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6 editorial

Momo e as musas
O Carnaval, mesmo Telles. Clarice Lispector não
quando bordado a ouro e A festa brasileira por se furtou ao tema e escreveu
prata, é cultura popular nos “Restos do Carnaval”, um dos
clubes e, principalmente,
excelência, como se contos de seu livro Felicidade
nos becos, ruas e avenidas. diz, tem lugar cativo clandestina. No âmbito da lite-
Está para a música como a ratura dramática, Vinicius de
própria vida está para a arte na imaginação do Moraes, com Orfeu da Concei-
- e vice-versa. A festa brasi- ção, transfigurou o mito grego
leira por excelência, como
povo, e dos artistas de Orfeu, emprestando fanta-
se diz, tem lugar cativo na em particular, mas, ao sias carnavalescas atuais ao
imaginação do povo, e dos filho de Apolo.
artistas em particular, mas, longo de sua história Este espaço, evidente-
ao longo de sua história de mente, comporta um nú-
alegrias e tristezas, já deu
de alegrias e tristezas, mero mínimo de citações,
- e continua dando - panos já deu - e continua quando o assunto é Lite-
para mangas a muitos poe- ratura e Carnaval. Nas pá-
tas e escritores. dando - panos para ginas a seguir, o Correio
Manuel Bandeira escre- das Artes revela e comenta
veu um livro inteiro para
mangas a muitos novos detalhes deste trípli-
chamar de Carnaval, do qual poetas e escritores. ce “namoro” do Rei Momo
constam textos como “Poe- com as musas Melpômene,
ma de uma Quarta-feira Erato e Calíope. Trata-se
de Cinzas”. Carlos Drum- de uma modesta homena-
mond de Andrade também um pouco mais tarde, Jorge gem à criatividade do povo
fez poesia e crônica sobre Amado estreava no roman- brasileiro, como também
o assunto, a exemplo do ce com O país do Carnaval. aos “artistas da palavra”
poema “Um homem e o seu As meninas foi bem recebi- que vêm se inspirando em
Carnaval”, do livro Brejo do pela crítica, mas não falta nossa mais expressiva ma-
das Almas. Aníbal Machado quem aponte Antes do baile nifestação popular.
publicou o conto “A mor- verde como a melhor reunião
te da porta-estandarte” e, de contos de Lygia Fagundes O Editor

6 índice

, 4 @ 12 2 19 D 38
literatura artes cinema história
As relações não tão O escritor e artista plástico O escritor Thiago Andrade A ensaísta Ana Monique
perigosas assim entre W. J. Solha faz novo Macedo comenta a obra do Moura aborda os aspectos
Literatura e Carnaval são passeio pela história da arte, sueco Ingmar Bergman, históricos e literários
o tema da reportagem comentando obras-primas dono de vasta filmografia, relacionados à fábrica
assinada pelo poeta e de gênios dos segundo e na qual destacam-se, entre de tecidos da família
jornalista Linaldo Guedes. terceiro escalões. outros, Persona. Lundgren, em Rio Tinto.

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http://www.auniao.pb.gov.br Câmara Neto Azevedo
6 especial

Nos passos
de Momo Notas sobre o Carnaval
e sua representação na
literatura brasileira
Linaldo Guedes
linaldo.guedes@gmail.com

J
Fotos: reprodução internet

á imaginou nomes como Manuel Bandeira, Jorge Amado, Aníbal


Machado, Ruy Castro, Vinicius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Cla-
rice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Mário
de Andrade todos juntos num baile de Carnaval? Ou no sambódromo,
assistindo ao desfile de alguma escola de samba cujo mestre sala seria
Rubem Braga e a porta bandeira, Lygia Fagundes Telles? Esses exemplos
podem parecer meros artifícios da imaginação, mas,
na literatura nacional, tudo é passível de acontecer,
principalmente quando entram em cena esses gran-
des escritores e poetas. A representação do Carna-
val na literatura brasileira é rica de romances, de poemas, de
contos, sim. Na literatura e na música também. Parodiando o
“passista” Chico Buarque de Holanda, abram alas, porque o
estandarte do sanatório geral carnavalesco vai passar agora
nas páginas do Correio das Artes, com muito confete e serpenti-
na, muita prosa e poesia.
O escritor premiado nacionalmente, com textos estudados
em diversas universidades brasileiras, e professor da Univer-
sidade Federal da Paraíba (UFPB), Rinaldo de Fernandes, des-
taca que o Carnaval é representado, em nossa literatura, como
um fator importante da identidade nacional. Como símbolo da
festa, da alegria, da descontração ou mesmo do congraçamen-
to, o que remete à “cordialidade” do brasileiro. Mas há outras
estratégias usadas, segundo ele, que valem a pena registrar.
Rinaldo ressalta, a título de exemplo, que o Carnaval apa-
rece como leitura da natureza humana em “Antes do baile
verde”, um dos mais importantes contos de Lygia Fagun-
des Telles. No conto há o embate entre princípio de prazer c

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c e princípio de realidade. A per-
sonagem principal, filha de um
enfermo em estado terminal, não
quer perder o Carnaval em hipó-
tese alguma. Embora sinta raiva,
manifeste irritação e até rispidez
com a situação, ela na realidade
processa uma culpa por ter que
abandonar o pai já agonizando.
E, mesmo culpada, não mede a
ação: deixa o pai e foge para a
festa. “É um conto impiedoso”,
define o escritor. Vale a pena Chico Buarque de
lembrar um trecho do conto: Holanda compôs
músicas antológicas
sobre o Carnaval
Um carro passou na rua, bu-
zinando freneticamente. Alguns
meninos puseram-se a cantar aos Quem me vê sempre parado,
gritos, o compasso marcado pelas Distante garante que eu não sei sambar...
batidas numa panela: A coroa do rei Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar
não é de ouro nem de prata… Eu tô só vendo, sabendo,
Sentindo, escutando e não posso falar...
Da literatura para a música, Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar
Rinaldo cita, agora, Chico Buar-
que que, para ele, representa o Eu vejo as pernas de louça
Carnaval de forma politizada. “A Da moça que passa e não posso pegar...
letra de ‘Quando o carnaval che- Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar
gar’, composta em 1972 para o fil- Há quanto tempo desejo seu beijo
me de mesmo nome de Cacá Dié- Molhado de maracujá...
gues, é um bom exemplo dessa Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar
politização. Nela o Carnaval – e
lembre-se de que quando a letra E quem me ofende, humilhando, pisando,
é produzida vivíamos o período Pensando que eu vou aturar...
mais pesado da ditadura – re- Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar
presenta não só um espaço/mo- E quem me vê apanhando da vida,
mento de congraçamento que ex- Duvida que eu vá revidar...
pressa uma outra ordem social, Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar
uma sociedade mais democrá-
tica, mas é também o momento
de desafogar, de desabafar (pela
dança, pelo canto, enfim, pela Outro professor da Universidade Federal da Paraí-
festa) as opressões no cotidia- ba entra no samba para mostrar seu gingado na análi-
no. Os versos finais dessa com- se da representação do Carnaval em nossa literatura,
posição dizem: ‘Eu tenho tanta em nossa música. Também poeta e crítico literário de
alegria, adiada, abafada, quem renome nacional, Amador Ribeiro Neto lembra que o
dera gritar/ Tou me guardando Carnaval é tematizado na literatura brasileira da crô-
pra quando o Carnaval chegar’”, nica ao romance, do conto ao poema, do teatro à can-
analisa. Não só este final, mas a ção. “É presença pulsante em nossa cultura literária.
letra toda é antológica. Vejamos Há o sempre lembrado ‘O País do Carnaval’, de Jorge
outros trechos: Amado, romance que gravita na esfera ideológica: ao
invés de incorporar a linguagem do Carnaval, cria
duas personagens, uma cerebral e outra irracional,
que se digladiam o tempo todo indagando se a festa
de momo é ou não alienação do povo. Coisa panfletá-
ria de contador de histórias”, teoriza.
O País do Carnaval foi o primeiro romance escrito
por Jorge Amado, publicado em 1931. Paulo Rigger é
o personagem principal do livro. Ele deseja participar
Lygia Fagudes Telles, da vida política e intelectual do país. Através do Car-
autora de Antes do naval, protesta contra a mestiçagem que acha ser um
baile verde (Editora forte fator de atraso do Brasil. Consta que, em 1937,
Bloch, 1970)
O País do Carnaval foi queimado em praça pública, c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 5


c em Salvador, por determinação na favela. Por isso mesmo o sub-
da polícia do Estado Novo, por título é “tragédia carioca”. “O au-
ser considerado subversivo. Vale tor mescla romantismo engajado
conferir um trecho: com coloquialismo enferrujado.
O resultado agrada aos momos
Entre o azul do céu e o verde do de plantão ao unir o social trági-
mar, o navio ruma o verde amarelo co e pobre ao amor idealizado”,
pátrio. Três horas da tarde. Ar para- observa. Orfeu da Conceição é
do. Calor. No tombadilho, entre fran- uma peça teatral escrita por Vini-
ceses, ingleses, argentinos e ianques cius de Moraes, em 1954, baseada
está todo o Brasil (evoé, Carnaval!). no drama da mitologia grega. A
Fazendeiros ricos de volta da Euro- trilha sonora da peça foi lança-
pa, onde correram igrejas e museus. da em vinil no ano de 1956, pela
Diplomatas a dar ideia de manequins Odeon, com música escrita por
de uma casa de modas masculinas... Antônio Carlos Jobim e letra de
Políticos imbecis e gordos, suas ma- Vinicius. Em 1959, baseado na
gras e imbecis filhas e seus imbecis peça, foi lançado o filme Orfeu
filhos doutores. negro, premiado com a Palma
de Ouro, o Oscar e o Globo de
Amador não se esquece de Ouro. Em 1999 foi lançado o se-
citar outra obra clássica, Orfeu gundo filme baseado na peça,
da Conceição, de Vinicius de Mo- chamado de Orfeu, dirigido por
raes, que parte dos mitos gregos Cacá Diegues, com música de
de Orfeu e Eurídice e transfere a Caetano Veloso. Para quem não
tragédia para um dia de carnaval conhece, eis um trecho:

Como essas estragadas vozes mu-


latas estalam e se arrastam no ar, se
partem dentro das gargantas ver-
melhas. Os tambores surdos fazem
o mundo tremer em uma cadência
O Carnaval também negra, absoluta. E no fundo a cuíca
está presente em geme e ronca, nos puxões da mão
frevos, sambas e
canções de Caetano
negra. As negras estão absolutas
Veloso com seus corpos no batuque. Vede
que vasto crioulo que tem um paletó
Mulata, pele escura, dente branco que foi dólmã de soldado de Exérci-
Vai teu caminho to Nacional, tem gorro vermelho,
que eu vou te seguindo no pensamento calça de casemira arregaçada para
e aqui me deixo rente quando voltares, cima do joelho, botinas sem meias,
pela lua cheia e um guarda-chuva preto rasgado, a
Para os braços sem fim do teu amigo boca berrando, o suor suando. Como
são desgraçados e puros, e aque-
Vai tua vida, pássaro contente la negra de papelotes azuis canta
Vai tua vida que estarei contigo! como se fosse morrer. Os ranchos
se chocam, berrando, se rebentam,
se misturam, se formam em torno
Nessa linha temática, Amador menciona, ainda, as do surdo de barril, à base de cuícas,
crônicas genuinamente sócio-antropológicas de Ru- tamborins e pandeiros que batem
bem Braga, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, e tremem eternamente. Mas cada
Antônio Maria, João do Rio, Ivan Lessa, etc. “Ninguém rancho é um íntegro, apenas os cor-
nega que sejam bons cronistas. Mas quando falam so- dões se dissolvem e se formam sem
bre o Carnaval sucumbem na armadilha da sedução cessar, e os blocos se bloqueiam.
do tema pelo tema”, critica.
Lembremos um texto clássico sobre o Car- Da prosa para a poesia, Ama-
naval, no caso “Batalha do Largo do Machado”, de dor faz sambar na passarela, ago-
Rubem Braga: ra, Carnaval, de Manuel Bandeira, c

