai ser menos um vagabundo perambulando e


tirando a paz de pessoas inocente” falou um dos policiais enquan-
to o assaltante tinha se rendido ao choro e soluços. Pedia perdão
a Deus pela vida do bebê.

O ajoelhado tinha dificuldades em se manter equilibrado devido


à fraqueza que aumentava em suas pernas. Seu desejo era se
sentar e esperar os tiros que o levariam para outro mundo. Pedia
com toda fé aos exus e pombagiras pelo livramento impossível de
acontecer.

Um chute nas costas o fez cair esparramado no chão coberto por


pedras. As lágrimas continuavam a cair, faziam uma pequena
poça ao redor do rosto. Os policiais começaram a chutar o corpo
caído. Ossos foram quebrados, os músculos e pele se rasgavam
devido ao atrito com as pontas dos ossos quebrados. Sentiu os
primeiros chutes e pisadas, mas de repente a vista escureceu e
ele desmaiou. O crânio já estava parcialmente amassado quando
um dos policiais deu três tiros na cabeça dele, para finalizar o
serviço.

Iriam alegar que o assaltante espancado mostrou resistência e


estava sob efeito de drogas. A justiça, a mídia e a sociedade não
fizeram nenhuma objeção em relação à atitude abusiva dos poli-
ciais. A violência corre em nossas veias, basta algo afiado cortar
e libertá-la. O copo da moralidade e sensibilidade já transbordou,

30
deixando trincar a nossa alma, que já não suporta mais ver nos
meios de comunicação uma violência banalizada. Não só a vio-
lência física, mas a violência moral contra os mais indefesos da
cadeia social.

13

Os outros dois assaltantes entraram em uma casa, tentando des-


pistar os caçadores. Um vizinho, entretanto, que viu a ação fez
um gesto para os policiais e indicou a casa em que os criminosos
entraram.

Os invasores foram até a janela. A dona da casa, que se tornou


refém e escudo, chorava de medo com uma faca contra o seu
pescoço. A munição de ambas as armas dos assaltantes tinha
acabado, por isso usaram uma faca encontrada na própria casa
para usar como instrumento de ameaça. Ao olharem para o lado
de fora, viram os policiais rodeando a casa, em uma formação
estratégica para iniciar a negociação da libertação dos possíveis
reféns e, assim, prender os sequestradores.

Precisavam ser rápidos, não queriam câmeras de TV e canais da


Internet chegando antes de pegar os dois assaltantes, pois o ob-
jetivo geral era o mesmo, independentemente de qualquer coisa:
vingar o policial ferido e as mortes dos inocentes. Toda a vingança
deveria acontecer dentro da casa e distante de qualquer janela,
pois perceberam que alguns vizinhos já acionaram os celulares
para registrar todo o momento. Alguns estão fazendo até trans-

31
missão ao vivo.

Boa parte dos residentes da cidade estavam acompanhando a


ação policial pelos seus telefones inteligentes. Pela tela do celu-
lar, o público assistiu ao momento em que um dos policiais contor-
nou a rua com a intenção de pular o muro da casa e surpreender
os sequestradores com tiros que expulsarão suas almas dos res-
pectivos corpos. As pessoas esperavam ansiosas pelo desfecho.

O assaltante, filho da suicida e, agora, assassino do bebê e da


mãe, segurava a faca contra o pescoço da mulher, que nunca
derramou tantas lágrimas que nem esse dia. Dia que ela nunca
conseguirá apagar de sua memória. Dia que a tornou uma pes-
soa portadora da síndrome do pânico e com depressão crônica.
Tentará se matar por três vezes. Na terceira tentativa irá alcançar
o objetivo. Se o ser humano fosse menos egoísta e pensasse no
efeito que pequenas ações causam para o resto da vida de outras
pessoas, viveríamos em um mundo mais sensível, consciente e
altruísta. O homem que segura a faca com a mão trêmula não
pensa nisso, pensa apenas em seu irmão. Deseja que ele não
esteja acompanhando esse momento. Não quer que ele tenha o
mesmo destino.

“E agora, mano? A gente se fodeu” lamenta o seu companheiro,


andando pra lá e pra cá, olhando pela janela e vendo a casa ro-
deada pelos policiais, em visível agonia e falta de esperanças.
Mais adiante, os moradores da vizinhança se escondiam atrás
dos seus celulares, compartilhando o momento com o mundo da
Internet.

32
“Só basta esperar o pior, mano” se rende ao destino o jovem que
disparou a bala assassina de inocentes. “Ou vamos morrer, ou
vamos preso.”

Pensava cada vez mais em seu irmão, pedia perdão a ele, pois
não merecia ter perdido a mãe e nunca ter conhecido o pai. Ago-
ra perderá a pessoa que mais o amava e fazia de tudo para não
faltar nada pra ele. Ora internamente, pedindo aos espíritos nos
quais acredita que o irmão tenha uma vida digna e não se renda
aos efeitos colaterais de uma sociedade higienizadora. No meio
da oração, se imaginava tendo o futuro e a vida que sonhava
quando era criança. Lembrou quando a professora do ensino in-
fantil perguntou o que ele queria ser quando crescer. Disse que
queria ser médico, para ganhar muito dinheiro e um dia poder se
encontrar com o pai que nunca conheceu. A lembrança da respos-
ta veio acompanhada das risadas dos colegas. A lágrima desceu
ao se imaginar em um consultório de alguma clínica famosa, aten-
dendo várias pessoas, até que o dia em que o seu pai aparece e
finalmente se apresentam e se abraçam. Talvez essa teria sido a
história de mais uma alma perdida se não fosse uma injusta estru-
tura social em que estamos obrigados a viver sob.

Tiros foram escutados de dentro da casa invadida. Após o pri-


meiro tiro, os policiais que estavam do lado de fora arrombaram
a porta e entraram na residência. Dois tiros foram o suficiente pra
matar o bandido que olhava pela janela, e três tiros para matar o
assaltante ex-futuro médico. A mulher estava caída no chão, mas
nenhum tiro a acertou, tinha desmaiado com o susto dos tiros e
o corte superficial causado pela faca contra o seu pescoço. Uma
ambulância foi imediatamente chamada para o local. Um dos po-

33
liciais tocou o pulso da refém liberta e confirmou que estava viva.
Os alvejados estavam mortos, com os olhos abertos. As caças
foram alcançadas. Os caçadores olham para os corpos com ar
de conquista. Se sentiam aliviados pela vingança da morte dos
dois inocentes durante o assalto cometido pelos dois bandidos
estirados no chão.

A vingança, entretanto, nunca trará de volta a vida do bebê que


esperneava, avisando a mãe da iminente tragédia. Infelizmente,
ninguém entendeu os choros dele.

14

O irmão do assaltante estava na escola durante toda a violenta


sequência. Chegou em casa. Estava sozinho, pois sua tia, o tio e
o primo ainda não chegaram. Ligou a TV, pensou no irmão. Em mi-
nutos, saberá da morte dele. A demora era só a equipe de edição
entregar o material sobre o assalto ao ônibus e a perseguição. O
choro causado pela saudade será eterno. Apesar do histórico trá-
gico, torço para que esse adolescente trilhe uma estrada diferente
do irmão e da mãe. Que Deus, os Orixás e a Jurema Sagrada
abençoem e o protejam de toda malícia e injustiça do mundo. De-
sejo, do fundo da minha alma, um futuro digno para todos e todas
as crianças e adolescentes que vivem em situações semelhantes.

Ali perto, um grupo de jovens assalta o primeiro ônibus. As histó-


rias se repetem, mudaram apenas os personagens. A roda social
continua girando.

34
35
A NOVINHA

A adolescente tem uma tatuagem no pescoço em formato de cora-


ção. Era facilmente reconhecida pelos admiradores, pois bastava
andar uns metros na rua para que os olhos e o instinto animal dos
homens, de crianças a idosos, notassem a atraente adolescente
de 15 anos, cujo corpo era de uma mulher entre os 20-25 anos. O
que revelava a pouca idade era o rosto angelical e a voz delicada.
O homem que a encontra na rua hoje em dia nem sequer perde o
tempo olhando para o corpo cuja a alma flagelada mantém em pé.
Sua beleza se esvaiu junto com a dignidade após tanto sofrimento
e a depressão causada pelo arrependimento da atitude que to-
mou em momento de desespero.

Esse ensaio com personagens narrará essa trágica linha do tem-


po, e você acompanhará mais uma história que se repete nas
ruas esquecidas pela sociedade, as histórias rebobinadas dos
marginalizados.

“Olha o que ele comentou na minha postagem.” disse a melhor


amiga da dona da tatuagem, rindo, mostrando o smartphone. Na

36
tela, se via a foto dela usando apenas calcinha e sutiã diante do
espelho do quarto. Logo abaixo da mesma foto, o comentário do
professor da escola: “Uma pena ser minha aluna”.

As duas riram da situação, pois já observaram várias vezes os


olhares maliciosos desse professor. Não só dele, mas de outros
funcionários da escola. As duas amigas eram alvos de fantasias
sexuais noturnas por parte dos homens que trabalhavam lá. A
maioria deles seguia as duas adolescentes nas redes sociais para
acompanhar as fotos sensuais e provocativas que elas costuma-
vam publicar. Eles comentavam, no chat privado delas, frases
cada vez mais maliciosas, ganhando, a cada mensagem enviada,
uma liberdade tão grande a ponto de pedir-lhes que mandassem
alguma foto nua. Se achavam no direito já que as novinhas (como
a própria sociedade chama de forma pejorativa) usavam roupas
curtas e faziam as postagens cada vez mais chamativas. Diziam
que elas estavam procurando alguém para “enfiar-lhes uma rola
bem dura nelas”. Era um strip-tease virtual, diminuindo as peças
de roupas a cada foto compartilhada. Vocês devem estar a se per-
guntar como as famílias delas permitem tais coisas, mas os ado-
lescentes de ambos os sexos bloqueiam familiares e os amigos
próximos dos parentes, limitando as postagens para as amigas,
os paqueradores e, principalmente, as invejosas.

“Coitado. Não deve transar há anos, com essa cara de otário que
tem”. A adolescente da tatuagem comentou, rindo. A outra conti-
nuava a ler as mensagens privadas relacionadas a foto de calci-
nha e sutiã que publicou.

37
3

Gostavam de provocar, era um modo de massagear o ego. Ape-


sar disso, não saiam com facilidade com os admiradores. Rece-
biam várias propostas, desde ir à pizzaria até a um motel, mas
não eram tão conquistáveis quanto mostravam ser. A da tatuagem
era virgem. A da foto com calcinha e sutiã já tinha experimentado
o sexo: uma vez com um adolescente da mesma idade e outras
vezes com um homem que tem o dobro da idade dela, na época
recém divorciado. O sexo com o segundo foi inesquecível, devido
à experiência do amante com outras mulheres. Ela gozou duas
vezes em uma noite. Nunca tinha gozado, e nessa transa chegou
ao clímax duas vezes. Uma com a língua do recém divorciado
em sua vagina e a outra vez com o pênis dele espancando o seu
útero.

Saíram às escondidas durante 15 dias, quando, sem aviso prévio,


o seu melhor amante sumiu e a bloqueou de todas as redes so-
ciais. Querendo entender o que houve, ela fez um perfil falso em
uma rede social famosa da época, e, quando encontrou o perfil do
homem, viu fotos recentes dele abraçado com a ex-mulher e os
dois filhos. Chorou por vários dias. Queria ter aquele maravilhoso
amante de volta. Se preparou inúmeras vezes para mandar umas
fotos que tinha dos dois em momentos íntimos endereçadas à
esposa dele. Pensava que, assim, o teria de volta. Precisava de
qualquer forma estragar esse relacionamento, até que um dia re-
solveu mandar as fotos, mas, claro, escondendo o seu rosto com
os emojis disponíveis em seu smartphone.

O primeiro objetivo foi conquistado: separar o casal. Entretanto,


38
não o conseguiu de volta. Só o ajudou a reconhecer que a pessoa
mais preciosa em sua vida era a mãe dos seus filhos. Ele tenta até
hoje retomar ao casamento.

O professor, no banheiro de sua casa, segurava o celular com


uma mão, olhando concentrado a foto da aluna de calcinha. Com
a outra mão, segurava e movimentada o pênis, prestes a gozar.

Fazia isso com frequência, tinha um tesão descomunal pela mo-


delo da foto. Às vezes não queria sentir atração pela adolescente,
imaginava quando um dia tivesse filha, sentia nojo dele mesmo
em alguns momentos devido a isso. Nem conseguia mais dar aula
direito, sentia ciúmes quando um aluno chegava perto dela e fi-
cava de paquera. Arrumava logo uma desculpa para chamar o
paquerador e livrar a sua desejada das garras do oponente. A
adolescente ria da situação, pois sabia o motivo que o professor
chamava os colegas quando estavam a lhe bajular.

O professor apaixonado curtia todas as publicações online do


seu objeto de desejo, a ponto da namorada começar a desconfiar
e a monitorar os passos e comportamento dele. Irão se separar
por definitivo quando ela ler uma conversa entre o namorado e a
aluna, onde houve um pedido da parte dele para a adolescente
mandar uma foto especial, com a calcinha abaixada pela metade,
mostrando metade da sua vagina.

39
Essa situação era a testemunha da hipocrisia a qual ele vivia,
pois ministrava palestras em várias escolas e instituições sobre
abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Sempre
que falava sobre o fato de que uma mulher estar vestindo roupas
curtas não é um convite ao sexo, lembrava da adolescente e seus
shorts curtos, que dividiam perfeitamente as duas nádegas duras
e salientes. Engolia seco, e seu pênis sofria ereção durante os
discursos moralistas.

A adolescente da tatuagem morava com os pais. Quando estava


em casa, escondia o desenho de coração no pescoço com os lon-
gos cabelos. A mãe é dona de casa e faz uns serviços domésticos
quando tem tempo. O pai trabalha em uma terceirizada da prefei-
tura como serviços gerais. Mesmo sobrevivendo com um salário
mínimo, faziam de tudo para agradar a filha. As dívidas feitas para
saciar os desejos materialistas da filha se acumulavam mais e
mais. Eles gostariam de ter condições para presentear e custear
os caprichos da adolescente, mas o histórico familiar e a neces-
sidade de abandonar a escola cedo, não os ajudaram a conquis-
tar os empregos tão sonhados da juventude. Casos de sonhos
desfeitos pela avalanche da desigualdade social, frutos de uma
libertação de escravos sem o mínimo de condições dadas para
sobreviver, jogados sem nenhum subsídio material, financeiro ou
intelectual nas ruas.

Visitavam a igreja, e em todas as orações pediam para que Deus

40
a livrasse de todas as malícias e maldades do mundo. São evan-
gélicos comprometidos, todos os meses dão os dízimos, acredi-
tando que Deus os recebiam e um dia devolverá em dobro. Colo-
cam as notas dentro do envelope e o depositam na urna da igreja,
firmando o pensamento em Deus e na melhora de condições de
vida. O pastor recebia os valores dados, ficava feliz a cada fiel que
se levantava e depositava na urna os 10% do salário suado do
mês. É uma troca. A igreja recebe o valor mensal e o pastor lança
palavras de consolo para a vida sofrida das suas ovelhas.

Se olharmos por outro lado, principalmente do pagamento mensal


feito, os fiéis nada mais são do que clientes do pastor. Infeliz-
mente, alguns se aproveitam da boa vontade das pessoas para
benefício próprio. Isso acontece em todos os segmentos da vida,
não só o religioso. Estamos cansados de ver isso quando se trata
da descarada demagogia inerente aos políticos e grandes exe-
cutivos. Usei o exemplo pastoral devido ao decorrer da narração,
para não usar outros exemplos que não faria sentido algum para
a fluência do texto que você lê. Me desculpe o cristão que leu e
pensou em largar o livro por conta da “heresia”, mas não estamos
aqui para mascarar a realidade do mundo, e sim para tirar a más-
cara da hipocrisia social que há em todos os setores da vida em
sociedade.

“Saca o cara que acabou de me seguir!” falou alto a adolescente


objeto de desejo do professor. Mostrou a foto do novo seguidor

41
para a dona da tatuagem, inclinando o celular para ela. Na foto,
se via um homem na casa dos 30, com roupa social, encostado
numa moto que custou mais de 12 salários mínimos.

“Nossa!” exclamou a dona da tatuagem. “Seguisse ele de volta?”

“Claro que sim!”

“Ele curtiu alguma foto tua?”

“Acabei de receber algumas notificações, deixa eu ver aqui”

Depois de poucos segundos, abriu os olhos cintilantes e um belo


sorriso. Gostou do que viu. O homem da moto tinha curtido 4 fo-
tos seguidas dela. Em todas as 4, ela estava de biquíni, na praia,
mostrando a curvatura de suas partes íntimas.

“Ele curtiu quatro fotos minhas na praia!”

“Ganhou o cara!”

A adolescente das fotos curtidas pelo homem da moto contribuiu


o carinho do novo admirador, curtindo umas fotos em que ele es-
tava de sunga em alguma piscina de um hotel. Em poucos se-
gundos, ela receberá umas mensagens privadas do mais recente
amigo digital. Os dois começarão a conversar, respondendo às
perguntas básicas de um início de conversa entre duas pessoas
recém apresentadas. A conversa ficará mais ardente. As trocas
de fotos serão constantes. A cada foto, uma peça de roupa será
tirada.

A adolescente estava à procura de um homem com aquelas ca-

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racterísticas: maduro, financeiramente estável, boa aparência e
solteiro. Via nele a figura do homem que a fez gozar várias ve-
zes e a apresentou os prazeres que uma mulher pode ter dentro
de quatro paredes. Sentia o desejo de se casar, ter filhos, morar
numa casa boa e ter uma vida de estabilidade, diferente da vida
de dificuldade na qual vivia.

A adolescente da tatuagem acompanhava a conversa, tão exta-


siada quanto a amiga. Porém, se soubesse de 1% do que iria so-
frer após uma festa na casa desse homem, com certeza teria dito
a amiga que ele não valia nem a merda esmagada de um cachor-
ro doente. Teria pego e escondido o celular, fazendo de tudo para
que sua amiga não se relacionasse com ele. Se pudéssemos pre-
ver o que cada simples atitude pode trazer, iríamos evitar muitos
desastres em nossas vidas e, principalmente, nas vidas daquelas
pessoas que nos rodeiam.

O homem da moto tem uma facilidade para conquistar qualquer


mulher, seja qual for a idade. Sua rede, quando lançada, cap-
turava as mais belas e atraentes. Costumava realizar festas em
sua casa, convidando os amigos mais próximos e mulheres que
conheciam nas saídas noturnas. Compravam bebidas, drogas e
abusavam de música alta, incomodando os vizinhos mais próxi-
mos. Quando estavam com certa quantia de álcool e drogas cir-
culando pelas veias, pediam para as mulheres convidadas tirarem
as roupas e dançar. Algumas hesitavam em fazer isso, mas de-

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pois de algumas doses a mais de bebida e a influência das ami-
gas, entravam na brincadeira. As peças de roupas eram jogadas
em cima dos anfitriões, que cheiravam com avidez, deixando-as
com uma vontade imensa de tirar o resto.

A orgia com o homem da moto e seus amigos era certa, indepen-


dente se as convidadas estavam sóbrias ou desmaiadas. Certa
vez, uma bela jovem tinha adormecido devido ao exagerado con-
sumo de álcool. O homem da moto e mais um amigo a levaram
para o quarto, tiraram as roupas e colocaram os respectivos pênis
dentro dela, fazendo movimentos bruscos. Após minutos de abu-
so, gozaram dentro do ânus da adormecida.

Ela apenas sonhou um sonho que não se lembrou no dia seguin-


te. Não lembrou de nada, apenas que bebeu muito. As dores sen-
tidas nas partes íntimas a fez forçar a memória, mas em nenhum
momento conseguiu lembrar se teve relações com alguém. Per-
guntou às amigas o que tinha acontecido. As amigas, igualmente
sofrendo de amnésia após a festa, só lembravam das bebidas,
drogas e sêmens consumidos.

O homem da moto tinha a mania de seguir belas jovens nas redes


sociais, procurando suas próximas vítimas. Viu uma foto de uma
adolescente de biquíni, curtiu e começou a segui-la. Se tratava da
adolescente amiga da dona da tatuagem. Sua intenção era sair
logo com ela, mesmo sendo “de menor”. Não tinha medo das leis
que combatem o ato sexual com pessoas menores de idade, pois
é de uma família cujo integrantes vai de delegados a promotores
de justiça. O medo era menor quando tinha relações com adoles-
centes de comunidades pobres. Entre a palavra dele e as delas,

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ninguém irá duvidar de quem fala a verdade: claro que sempre
será ele o beneficiado se houvesse algum julgamento sobre os
abusos sexuais que cometeu e que ainda irá cometer durante sua
longa vida. A adolescente do coração no pescoço foi uma das
suas vítimas.

“Ainda está conversando com aquele cara da moto?” perguntou a


dona da tatuagem à amiga quando a viu na escola.

“Direto!” respondeu a outra, sorridente. Estava se produzindo


mais: maquiagem impecável, roupas justas e mais provocativas.
Maquiagem e roupas que os pais se endividaram para comprar
e agradar a filha, que por sua vez humilhava constantemente a
mãe, fazendo-a de empregada, sem dar importância ao suor dado
pelos pais para não deixar que nada faltasse dentro de casa.

“Ele vai fazer uma festinha, vai chamar uns amigos dele. Pergun-
tou se eu tinha alguma amiga para levar. E aí, tá a fim? Vai ser
próximo sábado, começando no início da tarde. Qualquer coisa,
a gente diz a tua mãe que vamos fazer um trabalho da escola e
você vai precisar dormir lá em casa.”

“Não sei, amiga. Não conheço ninguém lá, vou ficar voando. Você
estará com ele. E eu?”

“Vai, mulher… Por favor. Ele insistiu em levar uma amiga minha,
porque vai ter outros amigos dele lá. Aí fazemos companhia um

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ao outro, entendesse? Não vai rolar nada de mais não. Ele vai
comprar umas bebidas e fazer churrasco. Não precisa nem tu
beber. Eu também quero que você vá para eu não ir só, enten-
desse? Aí tenho a conversa perfeita para os meus pais, digo que
estou na tua casa.”

“E se a tua mãe ligar para a minha casa?”

“Isso não vai acontecer. Vamos pra festinha e curtir. Nada demais
irá acontecer. Todos parecem ser gente boa demais. Precisamos
expandir nosso círculo de amizades.” finalizou a iludida.

A atual paquera do homem da moto convenceu a amiga depois de


um tempo. Não sabe ela que, devido a sua insistência, a amiga
nunca mais será a mesma.

Continuaram conversando sobre as fofocas da escola. Enquanto


conversavam, uma gritaria era cada vez mais audível a cada se-
gundo que passava. À medida em que ia aumentando, podíamos
distinguir umas frases que eram repetidas no meio de risadas es-
candalosas:

“teu boy tá aqui, vai falar com ele não?”.

Era uma brincadeira de mal gosto causada por uns alunos contra
um outro aluno homossexual, que caminhava apressado com o
objetivo de sair o mais rápido possível da prisão insuportável que
a escola se tornou por conta da discriminação sofrida após se
assumir homossexual e começar a usar roupas femininas. Sofria
perseguição a cada dia em que ia para escola, por isso aparecia
uma vez por semana ou até mesmo nem ia para aula durante um

46
bom tempo. Essa história e o motivo da gritaria conheceremos no
ensaio a seguir. Peço-te um pouco de paciência caso tenha se
interessado ou se interessada pela vida desse aluno.

As duas adolescentes olharam de longe a cena. Uma delas tirou


o celular e começou a filmar. A maioria dos presentes estavam a
filmar a cena de humilhação. Maldito este tempo, o qual a vida se
tornou pública, fazendo-nos refém das câmeras que nos rodeiam,
observam e gravam cada passo e ação que tomamos. Uma ação
mal interpretada pode causar uma eufórica humilhação na inter-
net, crucificando a vítima das lentes das câmeras.

“Qualquer coisa, caso acabarmos o trabalho cedo, eu ligo avisan-


do que voltarei pra casa, mãe.” disseram ambas as adolescentes
para as respectivas mães.

O plano de mentir sobre o trabalho escolar deu certo. Nas bolsas,


onde, aos olhos das genitoras, serviram para carregar os livros e
os cadernos, colocaram as melhores roupas e o kit de maquia-
gem. Faltavam poucas horas para o início da festa organizada
periodicamente pelo homem da moto. As duas foram à casa de
uma amiga casada, que se encontrava sozinha com o filho peque-
no. Tinham entrado em contato com ela para usarem o banheiro,
o quarto e se arrumarem para um “social” que tinham sido convi-
dadas.

