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6 editorial

No braço
Cinema não é arte fácil de No Brasil é assim. tem participação em Atrito
fazer. Exige tecnologias so- e Crua, de Diego Lima, Sol
fisticadas, além de equipes Não se conhece alegria, de Tavinho Teixeira,
técnicas especializadas, isto e A ética das hienas, de Ro-
sem falar no corpo artístico,
um Estado da
dolpho de Barros.
que envolve direção e elen- Federação que, Ou seja, ninguém está pa-
co, mas não exclusivamen- rado, pelo menos se depen-
te. Apesar do requinte, que bem ou mal, não der do interesse pessoal. Por
implica em dificuldades, se isto mesmo, a tradição do
rico ou pobre, não importa,
tenha sua história
cinema, na Paraíba, prosse-
quase todo país faz cinema. de cinema. E a gue, para o bem da memó-
No Brasil é assim. Não se ria de Walfredo Rodriguez
conhece um Estado da Fe- Paraíba, é óbvio, e de outros pioneiros. Mas
deração que, bem ou mal, nem tudo são flores no jar-
não tenha sua história de ci-
não poderia ser
dim das imagens em movi-
nema. E a Paraíba, é óbvio, diferente. mento. As dificuldades se
não poderia ser diferente. renovam, exigindo muita
Por cima de pau e pedra, disposição.
aqui se faz cinema. E, como Nesta edição, o Correio
se não bastasse, pelo talento das Artes faz uma espécie de
de seus criadores e intér- balanço das novas produ-
pretes, ajuda o país inteiro ções cinematográficas, as-
a fazer cinema. sim como aponta, pela voz
Diversos curtas e longas alguns já próximos de es- de vários profissionais da
metragens, sejam documen- trear nas telas. área, os problemas que ain-
tários, ficção ou um misto Na área de interpretação, da emperram o desenvolvi-
dos dois gêneros, de cineas- por exemplo, Nanego Lira mento da chamada sétima
tas paraibanos, como Mar- está em Piedade, de Cláu- arte, a exemplo da carência
cus Vilar, Bertrand Lira, dio Assis. Zezita Matos fi- de editais e a falta de for-
Torquato Joel, Veruza Guer- gura em Rebento, de André mação de mais profissionais
ra, Kalyne Almeida e Tavi- Morais, Regresso, de Ra- para o setor.
nho Teixeira, entre outros, fael Dornelas, e Améns, de
estão em fase de produção, J. Procópio. E Suzy Lopes O Editor

6 índice

, 4 @ 15 2 32 D 41
Cinema Latinos Geração 65 Crônica
O cinema na Paraíba Analice Pereira comenta O poeta e ensaísta José O poeta e cronista Gil
não para, apesar das o ensaio de Mario Vargas Rodrigues de Paiva Messias compõe o retrato
dificuldades enfrentadas Llosa sobre Gabriel García registra em livro os de um dos profissionais
pelos profissionais do Márquez, autor de Cem cinquenta anos da Geração de imprensa cuja atividade
setor, e há muita coisa boa anos de solidão, romance 65. A obra é analisada por é das mais curiosas: a
em fase de produção. que completa 50 anos. Sérgio de Castro Pinto. redação de obituários.

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http://www.auniao.pb.gov.br Câmara Neto Azevedo
6 cinema

Luz, câmera, Paraíba!


UMA PANORÂMICA DA PRODUÇÃO
AUDIOVISUAL CONTEMPORÂNEA,
DO LITORAL AO SERTÃO

Linaldo Guedes
linaldo.guedes@gmail.com

4 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


L uz, câmera... Paraíba! Cada vez mais
essa ideia vem sendo repetida nos set de
filmagens, seja na Paraíba ou em outros
estados do país. O número de produto-
Ambiente familiar, de Torquato Joel; docu-
mentário O seu amor de volta (mesmo que
ele não queira), de Bertrand Lira; Piedade,
de Cláudio Assis, com participação de
res, atores, atrizes, diretores e técnicos Nanego Lira; Rebento, de André Morais,
envolvidos com cinema, no Estado, só Regresso, de Rafael Dornelas, e Améns,
tem aumentado nos últimos anos. O de J. Procópio, todos com participação
fato tem gerado prêmios, mercado de de Zezita Matos; Atrito e Crua, de Diego
trabalho e prestígio aos nossos artistas, Lima, Sol alegria, de Tavinho Teixeira, A
cada vez mais requisitados para partici- ética das hienas, de Rodolpho de Barros,
parem de grandes produções no cinema todos com Suzy Lopes; Você conhece Der-
e na televisão nacional. réis, de Veruza Guedes, Aponta pra fé, de
Em conversa com alguns cineastas e Kalyne Almeida, entre outros.
artistas, por exemplo, nossa reportagem E por que esta efervescência toda,
conseguiu fazer um breve roteiro de fil- num Estado pequeno, com uma arte
mes que estão em fase de produção e que considerada como uma das mais caras?
contam com direção de nossos cineastas Conversamos com diretores, produ-
ou participação de nossos artistas. Ve- tores, atores e atrizes para saber o que
jam a lista: Sina de cigarra, longa sobre está rolando nos bastidores e quais são
Jackson do Pandeiro, e Rita no pomar, de as próximas atrações nas telas do cine-
Marcus Vilar; longa sobre Pedro Poty, e ma paraibano. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 5


OS EDITAIS COMO
SUPORTES DE EVOLUÇÃO
Foto: joão lobo
c O cineasta Marcus Vilar lem- fazem laboratório de roteiros em
bra que a nossa tradição cinema- cidades do interior e, no âmbito
tográfica é muito grande. Vem desses laboratórios, alguns reali-
desde os anos 60, com o filme zadores foram surgindo. Alguns
Aruanda, de Linduarte Noronha, dos filmes surgidos a partir des-
marco inicial do Cinema Novo. ses laboratórios já foram exibi-
Também com grande produção dos em festivais internacionais,
de documentários de Vladimir como Ilha, de Ismael Moura, com
Carvalho e Ipojuca Pontes, en- mais de 50 prêmios. O cineasta
tre outros. Mais na frente, por cita, ainda, os festivais em cida-
conta da Ditadura, uma parte des do interior paraibano, o Ci-
dos cineastas foi para outros es- neport e o Fest Aruanda, além de
tados, como Manfredo Caldas, destacar a parceria e o apoio da
Vladimir e outros. “Mas ficou Universidade Federal da Paraíba
uma produção local – prossegue na produção local.
Marcus -, em Campina Grande No momento, Marcus está
com Machado Bitencourt, Rome- envolvido com a produção do
ro e Rômulo Azevedo, Umbelino filme Sina de cigarra, longa-
Brasil, aqui, em João Pessoa, Ma- -metragem sobre Jackson do
Um dos novos filmes de Marcus
noel Clemente ficou produzindo Vilar, Sina de cigarra, conta a vida Pandeiro que tem codireção de
algumas coisas ainda”. de Jackson do Pandeiro Cacá Teixeira e consultoria de
Segundo Marcus, depois hou- Fernando Moura. No filme, o
ve um vácuo muito grande nos universo íntimo e musical do
anos 70, até que, no final dessa artista Jackson do Pandeiro,
década, surgiu o Núcleo de Do- revelando uma genialidade e
cumentação Cinematográfica Marcus fez um longa sobre originalidade rítmica que in-
(Nudoc), na Universidade Fede- Ariano Suassuna (O senhor do fluenciaram grandes artistas da
ral da Paraíba (UFPB), surgindo, castelo), Eliézer Rolim filmou O MPB. Sua vida foi também mar-
a partir de então, uma nova ge- sonho de Inacim e Vânia Perazzo cada por momentos dramáticos
ração, na qual o próprio Marcus rodou Por 30 dinheiros, só para e polêmicos, seguindo em para-
está incluído. “Teve convênio citar algumas produções dessa lelo ao seu estrondoso sucesso.
com a França, com o governo fase. “No momento, o balanço Serão apresentados depoimen-
francês, do qual participamos eu, que se faz da produção na área é tos inéditos sobre o artista, par-
Bertrand, Torquato, Henrique que aumentou muito, por conta ticipação em filmes, programas
Magalhães”, destaca. Relembra dos editais, das leis municipal e de rádio, frutíferas parcerias,
que diretores e produtores fran- estadual, apesar da fragmenta- relações pessoais conturbadas,
ceses vinham para a Paraíba e ção dessas leis. Não existe uma ostracismo e retomada artística,
eles foram fazer curso de cine- continuidade. Elas vêm, mas até sua morte, em 1982, em Bra-
ma lá na França. “Então, foi se param, passa dois anos sem ter sília (DF). O filme foi aprovado
formando uma nova geração, a e, quando tem, esse dinheiro no Edital Walfredo Rodriguez,
‘Geração do Nudoc’, eu poderia às vezes não é repassado com o em 2013, e Funcultura/Pernam-
chamar assim. Depois as pro- tempo devido e atrasa muito a buco, em 2014. “Já gravamos oi-
duções começaram a crescer, produção”, comenta. tenta por cento do filme, nas ci-
porém mais com curtas-metra- Para Marcus, outra coisa im- dades de Alagoa Grande, onde
gens. A produção de longas- portante que está acontecendo é Jackson do Pandeiro nasceu,
-metragens ficou muito a dese- a interiorização do cinema parai- em 1919, Campina Grande, João
jar, como ainda está um pouco. bano. Ele destaca o projeto “Via- Pessoa, Recife, Rio de Janeiro e
Está começando a surgir agora, ção Paraíba”, de Torquato Joel e Brasília, onde ele faleceu, em
alguns projetos”, completa. Virgínia Gualberto, onde eles 1982”, revela. c

6 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c
A IMPORTÂNCIA DA rantir a regularidade do edital esta-
dual. “Sem ele, poderemos ‘morrer
na praia’ depois de todo um esforço

PROFISSIONALIZAÇÃO feito para a produção de filmes na


‘raça’ pela Paraíba afora. Hoje a pro-
dução cinematográfica aqui acontece
Foto: divulgação - Rede Globo
Já o cineasta Torquato Joel está do Sertão ao Litoral, algo ímpar em
a todo vapor em termos de produ- relação a outros estados da federação.
ção. No momento, desenvolve um São jovens realizadores produzindo
roteiro de longa sobre Pedro Poty, filmes em pequenas e grandes cida-
um mártir paraibano da nação po- des, alguns, inclusive, estão fazendo
tiguara, no século XVII, junto com festivais de cinema em suas comuni-
outro diretor e roteirista, Rodolpho dades”, acentua. No entanto, segundo
de Barros. “O cinema brasileiro Torquato, não se terá grande fôlego se
precisa urgentemente rever o nos- não houver profissionalização. “Che-
so passado, para entendermos o ga de fazer filmes só na ‘brodagem’!
estado atual das coisas. Além de Além do mais, os editais de cinema
Poty, este ano realizarei meu pri- são um investimento importante para
meiro longa documentário, inti- captação de recursos para o Estado e
tulado Ambiente familiar, sobre três para a capital. A cada real aplicado
jovens rapazes que constituíram, em um edital local, a Ancine coloca o
sem laços consanguíneos, uma fa- dobro do montante. É grana que gera
mília atípica. Ambiente não será um mais emprego e renda, não só para
documentário na acepção pura do técnicos e artistas do meio, mas para
gênero cinematográfico, iremos vários outros serviços, como hotéis,
nos servir da imaginação, para fa- restaurantes, locadoras de veículos,
larmos livremente do real”, conta. etc. E, convenhamos, cinema é vitrine
No elenco desta mescla de docu- para a cultura de um povo”, desabafa.
mentário com ficção, além dos três Torquato afirma que há uma ur-
personagens protagonistas reais, gência em capacitação de técnicos em
nomes do cinema e do teatro parai- todas as áreas do fazer cinematográ-
bano, como Marcélia Cartaxo, Cely fico. “A comprovação desse fato está
Farias, Soia Lira e Suzy Lopes. na constatação da carência de gente
Ao fazer um balanço da sua pro- qualificada para atender ao volume
dução na área, Torquato diz que expressivo de produções do edital
passou muitos anos no exercício da Grande João Pessoa, que agora
livre da linguagem do cinema, se se torna regular. A criação do curso
deixando levar pelo que e como se de cinema da UFPB foi fundamental
comovia através da síntese. “Ago- para a formação, mas não contempla
ra me volto para um cinema mais a qualificação de técnicos que atenda
narrativo, bebendo na fonte do nossa demanda. Apesar da crise em
clássico, sobretudo porque acredito curso, o cinema está necessitando de
na urgência de um cinema que dia- gente para trabalhar em suas frentes.
logue com um público mais amplo, No mais, creio que há um olhar es-
que saia do autoculto do meio. En- pecial e uma expectativa do cinema
tão me encontro no desafio de fazer brasileiro com relação ao que virá
longas-metragens tentando equa- da Paraíba num momento em que
cionar o tom autoral com a narra- deixamos quase que exclusivamente
tiva clássica do cinema. Feitos os de fazermos curtas, para iniciarmos
filmes, um novo desafio virá, que uma produção de filmes de longa du-
é encontrar uma brecha no perver- ração”, acrescenta. c
so mercado da produção audiovi-
sual”, salienta. Marcélia Cartaxo está no elenco
Sobre a produção de filmes na do longa documentário Ambiente
familiar, de Torquato Joel
Paraíba, defende que é preciso ga-

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 7


c O LEGADO DAS POLÍTICAS expressa a profunda solidão de
uma mulher num lugar isolado,
buscando entender os frequen-

QUE SE FORAM tes exílios do seu companhei-


ro”, explica. Ao todo, Bertrand
já dirigiu 12 documentários e
Foto: divulgação uma única ficção. “No momen-
O cineasta Bertrand Lira está to estamos iniciando mais um
trabalhando no documentário documentário, possivelmente
O seu amor de volta (mesmo que ele meu segundo longa-metragem -
não queira), aprovado no edital do o primeiro foi O rebeliado (2008).
FSA/FMS Prêmio Walfredo Ro- Para o ano que vem pretendo
driguez de 2014/2015. “O filme escrever um roteiro de ficção de
trata da solidão nas grandes cida- longa-metragem, colocando em
des, a busca pelo parceiro ideali- prática a experiência acumula-
zado, a busca pelo amor perdido da nas disciplinas e oficinas mi-
e a crença no poder de trazê-lo nistradas ao longo desses anos.
de volta. Esse tema compõe o Uma ideia apenas”, declara.
quadro de histórias propostas Bertrand ficou desde 2012 sem
para o documentário”, esclarece. dirigir nenhum filme porque as
E continua: “Para abordar esse obrigações com o ensino lhe to-
universo, cartomantes e videntes mam muito tempo. Ele dá aulas
introduzirão os personagens e também no programa de Pós-
seus relatos. A proposta é traba- -Graduação em Comunicação do
lhar com personagens reais nar- CCHLA (PPGC), da UFPB, com
rando suas próprias desventuras orientações e uma demanda de
amorosas e histórias cotidianas, produção de artigos e apresenta-
e, igualmente, incluir atores atri- ções em congressos nacionais e
zes que assumirão a história de no exterior. Em maio, por exem-
outros personagens e seus rela- plo, participará do XIII Congres-
tos reais ou fictícios”. O projeto, so de Novela y Cine Negro (ci-
segundo Bertrand, foi aprovado nema noir) na Universidade de
como um telefilme de mais ou Salamanca, Espanha, e logo em
menos 50 minutos, mas existe seguida, do VII Encontro Anual
a pretensão de transformar em da AIM - Associação dos Inves-
um longa-metragem. “Isso vai tigadores da Imagem em Movi-
depender do resultado do mate- mento de Portugal, que acontece-
rial captado”, completa. No mo- rá em Braga. Por ocasião desses
mento, Bertrand está na fase de dois eventos, lançará seu livro
pré-produção com a produtora mais recente. Cinema noir: a som-
Extrato de Cinema, do cineasta Além de um documentário, bra como experiência estética e nar-
Diego Benevides e outros sócios, Bertrand Lira lançará livro de
rativa, que também será lançado
ensaio sobre cinema noir
pesquisando e contatando os na Cinemateca de Lisboa.
personagens que faltam. O livro analisa, pelo viés do
O último filme de Bertrand tratamento imagético e temático,
foi realizado em 2012, um curta cinco filmes noirs: Relíquia ma-
chamado A poeira dos pequenos cabra (O falcão maltês), de John
segredos, uma ficção de Huston (1941), Envolto
20 minutos baseada no nas sombras (1946), de
conto homônimo do es- Henry Hathway, Almas
critor paraibano Geral- perversas (1945) e Maldi-
do Maciel, falecido em ção (1950), de Fritz Lang,
2009. “Nas minhas au- e A marca da maldade
las de roteiro na univer- (1958), de Orson Welles,
sidade, eu usava seus realizados entre os anos
contos para os alunos 40 e 50, nos Estados Uni-
que tinham dificuldade dos. São filmes do gêne-
de desenvolver uma his- ro noir e caracterizados,
tória original. Eu guar- sobretudo, pelos enre-
dei esse conto para mim dos sombrios, em con-
e não usei em aula por- sonância com a ilumina-
que foi o que mais me ção expressionista, com
emocionou. Ele é muito sua fotografia (em preto-
intimista, enigmático, e -e-branco) contrastada e c