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Para Amador, nossos grandes
nomes ligados à carnavalização
não necessariamente tomaram
o Carnaval como tema. “Exem-
plo disso temos nos romances
e poemas de Oswald, no Macu-
naíma de Mário, no Zero de Ig-
nácio de Loyola Brandão, em O
caderno rosa de Lory Lamby, de
Hilda Hilst, os contos e poemas
Em 1919, o poeta
Manuel Bandeira
de Wilson Bueno, a obra inclas-
lançou o livro de poesia sificável de Valêncio Xavier, no
intitulado Carnaval romance Sangue de coca-cola e no
livro de contos A morte de DJ em
Paris, de Roberto Drummond,
nos romances Abacaxi, Tanto faz
c que, embora muito criticado por navalizada. Aí reside seu mérito. e Pornopopeia, de Reinaldo Mo-
vários setores da crítica literária, Na verdade, tematizar o Carnaval rais, em toda a poesia de Zuca
é um grande livro com exímios é coisa para sociólogo. Literato Sardan. Assim como em todo o
poemas como “Pierrot branco”, precisa carnavalizar a linguagem movimento Tropicália, tanto nas
“Os sapos”, “Arlequinada’, “Ba- para fixá-la como valor estético. O artes plásticas como na música
canal”, “Sonho de uma terça-feira mais são momices e ouro de tolos popular, no cinema, no teatro,
gorda”. “É que Bandeira faz o es- cafuçus das letras”, detona. na moda. Os frevos de Caetano
sencial: incorpora a libertária e Vale a pena recordar um des- Veloso tematizam e incorporam
anárquica visão carnavalesca a ses poemas de Bandeira, como recursos da carnavalização. Cer-
uma linguagem igualmente car- “Arlequinada”: tos sambas de Chico Buarque,
marchinhas de Antônio Nássara,
Haroldo Lobo, Lamartine Babo,
Que idade tens, Colombina? Infantil é o teu sorriso. Noel Rosa, Braguinha, entre ou-
Será a idade que pareces? Na cabeça, essa é de vento: tros poetas da canção popular,
Tivesses a que tivesses! Não sabe o que é pensamento levam o Carnaval para a lingua-
Tu para mim és menina. E jamais terá juízo... gem musical com maestria criati-
va. Enfim, nossa literatura vai de
Que exíguo o teu talhe! E penso: Crês tu que os recém-nascidos mal a melhor quando se trata de
Cambraia pouca precisa: São achados entre as couves? Carnaval”, contextualiza.
Pode ser toda num lenço Masvejo que os teus ouvidos Para entrar no ritmo do Carna-
Cortada a tua camisa. Ardem... Finges que não ouves... val, vale a pena recordar outros
textos e referências literárias.
Teus seios têm treze anos. Perdão, perdão, Colombina! Como “A morte da porta-estan-
Dão os dois uma mancheia... Perdão que me deu na telha darte”, de Aníbal Machado:
E essa inocência incendeia, Cantar em medida velha
Faz cinza de desenganos... Teus encantos de menina... Por que não se incorporou ao
seu bloco? E por que não está dan-
O teu pequenino queixo çando? Há pouco não passou uma
- Símbolo do teu capricho - morena que o puxou pelo braço,
É dele que mais me queixo, convidando-o? Era a rapariga do
Que por ele assim me espicho! momento, devia tê-la seguido… Ah,
negro, não deixes a alegria morrer…
Tua cabeleira rara É a imagem da outra que não tira do
Também ela é de criança: pensamento, que não lhe deixa ver
Dará uma escassa trança, mais nada. Afinal, a outra não lhe
Onde mal me estrangulara! pertence ainda, pertence ao seu cor-
dão; não devia proibi-la de sair. Pois
E que direi do franzino, ela já não lhe dera todas as provas?
Do breve pé de menina?... Que tenha um pouco de paciência:
Seria o mais pequenino aquele corpo já lhe foi prometido,
No jogo da pampolina... será dele mais tarde…

Ou Carnaval no fogo, publica-


Ruy Castro, autor de do em 2003, onde Ruy Castro
Carnaval no fogo
(Companhia das
retrata o Rio de Janeiro como
Letras, 2013) palco de perigos e prazeres. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 7


c Não podemos esquecer da Deus me abandonou
grande Clarice Lispector e seu no meio da orgia
“Restos de Carnaval”: entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Não, não deste último carnaval. Sem olhos, sem boca
Mas não sei por que este me trans- sem dimensões.
portou para a minha infância e para As fitas, as cores, os barulhos
as quartas-feiras de cinzas nas ruas passam por mim de raspão.
mortas onde esvoaçavam despojos de Pobre poesia.
serpentina e confete. Uma ou outra
beata com um véu cobrindo a cabe- O pandeiro bate
ça ia à igreja, atravessando a rua tão é dentro do peito
extremamente vazia que se segue ao Em uma crônica antiga, Nel- mas ninguém percebe.
carnaval. Até que viesse o outro ano. son Rodrigues (foto acima) fala Estou lívido, gago.
E quando a festa ia se aproximando, do Carnaval de 1919 no Rio de Ja- Eternas namoradas
como explicar a agitação íntima que neiro, Não é muito otimista, mas riem para mim
me tomava? Como se enfim o mundo vale conferir um trecho: demonstrando os corpos,
se abrisse de botão que era em gran- os dentes.
de rosa escarlate. Como se as ruas e E tudo explodiu no sábado de Impossível perdoá-las,
praças do Recife enfim explicassem Carnaval. Vejam bem: — até sexta- sequer esquecê-las.
para que tinham sido feitas. Como -feira, isto aqui era o Rio de Macha-
se vozes humanas enfim cantassem a do de Assis; e, na manhã seguinte, Deus me abandonou
capacidade de prazer que era secreta virou o Rio de Benjamin Costallat no meio do rio.
em mim. Carnaval era meu, meu. ou, ainda, do Theo Filho. — “Caí- Estou me afogando
mos muito de categoria”, dirão vocês. peixes sulfúreos
Respondo que até um verso de jornal ondas de éter
de modinha, ou uma manchete de O curvas curvas curvas
Dia, tem a sua dimensão sociológica. bandeiras de préstitos
Desde as primeiras horas de sábado, pneus silenciosos
houve uma obscenidade súbita, nun- grandes abraços largos espaços
ca vista, e que contaminou toda a ci- Eternamente.
dade. Eram os mortos da espanhola
— e tão humilhados e tão ofendi- Aliás, Carlos Drummond
dos — que cavalgavam os telha- (foto abaixo) disse certa feita:
dos, os muros, as famílias.
Nada mais arcaico do que o pu-
dor da véspera. Mocinhas, rapazes,
Mário de Andrade (foto aci- senhoras, velhos cantavam uma mo-
ma) lembra o “Rei Momo”. E Ce- dinha tremenda. Eis alguns versos:
cília Meireles traz os acordes de — “Na minha casa não racha lenha./
“Depois do Carnaval”: Na minha racha, na minha racha./
Na minha casa não falta água. / Na
Neste país tão avançado e liberal minha abunda.” etc. etc. As pessoas
— segundo dizem — há milhares se esganiçavam nos quatro dias; e iam
de corações imperiais, milhares de assim de paroxismo em paroxismo.
sonhos profundamente comprimi- Nos carnavais seguintes, a cidade
dos mas que explodem, no Carna- teve medo dos próprios abismos; hou-
val, com suas anquinhas e casacas, ve um certo recuo. Mas o Rio de Ma-
cartolas e coroas, mantos roçagantes chado de Assis, ou de Macedo, ou sei O povo toma pileques de ilusão
(espanejemos o adjetivo), cetros, lu- com futebol e carnaval. São estas as
lá, estava morto. O que quero dizer,
vas e outros acessórios. suas duas fontes de sonho.
ainda, sobre o Carnaval da espanhola
é que foi de um erotismo absurdo. Daí
Num país envolto em sucessi-
a sua horrenda tristeza. Disse não sei
vos escândalos, com o descrédito
quem que o desejo é triste. E nunca de instituições importantíssi-
se desejou tanto como naqueles qua- mas, ainda resta a ilusão do Car-
Linaldo Guedes é poeta,
jornalista e autor, entre
tro dias. A tristeza escorria, a tristeza naval. Pena que tudo se acaba
outros livros, de Os zumbis pingava, a alegria era hedionda. na quarta-feira de cinzas. Mas é
também escutam blues bom saber que depois das cin-
e outros poemas (1998),
Esse tom melancólico surge, zas nossos grandes escritores e
Metáforas para um duelo
no sertão (2012) e Taras também, na poesia de Carlos artistas estarão eternizando tais
e outros otimismos (2016). Drummond de Andrade. Como momentos na poesia, no teatro,
Mora em João Pessoa (PB). em “O homem e seu carnaval”, no romance, no conto, na música.
do livro Brejo das almas, de 1934: Evoé, Momo! I

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6 entre os livros
Expedito Ferraz Jr.
expeditoferrazjr@gmail.com

Um elogio
da leveza:
a propósito das
Fábulas portáteis, de André Ricardo Aguiar

E stávamos a quinze anos do início deste século quan-


do o escritor Ítalo Calvino, convidado a ministrar
conferências numa universidade dos EUA, anotou
suas “lições americanas”. Dos seis temas previstos,
ele nos deixou concluídos cinco, que sequer che-
garam a ser apresentados, mas foram publicados
buir a priori ao estilo de um autor;
nem uma impressão de leitura que
resulte de suas escolhas temáticas
ou de seu posicionamento ideoló-
gico. É antes um efeito a ser cons-
truído a partir do trabalho que se
postumamente (Seis propostas para o próximo milênio, desenvolve sobre o texto: “no mais
Companhia das Letras, 1990). As lições de Calvino das vezes...”, explica Calvino, “mi-
para o milênio que ele não viu nascer consistem de nha intervenção [como escritor de
uma enumeração de atributos considerados por ele ficção] se traduziu por uma sub-
fundamentais para a literatura de nosso tempo, a sa- tração do peso; esforcei-me por re-
ber: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade tirar peso, ora aos corpos celestes,
e consistência (este último, não desenvolvido). Não se ora às cidades; esforcei-me sobre-
trata, evidentemente, de uma tábua de leis, mas de tudo por retirar peso à estrutura
um depoimento, fartamente exemplificado, das ex- da narrativa e à linguagem”.
periências de um leitor que nos interessa, sobretudo, Pois bem, tendo me ocorrido a
por ter estado envolvido, com reconhecido êxito, ao associação, me propus ler os con-
longo da vida, na dinâmica da criação literária. tos de André Ricardo na chave
Reproduzo, em linhas breves, a história desse li- desse elogio da leveza. Leitura que
vro, a propósito de outro, que me chegou às mãos posso reorganizar, agora, em dois
neste final de 2016. Refiro-me às Fábulas portáteis, movimentos simultâneos e entre-
do paraibano André Ricardo laçados: uma rápida pesquisa de
Aguiar (ed. Patuá), cuja lei- elementos que invoquem, como
Foto: Marcos Russo

tura me trouxe à lembrança, conceito ou imagem, o tema em


mais de uma vez, a primeira destaque; e um segundo olhar, vol-
das lições de Calvino. Mas, tado pontualmente para procedi-
antes de prosseguir com o mentos e invenções de linguagem
comentário, é preciso adver- que, de alguma maneira, endos-
tir que o conceito de leveza, sem, no nível da escritura, essas
como o autor das Seis propos- reiterações. Comecemos então por
tas o considerou, deve repelir onde se começa qualquer leitura,
de imediato qualquer aproxi- e notemos que as Fábulas já estão,
mação com facilidade ou bana- desde a capa do livro, definidas de
lidade. Assim como as demais modo estranho e sugestivo: elas
qualidades ali destacadas, o são portáteis. O título da coletânea
que se define nesse caso não parece brincar de se fingir redun-
é algum traço espontâneo ou dante, porque afinal, se tomarmos
intuitivo que se possa atri- o adjetivo em seu significado pri-
meiro – e, por assim dizer, literal
–, como qualidade do que se pode
transportar sem esforço (o que, es-
André Ricardo Aguiar, autor de
pecialmente no contexto da indús-
Fábulas portáteis (Editora Patuá, tria e do consumo tornou-se uma
São Paulo, 2016) espécie de valor mercadológico c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 9