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A da tatuagem de coração teve dificuldades ao ajeitar o vestido
escolhido. De início, devido ao tamanho e o seu corpo cada vez
mais opulento, abriu uma pequena fenda na costura ao lado. Re-
tirou, costurou e vestiu de volta. Quando foi fechar o zíper, ele
travou várias vezes. Sua amiga teve que ajudar e usar a força,
faltando pouco para quebrá-lo. Caso tivessem sensibilidade ou
algum tipo de dom de adivinhação, saberiam que essas dificulda-
des foram o meio que o universo encontrou para tentar impedi-las
de irem à festa. Como as forças divinas, entretanto, não se comu-
nicam de forma clara e nem com sinais de fácil entendimento para
os humanos, as amigas finalmente conseguiram ajeitar o vestido
rebelde. Em seguida, deram os últimos retoques na maquiagem.

Organizaram a bagunça feita no quarto e banheiro durante as ho-


ras se produzindo, agradeceram à amiga e pegarem o táxi manda-
do pelo anfitrião. Estavam tão esplêndidas que o motorista olhava
pelo retrovisor, tentando a sorte de um vacilo de alguma das duas
em mostrar a calcinha escondida sobre o vestido curto. Quando
chegar em casa, se masturbará pensando nas duas, roteirizan-
do em sua mente uma história onde pararia o carro em uma rua
deserta e elas o chamariam para o banco traseiro. Ao abaixar
a calça, elas puxariam o membro sexual dele e o chupariam ao
mesmo tempo, enquanto ele enfiaria os dedos nas suas vaginas
apertadas e, em seguida, ele pediria a elas que sentassem em
seu pênis duro, uma por vez, cavalgando como as atrizes pornô
dos vídeos que enchem o armazenamento do seu celular.

Chegaram na casa de destino. Do lado de fora, era possível ver


dois carros e a moto do conquistador.

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O conquistador e adolescente já tinham se encontrado em um


shopping do centro da cidade, comeram pizza e ele comprou pre-
sentes para ela. Isso fez com que a vítima se sentisse segura em
sua presença, fazendo-a acreditar que tinha encontrado o homem
perfeito para ter um relacionamento sério.

Quando as adolescentes entraram na casa, o conquistador as


cumprimentou. Ele estava acompanhado de dois amigos. Todos
homens belos, de corpo bem definido, usando camisetas e cal-
ções que acentuavam a boa forma. As amigas se olharam em
cumplicidade, admirando os salientes músculos e beleza dos três
homens.

“Sejam bem-vindas!” cumprimentou o anfitrião. Os outros dois re-


petiram a saudação.

“Obrigada!” disse em uníssono as adolescentes, atônitas com a


beleza dos homens e a ostentação da casa.

“Querem beber algo?” perguntou o anfitrião, mostrando uma gar-


rafa da cerveja importada que bebia desde cedo. Os três já ti-
nham conversado sobre as duas adolescentes, estavam loucos
para tê-las nuas, sob o domínio deles.

“Eu vou!” respondeu imediatamente a amiga da dona da tatua-


gem, tímida diante dos olhos paqueradores dos outros dois ho-
mens. Eles a imaginavam já sem roupas, em posições sexuais,
recebendo no ânus, na vagina e na boca os seus pênis.

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Um deles, tentando ser gentil e criar um clima amigável com a
mais tímida, perguntou:

“Vai querer um pouco de cerveja também?”

“Agora não, obrigada.” respondeu a dona da tatuagem.

“Então vem comer algo para te dar sede.” A pegou pela mão e a
levou para o quintal, onde uma mesa estava à disposição com
pratos, copos, garrafas já consumidas da cerveja importada, ta-
lheres e, ao lado, uma churrasqueira em atividade.

11

A noite tinha chegado. Comeram, beberam e conversaram bas-


tante. A timidez daquela que tem uma tatuagem foi desaparecen-
do a cada gole de cerveja. Sua amiga já estava sob efeito do
álcool consumido, bebendo muito rápido para impressionar seu
mais novo amor. O beijava a cada minuto, sentada em seu colo.
Ele passava a mão em seus seios por cima do vestido, sem ver-
gonha alguma dos que estavam a presenciar a troca de carícias.
Seu pênis duro era notável sob o calção folgado. A adolescente
esfregava a coxa lentamente no pênis ereto, aumentando o tesão
e deixando o membro cada vez mais rígido, latejando de tanto
desejo. Não demoraram muito e seguiram para um dos quartos
da casa.

Dentro do quarto, o anfitrião tirou cada peça de roupa dela e bei-


jou cada centímetro do seu belo corpo. A vagina era linda, perfeita.

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Recém raspada e muito cheirosa, o convidava para um sexo oral.
Deitou-a na cama, abriu as pernas dela, se inclinou e começou
a chupá-la. A cada toque no clítoris dela, fazia-a tremer e gemer.
Ela, finalmente, tinha reencontrado o prazer na cama. Gozou. A
retribuição do prazer não demorou. Ela recebeu o sêmen no ros-
to, embriagada pelo prazer e álcool consumidos. Continuaram a
transar por longos minutos. Gozaram mais uma vez. Para des-
cansar e, depois, enfrentar o terceiro round, resolveram se deitar,
abraçados um ao outro.

“Isso tá bom demais!’ exclamou a adolescente. O outro sorriu,


satisfeito com o que estava a escutar.

Ela dormiu. O sono durará por horas, até o dia amanhecer. En-
quanto seu corpo e mente relaxam, a amiga da tatuagem está no
outro quarto com os três homens, contra a vontade dela, choran-
do de arrependimento por ter aceito o convite para a festa. Cha-
mando, inutilmente, pelos pais. Já não é mais virgem.

12

Quando o dono da festa e sua amante foram ao quarto, a adoles-


cente da tatuagem continuou a conversar com os dois amigos do
anfitrião e a beber vagarosamente a cerveja. Um deles tentou um
beijo roubado, mas sem sucesso. O outro riu.

“Calma, só um beijo” disse o ladrão do beijo malsucedido, escu-


tando a risada do outro.

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“Não” respondeu a vítima.

“Tua boca é linda demais. A boca mais linda que já vi em minha


vida. Já estive com muitas mulheres, mas você ganha delas no
assunto beleza, tanto do rosto quanto o do corpo.” continuou fa-
lando o ladrão de beijos, influenciado pelo álcool.

A adolescente se sentia lisonjeada, pois estava recebendo vários


elogios. Eles estavam loucos de tesão por ela. Perceberam que
era virgem. A conversa, olhar e atitudes dela não os enganavam,
e esse fato de nunca ter tido relações sexuais fazia com que eles
sentissem mais vontade de a ter em seus braços.

O ladrão de beijos a convidou para dançar uma música lenta que


estava a tocar. Ela hesitou nas duas primeiras tentativas, mas ce-
deu. O álcool já começava a deixá-la solta o suficiente para isso.
Dançaram. O ladrão conseguiu, finalmente, beijá-la. Na primeira
vez, ela não retribuiu, mas, na segunda em diante, beijava com
vontade. As mãos dele navegavam pelo corpo dela, que as tira-
vam quando elas tentavam apalpar as nádegas. O outro observa-
va os dois dançando, igualmente excitado. Massageava o pênis
duro por cima do calção. As curvas do corpo da adolescente eram
perfeitas.

“Vamos para o quarto? A gente fica lá, sentados. Não precisa


acontecer nada do que você não queira” convidou o ladrão de
beijos, falando baixinho no ouvido dela.

“E o seu amigo? Vai ficar sozinho aí?”

“Ele não liga. Ele vai continuar bebendo e comento. E aí, vamos?”

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A adolescente se calou um pouco. Respondeu de forma positiva e
seguiram para um dos quartos. Os passos dela eram cambalean-
tes, não tinham firmeza e equilíbrio o suficiente para andar em
linha reta. Os objetos enxergados por ela começaram a se dividir
em dois. Sabendo que, com mais um pouco de bebida ela iria ce-
der qualquer coisa, o ladrão de beijos ofereceu mais uma garrafa
pra ela, que aceitou e bebeu uns goles.

Eles se sentaram na cama, trocando carícias. Ela se encostou em


seu peito, fechou os olhos e cochilou.

“Ei. Tá acordada? Ei…” perguntou, balançando um dos braços


dela. Não houve resposta.

Foi colocada deitada na cama, de bruços, o vestido curto levan-


tado mostrava as nádegas e a calcinha enterrada no meio delas.
Essa cena foi irresistível para ele, que começou a tirar a calci-
nha, tomando cuidado para não acordar a futura vítima sexual.
A adormecida resmungou algo inaudível. Parou, com receio de a
ter acordado, mas logo percebeu que ela ainda estava a dormir.
Ele tirou a calcinha por completo e enfiou o dedo no meio das ná-
degas da adolescente, fazendo movimentos lentos. No quarto ao
lado, já não se escutava mais nada relacionado à transa entre o
anfitrião e a outra adolescente. Minutos depois, alguém bateu na
porta do quarto. Era o anfitrião e o outro amigo, que tinham olhado
pela janela e visto que a adolescente tinha adormecido.

“Achou que ia brincar sozinho com essa delícia?” perguntou o


anfitrião, sorrindo de forma silenciosa.

“Só aproveitando um pouco…” disse o ladrão de beijos cheirando

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o dedo inserido no ânus da adormecida.

Os três, ao redor da cama, admiravam a beleza da dona da tatua-


gem.

“Olha pra isso, que lindeza! Aquela que eu fodi ainda agora é linda,
mas essa é mais ainda, cara! Que perfeição!” afirmou o anfitrião.

Os três homens revezavam a penetração no corpo da adolescen-


te da tatuagem. Ela começou a acordar, com dores na cabeça,
enjoada, sentindo pontadas na região da virilha. Sentia dores nas
partes íntimas enquanto o anfitrião a penetrava. Demorou um
pouco para entender o que estava a acontecer de fato. Se assus-
tou, gritou. O grito, entretanto, foi logo interrompido por uma tapa
e o travesseiro que apertaram contra o seu rosto, dificultando a
respiração. Ela chorou. Mas o choro não foi o suficiente para dis-
suadir os três estupradores. Um deles gozou no ânus dela, um
nos seios e o anfitrião gozou dentro da vagina. Era uma mistura
de nojo, medo e arrependimento que tomava conta da adoles-
cente. Desejava que fosse apenas um sonho ruim, um daqueles
pesadelos trágicos que temos e acordamos aliviados, agradecen-
do por ter sido apenas obra da mente. Os estupradores, quando
finalizaram, apertaram as mãos um do outro. Um gesto para con-
cluir mais uma ação covarde contra uma mulher. Se achavam no
direito, já que eram do sexo masculino e as suas vítimas “pediam”
por isso. Tinham a certeza de que elas queriam, só precisavam
de um estímulo. Caso contrário, não aceitariam um convite à uma
festa onde a sua maioria são homens e as bebidas e drogas eram
disponibilizadas em fartura.

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O outro dia foi um silêncio na casa. A amiga da estuprada acor-
dou, procurando pelo homem que a fez gozar na noite anterior.
Ele dormia ao seu lado, um sono sereno, que foi quebrado pelo
sexo oral da companheira. O chupou até sentir o sêmen em sua
boca e o engolir por completo.

“Que coisa boa! Quem me dera acordar assim todos os dias!”


disse o anfitrião, acariciando o rosto da adolescente sorridente.

O sorriso dela contrastava com a expressão da amiga, que está


no outro quarto, encolhida, segurando o lençol contra o rosto e o
corpo violado. Não chora, o poço das lágrimas foi secado após o
último violador finalizar a sua tortura. Estava com vergonha de si
mesma, não sabia como sairia do quarto para encarar o mundo
que a espera. Os seus pais não mereciam isso, ela não merecia
isso. Nenhuma mulher merece. Nenhum ser humano merece. Pe-
dia a Deus que a acordasse do pesadelo, mas Ele não podia reali-
zar o desejo. Ela se levantou e foi tomar o quinto banho consecuti-
vo, pois se sentia cada vez mais suja e tentava limpar a dignidade
com a forte água do chuveiro, esfregando a vagina, os seios, o
rosto e ensaboando a boca. Ainda sentia o gosto do esperma.
Esfregou os dentes com os dedos atolados de creme dental, mas
o gosto do sêmen não estava mais na língua, estava na alma.

Alguém bateu na porta três vezes seguidas. Ela se assustou. Cada


segundo sofrido horas atrás foi relembrado enquanto as três ba-
tidas eram realizadas. Se tremeu, não conseguiu nem perguntar
quem era. A pessoa do outro lado teve que responder, mesmo
sem perguntas:

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“Amiga, sou eu. Abre, por favor. Você está bem?”

O medo foi substituído pela vergonha. Ela não podia deixar nin-
guém saber o que aconteceu, a humilhação seria maior, podendo
acarretar uma rejeição por parte dos amigos, amigas e a família
evangélica. A família é que não poderia saber nunca, senão a
expulsaria de casa. Mesmo ela sendo a vítima do estupro, iriam
apontar o dedo contra o rosto dela, dizendo que uma mulher dig-
na não aceitaria um convite para uma festa onde só teriam ho-
mens e bebidas.

Mais três batidas. A vítima do abuso foi até a fechadura e abriu a


porta. A amiga entrou no quarto. Para disfarçar, a adolescente da
tatuagem virou o rosto e começou a esfregar a cabeça, enxugan-
do o cabelo molhado. As duas sentaram na cama.

“Amiga, que noite maravilhosa eu tive! Ele se garante demais!


Que homem!”

A outra continuou calada, enxugando o corpo molhado.

“Perdeu a virgindade hoje? Ele me disse que te viu entrando aqui


com um dos amigos dele.” falou a outra sorrindo, sem imaginar
que quem tirou a virgindade dela foi o homem que ela pensa que
será seu marido e pai dos seus filhos. Iludida.

“Não quero falar sobre isso.”

“Não foi bom?”

“Não.”

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“Ish… tá bom então…”

As duas se calaram.

“Quero ir embora. Vamos, por favor.” disse a dona tatuagem jun-


tando suas coisas espalhadas pelo quarto. “Precisamos ir embo-
ra, ou senão nossas mães irão descobrir que não estamos onde
deveríamos estar.”

“Tá certo. Vou pegar minhas coisas e falar com ele. Vai se despe-
dir dele?”

“Não. Pode ir. Quando tiver pronta, me avisa. Mas vai logo, por
favor.”

A amante do anfitrião se despediu dele de forma calorosa. Fize-


ram promessas de se verem o mais breve possível para repetir
a maravilhosa noite anterior. Os outros dois amigos tinham ido
embora ao amanhecer.

“Cadê sua amiga?”

“Está se arrumando, me esperando para irmos embora.”

“Vou falar com ela.”

Acompanhou a adolescente até o quarto onde violou o corpo de


4 mulheres, incluindo a virgem da tatuagem de coração. Ela saiu
do cômodo e ficou estática quando o viu no corredor. O sorriso
do estuprador a fez sentir vontade de vomitar. E foi isso que a fez
correr de volta ao banheiro, se ajoelhar diante do vaso sanitário
e expelir o que já não tinha mais para vomitar. A sua amiga ficou

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preocupada, correu para o banheiro e perguntou se estava tudo
bem. Não houve resposta, apenas um pedido para irem embora.

As duas saíram da casa enquanto o anfitrião as olhava entrar no


táxi.

Depois desse dia, ele sumiu da vida da adolescente iludida e a


fez chorar por semanas. Mais um homem que brinca com seus
sentimentos. Prometeu a si mesma que agora quem iria brincar
com o coração alheio seria ela. Começou pelo professor da es-
cola, o mesmo que se masturbava pensando nela. Enviava fotos
íntimas, sempre dando a entender que gostaria de sair com ele.
As conversas seguiram até o dia em que a namorada dele flagrou
e se separaram.

13

A adolescente da tatuagem não estava saindo de casa e dava


desculpas para faltar às aulas. Nem sua melhor amiga a fazia ser
a mesma garota sorridente. Tomava mais de 8 banhos por dia, na
tentativa de as lembranças do estupro irem junto com a água que
desaparecia no ralo do banheiro.

Passou um tempo sem acessar os perfis das redes sociais, onde


era famosa pela beleza estonteante e fotos sensuais. Não pre-
cisava dessas redes sociais nem dos elogios constantes. O que
precisava era voltar no tempo e ficar em casa naquela noite, e es-
perar pelo dia seguinte, esperar pela mesma rotina diária de uma

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adolescente no ensino médio. Reclamava todos os dias da rotina,
mas hoje em dia sente falta. É como os sábios afirmam: quando
perdemos algo é que descobrimos o real valor.

Se pudesse, pegaria uma faca e arrancaria da memória a lem-


brança. Chegou até a segurar a faca, mas não pra abrir o crânio
e procurar pela memória a ser arrancada, mas para cortar os pul-
sos. O desejo era grande, porém o receio de se cortar era maior
ainda. Fez dois cortes superficiais, que deixaram marcas visíveis.
Disse aos pais que eram marcas da unha devido a uma coceira
sem explicação que arrumou.

Os sintomas de uma gravidez começaram a aparecer. Não dormiu


direito por dias seguidos.

Depois de três dias sem ir à escola por conta de dores inexisten-


tes na cabeça, a adolescente decidiu ir. O objetivo era, no meio
do caminho, entrar em alguma farmácia e comprar o teste de
gravidez para confirmar os sintomas. Passou duas madrugadas
pesquisando sobre os sintomas que sentia, lendo depoimentos
de mulheres. Tudo descrito nos artigos pesquisados estava ocor-
rendo com ela. Sua ansiedade estava perceptível, mas os pais
nunca saberão o real motivo da transformação repentina da filha.
A mãe chegou a perguntar várias vezes se tinha acontecido algo
na escola, se alguém falou algo para ela e estava com vergonha
de dizer. Preocupada, orava e levava fotos da filha para ser ungi-
da com a bênção do pastor. Ela sentia que tinha algo de errado, a
confirmação do seu instinto materno era a reclusão voluntária da
filha e as poucas visitas das amigas. Pedia a Deus que revelasse
o que estava acontecendo. Por dias seguidos sonhou com uma

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casa belíssima construída por ela e o marido. Em certo momento
do sonho, a casa era invadida por três homens. Ignorou os so-
nhos.

Na escola, ficou quieta, isolada. Conversou pouco com as ami-


gas. Ignorou totalmente os olhares maliciosos dos colegas, dos
funcionários e dos professores. Ela saiu de casa sem nenhuma
maquiagem, o cabelo amarrado de qualquer jeito e uma camisa
folgada. Mesmo assim, a sua beleza era natural e chamava aten-
ção.

A amiga da festa correu pelo pátio quando a viu. A abraçou forte.


Se mostrou feliz por vê-la de volta à escola, pois, no seu íntimo,
sabia que ela estava daquele jeito devido a algo ocorrido na festa.
Só nunca saberá o que realmente ocorreu. Sentia culpa, mas uma
culpa sem compaixão, sem arrependimento. Talvez se arrepende-
ria se a adolescente abusada tivesse coragem de abrir a boca e
detalhar o que passou quando abriu os olhos naquela noite e viu
o ex-namorado da outra enfiando o pênis dentro de sua vagina,
enquanto os outros dois a seguravam e pressionavam o traves-
seiro contra a sua boca, impedindo qualquer pedido de ajuda. A
violada, entretanto, preferiu não comentar pois tinha medo que
a amiga pensasse que estava a mentir e gostaria de provocar
ciúmes. Preferiu sustentar a amizade, infelizmente. O fato de não
comentar sobre a violência sofrida é algo assustador, mas que
acontece nas várias camadas da sociedade. A omissão é a muni-
ção da segurança daqueles que cometem a violência.

A adolescente da tatuagem saiu da escola junto com algumas


amigas. Andaram juntas por alguns metros e depois se despe-

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diram. A sua melhor amiga continuou o caminho com ela, pois a
casa das duas ficavam próximas. Em alguns quarteirões adiante
se despediram.

“Tchau, amiga. Se precisar de algo, pode falar comigo. Volta com


tuas redes socias, saudade de passarmos horas e horas conver-
sando.”

“Vou pensar no caso.” Respondeu sem ânimo.

Entraram em ruas diferentes. A adolescente da tatuagem anda-


va rápido, olhando para os lados e sem encarar os homens que
cruzava na rua. Alguns passavam por ela e não davam importân-
cia, mas outros percebiam o belo corpo por debaixo da camisa
folgada e soltavam frases provocativas. Ela andava mais rápido
quando algum homem fazia isso. Um medo e repulsa pela figura
masculina foram plantados em seu coração na noite da festa, e
vem germinando junto ao filho que carrega no ventre.

Chegou em casa. Na manhã seguinte, fez os dois testes compra-


dos. Todos deram positivos. Chorou desesperadamente debaixo
do chuveiro ligado.

14

Passou dias deitada, beliscando a comida colocada pela mãe com


tanto afeto. Conversava cada vez menos com seus pais e faltava
às aulas da escola por vários dias seguidos. As faltas eram tantas
que uma de suas professoras entrou em contato com seus pais,

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perguntando se estava tudo bem, se precisavam de ajuda com
algo. Ouviu apenas que a filha estava doente e estavam orando
pela recuperação. Ela voltaria normalmente à escola quando me-
lhorasse.

A amiga da festa foi visitá-la, chamou várias vezes do lado de


fora da casa, mas sem nenhum retorno. Pegou o celular e digitou
os números do telefone da amiga. Também não houve sucesso.
O número discado dava sempre desligado. Os dias que tentava
entrar em contato com ela ficarão cada vez mais distantes um do
outro, até o dia que nunca mais voltará a procurá-la, pois cons-
truirá outros laços de amizades. A sua vida seguirá normalmente,
aproveitando o que a vida tem de melhor para lhe oferecer. Em
alguns momentos, lembrará vagamente daquela amiga que, de-
pois de uma noite em uma festa, mudou o comportamento e se
distanciou dela. A memória apagará gradativamente o rosto da
amiga, apenas se lembrará que ela era a mais bonita da escola
na época da adolescência.

A adolescente da tatuagem emagreceu mais de 10 quilos, não


cuida mais do corpo e muito menos dos cabelos, que eram a sua
vaidade. Os ossos são notáveis por debaixo da pele ferida pelos
constantes banhos e esfregões feitos na tentativa inconsciente de
se livrar da pele tocada e ejaculada pelos estupradores. Quando
sai de casa, não se arruma mais. Nem sequer passa o desodoran-
te. Se ficasse, por definitivo, feia, nenhum homem se interessaria
por ela e nunca mais sofreria uma violação daquela.

Os enjoos começaram, mas não tinha o que vomitar. Seu estôma-


go só não se encontrava mais vazio do que a sua alma. Estava

62
em uma batalha interna sobre a atitude a ser tomada em relação à
gravidez. Se demorasse a tomar coragem, a barriga começaria a
aparecer e os sintomas iriam ficar cada vez mais evidentes e sua
mãe desconfiaria.

Começou a pesquisar na internet sobre abortos caseiros. Não foi


difícil achar o nome de um medicamento chamado Cytotec, mas
era caro e não teria condições de arrumar o dinheiro necessário
dentro das semanas recomendadas para o uso. Mesmo a práti-
ca sendo ilegal no país que vive, encontrou vários métodos para
causar o aborto. Passou noites lendo as receitas dos chás e os
depoimentos de quem já usou. O que a fez demorar a tomar uma
atitude imediata foram os casos de hemorragias e internamento
pós curetagem.

Em poucos dias ela fará parte das estimativas que apontam que,
entre cinco mulheres até 40 anos, uma faz aborto. Optam por esse
caminho devido a vários motivos. Alguns deles são: vida financei-
ra instável, uma relação mal resolvida e abuso sexual.

Durante as pesquisas, leu sobre a perfuração do útero com uma


agulha de crochê. De início achou a proposta repugnante, mas os
altos valores dos chás e dos medicamentos abortivos eram irreais
em sua situação atual. Não podia mais esperar tanto tempo, ou
senão o feto começaria a criar mais forma de bebê. A ideia de ma-
tar um ser que se parece com uma criança a deixava com repulsa
dela mesmo. Então, “que cometesse o ato enquanto o feto tivesse
formas indefinidas”, pensou.

Lembrou da agulha de crochê usada pela mãe em momentos de

63
distração. Procurou por uns minutos o objeto, revirou caixas, abriu
e fechou gavetas, vasculhos armários e cômodas. Desistiu por
um momento. Era o anjo da guarda do bebê, que já se encontra-
va presente e acompanhando a gestação, tampando os olhos da
grávida para não achar o objeto. Quando houve uma desatenção
do anjo da guarda, a mãe achou a agulha.