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c elaborado uso dramático do
claro-escuro - associado a
temas mórbidos e macabros
-, com toda a carga simbóli-
ca que o embate luz-sombra AS BOAS NOVAS VINDAS
luz representa.
Sobre nossa produção
cinematográfica, Bertrand
DO INTERIOR
D
considera que avançou, se o interior da Paraíba tam- de Ester. Tiago é ex-pescador da
bém vem boas notícias. Comunidade do Porto do Capim
comparada às décadas ante-
Veruza Guedes, que tem e Martha se torna uma agente da
riores (anos 90 e anos 2000), atuado como produtora e direto- comunidade, se envolvendo nos
por conta da política para o ra, está atualmente envolvida em projetos sociais do local. A reali-
setor empreendida pelo Go- três produções. A primeira, na zação é da Grão de Cinema e da
verno Federal, a partir da qual assina roteiro e direção, é o Move Moinhos Produções artísti-
chegada de Lula à presidên- documentário/ficção Você conhece cas. Traz Rayssa Holanda e Bru-
cia. “Teve início toda uma Derréis?, que faz uma homena- no Goya no elenco principal, com
política de descentralização gem ao cantor popular bastante participação mais do que especial
e democratização da produ- conhecido na cidade de Patos de Vó Mera.
ção com editais destinados (PB) e que tem uma longa carreira Mais recentemente, Veruza
às diferentes regiões. Surgi- musical inspirada em Jackson do assumiu a produção de set do
Pandeiro, mas, aos 78 anos, ainda filme Crua, de Diego Lima, tam-
ram também editais locais,
engraxa sapatos no centro da ci- bém pessoense. Com cenas em
tais como o Fundo Muni-
dade. O roteiro foi desenvolvido João Pessoa e em Lucena, traz o
cipal de Cultura (FMC) e o durante o IV JABRE (Laboratório cotidiano tenso de uma garota de
Fundo de Incentivo à Cultu- Para Jovens Roteiristas da UFPB) programa, seus dramas e confu-
ra (FIC). Atualmente, temos e ainda se encontra em fase de sões no centro da cidade. O filme
dois editais destinados à produção. O filme lança um olhar está em processo de gravação,
produção cinematográfica poético sobre Derréis, sua vida com previsão de estreia ainda
- o que leva o nome do pro- simples, sua paixão pela música. esse ano. Traz a atriz Nyka Barros
fessor e cineasta Linduarte Realizado totalmente em colabo- no papel principal
Noronha (do Governo do ração entre amigos, profissionais Para Veruza, ao contrário do
Estado) e o Edital Walfredo do audiovisual e apaixonados que se pensa, existe uma efer-
Rodriguez, uma homena- pela história de seu personagem, vescência cultural latente voltada
conta com uma equipe que veio para o audiovisual no interior pa-
gem ao nosso primeiro ci-
de diferentes cidades: Kennel raibano. “Fruto talvez do número
neasta”, observa. Rógis (Coremas-PB) assina a di- de festivais de cinema, especial-
No entanto, Bertrand en- reção de fotografia, Marcelo Paes mente de curtas metragens, que
tende que há uma carência de Carvalho (Rio de Janeiro-RJ) tem sido constante. Só no sertão
de mais aportes financeiros a técnica de som, Carlos Mosca são quatro festivais: Festissauro,
e de uma maior regulari- (Campina Grande-PB) a dire- em Sousa, Mostra Audiovisual
dade desses editais, exata- ção de arte, Édson Albuquerque Acauã de Cinema Paraibano, em
mente porque, com o surgi- (Cajazeiras-PB) a produção local, Aparecida, Cinema com Farinha,
mento dos cursos de Arte e e George Cabral (Patos-PB) é res- em Patos, e o Curta Coremas, em
Mídia da UFCG, em Cam- ponsável pela identidade visual. Coremas. São esses os espaços
pina Grande, do de Cine- O filme tem previsão de lança- onde circulam as nossas produ-
mento ainda para 2017. ções, onde há excelentes opor-
ma e de Mídias Digitais da
Além disso, Veruza também tunidades de trocas e vivências
UFPB, em João Pessoa, além
faz parte da equipe, no núcleo aprofundadas na área, além de
de uma pulverização de de produção do filme Aponta pra formação e intercâmbio que têm
oficinas de formação pelo fé, de Kalyne Almeida. Este filme proporcionado o surgimento de
interior, há um crescente busca mostrar que existe vida e muita gente boa na área”, avalia.
número de novos realizado- cultura em abundância na região Para ela, a Paraíba vive um
res com projetos na área. “A central e histórica da cidade de excelente momento no audiovi-
Paraíba tem tido presen- João Pessoa, a exemplo do Porto sual, com produções circulando
ça em diversos festivais do Capim, às margens do Rio Sa- em festivais e mostras em todo
no Brasil e em alguns no nhauá, onde a capital paraibana país e fora dele. “Infelizmente,
exterior. Temos uma pro- nasceu. Uma ficção tendo como nosso maior entrave tem sido as
dução com qualidade es- pano de fundo a realidade social poucas oportunidades de editais
e, sobretudo, cultural sob o olhar públicos que possam gerar opor-
tética de outros estados
de Martha, mulher de 25 anos que tunidades de trabalho e liberdade
brasileiros e conquistan- luta para manter sua estabilidade criativa. Muitas produções ainda
do prêmios lá fora. Temos emocional e afetiva. O enredo e a são feitas de forma colaborativa,
também festivais e mos- narrativa do filme giram em tor- entre amigos, o que retarda muito
tras em diversas cidades no da pequena Ester, filha única, o processo de profissionalização
do Estado, o que ajuda na de Martha e de Tiago, mãe e pai na área”, lamenta.
difusão do que é produzi-
do aqui. Isso tudo é moti-
c
vo de alegria”, exalta.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 9


Foto: sarah falcão

c ARTISTAS PARAIBANOS
BRILHAM
NO ESCURINHO DO
CINEMA
Nossos atores e atrizes tam- aguardo. Enquanto isto, conti-
bém não ficam atrás desse mo- nuo no nosso Coletivo de Teatro
mento efervescente da sétima Alfenim, que também sofre das
arte na Paraíba. Em produções mesmas restrições feitas à sétima
locais ou nacionais, cada vez arte. Mas a arte sempre sobrevi-
mais eles são requisitados por verá, custe o que custar para nós
produtores ou diretores para os fazedores dela. Não podemos Suzy Lopes se prepara para três novos filmes:
abrilhantarem as películas pro- sucumbir diante destes tempos Sol de alegria (Tavinho Teixeira), Crua (Diego
duzidas aqui e alhures. É o caso nefastos”, enfatiza. Lima) e A ética das hienas (Rodolpho de Barros)
de Zezita Matos, a dama do Zezita entende que apesar dos
teatro paraibano, que cada vez parcos recursos, a produção de
mais é convidada a participar curtas paraibanos é muito sig- criou e, como falei anteriormente,
de produções cinematográficas. nificativa, haja vista os festivais Rebento, de André Morais, a ser
Ela está participando do longa que, anualmente, vêm acontecen- lançado este ano”, complementa.
de André Morais, Rebento. Está do pelo interior. “Nestes festivais Nanego Lira, por sua vez,
também em outro lançamento, temos visto muitas revelações de acabou de filmar com o diretor
um curta de Rafael Dornelas, jovens diretores, fotógrafos e de- Cláudio Assis, em Recife. “Cláu-
formado em cinema pela USP, mais técnicos. Com isto não que- dio é diretor dos mais polêmicos,
cujo título é Regresso. Em feverei- remos dizer que não exista mui- tem no currículo fitas emblemá-
ro fez uma participação no longa to a aprender e a melhorar, como ticas, como, Amarelo manga, Febre
de J. Procópio, Améns, rodado em também produzir mais. Acredito do rato e outros. Este novo longa
Brasília, que provavelmente terá que a melhor forma de apren- de Cláudio chama-se Piedade.
o lançamento no final deste ano der é fazendo, testando. Quanto Tem no elenco nomes como Fer-
ou início de 2018. aos longas, ainda estamos ainda nanda Montenegro e Cauã Rey-
Como atriz, Zezita Matos vem longe de uma produção de desta- mond, entre outros. A película
fazendo teatro há mais de 50 que como a de Pernambuco, por é ambientada em Recife e fala
anos. Sua primeira participação exemplo. Tivemos no ano passa- da chegada das grandes empre-
em cinema foi no ano de 1965, do o lançamento do longa de An- sas de petróleo que se instala-
no filme de Walter Lima Júnior, dré Costa Pinto, Tudo que Deus ram na cidade, vitimizando os
Menino de engenho. Desde então, tubarões que passaram a atacar
ficou sem fazer cinema até 1999, o surfistas”, antecipa.
quando Marcus Vilar lhe convi- Para Nanego, tem-se produ-
Zezita Matos participa de filmes de André
dou para participar do curta A Morais (Rebento), Rafael Dornelas (Regresso)
zido e realizado bons filmes no
canga, inspirado no romance ho- e J. Procópio (Améns) Brasil. Ele destaca as produções
mônimo de W. J. Solha. A partir pernambucanas, cearense e do
de então foram surgindo convi- Maranhão. “Mas em outros es-
tes para curtas e, mais especifi- tados também se tem produzido
camente, para longas, de filmes filmes significantes e potentes.
que se tornaram referências na Eu desejo fazer muito cinema,
Foto: edson matos

cinematografia nacional, como tenho feito, mas ainda é muito


Cinema aspirinas e urubus, de Mar- pouco. Tem alguns convites que
celo Gomes, O céu de Suely, de não estão confirmados, em dois
Karim Ainouz, Baixio das Bestas, filmes que fiz que têm estreias
de Cláudio Assis, e A história da previstas para este ano: Zama,
eternidade, de Camilo Cavalcante, direção da diretora argentina,
entre outros, somando seis cur- Lucrécia Martel, e Azougue, filme
tas e onze longas. de Tiago Melo, paraibano e per-
Zezita não é de criar expec- nambucano”, conclui.
tativas. “Tenho convites para Suzy Lopes é outra artista que
dois curtas, mas infelizmente a não para. No ano passado, par-
política de fomento vem sofren- ticipou de Moído, de Torquato
do muitas cortes. Estamos no Joel, e da minissérie Fim do mun- c

10 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


Foto: divulgação

c do, para o Canal Brasil, numa


produção da REC Produtores,
do Recife, com direção de Hil-
ton Lacerda e Lírio Ferreira. Ela
contracenou com Hermila Gue-
des, Jesuíta Barbosa, Sofia Freire,
Lula Terra e Sandro Guerra, nes-
sa produção. Também no final do
ano passado, participou de Beiço
de estrada, longa de Eliézer Rolim.
No filme, faz o trio de irmãs com Nanego Lira está no elenco de Piedade,
de Cláudio Assis, junto com Fernanda
Natália Sá e Mayana Neiva. Montenegro e Cauã Reymond
Rodado também ano passado,
o filme Atrito, de Diego Lima,
da Argentina são técnicos, como
terá estreia nacional agora na
o fotógrafo Sebastian Cantillo e o
17ª Mostra do Filme Livre, um
produtor Felipe Yaryura (Produ-
festival do Rio de Janeiro, mas
tora Mama Húngara - Argentina).
que realizam projeção não só
“Como você pode ver, estou empol-
no Rio, mas em São Paulo, Belo
gada. Tem meses que penso sobre
Horizonte e Recife. “Estou mui-
este trabalho”, celebra.
to feliz com essa estreia nacional
Suzy gosta quando recebe desa-
de Atrito. Esse trabalho mexeu
fios, como neste filme de Rodolpho
demais comigo, por ter uma te-
de Barros. Para a atriz, o cinema pa-
mática muito delicada, toca nos
raibano está de parabéns, com mui-
tabus da sociedade. Diego é um
ta coisa rolando, muito filme acon-
diretor que embora seja muito
tecendo. “Ainda é realizado meio
jovem, tem me impressionado e
que na militância, nossos apoios e
me instigado. Seus argumentos
incentivos públicos são poucos, mas
estão sempre envoltos de assun-
o fórum de Audiovisual está se for-
tos instigantes, de se levantar
talecendo cada vez mais. Novos ci-
uma reflexão”, elogia.
neastas surgindo com todo gás, isso
Atualmente, Suzy está se pre-
é muito bom”, comemora. I
parando para mais três produ-
ções: Sol de alegria, de Tavinho
Teixeira, em que vai viver uma Linaldo Guedes é jornalista e poeta.
freira um tanto inusitada, Crua, Nascido em Cajazeiras (PB), é radicado em
de Diego Lima, que já começou João Pessoa desde 1979. Como jornalista,
a ser rodado, e A ética das hienas, atuou nos principais órgãos de comunicação
da Paraíba e foi editor do Correio das
de Rodolpho de Barros, cineasta Artes. Como poeta, lançou, entre outros,
paraibano que estava estudando os livros Os zumbis também escutam blues
cinema na Argentina. e outros poemas, Tara e outros otimismos
“Esse projeto já estamos con- e Receitas de como se tornar um bom
versando tem um bom tempo. escritor. E-mail: linaldo.guedes@gmail.com.
Para este trabalho estou estu-
dando muito, me preparando
fisicamente e psicologicamen-
te, tenho lido coisas do Direi-
to, pois viverei uma advogada.
Estou me dedicando muito para
este filme que será rodado na
primeira quinzena de abril”,
confessa Suzy. O filme foi con-
templado no Edital Walfredo
Rodrigues e terá o apoio da
Embaixada do Brasil na Argen-
tina e da Universidad Del Cine
(Argentina). A equipe dos pro-
fissionais que estão envolvidos
tem paraibanos e argentinos. O
elenco é todo paraibano. Além
de Suzy, terá Marcélia Carta-
xo, Fernando Teixeira, Servílio
de Holanda e Daniel Porpi-
no. Os profissionais que virão

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 11


6 cinema

Sergio Leone
O mestre supremo dos
faroestes muito além
dos faroestes
Thiago Andrade Macedo
Especial para o Correio das Artes

L embra quando éramos adolescentes, ía-


mos ao cinema em grupos de amigos e
saíamos das salas de exibição extasiados,
com a sensação de termos vistos um fil-
me incrível, espetacular? “Filmão!” - era o
que repetíamos. Pois bem, ninguém soube
distinguir tanto o cinema como arte para
as massas como o diretor italiano Sergio
Leone (1929-1989). Começou muito cedo.
Aos dezoito anos, já era assistente do mes-
tre Vittorio de Sica no emblemático Ladrões
de bicicleta, um dos filmes fundamentais da
estética neorrealista italiana.
Sergio Leone (1929-1989), o Leone foi o engendrador definitivo do
lendário diretor italiano de Por um que poderíamos chamar de “filmões” do
punhado de dólares, Três homens século XX - em cenas antológicas e poé-
em conflito e Era uma vez no Oeste
ticas, podemos perceber: close ups qua- c

12 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


Foto e ilustrações: reprodução internet

c se irreais de tão próximos aos Estamos no terreno dos western riam, portanto, nas entrelinhas.
olhos dos personagens; o uso spaghetti. A atmosfera e os ele- Sua trilogia sobre o “homem sem
hábil da montagem como efeito mentos, estilizados ao extremo, nome”, o misterioso pistoleiro
dramático; a perfeita harmonia são outros. Leone, criador desse que alçou Clint Eastwood à con-
entre música e imagens (com novo segmento do western, sabia, dição de astro, começa com Por
a onipresente colaboração do como poucos, ler o que o público um punhado de dólares (remake es-
maestro Ennio Morricone, outro queria, eis talvez a sua maior vir- tilizado de Yojimbo, o guarda-cos-
gênio que sabia atingir em cheio tude: entender que cinema lida tas, de Kurosawa) e termina com
o coração do grande público). E basicamente com temas ligados Três homens em conflito (1966), ou
sangue, muito sangue. Em suas à cultura popular – lutas, duelos, O bom, o mau e o feio, para os mais
mãos, o faroeste foi reinventado, vingança, o senso de maniqueís- puristas que rejeitam algumas
quando já parecia estar agoni- mo (bem x mal). Assim como ou- adaptações ridículas de títulos
zando. Seu estilo, único. Camp. tro gênio, Hitchcock (este talvez feitas no Brasil.
Kitsch. Exagerado. Surreal. o maior de todos), Sergio soube O filme sobre um trio de ar-
Esqueça John Ford ou Ho- usar a escala popular para inse- ruaceiros tem um quê de ritmo
ward Hawks, norte-americanos rir/ocultar em seus enredos te- de desenho animado. Passado
e mestres do faroeste tradicional. mas mais sofisticados, que esta- na época da Guerra Civil Ame- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 13


Bronson (dono de uma canas-
trice incrível em outros filmes
de outros diretores) de fato nos
impressiona, assumindo o papel
do “homem sem nome”, ou Har-
mônica para os mais íntimos (ele
passa boa parte de suas cenas
tocando uma gaita, persistindo
em seu lamento, em busca de sua
vingança/redenção). Se em Três
homens em conflito o ponto alto do
filme é a cena final, aqui, em Era
uma vez no Oeste, a abertura é que
é fenomenal: Woody Strode, Al
Mulock e Jack Elam esperam por
um trem que parece que nun-
ca vai chegar, mas chega. E traz
Charles Bronson para o tiroteio
que dá início ao filme. Cinema à
perfeição: em um suspense que
se prolonga no tempo (uma das
grandes marcas de Leone), os
atores contracenam até mesmo
com uma mosca e uma goteira.
Clint Eastwood, Eli Wallach e Leone ainda nos brindou com
c ricana, o exagero, muitas vezes, Lee Van Clee: os três homens Era uma vez na América, longo
parece ser sua assinatura ou sua em conflito de Sergio Leone
filme de gangsters irregular, mas
marca maior: ruas parecem ter com grandes cenas também, com
quilômetros de largura; peque- atuações marcantes de Robert
nas construções vistas de fora De Niro e James Woods. Morreu
parecem centros de convenções cedo, em 1989, aos sessenta anos
por dentro; os bandidos são de idade. Foi um dos grandes di-
enormes e maus ao extremo; os retores de sua geração e da his-
ferimentos exibidos nos tiroteios tória. Aliás, seu senso de cinema
são absurdamente espalhafato- é realmente algo descomunal.
sos. Cinema para as massas, xe- Influenciou muita gente, dos ir-
que mate! A cena final então... mãos Scott (Ridley e Tony), pas-
Será que preciso me referir a ela?! pictórico de Leone revela-se em sando pelo próprio Clint, indo
Antológica, uma das maiores da magníficas cenas panorâmicas desaguar em John Woo, Besson,
sétima arte: o bom, o mau e o feio nesta que é provavelmente sua Tarantino, Rodriguez & Cia, di-
(Clint, Lee Van Cleef e Eli Wal- obra-prima definitiva. A música retores que com ele (e outro mes-
lach) se encontram para um due- inesquecível e marcante de Mor- tre – Sam Peckinpah, “o poeta da
lo final em um cemitério – uma ricone continua mesclando gui- violência”) aprenderam a lição
das mais imitadas e parodiadas tarras elétricas à orquestração de usar a violência para fins es-
na história do cinema. A coreo- tradicional. Grande arte para as téticos. Leone foi e ainda é pop,
grafia de olhares segue o ritmo massas! Épico supremo! moderno, muito antes que seus
da música fabulosa de Morrico- Henry Fonda nos mete medo pares o fossem. Cinema em esta-
ne. Talvez a maior cena já escrita de um modo bem visceral, com do bruto. Inigualável. I
sobre a cobiça humana. seu bandidão assassino Frank,
Corta para Era uma vez no contrariando o seu estereótipo
Oeste (1968). A coreografia con- de bom mocismo marcado por
tinua, a própria coreografia da interpretações em outras pe-
morte. Aliás, a “dança da morte”, lículas. A estonteante Claudia
como alguns críticos da época Cardinale e o talentoso Jason
chegaram a mencionar em suas Robards (cujo rosto nos lembra,
Thiago Andrade Macedo é escritor,
resenhas. Ainda mais surreal e em alguns momentos, o grande crítico de música e cinema. Entre
insano, o far west transforma-se ícone cultural brasileiro W. J. So- suas obras destaca-se o romance O
silêncio das sombras (A União, 2014).
em ópera. Os movimentos das lha) estão corretamente inseridos Natural de Viçosa (MG), reside em
câmeras são puro balé. O talento na trama, ao passo que Charles João Pessoa (PB).