6 entre os livros
Foto: reprodução internet
c do nosso tempo); e se esse mesmo mal”. Não por acaso, justamente
sentido for pensado ainda como um gato, sensitivo e misterioso
atributo físico do livro impresso, – espécie de sismógrafo vivo – será
que é a mídia em que se veiculam tomado como o elemento deses-
essas histórias, será difícil imagi- tabilizador da rotina familiar em
nar quaisquer outras fábulas que “Pequenos terremotos”, primeiro
não tivessem tal característica. Por conto da coletânea. Não por aca-
que, então, enfatizá-la? so, ele é a única das personagens
Acontece que esse mesmo ad- que vemos transcender o espaço
jetivo, na posição de destaque em claustrofóbico da casa para des-
que ocorre, é também um convite crever um movimento de agili-
para que transportemos a lingua- dade e leveza, em que (atente-se
gem para outros territórios. E, sa- para o reforço dessa impressão na
bendo que a metáfora é ela mesma estrutura da frase, graças ao po-
transposição, mudança de lugar, vale- lissíndeto) “salta a janela e ganha
mo-nos aqui do sentido figurado o telhado e vê o mundo e as ando-
em que se costuma falar de coisas rinhas e outros telhados...”.
que se levam na memória. Assim, Avançando na leitura, veem-se
serão portáteis os contos que forem outras tantas passagens associá-
Italo Calvino (1923-1985), autor
também memoráveis, os que puder- de Seis propostas para o próximo
veis ao que Calvino chamaria de
mos trazer conosco. O que atuali- milênio (Companhia das Letras, 1990) subtração do peso, seja no plano fic-
za e inverte, de certa forma, aquele cional (do que se narra) ou no nível
primeiro sentido, pois, se no uni- da expressão. Nas Fábulas portáteis,
verso da mercadoria, o portátil é a leveza transita sem aviso entre o
também frequentemente mais frá- concreto e o abstrato, entre o lite-
gil e descartável, quando se trata ral e o metafórico. Assim é que, no
de narrativas, o que se pode levar referido inventário poético, outro
é precisamente aquilo que perma- elemento da mobília doméstica,
nece. Não é o que tem ocorrido, a cama, será descrito como “uma
desde sempre, com as formas mais nuvem acolchoada” que “sofre a
tradicionais de narrativas (incluí- vertebrado da pequena fauna de emboscada de quem a levite” (os
das aí as fábulas, a que o título quatro pés, em que uma patética grifos são meus). No conto “Casa
remete)? Fato é que, em qualquer imobilidade permite o pouso das de bonecas”, não só o espaço físico,
desses dois contextos (o do trans- nádegas ou a polinização da poei- mas a própria condição existen-
porte físico ou o da memória), se ra...”. O detalhe a anotar é que, ao cial das personagens (seu tédio,
há uma característica incompatí- final, a estranheza dessa definição sua resignação, sua irritação com
vel com a portabilidade, trata-se do desemboca numa sutil ousadia possíveis intervenções do desti-
peso (o dos objetos; o das visões estilística: “... a assombrosa mo- no) está representada numa espé-
de mundo; o das construções li- notonia das reuniões de família, cie de hipérbole da redução, em que
terárias). Retornamos assim à os indesejáveis concílios de fazer o cotidiano surge transfigurado
poética de Calvino, para indagar sala para as visitas, a morte sú- pela fragilidade de uma vida em
dos meios por que André Ricardo bita de uma tia encostada, etc e miniatura. Em “Carmela”, diz-se
opera, em seus contos, a mencio- gatos” (grifo meu). do protagonista, morto, que “saiu
nada “subtração”, para alcançar Na estrutura resultante, o últi- andando a esmo, deixando o seu
a leveza que, desde o título, sua mo termo ocupa um dos dois la- corpo em stand-by”. Em “Com-
obra nos sugere. dos, bastante assimétricos, de uma pulsão”, descreve-se uma espécie
Em Fábulas portáteis, há uma longa enumeração, equiparando- de esvaziamento de um sujeito
espécie de pequeno inventário – -se em importância, ou mesmo (“João tem compulsão pela coisa
uma série de definições criativas contrastando com todo o conjun- vaga. Pela vida indefinida e pelas
de coisas como que arroladas ar- to que o precede – o das tediosas opiniões vazias.”), motivado pela
bitrariamente (sofá, despertador, situações domésticas, seja porque interpretação literal de um elogio
ovo, cama, chuveiro, escada ro- o arranjo das palavras quer fazer banal ouvido de uma professora
lante, tamanduá, sombra) – que jus à conhecida insubmissão des- na infância (“João, você não exis-
se interpõem às narrativas, enfei- ses felinos; ou porque, num con- te”). Já em “Uma história de escu-
xando-as em pequenos conjuntos. traponto com o peso das relações ridão”, o que se coloca em dúvida
A primeira delas, ao tempo em humanas ali retratadas, caberia é a existência física de uma velhi-
que prenuncia a dominância dos a esse outro integrante da “pe- nha que “viveu toda a vida no país
espaços domésticos e da atmosfe- quena fauna”, figurar como uma do escuro”, pois “sofre de uma
ra familiar nos contos que a suce- imagem-síntese de leveza e movi- hipersensibilidade à luz” (“Não
dem, inaugura o tom de liberdade mento, em nítido contraste com a existe ninguém ali, só a mistu-
poética que marca todo o volume, “patética imobilidade” que o autor ra do dia com a noite...”). Não há
ao definir “sofá” como “animal atribuíra àquele primeiro “ani- dúvida: estamos num universo de c

10 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 entre os livros
Foto: Marcos Russo

c figuras flutuantes, de existência


tênue, de seres avessos à gravidade.
Há também uma dimensão que
se pode chamar de metafísica nes-
sa figura da leveza. Por vezes, as
coisas surgem subtraídas de suas
funções utilitárias, destoando de
uma possível representação con-
vencional da realidade: um reló-
gio “sem noção de tempo” (“Férias
do relógio”), espelhos “para não
refletir” (“As aparências não en-
ganam”), um metrô fixo, “para os
sem destino” (“Observações me-
troviárias”). Privadas de suas fun-
ções, elas como que se libertam do
sistema das relações lógicas a que
deveriam estar conectadas, produ-
zindo certo efeito de perplexidade Em suas Fábulas, André conquista o riso
no leitor, mas também refletindo o nagem que foi contratada para tra- do leitor com uma ironia sutil, humor
descompromisso desse gênero de balhar numa casa constantemente trágico e o mais cortante sarcasmo
narrativas (que se movem naquele às escuras; Vecchio, o nome de um
arco todoroviano entre o estranho e rei (evidentemente velho) que se
o poético) com a concretude do real nega a receber a Morte. Assim
– vale dizer: com aquilo que Cal- como também soa irônico o nome
vino descreveu como um peso a da personagem na primeira fra-
ser evitado. “Logo me dei conta de se de “Casa de bonecas”: “Hermes
que entre os fatos da vida, que de- tenta não contar para ninguém”.
viam ser minha matéria-prima, e Dos nomes próprios, passamos às
um estilo que eu desejava ágil, im- situações cômicas e à intertextua-
petuoso, cortante, havia uma dife- lidade burlesca: em “Pequenos ter-
rença que eu tinha cada vez mais remotos”, o narrador afirma que
dificuldade de superar. Talvez que “o gato enlouquecera dois graus mo a posse de pessoas, como se
só então estivesse descobrindo o acima da escala de Richter”. Em elas fossem bichos ou coisas.
pesadume, a inércia, a opacidade “Labirinto”, Dédalo se transfor- Ainda nesta chave de leitura,
do mundo – qualidades que se ma em minotauro (ao menos vê e para concluirmos, há um con-
aderem logo à escrita, quando não nascerem-lhe chifres) ao flagrar to a ressaltar, na coletânea, como
encontramos um meio de fugir a a traição de Ariadne. Em “O pro- exemplo e síntese do que vimos
elas” (Seis propostas... p. 16). blema do avô”, sem mais utilida- até aqui descrevendo: chama-se
Outro recurso bem conhecido, de, um velho é mumificado vivo e “Autoajuda”. O contexto ficcional
que também atua em favor dessa guardado no armário da família. é o de uma espécie de preleção da
insubmissão ao real, é o humor, Sem resistir à fome, o irmão caçu- voz narrativa, dirigida a um in-
que descontrai a leitura e nos de- la de Joãozinho desenterra e come terlocutor sem voz manifesta no
sobriga, ainda que momentanea- os feijões mágicos, numa paródia texto, pouco antes de um confron-
mente, de embrenharmo-nos em cruel do conto famoso. Em “K”, to entre homem e animal, numa
graves exercícios de racionalismo um inseto devaneia sobre acor- tourada. Mas entra aí uma criativa
e de argumentação, mesmo quan- dar metamorfoseado em Gregor relativização de perspectivas, pois
do os temas e as situações descri- Samsa. Mas nada disso é tão sutil é ao touro que se destina esse dis-
tas têm seu peso. O humor costu- e engenhoso quanto o trocadilho curso. É, ironicamente, ao corpu-
ma abolir, ou pelo menos atenuar, escondido em “O anão roubado”, lento animal – a que se contrapõe,
certa pretensa profundidade do em que, autorizados pela própria em geral, a figura esguia, ágil, até
discurso literário, sempre carre- atmosfera nonsense da narrativa, franzina do toureiro – que a voz
gado de verdades para nos dizer. vemos o substantivo do título narrativa dirige este conselho:
Nas Fábulas de André Ricardo, o se abrir à leitura alternativa de “Descreva um arco de intenções,
riso do leitor será conquistado com um neologismo: uma partícula e pense leve”. Princípio do touro,
movimentos distintos em graus e a (com sentido de privação) se princípio da narrativa. I
tonalidades, que vão de uma sutil conecta ao advérbio não, produ-
ironia ao humor trágico, e desse ao zindo um corpo estranho verbal
mais cortante sarcasmo. Veja-se, que expressaria certa negação da Expedito Ferraz Jr. é poeta e
nesse aspecto, a ironia que trans- negação, em tudo coerente com professor de Teoria Literária da
Universidade Federal da Paraíba. Em
parece na escolha das formas ver- a história de um pai que nada 2014 publicou Poheresia (A União).
bais: Luzia é o nome de uma perso- pode negar ao filho – nem mes- Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 11


6 ensaio-ilustrado

Obras-primas
de gênios
do segundo e terceiro escalões

W. J. Solha
Especial para o Correio das Artes

Passamos a vida ouvindo os mesmos nomes: Leonardo, Van Gogh, Miguelânge-


lo, Cézanne, Caravaggio, Rembrandt, Manet, Monet, Renoir, El Greco, Velázquez,
Goya, Rafael, Bosch, Brueghel, mas é fascinante a surpresa que se tem, frequente-
mente, com magníficas obras produzidas por artistas fora dessa linha de frente.
Que tal, por exemplo, o russo Ilia Repin, com esta impressionante cena em que
Ivan, o Terrível, acaba de matar o filho?
Fotos: reprodução internet

Gosto muito, também, deste A visitação, de Jacopo da Pontormo (Florença, 1494–1566):

O encontro entre Maria, virgem, e Isabel, idosa - am-


bas milagrosamente grávidas -, é de grande beleza, não
só pela visível emoção das duas, como pelo notável uso
da luz, cor, movimento e pelo contraponto obtido com
a presença das duas outras mulheres que, em segundo
plano, olham pra nós, colocando-nos dentro do quadro. c

12 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c Já Samuel van Hoogstraten (1627–1678), entre outras coisas, costumava pintar fan-
tásticas naturezas-mortas como esta, de uma minúcia e realismo extremos, com trom-
pe l´œil – ilusão de realidade – trabalhando com miscelâneas de objetos.