Quando o protetor se deu conta, já era tarde demais. Assistiu em


prantos o momento em que a adolescente, igualmente afogada
com suas lágrimas intermináveis, entrou no banheiro, tirou as
poucas peças de roupas que usava, ligou o chuveiro, se encos-
tou na parede, abriu as pernas e aproximou a ponta da agulha
dos lábios vaginais. Lembrou dos depoimentos lidos, do perigo
da ação poderia acarretar em sua saúde, mas não estava dando
importância. Se acarretar uma hemorragia e morrer, estaria feliz.
Iria livrar ela e o filho deste mundo. Livraria os dois das mãos su-
jas dos homens.

Não suportava mais olhar para nenhum homem. Ao escutar um


tom de voz mais grave, uma ansiedade tomava conta dela. Antes
de confirmar a gravidez, começou a notar o pai e tios olhando
para sua bunda e seios, por isso se trancava dentro do quarto
quando algum parente homem visitava a família. Sua beleza e bri-
lho estavam se apagando. O último ponto de luz foi interrompido
junto com a agulha de crochê sendo enfiada dentro do seu útero,
perfurando o feto e encerrando prematuramente a caminhada do
filho no mundo.

O anjo da guarda, enxugando as lágrimas, levou a alma do bebê


de volta ao mundo espiritual.

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A adolescente estava desmaiada no chão do chuveiro, com san-
gue escorrendo por entre as pernas. Antes de desmaiar, conse-
guiu jogar a agulha de crochê fora, com o objetivo de omitir o ato
cometido para a mãe, que poderia chegar a qualquer momento.
Quando viu a quantidade de sangue saindo da sua vagina, per-
deu os sentidos e tudo se apagou.

15

Um som de algo caindo foi escutado pela mãe no momento em


que chegou em casa.

“O que foi isso, meu Deus?” gritou.

Pensava o pior. Orava todos os dias, tardes e noites pedindo às


forças divinas que sustentasse a filha e não a deixassem fazer
besteira contra a própria vida. Correu na direção de onde veio o
barulho: o banheiro. A porta estava trancada, mas conseguiu es-
cutar a água que caia do chuveiro batendo contra o piso.

“Filha?”

Bateu na porta, forçando a maçaneta, numa tentativa frustrante


de abri-la.

“Filha, por favor, abre isso!”

Depois de umas batidas sem resposta, lembrou das chaves ex-


tras. Foi ao seu quarto, procurou desesperadamente pelas cha-

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ves, encontrou e voltou à porta do banheiro. Abriu, gritando ao ver
a filha desmaiada no chão, rodeada de sangue. De início, procu-
rou por alguma faca ou outro objeto cortante, pois pensou que o
sangue estava minando dos pulsos da filha. Desconfiava que ela
estava tentando se matar devido às feridas mal explicadas nos
braços. Tocou-lhe os pulsos, mas estavam intactos.

“O que você fez, filha, o que você fez?” pergunta sob soluços e
lágrimas, procurando a origem do sangue.

Quando se deu conta de onde o sangue estava saindo entrou em


desespero. Ensanguentada, correndo pela casa, gritou pelos vizi-
nhos, pedindo socorro. Não demorou para uma de suas vizinhas,
colega de igreja, atender aos gritos. A vizinha chamou o marido.

Colocaram a desmaiada dentro do carro e levaram para uma uni-


dade de atendimento emergencial. Não demorou muito para ela
ser atendida ao chegar. O estado de saúde dela estava visivel-
mente crítico, já tinha perdido muito sangue. A mãe, ainda com
o sangue da filha espalhado na roupa, mãos e rosto, chorava no
ombro da vizinha.

A adolescente ficou internada por alguns dias, passou por uma


curetagem e transfusão de sangue. Quando o médico conversou
com os pais e comentou sobre o aborto sofrido, se espantaram.
Nunca imaginariam que sua filha tinha perdido a virgindade, nun-
ca teve um namorado. Pelo menos, nenhum amigo dela foi apre-
sentado como um namorado para eles. Custaram em acreditar,
perguntaram:

“Você não está enganado, doutor?”

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“Deve haver algum engano”.

O médico, entretanto, mostrou os exames feitos, confirmando a


gestação e o feto perfurado.

“Meu Deus… Por que deixaste isso acontecer, Senhor?” pergun-


tou a mãe, segurando o rosto com ambas as mãos. “Foi por isso
que ela ficou daquele jeito, sem falar com ninguém, trancada no
quarto. Sabia que tinha engravidado e não estava com coragem
de nos dizer... Pobre filha! Se Deus tivesse me dado o dom da
ciência e visto tudo o que estava acontecendo contigo…”

O desabafo foi interrompido por um nó criado na garganta pelo


choro prestes a sair. O marido a consolava, também segurando
as lágrimas.

16

Depois do tempo determinado pelo médico, a adolescente saiu da


internação e foi para casa com os pais. No período de tratamento,
mal conversou com eles. Seus olhos perderam o brilho daquela
“novinha” que fazia os homens de todas as idades virarem a ca-
beça para acompanhar o seu rebolado quando passava nas ruas.
Seu olhar agora era perdido no tempo, e poucas palavras eram
pronunciadas por ela.

Chegaram em casa. Ela foi direto para o quarto e se deitou. Mi-


nutos depois, brotavam dos seus olhos as lágrimas do arrependi-
mento. Do arrependimento de ter aceito o convite da antiga me-

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lhor amiga; mentido para os pais; bebido; cair na conquista do
homem que a levou para o quarto; ter tirado a vida de um ser que
nada tinha a ver com o seu sofrimento.

Entrou em uma depressão profunda, chorava em silêncio. Os pais


chamarão irmãos e irmãs de religião para orar em conjunto em
sua casa, pedindo a Deus que derramasse sua glória sobre aque-
la alma flagelada. Os pais da adolescente não comentaram sobre
o aborto a ninguém, disseram apenas que ela sofreu uma hemor-
ragia repentina e sem explicação. A imagem da família diante da
sociedade não poderia ser manchada. Continuarão orando até o
dia em que receberão a notícia de que a filha foi encontrada morta
após passar dias desaparecida.

Enquanto o dia da notícia trágica não chega, a adolescente, ao


desaparecer, irá vagar pelas ruas escuras da cidade, tentando
encontrar a porta de saída para fugir da própria mente perturbada.
Olhará um cartaz de uma jovem desaparecida. O rosto será
familiar. Os nomes ao lado dos contatos inseridos na composição
gráfica também serão conhecidos. A mente já não estará tão
saudável quanto antes. Por um momento achará que é ela, mas
a dúvida irá perpetuar ao continuar as suas caminhadas. Na mes-
ma noite, será estuprada coletivamente por moradores de rua. A
quantidade dos violadores será maior do que a noite em que foi
estuprada pela primeira vez. Ela se debaterá, dificultando a pene-
tração até o último suspiro. Os fortes golpes dados contra a sua
cabeça, com o auxílio de um tijolo, serão a causa da morte. Mais
uma para somar às estatísticas absurdas do feminicídio.

Atualmente, ela continua no quarto, encolhida sob o lençol. Sonha

68
com uma criança nunca vista, brincando em um parque e olhando
para ela, sorridente. No sonho, ela olha para os lados, mas não
vê ninguém. Apenas ela e a criança estão no parque. A criança dá
tchau e desaparece. Na outra noite, tinha o mesmo sonho.

69
70
A TRAVESTI

Desde pequena, a travesti era alvo de brincadeiras por parte de


outras crianças. Sua voz e feminilidade se tornaram, muito cedo,
motivo para que ela fosse a personagem principal das persegui-
ções maldosas inerentes à fase infantil do ser humano. Fase que,
se os pais, educadores, educadoras e outros responsáveis não
tomarem cuidado e ter o discernimento necessário, pode se per-
petuar e fazer parte da modelagem das personalidades de adul-
tos. Por essa falta de cuidado, vemos vítimas de bullying caindo
no poço da depressão e se afastando da sociedade. O terror psi-
cológico e físico causado se torna pior quando a vítima não segue
os padrões de gênero sexual imposto.

A Travesti, citada em um momento de humilhação na noveleta


anterior, sofreu a vida toda com isso. O sofrimento a fez largar a
escola, sair da casa da mãe e começar se prostituir para ter o pão
que sacia a fome rotineira.

Convido você a se debruçar nos próximos parágrafos e conhecer


mais uma história marginal.

71
2

A travesti ainda não tinha completado um ano de idade quando o


seu pai a abandonou, junto à mãe, por motivos financeiros. Ele foi
um dos milhões de demitidos diante da crise econômica. Após a
saída do emprego, passava noites enchendo a alma com o remé-
dio paliativo dos problemas pessoais: bebida alcoólica. Esquecia
que, em casa, uma mulher e um filho o esperavam. Um filho que
precisará da presença de um pai nos momentos de abuso que
será obrigado a passar com pouco menos de 10 anos de idade,
mesmo sem ter a consciência de que está sofrendo violência se-
xual. Situação que logo mais narrarei para você ficar a par.

Esse pai, cansado da vida instável, pensou em comprar uma


arma em uma feira de trocas e vendas. De início, o objetivo era
se matar e se ver livre das responsabilidades. Depois, o objetivo
se tornou assaltar. Ideia dada por um dos amigos de infância, de-
sempregado e sem perspectiva de encontrar outra fonte de renda.
Não realizou nenhuma das duas opções. O dinheiro que conse-
guiu para comprar a arma foi desviado para os litros de cachaça.
Se arrependia por não ter corrido atrás de um estudo qualificado
e cursos profissionalizantes. Deveria ter terminado o ensino bá-
sico e entrado em alguma faculdade. Talvez, com algum diploma
e uma profissão, não estivesse passando por isso. Mal sabe ele
que até as pessoas com certificados de conclusão de cursos su-
periores, mestrados e doutorados passam pela mesma situação,
sem conseguir um trabalho fixo. Não por falta de capacidade e
qualificação comprovada, mas por falta de contatos e do famoso
Q.I - Quem Indique. Uma realidade injusta.

72
Em uma de suas noitadas, reencontrou com uma antiga gerente,
que tem o dobro da sua idade. Ela começou a pagar bebidas para
ele e o seu amigo. Sempre sentiu uma atração forte pelo ex-fun-
cionário. Era uma mulher na faixa dos 40 anos, mas era de uma
elegância e sensualidade que deixava qualquer homem com os
olhos fixos nela.

Depois de beber bastante, a mulher o convidou para continuar


a beber em sua casa. Ele aceitou. Lá, tomaram vinho da melhor
qualidade e transaram por horas. Fazia tempo que ele não goza-
va tão gostoso. A ex-gerente sabia o que estava fazendo, princi-
palmente quando o pênis dele se encontrava em sua boca.

Ela adormeceu. Ele começou a andar pela casa, admirando os


móveis e equipamentos de última geração espalhados pelos
cômodos. Pensou se poderia pegar algo para vender, com certeza
ela não sentiria falta. Se tivesse sorte de encontrar o esconderijo
das notas de dinheiro, melhor ainda. Procurou com bastante
cuidado, voltando sempre para o quarto para ter a certeza que a
sua antiga patroa continuava a dormir.

Ele se encontrava sob efeito de álcool, mas sabia exatamente o


que estava a fazer. Precisava sair dali com algo de valor. Seu filho
chorava de fome e ele se sentia impotente ao escutar a reclama-
ção do herdeiro. A sua companheira conseguia desenrolar umas
poucas notas de dinheiro fazendo serviços domésticos, era isso
que mantinha o sustento da família após a demissão dele. Ele,
porém, se sentia humilhado. Não podia deixar uma mulher ser a
fonte financeira da casa. Esse seu pensamento o fez roubar umas
joias e uma boa quantia de dinheiro da ex-gerente, que continuou

73
a dormir. Pegou as chaves das portas da entrada, abriu apressa-
do cada fechadura e fugiu. Nos dias seguintes, não chegou nem
perto do bar onde reencontrou a mulher.

“Onde conseguiu o dinheiro?” perguntou a companheira, descon-


fiada, quando ele chegou com uma quantia que não se consegue
tão facilmente.

“Peguei um serviço ontem de noite. Te falei…”

“Não, me falou apenas que ia encontrar com aquele seu amigo.”

“Mas foi de última hora, tive a impressão de ter avisado.”

“Quanto tem aí?”

“O suficiente para garantir o almoço de uma semana. Vamos com-


prar algo para o nosso filho. Vocês já comeram algo?”

O valor que tinha guardado estava acima do limite considerável,


por isso não podia aparecer, do nada, e sem emprego fixo, com
a quantia que escondia. Não demorou muito, entretanto, para o
dinheiro acabar. O pai do bebê, devido ao roubo cometido, estava
frequentando poucos lugares. Estava com medo de ser visto pela
sua ex-gerente, que poderia ter contratado alguém para mandar
matá-lo ou denunciá-lo. Ele viverá nesse medo até que, certo dia,
resolve tentar a sorte em outro estado. Não aguentava mais entre-
gar currículos e não ter nenhum retorno. A sua companheira, de
início, foi contra a iniciativa.

“Onde você vai conseguir dinheiro para a viagem e para se man-


ter lá nos primeiros dias?” indagou ao marido.

74
“Vou pegar dinheiro emprestado com o cara que vai comigo.
Quando me fixar em algum emprego lá, devolvo a ele.”

“Isso é certo mesmo? Como vamos ficar aqui, sem você?”

“Isso é por pouco tempo. Assim que eu puder, irei mandar bus-
cá-los. Tenho fé em Deus que lá terei mais sorte. O que não dá
é viver da forma que estamos vivendo, sem dinheiro fixo, sem
planejamento e nos sustentando com a mixaria que você ganha
quando pega serviços na casa de alguém. Estou de saco cheio.”

“Eu entendo…”. A mulher começou a reconsiderar a proposta. Pe-


dia a Deus que isso fosse a estrada para melhorarem de vida.

Arrumou a mala. Não tinha muito o que colocar dentro, os per-


tences eram poucos. Era possível contar em uma das mãos as
peças de roupa que tinha à disposição no guarda-roupas. Depois
da demissão, as roupas que tinham foram se inutilizando com o
tempo e não possuía recursos para substituí-las.

A mulher e o bebê tinham o acompanhado até a rodoviária. Quan-


do partiu, o bebê olhava, sem entender muito bem, aquele ho-
mem que subiu em uma grande caixa com rodas e umas abertu-
ras enormes para circular o vento, onde pessoas acenavam para
as outras pessoas que estavam fora da caixa. Quando ficar mais
velho, não lembrará disso, apenas irá sonhar com um homem que
sobe num ônibus, prometendo voltar e não volta mais.

75
Ele tentará a sorte nesta viagem. Quando chegar lá, passará por
muitas dificuldades, mas irá se organizar e conseguir sobreviver
com o pouco que começará a ganhar. Lá, irá refletir sobre a anti-
ga vida e as responsabilidades que tinha: “Se eu vivesse só, não
gastaria tanto dinheiro e ficaria livre de qualquer obrigação.”

Passaram dias sem ele entrar em contato com a companheira.


Ela esperou. O homem que a deixou com promessas de buscar
ela e o filho, porém, nunca mais entrou em contato. Sumiu com-
pletamente da vida dela, que demorou a aceitar o fato de ter sido
abandonada com uma criança de colo.

Anos mais tarde, quando ele estiver assistindo ao jornal diário, irá
se comover com a história de uma travesti que foi violentamente
espancada e encontrada morta, boiando no rio da cidade em que
morava anos atrás. Nunca saberá que seu instinto o fez se lamen-
tar porque estava assistindo a notícia da morte do próprio filho.

Os anos se passaram. A mãe abandonada se esforçava ao máxi-


mo para garantir o sustento dela e do filho, que já estava em uma
idade onde já era possível perceber a feminilidade natural. Quan-
do ia à escola, os meninos riam do seu jeito, jogavam bolinhas de
papel nele durante a aula, derrubavam o seu lanche de propósito,
escondiam cadernos e outros pertences que só eram devolvidos
no outro dia, quando a mãe da vítima do bullying ia fazer as recla-
mações devidas na direção.

76
Essa perseguição era constante. Às vezes a criança fingia algu-
ma doença para não precisar enfrentar os inimigos conquistados
na escola. A mãe dele mudou-o de escola duas vezes em um
único ano, mas sempre tinha algum grupo de colegas que o usa-
va como mira das brincadeiras e piadas sobre sua feminilidade.
Ela sabia o motivo das perseguições, mas tentava ajudar o filho a
superar isso. Dizia que era normal, que todas as crianças passam
por isso, e, quando fosse mais velho, ninguém iria brincar assim.

As brincadeiras cessaram quando certo dia o seu filho jogou um


grampeador no rosto de um dos perseguidores, fazendo abrir um
talho na testa e o sangue escorrer em abundância. Foi suspenso
por três dias, enquanto os que cometeram bullying contra ele não
foram suspensos um dia sequer. Injustiça social sendo aplicada
até no ensino infantil.

Certo dia, a mulher abandonada conheceu um homem, novo mo-


rador da comunidade. Era de uma gentileza e charme que a fez
cair facilmente diante das suas belas palavras. Começaram a se
encontrar quando havia oportunidade, principalmente quando o
filho estava na escola e ela não tinha serviços a realizar fora de
casa. Há anos não ficava a sós com alguém do sexo oposto. Se
apaixonou rapidamente e começaram a morar juntos.

Um erro da parte dela, pois se tivesse procurado melhor sobre o


passado do novo companheiro, não o deixaria nem chegar perto

77
do filho. Aconteceu, infelizmente, ao contrário. Ele se aproximou
com muita facilidade da criança, presenteando-o constantemente.
Levava-o para comprar guloseimas, ir ao parque e outras progra-
mações que as crianças adoram. Quando tinha algum problema
na escola relacionado a alguma brincadeira de mal gosto para
com o enteado, ele fazia questão de estar presente. A mãe, iludi-
da, pensava que tinha encontrado o homem ideal. Na sua mente,
tudo estava ocorrendo perfeitamente bem.

“O meu filho o adora! Agradeço a Deus por ter me presenteado


com um homem maravilhoso. Melhor que esse, eu não encontra-
ria.” Esse era o seu depoimento quando estava a conversar com
as amigas.

“Me diz onde tu achou essa relíquia. Qual o segredo?” pedia, em


tom de brincadeira, uma das amigas, levantando as mãos e ba-
lançando a cabeça, em reprovação pelas experiências amorosas
as quais passou.

As mãos do padrasto estavam se tornando cada dia mais leves


e maliciosas. Batia na bunda do menino, beliscava o pênis dele,
alisava a coxa e beijava-o na boca. Para quem visse, eram trocas
de carinhos normais entre um adulto e uma criança com alto grau
de intimidade parental. A criança, futura travesti, na sua mais pura
inocência, não sentia a real intenção daquele homem.

78
Infelizmente, achamos que, por uma pessoa ser próximo à família,
morar na casa, e mostrar-se um ser de muita gentileza e honesti-
dade, podemos confiar nela 100%. As estatísticas indicam que a
maioria dos abusos sexuais são cometidos por pessoas próximas
às vítimas, pois a confiança e acessibilidade facilitam o ato. O
padrasto e o enteado entrarão em breve nos gráficos das esta-
tísticas, mas serão números anônimos, silenciados, como muitos
casos que acontecem. Casos que desaparecem com o tapar de
bocas e a vergonha de tornar público um ato de abuso sexual que
vem acontecendo debaixo dos narizes.

O padrasto e o pequeno ficaram a sós em casa. Sempre acontecia


isso quando a mãe da criança era chamada para realizar os seus
serviços de diarista. Assistiram desenhos animados, brincaram. O
homem sabia que seu enteado gostava de brincar com bonecas e
vestir as roupas da mãe, por isso sempre deixava-o fazer. Tinham
umas bonecas escondidas para, quando estivessem a sós, ele
brincar à vontade.

A mãe sabia do destino do filho, era questão de alguns anos para


ele se revelar como homossexual. Amava-o demais para poder
rejeitá-lo por esse motivo, só não queria tratá-lo como tal. Já
bastava a rejeição do pai e da sociedade. Seu filho merecia a
mãe ao seu lado.

Enquanto assistia o desenho favorito, o filho abandonado pelo pai


sentia cócegas e uns arrepios enquanto a mão do seu padrasto
alisava algumas partes íntimas dele. Sorria, até. Talvez fosse uma
das inúmeras formas de brincar. Se ele estava fazendo isso, en-
tão, podia fazer. Na sua mente inocente, ele era um adulto, e os

79
adultos sabiam o que é certo e o que é errado. Os toques íntimos
continuaram. O pênis do abusador estava ereto. Ele o esfregava
lentamente com a mão livre, aumentando o tesão. Imaginou a
mão do menino entrando por dentro do calção e puxando o seu
membro sexual para fora. No momento, a cena ficou apenas na
imaginação do homem.

“Está na hora do banho, rapazinho.” disse o homem enquanto se


levantava. Puxou a criança em direção ao banheiro.

O padrasto ajudou o menino a tirar a roupa e a ensaboá-lo. Pas-


sou um bom tempo ensaboando o pênis e o meio das nádegas da
criança. Depois, tirou a própria roupa e começou a se ensaboar.
Pediu ao pequeno para ensaboá-lo também, já que, antes, tinha
feito isso por ele. Na inocência, o pedido foi realizado. Não vou
continuar com a narração por que até eu, criador desse ensaio
com personagens, não aguentei descrever o fato. Vamos apenas
deixar claro que esse foi o primeiro dia, de muitos, a acontecer a
violência sexual.

Horas depois, a mãe da vítima chegou em casa e o encontrou


calado, isolado, distante dela e do atual marido. Pensou que ele
estava doente e que no outro dia estaria melhor. Não melhorou.

As semanas foram passando e os abusos sexuais aconteciam


de forma recorrente. O comportamento da criança era cada vez

80
mais estranha, negou até um convite de um dos tios para ir à
um parque de diversões junto com os primos. A mãe dele, sem
entender, procurava pelos motivos que poderiam ser os respon-
sáveis pelo estranhamento do filho. Não encontrou nenhum. Se
não fosse pelas ameaças feitas durante os abusos, a criança já
teria falado, explicado o que estava realmente acontecendo, que
o homem que ela levou para morar em casa estava o tratando de
uma forma que ninguém nunca o tratou.

“Não fale para sua mãe, ou senão ela vai morrer. Isso é segredo
meu e seu. Se alguém ficar sabendo disso, sua mãe morre. Vai
querer perder a sua mãe pra sempre?” Eram as palavras que a
criança escutava quando estava a sós com o padrasto.

Diante do medo inerente às crianças de perder a mãe, o meni-


no ficou calado. E permanecerá calado, imaginando que, se co-
mentar algo com alguém, perderá a mãe. Uma ameaça usada
por aqueles que exploram e abusam crianças e adolescentes. As
ameaças continuaram até o dia em que o abusador, após sair do
trabalho, foi surpreendido por um assaltante e baleado.

“Bora, parceiro, isso é um assalto!” falou o assaltante, levantando


a camisa e tirando a pistola escondida por dentro do calção. “Pas-
sa o celular e a carteira! Rápido!”

O padrasto, sem hesitar, tirou o celular e a carteira dos bolsos.


Por um breve momento, o assaltante abaixou a arma, pois os mo-
vimentos que fez para pegar os pertences roubados o atrapalhou
por uns segundos. Segundos necessários para a vítima do assalto
pensar em reagir. Estava diante de apenas um bandido e poderia

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se sair bem, já que passou anos como professor de artes-marciais
em uma escola infantil. Escola em que fez duas vítimas de abuso.

Quando o padrasto abusador se preparou para reagir, o assal-


tante percebeu o movimento estranho e, rapidamente, levantou
a arma e puxou o gatilho. Os dois se abraçaram, lutaram. A arma
pulou da mão do bandido. O sangue que escorria da perna da
vítima, em decorrência da bala que o atingiu de raspão, o fez
perder as forças gradativamente. O assaltante conseguiu ganhar
a luta, batendo-lhe fortemente no rosto com uma pedra alcançada
durante a batalha. Só parou de bater após perceber que os dois
olhos do perdedor estavam estourados. Pegou a arma no chão e
fugiu. Mais um homicídio nas costas. Continuará a cometer latro-
cínios até o dia em que morrerá após um assalto à uma loja, cujo
dono, exausto após tantos roubos sofridos, esconde uma arma
debaixo do balcão. O dono reagirá, descarregando nele toda a
raiva acumulada após todas as investidas contra a loja.

A viúva chorou desesperadamente, sendo consolada pelas ami-


gas mais próximas. Gritava contra o mundo, gritava contra Deus.
Não entendia o porquê a vida tinha levado o homem que a fez ser
feliz e se sentir segura após o pai do seu filho a abandonar. Per-
guntava a Deus, aos Orixás, à Jurema Sagrada, mas, por felici-
dade dela, não haviam respostas. É uma daquelas situações que
nos deparamos e não entendemos o motivo, ficamos indagando
as forças superiores por terem permitido tal fatalidade. Quando,
na verdade, o universo permite isso para nos proteger, mesmo
se calando quando precisamos de respostas para ficar a par do
motivo.