14 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 livros

História vistos num esquema curricular


que se quer nacional) não há
espaço nem tempo para se dar

de um a devida importância aos pro-


dutos artísticos e culturais de

deicídio:
nossos países vizinhos. Nem
fazemos o menor esforço para
criarmos esse espaço. Portan-
to, marginalizamo-los mais do
que já o são. Infelizmente. Isso
se constitui, portanto, uma
crônica de um estilo anunciado – parte I dívida que temos com nossos
vizinhos geográficos e nossos
irmãos de história.
E assim chegamos em 2017
(somando mais de quinhentos
Analice Pereira
Especial para o Correio das Artes anos de história vivida com es-
ses irmãos, que quase não vi-
sitamos), um ano emblemático
para a América-latina por duas

N
ós brasileiros, de um modo geral, e por razões di- razões: celebra-se, neste ano,
versas, inclusive por nossa formação cultural/esco- meio século de Cem anos de so-
lar/acadêmica, negligenciamos, até sem nos darmos lidão, romance do colombiano
conta, a literatura dos países americanos colonizados Gabriel García Márquez; e no-
por nações latinas, ou seja, a literatura latino-ameri- venta anos de nascimento do
cana. A nossa formação escolar é, praticamente toda autor, que infelizmente já não
ela, voltada para a produção artística e cultural da está entre nós. As datas não po-
Europa. Nas últimas décadas, isso tem mudado um dem, portanto, passar em bran-
pouco no ambiente escolar. Devido aos avanços das co e, certamente, não passarão.
tecnologias e, por isso, ao encurtamento das distân- Creio que testemunharemos,
cias, nosso olhar também se volta para literaturas de via tevê, internet e afins, as vá-
outras nações. Já podemos até festejar um pouco o rias celebrações que se farão
fato de já se ler literaturas africanas de língua por- a esse autor e seu romance ao
tuguesa na escola. Mas ainda é muito pouco e isso é longo do ano e nos mais diver-
papo para um outro momento. O que interessa ago- sos lugares desse planeta. Não
ra é registrar o fato de a literatura latino-americana poderíamos, portanto, ficar de
ser pouco, ou quase nada, lida, divulgada, discuti- fora desse momento de reco-
da, nas nossas salas de aula brasileiras, entre nossas nhecimento e de reflexão que,
crianças e jovens. Arrisco até dizer que pouco estu- embora esteja focado numa
dada nos cursos de letras espalhados pelo país. E obra e seu autor, não deixa de
por quê? Cada um poderá ter sua resposta. Mas em promover outros debates sobre
linhas gerais, podemos entender que (e aqui estou a produção literária do nosso
tratando quase que exclusivamente dos conteúdos continente. Não deixa de ser,
curriculares priorizados em nossas escolas e já pre- também, um momento impor-
tante para minimizar nosso
fotos e ilustrações: reprodução internet
débito perante essa produção,
sobretudo no que se refere ao
ensino de literatura.
Dizer que Cem anos de solidão
é um dos maiores romances la-
tino-americanos é inquestioná-
vel, até porque ele se encontra
Gabriel García na lista dos melhores da litera-
Márquez, autor tura universal. É um cânone.
de Cem Anos de
solidão, lançado há Não somente porque uma fatia
50 anos importante da crítica literária c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 15


c especializada assim o classifi- envolvimento, de certa maneira gerações de uma família, os
cou. Mas, também, porque se incomum no meio acadêmico, Buendía. A construção de um
trata de um romance traduzido com a obra de um escritor, e de espaço narrativo – a pequena
para várias línguas e, portanto, um rigor surpreendente, esgota Macondo – também está aliada
bastante lido em todo o mundo; sua análise-interpretação, com a esse tempo, já que o que ca-
um livro que, mesmo apresen- profundidade, detalhamen- racteriza o romance como “no-
tando uma estrutura narrativa to e clareza, ao mesmo tempo. vela total”, nos termos de Llosa,
complexa, alcançou grande po- Trata-se da tese de doutora- é, justamente, tratar-se de uma
pularidade porque sua lingua- mento do escritor peruano Ma- narrativa, cujo tempo-espaço
gem (sua escritura), seus temas, rio Vargas Llosa, apresentada à corresponde à sua totalidade,
bem como o seu caráter fanta- Universidade Complutense de ou seja, desde o surgimento de
sioso, mágico, anedótico, a sua Madrid, em 1971, sob o título Macondo até o desaparecimen-
fabulação, digamos assim, é de García Márquez: lengua y estruc- to no mapa imaginário em que
alcance de todos, inclusive dos tura de su obra narrativa. Ao ser o leitor é inserido. É sobre esta,
leitores mais desavisados. Di- publicada, a tese recebe o se- dentre outras questões, que a
zem até que é mais vendido e guinte título: García Márquez: análise de Llosa discorre.
mais lido que o popularíssimo historia de um deicídio. O título do ensaio – García
Dom Quixote, de Cervantes. Só As razões que colocam Cem Márquez: historia de um deicídio
para ficarmos entre os cânones anos de solidão entre as obras – que consta de 700 páginas
de língua espanhola. literárias mais importantes em média1, já de cara seduz o
Aqueles que leram Cem anos da América Latina são várias. leitor ao mesmo tempo que o
de solidão é que sabem do ar- Apontá-las é um dos objetivos provoca. Afinal quem é esse
rebatamento e da perturbação de Llosa em seu ensaio. Con- Deus que o escritor assassina,
que o romance causa; do talento vido-o aqui para comemorar ou tem ganas de assassinar,
de um escritor que se destaca, o aniversário de meio século em seu projeto literário? Uma
não somente porque escreveu desse romance que tem o tem- leitura possível do ensaio per-
um livro importante, mas, tam- po como um de seus temas, mite compreender que Deus
bém, porque doou sua vida a mas também como elemento é uma metáfora da realidade,
um projeto literário que envol- narrativo. Por mais fantástico entendendo-se por realidade o
ve temas e formas complexos e que seja o seu aspecto fabular, que está na vida, contra a qual
técnicas narrativas minuciosa- na tentativa de se distanciar da o escritor se rebela, motivado
mente elaboradas. E para falar realidade ao mesmo tempo em por uma profunda insatisfa-
um pouco dessas questões, e a que dela se alimenta, perfazen- ção. É possível entender, por-
propósito do aniversário de cin- do-se num “realismo mágico”, o tanto, que Deus é “realidade”,
quenta anos de Cem anos de soli- tempo narrativo desse roman- é “vida”, no sentido de ser algo
dão, trago um ensaio crítico em ce é o que está inscrito no seu que está posto, ou seja, é o que
que o ensaísta, a partir de um título: a história envolve sete se apresenta. O escritor-deicida
“suplanta” esse Deus porque
ficcionaliza essa realidade.
Dividindo em duas partes – La
realidad real; La realidad ficticia –
que se subdividem em tópicos, o
ensaísta verte sua discussão para
aspectos que compõem a repre-
sentação literária da realidade
humana em seu âmbito tanto in-
dividual quanto social. A impor-
tância do ensaio de Vargas Llosa
como referência para os leitores
que pretendem conhecer e com-
preender, por exemplo, como se
deu o processo de produção de
um dos maiores romances da li-
teratura latino-americana ruma,
portanto, no sentido de discutir
de que forma essas realidades c

1
Esgotado nas livrarias brasileiras e, talvez, até
mesmo nos sebos, é possível lê-lo em versão digi-
talizada. Para essa resenha, foi lido em versão PDF,
constando de 757 páginas, sem demais dados de pu-
blicação, como editora, local e data.
No entanto, é possível encontrar o livro disponível em
versão on-line (707 páginas) no site:
https://pt.scribd.com/document/318204842/Historia-
-de-un-deicidio-Mario-Vargas-Llosa-pdf

16 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c (real e fictícia) são estruturadas ceitos recorrentes e pontuais em passou, por exemplo, também
na obra de García Márquez, des- sua análise, como por exemplo: serviram como matéria-prima
de os seus primeiros escritos, “deicida”, “vocação de escritor”, para seu processo criativo, mes-
até tomar a forma consistente e “demônios de escritor”, “ambi- mo que Márquez não concorde
madura em Cem anos de solidão, o ção totalizadora”, “suplantador com isso, afinal ele defendia a
que colocou esse romance entre de Deus”, “elemento añadido”, profissionalização do escritor, no
os melhores da América-latina “estrutura circular”, “vontade de que se refere à possibilidade de
do século XX, quiçá, do planeta e totalidade”, “versão agigantada”, se dedicar, integral e exclusiva-
de todos os tempos. E, para ana- “sistema (estratégia) dos vasos mente, à tarefa de escrever. Veja-
lisar essas “realidades”, Llosa se comunicantes: a fusão entre o mos em suas próprias palavras:
vale de vários materiais: desde plano do narrador e o plano do Yo no estoy de acuerdo con lo que se
depoimentos do próprio Gabo, narrado”, “irrealização” ou “pro- decía antes: que el escritor tenía que
passando por depoimentos de cedimento irrealizante”, “muda pasar trabajos y estar en la miseria
amigos, críticos, escritores etc., (transição, transposição de uma para ser mejor escritor. Yo creo de
enfim de leitores de García Már- natureza a outra: muda el tiempo)” veras que el escritor escribe mucho
quez, servindo-se, portanto, de , “desobjetivação da realidade mejor si tiene sus problemas domés-
uma espécie de mosaico sobre a fictícia” etc . ticos y económicos perfectamente re-
recepção da obra do escritor co- Llosa assinala as atividades sueltos, y que mientras mejor salud
lombiano, basicamente contem- profissionais da vida do escritor tenga y mejor esté su mujer, dentro
porânea à sua publicação, tendo colombiano (jornalista, publici- de los niveles modestos en que nos
em vista que o romance é de 1967 tário e cineasta), desenvolvidas podemos mover los escritores, siem-
e Llosa apresentou sua tese em paralelamente a sua produção pre escribirá mejor. (p. 234/235)
1971. Ou seja, àquela altura, a lei- literária em início de carreira, Mas em se tratando de cer-
tura de Llosa era contemporânea como relativos contributos para tos problemas, vivenciados por
à publicação do romance. o processo criativo do escritor no Márquez, como por exemplo, o
Pelos depoimentos apresen- campo específico da literatura. O fato de ter um livro – La mala hora
tados por Llosa, podemos ter raciocínio do ensaísta, no desen- – adulterado por uma editora
acesso às críticas negativas a volver de sua discussão, leva-nos madrilena, o fracasso dos livros
Márquez, o não reconhecimento a entender que, de alguma forma, anteriores a Cem anos de solidão,
da qualidade de sua literatura, o que está experienciado na vida além dos quatro anos de silêncio
ratificando, portanto, a dificul- pelo escritor servirá para sua in- literário ocasionado pelo traba-
dade de se ser contemporâneo ventividade, seja para confirmar, lho com cinema e como redator
de si mesmo, quando o tema é seja para negar, seja para añadir; publicitário serviram, no racio-
criação artística. À crítica literá- nas palavras do ensaísta: para se cínio de Llosa, como um período
ria cabe, em se tratando de estu- tornar um deicida. As dificulda- de autocrítica para o escritor. O
dos contemporâneos, uma tarefa des pelas quais García Márquez resultado disso, conforme assi- c
um tanto difícil, pois é permeada
por certas limitações e uma delas
é a proximidade (no tempo) en-
tre leitor e obra. Porém, Vargas
Llosa ultrapassa esses limites e
se mostra, pelo ensaio que de-
senvolve, um analista bastante
atento, e cujo olhar se desprende,
em certa medida, de conceitos
teóricos já estabelecidos e que,
muitas vezes, tendem a engessar
a análise-interpretação e, até, a
“forçar a barra” nessa necessi-
dade, meramente acadêmica, de
comprovar ideias. Pelo contrá-
rio, Llosa mergulha no romance
para emergir com elementos de
análise, tanto temáticos como
formais; entra em cumplicidade
com o texto para poder esmiuçá-
-lo interpretativamente. E, para
isso, ou a partir do que o próprio
romance oferece, e sistematizan-
do seu raciocínio, Llosa também
não deixa de teorizar sobre a
forma romanesca e, mais ampla-
mente, sobre o texto narrativo de
um modo geral, ao discutir con-

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 17


c nala o ensaísta, foi uma mudan- ao analisar a sua obra, mas, fala Llosa, e que irá fazer do es-
ça radical no estilo, fazendo-nos ao analisá-la, valermo-nos de critor um deicida, ou seja, um
entender que o amadurecimen- aspectos biográficos impor- assassino simbólico da realida-
to de um escritor se dá de for- tantes que, obviamente, não de, um suplantador de Deus, é
ma processual. Noutros termos, determinam, mas, de alguma impulsionado pelos demônios
aquilo que torna Cem anos de maneira, contribuem para um com os quais o escritor convi-
solidão uma obra maior já vinha resultado, que pode ser medío- ve e que são, ao fim e ao cabo,
sendo investido nos contos e nos cre ou genial. No caso de Gar- o seu combustível para o fazer
romances anteriores. Nessa mu- cía Márquez é até redundante literário. O demônio da solidão
dança de estilo, Llosa aponta um assinalar que se trata de um foi, portanto, aquele que, den-
projeto literário de “edificación de resultado genial. Vejamos, nas tre os que povoam o processo
la realidad ficticia”. palavras de Llosa: criativo de Márquez, nunca o
A primeira parte do ensaio abandonou, segundo ele mes-
– La realidade real – é subdivida ESCRIBIR novelas es un mo. Foi tema primordial, até
em duas partes: La realidad como acto de rebelión contra la reali- tomar forma consistente na sua
anécdota e El novelista y sus demo- dad, contra Dios, contra la crea- obra maior, que conduz o tema
nios. Em La realidad como anéc- ción de Dios que es la realidad. a resultados literários extraor-
dota, Llosa convida o leitor para Es una tentativa de corrección, dinários e já o traz (o tema) no
uma excursão sobre o que foi a cambio o abolición de la realidad próprio título: Cem anos de soli-
vida de Márquez, desde sua in- real, de su sustitución por la dão. Os demais demônios, Llo-
fância, para explicar o quanto realidade ficticia que el novelista sa define como sendo os três
há da vida vivida, tanto de epi- crea. Éste es un disidente: crea tipos de experiência de que a
sódios reais quanto de pessoas vida ilusoria, crea mundos ver- literatura de García Márquez
reais, no interior das suas obras bales porque no acepta la vida y se alimenta, em doses distin-
de ficção. Como um dos princi- el mundo tal como son (o como tas, mas com equilíbrio: fatos
pais exemplos, cita Dom Nicolás, cree que son). La raíz de su vo- vividos pelo escritor (pes-
o avô materno de Gabriel García cación es un sentimiento de in- soais); experiências coletivas
Márquez, que aparece represen- satisfacción contra la vida; cada de seu mundo (históricos); e
tado ficcionalmente em vários de novela es un deicidio secreto, un fontes literárias, além da mú-
seus textos. O Coronel Aureliano asesinato simbólico de la reali- sica, artes plásticas, filosofia,
Buendía, em Cem anos de solidão, dad. (p. 88) religião, ciências (culturais). A
é personagem construído a par- casa de Aracataca, da infância
tir de elementos vários trazidos Esse “sentimiento de insatis- de Gabo, por exemplo, é mote
pelo avô do escritor, como por facción contra la vida”, de que para Cem anos de solidão. A casa
exemplo: a culpa de um homicí- de Aracataca é, portanto, um
dio; a sua descendência bastarda. dos seus demônios. Nas pala-
O caráter anedótico é desenvol- vras de Llosa: “enfrentarse con
vido, assim, em sua ficção, como su infancia hizo de él, definitiva-
um dos elementos principais. E mente, un escritor.” (p. 32).
assim como seu avô Nicolás, vá- O Coronel Aureliano Dentre esses demônios de
rios outros elementos (pessoas, Márquez, pontuados por Llo-
fatos históricos, situações pes- Buendía, em Cem sa, vale destacar aqueles que o
soais etc.), denominados por Llo- ensaísta considera como sendo
sa como “demônios de escritor” anos de solidão, culturais, ou seja, os escritores
aparecem em sua literatura como e os livros que García Már-
representações anedóticas. quez leu desde a sua infância
É no segundo tópico da
é personagem e adolescência e até os tempos
primeira parte – El novelista y de suas atividades de escritor.
sus demonios – que Llosa mos- construído a partir Dentre esses escritores, encon-
tra, pelos elementos formais tram-se: Kafka, Faulkner, He-
das obras de García Márquez de elementos vários mingway, Sófocles, Virgínia
até Cem anos de solidão, alguns Woolf, Rebelais, Borges, Defoe,
“demônios do escritor”, consi- trazidos pelo avô do Camus, além de obras impor-
derados como pessoais, histó- tantes para sua formação como
ricos e culturais. Llosa chama escritor, como por As mil e uma noites e as novelas
de “demônios” as motivações de Cavalaria. Como se pode
que perseguem o escritor em exemplo: a culpa observar, trata-se de um uni-
prol de um projeto literário, verso literário que já compõe
contribuindo, assim, para sua de um homicídio; a uma tradição. Tanto no que
vocação e fazendo dele um se refere aos temas quanto no
deicida. E o que Llosa chama sua descendência que se refere às estruturas. E,
de deicídio nos proporcionará nesse sentido, ou exatamen-
uma compreensão bem mais bastarda. te por isso, Llosa conclui essa
ampla de um escritor, não só primeira parte do seu ensaio c