Foi um gênero de sucesso, e ele teve excelentes imitadores, como Cornelis Norbertus Gysbrechts.

Já o Gerard van Honthorst (1590–1656) pintava como se flagrasse seus personagens na


fugacidade de um gesto ou expressão.
c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 13


c

Este seu Violinista risonho é maravilhoso


e – pela forma e conteúdo - me lembra muito o Luiz Fernando Guimarães:

A representação do ser humano sempre fascina. Veja alguns retratos de Fayum, sobre ma-
deira, pintados em esquifes de múmias do Egito romano, em torno do século II de nossa era.

14 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c Ainda do Egito: impressionantes, os olhos deste rei de Auibre Hor, século XVII a.C.

Conhece Rousseau? É obra de


Houdon, que jamais se ombreou a Bernini ou Rodin, mas que também foi genial. Bem mais famoso que
Giuliano Finelli, que nos deixou este delicadíssimo trabalho.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 15


c Às vezes a graça de um quadro não é só no sentido de gracioso, mas também de engraçado,
como me parece o caso de O poeta pobre, abaixo, de Carl Spitzweg:

Já o Georges de La Tour é fantástico por suas cenas iluminadas apenas por uma vela. O importante
detalhe, no caso, é o da mão translúcida do menino Jesus ante a chama.

Há obras de arte que têm a ver com o mistério, como o Zeus (ou Poseidon) de bronze, de
460 a.C, tirado ao mar de Anticítera.

16 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c Essa peça tem muito dos bronzes – também de 460 a.C – também encontrados no fundo

do mar, desta vez na Calábria.

Claro que, nos dias de hoje, a escultura hiper-realista de Ron Mueck, impressiona,

mas há outros artistas na mesma linha, igualmente brilhantes, embora... apagados, como Evan Penny,

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 17


c

e Sam

Jinks. Na verdade, muito se buscou a beleza no realismo.
O que acha destas imagens veladas, em mármore, de Rafaello Monti? (século XIX)

E pense no realismo das ilustrações, quadrinhos e pinturas do paraiba-


no Shiko, na medida para encerrarmos o ensaio:

W. J. Solha e escritor, ator e artistas


plástico. Publicou, entre outras obras, Israel
Rêmora, A batalha de Oliveiros e Shake-up
(romances) e Trigal com corvos, Marco do
mundo e Esse é o homem (poesia). Mora em
I João Pessoa (PB).

18 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 cinema

Ingmar Bergman: “O rosto


humano é o grande sujeito

Bergman
do cinema. Ali está tudo”

A sondagem implacável selo, Gritos e sussurros, Fanny


e Alexander, entre outros. Per-
de nossas entranhas sona, entretanto, parece ser o
que mais sintetiza o universo
psicológicas bergmaniano: nele enxerga-
mos os temas recorrentes em
Thiago Andrade Macedo
Especial para o Correio das Artes quase toda a obra do diretor,
profundamente marcada pela
sondagem psicológica dos

O
grande trunfo do mais famoso cineasta sueco de personagens (angústia exis-
todos os tempos – Ingmar Bergman (1918-2007) tencial, busca de uma iden-
– sempre foi o rosto humano. Seus close ups dos tidade, incomunicabilidade,
mais variados atores e atrizes, que com ele tra- medo, sonho e pesadelo, dese-
balharam em sua longa e prolífica carreira, equi- jo castrado, culpa ocasionada
valiam a dizer, vulgarmente, que as faces eram pela incompreensível moral
os espelhos da alma. Nunca as expressões faciais cristã – o pai de Bergman foi
dos atores (demonstrando medo, angústia, hesi- um rígido pastor luterano). c
tação, dúvida) tinham sido Fotos: reprodução internet
mostradas com tantos de-
talhes no cinema. Em en-
trevista ao renomado críti-
co norte-americano Roger
Ebert (laureado com o Pulit-
zer), o sueco diria: “O rosto
humano é o grande sujeito
do cinema. Ali está tudo”.
A filmografia de Berg-
man tem filmes relevantes
em sua lista, sobejamente
aclamados pela crítica: Mo- Morangos silvestres, com Victor Sjöstrom,
rangos Silvestres, O sétimo Bibi Andersson e Ingrid Thulin

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 19


Persona, com Bibi O sétimo selo, com Gunnar
Andersson, Liv Ullmann e Björnstrand, Bengt Ekerot
Margaretha Krook e Bibi Andersson

c O filme é bastante provo- (justamente a que emudeceu) regado de significados (aten-


cativo (tem uma intrigante parece ser a mais forte das te para o menino que procura
edição de imagens em seu duas. O envolvimento tão o rosto de uma mulher – sua
início) e permite várias lei- próximo entre elas nos sugere mãe? –, em uma das memo-
turas, inclusive a literal, em uma forte atração física. ráveis e dolorosas cenas do
que pese a confusão provoca- À medida que Alma vai filme), é uma obra que causa
da pela montagem em alguns se despindo de suas cascas, inquietação, dúvida e ques-
espectadores. Em resumo, podemos sentir que ela vai tionamento em quem a visi-
basicamente, o enredo trata abandonando sua própria ta. Que saída cada uma das
de um bloqueio de fala que a “persona”: sua identidade mulheres escolherá para sua
atriz Elisabeth (Liv Ullmann, “concebida”, sua máscara vida? Será o emudecimento,
perfeita, sem falar nada e diante do mundo, que come- ou seja, a negação da própria
usando apenas expressões ça a ruir diante das mentiras linguagem e da comunica-
faciais) tem no meio de uma e enganos que dão sentido à ção, uma forma de recomeço?
apresentação da peça Electra. sua vida. Há cenas famosas Alguns filmes de Bergman
Bloqueio de fala proposital, que nos marcam para sempre: envelheceram com o tempo,
diga-se de passagem, uma para demonstrar sua visão da tornando-se datados e enfa-
vez que é um ato totalmente identidade em vias de decom- donhos. Persona, no entanto,
voluntário da atriz, cansada posição, em um dos clímax em tempos de pós-moder-
das mentiras do mundo da do filme, o diretor funde, de nidade, assume um caráter
linguagem verbal. forma inusitada, o rosto das visionário, se levarmos em
Uma psiquiatra acredi- duas em uma famosa imagem consideração a época em que
ta que pode ajudá-la, desde aterrorizante (ponto para foi produzido. A linguagem
que Elisabeth e a enfermeira o gênio da fotografia Sven utilizada pelo cineasta já es-
Alma (Bibi Anderson, im- Nykvist e sua longa parceria tava à frente de sua época.
pressionante) passem o verão com Bergman); em outro mo- Além disso, as grandes obras
em uma casa isolada em uma mento, Alma nos entrega um de arte viscerais perguntam
ilha. Aí começa o tour de for- monólogo forte e erótico em mais do que respondem.I
ce entre as duas atrizes/per- que narra um episódio de sua
sonagens: Elisabeth não diz vida ocorrido em uma praia,
nada, ao passo que Alma fala onde ela, uma amiga e dois
sem parar! Percebemos que jovens fazem sexo – a inter-
o filme inteiro será um tor- pretação de Bibi Anderson é
turante monólogo – no bom tão real que é como se esti-
sentido, é claro. Aos poucos, véssemos assistindo a tudo!
detalhes da vida de cada uma Magnífico e sombrio poe-
são revelados – entre eles, um ma visual sobre a alma huma- Thiago Andrade Macedo é escritor,
aborto e uma criança que nas- na, Persona foi um dos filmes- crítico de música e cinema. Entre
ceu deformada e foi rejeitada -chave dos anos 60 que não suas obras destaca-se o romance
O silêncio das sombras (Editora A
pela mãe. A princípio, temos se perderam no tempo e até União, 2014). Natural de Viçosa (MG),
a impressão de que Elisabeth hoje nos impressionam. Car- reside em João Pessoa (PB).

20 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


p o e s i a

Mercedes Cavalcanti (Pepita)


Sete Haicais da Saudade
Em memória de Ascendino Leite,
que viajou ao Paraíso.

1
Saudade, afeto que vive
Além, muito além,
Dos invólucros carnais.

2
Saudade é uma imagem
Eternamente ressuscitada
De um bem querer.

3
Saudade:
Inspiração do pincel,
Tateando um vazio
De tinta terminada.

4
Saudade é sentir na brisa
O perfume fresco
Da rosa fenecida.

5
Saudade é a fotografia
De uma ausência
Revelada na memória. ilustração: pepita

6
Saudade:
Reflexo que fica
Do espelho partido.

7
Saudade é o infinito Vazio,
Tatuado com sangue
Em minh’alma.

Mercedes Ribeiro Pessoa Cavalcanti é escritora e


artista plástica (assina Mercedes Cavalcanti na lite-
ratura e Pepita na arte). É professora da Universida-
de Federal da Paraíba (UFPB) e membro da Academia
Paraibana de Letras, União Brasileira dos Escritores
e Academia de Letras e Artes do Nordeste. Com pre-
miações nos gêneros romance, conto e poesia, publi-
cou, entre outros livros, O ouro dos dragões, A volú-
pia dos anjos, El manuscrito de Hannah e Feitiço da
palavra . Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 21


POE

Trata-se de uma espera? Luís Estrel


Em algum lugar
uma baleia dorme
em algum lugar
duas moscas copulam distraídas
e uma colher estridente vai ao chão
de uma cozinha distante
e uma velha chora calada
numa solidão ainda mais distante
e uma criança recebe o desenho
de cinco dedos em seu rosto
e sente no forte estalo
que a certeza do mundo
não existe mais e se dissolve
num choro para o nunca
poder existir
Em algum lugar
o sol brinca numa jaula de homens
e as sombras constroem sólidos incontornáveis
entre os silêncios de cada um
e uma mulher na janela imagina um trem
e a fumaça como nuvens de espanto
Em algum lugar E assim caminham os nossos pés
todas as coisas resolvem
empazinadas de distâncias caminhar com os próprios pés
se juntar isto parece frase fácil
e não fazer sentido algum pois se caminhamos ,
e noutro, caminhamos, ora essa,
cada uma em separado
mas a hora é outra
realizar todos os sentidos do mundo,
quase sempre não é nossa
inclusive os inimagináveis
estamos sempre numa outra hora
hora de quem caminha por nós
Que lugar é esse onde tudo pode ser possível
neste mundo que é de nossos pés
e imaginável?
ou deveria sê-lo
pois o triste e quase patético
E se isto aqui não faz sentido
e eu muito menos sentido ainda, é que embora os pés nos pertençam
em que lugar estou? ou imaginamos ser seus donos irrevogáveis ,
e você, de fato,
por que procura um lugar ? de fato ,
por que , um sentido ? o que nos acontece
por que acha que um poema é que cada vez mais
seja um lugar do sentido ? nos caminham
em algum lugar você deve estar cada vez mais
quando procura um lugar para o sentido os passos não são nossos,
do que lê diante de seus olhos possíveis as estradas e os caminhos
e eu te procurarei não os reconhecemos como nossos
em todos os lugares e a esmo, inamistosamente,
que não façam sentido igual bolinha doida de um flipper selvagem
( quem sabe eu encontre o tal do poema ...) e já antigo
vamos nos chocando e embaralhando pistas e
Em algum lugar dicas
Isto deve acontecer entre trajetos e percursos doloridos
Onde todos os lugares e mal percebemos
Possam existir que já não caminhamos
E não se machuquem tanto com os nossos
Em suas feridas incontornáveis, pés
Onde tudo e nada possam acontecer
Simultaneamente caminhar com os próprios pés
E em separado há que tê-los
?
Trata-se de uma espera