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“Por que logo ele? Por que, meu Deus?” gritava em prantos no
ombro de uma das amigas durante o funeral.

Durante o dia do funeral, o seu filho ficou na casa de uma das


tias, brincando com alguns primos. Demorou para a mãe dizer
a ele que o seu padrasto “foi morar no céu após uma briga com
um homem feio”. Na mente da criança, se formou uma cena onde
o homem abusador subia uma escada branca, onde os anjos o
esperavam no término dela. Por muitas noites, viu a genitora cho-
rando, falando o nome da vítima do assalto, pronunciando algu-
mas coisas que não conseguia entender.

As noites na casa foram silenciosas e solitárias. O filho vivia ca-


lado, com um medo inconsciente de ficar com uma outra pessoa
que não fosse a mãe. Nos dias em que a violência foi mais in-
tensa, suas partes íntimas doíam e sangravam. Não queria ficar
a sós com alguém, pois esse alguém poderia querer brincar da-
quele jeito, e daquele jeito ele sentia dores. A mãe nunca se dava
conta do porquê o seu marido fazia de tudo para dar banho nele
e trocar suas roupas.

O abuso nunca foi trazido a público e muito menos denunciado.


Nem quando o menino se tornou adolescente e começou a en-
tender o que realmente acontecia quando ficava a sós com o pa-
drasto. Após o acesso às informações, às palestras assistidas na
escola sobre o abuso e exploração sexual, veio a entender que
tinha sido uma vítima. Quando participava de debates sobre o
tema, a sua vontade de testemunhar era grande, mas o silêncio
tomava conta.

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8

Nunca mais a mãe dele se envolveu com outro homem, o objetivo


da sua vida se limitou apenas a sustentar a casa e o filho. Conti-
nuou a trabalhar com serviços domésticos e cuidava, às vezes, de
uma idosa nas horas noturnas. O seu filho já era um adolescente
e sabia cuidar muito bem da casa, por isso não havia preocupa-
ções em deixá-lo sozinho. O adolescente, já bem resolvido em
relação à sexualidade, vestia as roupas da mãe e se maquiava,
aproveitando as noites que ficava à sós em casa (um momento de
libertação para ele). Aprendeu a se maquiar assistindo às aulas
em um site de compartilhamento de vídeos. Sua vontade era sair
na rua dessa forma, se sentia poderoso quando usava roupas
femininas. Se sentia vivo, imponente, intocável. Era como se o
seu verdadeiro “eu” estivesse escondido naquelas roupas e na
maquiagem.

Na escola, tinha umas escassas amigas. Os meninos eram igno-


rantes e só chegavam perto dele para tirar brincadeiras maldosas
em relação aos seus trejeitos femininos. Não ligava, pois já tinha
se acostumado com esse tratamento discriminatória por parte da
maioria dos integrantes da sociedade.

Aos poucos, o adolescente foi adicionando adereços ao corpo,


deixando o cabelo crescer, usando roupas justas, bolsas colori-
das, brincos grandes. A mãe dele não se importava, pois desde
cedo percebeu a homossexualidade do filho. Tinha apenas o re-
ceio de como ele seria tratado nas ruas, se seria respeitado na
escola, se conseguiria um emprego honesto, se as pessoas iriam
olhar para o seu caráter ao invés da sexualidade. Talvez ela não
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aceitasse com facilidade se tivesse ao lado a figura do pai dele,
que, com certeza, não iria ser de acordo com a situação, pois em
sua família nunca se aceitou isso. Segundo eles, era ir contra a
vontade de Deus, contra os ensinamentos bíblicos.

O adolescente, ainda em momento de transição para se tornar


uma travesti, era um dos melhores alunos da turma. A inteligên-
cia e facilidade de assimilação dos conteúdos abordados pelos
professores eram naturais, desde criança aprendia as coisas com
facilidade. A mãe se orgulhava e torcia para que ele traçasse um
caminho de sucesso profissional, algo que ela própria abandonou
após engravidar antes de completar a maioridade. Seu filho era
motivo de inveja por parte dos colegas. Não conseguiam aceitar o
fato de um homossexual se dar melhor que eles nas provas e de-
bates. Para eles, essas pessoas anormais eram seres inferiores,
seres que só vieram ao mundo para servir aos desejos carnais
mais infames, seres que servem apenas para manter os índices
elevados dos gráficos de pessoas contaminadas com doenças
sexuais. Um pensamento retrógrado, mas que se mantém atual
na mente daqueles que chamamos de preconceituosos.

O protagonista desse ensaio com personagens sabia que tinha


que ser o triplo melhor no que fosse fazer para poder ser aceito. E
ainda corria alto risco de ser rejeitado pelo seu estilo. Aconteceu,
por exemplo, quando participou de uma seleção para uma vaga
de estágio na cidade onde morava. Tirou as maiores notas, fez
a melhor redação, mas, quando foi na entrevista cara a cara, foi
desclassificado. Não pelo fato de não ter desenrolado um bom
argumento diante das perguntas, mas pelo fato de a empresa não
querer um homem, vestindo adereços de mulheres, recebendo

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clientes. Os clientes poderiam não gostar e deixar de frequentar
o local. Para o entrevistado, disseram que iria ligar caso fosse se-
lecionado para não deixar transparecer a verdade do porquê não
foi aceito. A ligação nunca foi feita. E nunca foi feita por nenhuma
das empresas que tentou uma vaga de emprego.

Essa realidade o fez desmotivar e a sentir vergonha dele mes-


mo. Do que estava adiantando estudar tanto, correr atrás de uma
vida de honestidade, se não seria aceito do jeito que era? Cho-
rava em silêncio, segurando o travesseiro contra o rosto. A vida
com ele sempre foi maldosa. O pai o abandonou cedo, sempre foi
vítima de bullying na escola, foi vítima de abuso sexual por par-
te do padrasto falecido, não conseguia uma vaga de estágio por
ser homossexual. A mãe o consolava, sem sucesso. O sonho de
se tornar um advogado e defender as causas do movimento gay
estava se desfazendo aos poucos.

“Você vai conseguir, filho. Tenha mais calma. Emprego está difícil
para todos. Você verá, logo mais alguém liga pra você. Você é
muito inteligente e aprende as coisas fácil.” tentava amenizar o
sofrimento do filho.

“Do que adianta isso, se, para todos, eu sou uma aberração?”
chorava.

Tinha momentos que, se pudesse ter escolhido, não teria nascido


gay - um termo tão pesado quanto uma cruz ao ser carregada nas
costas de alguém a ser açoitado. Nesse caso, não está sendo
açoitado pelos soldados romanos, mas açoitado pelas palavras e
atitudes daqueles que os rodeiam.

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9

O jovem não tinha alguém que poderia chamar de melhor ami-


ga e, muito menos, amigo. Era excluído nos grupos que eram
formados na escola. Quando achava que tinha encontrado uma
pessoa a quem pudesse confiar os seus sentimentos, segredos
e desejos, era surpreendido por alguma atitude humilhante por
parte da falsa ou falso confidente. Exemplo disso foi uma jovem,
popular pela beleza e inteligência, que começou a se aproximar
dele após uma divisão de duplas sorteadas por um dos professo-
res da escola para produzir uma atividade. Precisavam marcar em
algum local para a realização. A jovem ficou receosa de levar um
homossexual para sua casa. Não sabia qual seria a reação dos
pais, mas precisava ser na casa dela por conta da disponibilidade
de um computador pessoal e uma internet boa para ser feita a
pesquisa e a construção da proposta.

Antes de marcarem um dia e hora, a jovem popular confirmou


com os pais em qual dia e momento os dois estariam fora de casa.
Quando houve a confirmação, marcaram. Na casa, desenrolaram
em poucas horas um trabalho que era para ter sido feito em 3
dias. Se mostraram uma dupla dinâmica, com facilidades para se
entenderem e produzir com qualidade os projetos das disciplinas.
Entregaram um trabalho perfeito, melhor do que o professor es-
perava. Depois dessa atividade, a jovem fazia questão de fazer
equipe com ele. Escutou até graças dos amigos e amigas. Diziam
que ela “tinha encontrado uma nova amiga e iriam trocar absor-
ventes quando uma ou outra precisasse”. A jovem ria, mas não
deixou de se aproximar cada vez mais do nosso protagonista.

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Após semanas trocando mensagens em redes sociais, fazendo
trabalhos juntos, o homossexual se sentiu confortável para dizer
alguns desejos íntimos. Em uma conversa online, contou um se-
gredo. Segredo que viralizou nos celulares da escola em que fre-
quentava:

“Amiga, preciso te contar algo” digitou ele.

A jovem visualizou e respondeu:

“Oi, amiga. Pode falar. Estou fazendo umas coisas aqui, mas dá
pra conversar tranquilamente.”

“Sabe aquele seu amigo, do cabelo encaracolado, com uma ta-


tuagem no braço direito?”

“Sei sim. O que tem ele? Ele falou algo pra você?” perguntou a jo-
vem popular, preocupada com as brincadeiras rotineiras por parte
de alguns colegas para com ele.

“Não, falou nada não… É que eu sou super a fim dele, sabe? Há
meses que o olho. Aquele sorriso dele, o jeito de homem, o corpo
forte dele… Aquela tatuagem. Ai meu Deus! Tudo isso me deixa
louca demais…” revelou o homossexual.

“Sério, amiga? Kkkkkkk Me conta mais, vai! Como surgiu o inte-


resse? Falasse com ele algum dia? Eu às vezes acho que ele é
gay, as meninas dão em cima dele e ele não tá nem aí.”

Continuaram a conversar.

No outro dia, quando o nosso protagonista chegou na escola, as

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pessoas riam dele. Quando passava por um grupo de pessoas,
alguém pronunciava baixinho o nome do seu objeto de desejo,
nome que falou em segredo para a amiga na noite anterior. Não
estava entendo nada. Ao esbarrar em um outro grupo de amigos,
percebeu, na mão de um, o celular que mostrava no display o
print de alguma conversa. Enquanto liam, riam. Olharam para o
homossexual, motivo das risadas constrangedoras, e continua-
ram a rir cada vez mais alto.

Nesse momento, entendeu o que estava acontecendo: a conversa


íntima, a qual segredou seus sentimentos por alguém, foi vazada.
Ficou estático, era o centro das atenções. Não sabia o que fazer.
A vergonha instalada em sua alma o fez perder os movimentos de
cada centímetro do corpo. A cada estudante que passava e apon-
tava para ele, soltava o riso impossível de ser segurado diante de
uma situação alheia tão constrangedora como essa. A algazarra
gerada foi intensa, o barulho se tornava ensurdecedor.

A responsável pelo vazamento da conversa observou de longe a


situação. Ela pensou em ir falar com ele, mas não ia se expor nes-
te momento. Quando chegar em casa, irá chamá-lo numa rede
de troca de mensagens instantâneas, mas não haverá retorno.
Mandará mensagens, pedindo desculpas, tentando argumentar
explicando que alguém tinha pego o seu celular, visto a conversa
e mandado para todos da escola. Não teve sucesso de resposta.

O jovem pegou suas coisas dentro da sala de aula, sob uma gri-
taria intensa. A frase que mais se escutava era: “Olha o teu boy
aqui, vai falar com ele não?”. O alvo da perseguição constrange-
dora andou rapidamente em direção à saída da escola. Celulares

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filmavam a cena.

Para o leitor mais atento e de boa memória, essa é a cena descrita


na noveleta anterior, onde a adolescente da tatuagem e sua ami-
ga interromperam a conversa para entender o motivo das risadas
altas. O homossexual atravessou a rua, correndo, com lágrimas
escorrendo pelo rosto, cerrando o punho com tanta força que as
unhas grandes estavam lhe ferindo a mão. Mesmo distante, ainda
escutava as risadas.

Depois desse dia, nunca mais foi à escola. Perdeu a vontade de


estudar e correr atrás do seus objetivos acadêmicos e profissio-
nais. O apoio da mãe não foi o suficiente para sustentá-lo. Não
adiantou ser o triplo melhor do que as outras pessoas, o seu es-
tilo era um muro que impedia a visão do que havia por trás. Um
erro por parte dos que não enxergam a beleza da alma de um
ser humano porque se esbarram diante de um estilo considerado
anormal para os padrões da sociedade.

10

Se escondeu do mundo, estirado na cama sob o lençol. Parecia


até que, ao se cobrir com um pedaço grande de pano, iria se livrar
da triste realidade discriminatória na qual vivia. Chorava um choro
silencioso. Não queria preocupar a mãe, ela já tinha problemas
financeiros para se preocupar. Para ele, o problema era apenas
dele. Quem nasceu diferente dos outros foi ele, e terá que viver
estigmatizado com isso durante o pouco tempo de vida que tem.

90
Quando a mãe não estava em casa, comprava bebidas e se em-
briagava durante a madrugada, isolado pelas paredes do quarto.
Era o único momento em que se sentia leve e se escondia por
algumas horas dos problemas. Acumulava as garrafas de bebi-
das debaixo da cama, jogando-as fora quando o caminhão coletor
de lixo estava prestes a passar. À medida que ia se envolvendo
com as bebidas alcoólicas, a transição para se tornar uma tra-
vesti acontecia paralelamente. Embriagado, se vestia como uma
mulher e tinha coragem de sair às ruas e encarar as pessoas
nos olhos, deixando alguns intimidados. Parecia uma fantasia de
super-herói, que, ao ser colocada, transformava um simples ser
humano num dos seres mais fortes do universo. Ele se sentia as-
sim, poderoso, inabalável, inatingível. Era algo maior do que uma
mulher, era algo maior do que um homem. Era uma travesti.

11

Na primeira vez que se vestiu completamente como uma mulher


e saiu do quarto, a mãe tomou um susto, ficou paralisada. Talvez
tenha sido por conta beleza da mulher que surgiu na sua frente ou
pelo fato de nunca ter esperado que o filho assumisse uma iden-
tidade social de mulher. Prefiro ficar com a primeira opção, pois a
beleza da travesti era exuberante.

Essa beleza irá enganar a muitos homens héteros. E, mesmo sa-


bendo de que se trata de uma travesti, eles irão pagar para ir à
cama com ela. E será em um desses encontros profissionais que
nossa protagonista irá duelar com a morte e perderá.

91
***

Ao leitor e leitora:

Você deve ter notado que utilizei termos femininos para me referir
ao protagonista. Não foi erro de digitação causado por desaten-
ção, isso foi proposital. A partir de agora irei me referir a ele com
substantivos e adjetivos femininos, já que houve a transição com-
pleta e se revelou ao mundo como uma travesti.

***

A travesti sentia raiva da sociedade a qual vivia. Traçou planos


para utilizar a sua beleza e inteligência para gerar rendas atra-
vés de encontros marcados em sites de relacionamentos. Nunca
chegou a se relacionar com um homem por vontade própria. O
trauma causado na infância a fez tímida e isolada, cética daque-
les que se aproximavam dela. Ao assumir a identidade de uma
mulher, a timidez sumiu.

Por dias e noites, utilizando o celular dado pela mãe com muito
esforço, pesquisou por sites de relacionamentos, fez cadastros
em várias redes, usou as suas melhores fotos para estampar as
páginas criadas, inseriu informações básicas sobre a personali-
dade dela e começou a participar dos grupos de bate papo. Não
demorou muito para um homem, numa idade entre 40 e 50, entrar
em contato, chamando-a para uma conversa privada.

“Olá, moça!” digitou o homem.

“Olá, moço!” respondeu a travesti, acompanhada de um copo

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com vodca barata misturada com refrigerante. O efeito do álcool
a deixou solta para dialogar com fluência e sem pudor algum. As
conversações online sempre nos deixam mais soltos. As redes
sociais têm a prerrogativa de nos deixar à vontade.

“De onde você é?” perguntou o homem de meia idade, admirado


com as fotos sensuais tiradas pela travesti. Para quem olhasse
as fotos, jurava que estava a enxergar a mulher mais feminina do
mundo. “Adoraria te conhecer. Você é linda! Posso te pegar de
carro onde você quiser!”

O homem foi direto ao assunto, pois a rede social em que estavam


a conversar tem como objetivo estreitar relações entre pessoas
que procuram por diversão sexual. Marcaram na noite seguinte.
Aproveitou que a mãe estaria dormindo fora, cuidando de uma
idosa. Se produziu perfeitamente bem para o encontro, tanto que
andava pelas ruas e escutava assobios dos homens e olhares de
inveja das mulheres.

Quando chegou no local marcado e viu um carro se aproximando,


se arrependeu. Não era para estar naquela situação, marcando
encontros sexuais pela internet. A que nível tinha chegado? O
carro se aproximou, buzinou, mas passou direto. Não era o ho-
mem de meia idade. Aproveitou que não era o carro esperado e
foi embora. Andou o mais rápido possível sob um luar sombrio e
calado. Minutos depois, o celular começou a tocar. Reconheceu o
número, era o homem. Não atendeu nenhuma das ligações.

Ao chegar em casa, abriu a garrafa de vodca e tomou um gole de-


morado. O celular continuou a tocar. Colocou no modo silencioso.

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Dormiu embriagada e com a roupa que tinha saído.

12

No dia seguinte, não entrou em nenhuma das suas redes sociais


criadas recentemente. Ficou na frente de casa, sentada, olhan-
do as pessoas que passavam pela rua: umas sorridentes, outras
sérias e determinadas, outras com expressão de preocupação,
algumas até com lágrimas enchendo os olhos em decorrência de
alguma situação cotidiana. Tentava fazer uma leitura da vida des-
sas pessoas, divagando sobre cada um dos que entravam em seu
campo de visão. Tentava se imaginar vestindo o corpo daquele
ser humano, roubando-lhe, por uns instantes, a vida.

“Será que aquele homem ou mulher sofreu, sofre ou ainda sofrerá


algo que pode prejudicar a vontade de viver dele(a)?”

“O que faz aquela pessoa andar sorridente, cantarolando alguma


música escutada através do fone de ouvido?”

“Se eu perguntar qual a receita do sorriso desenhado naquele


rosto, a pessoa irá indicar algum livro ensinando passo a passo
para eu me tornar um ser humano com ânsia de aproveitar cada
minuto que a vida me presenteia?”

As reflexões ficaram para si, engolidas pela fome que a torturava


há dias. Sua casa se encontrava num momento financeiro compli-
cado. Apenas sua mãe trabalhava, e os clientes adquiridos duran-
te os anos foram descartando os serviços dela para amenizar os

94
gastos orçamentários da família.

O dinheiro disponível estava ficando raro, o pagamento das con-


tas atrasava por meses. As dívidas geradas nos mercados e com
parentes deixaram a mãe dela em um desespero crescente. Che-
gou a ir de porta em porta, oferecendo seus serviços domésticos.
Algumas vezes, uma alma bondosa aceitava a proposta e dava
uns trocados pelo serviço prestado. A crise econômica atingia a
todos, principalmente os que se encontram nos primeiros degraus
da escada financeira.

“Vamos comer isso de novo, meu filho.” lamentou a mãe da tra-


vesti.

Ela ainda não tinha se acostumado com a ideia de se referir ao


filho através de substantivos femininos. Estava tentando, mas o
modo de tratamento estava impregnado na cultura gramatical.

“Trabalhei pouco esta semana. O dinheiro mal deu pra pagar as


contas de energia e água. Tive que arrumar, mais uma vez, em-
prestado com o seu tio. Já não aguento mais isso. Estou envelhe-
cendo e as forças estão indo embora junto com a idade.”

“Mãe, o que importa é que estamos bem, com saúde. Vamos co-
mer o que tem. Quando não tiver mais nada para comer, vamos
nos abraçar e orar a Deus para que no dia seguinte nos mande
algo.” consolou a travesti, segurando as lágrimas diante da mãe.

“Eu sei, filho… Eu sei…”. Chorou. Chorou muito.

A travesti a abraçou. Ficaram assim por um bom tempo.

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13

Tinha que tomar uma atitude sobre isso. A travesti precisava fa-
zer algo, não podia deixar a mãe carregando a sobrevivência das
duas. Lembrou das travestis que ficavam nas esquinas no centro
da cidade, vendendo horas de prazer aos homens que aparecem
de carro ou moto. Tinha consciência que era linda e conseguiria
facilmente um cliente em questão de minutos.

Decidida, se produziu com cuidado, colocou as roupas mais jus-


tas e se maquiou divinamente. Olhava-se no espelho e não en-
contrava nenhum rastro do homem o qual tinha nascido. Era, sem
sombras de dúvidas, uma mulher. Impossível dizer o contrário.

Saiu de casa apenas com uma bolsa à tiracolo. A mãe dormiu


cedo e não a escutou abrindo as portas. Estava determinada em
vender o corpo, mesmo sem experiência sexual. Aprenderia na
prática, deixando o instinto tomar conta da situação. Pegou o ôni-
bus na frente de casa. A passagem foi paga com moedas achadas
com muito sufoco dentro das gavetas da cômoda do seu quarto,
reviradas em desespero para encontrar os poucos centavos que
faltavam para completar a passagem de ida. A de volta iria conse-
guir com o corpo, e conseguiu muito mais.

Quando chegou no centro da cidade, se deparou com algumas


travestis que já se encontravam nas esquinas, acenando para os
motoristas e motoqueiros que passavam. Gritavam frases obsce-
nas, mostrando os seios siliconados e virando a bunda desnuda,
tentando chamar a atenção para conseguir clientes. Umas fuma-
vam maconha enquanto outras bebiam doses de cachaça. A maio-

96
ria tinha usado drogas mais pesadas. Esses são os anestésicos
para a dor da vida medíocre e desumana a qual foram escolhidas
pelo destino para viver. Muitas entraram nisso pelo mesmo motivo
da travesti principal desse ensaio com personagens: necessidade
e falta de uma oportunidade de trabalho que as aceitassem como
elas são, as empurrando em direção às margens da sociedade.

A travesti, iniciante na vida de prostituição, sentiu o impacto do


que os seus olhos presenciaram e do cheiro nauseabundo da noi-
te. Nunca tinha sentindo um odor tão forte como o cheiro da noite
no centro da cidade. Em algumas esquinas, recebia no rosto um
soco que era a mistura do odor de urina, fezes e sexo. Uma ânsia
de vômito subiu à garganta. Pressionou a mão contra o rosto, mas
o cheiro atravessava sua pele, músculos e ossos.

Caminhava lentamente pelas ruas, escutando os assobios ame-


drontadores e as palavras de ameaça lançados pelas concorren-
tes. A travesti estava com medo, firmando o pensamento nas for-
ças divinas, pedindo proteção. Olhava atenta para todos os lados,
receosa de que alguém aparecesse por trás de algum fiteiro para
assaltar ou fazer outro tipo de maldade. Escutava histórias e as-
sistia nos jornais as atrocidades cometidas por estranhos contra
as travestis: pedras jogadas, ovos podres lançados e tiros dis-
parados em direção delas. Sabia do risco que estava tomando,
mas a vida a obrigou tomar tal atitude. Sua força e determinação
para galgar uma posição honesta na pirâmide social e financeira
foram tiradas pela própria pirâmide, que não permite a subida de
degraus para pessoas longe do padrão determinado por ela.

Parou uma esquina, distante daquelas travestis que se conside-

97
ram donas das ruas. Carros e motos param, conversam por uns
segundos com as travestis que entram no carro ou sobem na moto,
dependendo do transporte em que o cliente se encontra. Antes
disso, alguns pediam para verificar o material que iriam consumir.
Eram verdadeiras mercadorias do sexo. As travestis, em muitas
ocasiões, levantam as minissaias, ficam de costas para o motoris-
ta e se inclinam, facilitando a visão dos compradores do produto
a ser adquirida.

A novata não precisou fazer nada disso. Um carro veio em sua


direção. O homem que dirigia não tirava o olho dela. Era possível
ver, através do para-brisa, os lábios dele se movimentando igual
a quando estamos prestes a saborear a nossa comida favorita.

“Olá.” cumprimentou, de forma seca, ao parar o carro. “Quanto


é?”

Não sabia o valor que pediria, tinha esquecido de listar os preços


que cobraria dependendo do serviço prestado. Isso só fez mostrar
a inocência e falta de experiência no ramo. Experiência que logo
irá adquirir após muitos clientes.

“60” respondeu, segurando forte a bolsa e os olhos bem abertos,


sem piscar em nenhum momento. A primeira experiência sexual
seria através de um programa com um homem nunca visto e em
troca de dinheiro.

“Caramba! Nem mulher de verdade é! Pode parecer com uma,


perfeitamente, mas não me engana não, rapaz! É linda, mas tenta
abaixar mais o valor aí. Vamos nos ajudar.”

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“Vai querer ou não? Tenho clientes esperando, se não quiser,
pode ir procurar as outras do outro lado”.