18 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c discutindo uma questão muito años. Nos fuimos a vivir a otra
interessante: García Márquez parte, y cuando yo tenía quince
é “un creador bárbaro”. Como años encontré a mi madre que
assim? Llosa contrapõe país iba a Aracataca a vender la casa
civilizado a país bárbaro, ten- esa de que hemos hablado, que
do como questão principal a estaba llena de muertos. Enton-
da tradição cultural. Vale-se, ces yo, en una forma muy natu-
assim, de uma fala de García ral, le dije: «Yo te acompaño». Y
Márquez para empreender em llegamos a Aracataca y me en-
sua discussão a questão do contre con que todo estaba exac-
“criador bárbaro”. Vejamos o tamente igual pero un poco tras-
que diz Márquez: “No tenien- puesto, poéticamente. Es decir,
do en Colombia una tradición que que yo veía a través de las ven-
continuar, tenían que empezar por tanas de las casas una cosa que
el principio y no se empieza una todos hemos comprobado: cómo
tradición literaria en 24 horas”. aquellas calles que nos imagi-
(p. 230). No caso de Márquez, nábamos anchas, se volvían pe-
portanto, para ser um “suplan- queñitas, no eran tan altas como
tador de Deus”, ele tem de se nos imaginábamos; las casas
inventar, já que não há uma eran exactamente iguales, pero
tradição literária, nas palavras estaban carcomidas por el tiem-
de Llosa, “como un punto de par- po y la pobreza, y a través de las
tida, para ir más adelante, vitali- Mario Vargas Llosa, autor ventanas veíamos que eran los
zando o renovando las estructuras do ensaio García Márquez: mismos muebles, pero quince
historia de um deicídio
ideológicas, míticas y lingüísticas años más viejos en realidad. Y
de su mundo, o que, al contrario, era un pueblo polvoriento y ca-
podrá ser para él un lastre, un luroso; era un mediodía terrible,
freno que lo reducirá al papel del se respiraba polvo. Es um pueblo
repetidor o del epígono si no tiene donde fueron a hacer un tanque
el genio necesario (la energía, la para el acueducto y tenían que
paciencia, la terquedad) para rom- trabajar de noche porque de día
per la coacción cultural del propio no podían agarrar las herra-
médio”. (p. 231). Márquez é, mientas por el calor que había.
portanto, um “criador bárba- Entonces, mi madre y yo, atra-
ro” e se vale da vantagem de vesamos el pueblo como quien
o ser: a vantagem da origina- atraviesa um pueblo fantasma:
lidade. García Márquez é um as palavras de Márquez sobre no había un alma en la calle; y
“criador bárbaro” (como foi o quanto as suas experiências estaba absolutamente convenci-
Borges, por exemplo) porque, pessoais determinaram a sua do que mi madre estaba sufrien-
no mundo “marginalizado” e vocação de escritor, no sentido do lo mismo que sufría yo de
sem tradição, como é o mun- de se apropriar de uma reali- ver cómo había pasado el tiem-
do latino-americano, o menos dade com a tarefa de ficciona- po por ese pueblo. Y llegamos a
pode significar mais. É pos- lizá-la; de assassiná-la simboli- una pequeña botica, que había
sível verificar, portanto, que camente. No caso de Cem anos em una esquina, en la que había
Llosa vincula sua concepção de de solidão, a realidade em que una señora cosiendo; mi madre
tradição, especificamente nessa se constitui a casa de Aracata- entró y se acercó a esta señora y
discussão, a uma concepção de ca, da infância de Gabo, trans- le dijo: « ¿Cómo está, comadre?
nacionalidade. E tudo isso no forma-se em realidade fictícia, » Ella levantó la vista y se abra-
sentido de reivindicar para Már- figurativizada pela casa dos zaron y lloraron durante media
quez a primazia do gênio. Buendía, que constitui o espa- hora. No se dijeron una sola pa-
Na segunda parte do livro ço narrativo central, portanto, labra sino que lloraron durante
– La realidad fictícia – Llosa força motriz, a partir da qual media hora. En ese momento
analisa obras de Gabriel Gar- os demais elementos se desen- me surgió la idea de contar por
cía Márquez, anteriores e pos- volvem na arquitetura narrati- escrito todo el pasado de aquel
teriores a Cem anos de solidão, va do romance. episodio. (p. 94/95) I
mas direcionando seu raciocí-
nio à análise desse romance, Bueno, ocurrió un episodio
com o objetivo de investigar del que, solamente en este mo-
a escritura de obras isoladas, mento, me doy cuenta que proba- Analice Pereira é crítica de
mas que constituem parte de blemente es un episodio decisivo literatura, ensaísta, contista e
professora de Língua Portuguesa e
um projeto literário. Resenha- en mi vida de escritor. Nosotros, Literatura Brasileira do Instituto
rei essa segunda parte para a es decir mi família y todos, sa- Federal de Educação, Ciência e
próxima edição do Correio das limos de Aracataca, donde yo Tecnologia da Paraíba (IFPB). Mora
Artes. Por ora, fiquemos com vivía, cuando tenía ocho o diez em Belo Horizonte (MG).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 19


Foto: Ortilo Antônio

6 livros

Autores e
em livros
contraponto
José Mário da Silva
Especial para o Correio das Artes

C
ompetente professora universitária, já tendo dado a sua
qualificada contribuição aos cursos de letras da Universi-
dade Federal da Paraíba, tanto em Campina Grande quan-
to em João Pessoa, e intelectual portadora de indiscutível
valor, a professora Neide Medeiros Santos brinda-nos com
a publicação da sua mais recente obra: Autores e livros em
contraponto, reunião de cinquenta e cinco artigos, na ver-
dade curtos e instrutivos ensaios, selecionados dentre os
mais de trezentos que, ao longo de vários anos, ela vem
publicando na imprensa pessoense, mais precisamente
no jornal Contraponto, idealizado e dirigido pelo jornalista
João Manoel de Carvalho, no qual ela pontifica como uma
das mais qualificadas colaboradoras. A professora Neide Medeiros
O título do livro da professora Neide Medeiros abriga Santos reuniu artigos em Autores
uma sutil e sugestiva ambiguidade. No plano da denota- e livros em contraponto
ção, sinaliza para o território no qual os autores e livros
apreciados por ela aparecem com recorrente regularidade,
o jornal Contraponto a que aludimos anteriormente. Já no
plano da conotação, remete para o fecundo e criativo diálo- interação com as múltiplas vozes
go que ela trava com uma impressionante gama de escrito- que pontificam na ontologia ínti-
res com os quais ela convive diuturnamente, movida pelo ma das múltiplas obras literárias
encantamento que as estórias provocam em sua inteligên- examinadas por ela.
cia e sensibilidade; e pela crescente paixão que ela nutre Voltada para o universo da
por uma fantástica experiência humana chamada leitura. literatura infanto-juvenil brasi-
Leitura que propicia ao ser humano o privilégio de alargar leira, da qual Neide Medeiros é
as fronteiras da sua existência e, ato contínuo, viver todas uma reconhecida especialista, o
as vidas possíveis, que nascem tanto da observação mais livro da autora paraibana é por-
atenta do cotidiano quanto das libertárias viagens promo- tador de numerosas virtudes,
vidas pela imaginação humana. sendo o primeiro deles, o que
Nesse sentido, o contraponto sinalizado pela professora mais me chamou a atenção, a va-
Neide Medeiros lembra-nos um dos procedimentos adota- riedade de autores e obras per-
dos por um músico na execução de uma determinada par- corridos pela ilustre professora,
titura; uma maneira bem peculiar de se solfejar uma músi- o que reforça a sua condição de
ca de modo criativo, com a intenção de captar modalidades pesquisadora atenta ao que se
diferentes de manifestação da beleza harmônica, melódica produz nessa seara.
e rítmica de uma canção. O contraponto, dialógico por na- Lendo o livro de Neide Medei-
tureza, delineia outra voz a deslizar no enredo do texto que ros, temos uma alargada visão de
se tem para cantar. O contraponto é, no (des)limite, o gesto como é pujante a literatura infan-
subjetivo e autônomo da leitura, arte-ciência da recriação de to-juvenil em nosso país; e como
sentidos que o leitor proficiente opera no corpo do texto e no ela é rica de obras de qualidade, e
dorso escorregadio da linguagem que o organiza e lhe dá de autores extremamente cuida-
suporte. Contraponto é a voz da leitora Neide Medeiros em dosos na difícil tarefa de escrever c

20 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


Foto: reprodução internet

c literatura para crianças e jovens, e, de igual modo, portador de


sem pieguismos ou doutrinações alto poder comunicacional.
autoritárias, mas com leveza, in- Neide Medeiros escreve como
ventividade, investimento esté- quem fala; uma fala culta, é ób-
tico e substancialidade humana, vio, mas sem o detestável ranço
o que, conforme exaustivamente dos teoricismos mal pensados,
mostrado pela professora Neide mal entendidos e mal formula-
Medeiros, faz com que o texto dos, procedimentos que findam
seja válido para qualquer pessoa, entediando o leitor e o afastan-
independentemente da faixa etá- do do texto. Ao terminarmos
ria por ela ostentada. a leitura de cada um dos textos
Assim, em Até passarinho passa produzidos pela professora Nei-
o mestre Bartolomeu Campos de de Medeiros, nós ficamos com o
Queirós, com singular lirismo, irrefreável desejo de ler todos os
toca numa das mais antigas e livros sobre os quais ela se pro-
atuais temáticas da condição hu- nuncia com tanta clareza.
mana, que é exatamente a irrepri- Nesse particular, ela cumpre
mível passagem do tempo, que, se um dos papéis da crítica literá-
por um lado, confere ao homem ria em sua indeclinável função
Caio Riter, autor do
os signos da madureza, por outro, de promover o encontro entre livro Vicente em
nele crava as impiedosas garras o texto e o leitor. Neide Medei- Palavras
da melancolia, afiadas com o ine- ros, no exercício de sua simpli-
xorável sentimento de perda que cidade apreciativa e comunica-
tal passagem acarreta. cional, reconta-nos as estórias
Recordo-me, aqui, do pungen- lidas, entremeando-as com as mente ao texto da professora Nei-
te poema “Versos à boca da noi- contribuições advindas da teo- de Medeiros, sempre matizado
te”, de autoria de Carlos Drum- ria literária, consorciadas à sua pelo signo da simplicidade. Por
mond de Andrade. É claro que sensibilidade particular na re- fim, Autores e livros em contrapon-
esse desconfortante temário, à luz cepção do texto estético. to mostra-nos, à exaustão, uma
das percucientes observações de Aqui, as achegas teóricas, sem- autora para quem a literatura,
Neide Medeiros, é abordado com pre importantes, nunca ocupam sobre ser uma arte fascinante, é,
delicadeza e aliciante lirismo, o primeiro plano das abordagens sobretudo, um território mágico e
com a dosagem artística certa, so- empreendidas, antes, de modo simbólico, em cujo estuário ponti-
mente passível de ser encontrada discreto e parcimonioso, atuam ficam as mais significativas expe-
nas hábeis mãos de um mestre da como ferramentas, instrumentos riências humanas.
escrita literária do porte de Barto- pedagógicos que ajudam o intér- O mestre goiano Wendel San-
lomeu Campos de Queirós. prete na fascinante aventura da tos, de quem Neide Medeiros teve
Em Vicente em palavras, Caio recriação dos textos analisados. o privilégio de ser aluna, em sua
Riter, polifonicamente, enfrenta Afrânio Coutinho dizia que a notável obra: Crítica – Uma ciência
o dramático tema da morte de ausência de teoria literária torna da literatura, afirmou que a litera-
um jovem, bem como os desdo- os estudos de literatura sinônimo tura é, dentre todas as artes exis-
bramentos que ela promove no da filosofia do achismo. Já Eduar- tentes, a que revela o ser humano
interior de uma família. O có- do Portella afirmou que, ignorada de maneira mais profunda, por-
digo onomástico apreciado por a teoria literária, o que resta é o que o faz nas suas mais variadas
Neide Medeiros é vasto, citá-lo império do palpite emocionado, modalidades manifestativas.
é exercício ocioso. O importan- mas ingênuo, tão eufórico quan- A lição do eminente criador
te é a constatação de que no to completamente desassistido de de Os três reais da ficção reverbe-
oceano caudaloso da produção qualquer vestígio de fundamen- ra nos instrutivos textos da pro-
literária para crianças e jovens, tação epistemológica. fessora Neide Medeiros. Lendo
a nossa ensaísta não é parcimo- O ponto é fazer com que a teo- as suas apreciações, entramos
niosa em seus mergulhos inter- ria não finde virando uma camisa em contato com o universo do
pretativos; antes, revela a ambi- de força a ser autoritariamente medo, da solidão, do amor, da
ção de estar por dentro de cada imposta ao texto. Ao se reportar esperança, das utopias, da fé, da
onda e borbulho que se produz à escritora Ângela Lago, Neide dura luta pela sobrevivência, da
nessas águas saturadas de in- Medeiros afirma que “A simplici- linguagem; enfim, de tudo o que
comum beleza estética e como- dade nos livros que escreve está compõe o universo existencial
vente verdade humana. presente de formas diversas: não do que é humano, demasiada-
Outra virtude que norteia o apresenta artificialismos linguís- mente humano.I
delicioso livro de Neide Medei- ticos; sabe escolher as palavras
ros é o estilo linguístico em que certas para externar o conteúdo
ele está redigido em todos os tex- literário; diz o máximo com o mí- José Mário da Silva é professor da
Universidade Federal de Campina
tos que o compõem. Estilo despo- nimo de palavras; escreve com le- Grande (UFCG) e membro da
jado, bandeirianamente desejoso veza e poeticidade”. Academia Paraibana de Letras (APL).
de sentir as coisas mais simples; Tal juízo de valor cabe perfeita- Mora em Campina Grande (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 21


P O E S

Amador Ri
Poemas paraibanos
(do livro Poemail, inédito)

birô cajazeirense
1

na mesa de leituras o
silênciodacovadosmortos

saturação e vazio
em diligências

waste land do
trato caatinga

imobilidade metalsol
cacto-olho
1
ad noites certeiras
verso cem ondas carregadas
cem sóis gaiato planeja
adensados cuspir
2 na poesia
adentram do poeta
sertão dentam
antiviço séculos porradas
no balcão
hospício mar da bodega
tírio 2
bem feito
pro cabra não se mete
pício cabaça
cabaceiras a abestado
com poeta apestanado
jaca
o que seria de lampião cajá quando
sem o ponto cruz cajazeiras é noite

o céu o sol o sertão de quinta


cem centos pontos facas 3 na sexta

balas & cactos e o céu ou sexta


lâminas & lixas do sertão pra sábado
se estira
ajuizamentos no alto
de ideias sérias &pilhérias limpo ser(t)ão
vasto
lampião avaqueirado pedras de fogo
em conceição paraíba
amplo
bornal em zelosa karmaçãoarmada lindo fica
: ponto cruz lampionado ligado

22 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


E S I A

Ri beiro Neto pedra do ingá

na
pe

dra
do

in

vi

o
mar

co
de

um
ri

o
gra

fi
te

que
o

no forró tem
po
em campina grande
carpi & apois pi
chou
bebo danço voo
tudo tão feliz

que nem
Amador Ribeiro Neto é
ouso dizer dezembro em joão poeta, crítico literário e
pessoa professor titular do curso
: mônadas de Letras da Universidade
: leibniz Federal da Paraíba (UFPB).
garças Publicou, entre outros li-
brancas vros, Lirismo com siso: no-
tas sobre poesia brasileira
ipês contemporânea (crítica,
2015), Ahô-ô-ô-oxe (poe-
amarelos sia, 2015), Turbilhões do
meio-dia em patos todos
tempo: notas e anotações
sobre poesia digital (en-
nós saios, 2015), A linguagem
a gente da poesia (teoria, 2014),
sesprita na rede Muitos: outras leituras de
Caetano Veloso (crítica,
d/e/s/a/r/v/o/ 2010) e Barrocidade (poe-
cum só sia; 2003). Natural de Ca-
r/a/m/o/s
sol-apoplexia conde (SP), mora em João
Pessoa (PB). Contato: ama-
dor.ribeiro17@gmail.com.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 23


6 scholia
Milton Marques Júnior
marquesjr45@hotmail.com

Augusto
para a Eternidade
N
a construção do Eu, sem contar com Outras poe-
sias, Augusto dos Anjos se refere à mônada três
vezes: em “Monólogo de uma Sombra” (segunda
estrofe, verso 2), em “Sonho de um Monista” (segundo
quarteto, verso 3) e em “Mistérios de um Fósforo” (dé-
et

cima oitava estrofe, verso 1). Nas três vezes, a pala-


rn
te

vra aparece adjetivada: ignota mônada, mônada es-


in
o
çã

quisita e mônada vil, respectivamente. As pergun-


du
ro

tas que devem ser feitas são as seguintes: por


ep

que a mônada é ignota? A mônada é esquisita


:r
to

com o sentido que damos a esquisito ou com


Fo

o sentido do termo latino? E o que confere


vileza à mônada?
A última pergunta parece ser a mais
fácil de responder. Em “Mistérios de um
Fósforo”, a mônada é a própria vida ma-
terial do eu-poético, um “cósmico zero”,
que deverá se reduzir a cinzas, pois é
um “futuro de cinza” o que o aguarda,
em que um único fósforo é suficiente
“Para mostrar a incógnita de pó,/Em
que todos os seres se resolvem”. Môna-
da e materialidade, portanto, se fundem
nesse poema, de uma agônica constata-
ção de que a vida é materialidade que
se restringe a sofrimento e que resultará
no seguinte:

Um dia restará, na terra instável.


De minha antropocêntrica matéria
Numa côncava xícara funérea
Uma colher de cinza miserável!