22 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


SIA

el a de Matos
ilustração: tonio

Piscinas cruéis
Estatuto
Está tudo
Ficando maior
Do que os braços
Permitem
É uma coisa interminável
E doentia

Estes leões a cada dia me aparecem por todos os lados


E os braços são dois sempre
Eles não aguentarão por muito tempo
Tanto esforço
Tanta repetição
Tanta coisa vã
Luís Estrela de Matos é poeta, con-
E este tsunami é por demais intenso tista e professor universitário. Co-
inteiro labora em alguns veículos midiáticos
Interminável e revistas virtuais, tanto no Brasil
como em Portugal. Mestre pela Uni-
Está tudo ficando pior versidade Estadual do Rio de Ja-
neiro (UERJ) na área de Literatura
Do que os braços Brasileira. Organiza um livro artesa-
Permitem nal de poemas escritos nos últimos
25 anos. Mora em Aracaju (SE).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 23


PO E SIA

Ana Magally
Rimas no telhado
Um poeminha sentou-se
a meu lado, esse poeminha
me sorriu umas letrinhas,
logo escutou um miado
um que vinha lá do alto,
correu, correu e viu um gato
era o gatinho Lincoln.

Daí fiquei assim, sozinho...


Sem um poeminha...
Sem um único versinho,
ah... Eu fiquei tão tristinho!
Mas mamãe sempre me disse:
- Vá atrás do sorriso principezinho!
E lá fui eu, lá em cima, entre o
ilustraçÃo: Toni Júnior
miau-miau uma linda poesia!

Ana Magally Freitas


nasceu (1994) e mora em
João Pessoa (PB). Escreve
poemas e contos, tendo duas
participações em antologias
poéticas. Atualmente usa as
redes sociais como forma
de disponibilização de seus
escritos.

24 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 convivência crítica
Hildeberto Barbosa Filho
hildebertobarbosa@bol.com.br

Verbo &
imagem
reeditado
A
s artes se correspondem, assegura Étien- acosta-se perfeitamente aos critérios estéticos e
ne Souriau, em seus Elementos de estética críticos acima esboçados, no tentame de trazer
comparada, perspectivando um sugestivo à discussão as possíveis relações entre a expres-
diálogo entre seus aspectos técnicos, es- são verbal da literatura e os apelos significantes
tilísticos e ideológicos. da imagem cinematográfica.
A pintura, por exemplo, possui um rit- Escrito em fins dos anos 60 do século passa-
mo interno, demarcando linhas e planos do, mas só publicado em 1984, numa edição da
numa espécie de musicalidade muda, po- SEC/DGC, a obra contém uma introdução teó-
rém, essencial à harmonia do quadro. Há rica a cargo dos três autores, e três capítulos,
algo da dança nos compassos intrínsecos assim distribuídos: “Hiroshima, meu amor”
à escala melódica do poema, assim como a (Jomard Muniz de Britto), “Vidas secas (Wills
visualidade e os cortes descontínuos do ci- Leal) e “Paisagismo funcional em Menino de en-
nema impregnam a textura verbal de mui- genho” (Virgínius da Gama e Melo).
tas obras literárias. Teoricamente, Jomard, Wills e Virgínius co-
Penso que o livro Verbo & imagem, assina- mungam dos postulados de uma estética antro-
do por Wills Leal, Jomard Muniz de Britto pológica, avessa aos purismos formais e ao iso-
e Virgínius da Gama e Melo, ora reeditado, lamento das linguagens artísticas, quer no que
tange às especificidades de seus procedimentos
expressivos, quer no que toca ao encon-
tro entre seus signos e símbolos com as
Fotos: arquivo a união/reprodução internet

Jomar:
“Hiroshima,
impurezas peculiares à realidade con-
meu amor é creta da vida e do mundo.
uma obra tanto Fundados em conceitos de Gillo
de Resnais
quanto de
Dorfles, entre outros estudiosos, os
Duras” três autores passam ao largo das rígi-
das classificações e evitam a redução
metodológica na análise da fenomeno-
logia estética, como que defendendo,
por conseguinte, uma visão compreen-
siva da arte modulada por uma “re-
flexão emotiva”, aberta, portanto, aos
lkjl dld sdlfs flsj sdlfjs fdsfj
empreendimentos transdisciplinares
dslfjdsf dsjfds dlsjfdsfljds
fdsfksdfkdsfsdfsdfksdç çlk com os quais, sem quaisquer precon-
ceitos exegéticos, a arte estabelece um
profundo e inesgotável diálogo com o
homem e seu destino histórico.
O ponto seminal da discussão – di- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 25


6 convivência crítica
problema da sutileza na adapta-
ção. “Hiroshima, meu amor - diz
ele - não é um filme ´adaptado`
da literatura, mas uma obra que
se escolheu-originariamente-
-poema. Fonte dupla de cria-
tividade: verbo e imagem. A
verbalização da imagem e a
visualização da palavra consti-
tuindo-se como essência-exis-
tência do filme-poema”.
Wills Leal, a seu turno, tam-
bém releva a singularidade es-
tética de cada obra, mas atenta,
em pormenores comprobató-
rios, para as afinidades e corres-
Virginius não faz uma Wills chama atenção pondências entre o romance e
abordagem comparativa do para a “construção o filme, afirmando categorica-
filme Menino de engenho, de cinematográfica” de
Walter Lima Júnior Vidas secas
mente que “Nelson Pereira dos
Santos era, sem dúvida alguma,
o cineasta ideal para levar ao
cinema o livro do famoso escri-
c gamos - propriamente técni- filme com todas as implicações que tor alagoano”. Também homem
ca, entre cinema e literatura, se exige de uma obra artística. de cinema, afeito ao culto dos
ou verbo e imagem, reside símbolos e das imagens, Wills
no problema da adaptação, E é exatamente isto o que Leal destaca pertinentemente,
em suas modalidades e seus nos revelam Jomard Muniz na arquitetura da narrativa de
efeitos, assim como no tema de Britto, quando coteja o ro- Vidas secas, o romance, alguma
das influências mútuas, ex- mance de Magueritte Duras coisa, uma espécie de “germe”
perimentadas no confronto com o filme de Alan Resnais, ou “construção cinematográfi-
das duas linguagens. André e Willis Leal, quando confron- ca muito mais do que literária”.
Bazin, por um lado, e Sergei ta Graciliano Ramos e Nelson Ao que acrescenta, na lucidez e
Eisenstein, por outro, assegu- Pereira dos Santos. ousadia de seu pensamento: “É
ram a base categorial que vai De outra parte, o crítico li- visualização em todos os qua-
servir, a cada um dos intér- terário Virgínius da Gama e drantes do drama, é o uso das
pretes, quando de suas abor- Melo, por sua vez, embora ob- cores, das imagens delineadas e
dagens especiais face às ten- serve a sonoridade e os ruídos, de concepções geométricas”.
sões temáticas e formais entre a visualidade e o cromatismo Dada à tradição de inegável
o filme e o romance. dramáticos na paisagem do consciência crítica e de rica e
O pressuposto geral, sobre- romance de José Lins do Rego, densa criatividade cinematográ-
tudo se se toma a obra literária pontuando, assim, seus sinais ficas, em âmbito local, nada mais
para a composição do filme, cinematográficos, não procede, salutar que essa reedição, na
como é o caso dos exemplos de fato, a uma leitura de caráter medida em que, examinadas e
apresentados no livro, parece comparativo, uma vez que não reexaminadas suas intervenções
encontrar-se nestas palavras se convoca, para o bojo do tex- teóricas e analíticas, vistos e re-
que retiro da “Introdução” e que to, o filme, Menino de engenho, vistos os filmes e lidos e relidos
evidentemente funcionam como de Walter Lima Júnior. os romances, possa se ampliar o
orientação disciplinar a cada Importa considerar na pers- diálogo crítico sobre cinema e li-
exercício de análise crítica: pectiva de Jomard Muniz de teratura, principalmente no seio
Britto, homem de cinema por das novas gerações. I
{...} O filme, resultante de uma dentro e por fora, sobretudo
adaptação de obra literária, será a percepção poética enquanto
arte não pela fidelidade ao am- matriz da unidade e autonomia
biente dos personagens, à época, de cada obra (“Para nós, Hiroshi- Hildeberto Barbosa Filho
é poeta, crítico de literatura e
mas por ter (se possível com esses ma, meu amor é uma obra tanto professor da Universidade Federal
elementos) se tornado mais do que de Resnais quanto de Duras”), da Paraíba. É autor de vasta obra
um mero espetáculo, uma obra de ao mesmo tempo em que, mais poética e de estudos literários. Mora
em João Pessoa (PB).
servilismo ao texto original – um à frente, deixa bastante claro o

26 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


Fotos: divulgação

6 artigo

Duelos no
sertão:
a poética de
Linaldo Guedes
Amanda Vital
Especial para o Correio das Artes

A
Paraíba é um estado notavelmente rico em sua cultura, própria e
apropriada, que vem sendo cada vez mais bem representado com no-
mes de peso no cenário literário nacional. Do Barroco à novíssima
poesia, é responsável por abrigar produções constantes, entre lança-
mentos, antologias, manifestos literários e saraus. Ainda que no iní-
cio das produções culturais do estado essa subida fosse lenta e pouco
motivada, com a educação de qualidade voltada para a aristocracia
rural e os raríssimos incentivos artísticos e culturais, após a déca-
da de 50 houve um verdadeiro boom na literatura local. Com a arte
escrita renovada e a todo vapor, sendo divulgada na imprensa e em
meios midiáticos ligados a esse tipo de conteúdo, como o suplemento
literário Correio das Artes, o estado só poderia prosseguir abrigando
autores de qualidades crescentes.
E a década de 90 não poderia ter sido diferente. Foi em 1998 o ano
de estreia do escritor e jornalista Linaldo Guedes nesse cenário, com a
publicação de seu primeiro livro, Os zumbis também escutam blues, pela
A União Editora. Imerso no abundante meio cultural paraibano e tam-
bém muito bem recebido pela imprensa, Linaldo Guedes foi – e ainda é
– um dos grandes responsáveis por compor essa zona literária contem-
porânea, com suas produções em alta, popularizadas na mídia virtual
e em saraus por todo o estado. Do alto sertão paraibano, Linaldo nas-
ceu em Cajazeiras e foi radicado em João Pessoa, onde mora atualmen-
te. Apesar de sua grande relevância no jornalismo cultural, é em seu
trabalho literário onde marca seu nome como um dos principais poetas
do pós-modernismo paraibano. Autor de cinco livros, sendo quatro de
poesia, foi um dos primeiros a buscar editoras de fora do estado para a
publicação de suas obras.
Com o lançamento do livro Metáforas para um duelo no sertão (2012),
através da editora Patuá, de São Paulo, Linaldo atingiu o verdadeiro c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 27