Não sabe como conseguiu dar essa resposta. Apontou em direção


da outra esquina, onde as concorrentes estavam com os peitos si-
liconadas à mostra, deixando os homens que passavam tocar as
suas nádegas. Essa cena fez o homem do carro sentir nojo das
outras e aceitar a proposta. Ia passar umas horas de prazer com a
mais bonita da esquina, e uma das mais ou a mais bonita travesti
que teria se relacionado.

“Vai. Entra aí. Te dou a grana após a transa”. Abriu a porta do car-
ro e a travesti entrou. Foram em direção do motel mais próximo. O
motorista sabia o caminho e os trâmites para entrar no local, pois
costumava sair com travestis enquanto a mulher estava em casa,
cuidando dos filhos e achando que o marido estava a fazer horas
extras na função de motorista particular que exercia há anos.

“Ei, dá uma mamada gostosa aqui” pediu o primeiro cliente, colo-


cando o pênis para fora, sem tirar os olhos da direção. A travesti
ficou sem reação, observando o membro ereto.

“Quando chegar lá… Calma…” falou, na tentativa em vão de se


livrar.

“Vai, porra! Deixa de frescura! Viado gosta de chupar pau, então


mete a boca logo aí antes que eu te empurre do carro e tu saia
com menos 60 no bolso. Tenho tempo pra cu doce não!” Pegou
com agressividade na cabeça dela, forçando a cabeça da travesti
para baixo, em direção ao seu pênis duro. “Vai, chupa logo.”

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Esse momento pareceu uma eternidade para a travesti, não sabia
o que fazer. Uma vontade de chorar veio à garganta, mas esse
choro voltou junto com o pênis inserido dentro da sua boca. Não
sabia fazer um sexo oral na prática. Tinha treinado por muitas
vezes em casa, utilizando uma banana e vendo dicas em vídeo,
mas não era a mesma coisa. Sentiu medo do homem não gostar
e fazer algo contra ela. Chupou. Sentia o forte gosto na boca,
uma ânsia de vômito surgiu, mas se concentrou e continuou a
chupar, até se acostumar com o forte gosto do pênis que não é
lavado há horas. O homem continuava a dirigir, de forma mais
lenta, apreciando o prazer proporcionado pelo sexo oral. Quando
dobrou a esquina da rua do motel, bateu de leve na cabeça da
travesti, avisando-a que tinham chegado. Ele mesmo colocou o
pênis de volta para dentro da calça. A travesti limpou a boca, res-
pirando profundamente, tentando recuperar o ar perdido. Entra-
ram no motel. Foram em direção ao quarto indicado.

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Assim que entraram no quarto, o cliente abaixou a calça e colocou


o membro sexual para fora. Trouxe a travesti para perto de si e,
com brutalidade, a fez ajoelhar.

“Faz ele ficar duro de novo.” disse.

Sentia o cheiro da própria saliva seca no pênis mole. Prendeu


a respiração para inibir o odor da região e colocou-o dentro da
boca, fazendo movimentos para frente e para trás até chegar na

100
ereção desejada.

Já completamente nu, o cliente jogou a travesti para cima da


cama, levantou-lhe o vestido apertado e tirou-lhe a calcinha. A
bunda que ali surgiu o deixou mais excitado. Nunca tinha visto
uma bunda tão linda. Superou qualquer mulher que tinha tido re-
lações, a curvatura e textura eram perfeitas. Parecia as nádegas
daquelas mulheres que só vemos em capa de revistas ou em pro-
gramas televisivos.

“Que bunda linda é essa!?”

A travesti sorriu, sabia que o elogio recebido era verdade. Em-


pinou o quadril, deixando na angulação perfeita para que o ho-
mem colocasse o rosto por entre suas nádegas e lambesse o seu
ânus. A travesti gemia de prazer, apertando com força o colchão
da cama, revirando os olhos. Nunca imaginou o quanto é bom.
A vontade de gritar era grande, o prazer ali proporcionado era
inexplicável. Após longos minutos chupando o ânus da travesti, o
cliente se afastou e posicionou o corpo da melhor maneira possí-
vel para penetrar a região com o seu membro sexual. Cuspiu nos
dedos e passou a saliva na cabeça do pênis, lubrificando. Depois,
o enfiou dentro dela, sem o cuidado de estar tirando a virgindade
de alguém. Ela mordia os lábios para não gritar em decorrência
da dor, omitindo o fato de ser a primeira experiência sexual. Nos
primeiros minutos deixou o homem tomar conta da situação, pois
não sabia como se comportar. Ficou inerte por um tempo. De re-
pente, um instinto sexual tomou-lhe conta e começou a rebolar,
ofegante. Sentia um prazer enorme. O homem gozou dentro.

101
Transaram novamente e com mais intensidade. Quando finaliza-
ram, tomaram um banho e vestiram as roupas para irem embora.
Antes de sair do quarto, o homem tirou da carteira uma nota de
100 e entregou para a contratada.

“Não tenho troco” falou, surpresa.

“É tudo seu, relaxe. Foi bem pago.”

“Agradecida…”

Saíram do quarto. A poucos metros, entraram no carro e foram


em direção ao local em que se conheceram. No percurso, os dois
ficaram calados. O homem estava com uma expressão de leveza
e tranquilidade. A travesti estava com um olhar diferente, profun-
do. Não era o mesmo olhar que tinha quando saiu de casa horas
atrás. Era o olhar de alguém que começou a conhecer as malícias
do mundo.

O automóvel parou e ela desceu na mesma esquina que estava


antes de ser abordada pela primeira vez.

“Vou passar por aqui outra noite, a mercadoria tá de qualidade.”


falou o cliente ao vê-la já do lado de fora. Ela sorriu como forma
de agradecer o elogio pejorativo.

Olhou o carro desaparecendo ao virar a esquina. Ficou estática


por alguns minutos. Decidiu voltar para casa, o dinheiro conquis-
tado com apenas um programa tinha sido o suficiente. Quando
deu o primeiro passo para ir embora, uma moto apareceu. Outro
cliente. Poderia sair com aquela nota de 100 ou um pouco a mais.

102
Só dependia dela. Subiu na moto e foram para o mesmo motel.

15

A travesti chegou em casa antes do amanhecer e entrou sem pro-


blemas. Tinha escondido as chaves de um modo que não preci-
sou chamar a mãe para abrir a porta. Estava torcendo para que
a mãe não se acordasse e visse o estado em que se encontrava,
cheirando a sexo, com bafo de esperma e a roupa amassada.
Sem fazer barulho, foi ao quarto e trancou a porta. A mãe estava
acordada e escutou os movimentos, mas não perguntará sobre
nada, irá esperar a filha comentar sobre onde estava. Apesar que
já desconfiava, teria certeza no dia seguinte, quando foi convida-
da pela filha para fazer compras no mercado.

“Como vamos comprar algo lá? Já estamos devendo demais, fi-


lho!”

“Não se preocupe. A gente faz as compras e quitamos as dívidas.”

Com isso, as perguntas da mãe foram respondidas: a filha estava


se prostituindo. Era o destino da maioria das travestis que conhe-
ceu na vida. Uma triste realidade, principalmente para essa, que
lutou tanto para ser o diferencial, para servir de exemplo aos ou-
tros homossexuais. Mas, infelizmente, não obteve o êxito. Apenas
mais uma na lista do fracasso.

103
16

À noite, foi novamente para o centro da cidade cumprir o


expediente. Na noite seguinte também, na próxima e nas poste-
riores. Em algumas noites ganhava bem, em outras não ganhava.
Tinha dias que, pela falta de quem pudesse contratar seus servi-
ços, rogava às pombagiras para mandar um cliente, mesmo que
fosse daqueles rabugentos, cujo prepúcio esconde um sebo com
odor enjoativo. Quando pegou o primeiro cliente nessas caracte-
rísticas, uma colega de esquina a chamou no canto e entregou
um saquinho, cujo conteúdo era parecido com sal.

“O que é isso?” perguntou, guardando o material dentro da bolsi-


nha à tiracolo.

“Dá uma cheirada nisso antes. Você vai precisar, ajuda a inibir os
odores e te instiga.”

“Entendi…”

Depois disso, virou rotina usar o pó inibidor de odores, chamado


de cocaína. Cheirava mesmo quando o cliente não era daqueles
cujo odor deixava-a com ânsia de vômito. Se viciou rapidamente.
O sexo ficava mais prazeroso e os sentidos aguçados. Sentia-se
poderosa enquanto cavalgava em cima do pênis dos clientes, a
sensação era de que estava prestes a voar. Antes, durante e de-
pois de uma transa consumia a droga. Do dinheiro arrecadado
nos serviços, mais da metade era pra pagar a droga adquirida
quando chegava no seu ponto de trabalho.

O uso de drogas e bebidas alcóolicas facilitam a rotina da pros-


104
tituição. Começou a passar dias sem ir para casa, dormindo na
casa das amigas travestis que conquistou depois de semanas fre-
quentando o mesmo local. Quando ia em casa, era para deixar
uma quantia para a mãe poder pagar as contas e comprar os
alimentos necessários para a sobrevivência. Antes de ir na casa
da mãe, ficava à espreita, olhando de longe o momento que ela
sairia de casa. Quando a mãe saia, a travesti entrava, pois ainda
tinha uma cópia da chave principal. Rapidamente, deixava um en-
velope com um bilhete e umas notas de dinheiro, suficientes para
a ela passar a semana e quitar umas dívidas.

No bilhete, sempre dizia que “a ama muito, que não podia voltar
para casa de uma mulher digna e honesta e continuar a viver do
jeito que vive, vendendo o corpo em troca de notas de dinheiro.”
A mãe, quando chegava, lia as palavras escritas cuidadosamente
pela filha e as lágrimas escorriam pela face. Guardava em uma
gaveta todos os bilhetes deixados pela filha.

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As visitas e os bilhetes ficaram cada vez mais raros durante as


semanas seguintes. As dívidas adquiridas através do uso das dro-
gas em demasia a deixaram afogada, precisava trabalhar sem ho-
rário e dia fixos para arrecadar o dinheiro necessário para ameni-
zar a situação financeira. Antes de iniciar o programa, pedia para
o cliente mostrar o dinheiro e deixá-lo separado em cima do local
mais próximo. Já escutou histórias de homens que não quiseram
pagar o valor total do serviço sexual. Diziam, antes da transa, pos-

105
suir a quantia pedida, mas, na hora do pagamento, falavam que
estavam com menos. Não podia correr o risco, pois cada nota a
perdida seria prejudicar ainda mais a sua receita.

Durantes os programas, enquanto recebia no ânus o pênis endu-


recido dos clientes, não tirava os olhos do dinheiro deixado à vis-
ta. Tinha medo que ele criasse pernas e saísse correndo dali, em
busca de mãos mais limpas do que as dela. Ao acabar o serviço,
ia logo de encontro ao seu pagamento, como um cachorro ao ser
solto para comer um pedaço de carne suculenta. Não sentia mais
prazer nas transas, tinha mais prazer em receber o dinheiro do
que o ato sexual em si. Nenhum dos atuais clientes a deixava ex-
citada, precisava de alguém com uma pegada firme para a fazer
esquecer as notas do pagamento, mesmo que fosse por breves
segundos.

Mesmo se livrando das dívidas, era necessário gerar mais dívidas


para poder sustentar o corpo com alimentos básicos do dia a dia e
o vício nas drogas. O dinheiro arrecadado não estava sendo o su-
ficiente. Começou a entrar em desespero e a esquecer de ajudar
a mãe, que, ajoelhada diante da imagem de Nossa Senhora do
Carmo, exposta no cantinho da sala de sua casa, pedia que trou-
xesse a filha de volta, que a protegesse das malícias das ruas.
Mesmo com toda a força que pedia isso, a santa não conseguia
realizar o desejo, precisava que o alvo dos pedidos também fir-
masse o pensamento nisso. Não dava para trabalhar na melhoria
de alguém se esse alguém está com a alma triturada por pensa-
mentos negativos.

A santa admirava a mulher ali prostrada com os olhos repletos de

106
lágrimas dolorosas. Tinha pena, queria poder abrir a boca de bar-
ro e gesticular umas palavras para consolá-la, parabenizá-la pelo
amor e determinação pela filha, mesmo ela sendo uma travesti
que ganha a vida vendendo sexo. Gostaria, também, de ter per-
missão para poder dizer que em poucas semanas ela receberá a
notícia da trágica morte da filha, preparando-a para o impacto que
será ver na televisão a imagem do corpo boiando no rio. Irá logo
reconhecer a filha, mesmo com o rosto inchado devido ao tempo
debaixo da água e o espancamento sofrido após tentar roubar um
cliente. A santa continuou a observar a mulher rogando misericór-
dia. Se não fosse de barro, os olhos já estariam a lacrimejar.

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A travesti caminhava pelas ruas do centro em direção à casa em


que morava com outras colegas de trabalho. Percebia os olha-
res de nojo e escutava risadas por parte de alguns homens que
assobiavam na intenção de deixá-la sem graça. A beleza de me-
ses atrás estava se distanciando, fugindo das drogas pesadas,
do álcool em demasia, do sexo com homens brutos que não têm
nenhuma preocupação com a higiene pessoal.

Quem se depara com ela consegue perceber que se trata de uma


prostituta usuária de drogas. Os transeuntes a olhavam com re-
provação, alguns até com medo. As travestis têm fama de serem
portadoras dos piores vírus contagiosos que um ser humano pode
ter, sem contar a fama de arruaceiras e boas na luta corporal.
Boatos dizem que elas costumam puxar uma navalha melada de

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sangue contaminado para ameaçar o oponente.

Antes de chegar no destino final, a travesti passou pelo centro


comercial do município. Aproveitou para procurar por uma bolsa
nova, maior do que a usada atualmente. Entrou em uma loja. A
atendente que foi ao seu encontro estava visivelmente com medo,
sem nem piscar os olhos. Orava em silêncio, pedindo a Deus que
a travesti escolhesse logo o que queria e fosse embora, sem arru-
mar confusão ou furtar. Segurava as mãos trêmulas, nervosa, ten-
tando disfarçar o medo. A travesti, percebendo isso, a encarava
quando perguntava algo sobre os materiais das bolas na intenção
de provocar mais nervosismo na jovem. Comprou a bolsa deseja-
da e saiu, por alívio da atendente e dos outros funcionários.

No caminho para casa, notou um aglomerado de pessoas ao re-


dor de um ônibus. Ambulância e carros da polícia impediam o
acesso ao transporte. Se aproximou, curiosa. Pessoas choravam,
as mais idosas rezavam seus terços, balbuciando palavras que
deduziu ser uma oração. Ao se aproximar, olhou para dentro do
ônibus. Vidros estraçalhados, formas circulares nos vidros e na
carcaça do ônibus. Entendeu logo que houve troca de tiros. Escu-
tou algumas pessoas comentando sobre o ocorrido:

“Deus os levou para um lugar melhor do que este mundo… Que


morte injusta e trágica! Logo um bebê…”

“Os policiais estão caçando os miseráveis. Quando pegá-los, que


façam a mesma coisa que fizeram com essa mãe e seu filho.”

“Não estamos mais seguros em canto algum. Nem um anjo como


esse foi perdoado pela violência da nossa cidade.”

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De dentro do ônibus saiu dois corpos ensacados. Um foi carrega-
do por dois homens, o outro bastava ser carregado apenas por
um, pois se tratava de um bebê. A travesti ficou lá até levarem os
corpos foram levados.

“Meu Deus…”. A única coisa que conseguiu falar depois de pre-


senciar a cena. Continuou o caminho para casa.

Horas depois, recebeu um vídeo acompanhado de uma mensa-


gem de repúdio à violência na cidade. Era um dos vídeos que cir-
culavam pelas redes sociais da ação policial na casa em que dois
dos três assaltantes do ônibus invadiram e fizeram a dona refém.
Ainda entorpecida pela tragédia, repassou o vídeo e o texto para
os contatos do seu celular, que começou a tocar logo em seguida.
No display apareceu o nome de um dos seus clientes. Atendeu.

“Oi. Estou em casa agora. Que horas? Posso sim. Te encontro no


mesmo lugar? Certo. Fechado.”

19

O cliente é um senhor de idade, precisa de estímulos de medica-


mentos para conseguir a ereção. Mal tem jeito de se posicionar e
praticar o coito. A travesti, antigamente, não tinha paciência para
se encontrar com ele e dava desculpas quando não estava a fim.
Dizia estar com dores na barriga e enjoada por algo que tinha
comido logo cedo. O que começou a fazer se encontrar com esse
cliente com frequência foram os vacilos dele dados com a carteira

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quando ia tomar banho. Sempre estava recheada com notas al-
tas, dinheiro da aposentadoria recebido como promotor de justiça.

Quase foi flagrada a primeira vez que o roubou, pois demorou a


formular na mente a atitude a ser tomada. Ficou na dúvida se valia
a pena se arriscar, já que se encontrava acorrentada no fundo do
mar de dívidas financeiras. Estava com receio dele dar conta do
ocorrido e mandar policiais conhecidos para resolver a situação.
Refletiu, entretanto, se ele realmente iria fazer isso, já que teria
que explicar como uma travesti viciada em drogas teve acesso à
sua carteira. Como tinha certeza de que ele não iria se expor, de-
cidiu pegar a carteira dentro do bolso da calça dele e retirou umas
notas. Quando seu cliente saiu do banheiro, disfarçou perfeita-
mente bem. Tão bem que até eu, mesmo se tivesse observado
o roubo por uma fresta na parede, teria dúvidas se realmente a
tinha visto roubando o promotor aposentado, que nunca percebeu
a falta das notas furtadas.

Após o primeiro roubo, a travesti se viciou. Sempre que tinha


chances, violava as carteiras dos clientes. Tomava cuidado para
não tirar valores altos e deixar evidente. Quanto mais roubava,
mais drogas consumia. Fazia meses que não visitava a mãe, tinha
dias que nem lembrava dela. Quando lembrava, chorava um cho-
ro interno, sem lágrimas, para não mostrar ao mundo de que um
sentimento humano ainda residia em sua alma. Nem recordava a
última vez que derramou lágrimas por algo ou por alguém. Apren-
deu rapidamente a não expressar emoções nas ruas, caso con-
trário, seria tratada como um ser fraco, facilmente manipulável.
Nas ruas, só existem predadores. Esquecia até a vida que tinha
antes de entrar na prostituição, era como se aquele ser inocente

110
tivesse morrido e entregue o corpo a outro ser.

Sua mãe continuava a se ajoelhar diante da santa comovida, mas


sem nunca mais receber notícias da filha. O destino só esperava
o momento certo para anunciar, através do programa jornalístico,
a fatalidade. Era só questão de dias.

20

Após finalizar o programa com o promotor aposentado, a travesti


se dirigiu à esquina de costume. Toda grana era bem-vinda na
situação financeira que se encontrava. Ascendeu um cigarro após
ter cheirado umas fileiras de cocaína e tomado uns goles de ener-
gético que mantinha na bolsa. Estava parecendo uma bateria
prestes a estourar, o sangue percorria as veias numa velocidade
anormal, as mãos tremiam, andava de um lado para o outro para
amenizar a agonia que sentia. De longe, se percebia a ansiedade
que tomava conta dela. Parecia um porco prestes a ser morto.

Nenhum cliente apareceu por um bom tempo e ela continuou a


fumar. Notou a presença de uma novata no outro lado da rua.
Outra travesti, talvez dois anos mais nova que ela. O rosto limpo,
lindamente produzida. Mal passou uns minutos em pé na esquina
e conquistou um cliente de carro. De longe, viu as colegas soltan-
do piadas e assobios amedrontadores para a novata, não muito
diferente com o que fizeram com ela.

A nossa protagonista observava a cena. Estava assistindo, pra-

111
ticamente, à sua primeira noite naquelas ruas. Via o seu rosto
no lugar do rosto da novata, a roupa usada pela novata tinha se
transformado na roupa usada por ela pela primeira vez em que foi
para às ruas se prostituir. Estava diante da roda gigante social,
que continua girando. Ficou olhando o carro que a novata entrou
se distanciar cada vez mais, refletindo sobre tudo que passou na
vida até que uma buzina forte a trouxe de volta à realidade. Era o
primeiro e único cliente da noite. Pela estrutura interna do carro,
era um homem de vida estável. Iria roubá-lo, obviamente, a noite
não estava sendo lucrativa.

21

Diferente do que estava acostumada, foram à casa dele ao invés


de um motel. A residência fica em uma rua esquisita, num bairro
próximo ao centro da cidade. Se algum vizinho estivesse acorda-
do a esta hora da madrugada, olhando pela janela, não teria como
perceber que o homem entrou na garagem com uma travesti den-
tro do carro. Não teria dúvidas se era uma mulher. A silhueta da
travesti, sob a pouca iluminação proporcionada pelos escassos
postes distribuídos na rua, dava a ilusão de que se tratava de uma
mulher sentada no banco do passageiro.

O dono da casa contratava esse tipo de serviço sempre, sentia


um prazer imenso pelas travestis, era o seu fetiche sexual. Às ve-
zes pedia até para massagear o pênis da contratada, chegando a
beijar o membro e praticar sexo oral. Mesmo os amigos de anos
nunca imaginaram que ele gosta de fazer sexo com travestis, nem

112
muito menos que se torna passivo durante a transa.

Antes de iniciar o coito, ambos cheiraram cocaína e tomaram go-


les de whisky, tudo oferecido pelo cliente. Os dois estavam en-
louquecidos em cima da cama, que rangia estrondosamente. Os
lençóis e travesseiros arremessados longe. Os dois estavam ex-
tasiados, o sangue em efervescência, como um vulcão em erup-
ção. O homem fazia movimentos brutos para frente e para trás,
com o pênis grande e grosso enfiado dentro do ânus da travesti,
que não sentia um prazer tão intenso faziam meses. O que saia
da boca da travesti era um híbrido de grito e gemido. Por uns
minutos, esqueceu da realidade que a esperava quando saísse
daquela casa.

Ele gozou pela terceira vez. Foi ao banheiro após dar um beijo
demorado na bunda da travesti.

“Volto logo.” disse ele, enquanto descia da cama.

A travesti o olhou caminhando, nu, em direção ao banheiro. Dava


pra ver o pênis dele balançando por entre as pernas. Queria sentir
aquele membro grande e grosso novamente contra as paredes do
seu reto, friccionando-o de forma violenta.

“Me apaixonei…” brincou consigo mesma.

Sentada na cama, a travesti apoiou as costas na parede, var-


rendo o local com os olhos, à procura da calça dele. Era na cal-
ça, que, talvez, encontrasse a carteira. Como estava na casa do
cliente, talvez encontrasse algum esconderijo financeiro. Era me-
lhor aproveitar, caso fosse roubá-lo. Esperou até escutar o chu-

113
veiro ser ligado. Pronto, era a hora que esperava. Se levantou e
começou a vasculhar gavetas e recipientes que encontrava pela
frente, sempre olhando por debaixo da porta do banheiro para ver
algum sinal que apontaria a saída do cliente. Para cada objeto ti-
rado do lugar, tinha o cuidado de deixar exatamente de onde tirou.
Escutou o chuveiro sendo desligado. Falta olhar a última gaveta
da cômoda, estava começando a ficar nervosa. Não acreditava
que sairia dali apenas com o dinheiro do programa, mesmo este
merecendo até ser feito de graça pelo prazer proporcionado por
ele. Não seria possível que, depois de horas esperando algum
cliente, saísse com uns trocados que não daria nem pra pagar a
droga consumida na noite.

Estava quase desistindo quando sentiu um bolo de notas embru-


lhados, debaixo de uma caixa. Tirou uma boa quantia. Não imagi-
nou, por sua infelicidade, que o dinheiro que pagaria o seu serviço
sairia desse mesmo bolo de notas. Correu para cama, utilizando
a ponta dos dedos do pé para não fazer barulho. Escondeu o
dinheiro roubado e se posicionou da mesma forma que estava
quando o cliente foi ao banheiro.

“Vai tomar banho?” perguntou ele ao sair, se enxugando com uma


toalha.

“Acho que não. Preciso ir, infelizmente…”

“Certeza? A água tá deliciosa.”

“Sim… tá tudo bem. Não precisa se preocupar, já estive em situa-


ção pior.”

114
“Imagino…” sorriu o dono da casa.

O leve sorriso deu lugar a uma expressão de surpresa e reflexão,


estranhou o fato dela querer ir embora logo. Fixou os olhos na
gaveta aberta pela travesti minutos atrás. É, ela não fechou por
completo, e ele lembrava que a gaveta estava fechada. Foi até
lá, se agachou. A travesti percebeu imediatamente que o cliente
tinha notado algo de errado. Ficou estática por um momento, não
sabia o que fazer. Ele a pegaria no flagra se contasse o dinheiro
enrolado. Precisava pensar em algo, ou senão poderia ter proble-
mas. Ele olhou a caixa que cobria o bolo de notas embrulhadas,
e rapidamente notou que estava fora do local. A caixa era o seu
vigia, dizia se alguém tinha mexido ali apenas pelo fato de estar
mais inclinada ou rotacionada para um dos lados. Era um sistema
de segurança infalível, pois só ele sabe qual a posição certa da
caixa, e esta se encontrava na posição fora do padrão. Alguém
tinha violado a gaveta, e apenas uma pessoa entrou no quarto
nos últimos 2 dias sem ser ele: a travesti contratada horas atrás e
que ainda estava lá.