Ainda assim, resta uma pergunta: se a


vida é vil matéria, é zero cósmico, que resulta-
rá em pó, por que esse pó é incógnito? Todos os
seres não se resolvem nele? Se a resolução existe
e é certa, por que há de persistir a incógnita? Mais
ainda: por que a terra é instável?
Em “Monólogo de uma Sombra”, é na “ignóta mó-
nada” que “vibra/A alma dos movimentos rotatórios”.
Tais movimentos são provenientes do equilíbrio provoca- c

24 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 scholia
c do pela “simbiose das coisas”. Da longínquas quanto o início da vida se refere à mônada é o momento
Sombra, por sua vez, “decorrem, e guarda a memória de todas as vi- de definição mais próximo da-
simultâneas,/A saúde das forças das que teve? A Sombra vê o filó- quilo que ela representa (na rea-
subterrâneas/E a morbidez dos sofo moderno tentar compreender lidade, na sequência dos poemas
seres ilusórios!”. Se há uma sim- “A vida fenomênica das Formas”, e do livro esta seria a segunda vez,
biose, há uma ação contínua, ação só conseguiu ver “O horror dessa aparecendo no poema “Sonho de
sem fim, que procura o equilíbrio mecânica nefasta/A que todas as um Monista”). Deus é a “mônada
da vida. A busca de tal equilíbrio, coisas se reduzem!”. Só conseguiu esquisita”, que aparece ao eu-lírico
sendo a “alma dos movimentos ver materialidade. A Sombra é es- “dentro da alma aflita”. O poema
rotatórios”, compara-se à continui- piritualidade, pois consegue ver ponta para a ascensão do espírito,
dade da ação simbiótica, parecen- além do filósofo moderno e ainda embora comece com uma viagem
do voltar sempre para o mesmo saber que ele viverá para além da do eu-lírico com “o esqueleto es-
ponto. O problema continua. Se materialidade que racionalmente quálido de Esquilo”. Ao ver Deus,
há uma busca, o movimento só re- conseguiu ver, “Nas eterizações como sua mônada, o eu-lírico ben-
tornará ao mesmo ponto se o que indefiníveis/Da energia intra-atô- diz essa ascensão, já integrado à
se busca não for achado. A môna- mica liberta!”, desde que estejam eternidade, vez que se encontra
da seria, então, ignota por desco- “rotos os liames/Dessa estrangula- “Alheio ao velho cálculo dos dias”.
nhecer o que procura ou porque dora lei que aperta/Todos os agre- O tempo cronológico já não lhe diz
a Sombra não sabendo o que pro- gados perecíveis,”. Essa ruptura nada. A materialidade se esvaiu
cura desconhece a funcionalidade dará ao filósofo e ao humano a na eternidade, a espiritualidade se
da mônada? Se a Sombra diz que realização da “Sonoridade poten- realiza com Deus “coordenando e
saúde e morbidez decorrem dela, cial dos seres,” que não pode se animando tudo aquilo!”. Entenda-
simultaneamente, isto, até certo realizar enquanto estiver “Estran- -se tudo aquilo como ” “A energia
ponto, poderia parecer a busca gulada dentro da matéria!”. Presa intra-cósmica divina/Que é o pai e
do equilíbrio como síntese, aqui- “su’alma na caverna escura” da é a mãe das outras energias!”. Na
lo que faz viver os seres vivos, na materialidade e dos gozos sen- sua primeira edição, o poeta grafa
alternância destas duas condições. suais, o homem jamais conhecerá “exquisita”, grafia latina que per-
No entanto, vê-se que a saúde vem sua mônada e jamais deixará o manece, por exemplo, no francês e
“das forças subterrâneas” e a mor- sansara, num movimento rotatório no espanhol. Esquisito (exquīsītus,
bidez é a consequência “dos seres sem fim, até que descubra a fun- -a, -um) significa escolhido, distinto,
ilusórios”. Subterrâneo não pode cionalidade de sua mônada, que é buscado, refinado. Particípio pas-
ser entendido simplesmente como seu espírito e que cria as condições sado do verbo exquīro, exquīrĕre,
o que está embaixo da terra, mas para a sua ascensão. com o sentido de procurar descobrir,
como o que está oculto, no mais Os planetas do sistema solar pesquisar, escolher. Também tem o
íntimo, metáfora, portanto, para o orbitam elipticamente ao redor sentido de desejar e obter. Reside
espírito. A saúde dará o equilíbrio, do sol. A terra, por exemplo, leva aí a dificuldade de se saber qual
pois ela vem do íntimo, com a in- 365 dias e seis horas para fazer o significado exato empregado
tenção de afastar-nos da ilusão. É a esta órbita, completando o seu ano pelo poeta. O sentido de esquisito
ilusão o que nos leva à morbidez. (annus, círculo), mas jamais volta mais utilizado correntemente é o
Nós é que escolhemos a saúde ou ao mesmo ponto de partida. Cada de excêntrico, anormal, diferente, fora
a morbidez. Ambos decorrem da primavera, cada verão, cada outo- do padrão, estranho, e soando sem-
Sombra, decorrem desse espírito no, cada inverno é diferente do an- pre pejorativo. Certamente, não é
que não envelhece (veja-se a ter- terior, pois o sol não está parado. este o sentido vislumbrado pelo
ceira estrofe desse poema!), mas Ele orbita pela nossa galáxia. Se o poeta. Deus seria a mônada esco-
nós, homens ligados à matéria, sol estivesse parado e os planetas lhida, desejada, buscada, refinada,
é que escolhemos um ou outro e, orbitando ao seu redor o tempo distinta? Diante da identidade de
no máximo, atingimos a simbiose, não passaria. A evolução material Deus com a mônada e com a orien-
quando tomamos consciência do não aconteceria. Os planetas e o tação para a ascensão espiritual,
que somos. Sendo a mônada para sol estariam presos ao sansara cós- ficamos com o sentido de escolha
nós ignota, é mais suscetível que mico. Como eles se movimentam desejada, sentido de que o desejo de
descambemos para a morbidez do helicoidalmente, a evolução acon- Deus é que, segundo a espiritua-
que para a saúde. A Sombra diz vir tece, lenta, mas acontece. Para a lidade, façamos escolhas distintas
“de outras eras” e proceder “Da evolução acontecer com mais rapi- que nos levem à luz.
escuridão do cósmico segredo,/ dez é necessário que os seres vivos Em suas palestras gravadas
Da substância de todas as subs- também se movimentem em bus- (Conversa 818), Trigueirinho nos
tâncias!”. Não estaria aí uma visão ca dessa ascensão. O “Universo/ explica o que seja a mônada e qual
de Augusto dos Anjos da evolução na podridão do sangue humano seja a sua função. Ele nos diz que
biológica – os seres vivos proce- imerso”, está, diz o poeta, “Pros- ela é a nossa estrela interior, o es-
dem do mesmo caldo primordial, tituído, talvez, em suas bases...” pírito, o pai dentro de nós, a cen-
que se esconde no segredo do Cos- É isto que o leva a cantar e expor telha divina que nos orienta de
mos – e da evolução espiritual, “Essa necessidade do horroroso”. maneira mais segura no processo
com a Sombra que vem de eras tão A terceira vez em que o poeta evolutivo individual. Nós somos c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 25


6 scholia
c energia, mas energia materializa- não está morto; evidências científicas da ta acreditava ou não na espi-
da. A mônada é energia, que irra- existência divina: ritualidade ou que desejava a
dia uma energia imaterializada, ascensão espiritual, seguindo
para desagregação dessa matéria, “A ideia é que uma mônada quân- alguma doutrina religiosa. Isto
que somos, de modo que possa- tica atravessa muitas vidas encar- não está em questão. Mas não
mos evoluir espiritualmente. O nadas, aprendendo com suas expe- se pode negar essa dicotomia
processo evolutivo de cada um co- riências em cada encarnação, até existente no livro: de um lado,
meça na mônada, transformando individuar-se, libertando-se do ciclo o desvirtuamento da humani-
através da energia imaterializada nascimento-morte-renascimento. E dade, que a leva à degradação,
um corpo bruto em corpo sutil e depois? Depois, a mônada quântica por isto a exposição da desa-
espiritual. Essa energia pode se não terá necessidade de reencarnar gregação da matéria em de-
irradiar para outros seres e ajudar como ser mental, mas poderia se composição, inclusive do pró-
a Hierarquia a acelerar a evolução manter disponível não localmente prio mundo físico inorgânico,
dos seres vivos. A mônada não para canalizações por meio de quem como mostra a parte IX de “Os
cria vínculos com a materialida- se relacionar com ela” (2008, p. 206). Doentes” (estrofes de 1 a 7 e
de, ela age ao contrário, criando metade da 8), em que “A ruína
as condições, a serviço da Hierar- Diz o espírito André Luiz, psico- vinha horrenda e deletéria/Do
quia, para a espiritualização dos grafado por Chico Xavier e Waldo subsolo infeliz, vinha de den-
seres. Por isto o eu-lírico deseja Vieira, no livro Evolução em dois mun- tro/Da matéria em fusão que
transformar o homem particular dos (Rio de Janeiro, Federação Espíri- ainda há no centro,/Para al-
em universal (Último Credo).Tri- ta do Brasil, 2011, p. 36-7): cançar depois a periferia”. Por
gueirinho ainda nos afirma que a outro lado, a necessidade da
mônada não nos diz tudo. E não “... a mônada vertida do Pla- ascensão espiritual, em que já
poderia ser de outra forma, pois no Espiritual sobre o Plano Físico se sentem os movimentos ini-
ela não pode ser determinista. A atravessou os mais rudes crivos de ciais “de um Cosmo novo!”, “O
mônada sendo a força especial adaptação e seleção, assimilando os vagido de uma outra Humani-
que nos impele à evolução, cria as valores múltiplos da organização, da dade!”, encontrando o eu-lírico
condições para que isto aconteça reprodução, da memória, do instinto, “com os pés atolados no Nirva-
e somos nós que percorremos o da sensibilidade, da percepção e da na”, acompanhando “com um
caminho para a evolução. O ser preservação própria, penetrando, as- prazer secreto,/A gestação da-
humano precisa entrar em conta- sim, pelas vias da inteligência mais quele grande feto,/Que vinha
to com a sua mônada, mas ele está completa e laboriosamente adquiri- substituir a Espécie Humana!”
muito atrelado ao mundo material da, nas faixas inaugurais da razão”. (versos finais da estrofe 8 e es-
para cuidar dessa parte. É dela que trofes de 9 a 11).
surge a única energia capaz de nos Assim, acreditamos que, quan- Mas não é só neste poema
levar ao plano evolutivo. do o poeta fala de minha “mônada que se observa essa oscilação,
Para o físico quântico Amit ignota” não está apenas se referin- definida magistralmente pelo
Goswami, a mônada, o que ele do aos organismos unicelulares da poeta com o oxímoro “negra
chama de mônada quântica, são “as matéria, como as bactérias, organis- eucaristia” (parte VII, verso 2,
propensões mentais e vitais de mos muito antigos que se confun- penúltima estrofe). A huma-
um indivíduo que sobrevivem à dem com a criação da própria vida nidade, como o morfético do
morte e são reutilizadas por um na terra. Não se trata, pois, apenas poema, é carne viva em desa-
encarnado, no futuro, graças a de evolução biológica, conforme se gregação por seu afastamento
uma correlação não local espe- pode ver em “Os Doentes”: da espiritualidade. Só lhe so-
cial” (A evolução criativa das espé- brando a matéria, a vida, que
cies, 2009, p. 269). A não localidade E via em mim, coberto de desgraças, era eucaristia, graça, torna-se
significa que “as propensões da O resultado de bilhões de raças maldição, “negra eucaristia”.
mônada quântica de um indiví- Que há muitos anos desapareceram! Nunca oxímoro algum foi mais
duo podem reencarnar em diver- (parte I, quarta estrofe) belo! Oxímoro a que se acosta o
sos indivíduos ao mesmo tempo paradoxo de “que podridão me
[...] e podem se propagar rapida- Todo o esforço da evolução bio- serve de evangelho” (“Monólo-
mente por toda uma espécie” (id. lógica deverá resultar numa evo- go de uma Sombra”). A desa-
ibid.), o que resultaria num salto lução espiritual, num confronto da gregação e a podridão funcio-
quântico evolutivo. Como sair dos matéria em desagregação com a ne- nam, pois como eucaristia de
movimentos rotatórios do sansara, cessidade de aprendermos com ela. um evangelho às avessas, pois
das diversas e infinitas encarna- Ainda assim, acreditamos que, com é com a ruína que aprendemos
ções? O poeta Augusto dos Anjos, relação ao Eu, não há respostas ple- e que podemos evoluir.
em “Solilóquio de um Visionário”, namente satisfatórias. Vejamos em alguns poe-
responde: “É necessário que inda Em vários momentos do Eu, o mas, como funciona esta dico-
eu suba mais!”. Subir espiritual- poeta demonstra desejar, na poe- tomia, que, com mais proprie-
mente, lógico. Em outras palavras, sia, esta escolha da ascensão. Aqui dade, no caso de Augusto, eu
é o que afirma Goswami, em Deus não estamos afirmando que o poe- diria dilaceração. c

26 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 scholia
c Em “Agonia de um Filósofo”, o eu-lírico, como dor e sofrimento e nos faz repudiar tais coisas, refle-
Goethe, reconhece “o império da substância univer- tindo sobre elas, para nos desviar da degradação e da
sal!”. O que significa exatamente isto? A degradação ruína, assim como se fazia na tragédia grega ao se ex-
humana provoca “A vingança dos mundos astronô- por o horror do humano ao público presente. Qual a
micos”, em “As Cismas do Destino” (parte I, estrofe melhor maneira de esconder, senão mostrar? Ao es-
13), enviando “à terra extraordinária faca,/Posta em conder a espiritualidade por trás da matéria em de-
rija adesão de goma laca/Sobre os meus elementos composição, Augusto a mostra a quem tem olhos para
anatômicos”. O que seria esta vingança? Quais se- vê-la. A nosso ver, o poeta não só atende a uma im-
riam estes mundos astronômicos? Sabemos, com cer- posição estético-histórica, proveniente do avanço das
teza, que a doença é mais que física, é doença espiri- ciências biológicas desde a segunda metade do século
tual, pois consequência “de uma raça/Que violou as XIX, desaguando num naturalismo insosso, mas tam-
leis da Natureza!” (estrofe 21). Ainda nesse poema, bém em um expressionismo contundente. Ele também
pode-se constatar o questionamento da não evolução esconde atrás dessa decomposição e desagregação da
espiritual, seja na observação da “anatomia mínima matéria a visão de uma espiritualidade que ele, bem
da caspa”, em que existem “Embriões de mundos que sabia, não podia expor ou não era chegado o momento
não progrediram!”, seja no estacionamento evolucio- de expo-la. Nunca é demais lembrar que a teoria da
nário do cachorro, “alma embrionária que não conti- evolução de Darwin é do mesmo ano do Espiritismo
nua?!” (Parte II, estrofes 7 e 8, respectivamente). So- decodificado por Kardec, 1857.
mos ainda matéria bruta, “putrescível forma tosca” Terminemos este passeio pela obra com o soneto
(estrofe 10), sem a evolução necessária, vez que “Jazia “Solilóquio de um Visionário”:
atravessada no meu crânio/A intercessão fatídica do
atraso!” (estrofe 21). Que atraso seria este, senão o da Para desvirginar o labirinto
evolução do espírito? Atrasado na sua evolução, o Do velho e metafísico Mistério,
homem mergulha em “Negro e sem fim.../Lugar dos Comi meus olhos crus no cemitério,
Cosmos”, de “dor infrene” (Parte III, estrofe 3). Se o Numa antropofagia de faminto!
home pede “Em vão, com a mão corrupta, outro éter”
(estrofe 30), “a Terra negava”-lhe “o equilíbrio....” A digestão desse manjar funéreo
(Parte IV, estofe 8). Tornado sangue transformou-me o instinto
Em o “Último Credo”, o eu-lírico crê, “como o fi- De humanas impressões visuais que eu sinto,
lósofo mais crente.../que a substância cósmica evo- Nas divinas visões do íncola etéreo!
lui...”. Qual seria essa substância cósmica? Evolui
em que sentido? Biológico não é, sobretudo porque Vestido de Hidrogênio incandescente,
o homem particular deverá ser vencido pelo ho- Vaguei um século, improficuamente,
mem universal. Pelas monotonias siderais...
Jogado “No pandemônio aterrador do Caos!”, como
se vê em “O Mar, a Escada e o Homem!”, o ser humano Subi talvez às máximas alturas,
lamenta não ter prendido a sua existência “À híspida Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
aresta sáxea áspera e abrupta/Da rocha brava”, assim É necessário que inda eu suba mais!
não sofreria a sua falta de consciência que o conduz à
desagregação da morte, por causa de uma racionali- Acredito ser este poema autoexplicativo. Se não se
dade que se exaure nela mesma (“Gemidos de Arte”, pode reconhecer neste poema a reencarnação, então
parte I, estofe 5). Mais felizes são aquelas “cousas/Sub- será impossível reconhecê-la em qualquer outro poe-
metidas apenas às leis físicas” (“Os Doentes”, parte ma do Eu.
III, estrofe 4). Ciente de que “a carne é que humana! Sem querer exaurir o poeta, ative-me apenas ao Eu.
A alma é divina” (“Gemidos de Arte”, estrofe 9), ele O que para nós se mostra importante é a constatação
deseja a construção de uma “Região sem nódoas e sem desse dilaceramento na poesia do Eu. Sem a busca
lixos,/Subtraída à hediondez de ínfimo casco/Onde a de se entender a espiritualidade que permeia o livro,
força feroz coma o carrasco/E o olho do estuprador se torna-se impossível conhecê-lo. Ficar na explicação do
encha de bichos” (estrofe 14), região em “Outras cons- cientificismo e da materialidade é, a nosso ver, malhar
telações e outros espaços” (estrofe 15). Quem conhe- em ferro frio. A apresentação da degradação e do cien-
ce as diversas doutrinas espiritualistas, se reconhece tificismo é o falso brilhante que cativa as mentes, que
completamente nestas estrofes do Eu. seduz os leitores pelo inusitado do léxico e do ritmo.
Por vezes, a este homem que sente ser sua “ruína Mas não é a essência de sua poesia. O livro é mais do
pior do que a de Tebas!” (“Tristezas de um Quarto que isso e suscita mais perguntas do que respostas.
Minguante”, estrofe 25), a morte, “esse último aban- Por isto Augusto é Augusto, etimologicamente, aquele
dono”, não o incomoda, visto que “Se a carne indi- que acrescenta. É grande. Inesgotável. I
vidual hoje apodrece,/Amanhã, como Cristo, reapa-
rece/Na universalidade do carbono!” (“Os Doentes,
parte V, estrofe 15).
Milton Marques Júnior é professor da Universidade
A exposição que Augusto dos Anjos faz da matéria Federal da Paraíba (UFPB). É autor, entre outras
em decomposição, da desagregação, compreendemos publicações, do Dicionário da Eneida e de Introdução aos
como catártica, pois a catarse ativa nossos centros de estudos clássicos. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 27


Fotos: di
vu lgação

6 homenagem Capa do livro Figuras


e paisagens, de padre
Luís Gonzaga de Oliveira

Da gura serena e acolhedora de padre


Luís foi apagando todos os meus

grandeza
receios. Cada nova aula reforçava-
-me a certeza de que havia religio-
sos completamente diferentes dos
que conhecera no internato.
As aulas de Latim do meu novo
professor davam ênfase à tradu-

humana ção e à interpretação de fábulas.