Fernando Pessoa e Carlos
Drummond de Andrade (à direita)
são duas referências literárias
na poética de Linaldo Guedes

c clímax de sua carreira como poeta. Suas duas obras p.), que deixam a desejar no valor artístico, fazendo
anteriores, ainda que de uma qualidade conside- uso de clichês, frases prontas e pouco trabalhadas.
rável, não atingiram críticas que se equiparam às Enquanto isso, também figuram – dessa vez como
que a terceira recebeu. Em um eixo central fixado protagonistas da obra – os poemas bem estrutura-
na vida do alto sertão, os poemas de Metáforas se dos, com elementos-surpresa e ferramentas admirá-
ramificam entre lirismo, memória, religião, erotis- veis no jogo de palavras.
mo, humor e sátira, tudo em torno de sua vivência Mas não é apenas no jogo de palavras onde mora
interiorana, adquirindo tonalidades regionais e um a poesia de Linaldo Guedes: sua escrita está atrela-
toque de clássico. Buscando sua técnica em poetas da à simplicidade e ao cotidiano, fugindo de herme-
como Carlos Drummond de Andrade e Fernando tismos e de expressões quase indecifráveis. Formam
Pessoa, Linaldo compõe o cotidiano sertanejo em uma parte essencial da obra, ainda, os sentidos per-
todas as suas possibilidades, em um misto de rea- cebidos na leitura, a poética que habita o sertão, os
lidade e memória, passado e presente, fato e fanta- versos de um lirismo regional pouco explorado de
sia. Bebe da fonte dos cânones para produzir, assim, uma maneira tão cuidadosa. A naturalidade presen-
suas metáforas sertanejas. te no falar do homem sertanejo, ritmado e musica-
Como todo poeta, ainda que tenha livros bem lizado, ultrapassa os cultismos: e é melhor que se
recebidos, o autor possui seus altos e baixos ao lon- mantenha assim.
go de sua obra. Fornecendo uma crítica bem fun-
damentada a respeito de Metáforas para um duelo no Um rigor que serpenteia pelos modos mais diver-
sertão, o professor Amador Ribeiro Neto disserta sos da linguagem “carregada de sentido” a mais
sobre as temáticas englobadas por Linaldo Gue- não poder, como pondera o célebre poeta-crítico
norte-americano. Lê-se a poesia de LG com a vora-
des com relação à linguagem utilizada na obra, em
cidade que os versos pedem – e o livro é devorado
uma abordagem semiótica que constrói percepções em pouco tempo. Ou lê-se com o compasso zen do
e reconstrói interpretações. Ribeiro Neto analisa os silêncio do sertão, e então o livro não acaba quase
principais núcleos temáticos da obra, relacionando- nunca. Porque não o deixamos acabar. Queremos
-os à teoria do poeta como um “fazedor de lingua- beber de sua rara água. E os aborrecimentos com
gens”: une, dessa forma, o significante e o significa- um ou outro poema, como já dissemos, dada a
do da poética linaldiana. dimensão estética do livro, o leitor tira de letra.
Seu estudo, inicialmente, diz respeito aos pró- (RIBEIRO NETO, 2012, n. p.)
prios altos e baixos da obra: a coexistência de poe-
mas de qualidade superior e inferior confirma a E é justamente o sertão o mote-mor dessa obra.
irregularidade do livro, que não deixa de surpreen- Questões como a seca, a miséria, as tradições, os
der. Convivem, na mesma obra, os poemas com conservadorismos, as lendas e os costumes do ho-
“trocadilhos mais previsíveis, muito fáceis, quase mem sertanejo perpassam sua poesia, alguns temas
sem elaboração poética” (RIBEIRO NETO, 2012, n. e espaços até pouco poéticos, mas é no “falar sobre” c

28 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


Relacionando muitas c que o autor to com a mitologia, traz o esotérico para a temática
faz do sertão regionalista em um interessante contraste espaço-
um verdadeiro -temporal. Além do nítido teor sacroprofano, com
vezes a questões campo abarro- a mescla do sagrado com o erótico (como o próprio
tado para seus crítico compara, à la Adélia Prado), o poeta também
religiosas, a erótica motes. Ribeiro questiona a alienação cristã do sertanejo, sempre de-
Neto também voto a orações, rituais e missas e à própria crença de
disserta sobre diversos santos no catolicismo. É a parte do sertão onde
de Linaldo se volta a presença do o eu lírico procura não se encaixar, apenas procura selecio-
silêncio nesses nar suas crenças meio à educação religiosa recebida.
para o prazer do espaços, que se Voltando para o erotismo, terreno de grande pre-
enche de pala- ferência para Linaldo Guedes, o poeta também tra-
vras como nos va um duelo: dessa vez, entre a sutilidade do sexo,
proibido, a rebeldia poemas “Pri- com imagens delicadas, e a força bruta do desejo do
meira infân- sertanejo, que não mede sua força quando o assunto
do homem que cia” e “Curral”, é libido. Relacionando muitas vezes a questões re-
quando o bu- ligiosas, a erótica de Linaldo se volta para o prazer
colismo monó- do proibido, a rebeldia do homem que questiona as
questiona as crenças tono se conver- crenças e tem sua fé no sexo.
te em capturas
e tem sua fé no transcritas do O erotismo cru se alista em versos como “ :semen-
tes plantadas nas tuas pernas turvas / :sêmens
imaginário do
autor direto a escorrer por entre pelos e curvas” onde a rima
sexo. para o papel. fechada na vogal tônica /u/ intermete a libido no
lado mais recôndito do corpo feminino (“Uvas”, p.
A família 76). E converte-se em indagação sarcástica em
sertaneja é “Singular” (p. 79) quando a luva toma o lugar da
um dos principais núcleos de Metáforas, consistindo vulva. Aqui mete-se a mão através do anagrama, o
em um grande peso para o livro. A densidade dos que materializa ainda mais a acidez do poema em
poemas de rememoração, no falar dos pais, irmãos forma interrogativa (...). O erotismo delicado, las-
e outros familiares, alcança níveis drummonianos civo e sensual está, por exemplo, no terceto “Pos-
na recapitulação de sua terra amada. Mas aqui não se” (p. 78) em que a vassalagem feudal dos dedos
estamos em Itabira, em uma fotografia na parede: se apossa da pelve, zona erógena onde dançam
desejos masculinos e femininos em volteios de
Linaldo busca em memórias visuais, ora próximas,
sexo sem fim.
ora distantes, sempre fazendo com que o autor se si- (RIBEIRO NETO, 2012, n. p.)
tue dentro do meio familiar, podendo se adentrar na
perspectiva do sujeito nostálgico nas descrições de Por fim, Amador Ribeiro Neto chega ao ápice de
sua infância cajazeirense. A figura do pai, ainda – do sua análise de Metáforas: a metalinguagem como
pai que teve e do que se tornou – adquire um viés principal ponto de confluência do tal “duelo”. É na
psicológico para a obra. Descreve a má relação com metalinguagem onde mora o autobiográfico em sua
o pai, com os constantes desentendimentos, questio- poesia, e é justamente nela onde poesia e vida dia-
nando seu papel na família, e relaciona a sua amiza- logam entre si. O cotidiano de sua poética se traduz
de com o filho, que ultrapassa níveis paternais. na própria linguagem, na própria forma de entoar
cantos sertanejos, na singularidade já formada do
Agora a família, e a (possível) amada formam a
poeta. É também a metalinguagem que funde o real
guirlanda diária das relações interpessoais. A fa-
mília é um núcleo duro (no sentido semiótico da
com o imaginário, proporcionando a conversa entre
expressão: predominância e concentração de o sertão e os diversos frutos da globalização, como o
sentido) deste livro.  À p. 110 ele diz: “não estou universo virtual, por exemplo. O sertão de Linaldo
sempre presente ao meu filho / e nunca, mas nun- é ilimitável, alcançando, aos pés de uma goiabeira,
ca mesmo, / consigo agradar a sombra de meu níveis profundos de abstração. Como o próprio ar-
pai”. Antes, à p. 62 ele fala uma vez mais do pai, ticulista afirma, “é um poeta que não introduz um
dos dois irmãos, da paternidade distribuída entre sertão (pré)configurado, nem um amor monogâ-
os irmãos e, por fim, da paternidade tardiamente mico, nem uma poética estruturada na cartilha de
compreendida pelo eu-lírico. A presença ausente procedimentos didáticos ou em manuais da moda”
do pai, a falta de uma orientação, o apartamen- (RIBEIRO NETO, 2012, n. p.). Entrega os modismos
to de um poder e de um amor paternos cravam e se entrega a uma diversidade inesperada em um
marcas de perplexidade num menino-homem sertão feito puramente de palavras. I
(ou, na feliz tradução de Augusto de Campos
para certa expressão de Lewis Carroll:  homeni-
no), e vazam o livro sob dissimulações variadas.
(RIBEIRO NETO, 2012, n. p.)
Amanda de Castro Vital Maciel é poeta. Nasceu em
Outro núcleo de bastante relevância para o livro, Ipatinga (MG) e reside, atualmente, em João Pessoa, onde
estuda Letras na Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
também abordado por Amador Ribeiro Neto, é a re- e participa do grupo de declamadores Aedos. Estreou em
ligião. A presença de figuras religiosas, em conjun- livro com Lux (Penalux, 2015).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 29


6 depoimento

Do que vou
escrever
Fotos: divulgação

relato biográfico Do poeta LUIZ LIANZA


AO CORREIO DAS ARTES POR INTERMÉDIO
De SÉRGIO DE CASTRO PINTO

O que escrever, senão, palavras?


O que falar sobre mim? Que nasci em João Pessoa,
que morei em Brasília e hoje, Rio de Janeiro. Falar que
escrevo desde os 11, que fui incentivado pelo meu avô e
sua prosa falada (como Borges e Macedônio Fernandes
em minha eterna pretensão). Posso falar que publiquei
poesia? Que não creio em meus versos, mas em minha
narrativa? Que comecei a estudar narrativa quando, ain-
da criança, comprei um livro de RPG? Minha vida não é
diferente da de ninguém e, ainda que somente minha, é
sem graça e pouco tem a ver com minha literatura.
Li o que li, não sei o que acho em meus textos. Mudei-
Luiz Lianza é autor de Café para
-me tanto quanto nos mudamos, fui por Bandeira, Pes- e Maçã em paralaxe, e sócio
soa, Ginsberg, Piva, Leminski, Basho, por um lado. Por fundador da produtora audiovisual
outro, Lispector, Amado, Kerouac, Murakami, Heming- independente Zênite Produções e da
revista literária PORRADA
way, Borges, Pamuk... Muitos, sendo impossível ordenar
por importância ou mesmo dizer o que roubei de quem.
São todos um comigo, como são todos próprios e outros.
Posso falar de três pilares do meu pensamento quanto
a literatura e a arte como um todo. Posso listar, explicar,
delirar de leve. Em parte teoria, em parte fé. Em parte eu
li, em parte eu ensaiei, em parte eu escrevi. Ainda que
não tenha completado essa obra que vislumbro, tenho
ela como minha derradeira. Essa obra está em conformi- a leitura de Dom Quixote gerou
dade com três ideias: Ausência, Sincero e Agenciamen- efusivamente a demarcação de
to. O que falta, o que sobra e o que se faz real. algo que falta, logo encanta.
O que escrever, senão, palavras? O que escrever, A falta é também o que move
senão escrever sobre o que penso que escreverei? Ou a narrativa, centro na literatura.
gostaria de escrever? Portanto, é sobre isso que escre- Em O Banquete, Sócrates nos
vo aqui. elucida para a condição de Eros,
a condição do amor, ele é a au-
AUSÊNCIA sência do belo. Como algo po-
A literatura em sua fundação é exatamente a au- deria ser a busca do belo se já
sência. o possuísse? Assim é qualquer
Concebida em seu berço moderno com Miguel de narrativa, qualquer andar, en-
Cervantes, ela trata de algo que não é promover valo- tremear que permite um avanço.
res morais. As velhas narrativas contadas através das A ausência é o que faz mover. A
gerações tinham o intuito de manter uma unidade so- literatura que falta função, aque-
cial, manter os mitos dos grupos vivos, ensinar como se la fundada na modernidade, é
comportar naquela comunidade. Há um momento que exatamente a que anda, nela não c