Se levantou rapidamente, arqueando os braços em ameaça. A


travesti já se encontrava de pé, se arrumando, sem esboçar ne-
nhuma surpresa. Se comportava como se não tivesse acontecido
nada. Nem sequer olhou para o cliente vindo em sua direção, com
os punhos cerrados. Atitude que a fez não ter nenhuma reação
para se defender do primeiro murro recebido no rosto. Ela camba-
leou, caiu no chão. Ficou tonta de imediato, tentando recompor as
forças e se levantar, enquanto escutava palavras como: “Viado,
ladrão!”; “Acha que sou otário é?”; “Devolve minha grana, fran-
go!”. A cada palavra proferida pelo cliente equivalia a um soco ou

115
pontapé desferido contra a travesti caída.

“Não sei o que tais falando, cara, tô só esperando tu me pagar…”


falou a agredida, tossindo após levar um forte chute no estômago.
O homem batia com força até provocar um vômito na travesti.

“E é? Vai saber do que tô falando agora. Ninguém me faz de otário


não!”

Correu para pegar um taco de golfe deixado exposto na parede


da sala. Ao voltar, a travesti se recompôs com dificuldade e jogou
o seu corpo em cima dele. Ela não tinha experiências com brigas,
o que estava fazendo era só se defender, inutilmente, dos golpes
do agressor. Não demorou muito para que o homem ficasse por
cima dela, batendo com força com o cabo do taco contra o rosto
da oponente. Era possível escutar os ossos faciais sendo quebra-
dos. O sangue respingado pelo chão do quarto. Havia sangue até
nos olhos do dono da casa, que respirou fundo ao perceber que o
corpo em que estava em cima não havia mais alma.

Era conhecido pelo forte temperamento e frieza, arrumava brigas


com facilidade. Não foi o primeiro homicídio, e nem o último. Fi-
cou sentado na cama, fumando um cigarro, tomando o resto do
whisky, olhando o corpo ali jogado. O sangue rodeava a cabeça.
Estava planejando como faria para se livrar do corpo.

Duas horas depois, o corpo estava dentro da mala do carro, enro-


lado por sacos plásticos. Teve dificuldades em levar o corpo enor-
me da travesti, pesava quase a mesma coisa que ele. Saiu arras-
tando-a pela casa até chegar na garagem, abrir o porta-malas e
colocar o embrulho dentro. Embrulho que, antes do amanhecer,

116
será jogado em um canal próximo. Os sacos não foram tão bem
apertados e logo irão se abrir, deixando partes do corpo expostos.
O homem voltará para casa e continuará a vida normal, mesmo
sendo bombardeado pela notícia dada pelo jornal televisivo dias
após o assassinato: “Corpo da travesti desaparecida encontrado
boiando no rio”. Não estava preocupado, pois era um sargento
reformado do exército e ninguém irá investigar com dedicação a
morte de uma travesti.

22

Um jovem andava de bicicleta quando, ao se encostar no para-


peito de um viaduto, viu algo comprido boiando. Forçou os olhos
e conseguiu definir dentro da água um rosto deformado. Encon-
trando o rosto, foi fácil enxergar a forma do resto do corpo. Era
o corpo da travesti, cuja mãe não tinha conseguido dormir direito
desde a noite em que sua filha tinha sido assassinada. Ela, en-
tretanto, ainda não estava ciente do fato. Acordava assustada du-
rante a madrugada, escutando pisadas e batidas no portão. Era o
mesmo modo que a sua filha batia na porta quando chegava de
algum lugar. Isso a fazia se levantar alegre, achando que a filha
tinha retornado para casa. Mas quando olhava pela fresta do por-
tão, não tinha ninguém. Não irá viver por muito tempo, no máximo
dois anos após a notícia da morte da filha ser anunciada pelo
âncora do programa jornalístico que acompanhava todos os dias.

Estava sentada no sofá quando o apresentador começou a falar:

117
“Agora, acompanhem a retirada de um corpo encontrado boiando
embaixo do viaduto principal da cidade.”

A imagem gravada por um drone preencheu a tela. Uma equipe


de bombeiros retirava o corpo do rio. Faltavam poucos segundos
para a mãe da travesti reconhecê-lo. Ela olhava atenta as ima-
gens, curiosa.

118
119
O VENDEDOR

O jornal anunciava em letras gigantes um fato ocorrido na madru-


gada. JOVEM É ESPANCADO VIOLENTAMENTE NO CENTRO
DA CIDADE. Logo abaixo, uma foto do agredido, sorridente, reti-
rada de alguma rede social. Ao lado, outra foto do rosto dele, mas
desfocada. Mesmo embaçada para amenizar o impacto visual, se
entendia perfeitamente que o rosto estava ensanguentado. Os
mais curiosos passavam os olhos pelas primeiras linhas da maté-
ria e ficavam a par de que se tratava de um vendedor ambulante.

Bastante trabalhador, ele lutava contra a crise econômica com


muita garra e determinação, segurando em uma das mãos o saco
que mantinha a salvo a mercadoria, enquanto a outra era levanta-
da acima da cabeça, fazendo sinal para os motoristas de ônibus
na esperança que algum permitisse a sua entrada. Essa rotina foi
interrompida após desentendimentos com colegas de trabalhos,
que não suportaram ver o sucesso dele devido às boas vendas e
conquistas pessoais através do trabalho suado.

Seja bem-vindo(a) ao quarto e último ensaio com personagens


desse livro batizado de MARGINAL.

120
2

Antes de qualquer coisa, precisamos entender o caminho percor-


rido pelo vendedor até chegar onde se encontrava há semanas
atrás, momento que mantinha uma relação cada vez mais cati-
vante com passageiros, passageiras, motoristas e cobradores dos
ônibus. Teve, entretanto, o sucesso interrompido após suas mer-
cadorias serem roubadas durante uma brincadeira. Chegaremos
lá em poucas páginas, haverá parágrafos dedicados aos detalhes
dos fatos ocorridos até a situação a qual se encontra agora, em
coma, deitado numa cama rodeada de aparelhos que sustentam
a sua vida, enquanto sonha que está dentro de um ônibus, dando
continuidade ao seu trabalho diário como vendedor ambulante.

Era um dia normal. O futuro vendedor acordou, se levantou e se-


guiu as linhas do roteiro de mais um dia do trabalhador assala-
riado: tomou banho, vestiu a farda, sentou-se à mesa e, antes
de sair para luta pelo salário mensal, se alimentou com o café
da manhã preparado pela avó. A avó era a figura materna desde
cedo, já que a sua mãe e o pai não tinham condições nem maturi-
dade suficiente para cuidar de um bebê, nem muito menos tinham
interesse em amadurecer para tal objetivo. Os seus pais eram
adolescentes quando se conheceram, namoraram e mantiveram
relações sexuais sem preservativo. Obviamente, ela engravidou.
Decidiram abortar, mas antes de concluir o ato, a mãe dela, ou
seja, a avó do futuro vendedor, descobriu e disse que a partir da-
quele dia ela se responsabilizava por tudo relacionado à criança,
mesmo sem ter um marido para ajudar nas despesas.

A promessa se cumpre até hoje em dia, se mantendo firme ao


121
lado dele no leito do hospital. Os seus pais verdadeiros ainda não
ficaram sabendo da fatalidade, mas assim que ficarem a par do
que houve, irão ao seu encontro, arrependidos por não terem par-
ticipado ativamente da vida do filho, pedindo perdão, derramando
lágrimas no rosto adormecido do jovem.

Separados desde o nascimento dele, se tornaram pai e mãe de


outros filhos e filhas que conceberam com outras pessoas. Senti-
rão culpa por verem o primogênito estirado em uma cama de hos-
pital, respirando com o auxílio de aparelhos. Viverão até o último
dia da vida carregando na memória a imagem do jovem mergu-
lhado num sono profundo, imaginando que ele poderia estar bem
se pudessem voltar ao passado e procurá-lo quando estavam em
uma situação melhor. Infelizmente, a vida nos ensina de forma
autoritária, sem nos dar chances de um diálogo e um acordo bom
para ambos os lados. O que nos resta é seguir, arrastando a bola
do arrependimento, acorrentada à cintura.

Aparentemente era mais um dia que repete seu roteiro, como um


programa de TV que já tem as ações predefinida pelos redatores.
Mas na vida real quem escreve são aqueles que manipulam as li-
nhas amarradas aos nossos membros. São eles políticos, patrões
medíocres e, o principal de todos: o dinheiro, que só tem, de fato,
o valor simbólico, pois não se trata nada mais do que um peda-
ço de papel ou pedaço de aço inoxidável. Um material sem vida
alguma que tem o poder de destruir das mais simples relações

122
interpessoais até relações entre nações.

Aprisionado desde o útero da mãe à essa necessidade monetária,


o futuro vendedor ambulante enfrentava a lotação dos transportes
públicos até chegar no trabalho. Tinhas dias que, sem dinheiro al-
gum para pagar a cara passagem dos dois ônibus, ia de bicicleta
para enfrentar as estradas cada vez mais entupidas por automó-
veis. Não era frequente usar a bicicleta porque trabalhava com
serviços braçais, coletando os lixos pelas ruas do município. Um
trabalho cansativo e pesado, mas necessário para manter o sus-
tento da casa em que vivia com a avó. A avó tinha sido demitida
meses atrás, em decorrência da crise econômica que assolou o
país, deixando milhares de desempregados. A notícia do desliga-
mento da avó na empresa o fez valorizar mais ainda o emprego.

No caminho para o trabalho, dentro do ônibus, encontrou um cole-


ga de serviço. Este colega tinha no rosto uma expressão pesada,
exausto pela rotina e o sufoco financeiro que estava a passar. As
dívidas se acumulando, o dinheiro ganhado com na coleta de lixo
não estava sendo o suficiente para sanar as contas. Percebendo
a preocupação do colega, puxou assunto, descontraindo:

“Olá, irmão! Que cara é essa? Trouxe a cama contigo foi?” Sorriu,
criando um clima amigável. Tinha um talento para isso. Talento
que o ajudou a conquistar facilmente a admiração de motoristas,
cobradores e passageiros dos ônibus quando começou a vender
mercadorias nas ruas.

“Nada, parceiro… Muitos aperreios… A grana tá encurtando, todo


mês sobra menos. Nem parece que eu trabalho, é como se eu

123
fosse um escravizado, que não recebe nada no final do traba-
lho. Não sei mais o que fazer. A mulher preocupada porque não
temos como comprar a alimentação dos nossos filhos. O leite irá
durar só por mais dois dias. Ninguém quer mais nos emprestar
cartão de crédito pois ainda não pagamos as parcelas dos meses
anteriores. A situação tá complicada demais… E ainda tenho que
aturar aquele chefe miserável, gritando e humilhando o cara. Faz
isso porque sabe que estamos ali por necessidade e precisamos
aguentar calados. Mas não falta vontade de enfiar na cara dele
um murro com todas as minhas forças.”

O futuro vendedor escutava atento cada palavra. Dava pra perce-


ber um brilho nos olhos do homem ao desabafar. Eram lágrimas
que ainda estavam a secar após chorar na noite anterior, escon-
dido da mulher.

“Lá em casa também está apertado. Após minha mãe sair do em-
prego, estamos levando a vida com o que ganho nesse trabalho.
Pedindo a Deus todos os dias que me mantenha nele por muito
tempo, pois o momento o qual estamos vivendo não está bom
para deixar de mão um salário. É pouco se formos comparar com
o cansaço que nos dá, mas, infelizmente, temos que ir junto com
o balançar do barco. Ou, senão, seria pior se não tivéssemos a
certeza de que aquele valor estará em nossa conta todo o dia pri-
meiro. Fico pensando naqueles que perdem o emprego do nada,
cara. Têm que se virar com o que podem para ter o que comer
todos os dias. Vejo direto na televisão a enorme quantidade de
pessoas que estão sendo demitidas. Está um caos…”

“Eu sei, cara, eu sei… Mas nem ânimo para trabalhar tenho mais.

124
Gostaria até de receber a grana da demissão para ver se me or-
ganizo e abro algum negócio próprio. Não tá dando mais pra me
foder todinho e dar dinheiro aos outros.”

“Lá a gente troca uma ideia melhor. Vamos descer, já é a próxima


parada.”

Desceram do ônibus com dificuldades, estava lotado. Alguns ho-


mens se espremiam contra as portas, parecendo carne enlatada.
Situação normal no dia a dia do trabalhador de classe baixa que
ainda precisa pagar caro. Incrível, não é? Pagar para ser trans-
portado como animais maltratados, todos os dias, todas as noites,
alguns de segunda à sexta, outros de segunda à sábado, outros
em dias alternados. Mas todos obrigados a enfrentar o transporte
público. Essa indiferença no serviço prestado dos ônibus e metrô
para com a população pobre é simples de entender: quem enche
as contas bancárias com as milhões de passagens pagas não
precisam utilizá-los. Abusam da necessidade de locomoção do
povo e fazem vista grossa na qualidade oferecida.

Chegaram no local de trabalho. Confirmaram a hora de chega-


da passando o cartão magnético no aparelho acusador dos em-
pregados atrasados: o ponto eletrônico. Não sabiam dizer o que
estava acontecendo, mas o clima na empresa estava estranho,
fúnebre, um silêncio tão grande que dava a sensação de que ti-
nham perdido a audição. Comentaram entre si, perguntando se

125
teria acontecido algo no turno da noite.

“Talvez seja coisa das nossas cabeças, estamos passando por


momentos tensos fora daqui.” falou o futuro vendedor, guardando
seus pertences pessoais dentro do armário, que usava há mais
de três anos.

Após se organizar, saíram do vestiário. Andaram uns poucos me-


tros em direção à garagem e escutaram de longe a voz já conhe-
cida de um dos encarregados pelo setor em que trabalhavam:

“Era com vocês mesmo que estava precisando falar! Venham até
a minha sala, por favor.”

Os dois funcionários se entreolham, procurando na expressão um


do outro a resposta para a questão que se formulou na mente dos
dois: “O que será que esse miserável quer?”

A resposta foi dada após um discurso do patrão falando sobre


os cortes, sobre a prioridade em manter a empresa sem muitos
gastos, entre outras frases comuns que antecedem a notícia do
aviso prévio:

“Sabem como essas coisas de orçamento funcionam, né? Preci-


samos do recurso mandado pelo governo para sustentar grande
parte do que temos hoje em dia. Como houve cortes nas verbas
dos municípios após aparecer a crise, várias terceirizadas tiverem
que diminuir o quadro de funcionários. Caso contrário, declara-
riam falência por não conseguir sustentar as contas que precisam
pagar mensalmente.”

126
“Entendemos, senhor.” falaram os dois funcionários, olhando fixa-
mente para o interlocutor.

Estavam já a pensar como seria a vida após a saída do emprego,


não tinham qualificação o suficiente para conseguir algo melhor,
nem sequer tinham terminado os estudos. Foram obrigados a sair
da escola por tempo indeterminado em decorrência da necessi-
dade de ajudar no sustento dentro de casa. Até que tentaram es-
tudar no horário noturno, mas a exaustão do trabalho pesado não
dava o mínimo de ânimo para eles. Quando chegavam em casa, a
cama era semelhante a um buraco negro que suga tudo ao redor.

Se levantaram, apertaram a mão do patrão e saíram. Foram até


a sala dos recursos humanos e receberam toda a informação ne-
cessária dos trâmites para concretizar o desligamento. Não de-
moraria muito para receberem a indenização e dar entrada nas
poucas parcelas do seguro-desemprego.

No dia do desligamento, voltaram pra casa em silêncio, admiran-


do a paisagem da cidade pela janela do ônibus. Pela hora que es-
tavam voltando pra casa, o transporte público estava vazio, então
conseguiram sentar e passar alguns minutos analisando o que
observavam através do vidro transparente da janela, contemplan-
do a paisagem degradante de uma cidade que é o epicentro de
um abalo social e financeiro.

127
5

Ao chegar em casa, demoraram a informar o ocorrido às respec-


tivas famílias. Tentaram encontrar palavras para dar a notícia. De
pouquinho em pouquinho, as palavras vieram, foram se formulan-
do na mente e a língua se familiarizando com elas até que a frase
certa fosse dita, sem mostrar preocupação ou sentimentalismo.
Na cabeça deles, eram homens. Não poderiam mostrar, diante
da família, nenhum tipo de fraqueza, pois são a fortaleza da casa.

“Não se preocupe, meu filho. Logo mais aparecerá algo. Deus vai
iluminar sua cabeça, vai te mostrar o caminho que você tem que
seguir. Tenha fé, tudo vai dar certo. Se isso aconteceu agora, é
porque foi da vontade Dele, pois nenhuma folha é separada dos
galhos sem a sua permissão.” Foram essas as palavras de con-
solo ditas pela a avó do recém desempregado.

***

Você já deve ter notado o modo como os dois se tratam: como


mãe e filho. Mesmo sendo avó e neto, se tratam como ela fosse a
genitora. Nada mais justo, já que, como dizem, mãe é aquela que
cria e educa para a vida.

***

“Você sem emprego, eu também. Preciso pensar em algum tipo


de investimento, sei lá. O dinheiro vai voar logo, é sempre assim.”

“Disso eu sei, meu filho. Mas tenha paciência, você teve a notícia
hoje. Amanhã é outro dia. São com os novos dias que a esperan-

128
ça se mantém viva. Então, enquanto houver o dia de amanhã, a
esperança existirá.”

A senhora de meia idade tem uma sabedoria natural de lidar com


as situações difíceis. É uma das líderes de uma igreja evangélica.
Os membros da sua congregação acreditam que Deus a aben-
çoou com o dom da sabedoria, pois encontra as palavras certas e
as coloca em ordem perfeita para atingir o objetivo, seja para dar
sermão ou consolar.

Ele não dormiu direito por um bom tempo. A cada semana que
passava, era uma semana a menos para acabar o seguro-desem-
prego. O dinheiro da rescisão tinha acabado em menos de um
mês. Precisou comprar as feiras, pagar as contas e se livrar das
dívidas. Todos os dias sentava-se com o celular na mão, procu-
rando por vagas de empregos nos mais variados sites disponíveis
e mandava o currículo para as poucas vagas que sua escassa
experiência permitia.

Era para ter escutado os conselhos da mãe e terminado os es-


tudos. Tinham várias vagas que pediam ensino médio completo,
mas nem adiantava mandar o currículo, ou senão passaria ver-
gonha mais uma vez. Certo dia foi chamado por um amigo para
participar de uma seleção em uma empresa de atendimento te-
lefônico. Assim que a pessoa responsável entrou no local onde
os concorrentes às vagas estavam esperando, disse que “os que

129
não tinham o ensino médio completo, já estavam dispensados”.
10% dos candidatos se levantaram e foram embora, envergonha-
dos pela exposição. O recém-desempregado foi um deles. Ficou
do lado de fora esperando o amigo sair da seleção, pois quem es-
tava com a passagem do ônibus para voltar para casa era o que
tinha ficado lá dentro. Estava longe demais de casa para poder
ir andando, sem falar que nessa época tinha vergonha de pedir
carona ou entrar num ônibus sem avisar, esperando um vacilo do
motorista.

Perdeu as contas de quantos locais entregou currículo, todos sem


respostas. Sabia que seria difícil, o último emprego que estava
foi indicação do tio-avô. Quase que não ficava nesse por falta de
um dos documentos necessários, mas conseguiu a tempo de não
perder a vaga.

Estava voltando para casa quando um vendedor ambulante subiu


no ônibus e começou a anunciar as mercadorias. Tinha um modo
diferente de vender, era simpático e contava piadas sobre a situa-
ção política do país, fazendo todos no ônibus rirem. Alguns nem
sequer estavam com vontade de consumir o que ele oferecia, mas
compraram porque gostaram do modo que ele se apresentou. O
desempregado percebeu as notas dada pelos compradores. Pela
conta, ele saiu daquele ônibus com, no mínimo, dez notas de di-
versos valores. O saco que segurava em uma das mãos estava
pela metade, indicando que já tinha vendido uma boa quantia de

130
produtos durante o dia.

“Imagina o quanto esse cara não ganha? Se saiu deste ônibus


com esse valor, deve terminar o dia com uma boa quantia de di-
nheiro no bolso.” falou consigo mesmo.

Passou a observar melhor a movimentação dos vendedores am-


bulantes. Estava crescendo o número de pessoas envolvidas
com o comércio informal, resultado da instabilidade econômica
e do desemprego. Em cada ônibus que pegava, subiam dois ou
três vendedores durante a viagem. A maioria sem muito poder de
convencimento, tanto que os passageiros nem sequer tiravam os
olhos dos celulares para prestar atenção ao que falavam.

Estava em desespero, faltava receber apenas uma parcela do se-


guro-desemprego e não tinha em vista nada que fosse possível
para se estabilizar financeiramente. Arrumar um emprego está
quase impossível nos dias de hoje, ainda mais na situação curri-
cular em que se encontrava. Precisava pensar no que fazer para
sustentar a ele e à mãe. Tinha que fazer algo, não podia mais
esperar. Investir o pouco dinheiro que falta receber das parcelas
do seguro-desemprego, pedir dinheiro na rua, ou “vender água,
pipoca e outros lanches na rua”, como falou para um dos amigos
de infância que o acompanhava durante a caminhada até o mer-
cadinho na esquina.

“É, parceiro, é uma possibilidade. Emprego tá foda. Peço a Deus


e aos Orixás todos os dias para me sustentar no meu. Não tenho
estudos o suficiente nem dinheiro para abrir meu próprio negócio.
Se eu tivesse, eu largaria era tudo e abriria uma pequena empre-

131
sa pra mim.” concordou o amigo.

“Já pensei também, mas nem dinheiro pra isso tenho. O que me
resta é pegar a grana que vou tirar amanhã e separar uma par-
te pra comprar umas mercadorias e repassar nas ruas. A única
chance que tenho, cara. Não vou mentir, tenho vergonha, mas as
contas não deixarão de vir por conta disso.”

E foi exatamente isso que fez ao sair do banco com a última par-
cela do seguro-desemprego no dia seguinte. Fez uma cotação
rápida no centro da cidade, andou por horas pesquisando preços
dos produtos que pretendia comercializar. Os estabelecimentos
cheios, com jovens da mesma idade comprando com o mesmo
objetivo: vender para conseguir uma margem de lucro para garan-
tir o pão quando chegassem em casa.

Separou 10% do que recebeu e comprou lanches diversos. O di-


nheiro que sobrou estava contado, nem podia cogitar pegar um
táxi para ajudá-lo a levar as compras para casa. Estava em horá-
rio de pico, de grande movimentação nas ruas, os ônibus lotados.
Teve que enfrentar um ônibus para retornar para casa, carregan-
do as mercadorias em ambas as mãos, cujos dedos estavam atro-
fiados por conta do peso e do tempo suportando os sacos com os
produtos a serem vendidos por ele. Os passageiros resmungando
quando ele pedia licença para poder passar. A sorte foi uma co-
nhecida que encontrou dentro do transporte público e ajudou a
segurar os sacos.

Chegou em casa, deixou os sacos no meio da sala e, exausto, se


jogou no sofá. Nem coragem tinha para levantar e tomar banho,

132
precisava de um tempo para se recompor. Pegou o celular e olhou
as notificações nas redes sociais. Sua mãe saiu da cozinha e viu
os sacos.

“O que houve? Vai dar festa do dia das crianças fora da data?”
brincou a senhora.

“Claro que não, vou vender. É o que está disponível no momento.


Não sei fazer mais nada além de coletar lixo, então vou apren-
der a vender isso aí. Esta semana vi um cara subindo no ônibus
vendendo para quase todos os passageiros. Percebi que ele saiu
com uma boa quantia de dinheiro, vai que eu dê a mesma sorte.
O cara é desenrolado demais, vende de uma forma que cativa os
outros, muito diferente da maioria que vejo por aí. Alguns sobem
até bêbados oferecendo as coisas. Por isso ninguém olha, sabem
que é para gastar com bebida.”

A senhora se alegrou ao escutar as palavras de firmeza do filho,


orgulhosa em vê-lo esperançoso novamente. Nessa noite, orou
com toda a fé, pedindo a Deus que o seu filho tivesse boa sorte
nas vendas, que voltasse para casa com pouca mercadoria, pois
seria a resposta dos seus pedidos íntimos para com Deus.