E aquelas histórias de bichos que
falavam e davam lições aos ho-
mens ganhavam uma dimensão
extraordinária em seu poder de
Ângela Bezerra de Castro convencimento. É clara a conclu-
Especial para o Correio das Artes são de que padre Luís escolhia
aqueles textos para com eles atin-

A
gir, ao mesmo tempo, dois objeti-
vos. Tornar agradável o ensino do
ntes de tudo, devo agradecer à família de padre Luís por me ha- Latim e fazer-nos refletir sobre o
ver incluído como participante das iniciativas que se realizam valor das virtudes e sobre o resul-
em comemoração ao centenário de nascimento do cidadão, do tado desastroso dos vícios.
sacerdote, do professor, escritor e acadêmico, cuja memória é Assim, sem a ameaça do pecado
um exemplo para as gerações. Numa sociedade em que a des- e do castigo, sem referência a Céu
culpa da correria incessante abre cada vez mais o espaço para ou Inferno, sem qualquer piegui-
a ingratidão e o esquecimento, devemos um elogio especial ce, ele nos despertava para a es-
aos sobrinhos José Augusto de Oliveira, João Nepomuceno, Fá- colha de uma ética, cuja essência
tima Coutinho, Eric Ben-Hur de Oliveira e Raniery de Oliveira ratificava os valores fundamentais
por terem escolhido, como prioridade, manter viva a história de sua fé cristã. Um procedimento
do tio que teve para seus contemporâneos o sentido de um poço que se identifica na ideologia de
no deserto. A comparação é do professor José Paulino, evocan- tudo quanto escreveu.
do com inteira propriedade a reflexão lírica de Saint-Exupéry, Naquela época, decidimos fre-
para dizer do profundo valor, da grandeza implícita na fecun- quentar, aos domingos, a Capela
da simplicidade vivida por padre Luís Gonzaga de Oliveira. anexa à maternidade Cândida
Porque com ele convivi, posso assegurar que a sua obra es- Vargas, por ser a mais próxima
crita é um reflexo do credo existencial por ele professado. de nossa residência. Para minha
Eu o conheci em 1956, como meu professor de Latim, surpresa e alegria, lá encontrei
quando ingressei no 3º ano ginasial do Colégio Nossa Senho- meu professor exercendo suas
ras das Neves, em João Pessoa. Viera do internato, no Colé- funções sacerdotais.
gio Nossa Senhora da Luz, minha pior experiência de vida, Excetuando a solenidade na-
até então. Dois anos de reclusão e de silêncio insuportáveis, tural da celebração e das vestes
agravados pela constante imposição de acusações e castigos. especiais, era o mesmo homem
A palmatória tinha sido abolida, mas o espírito da inquisição de voz pausada e firme, sem gesti-
ainda permanecia vivo e dominante. culações que contrastassem com a
Pela magoada compreensão adolescente, julgava que frei- serenidade de sua pregação. Toda
ras e padres agiam basicamente com hipocrisia e injustiça, a convicção contida na inflexão ou
em suas decisões sempre arbitrárias. Estava em choque com modulações da voz, intensificadas
o que teria de enfrentar em novo colégio de freiras. Mas a fi- ou realçadas pelo delineamen- c

28 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c to de um breve e discreto sorriso veu tem uma singular unidade Na publicação de A Tragédia do
e pela flama resplandecente do que reflete a sólida formação cristã Major, destaca-se o direcionamen-
olhar. Sem nenhuma dúvida, o alicerçada em seu espírito, desde à to do narrador para imputar ao
sermão de padre Luís era único, primeira infância, pelo exemplo de personagem a responsabilidade
e se tornava uma forte motivação vida. Em Memórias do Internato, im- pelos atos praticados. É uma forma
para frequentarmos a missa. Ele o pressiona a absoluta convicção do de contestar a força do Destino, tal
proferia como se estivesse lendo, jovem adolescente no tocante à vo- como se coloca na teoria da Tra-
as palavras fluindo com a maior cação sacerdotal. Nenhum instan- gédia. De modo que a palavra, no
naturalidade, e com o poder de te de dúvida, nenhuma restrição título do romance, não tem o peso
aproximar os mistérios do sagrado ao rígido cotidiano de obrigações da tradição literária ou mitológica.
ao cotidiano íntimo dos fiéis. que lhe pareciam completamen- Significa apenas um acontecimen-
Sentido-me privilegiada por te naturais. Aquela era a escolha to negativo que leva à queda, ao
haver contado com este ser tão definitiva de uma personalidade sofrimento e à tristeza. Mas, sendo
especial em minha formação, bem formada que encontrara o o homem dotado do livre arbítrio,
quis dividir com todos vocês um seu lugar no mundo e, nele, o meio poderia ter sido evitado. Verifica-
pouco dessa memória afetiva. de contribuir para a edificação de -se, portanto, uma absoluta negati-
Uma forma de confessar o quan- uma humanidade melhor. va da Fatalidade, categoria que na
to significa para mim apresentar Em Quadros da minha infância, tragédia grega submetia o perso-
o escritor Luís G. de Oliveira que os pilares que irão sustentar o nagem à reviravolta da felicidade
a ONG SACI edita e reedita para universo do escritor já se erguem ao infortúnio, sem que este pudes-
as novas gerações. sólidos. Primeiro, o ponto de vista se opor qualquer resistência.
De tudo quanto escreveu, das memórias que não priorizam o No prefácio à primeira edi-
nosso grande homenageado pu- confessional mas a sensível obser- ção do romance, o autor alerta
blicou em vida apenas dois li- vação do ambiente, dos costumes, que aquelas páginas em torno de
vros. Quadros da minha infância, dos seres e das coisas. José Amé- uma vida constituem uma lição.
em 1958, e o romance A Tragédia rico, revelando as qualidades que Eu direi que este aviso é válido
do Major, em 1961. Embora man- mais o seduziram no livro, ressal- para a obra que ele construiu em
tivesse constante colaboração, ta: “É mais uma homenagem filial sua prática de cidadão, de mestre
sobretudo no Jornal A Imprensa, do que uma confissão. O senhor de e de sacerdote. A lição está em to-
onde os conteúdos narrativos to- engenho que movia a máquina ob- das as páginas que ele escreveu
mavam a forma de folhetim, e na soleta é o verdadeiro personagem, e também naquelas que não es-
revista da Academia Paraibana com sua autoridade patriarcal dis- creveu, mas que foram talhadas
de Letras, veículo da instituição solvida em bondade e compaixão.” pelos gestos.
cultural que ele passou a integrar Outra característica do escritor Encerro esta homenagem de
ainda muito jovem, em 1950. se estrutura na escolha da lingua- gratidão apropriando-me de um
Figuras e paisagens, lançado ago- gem que não trai sua formação parágrafo que integra em Figuras
ra em edição póstuma, traz carac- clássica, mas sabe dar expressão e paisagens o perfil de meu avô pa-
terísticas que precisam ser ressal- verdadeira aos personagens e tra- terno, Joaquim Pereira de Castro.
tadas porque exprimem o cuidado duzir os costumes sem falsear o Pois aprendi com o grande mestre
e a justa admiração dos organiza- tom local. Forma e conteúdo indis- Juarez da Gama Batista que quem
dores. O desenho de capa, repro- sociáveis, na construção do estilo. retrata o outro também se revela.
duzindo o emblemático engenho José Augusto fala de “uma “Quem pinta se pinta” - era sua
Lameiro, arte de Edson Ferreira, leitura substanciosa, como um forma exata de dizer.
coloca em destaque a fonte das amoroso conselho paterno”. Essa Padre Luís, “um belo tratado da
memórias. Os acréscimos feitos à síntese encantadora reconstitui o grandeza humana. Não se afastou
cópia original, com absoluta per- próprio sentimento da convivên- um milímetro daquele programa
tinência, resgatando textos pos- cia com padre Luís, que continua que certamente traçou para si de
teriores; o tocante oferecimento vivo na percepção do valor huma- levar a existência no meio dos ho-
aos moradores e amigos do escri- nístico de sua criação. mens, prestando a estes o exem-
tor que, em testemunhos de vida, Hoje, tudo me parece escrito plo do que precisassem ser, para
mantiveram até o fim a lealdade para a continuidade de sua pre- recomendação mesmo de tudo que
do afeto verdadeiro e a gratidão sença no mundo através da pala- apregoamos como valor”.I
do reconhecimento; a epígrafe de vra. Para a sutil reiteração de um
Tolstoi, um alerta para a consi- compromisso existencial que se (Pronunciado em 25 de março
deração da importância temática exerceu pela prática simultânea de 2017, no Teatro Geraldo Alver-
do livro; a palavra da ONG SACI de ações religiosas, pedagógicas ga, na cidade de Guarabira)
que também pode acrescentar a e políticas de tal forma entrela-
seu admirável projeto editorial a çadas que, às vezes, fica impos-
certeza da publicação do inédito sível precisar onde começa uma
Memórias do Internato e, por fim, o e a outra termina. No entanto, a
competente texto do sobrinho José prevalência dos valores que fun-
Augusto de Oliveira, verdadeiro damentam o humanismo cristão,
Prefácio, oferecendo ao leitor pis- ainda que não transpareça osten-
sivamente, converte-se na ideolo- Ângela Bezerra de Castro
tas essenciais sobre as linhas de
é professora aposentada da
força da obra, agora em livro. gia dominante de todos os textos Universidade Federal da Paraíba.
Tudo quanto padre Luís escre- produzidos por padre Luís. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 29


6 convivência crítica
Hildeberto Barbosa Filho
hildebertobarbosa@bol.com.br

Conjunto
de saberes notas sobre Delirium tremens,
de José Caitano de Oliveira

D
as formas literárias modernas, provavel- rém, da necessidade interior de compreender o
mente é o romance a mais flexível. Se a absurdo de certas atitudes humanas.
ação, o personagem, o tempo e o espaço, Creio estar aí o ponto axial do mais novo ro-
assim como o narrador, constituem elemen- mance do advogado e escritor, José Caitano de
tos intrínsecos à sua arquitetura, outros in- Oliveira, intitulado Delirium tremens, e que tem no
gredientes também contribuem para a sua alcoolismo seu assunto nuclear. Aqui, portanto,
configuração estética. Vezes até, sem elidir vejo-me diante de uma gnose à qual os episódios
a função daqueles componentes estruturais, narrados e os ambientes descritos tendem a fun-
modelando, a rigor, e mais intensamente, o cionar como alicerces do conhecimento. Valendo-
sentido da composição verbal. -me das categorias de Roland Barthes, em Aula,
Fielding o define como “uma rápida e sa- penso estar diante de um romance que é mais ma-
gaz penetração da verdadeira essência de thesis, isto é, conjunto de saberes, do que semiose,
tudo aquilo que é objeto de nossa contem- ou seja, articulação poética dos signos.
plação”. E Milan Kundera, por sua vez, no Narrada em primeira pessoa e presidida por
primeiro ensaio de A cortina, considerando a uma espécie de “visão com”, conforme tipologia
vida humana como uma derrota, a partir da de Jean Pouillon, em O tempo no romance, a obra
experiência dolorosa de Dom Quixote, assi- é mais de atmosfera que de enredo, mais psico-
nala que a “única coisa que nos resta dian- lógica que fabular, mais reflexiva que descritiva,
te dessa inelutável derrota que chamamos mais enraizada no mundo subjetivo que na rea-
vida é tentar compreendê-la”. Para o escritor lidade concreta, mais delirante que lógica, mais
tcheco, reside aí a arte do romance. noturna que solar.
Pois bem: o romance, além de narrativa, José, protagonista e narrador, espécie de al-
é conhecimento. A fabulação, se não desa- ter ego do autor empírico, é um alcoólatra em
parece de todo, o que seria inadmissível alto grau. As situações romanescas descritas, na
na topografia singular de sua gramática verdade, são encenadas na consciência destruí-
artística, não raro se acosta, no entanto, da pelos efeitos da droga, cujos componentes de
ao poder das ideias, às exigências da refle- fato, assim como as experiências vividas, como
xão, mesclando-se à natureza mais fluida e que se reconstituem pela visão oblíqua e defor-
mais livre do ensaio. O impulso da narra- mada do narrador.
ção, nestes casos, não nasce dos processos Esta visão, representando um modo peculiar
materiais da ação nem dos conflitos, po- de observar as coisas e os fenômenos da vida, nos c

30 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 convivência crítica
Foto: divulgação
c conduz a nós, leitores, por uma
geografia insólita, por um mun-
do sombrio e dilacerado, onde
bares, botecos, ambientes sus-
peitos, periféricos, perigosos pa-
recem emoldurar os espaços de
uma outra cidade, uma cidade
quase intangível, permeada pelo
delírio e pela solidão.
Diria que José, do seu pos-
to de observação, acompanha o
desenrolar dos acontecimentos
da urbe; pondera acerca de seus
tipos curiosos; reflete sobre ocor-
rências inusitadas; destila seu
ressentimento contra os pode-
rosos e inscreve os sinais de seu
drama pessoal através de uma
linguagem às vezes deslocada
como sua própria vida.
Há qualquer coisa do homem
do subsolo dostoievskiano nes-
se narrador angustiado, vítima
do alcoolismo. Em certo senti-
do, ele também empreende uma
viagem para dentro de si mes-
mo; uma espécie de descida ao É este o tom e é esta a pers-
inferno, tendo por guia o que pectiva que vão lastrear do iní-
ele mesmo considera o “déspo- cio ao fim a dimensão narrativa.
ta”, isto é, o álcool. E mesmo Do universo pré-textual dos atos
que a ele (o alcoolismo) se refi- José Caitano de Oliveira e das vivências, do espaço e do
ra em detalhes, não raro, numa apresenta seu novo romance,
tempo, dos personagens e de
Delirium tremens (Sal e Terra,
dicção de teor didático e cientí- 2016), que tem no alcoolismo seus conflitos singulares, como
fico, caracterizando sintomas e seu assunto nuclear que se configura uma visão de
particularidades da doença, o mundo plasmada por um olhar
que conta, ao final, é a leitura de delirante que, atento à nudez
mundo que revela, numa espé- dos gestos humanos e às suas
cie de retórica embargada e em avessas matrizes, parece sinali-
perfeita coerência com os apelos zar para a outra face da moeda: a
do conteúdo romanesco. face noturna, a face do sofrimen-
Só para dar um exemplo, ob- to, da solidão e da derrota.
servemos a fala do narrador Diria ainda - para encerrar
numa das passagens do capítulo este breve comentário - que
“Ritual doméstico”: “Na vida, existe, em José Caitano de Oli-
tudo é rigorosamente fugaz. Eis veira, um ensaísta embutido e
o ponto de equilíbrio entre a ra- de certa maneira já esboçado em
zão e a loucura. Por existir esse romances anteriores, como O
defeituoso plasma, oriundo de pastor e o verbo e De liberdade não
outra dimensão, eis a razão por se morre. Ensaísta que se realiza,
que qualquer indivíduo empe- de fato, e respaldado pelo crité-
nhado em descobrir a verdade rio da investigação histórica, em
vai cair no seu próprio buraco: obras como a curiosa Maçonaria
que, por não ser negro nem de e esoterismo e o polêmico A saga
outra cor, possui os requintes de 1930 e o doido da Paraíba.I
de aurora boreal; refinamento
denominado felicidade. Felicida-
de? Sim, porque a mentira nas-
ceu com cheiro de maresia; nada Hildeberto Barbosa Filho
é poeta, crítico de literatura e
mais prazeroso do que respirar a professor da Universidade Federal da
doce ilusão de ser feliz”. Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 31


6 livros

Geração 65:
Cinquenta anos
Sérgio de Castro Pinto
Especial para o Correio das Artes

P
oeta, ensaísta e ficcionista, além de professor, José ordem burocrática, adiaram o
Rodrigues de Paiva registra os cinquenta anos da seu lançamento para o ano de
Geração 65 e a homenageia através de estudos de 2016. Mas, como acentua José
alguns dos seus poetas: Alberto Cunha Melo, Jaci Rodrigues de Paiva, o ano de
Bezerra, Maria de Lourdes Hortas, Janice Japiassu, 1965 deve ser considerado como
Lucila Nogueira, Paulo Tenório, Ângelo Monteiro, um mero ponto de referência
Tereza Tenório, Débora Brennand e Maximiano dessa geração, uma vez que,
Campos, este último, ficcionista. Mas revisita, tam- pelos idos de 63-64, os poetas
bém, camusianamente – conforme ele mesmo o diz –, Jaci Bezerra, Alberto Cunha
o José Rodrigues de Paiva de cinquenta anos atrás, Melo, Domingos Alexandre e
que é quando principia as suas colaborações nos José Luiz de Almeida Neto, na
suplementos literários, revistas e outras publica- interiorana cidade de Jaboatão,
ções do gênero, no estado de Pernambuco. já “discutiam temas literários –
Na verdade, Geração 65 – Cinquenta anos deve- particularmente a poesia – em
ria ter vindo a lume em 2015, porém, circunstân- reuniões entre amigos e divul-
cias alheias à vontade do autor, talvez entraves de gavam como podiam os textos
que iam produzindo”. Quer
fotos: divulgação dizer, o “Grupo de Jaboatão” –
como o batizou o poeta e crítico
César Leal – foi quem firmou
e erigiu as bases concretas do
movimento ao qual o geógrafo
José Rodrigues
de Paiva registra Tadeu Rocha denominou de Ge-
os cinquenta anos ração 65, cujos poetas diferem
da Geração 65 daqueles que, num coro quase
e a homenageia
através de estudos uníssono, procuravam cumprir
de alguns dos seus um conteúdo programático, um
poetas ideário estético, como os de 22,
os da Geração de 45 e os dos
movimentos de vanguarda.
Com efeito, a Poesia Con-
creta e seus desdobramentos, a
exemplo da Instauração Práxis,
pouco ou quase nada interferi-
ram no construto da lírica per-
nambucana dos anos 1960, pois
houve muito mais influência
individual, de poeta sobre poe-
ta, do que de grupo sobre gru-
po. Que o digam a de João Ca-
bral de Melo Neto no primeiro c