30 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c cabe o papel de conservar, nem do latim sine cera, sem cera. A
o de destruir, mas o de inventar. cera é o que cobre, suja, dificul-
A literatura, enquanto objeto, ta achar o objeto em si. O objeto
também é falta, pois a produção em si, puro, é aquele limpo da
incessante demonstra a carência cera. Essa pureza é obviamente
do mundo. Sem um mundo pe- abstrata, ainda assim, real. Há
dindo literatura, não teríamos sempre uma cera e há aquela que
literatura. Uma rede exuberante é parte do objeto. O sincero é o
de falta, que leva escritores va- objeto em si, sem as poluições do
zios a produzir obras vazias para que é o outro. O sincero é anga-
a ausência. Não vazio em senti- riado somente do desejo.
do, mas vazio como em profunda O indivíduo sincero não é o
necessidade de criar. A criação verdadeiro. Se há a verdade, há
só é possível na ausência. A falta a mentira, mas nesse caso não
do mundo, a falta do autor, a falta se trata disso. Poder-se-ia dizer
do livro. que ela trata sobre o eficaz, afi-
É nas ausências que se for- nal é o eficaz que atribui ao ser
mam os indivíduos. Chegamos a possibilidade de ser, como em
ao instante que a literatura per- existir. O indivíduo sincero seria
No ano passado, Lianza
de o seu sentido e há o questio- publicou o romance Maçã em o eficaz, mas essa possibilidade
namento “e agora?”. A literatura paralaxe pela Editora Patuá, também limita. Pensemos que
não fez essa pergunta somente de São Paulo (SP) possa existir a cera sobre o nada,
uma vez. A pergunta foi refeita o sincero é nada, nem ao menos
tantas vezes quanto foi possível. o vazio do criador. O sincero é o
Ao passo que não há nos moldes que resta.
pragmático a possibilidade de O que resta, como o sincero, é
não se congelar e analisar um parte da literatura, e a literatura
movimento ou obra. A verdade é, em parte, o que resta, como o
da literatura é inalcançável. sincero. A literatura é um movi-
A verdade existe sempre no mento constante de se livrar da
ponto cego de quem a busca. nessas relações específicas. Pela cera em busca do objeto em si. A
Nossa imagem é sempre limita- falta que move o leitor, a obra literatura não precisa ser sincera
da ao objeto que nos é posto à pode significar a obtenção de para se qualificar, mas sempre
frente. Tudo o que vemos é uma respostas, de propostas, de gra- ter essa busca. O processo da sin-
limitação do objeto; terminamos ça, de entusiasmo, de sentimen- ceridade leva à individualização
sempre de construí-lo na mente. tos. O escritor que se orienta na de obras que socialmente são co-
A literatura é o lado que está fora direção de uma falta específica locadas em escolas, gêneros, pro-
do campo de visão e que nos leva não é um construtor, mas um cessos e mesmo autoria.
a dar voltas tentando fechar com belo navegador capaz de pender O autor muda de obra para
perfeição o objeto. A literatura em desequilíbrio para o lado que obra, de leitor para leitor, o ob-
é o que imaginamos para esse mais interessa. Como um chute jeto que resta, o livro abstrato,
término, como objeto total e in- bem dado, onde se pende o corpo é coberto de possibilidades. A
dependente do que pode ser real na direção que agregue à perna- potência que um livro coloca de
pela física e pela metafísica. da e não a enfraqueça. início vem pela grandiosidade
O mundo não precisa de lite- A falta não é a carência. A falta de suas formas, nas páginas, nos
ratura, assim como nenhum in- pode ser abstrata, pode ser con- versos, na poética de um autor.
divíduo. De qualquer maneira, creta, pode ser fulgaz, pode ser Ao ler, passamos por diversas ca-
muitos são os que escrevem, e eterna, pode ser vital, pode ser madas que chamamos de belas,
desses muitos a razão para es- dispensável, pode ser delirante, estudamos, qualificamos, ma-
crever, o que vai dar a sensação pode ser serena. A carência é a nualizamos. Ao fim, em algum
de necessidade, é a falta de algo falta de nutrientes essenciais, momento da experiência, a obra
para compreender. É a falta de como o ferro ou o amor. Da ca- sincera apresenta seu objeto, lá
nós mesmos, de outras comuni- rência também há movimento, percebemos o que é sem nome,
dades, do planeta e do próprio dela surgem os mais revolucio- o que é sem signo, o verdadeiro
entendimento. A literatura, en- nários e impactantes. Da falta há livro, o abstrato.
tretanto, perde essa funciona- muitas vezes as miudezas indi- A obra sincera é como o bu-
lidade por ser necessariamente visíveis. Há beleza em tudo, con- raco negro. Primeiro temos toda
esquizofrênica. A literatura é o tanto que seja autêntico. potência de uma narrativa que
ato de alteridade que abdica da lembra de sua existência. Sabe-
necessidade. Serve-se da falta, -se tanto de buracos negros e
mas não a supre. SINCERO tão pouco deles. Fala-se muito,
A falta da obra literária é cons- O que é o sincero? O mais ho- discute-se muito, dentro e fora
tituída também pela falta do nesto do indivíduo. dos meios especializados. Ao vê-
leitor. As funções podem nascer O sincero surge inicialmente -lo, recebemos uma força gravita- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 31


c cional desproporcional, que nos ricos no decorrer da existência vro. Ela passa a existir no pro-
atrai em direção de sua gargan- narrativa humana para ensinar cesso de leitura. Da ressignifi-
tualesca imensidão (Gargântua é as vicissitudes da relação entre cação constante da obra, o que
inclusive o nome de um buraco o mito e o que está além dele. dá vida, ao que o leitor ressig-
negro). Suas luzes nos ofuscam, Enquanto leitores, esperamos nifique sua existência, também
seus movimentos nos confun- estar agenciados à história, tirando uma vida desse mo-
dem, sua potência nos destrói. portanto envolvidos em um só mento, permite ao ato de ser,
Depois de destruídos chegamos movimento com a verdade ali ser. O mundo que busca a lite-
ao inimaginável, ao cerne, de presente. O mito é a verdade, ratura é o mundo que perdeu o
onde tudo deriva, a singularida- a literatura é a verdade, e es- encantamento da moral social,
de. Tudo o que temos nos buracos peramos que essa verdade seja o que falta está na magia da li-
negros de igual e potente, deriva nossa também. teratura (e outras artes).
de singularidades indescritíveis. O agenciamento pode estar Não é a boa obra que gera
Depois delas, pouco se sabe. na dose de realidade minucio- grandes agenciamentos, mas
A sinceridade existe para além samente apresentada nos per- grandes agenciamentos que
da literatura, é claro, mas é dela a sonagens, para além de qua- geram a boa obra. A busca do
experiência da catarse. A poesia, lidades e defeitos, a possibili- agenciamento dificilmente
nesse sentido, talvez se esmere dade daquele ser o eu, o leitor. está nas mãos do autor, senão
mais em limpar a cera, a busca Agencia-se pela proximidade, pela repetição de fórmulas psi-
do que resta acontece durante pela possibilidade que nos leva cológicas, filosóficas e socioló-
o próprio esculpir dos versos. a tomar e julgar as decisões gicas antigas, mas que tendem
Quando vemos um poema sin- presentes na história. O ser que sempre a perder a força. A
cero, ainda que longe de nossa se manifesta é real por poder grande repetição dos pequenos
individualidade, sentimos a for- ser nós, dando a nossa própria artifícios os tornam menos au-
ça dele. Pequenas palavras que vida a realidade possível. As- tênticos. A teoria pode sempre
podem ser únicas pela simples sim, pouco importa a grande dissecar o mínimo da estru-
justaposição, que se tornam mui- trama, senão pelos caminhos tura psicológica, sociológica e
to mais que palavras e formam tomados pelos personagens. O cultural, entretanto o humano
algo sem nome, que chamamos que importa é, realmente, o ser é dinâmico. E o dinamismo
por aquele poema. O que resta ali presente. humano provém de suas rela-
é a eterna busca do haikai, do O agenciamento pode es- ções de ressignificação do ser.
verso em geral, mas também da tar na força da correnteza que A própria literatura forma e é
prosa, que não a coloca de uma leva a narrativa. Seguindo um formada(?) nos agenciamentos.
vez, muitas vezes não a coloca sentido oposto ao que traz o Uma obra tecnicamente boa
em parte alguma, entretanto está personagem como o canal ao pode se perder na dualidade,
na compreensão geral da obra. agenciamento, os acontecimen- sem ser um com o leitor.
Despir-se da cera pode ser tos envolvem o leitor e o expec- O vazio e o sincero da obra
uma tarefa impossível, porém tador de tal maneira que ele se são dois aspectos fundamen-
ela também é a unidade dentro agencia. As impossibilidades tais, mas o que irá tornar tudo
das multiplicidades que vive- de escolha que vão tomando possível, a própria literatura
mos. A sinceridade Beat está de rompante a verdade do lei- real é o agenciamento entre o
na estrada de Kerouac, mas tor servem de caminho para concreto e o abstrato que rede-
também no uivo de Ginsberg, envolver em um sentimento de fine os reais. Talvez a boa obra
eles são próximos na sensação, esquizofrenia, dessa vez não seja somente as que geram agen-
ainda que únicos, e a cera dá do autor, mas do leitor, esse, ciamentos, talvez existem boas
a liga. A percepção de multi- também criador. obras sem os agenciamentos,
plicidade e movimento, mes- Independente da mágica mas por não estarem nos defi-
mo de continuidade e autoria, presente, estão nesses agen- nindo, elas se perdem e nunca
está na cera. O sincero do au- ciamentos as possibilidades de as acessamos. A busca literária,
tor indivíduo está somente na se realmente descobrir o que é não finda, mas transcorre pelas
sua existência material-social e sincero e mover-se na direção redes de rizomas gerados por
pouco tem a ver com o sincero apontada pelo vazio. Mesmo as esses agenciamentos. O huma-
de suas obras, o que os liga é obras fantásticas constroem-se no é arte e, em grande parte, o é
a cera, construída pelo tempo, de forma que dote de verdade o pela literatura, aspecto central
pela comunidade. Onde resi- incrível. Borges quando nos en- dos últimos séculos.I
de o valor da cera, ainda que a volve em seu labirinto, o faz de
meta seja o sincero. forma que os diferentes campos
narrativos do conto sejam parte
AGENCIAMENTO de um só rizoma, e que nossa Luiz Lianza é paraibano de João
verdade não passe de mais um Pessoa e mora no Rio de Janeiro
São mil estratégias narrati- (RJ). É autor dos livros Maçã em
campo narrativo presente.
vas propostas por Aristóteles, paralaxe (Editora Patuá, 2016) e
O agenciamento permite Café para (Editora Multifoco, 2011).
Propp, Bharata, Moliere, Sha- que a literatura seja um rizoma Cientista Social formado pela PUC-
kespeare e outros autores e teó- para além da obra abstrata li- Rio, trabalha como roteirista.