Não saberemos se foi a oração ou o talento despertado no mais


novo vendedor ambulante da cidade, mas ele vendeu mais da
metade dos produtos com que saiu no dia seguinte. Fez as contas
rapidamente e percebeu que havia uma margem considerável de
lucro, mesmo tomado pela vergonha de fazer isso a primeira vez.
Em um dia, conseguiu quase metade do dinheiro investido.

133
8

No próximo dia, fez o mesmo itinerário e com menos timidez. Não


vendeu tanto quanto esperava já que entrou, praticamente, nos
mesmos ônibus do dia anterior. Em alguns casos quando pedia
ao motorista para entrar no ônibus e oferecer seus produtos, olha-
va por uma das janelas e percebia que lá dentro já havia alguém
vendendo as mesmas coisas. Nesse dia, ficou desanimado, per-
guntando a si mesmo se a vida não tinha pregado uma peça dan-
do esperanças falsas da luz no fim do túnel.

Quando entardeceu, tinha vendido apenas 3 produtos. Sem pa-


ciência, voltou para casa. Nem sequer falou com a mãe, jogou as
mercadorias em cima da mesa e foi para o quarto. Tirou a roupa
que fedia a suor antes de entrar no banheiro. Debaixo do chuveiro
ligado, chorou. As lágrimas se misturaram com a água despejada
contra a sua cabeça e desapareciam ao encontrar o ralo no chão.
Seria tão bom se o motivo das lágrimas pudesse sumir assim, tão
facilmente. A lágrima é o sangue vertido pela alma quando esta-
mos a amadurecer.

Não dormiu, ficou olhando para as paredes a receberem as primei-


ras luzes do dia, sinal de que o sol logo mais estaria iluminando a
cidade. Passou horas deitado mexendo no celular, olhando a vida
dos amigos e amigas maquiada pelos filtros de imagem e frases
de efeito copiadas da internet. Como sempre, nada de interessan-
te. Ia passando devagar as sugestões de amizades, quando uma
foto de uma bela jovem chamou a atenção. Ela tinha entre 14-15
anos. Pelo ângulo da foto do perfil podia perceber uma tatuagem
de um coração marcando o pescoço. Era belíssima, podia depois
134
puxar algum papo já que não tinha relações com mulheres há um
bom tempo. De imediato, começou a seguir a adolescente e curtiu
algumas das fotos provocativas publicadas por ela. Para quem
leu a segunda história dessa coletânea de ensaios com persona-
gens, sabe que se trata da protagonista que teve sua vida diluída
após ser violentada em uma festa. Nessa época, não imaginava
que isso iria acontecer.

O vendedor ambulante continuou na cama até sua mãe chamá-


-lo para comer algo pela manhã. Ele se levantou, alongando os
membros doloridos e foi à cozinha. Mexendo a xícara de café, a
mãe perguntou como tinha sido o trabalho ontem. Ele respondeu
com um “mais ou menos” evasivo.

“Não vai hoje? Não arrumou nada ainda…”

“Tô cansado. Talvez vá mais tarde ou deixe para ir amanhã.”

“Por que? O que houve ontem?”

“Nada não. Apenas cansado.”

Fitava o tampo da mesa, escondendo os olhos. Não ignorava o


dom da mãe em ler o pensamento alheio através do olhar. Um
silêncio tomou conta do escasso café da manhã. Ambos ficaram
calados até que ele se levantou e lavou os objetos usados para se
alimentar. Antes de seguir para o quarto, a mãe falou:

“Se esse trabalho fosse tão fácil, filho, todos iriam abandonar seus
empregos para fazer o que você está fazendo. Seja forte, pois é
com as dificuldades e esforço que vem o sucesso. Se manter a

135
cabeça erguida, irá visualizar de longe as oportunidades que a
vida quer te dar. Se manter a cabeça abaixada, só enxergará por
onde os seus pés estão caminhando no momento.”

O jovem fixou o olhar na senhora de meia idade. Ela o encara-


va, séria. Era como se os dois tivessem conversando através dos
olhares. Ele voltou para o quarto. Depois de uns minutos des-
cansando, ela começou a preparar o almoço. Escutou a porta do
quarto sendo aberta e o filho ajeitando as mercadorias para sair.
A senhora das belas frases deu um leve sorriso, agradecendo por
Deus ter dado forças para ele continuar a batalha.

“Mãe, estou saindo agora. Bênção.” avisou o filho ao finalizar.

“Deus te abençoe e proteja, meu filho. Boa sorte!”

A porta principal foi aberta e logo fechada. A luta diária pela sobre-
vivência iniciou mais uma vez.

Nas ruas, disputava os ônibus com outros vendedores ambulan-


tes. Muitos deles já se conheciam e revezavam quem iria subir no
próximo coletivo que passasse. No ponto que nosso protagonista
estava, tinham em torno de quatro jovens com suas mercadorias
esperando a vez. A maioria tem mais de 18 anos e possuem algu-
ma passagem pela polícia. Uns por roubo e outros por transporta-
rem uma quantia razoável de drogas.

136
Devido à experiência infernal dentro de uma cela, eles decidiram
tomar outro rumo, mesmo sem a possibilidade de ter uma renda
que os permitissem curtir as festas nos finais de semana e gastar
dinheiro para impressionar as adolescentes que desejam transar.
Coisas que costumavam fazer com frequência quando estavam
na vida criminosa. Muitos deles, sem paciência e se deparando
com os antigos amigos andando de moto, trocando de celular com
facilidade e conquistando as mais belas e atraentes da comuni-
dade, não demoraram para ter uma recaída e voltar a praticar
crimes. Devemos reconhecer que tentaram, como outros tentam
e tentarão, mas a batalha de um ser contra a força da sociedade é
desleal. Na maioria das vezes, o indivíduo acaba perdendo a luta
e se rendendo aos vícios e caprichos do mundo externo.

Deu prioridade aos mais antigos ambulantes para subirem nos


ônibus, já que nem fazia uma semana no novo emprego e ainda
estava a conquistar a amizade deles. Os veteranos, de início, o
olharam atravessado, faziam até malícias para ele perder a vez e
não subir nos ônibus. Faziam isso, obviamente, porque era mais
um concorrente. Se alguém comprasse a ele, seria um dinheiro a
menos para quem estava ali há meses e anos enfrentando o mau
humor dos motoristas e a imparcialidade dos passageiros.

“Ei, cara. Era a minha vez!” gritou o nosso protagonista ao per-


ceber que um dos veteranos, na intenção de arrumar confusão,
tinha subido no ônibus em que ele iria comercializar seus produ-
tos. Pela janela, era possível notar o sorriso no rosto do furador da
fila. Os dois se encararam até o transporte público sumir ao virar
a esquina. Os outros vendedores riram.

137
“Aí é foda…” falou baixinho, pra si mesmo. Sabia que não po-
dia mais vacilar, ali não tinham leis para quem estava iniciando.
Também não podia arrumar desavença. Começou a levar tudo na
brincadeira, sorrindo junto em algumas situações. Era preciso se
mostrar amigável ou daria a eles motivo para praticar coisa pior.

“Relaxa, parceiro. Na próxima, você vai. Todos aqui passaram por


isso. Fica de boa, faz parte do processo de batizado.” disse um
dos veteranos, sorrindo, amenizando o clima.

10

Devido à vivência em comunidade pobre e a experiência de tra-


balhar com homens da mesma camada social, sabia lidar com
situações como essa e dialogar com os outros vendedores. Por
isso, não teve receio algum de tomar a atitude de se tornar um
comerciante ambulante.

Nunca sofreu tentativa de assalto, mas já foi parado inúmeras ve-


zes pela polícia. Sentia mais medo de um carro da polícia se apro-
ximando do que uma moto andando lentamente.

Na adolescência, voltava de um show de rap na companhia de


dois amigos. No caminho, foram abordados por um carro da polí-
cia de forma abusiva e desnecessária. Eram, aos olhos de qual-
quer pessoa, adolescentes inocentes de qualquer envolvimento
ilícito. Os policiais abordaram só para sentir o gosto do poder na
mão, pois tinham entrado na corporação faziam poucas semanas.

138
Um deles odiava os chamados pejorativamente de marginais. Era
de uma família conservadora, defensora da meritocracia. Para
esse policial, os pretos e pobres estavam naquela situação por-
que não tinham condições intelectuais para conseguir coisa me-
lhor. Ele, por pura maldade, ao passar a mão no bolso do nosso
protagonista, percebeu um celular e o pegou. Celular dado pela
mãe com muita dificuldade.

“É seu?”, perguntou o policial, mostrando o celular.

“Sim, meu. Tem minha foto nele.”

“Isso não quer dizer nada, cara. Tem como provar agora?”

“Eu desbloqueio a tela agorinha, caso queira.”

O medo estava tomando conta dos três abordados. Os policiais


adoravam a situação.

“Isso não é prova. Por via das dúvidas, vou ficar com ele.”

“Por favor, senhor. Foi dado pela minha mãe. Ela ainda nem pa-
gou todo. Eu ligo para ela e você fala com ela. Por favor, não faz
isso não.” As lágrimas estavam a descer. Os outros dois amigos
permaneceram calados, olhando para baixo, com as mãos na ca-
beça e a testa contra a parede.

“Deixa eu ligar para ela. Ela vai confirmar… Por favor, senhor.”

O policial fez cara de desinteressado. Os outros continuavam a


sorrir, sabiam que se tratava de uma brincadeira pois não era a
primeira vez que o viram fazendo isso. Querendo ir embora logo,

139
um deles falou:

“Tá bom, cara. Deixa o menino em paz. Devolve o celular e vamos


embora. Tá faltando menos de duas horas pra gente largar. Bora,
tô a fim de chegar em casa e foder.”

Os amigos abordados se entreolharam, indignados após perce-


berem que era uma brincadeira de mau gosto. Os policiais entra-
ram na viatura. De dentro, o policial da família conservadora jo-
gou o celular para cima, fazendo o nosso protagonista, na época
com 14 anos, se jogar para pegá-lo antes de se despedaçar no
chão. Arranhou os joelhos e os antebraços por conta disso. Em
casa, disse à mãe que parou em uma rua próxima para jogar uma
partida de futebol e acabou se machucando. Depois desse dia,
desviava de qualquer viatura policial quando tinha oportunidade.

11

Passaram-se semanas após o primeiro dia como vendedor ambu-


lante. Alguns dias tinha sorte e vendia uma boa parte das coisas,
outros dias, principalmente nos feriados e finais de semana, a de-
manda de passageiros diminui, consequentemente a comerciali-
zação também.

Ele estava conseguindo se organizar financeiramente com muito


suor e dedicação. Quando o estoque em casa estava prestes a
acabar, contabiliza os lucros e separava uma parte para investir
em novas mercadorias. Nunca tinha frequentado curso de em-

140
preendedorismo, muito menos de gestão administrativa. O que
fazia era no instinto e com a ajuda da mãe, que já tinha trabalhado
em mercadinhos. Para muitas situações, usavam a lógica. Se-
paravam parte do dinheiro arrecadado para adquirir os produtos
que seriam oferecidos, tomando cuidado para não gastar o valor
líquido além das necessidades de dentro de casa.

Esse modo de pensar foi modelado após passar meses sem ter
o que comer dentro de casa, se alimentando na casa dos paren-
tes na época em que sua mãe ficou desempregada anos atrás.
Aprendeu cedo a dar valor às pequenas coisas da vida e começar
a gerar dinheiro da forma que podia. Quando largava da escola, ia
para os mercadinhos da comunidade ajudar os clientes a guardar
as compras nas sacolas plásticas ou ajudar a carregar as feiras
que as donas de casas fazem mensalmente. Em troca, ganhava
umas moedas. Às vezes as usava para jogar videogame, em ou-
tras juntava para lanchar algo na intenção de matar a fome cau-
sada pela falta do almoço.

12

Enquanto se alimentava sentado no sofá da sala, teve a atenção


chamada por uma notícia dada no jornal televisivo: a partir da
próxima segunda, estará proibida a atividade dos ambulantes em
terminais de integração, em ônibus e no metrô. Medida tomada
pelo governo após reclamações de passageiros que denunciaram
o fato de alguns assaltantes se camuflam de vendedores, rouban-
do passageiros dentro e fora dos transportes públicos.

141
Apesar das proibições, muitos ambulantes foram às ruas comercia-
lizar. Desviavam como podiam quando se deparavam com algum
grupo dos funcionários municipais responsáveis pela apreensão
das mercadorias caso flagrassem a atividade. Há quem concor-
dava com a lei, dizendo que muitos marginais se aproveitavam e
fingiam ser vendedores para praticar assaltos. Há também quem
discordava do modo que está sendo feito, como se quisessem de-
detizar esses pobres seres humanos que apenas estão tentando
ganhar a sua parcela de lucro da economia nacional.

Independente disso, os guerreiros ambulantes mantiveram os


seus postos. Pediam a Deus, Exus, Santos ou a quem sua crença
se reverenciava, para os livrar das apreensões. De acordo com
a lei, eles têm que pagar uma taxa para liberar as mercadorias
apreendidas. Imagina ter que fazer isso três vezes na semana?
Chega uma hora que não vale mais a pena. O dinheiro que era
arrecadado com as vendas estava sendo destino para ter as mer-
cadorias de volta e saciar o capricho de quem pretende higienizar
a sociedade, com o mínimo de vendedores poluindo o visual dos
locais de grande circulação.

A intenção é deixar o ambiente agradável aos olhos dos outros


estados e nações, mostrando ao mundo que aquele município
não tem desemprego e as pessoas vivem bem. O objetivo é ven-
der a imagem de um local exemplo de administração. Uma enga-
nação, como é a nossa vida quando deixamos de vivê-la da forma
que queríamos para poder viver da forma como a sociedade quer.
Basta olharmos por alguns minutos para as postagens de pes-
soas em alguma rede social: percebemos logo que, dentro do limi-
te da moldura da foto, está a imagem que a pessoa deseja passar

142
para as outras. Fora da moldura, ninguém sabe o que realmente
está se passando. Uma selfie nada mais é do que o espelho da
farsa que é a nossa vida.

13

Nosso protagonista desceu de um ônibus onde vendeu dois pro-


dutos. Contou o dinheiro e o guardou na bolsinha que levava à cin-
tura. Ficou no mesmo local, esperando passar o próximo. Quando
outro ônibus se aproximou, ele levantou a mão em sinal de que
pretendia oferecer sua mercadoria. O motorista, ao perceber isso,
levantou o dedo e o balançou negativamente. A lei estava sendo
aderida pelos funcionários das empresas de transporte público
que não suportavam os vendedores ambulantes.

“Miserável… se fosse um bandido, num instante parava e abria as


portas.” resmungou quase em silêncio, encarando o motorista. O
coletivo seguiu viagem.

De longe, enxergou outro ônibus. Tentou a sorte e fez sinal para o


motorista. Este não fez sinal algum, nem de afirmação e nem de
negação. Apenas abriu as portas traseiras e esperou o vendedor
subir.

“Valeu, motorista!” Subiu, agradecendo.

O ônibus seguiu o itinerário. O vendedor caminhou por entre as


cadeiras a anunciar os produtos. O transporte tinha poucas pes-
soas. Entre elas, uma mãe com um bebê nos braços. Os dois

143
sorriem, felizes. Ele passou um tempo olhando a cena. Quando
passou por eles, falou algo que não deu pra entender. Apenas
posso dizer que foi algo na intenção de brincar com o bebê, que
sorriu de volta. A mãe comprou uma cartela de chicletes e guar-
dou na bolsa.

Ele continuou a anunciar os produtos. O ônibus parou, algumas


pessoas subiram. Entre os novos passageiros, havia uma senho-
ra com sacolas pesadas. Um jovem que subiu junto a ajudou. O
vendedor olhou nos olhos do bom samaritano quando ele pas-
sou ao seu lado e foi sentar em uma das cadeiras vazias. Não
imaginou que este seria um dos protagonistas da tragédia iminen-
te envolvendo aquela mãe e o bebê.

Sim, meu leitor/minha leitora. Se trata do ônibus em que houve a


tragédia conhecida por você, caso tenha lido a primeira noveleta
desse livro. Caso não tenha lido, quando finalizar a noveleta cor-
rente, sugiro voltar ao início e se alimentar de mais uma história
marginal.

O vendedor pediu parada e desceu. O transporte público conti-


nuou a viagem, até que os três assaltantes anunciaram o assalto.
Horas depois, o vendedor recebeu a notícia sobre um ônibus as-
saltado, deixando duas vítimas fatais. Não demorou para reco-
nhecer os passageiros através dos vídeos das câmeras de segu-
rança. A mãe com o bebê no colo se destacava. No dia seguinte,
comentou com dois colegas de rua:

“Eu estava naquele ônibus, desci duas paradas antes do local em


que anunciaram o assalto. Eu brinquei com o bebê e tudo, cara.

144
Nem dormi direito de ontem para hoje. Quando fechava os olhos,
o sorriso daquele bebê olhando para mim aparecia na escuridão.”

“Sério, cara? Que tenso isso!” falaram admirados com o relato.

“Tô até morgado com isso. Vim trabalhar hoje a pulso, precisando
levantar o dinheiro para completar a fatura do cartão do meu tio.
Compramos uma geladeira e fogão novos, e tô na correria para
me livrar logo.”

Os dois colegas escutaram a última frase sem acreditar muito. Ti-


nham dificuldades em ajudar dentro de casa, e o novato já estava
tão bem a ponto de trocar de geladeira e fogão? O que ele estava
fazendo de diferente do que eles faziam? Tinha que observar me-
lhor o modo como ele trabalha. Será que ele trabalha com algo
fora as vendas ambulantes? Não custava perguntar.

“Mas você trabalha com algo a mais sem ser isso, né?” perguntou
um dos vendedores, bastante curioso.

“Não, cara, só com isso no momento. Achei que não consegui-


ria muita coisa, mas me surpreendi. Tem dia que o cara sai com
quase nada, mas tem dias que vale por dois e desconta os dias
fracos. O negócio é só o cara se organizar, tá ligado? Vocês estão
a mais tempo que eu nisso, quem sou eu pra ensinar como deve
fazer?”

Os dois ambulantes continuaram a olhar para ele, curiosos. A in-


veja aumentou quando, certo dia, o viram com um celular novo,
recém tirado da embalagem. Enquanto isso, o aparelho telefônico
deles era de segunda mão, comprado das mãos de ladrões que

145
vendem a preços baixíssimos.

Seu sucesso nas vendas começou a ser alvo das conversas entre
os outros colegas, que também germinaram a inveja dentro de si.
Se soubesse que esses comentários fosse acarretar o sofrimento
que hoje passa em cima da cama do hospital, manteria a boca
fechada e guardaria para si as vitórias com que a vida tinha lhe
presenteado, proporcionando o sustento da casa como vendedor
ambulante. Tinha mês que ganhava quase o dobro do que ga-
nhava na época do emprego fixo. Isso o fez ficar cada vez mais
animado e sair às vendas diariamente.

14

Os dois vendedores invejosos estavam dentro de uma estação


de ônibus quando, de longe, perceberam um grupo de vigilantes
andando pelo local. De imediato, esconderam as sacolas com as
mercadorias entre as pernas dos passageiros que esperavam na
fila de um dos ônibus. A sorte é que até os passageiros ajudam os
ambulantes a esconder, pois se sentem na pele deles. “Imagina
você querer ganhar dinheiro às custas do seu suor, honestamen-
te, e outras pessoas te proibir de fazer isso?” Era isso que os
passageiros complacentes comentavam quando os funcionários
municipais apreendiam as mercadorias dos que tentam oferecer
os produtos.

Eles se afastaram das suas respectivas sacolas e ficaram na fila


fingindo esperar o ônibus. Aguardaram até que os vigilantes saís-

146
sem do campo de visão deles. Quando se distanciaram conside-
ravelmente, os dois amigos pegaram de volta as sacolas e foram
em direção à saída da estação.

“Vamos embora logo, antes que voltem para esse lado.” disse um
deles, jogando a sacola por cima do ombro direito e andando rá-
pido, quase correndo.

Ao finalizar a frase, um vigilante à paisana deu ordem para os


dois pararem, mostrando imediatamente a documentação com-
provando ser funcionário do município. Os dois correram por en-
tre os passageiros, causando uma enorme confusão. Todos que
estavam presentes pensaram se tratar de um arrastão. Houve um
tumulto que foi logo controlado pela polícia. Os dois vendedores
conseguiram se esconder por um tempo, mas foram rapidamente
identificados pelos vigilantes. Policiais os algemaram pelo tempo
suficiente para as mercadorias serem apreendidas sem o perigo
de confusão. Enquanto viam seus produtos comprados com muito
esforço serem apreendidos, tentavam argumentar com lágrimas
nos olhos, na esperança de serem perdoados e terem as merca-
dorias de volta:

“Amigo, como eu vou trabalhar agora? Tenho dois filhos para dar
pensão. Tiro o alimento deles disso…”

“Se eu tivesse roubado isso, cara, mas compramos com nosso


próprio dinheiro… Não estamos fazendo nada demais. Podem
perguntar aos passageiros. Somos bandidos não!”

Os vigilantes e policiais não esboçavam nenhuma compaixão, ig-


noravam totalmente as palavras dos dois jovens. Se sentiam su-

147
perior em relação aqueles dois seres. O único que os encaravam
era o vigilante à paisana, o responsável pela situação. Se não
fosse por ele, estariam do lado de fora com as mercadorias em
mãos. Os dois vendedores o olharam por um bom tempo, falando
com os olhos o que a boca não podia dizer. Memorizaram bem o
rosto do vigilante à paisana. Por infelicidade deste, após alguns
dias, os três irão se reencontrar na saída de um bar. Farão contra
ele o que desejaram quando tiveram os produtos apreendidos.
Irão espancá-lo com um pedaço de madeira. A raiva criada pelos
vigilantes será de onde tirarão as forças e a impiedade com que
o deixarão jogado, ensanguentado, com boa parte das costelas
quebradas, estirado na rua. Será encontrado por um parente que,
devido à demora em voltar para casa, irá procurar por ele, preo-
cupado com tempo violento o qual vivemos. No dia seguinte, o ato
violento será matéria principal no jornal local.

Os dois vendedores foram liberados, mas continuaram a encarar


o homem que em breve será a vítima do ódio da injustiça que
sofreram. O vigilante à paisana observava a movimentação na
estação, em busca de outros ambulantes.

15

No dia seguinte ao espancamento do funcionário municipal, o


nosso protagonista não foi trabalhar. Estava com dores na coluna,
resultado de anos trabalhando pesado no emprego anterior quan-
do tinha que suspender imensas caixas de lixo para dentro dos
caminhões. Foi à unidade de atendimento emergencial e recebeu

148
a medicação necessária para amenizar as dores enquanto repou-
sava. Em relação ao dinheiro perdido sem um dia de trabalho, não
se preocupou. Estava com dinheiro guardado.

A mãe, sempre com o instinto maternal de cuidar dos filhos como


se ainda fossem crianças, independentemente da idade, olha-
va-o de instante em instante. Perguntava se estava melhor, se
precisava de algo, se estava com sede, se estava com fome, se
precisava ir ao banheiro, se queria a televisão ligada ou desliga-
da. Aquelas perguntas feitas pelas mães quando estamos cam-
baleados por alguma doença ou dor física, já que os sintomas são
impossíveis de serem escondidos, diferente das dores na alma.
Se as mães pudessem ver estas dores ocultas, estariam cons-
tantemente perguntando se a gente precisava de algo, já que são
dores que sempre nos acompanham, nunca curadas. A diferença
de uma para outra é o nível do ferimento e o grau das inflamações
posteriores.

“Mãe, pode deixar. Na próxima, eu mesmo pego água. Já estou


conseguindo andar sem sentir as dores na base da coluna” disse
ele ao tentar se levantar do sofá ao ver a mãe trazendo um copo
d’água para ele.

Ela o impediu de concluir o movimento segurando-lhe no ombro:


“Calma, já estou aqui. Você precisa repousar, continue sentado.”

O jovem sorriu, aceitando o copo com água. A mãe o admira mui-


to. Às vezes esquecia que, na verdade, era avó dele. Com cer-
teza, deve ter acontecido com você. Aconteceu comigo quando
conheci a história. O amor que envolve os dois é de uma grande-

149
za tão divina que não existem adjetivos o suficiente para elogiar o
tratamento entre eles.

“Só de lembrar que ele não poderia estar aqui… um ser tão cheio
de luz.” pensou, ao trazer à memória o momento difícil que pas-
sou com a filha quando esta engravidou do primeiro namorado.
“Deus foi misericordioso e me mostrou. Agradeço a Ele todos os
dias, com as forças que ainda me restam.” continuou falando con-
sigo mesma, enquanto o jovem colocava o copo vazio na lateral
do sofá e deitava. Fez uma expressão de dor quando se inclinou
de mal jeito.