32 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c Alberto Cunha Melo ou a de Rodrigues de Paiva se peniten-
Mauro Mota e Carlos Pena Fi- cia por ter exumado textos de
lho em Jaci Bezerra, já que esse meados da década de 1960, iní-
poeta alagoano, pelo menos no cios da de 1970, veiculados no
aspecto temático, “é também suplemento literário do Diário
um poeta do Recife, um apai- de Pernambuco, para reproduzi-
xonado ‘cantor’ da cidade dos -los nesse volume. E isso por-
rios e das pontes”. que ele os considera, na sua
Com relação ao parentesco grande maioria, desiguais e
entre Cabral e o estreante Alber- imaturos, além de possuírem,
to Cunha Melo, José Rodrigues quem sabe ele assim não pen-
de Paiva faz um alerta: mais do sava, a mesma vida breve, efê-
que do autor de O cão sem plu- mera, dos jornais que – lembro
mas, a linguagem concisa, a qua- “O Jornal e suas metamorfo-
se completa ausência do lirismo, ses”, de Cortázar –, depois de
a prevalência da razão sobre o lidos, servem, quando muito,
sentimento, representam con- para embrulhar um molho de
quistas já plenamente consoli- celgas. Ainda bem que não foi
dadas da poesia moderna. Ou esse o destino dos textos es-
seja, não existe uma imitação critos pelo então jovem José
pura e simples de João por parte Rodrigues de Paiva. E não o
de Alberto, mas um comporta- foi graças ao argumento de Al-
mento similar, que os identifica berto Camus quando, chegado
e os irmana, circunstância que, à maturidade intelectual, de-
certamente, levaria José Lins do cidiu reeditar um volume seu
Rego a enquadrá-los entre os es- publicado na juventude que,
tilisticamente magros, segundo na sua avaliação, estava mui-
a concepção adotada pelo ficcio- to aquém de O mito de Sísifo e
nista paraibano num livro que de O homem revoltado: O Aves-
está a exigir uma urgentíssima so e o direito. No entanto, só
reedição: Gordos e magros. depois de muitas relutâncias,
Daí já se vê que não é por con- expôs o argumento do qual se
ta de uma dieta ou de um regi- valeu para publicar o volume
me deliberado que os poetas são fruto dos seus verdes anos:
magros, mas por uma necessi- “Se, apesar de tantos esforços
dade orgânica, visceral, que para construir uma linguagem
obedece aos ditames do eu pro- e dar vida a mitos, não conse-
fundo. O mesmo se diga com guir um dia voltar a escrever
“Se, apesar de referência aos gordos, a exem- O avesso e o direito, nunca terei
plo do poeta Augusto Frederico conseguido nada, eis a minha
tantos esforços Schmidt, cujos poemas discursi- vaga concepção”.
vos, grandiloquentes, estão a sa- Desse mesmo argumento
para construir uma tisfazer a necessidade premente se utilizou José Rodrigues de
de expressar o seu excesso de Paiva para justificar a publi-
linguagem e dar ser e de estar no mundo. cação desse livro. No que fez
Geração 65 – Cinquenta anos muito bem, pois Geração 65 –
vida a mitos, não é dedicado a Marcus Prado e a Cinquenta anos é um bom co-
César Leal, este último o prin- meço de quem sempre soube
conseguir um dia cipal mentor da “Geração 65”, dignificar o magistério, a poe-
sobre a qual exercia uma ati- sia, o ensaio, a ficção, enfim,
voltar a escrever vidade pedagógica. Já Marcus a literatura em todas as suas
Prado foi, juntamente com o dimensões e latitudes. I
O avesso e o autor de Constelações, um dos
responsáveis pela fase áurea
direito, nunca terei por que passou o suplemento
literário do Diário de Pernam- Sérgio de Castro Pinto é poeta e
conseguido nada, buco, espécie de porta-voz das professor de Literatura Brasileira
novíssimas gerações de poetas, da Universidade Federal da Paraíba
eis a minha vaga ficcionistas e críticos. (UFPB). É autor, entre outros livros,
de Gestos lúcidos, O cerco da
No prólogo desse livro, são memória, O cristal dos verões e A flor
concepção”. muitas as vezes em que José do gol. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 33


6 livros

O sol
por testemunha
A única novidade é o sol. Nem
Deus inova: por isso o moderno
é o eterno. O ser é: o criado em
sua intransmissível solidão.
Rosario Fusco
Alex Tomé expõe toda sua
opulência narrativa em Eu
contra o sol (Confraria do
Vento, 2016)

Ronaldo Cagiano
Especial para o Correio das Artes

A
frase que abre a narrativa labiríntica de Eu contra e as diatribes ou animosidades
o sol (Ed. Confraria do Vento, Rio, 2016, 474 págs.), do cenário que vai se abrindo
romance do paulista Alex Tomé, já antecipa a po- à sua frente, como numa se-
tência que virá nas páginas dessa caudalosa his- quencia de palimpsestos vi-
tória: “As primeiras palavras não foram escritas”. venciais a lhe exigirem uma
Assim o protagonista Benício a(s)cende o farol de constante metamorfose de
uma profunda imersão poética, filosófica e meta- posturas e sentimentos.
física, na esteira de suas inquietações existenciais, Eu contra o sol metaforiza
num cenário em que multiplicam-se conflitos de o cipoal de contradições de
variada natureza, do estético ao ético. Benício, seu embate íntimo
Em seu livro de estreia o autor expõe toda sua contra a claridade do real,
opulência criativa não apenas ao construir um seja aquilo que está aí e nos
personagem (in)tenso, polifônico e atormentado, cega se o fitamos de frente; ou
como também na engenhosidade de uma trama aquilo que queremos negar
que irrompe vulcanicamente e não deixa o leitor e nos turva a compreensão.
desgarrar-se de suas páginas, eletrizado por sua Benício,é um poeta que se
carga de alta voltagem literária e denso chafurdar arroja num percurso interior
na própria condição humana. catártico, de extremos psico-
Homem destinado a pagar caro tributo à sua lógicos e contornos afetivos
sensibilidade, por conta de um olhar agudo sobre que explicitam dissensões
o mundo geográfico e psicológico que o circunda, familiares e desencantos/de-
nele embrenha-se e sofre suas paranoias ao tentar sencontros amorosos, esse
compreender as contingências que o afetam. imaginário das relações que
A frase inicial é chave para se entender as idas tanto nos afeta. Romance em
e vindas desse personagem arrastado pela torren- que a frustração se instaura
te inconformista, um poeta que arregimenta suas como leitmotiv para a cons-
forças para enfrentar as vicissitudes, que não se trução de toda uma reflexão
deixa amesquinhar pela mediocridade do tempo sobre os altos e baixos da c

34 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c própria juventude, as dores & mance, quanto pela oportu- TRECHOS
delícias de uma geração per- nidade de premiar-nos com
dida entre desejos e desmoro- uma prosa autêntica e voraz, Ruas e pessoas, tantos encon-
namentos de toda a ilusão ou potencialmente devastadora ao tros e tantas esquinas possíveis,
utopia num mundo tão bana- comunicar o universo de um delirava. Benício sentia saudades
lizado pela dor e pela morte. personagem em ebulição nos- de ter sorte. Acendeu um cigarro e
Alex Tomé debuta com a ver- tálgica e psicológica, com seu ficou observando um senhor cabeça
ve dos veteranos, tão amadure- arcabouço emocional questio- branca que bostava as plantas com
cido e cioso de seu projeto lite- nador, que declara num dos adubo natural. Retirou seu cader-
rário, pois nota-se nesse livro poemas que escreveu: “Não es- no de poemas do bolso traseiro e se
alguém isento dos cacoetes ou colhi a melancolia como estilo colocou a escrever. Parecia ter to-
deficiências muito comuns aos de vida;/ veio e se instalou/ de mado a melhor decisão, as palavras
estreantes. É um artesão em corpo inteiro...” E ele se redi- distanciavam-no do que ele mais
pleno domínio dos artefatos da me de todo esse embaraço pela temia, distanciavam-no dói que ele
linguagem, estilista da arqui- palavra, pois confessa: “O que esta prestes a se tornar.
tetura ficcional, que assimilou eu gosto é de escrever/ todo o
influência dos grandes mestres, resto é sacrifício.” (...)
alimentou-se nas melhores fon- Livro pungente, em que as
tes, tal seu histórico de leituras demandas peculiares ao nos- Você não sabe o que é verda-
visível no seu texto. Sua escri- so estar-no-mundo são trata- deiramente uma multidão até ser
tura espelha ainda seu trânsi- das sem dourar a pílula, em reduzido a nada dentro dela. Você
to por vertentes e linguagens que lirismo e reflexão filosó- se torna uma coisa amorfa. Você
distintas, tal a sua habilidade e fica misturam-se em perfeita é apenas uma das milhares coisas
versatilidade no manejo da his- simbiose para dar conta de que gritam. Você faz parte desta ar-
tória, na harmonia entre forma nossas lutas internas e ex- téria rudimentar e sem nome, seu
e conteúdo, na apreensão de plorar e escandir as camadas sangue corre intacto, e uma ener-
muitos referenciais culturais, mais profundas de um ser gia religa você a desconhecidos. Vo-
sociais, políticos que reverbe- que deambula pelos labirin- cês são um mesmo borrão.
ram na voz de um Benício que tos de seus desafios, repro-
amplifica uma visão hermenêu- duz, em última instância, os (...)
tica de nossa esclerosada con- caminhos e descaminhos de
temporaneidade. uma juventude em busca de Tinha dezoito meses de idade
Por outro lado, o autor con- saídas, tendo Benício – um quanto falou a primeira palavra
duz todo o aparato narrati- homem perplexo, posto à na presença do pai – crianças
vo por meio de uma inflexão prova em situações limite têm um senso incrível de mise-
metalinguística e laivos de - como ancoradouro do pen- -en-scène. Tal palavra o perseguia
intertextualidade, conferindo samento, da identidade e das por toda a vida. Falo-a para si. Sol.
ao conjunto uma sofisticação vozes desse tempo de sonhos Repetiu-a, a voz esticada como cor-
estilística que culmina em de- desfeitos, verdadeiro andari- da de violão. Falou mais uma vez.
licada prosa poética. Dessas lho do inconsciente que nos A palavra sublimou feito vapor. À
particularidades e afinidades habita e corroí com seus cre- época, ninguém entendera muito
também emerge a força de púsculos e solidões, tendo o bem de onde a criança tirara aquela
uma atmosfera que panorami- sol como testemunha de seu palavra. Agora tudo fazia sentido.
za o próprio caos, individual inóspito habitat sob as latitu- O sol acabaria por tornar seu me-
ou coletivo, decodificando os des do inconformismo. lhor amigo, o único e quem poderia
elementos que gritam verda- E entre o paraíso e o inferno confiar e naquela tarde nublada
des a queima-roupa na mitolo- vividos, reminiscências como sentia um buraco o estômago. I
gia de nossas sensações, tendo espelho de uma dilacerante
Benício ricocheteando nossos experiência humana e os pa-
fantasmas e obsessões, na li- radoxos desmascarados pela
nha do niilismo de um Nietzs- vida, Eu contra o sol é a história
che ou da angústia ancestral de um homem remando contra
de um Samuel Rawet. a maré da escuridão que o ha-
Como referenda Paulo Scott bita e atesta a qualidade de um
na apresentação, Alex Tomé é autor esmerado no seu ofício,
“um jovem autor que merece um verdadeiro antídoto con- O escritor Ronaldo Cagiano é autor,
ser acompanhado pelos lei- tra a mesmice (ou o que há de dentre outros livros, de Eles não
moram mais aqui (Ed. Patuá, 2015),
tores”. Com toda razão, tanto requentado) na literatura con- Prêmio Jabuti de Contos 2016. Reside
pelo valor intrínseco do ro- temporânea brasileira. em Lisboa, Portugal.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 35


6 conto

Alípio
do Sítio
José Leite Guerra
Especial para o Correio das Artes

ilustração: Tônio

B
em que lhe diziam. Mas Alípio insistia em sair na frieza da noi-
te para olhar os pés de manga, ficar sob as folhas enegrecidas
pelas sombras. Acendia o cigarro de palha, começava a cantar
em língua estranha escutada a léguas. Falava com antepassa-
dos, assim pensavam. Uma busca pelas cantigas de viola. Gos-
tava de ficar, com aquele seu jeito de anum molhado, cofiando
a comprida barba, sentado ao chão, na calçada de Dona Joa-
quina, bebendo, aqui, acolá, um trago da melhor cachaça trazi-
da pelo burro de Bastião da Rapadura. Resmungava qualquer
coisa, mas ninguém entendia, vezes saía a acompanhar o tilintar das
cordas das violas, cantando fora do tom, e se enfurnava entre as man-
gueiras como se enterrasse seu vulto entre os arbustos entrelaçados.
Dizem que era saudade do filho Dagoberto, que fugira ou sumira,
repentinamente, enquanto colhia mangas espadas e rosas, a fim de
encher o balaio e ir à feira vendê-las para ajudar o pai. Naquela época,
Alípio e Francisquinha eram um casal sentado na harmonia, vivendo
um para o outro, indo aos festejos de São José Operário, ela, professora
de primeiros ensinos à criançada do lugar, ele, improvisador de me-
lodias. Juntavam os arrebanhados ganhos e dava para levarem uma
vida atualizada: geladeira, televisor, até um carrinho meia-sola que os
transportava a passeios não muito distantes, por precaução de algum
imprevisto no cansado fusca. Alípio chorava escondido, olhando o c

36 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c retrato da primeira comunhão rapaz, a mãe escutara um rasgar abrigo. Notou-se perdido. Os
do filho único. Pedia a Santa da ave sobre o telhado da casa. caminhos se mesclaram. Ben-
Rita dos Impossíveis encontrá- O rasgar da mortalha, como to- zeu-se rápido, apertou o passo,
-lo, seja lá onde estivesse, vivo dos entendiam. Besteira, tem fé cuidadoso pela modificação re-
ou morto. Mas a santa deveria naquele que nos criou! Alípio, pentina das vias do sítio, como
estar bem ocupada, pois, anos todavia, ficara ressabiado com se estivesse em lugar estranho,
decorridos e Dagoberto não o sinal. Nada do filho, roteiro bem desconhecido. De repente
voltava. Dona Francisquinha algum. Ele sempre falava em um baque. Uma queda amacia-
puxava pelo rosário, botando viajar para morar na capital, em da por folhas caídas. Saiu sem
fé nos anjos de sua eleição. Mas busca de encontrar um traba- destino. As brenhas não lhe
nada. A mulher era mais con- lho honroso e de mais ganho. ajudavam, mas uma força estra-
tida. Amarrava o desgosto e o Não faria tal sem avisar, assim nha o atraía, o levava para não
pranto, engolia em seco, suspi- de improviso, deixando os pais sabia onde, e Alípio seguia sem
rava extensamente com uns ais, em ventos tenebrosos. Nunca capacidade em sustar os pas-
ais soltos em voz alta que irrita- esqueceria o não chegar, o sol sos amarrados pelo medo, um
vam o marido. Isto não resolve, adormecido, a noite cobrindo o medo corrosivo, o coração late-
mulher. Já ficara ele desentendi- mundo com o lençol sombrio, o jando, a busca do desconhecido.
do com as apelações e clamava pranto de Francisquinha gote- Ainda não raiara o dia, quan-
para dentro a sua saudade que jando no lenço, gente a acudir o do se deparou com Dagoberto.
crescia galopante. Deixava a casal, puxando uma esperança Correu, meu filho, meu filho,
mulher suspeitosa de que havia esquálida, furta-cor, todos vol- meu filhinho, que fizeram de
algo de grave naqueles olhos tados para a dor de Alípio e a ti? Dagoberto estava no chão,
parados, vidrados como os das mulher, levantando hipóteses chupava uma manga espada, os
imagens do oratório, explodin- em contraste: de vida, de morte, olhos perdidos num tempo que
do num choro de criança des- de desaparecimento, de fuga, não era o de Alípio. Este o olha-
mamada, algumas fugas notur- de luz e de treva. va estático, temeroso em apro-
nas que demorou a identificar. Os dias escorriam, um ano, ximar-se, pois lhe parecia uma
O sítio de mangas, refúgio es- dois, Alípio deu para beber, visagem ou arcabouço expiran-
colhido pelo homem, era misté- ficava horas no meio das man- te. Duvidava ser o filho sumido:
rio nas noites de luas de raios gas, à espera de um milagre. aproximou-se e ficou horrori-
brancos que lambiam o mundo, Francisquinha era medrosa e zado. Se aquele era Dagoberto,
sendo ouvidas lamentações la- não acompanhava o marido não poderia afirmar com certe-
tidas, assovios, corujas, cães e nesses exílios noturnos e cegos za, pois estava enrugado como
lobos ou vampiros. Alípio nada pela escuridão, mesmo que a os caules das mangueiras, ca-
temia, nem obedecia a ninguém lua cheia insistisse em varejar belos longos e brancos, os trajes
o conselho: “deixa de frequen- por entre galhos alguns raios em farrapos.
tar esse lugar de mal assombro. amortecidos, a claridade era Francisquinha, ao notar a
Um dia, te arrependerás”. furtiva, incerta, trazendo um demora do marido, naquela
Alípio divagante debaixo palco a assombrações. Alípio manhã tropeçada em ânsias,
das mangueiras como que a não revelava nada a ninguém clamou alto, gritou pedindo
procurar o filho desaparecido. sobre o sonho que tivera, no dia socorro, e, logo, invadiram o
Pululavam passarinhos ner- seguinte do desaparecimento sítio homens destemidos. Nada
vosos nos galhos. Quando em de Dagoberto. Por isso, insistia encontraram. Até hoje, Alípio
vez um pio de coruja tocava o em comparecer ao pomar de do Sítio e o suposto Dagoberto
coração do homem e ele fica- mangas lindas e ficar até a ma- são lembranças. Os caminhos
va como que petrificado. Mau drugada, em frio ou chuva, em do sítio foram desfigurados e,
agouro. Pensava no menino de serenos. Tiritava, acendia cigar- por incrível que possa parecer,
Beto do Mercado: estava bon- ros, bebia lapadas de cachaça, nunca mais as mangueiras bro-
zinho, quando, mais que de re- entregava-se ao sacrifício, in- taram um só fruto. Uma espé-
pente, ficou prostrado em cima compreendido pelos descrentes cie de maldição jamais entendi-
da cama, o couro largando, a em revelações durante sonos: da. Como muitas não contadas,
magreza repentina, nenhum a Bíblia falava em muitos, o de nem mesmo em ficção. E
doutor conseguira afugentar São José, por exemplo. E outros.
a doença. Morreu em poucos Numa noite trancada, trove-
dias. Esfriava ao relembrar. A jou rasante, as pernas ilumina-
coruja olhando com os olhos das dos relâmpagos cortaram o O poeta e contista José Leite Guerra
fixos denotava uma mensagei- céu de nuvens espessas. Alípio é natural de João Pessoa (PB), onde
ra de mau agouro. Que seria estava dormitando, uma soneca reside. Publicou, entre outros livros,
Boi de fogo e proezas com geringonça
de Dagoberto? Naquela manhã de quase meia-noite, saltou sem (contos), Pátio sem sombras (novela) e
fatídica do desaparecimento do despertar de todo, procurou Dança das palavras (poemas).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 37