“Vou ligar a televisão, filho. Vai começar o jornal.”

Ela ligou a TV, sentou no sofá ao lado e esperou o jornal ini-


ciar. Após a tradicional vinheta que indica o início do programa
jornalístico, o apresentador, bastante sério e sem desejar “boa tar-
de”, noticiou um fato ocorrido na noite anterior. Ao lado da cabeça
do apresentador, apareceu uma moldura malfeita, onde surgiu um
vídeo. Enquanto ele explicava o que aconteceu, o vídeo mostrou
um homem apoiado pelos parentes dentro de um hospital. Se tra-
tava do vigilante espancado pelos dois colegas do vendedor. Ao
término da matéria, o apresentador deixou claro que os suspeitos
eram dois vendedores ambulantes que tiveram suas mercadorias
apreendidas dias atrás numa estação de ônibus, enquanto a ví-
tima cumpria o seu dever. Eles foram reconhecidos pelo funcio-
nário espancado. O delegado responsável pela ocorrência já afir-
mou ter imagens dos suspeitos e que logo estarão sob custódia.

“Poxa, filho… que situação!” falou a mulher, surpresa.

150
“Verdade, mãe... “

O jovem começou a lembrar de umas conversas nas ruas e juntou


as peças. Dias atrás, ficou sabendo que os dois vendedores com
os quais estava falando sobre a compra de uns equipamentos
tiveram suas mercadorias apreendidas dentro de uma estação de
ônibus. Nos outros dias, escutou que os dois estavam procurando
pelo funcionário para se vingar.

“É, foram eles... Tudo bate” afirmou para si, de forma inaudível.

A mãe achou que tinha falado com ela e perguntou: “o que foi, fi-
lho?”. Ele balançou a cabeça negativamente e continuou a refletir
sobre a situação.

No jornal noturno foi confirmado o que já era certeza: os dois ven-


dedores suspeitos de espancar o funcionário municipal foram de-
tidos sob acusação de tentativa de homicídio. O nosso protago-
nista não tirava os olhos da TV que estampava as fotos de baixa
resolução dos culpados.

Ninguém para e pensa de forma imparcial sobre as situações ge-


radas a partir disso tudo. Como será que aquele vigilante conti-
nuará trabalhando após o trauma físico e mental, realizando as
tarefas que tem que cumprir para ganhar o salário e sustentar a
família? E os filhos dos homens presos, por quanto tempo viverão
sem a presença dos pais? Como esses homens suportarão viver
trancafiados dentro de uma cela minúscula com menos de 1 me-
tro do chão para dormir? E com quais pensamentos destrutivos
sairão da prisão daqui a uns anos?

151
Isso não poderia ter sido evitado se houvesse uma logística espe-
cífica para cuidar dos assuntos relacionados aos vendedores am-
bulantes, já que eles desejam ter o dinheiro ganho com o próprio
suor, sem tirar de ninguém à força? É mais fácil afastá-los das
ruas do que sentar e criar um plano de ação para amenizar a
marginalização desses batalhadores? As respostas não sou eu
quem as dará, não tenho as soluções para os problemas sociais.
Só posso dizer que o ser humano é complicado, a maioria só olha
para os próprios pés e não se preocupa com o local em que os
pés alheios estão a pisar.

16

Com a repercussão da violência contra o vigilante, houve um au-


mento de atenção tanto dos funcionários municipais e policiais
quanto dos vendedores ambulantes, que sabiam sobre a provável
retaliação que sofreriam e passaram dias sem cumprir a rotina
diária das vendas. Os que arriscavam tinham os produtos apreen-
didos em poucas horas. E sem mais o direito de pagar uma taxa
para ter as mercadorias de volta. O município tinha conseguido a
desculpa perfeita para acabar de vez com o segmento comercial.

O nosso vendedor voltou ao trabalho após se recuperar parcial-


mente das dores na coluna, mas sob várias recomendações de
cuidados da mãe. Ainda no tratamento de remédios, resolveu
passar poucas horas nas ruas e voltar cedo. Levou as mercado-
rias em uma bolsa normal e se vestiu da melhor forma possível
para despistar os “caçadores de ambulantes” (termo criado pela

152
mídia). Outros fizeram a mesma coisa, colocaram seus produtos
em bolsas tradicionais de estudante para enfrentar a guerra.

Ele e os colegas realizavam o trabalho com bastante cuidado. Vi-


gilantes começaram a andar à paisana e entrar nos ônibus como
passageiros comuns. O rebuliço era grande quando policiais e vi-
gilantes estavam juntos. A maioria corria, mesmo aqueles que se
encontravam disfarçados com roupas e bolsas de um trabalhador
comum. Não podiam arriscar perder o que garante o jantar no final
do expediente.

O vendedor convalescente passava poucas horas nas ruas, em


resguardo dobrado. Tanto pela retaliação que os ambulantes so-
friam quanto pela instabilidade física em que se encontrava. Por
sua sorte e o talento cada vez mais aguçado de convencimento,
sempre saia com um bom lucro, mesmo passando pouco tempo
em atividade. Os colegas estavam com dificuldades de venda e
não entendiam como ele conseguia vender independente da cri-
se.

Alguns ambulantes pensaram até em praticar assaltos para ga-


rantir o leite e fraldas dos filhos que choram todos os dias, pedin-
do o alimento necessário. Estão fazendo o certo, reclamando os
seus direitos de sobrevivência. Os responsáveis, seja lá qual for
a situação financeira, precisam atender o inocente ser humano.

153
17

“tá valendo tudo, cara. O que não dá é voltar sem grana no final
da tarde para casa. A mulher consumindo a mente, dizendo que
tá faltando isso, aquilo… Eu vou é roubar mesmo. Se ver algum
otário vacilando com algum celular, eu vou é pegar sem pena. O
governo tá tirando o que é nosso, então vou começar a tirar o que
é dos outros também. Já cansei de viver assim. Quando eu era
do tráfico, não faltava nada em casa, sempre tinha o que comer.
Sobrava dinheiro para ir às pizzarias quase todas as noites… E
hoje em dia? Só faço me foder. Essa porra de mundo não deixa
nem o cara trabalhar de forma honesta. Se o cara não arrumar
um trabalho de carteira assinada, tem que continuar procurando e
continuar desempregado, mas pegar suas mercadorias e vender
numa boa não pode. Quem sustenta meus filhos sou eu, não é
nenhum político que só vem na casa do cara em quatro e quatro
anos.” desabafou um dos vendedores ambulantes. Ele falava so-
zinho.

Quem passou diante dele o viu apenas mexendo a boca rapida-


mente, sem entender nenhuma palavra do monólogo. Ele desa-
bafava para a vida, que, para ele, era a culpada por tudo o que
acontecia. Então, a vida foi a única que escutou atenta ao que
ele tinha para falar, só não deu respostas para as suas indaga-
ções. A resposta veio de dois tiros fatais dados por um policial à
paisana no dia em que assaltou uma mulher na rua e foi pego no
flagra. Morreu e deixou uma adolescente grávida de dois filhos
dele. Morreu tentando sobreviver neste mundo onde a pirâmide
social e financeira esmaga quem está na sua base, sem a mínima

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preocupação de conhecer a situação emocional das suas vítimas.

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“Como andam as vendas?” perguntou um dos ambulantes ao


vendedor principal da história corrente. Ele sabia o quanto o co-
lega estava se dando bem, só queria ter certeza e extrair alguma
informação valiosa.

“Devagar, mano…” respondeu sem levantar os olhos.

O curioso sorriu, desacreditando.

“Tô sabendo de outra história. Dizem por aí que tu é o único que


consegue driblar a crise e vender tanto ou mais do que naquela
época em que não tínhamos ninguém na nossa cola.”

“Estou passando por dificuldades igual a vocês, cara… O barco


é o mesmo para todos nós. Não estou em barco diferente não.”
Dessa vez, olhou nos olhos do interlocutor.

“Pelo que escutei, você não está num barco, está num navio, e
dos grandes! Comprasse outro celular como? Não troco o meu,
que é de segunda mão, há um ano.”

“Minha mãe ajudou a pagar.”

O nosso ambulante começou a perceber o clima tenso pelo fato


de estar a vender bem, enquanto os outros estão com dificulda-
des em repassar as mercadorias. Começou a se desviar de tais

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assuntos. Os colegas de trabalho começaram a criar uma raiva
para com ele. Coisas da vida social. Precisamos amadurecer mui-
to como humanos para não sentirmos ameaçados pelo sucesso
alheio e, sim, comemorar junto, felicitando e desejando que pros-
pere mais. Infelizmente, as pessoas ainda nutrem em seus cora-
ções o pensamento de que, para serem bem-sucedidas na vida,
precisam passar por cima de alguém. Isso nada mais é do que
um modo asqueroso de chegar no objetivo. O ser humano tem o
instinto de querer as coisas só para si. Se o outro tem, então, ele
não poderá ter. E, para este conseguir, o outro precisa deixar de
possuir. Um raciocínio medíocre.

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A mãe do vendedor estava a adoecer com facilidade. Fazia tempo


que não adoecia por semanas seguidas. Com dores nas pernas,
não se locomovia muito. O sono estava raro, dormia pouco. Fez
uma oração, perguntando a Deus se ele queria mostrar algo a
ela. Ele queria sim, mas não podia deixar explícito o que o destino
tinha escrito para vida do seu filho e Ele tentava reescrever, fa-
zendo com que o jovem passasse mais tempo em casa, cuidando
dela. Por isso, as enfermidades.

O plano divino para o deixar em casa durou pouco. O que esta-


va escrito pelo destino não podia ser modificado, apenas adiado.
Deus tinha outras vidas para cuidar, e, por um descuido, o jovem
sob vigilância foi trabalhar. Precisava gerar dinheiro, gastou quase
todas as economias com remédios e idas ao hospital com a mãe.

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O vendedor sentiu confiança em deixá-la sozinha já que ela tinha
melhorado consideravelmente. Ele pegou a bolsa, organizou as
mercadorias e foi cumprimentar a mãe antes de sair. Deu um bei-
jo na testa dela. O toque dos lábios em sua pele foi diferenciado,
tinha gosto de despedida. Lembrou que sentiu o mesmo gosto
quando a filha decidiu morar com outros parentes em outra região
do país, na sorte de tentar construir uma vida financeira estável e
retornar para buscar o filho. Nunca retornou e formou outra famí-
lia, até esqueceu da vida que tinha deixado na cidade de origem.
A senhora convalescente nem sequer comentava com o filho so-
bre a sua mãe verdadeira. Ele sabia apenas que ela morava em
outro estado, mas a ignorava. Se o abandonou, então não mere-
cia a preocupação dele após anos sem entrar em contato.

A senhora convalescente olhou para o jovem e tentou entender


o motivo do gosto de despedida do beijo. Sabia que ele não a
abandonaria, como a filha tinha feito anos atrás. Então, o que iria
acontecer? Várias situações passaram pela cabeça, a fazendo de
todas as formas dissuadi-lo de ir trabalhar naquele dia.

“Calma, mãe. Você está sentindo isso por saber que os vigilantes
e os policiais estão em observação redobrada. Pode ficar tranqui-
la, eu estou fingindo muito bem. Olhe para mim, você diria que eu
sou um vendedor ambulante? Então, não fique preocupada, tá?
Precisamos de dinheiro, já passei dias sem ir trabalhar. Vou apro-
veitar que a senhora está melhor e vou atrás de algo para deixar
guardado, em caso de emergência. Vou levar o celular. Qualquer
coisa, ligue para mim.”

A mulher tentou a última vez, mas não tinha argumentos o sufi-

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ciente para impedi-lo. Apenas disse, quando percebeu que ele
não cederia: “Cuidado, filho. Eu te amo!”

Ele, cético de que algo poderia acontecer, não ignorou a última


frase pronunciada pela mãe. As outras frases que escutará dela
serão frases já faladas, relembradas em sonhos quando estiver
em coma. Uma estratégia da própria mente para se manter sã,
enquanto o corpo vegeta em cima da cama de hospital.

20

Alguns vendedores já se encontravam no centro da cidade. Uns


descarados, oferecendo os produtos aos gritos, desafiando a sor-
te. Outros mais tímidos, olhando para os lados, temerosos em se
deparar com os caçadores de ambulantes. De longe, eles avis-
taram o vendedor bem-sucedido, com sua bolsa e estilo fora dos
padrões dos colegas.

“Lá vem ele, todo arrumadinho, se achando melhor que a gente.


Esse puto.”

“Tá bom da gente fazer uma malícia com ele, para ele aprender a
ser mais humilde. Vive dizendo por aí que comprou isso e aquilo
com as vendas. Ouvi até dizer que deu entrada numa moto.”

“Esse cara precisa de uma lição... Tive uma ideia. O negócio é ele
deixar essa bolsa fora da vista, coisa que é difícil…”

“Só se acontecer algo que o obrigue a ficar longe. Mas e aí, qual

158
a tua ideia, mano? Não vejo a hora de ver esse bicho se fodendo.
Paga de gatão demais.”

“Vamos tirar as mercadorias da bolsa dele e dar um perdido. Co-


locar pedras no lugar, para, quando ele abrir a bolsa e oferecer
no ônibus, meter a mão dentro e não encontrar mais nada. Só
pedras.”

Os cúmplices riram, imaginando a cena.

“E a gente esconde onde?”

“Sei lá… Se eu me arretar, a gente divide pra gente mesmo e diz


que não sabe o que houve.”

“Ele vai saber que foi a gente.”

“Eu tô nem aí” falou o idealizador. “Se ele vir pro meu lado, eu
meto a mão na cara dele. Já tô de saco cheio desse carinha. Se
acha demais.”

A vontade de agir com violência não era apenas desejo do idea-


lizador da brincadeira. Os outros só precisavam da faísca que
acendessem seus pavios. Um deles tentou amenizar a situação:

“A gente esconde, mas depois devolvemos, cara. Se fosse conos-


co, a gente não ia gostar.”

“Que nada, cara. A gente vai fazer. Se tu não for de acordo e de-
fender ele, vai levar porrada junto.”

Esse diálogo aconteceu enquanto o vendedor invejado atravessa-

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va a rua para cumprimentá-los. Fazia isso todos os dias. Sempre
gostou de ter um bom relacionamento com aqueles que frequen-
tavam o mesmo local que ele.

“Olá, pessoal, tudo bom?”

Os colegas responderam, trocando olhares. A demora só seria


algum vacilo dele, mas isso não aconteceu. O vendedor invejado
não tirava a bolsa das costas, por isso precisavam pensar
rapidamente no que deveria ser planejado para ele esquecer a
bolsa.

“Uma briga?” sugeriu um dos cumplices.

“Entre a gente?”

“Sim, entre a gente. Fingimos esbarrar um no outro, aí começa


a discussão. Ele vai querer separar, já o vi fazendo isso durante
uma briga de vendedores em uma estação meses atrás.”

“Em qual momento?”

“Deixa ele voltar, acabou de subir em um ônibus.”

O alvo da covardia retornou em menos de 30 minutos. Vendeu


bem, os passageiros já o conheciam e gostavam da forma que
ele oferecia as mercadorias. Criou uma relação agradável com
os motoristas, cobradores e passageiros. Não reclamava da vida,
elogiava as pessoas, perguntava como estavam, lançava frases
motivadoras e testemunhava sobre a sua vida como forma de in-
jetar nas pessoas doses de esperança. Fazia isso quando sentia
que alguém dentro do ônibus tinha uma expressão pesada, so-

160
frida. Sabia o que tal pessoa precisava, e a presenteava com as
palavras necessárias naquele momento. Dom natural herdado da
avó.

As pessoas que foram tocadas pela grande espiritualidade do


vendedor ficarão em extrema tristeza ao se deparar com a capa
do jornal no dia seguinte, onde irão ler: JOVEM É ESPANCADO
VIOLENTAMENTE NO CENTRO DA CIDADE. Só restará para
eles o desejo de que tudo ocorra bem, e que ele retorne logo às
atividades. Mas isso não acontecerá. Ele vegetará na cama do
hospital, emergido em um loop de sonhos enganadores. Sonhos
que o fazem acreditar que ainda está saudável e na rotina como
ambulante. No mundo real, a mãe permanecerá sentada ao seu
lado, orando todos os dias pelo despertar do filho.

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Ao retornar, o vendedor estava a sorrir, algo no ônibus tinha sido


o motivo. Os colegas já traçaram toda a estratégia para a brinca-
deira de mau gosto. Iam só aguardar a distração do alvo. Quando
chegou o momento esperando, a briga forjada iniciou.

“Porra, cara! Olha por onde anda. Tais com o olho enfiado com a
rola no cu da tua mãe é?”

Empurrões, socos e chutes que não atingiam ninguém tomaram


conta do local. As pessoas que não sabiam da armação correram
alvoroçadas e se mantiveram distante, esperando o desfecho da

161
situação. O nosso protagonista deixou a bolsa de lado e tentou
acalmar a briga. Infelizmente, não percebeu que os golpes desfe-
ridos não tinham o propósito de machucar alguém. Pelo menos,
não aqueles que faziam parte da armação. O idealizador da briga,
ao ver a oportunidade, chutou as costas do alvo da brincadeira,
fazendo-o cair no chão e ralar os cotovelos. Ainda no chão, outro
aproveitou e pisou em uma de suas pernas. Ali estava a oportu-
nidade para descontar a raiva sem lógica que tinham contra o
jovem.

De longe, se ouviu uma sirene que ficava cada vez mais alta a
cada segundo que passava. Alguém tinha ligado para a polícia.
Imediatamente, os vendedores pegaram suas mercadorias e saí-
ram correndo. O vendedor enganado não ficou para contar a his-
tória, pegou a sua bolsa e também saiu correndo, sentindo a dor
causada pela pisada na perna. Devido à adrenalina, não sentiu o
volume diferenciado da bolsa. Depois de se distanciar considera-
velmente do local, ele sentou-se no banco de uma praça, recupe-
rando o fôlego após a sequência da briga e fuga.

A sede apertou. Quando abriu a bolsa e colocou a mão dentro


para pegar a garrafa de água, percebeu que tinha algo errado.

“Peguei a bolsa errada?”

Quando olhou para dentro, viu que as mercadorias não estavam


mais ali. Pedras foram colocadas no lugar dos produtos. Um misto
de raiva e desespero tomou conta dele. Eram as últimas merca-
dorias que tinha para vender. Olhou os detalhes da bolsa e confir-
mou que era a bolsa dele ao olhar a marcação feita na alça com

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uma faca esquentada, já para não haver confusões e pegar a
bolsa de alguém enganado.

Entendeu o que tinha acontecido: a briga foi forjada. Não estava


acreditando até onde o ser humano chega para sabotar o trabalho
de outra pessoa. Um ódio cresceu em seu coração. Tremia, cho-
rava, puxava o ar de forma profunda.

“Eles me pagam! Isso não se faz!”

Apertou os dedos, cerrando o punho. Quase que as unhas encra-


varam na palma da mão. O maxilar se movia e os dentes roçavam
um no outro. Ficou cego de Raiva. Raiva pelo o que o ser humano
é. Raiva pela capacidade do ser humano em destruir a vida alheia
por conta de inveja. Deveria ter se resguardado em relação a co-
mentar sobre as vendas e a boa relação com os clientes. Jogou
a culpa nele mesmo por ter se mostrado bem-sucedido, como se
quisesse ser melhor que os outros. A intenção não era essa, mas
percebeu que foi isso que pareceu. Apesar disso, não ia deixar
a situação passar, tiraria satisfação. Sabia muito bem com quem
iria falar e desferir o primeiro soco. Não estava preocupado com
as consequências, queria apenas descarregar a raiva no rosto do
homem que tinha concebido a ideia. Pelas conversas e brincadei-
ras, sabia de quem se tratava. Se levantou do banco, segurou a
bolsa com força e caminhou, quase correndo, em direção ao local
em que os outros vendedores provavelmente estariam.

Ao se aproximar do ponto de ônibus em que houve a briga, per-


cebeu carros da polícia parados e agentes conversando com al-
gumas pessoas para sondar o que tinha ocorrido ali. Retornou

163
na mesma hora, tentando pensar em qual local os colegas ma-
liciosos estavam. Foi em dois locais diferentes, mas ele não os
encontrou em nenhum destes. Não conseguia raciocinar direito,
tinha esquecido até quem era, queria apenas tirar satisfação. Não
podia deixar que fizessem isso e deixar para lá, ou as brincadeiras
iriam piorar. Precisava mostrar que não era otário.

Após quase uma hora andando, viu alguns dos vendedores en-
costados na parede de um ponto de ônibus, esperando a vez de
cada um. De imediato, enxergou o idealizador da brincadeira. Não
tinha provas de que tinha sido ele, mas algo falava no seu ouvido
de que estava certo. Os cúmplices o viram andando em direção
deles, bufando que nem um touro quando se prepara para gol-
pear a bandeira vermelha do seu assassino. Eles riram, gritando:

“Olha quem vem ali.”

Mal chegar perto e já desferiu o soco que jogou o idealizador da


armação longe. As mercadorias do agredido se espalharam no
chão.

“Filhos da puta! Cadê minha mercadoria?” gritava com força, as-


sustando os transeuntes que passavam. “Cadê minha mercado-
ria? Cadê meus produtos? Não estou brincando não! Me devol-
vam!”

“Calma, cara… Foi apenas uma brincadeira.” tentou amenizar um


dos cumplices, que foi empurrado com força pelo jovem descon-
trolado. Motivo o suficiente para o empurrado perder a paciência e
se levantar para revidar com socos e chutes. Alguns seguraram o
vendedor roubado enquanto os outros o enchiam de golpes fortes

164
pelo corpo. Após perceberem que o espancado não tinha mais
forças para dificultar os golpes recebidos, o soltaram no chão.
Ainda estava lúcido, com os olhos abertos fitando o rosto de satis-
fação dos colegas de trabalho ao vê-lo naquela situação. Perdeu
os sentidos aos poucos até ficar tudo escuro.

“Otário! Pensa duas vezes antes de dar um murro na minha cara!”


falou o idealizador da brincadeira, chutando com força o peito
dele. O que foi empurrado pulou duas vezes em cima da cabeça
do jovem desmaiado, fazendo até os amigos virarem o rosto para
não verem tal atitude covarde.

As pessoas presentes filmaram toda a sequência de violência,


sem ao menos se preocupar em separar a briga. Valia registrar
aquilo para futuras postagens nas redes sociais do que impedir
que a agressão chegasse ao nível que chegou. O jovem poderia
ter outro destino, distante da cama de um hospital, se as pessoas
ali presentes se preocupassem com a vida alheia, esquecendo a
vaidade em ter uma postagem com milhões de curtidas. A única
coisa positiva dos registros foi o auxílio à polícia para prender os
culpados da atrocidade dias após o ocorrido.

22

A mãe do jovem estava em casa, deitada na cama. Sentiu uma


pontada forte no peito e um enjoo. Achou que tinha sido do mal-
-estar que sentia há semanas. Na verdade, foi a vida tirando um
pedaço dela, sem anestesia. Por isso, a dor foi aguda. Faltavam
poucas horas para um vizinho a chamar e contar o que houve.

O jovem, em cima da cama do hospital, continua a sonhar com as


vendas.

166
… e essas histórias continuam a repetir...

167
SOBRE O AUTOR

Don Marcos. Pseudônimo de Marcos Paulo Barbosa de Alen-


car, nascido a 29 de setembro de 1990. Natural de Recife, Per-
nambuco.

Escreve desde cedo, com 11 anos começou a arriscar contos


no papel. Bem antes disso, entretanto, já elaborava histórias na
imaginação onde transformava os bonecos de brinquedo nos pro-
tagonistas das situações que criava na mente. Suas influências
são José Saramago, Graciliano Ramos, Ernest Hemingway, Fió-
dor Dostoievski, Vladimir Nabokov, David Simon e Aaron Sorkin.

Antes de se dedicar à escrita, trabalhou como professor na área


de Design Gráfico. Aos 21 anos, foi instrutor do SENAC-PE e já
atuava na área da educação social em ONGs como o Centro de
Organização Comunitária Chão de Estrelas, onde ele foi jovem
atendido pelas atividades lá proporcionadas. Como designer grá-
fico freelancer, desenvolveu identidades visuais para diversos
grupos da cultura popular. Vale citar o projeto gráfico do primeiro
CD autoral do Mestre Galo Preto. Participou, também, na produ-
ção de eventos culturais que ainda marcam época na Região Me-
tropolitana do Recife.

Atualmente se dedica, além da prosa, ao seu herdeiro Vitor. Am-


bos dividem o seu amor.
CONTATOS

E-mail: mpbarbosa3@gmail.com

Instagram: don.marcos.alencar

Youtube: /donmarcosdocumentarista

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