6 conto

Acerto
de contas
Cláudio Limeira
Especial para o Correio das Artes

ilustração: Tônio

D
Dono de uma oficina onde funcionava cina, mas precisamente no bar de Nizi-
uma retífica de moendas de velhos enge- nha, rapariga fogosa que mexia com seu
nhos e uma pequena fundição, aliás, única sofrido coração solitário. Já andava qua-
em toda região do agreste, Mané Cão era se pelos cinquenta, mas nunca se engan-
um especialista em tudo ou quase tudo chara com mulher dessas que pudessem
que fosse relativo a cobre ou bronze. Con- resultar em casório. É bem verdade que
sertos, até fabricação de alambiques, cal- na juventude tivera uma mancebia até
deiras, tachos, caldeirões e mesmo pane- duradoura, e que lhe dera um casal de
las, faziam parte de sua especialidade. filhos. Estavam separados há muito em
Acontece que ele, apesar do tempera- razão das constantes brigas que iam a
mento forte e arrebatado, era generoso e cada dia esticando a corda. Não se su-
de bom coração. Gostava de uma cacha- portavam mais e a ligação partiu-se
cinha e de um rabo de saia, sendo um para alívio dos dois. A verdade é que ele
dos mais assíduos frequentadores da gostava mesmo era da boemia descom-
Rua do Cajueiro, nome do cabaré único promissada, nos braços das perdidas,
de Serra Bonita, onde deixava uma boa para ele muito bem achadas, secando
parte do apurado que entrava na sua ofi- garrafas e varando noites. c

38 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c Ocorre que o tempo é cheio de apareceu por razões óbvias. Foi faltava alguma coisa. Era como
armadilhas e artimanhas, com o uma pena, logo os mais assíduos! se o espírito de Nizinha tivesse
dedo do tinhoso querendo traçar Não fizeram falta. Afinal, a in- ficado na Rua do Cajueiro. Mas
caminhos. E quando Mané Cão gratidão é assim mesmo. a vida corria solta e Mané Cão,
menos espera estava cada dia Tudo fora previamente orga- apesar do seu jeito rude, conti-
mais apegado à saia de Nizinha, nizado pra sair nos conformes, nuava tratando-a muito bem. O
já sentindo até sintomas de ciú- logo ela que era uma forte de- amor e a amizade dos dois, ago-
me, em pouco tempo já queria vota de Santa Terezinha. O que ra amadurecidos, continuavam
impor exclusividade. Ela reluta- mais chamava atenção era a cara num céu de brigadeiro. Por te-
va, ele roía. Propôs tirá-la do ca- do padre, sujeito esnobe e pre- rem temperamentos difíceis, era
baré, mas ela jamais podia ima- conceituoso. Pensara em tudo quase impossível não haver uma
ginar uma vida fora dali. O amor para botar obstáculo no enlace, briguinha aqui, ali, para quebrar
foi aumentando e a paixão foi mas nada pôde fazer para obs- a monotonia dos dias e avivar a
perdendo o freio a ponto de pe- taculizar o evento. Os dois eram chama do pavio do amor.
di-la em casamento. As colegui- desimpedidos e nada havia que Aos poucos Nizinha foi se
nhas vibraram e fizeram festa, pudesse ferir os preceitos ca- enturmando com as outras
mas ela não arredava o pé: “tava nônicos. Além do mais, Mané fiéis da igreja. As mais pobres
bom assim mesmo”. Ninguém Cão era uma pessoa bem quista já eram suas velhas conheci-
mais conhecia aquele Mané Cão, e remediada. Todos o respeita- das, mas tinham as outras me-
antes tão determinado nas coi- vam em Serra Bonita. Tinha um tidas a besta, preconceituosas,
sas, e agora triste pelos cantos, temperamento forte, é certo, mas como as madames.
olhar perdido, desnorteado. Uns isso era do seu feitio, e em nada Não demorou muito, sendo ela
diziam que só podia ser coisa o desabonava, muito pelo contrá- comerciante, simpática e muito
feita. Dava pena vê-lo em tal es- rio, isso só fazia aumentar ainda comunicativa, a ser aceita pe-
tado. As raparigas solícitas fize- mais a sua reputação de homem las mulheres da sociedade, que
ram uma espécie de embaixada sincero e de palavra. já a conheciam como devota da
e foram confabular com Nizinha Após a cerimônia era grande a padroeira e agora casada como
uma saída honrosa que o caso ansiedade das meninas para ver manda a santa madre igreja.
requeria. Ela mandou chamar quem ia pegar o buquê da noiva Participava ativamente das ativi-
Mané Cão e disse-lhe que acei- que, depois de grande rebuliço, dades paroquiais, mesmo que a
tava mediante uma condição: ca- foi cair nas mãos de Maria Boa. olhassem de viés.
sava, saía do Cajueiro desde que A festa durou o dia inteiro e Acontece que tinha recôndita
pudesse montar um bar aonde entrou pela noite. Começou com uma mágoa que roía-lhe o espí-
quer que fosse morar. Mané Cão a despedida de Nizinha do caba- rito rebelde. Nunca fora de levar
concordou de pronto. Mesmo sa- ré e das colegas, e terminou na desaforo para casa e nisso batia
bendo que ele não tolerava padre nova casa quando já apareciam com o marido. E mágoa é um bi-
nem gostava de igreja, Nizinha os primeiros raios de sol. Muita cho que cresce na proporção do
fazia questão de casar no religio- comida, muita bebida. Os bêba- ódio que vai se comprimindo
so. Era questão fechada, logo ela dos e bêbadas se amontoavam com o tempo, e vai esquentando
devota de Santa Terezinha! pelos quatro cantos da casa. O como panela de pressão, inchan-
Foi um estouro de festa. As forte cheiro de azedo vinha do do feito sapo cururu.
putas se abraçavam, riam e banheiro empossado de vômitos. Depois de pouco tempo de ca-
choravam ao mesmo tempo. Mas afinal tudo isso era sinal de sada, ela fora convidada pelo vi-
Nunca houvera tanta felicida- fartura, de sucesso. Se botavam gário, junto às demais fiéis para
de na Rua do Cajueiro. Dava pra fora é porque tinha demais. participar da decoração dos al-
pra antever o que não seria na O bar fora reaberto bem perto tares com toalhas e bordados,
festa propriamente dita! da nova morada, passando ape- em louvor a Santa Terezinha.
Os preparativos demoraram nas poucas casas da sua, mas, Varou noites e ocupou as horas
dias, as amigas empenhadas em pouco tempo, Mané Cão vagas bordando flores em ponto
nos bordados e confecções de conseguiu comprar um ponto de cruz. Deu até o que falar de
vestidos, flores, buquês e tudo maior e mais central, construiu tão bem trabalhado que ficou.
que se possa imaginar para um um primeiro andar onde fize- As beatas enfeitaram os altares.
casamento que se preze. ram o seu ninho. Embaixo ficou Tudo um brinco!
Até que chega o dia. Nizinha o bar com uma área ampla e No domingo, às vésperas da
vestida de noiva, acompanha- mais espaço para um reservado festa da padroeira, o padre Josa
da por um séquito de raparigas, e depósito de bebidas. soltou sua verve preconceituo-
todas vestidas com sobriedade As coisas pareciam correr sa no sermão. Derramou-se em
respeitosa e reprimida. Ocupa- bem, o bar com nova freguesia, elogios aos altares das mulheres
ram os primeiros bancos. Mesmo que agora incorporava clientes do juiz, do prefeito, do farma-
sendo dia de semana não podia do centro da cidade, incluindo cêutico e das figuras de maior
faltar o contingente de bêbados e comerciários, funcionário públi- destaque na sociedade. Belos
boêmios, marceneiros, eletricis- cos, muitos antigos habitués da arranjos, muita criatividade e
tas, mecânicos, motoristas, sapa- Rua do Cajueiro. Podia-se dizer inteligência, porém... Pena que
teiros, enfim, toda a classe labo- que os negócios iam de vento em teve um altar forrado do mais
riosa que sustentava a economia popa, mas notava-se que havia no puro mau gosto por um borda-
do Cajueiro. Nenhum político ar uma estranha sensação de que do de orquídeas. Ah! Mas logo c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 39


c orquídeas! – e soltou um risinho
maléfico. - Para quem não sabe
essas flores são falsas, são pa-
rasitas da natureza e – comple-
tou - elas são por assim dizer as
prostitutas das flores.
Nizinha entendeu o recado.
Aquilo tinha endereço certo: ela!
Era a resposta pelo casamen-
to que ele fizera a contra gosto.
As caninanas do mundo todo
incharam na sua garganta. Saiu
chorando em silêncio, quase não
chega em casa, com as pernas
bambas querendo não obede-
cer. Nem em toda sua vida de
rapariga se sentiu tão humilha-
da. Mané Cão encontrou-a pros-
trada, caída na cama, os olhos
inchados de tanto chorar. Qué
que tu tem mulher, vamos pro
médico, não, nada disso, num
foi nada não, mas como num
foi nada não, com tu desse jeito,
mulher? Nada não Mané!.
Vendo o marido em desespe-
ro e sabendo do seu tempera-
mento explosivo, resolveu abrir
o jogo desde que ele jurasse se
conter. Era assunto dela e só
ela própria saberia resolver no
tempo devido.
EE o tempo foi passando cé-
lere como água que escorre das
mãos, como se ninguém notas- A festa da padroeira era um Josa, ressabiado, arriscou uma
se. Havia na cidade sinais visí- dos maiores acontecimentos do conversa mole: e o apurado da
veis de progresso. A oficina de ano. Juntava gente tanto de Ser- festa foi bom? E Mané, com seus
Mané Cão ia de vento em popa. ra Bonita quanto de toda a re- inconfundíveis destemperos: a
O bar de Nizinha não ficava por dondeza. Era a vez do comércio, depender dessa festa o dinheiro
baixo. Corria longe a fama dos principalmente o mais miúdo, que se apurou aqui, até ontem,
seus tira-gostos: rabada, picado, bares, bodegas, fiteiros... que foi o encerramento, soman-
feijoada e, na sexta, caldo e pirão Acontece que o padre, em do tudo, não dá pra comprar nem
de peixe. E ainda tinha o sopão conluio com o prefeito, sem con- uma gilete pra raspar a buceta
caprichado “Levanta defunto”, sultar ninguém, concentrou a de Nizinha. Chocado, o vigário
que salvava os comerciários re- festa dita profana, nas ruas mais tratou de se escafeder pela outra
tardatários e demais trabalhado- centrais, beneficiando o comér- porta, procurando terra nos pés.
res de pouco dinheiro, sem falar cio dos endinheirados. Evidente Embora já na calçada deve ainda
dos bêbados que já começavam a que as ruas tradicionais que fi- ter ouvido o vozeirão de Mané,
adernar no fim da tarde. caram fora sofreram com o mo- gritando pra Nizinha que estava
Enquanto isso padre Josa en- vimento vasqueiro. lá pra dentro do bar:
cetara uma campanha para aqui- Após a festa, padre Josa saiu - Gostou, Nizinha?.
sição de donativos para a reforma agradecendo as contribuições, até E ela toda sorridente, e de
da paróquia. Claro que o primeiro que esbarrou no bar de Nizinha peito lavado, respondeu a todo
item era grana. Depois vinha uma para também agradecer a colabo- vapor:
hierarquia crescente de valores: ração nos arranjos ornamentais da - A-DO-REI, AMOR!!! I
doações disso, daquilo. A comis- igreja, mas foi logo dando de cara
são andou passando pela oficina com Mané Cão. O vigário então
de Mané Cão e, sabendo que ele aproveitou para falar dos pesos
não estava, foi feito um pedido de do relógio. E Mané: aquilo não fui
uns pesos de bronze para o relógio eu não, foi obra do leso daquele Cláudio Limeira é professor, poeta e
da igreja que acabara de ser res- meu filho, tudo que sai dali custa contista. Editou o Correio das Artes
de 1997 a 2002. O conto acima faz
taurado. O filho de Mané, que era dinheiro, eu nem gosto de igreja e parte do livro inédito Sussurros na
meio aluado pra essas coisas, aten- muito menos de padre, tudo que madrugada e outros contos. Mora
deu de pronto o pedido do vigário. sai dali tem que ser pago. Padre em João Pessoa (PB).

40 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 crônica

O redator
portantes ou célebres, que façam
jus a essa forma de publicidade
póstuma. Esse redator especiali-
zado é o obituarista. Geralmente,
é claro, só merecem obituário po-

de obituários
líticos e empresários poderosos,
artistas famosos e celebridades
que ainda não tenham sido es-
quecidas por ocasião do óbito.
Como se sabe, a morte de gente
comum não recebe tal honraria,
Francisco Gil Messias no máximo algum registro na
Especial para o Correio das Artes
página policial, quando é o caso.
Tendo se aprofundado no
tema, Gay Talese identificou al-
gumas peculiaridades dos obi-

E
xistem certos tipos de trabalho que a gente nem tuaristas, que agora repasso ao
imagina. Dia desses deparei-me com um texto do meu eventual leitor que não te-
jornalista e escritor americano Gay Talese sobre um nha tido ainda a oportunidade
obituarista do jornal New York Times e fiquei pen- de ler o trabalho do jornalista e
sando no exotismo da atividade desses profissionais escritor americano.
um tanto mórbidos. Inicialmente, deve-se ressal-
Os grandes jornais, revistas e redes de televisão tar que um autêntico obituarista
costumam ter, entre seus redatores, alguém encarre- vive com a morte dos outros na
gado de preparar e escrever, normalmente com ante- mente. O tempo todo, desde que
cedência, o obituário de figuras de algum modo im- acorda e toma o café da manhã
lendo alguns jornais do dia, indo
de carro ou de metrô para o tra-
balho, almoçando ou jantando
com um amigo, o obituarista
permanece sempre atento a qual-
quer notícia sobre o falecimento
já consumado ou apenas previ-
sível de alguém que mereça um
obituário. É uma verdadeira ob-
sessão, que não raro prejudica as
relações afetivas e pessoais do
profissional, o qual, não sendo
um reles amador, deve possuir
em seu arquivo um obituário
já pronto dos candidatos mais
óbvios a essa distinção, como
famosos idosos e/ou enfermos,
pois, como notou Gay Talese,
para um obituarista “não exis-
te nada pior do que a morte de
uma personalidade mundial an-
tes que se tenha tido tempo de
atualizar seu obituário.” Daí que
a morte repentina de alguém que
não possua obituário pronto, al-
guém ainda moço e em gozo de
plena saúde, por exemplo, consti-
tua o inferno de todo obituarista,
O jornalista e escritor norte-americano Gay Talese
identificou algumas peculiaridades do obituarista, pois este vai ter de colher mate-
profissional que “vive com a morte dos outros na mente” rial e compor um texto em cima c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2017 | 41


Ilustração: Domingos Sávio

c da hora (ou em cima do caixão), a pessoas mortas, este obrigato- séria. É para profissionais.
o que, dependendo do morto, às riamente só se aplica a pessoas Voltando ao obituarista, en-
vezes é bem difícil. O obituarista vivas. Outra observação: tanto o fim, ele é sempre uma figura es-
só fica realmente tranquilo quan- obituário como o perfil não são pecial. Ou assim se torna com o
do consegue fazer seu trabalho biografias; são textos de certo exercício da profissão, pois não
antes que a pessoa morra, obe- modo biográficos, claro, mas não se vive impunemente nesse es-
diente à máxima segundo a qual têm – nem podem ter – a preten- tranho mundo dominado pela
“seguro morreu de velho”. são de esgotar a vida, a história morte. E, por ironia e a despeito
Um cacoete profissional des- e a personalidade do(a) persona- de escrever textos muito lidos e
sa turma: depois de ter escrito gem apresentado(a) aos leitores. não raro elogiados por suas qua-
e lido várias vezes o obituário Para completar, e como já dito lidades literárias, o obituarista
de algum famoso ainda vivo, o acima, o obituário é sempre so- é, de modo geral, um completo
obituarista começa a pensar que bre alguém famoso, poderoso ou anônimo, pois os obituários não
essa pessoa de fato já morreu, importante em alguma medida; costumam ser assinados por
internaliza mesmo essa mor- já o perfil, não, ele pode tratar seus autores. Nesse sentido, ele,
te ainda não ocorrida, criando, de pessoas anônimas, desde, apesar de singular, é uma pessoa
para si e para outros, situações naturalmente, que despertem o igual ao comum dos mortais.
verdadeiramente embaraçosas. interesse do autor e aceitem se O trabalho de Gay Talese, per-
E pior: não consegue reprimir tornar personagem de um texto feito sob todos os aspectos, dei-
o inconfessável desejo de que a dessa natureza. Como bem regis- xou-me entretanto uma dúvida
pessoa efetivamente morra, a fim tra o jornalista Sergio Vilas-Boas, que, para concluir, partilho com
de gozar o orgulho demasiada- autoridade no assunto, o perfil o leitor eventualmente curioso:
mente humano de ver seu texto atém-se à individualidade, mas haverá por acaso alguém que es-
publicado. Não bastasse isso, os não se restringe ao individualis- creva o obituário do obituarista?
demais jornalistas da redação mo anedótico, folclórico, idios- Mesmo anônimo, merecer, ele
muitas vezes fazem um bolão de sincrático. certamente merece. I
apostas sobre quem das pessoas A escritura tanto de obituá-
com obituário já pronto vai mor- rios como de perfis não é tarefa
rer primeiro, o que, convenha- fácil, como pode parecer aos me- Francisco Gil Messias, paraibano
da capital, é bacharel em Ciências
mos, definitivamente não é algo nos avisados. Talvez o perfil seja Jurídicas e Sociais pela Universidade
que possa ser considerado de mais difícil, por ser mais literário Federal da Paraíba (UFPB) e
bom gosto. do que jornalístico. De qualquer mestre em Direito do Estado, pela
O obituário, que talvez possa maneira, ambos exigem do autor Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). É membro da
ser incluído no gênero do jorna- criatividade, arte, informações Academia Paraibana de Filosofia e
lismo literário, é muito pareci- substanciosas, sensibilidade e do Instituto de Estudos Kelsenianos.
do com o perfil. Com uma fun- bom domínio da língua. Escre- Publicou os livros Olhares – poemas
damental diferença: enquanto ver sobre pessoas, mortas ou vi- bisssextos e A medida do possível (e
outros poemas da Aldeia). Mora em
aquele refere-se necessariamente vas, constitui sempre coisa muito João Pessoa (PB).

42 | João Pessoa, abril de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO

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