32 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 scholia
Milton Marques Júnior
marquesjr45@hotmail.com

Carta a
Gonzaga Rodrigues
Meu Querido Gonzaga,

E
mbalado pelas nossas conversas sobre este gigantesco Eça de Queirós, revisitei
a Santa Ireneia, velha conhecida que não via há 16 anos. Pensei encontrá-la no
mesmo ponto em que a deixei. No entanto, constatei que a Torre do Fidalgo,
encontrava-se mais forte, sobrevivendo com a grandeza heroica, que lhe é pe-
culiar, às marcas do tempo. Quanta diferença entre a Torre, “quadrada e negra”,
como diz o nosso Eça, e o seu fidalgo, o de então, não o de antanho, que, a cada
leitura feita, mais se infirma! Nosso fidalgo, Gonçalo Mendes Ramires, já não
é o “tenro e novo ramo florescente/de uma árvore, de Cristo mais amada/que
nenhuma nascida no Ocidente”, de que fala Camões, ao exaltar a personalidade
de D. Sebastião, na dedicatória de Os Lusíadas. Falto de bens, de caráter e de
literatura, nosso fidalgo sempre se apequena diante da grandeza de seus ante-
passados. Se a casa de Ramires se fez ilustre, não foi por suas ações de fidalgo
exangue, conforme já sabemos. Mas porque ela mesma se alça indestrutível, em
meio ao paço encastelado, como a honra dos Tructesindos.
Já nos primeiros momentos dessa visita, Eça enveredou-me pelos definitivos
caminhos de sua narrativa, plasmando o nosso Gonçalo e nos deixando entrever
como ele se inebria com os fumos da fidalguia. Fiquemos neste primeiro capítulo.
Qual a necessidade de uma genealogia heroica dos Ramires, Gonzaga, a não
ser para mostrar o nosso Gonçalinho como inepto? O comentário sobre o “ba-
charel formado com R no terceiro ano” é uma peça de ironia, após tantas glórias
antepassadas honrando a casa. Que beleza de paradoxo na construção da tibieza
pela construção da genealogia! Se o Solar de Santa Ireneia, mais antigo que o
Portugal, anterior ao Condado Portucalense, rijamente resiste, o nosso fidalgo
desaba, na sutil ironia eciana.
Se sob os Felipe, os Ramires, amuados, bebem e caçam nas suas
terras, como diz o bom Eça, Gonçalo, o último dos fidalgos assim
Gonzaga também se encontra, sem forças para reerguer “a alma faça-
Rodrigues, nhuda, o querer sublime que nada verga”. Nunca é demais
jornalista
lembrar, meu querido Gonzaga, que amuar significa ficar
e cronista,
autor, entre melindrado como uma mula. Também é bom recordar que a
outros livros, referência a Felipe I de Portugal, que nos leva ao tempo do
de Café sequestro daquele país pela coroa espanhola, no longínquo
Alvear século XVI (1580), leva-nos também a compreender que o
antropônimo do rei significa “o que ama os cavalos”. Ama
os equinos, não os muares, portanto. Gonçalo Mendes
Ramires, meu querido amigo, tem o seu próprio
sequestro de emancipação ao confrontar-
-se com André Cavaleiro, antigo compa-
nheiro, então adversário político. Nesse
confronto já se desenha a queda de
Gonçalo, como já acontecera com os
Foto: Acervo Pessoal seus ancestrais sob Felipe I. André, por c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 33


6 scholia
Foto: reprodução internet

c etimologia é o varão, o corajoso. aguerrido dos Ramires e de sua


Coisa que Gonçalo não é. André Torre inalcançável em sua glória.
é, ainda por cima, Cavaleiro. Não É, pois, com certa impotência que
é à toa que se sabe neste primeiro Gonçalo se deixa flagrar “com os
capítulo que Corinde, a proprie- olhos esquecidos na Torre, na sua
dade de André, não pegava com dificílima Torre, negra entre os
a Santa Ireneia, sendo separadas limoeiros e o azul, toda envolta
pela “ribeira do Coice”... O que é no piar e no esvoaçar das ando-
o cavaleiro senão um domador de rinhas”. Os pequenos pássaros já
cavalos? Amuado, Gonçalo não não temem o açor. Dos Tructesin-
tem como enfrentar, na realidade, dos, apenas a Torre se mantém de
André. O que fazer? Descambar pé com suas ameias e seu negro
para a ficção, tentar restaurar pela miradoiro. Gonçalo, vergando
pena, o heroísmo da casa. Afinal, cada vez mais, vai se descontruin-
como assegura-lhe o agora “mais do no sonho de uma fidalguia ine-
defecado” José Lúcio Castanheiro, Retrato de Eça de Queiroz xistente, desconcertada pela iro-
“A pena agora, como a espada ou- (1845-1900), autor nia marcante de Eça de Queirós,
trora, edifica reinos...”. português de A ilustre casa sobre seu povo e sua história.
Nem isso, Gonçalo consegue. de Ramires Quão belo, meu amigo querido,
Sua escrita frouxa se apropria é o fechamento desse primeiro
inicialmente dos versos do Tio capítulo, em que Gonçalo não
Duarte Balsa, que fizera um poe- conseguindo apanhar o antepas-
ma sobre a nobreza da família, sado, também não se apanha,
sobre a fidalguia encerrada e vis- por estar morto um passado im-
ta das ameias da Torre de Santa e o hemistíquio nos seus devidos possível de se reconstruir:
Ireneia. São inúteis os argumen- lugares:
tos de Gonçalo, para afastar de si “Ainda releu, coçando som-
a ideia de plágio. Das tentativas Já, porém, como a nação, degenera briamente a nuca, a derradeira li-
iniciais de sua história, ele “só a nobre raça... nha rabiscada e suja:
conseguiu converter servilmente – ‘... Na sala altaneira e larga,
numa prosa aguada os versos li- Síntese perfeita traduzida, em onde os largos e pálidos raios da
sos do tio Duarte”. seguida, na imagem construída lua...’ Larga, largos!... E os pálidos
A beleza deste primeiro ca- aos poucos e que se cristaliza no raios, os eternos pálidos raios!...
pítulo, meu caro Gonzaga, está final do primeiro capítulo. Gon- Também este maldito castelo, tão
na síntese apresentada a um só çalo, na volúpia de escrever uma complicado!... e este D. Tructesin-
tempo do personagem e de Por- narrativa vigorosa que lhe traga a do, que eu não apanho, tão antigo!
tugal. Gonçalo Mendes Ramires fama e ressuscite a glória e honra Enfim, um horror!”
está entregue e “abandonado à da casa Ramires, lembra do poe-
esterilidade”. Não se trata ape- ma do avoengo Duarte Balsa, O Como vês, meu querido amigo,
nas da esterilidade ficcional, mas Castelo de Santa Ireneia, “encader- Gonçalo não consegue ser aquele
a esterilidade de ação que o faça nado em marroquim, com o bra- mago dos adjetivos de que sempre
renovar-se e sentir-se, não um são dos Ramires, o açor negro em me falas...
herói do medievo, como o bisavô campo escarlate”. O negro da ave Esta conversa ainda deve-
Tructesindo Ramires, alferes-mor de rapina e o vermelho que a en- rá render muito, Gonzaga, e eu
de Sancho I, e os demais que pon- cerra são emblemas de sangue e espero poder ainda conversar
tuaram a história de Portugal, de de guerra, que já se perderam no mais com o amigo sobre Eça de
Ourique a Aljubarrota; de ousar tempo, não sendo mais possível Queirós e este magnífico A ilus-
o Oriente a ousar Alcácer-Quibir. recuperá-los. Os tempos de Gon- tre casa de Ramires. Fico devendo
É a ação renovadora de uma vida çalo já não são os da Idade Média o desenvolvimento do mote-sín-
digna, decente, deixando para em que se resolviam as diferenças tese do romance:
trás os fumos da fidalguia mor- com o enfrentamento de hostes. Já
ta, mas que reluta ser sepultada. não são os tempos do século XII, Já, porém, como a nação,
Nosso Gonçalo, meu amigo, pa- em que os ultrajes, como veremos degenera a nobre raça...
rece padecer dos dois males que no capítulo seguinte, lançariam
aponta Lúcio Castanheiro sobre “todos os Ramires, com homens Meu melhor abraço,
os portugueses de então: “os pio- de cavalo e peonagem, sobre o amigo dileto.I
res desprezavam a Pátria – e os solar dos Cavaleiros, para deixar
melhores ignoravam a Pátria”. cada trave denegrida pela chama,
A síntese da situação em que cada servo pendurado duma cor-
se encontra Gonçalo Mendes Ra- da de cânave”. Os combates mo- Milton Marques Júnior é professor
mires e, por metonímia, Portugal dernos exigem outras armas, que da Universidade Federal da Paraíba
está em numa frase de estilo irre- Gonçalo, por inépcia, não tem. O (UFPB). Tem estudos publicados nas
tocável; dois perfeitos versos hep- açor negro, meu querido amigo, áreas de Literatura Brasileira e
tassílabos, com todas as cesuras já não simboliza mais o espírito Clássica. Mora em João Pessoa (PB).

34 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 livros

O intenso EM OS MORTOS

flerte do açúcar
NÃO COMEM
AÇÚCAR,
ALEXANDRE
FURTADO
João Matias de Oliveira RECONSTRÓI
Especial para o Correio das Artes

UMA VERSÃO DA
HISTÓRIA DE

N
os ares perdidos de um Recife por se descobrir,
neste primeiro livro de contos, travestido em no-
vela, Alexandre Furtado dá a Os mortos não comem
RECIFE DOS ANOS
açúcar um ritmo de marchinha de carnaval. Doce
lascívia que resta dos beijos açucarados da infân- DE 1970
cia, triste lembrança de auroras passadas a limpo
sob os dias de comidas, bebidas, sexo barato e o
cheiro dos casarões da Recife com rios doces a cor-
rer das lágrimas, o livro que se apresenta trafega
por tantas metáforas que bem o autor destas pa-
lavras tentou, mas, em vão, jamais vai conseguir
uma viagem neste barco de ida.
Os mortos não comem açúcar reúne 14 contos ou,
como eu diria, cenas de um espetáculo teatral de
um grupo de amigos na Recife de 1973. Imerso
na trama, relações proibidas,
desejos ocultos, lugares que
remotam histórias de desen-
Foto: divulgação

cantos em aventuras etílicas,


sexuais, transgressoras, im-
possíveis. Chama a atenção um
domínio pleno da linguagem,
que remonta a traços de uma
oralidade sutil, ao mesmo tem-
po que o autor cultiva frases
cortantes, passagens cujo valor
semântico refaz a passagem
de um Recife das elites bur-
guesas em franca decadência,
dos rapazes e suas descobertas
Alexandre Furtado sexuais nos puteiros, de mu-
reúne 14 contos sobre lheres em desejos reprimidos
o Recife da década de realizados no açúcar de que só
70, em Os mortos não come os vivos. Dalton Trevisan
comem açúcar
seria a primeira referência de c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 35


c estilo que vem à cabeça, mas exemplo, ao mesmo tempo que nos
com a densidade de uma tra- lembra o filme Old Boy (de Park
ma construída sob a memória Chan-Wook), pela violência, lem-
de engenhos, antigos senhores bramos também a narrativa de O
e senhoras de casarões. Uma Mestre de Apipucos, documentário
lascívia que somente habita os de Joaquim Pedro de Andrade so-
vivos à medida que o engenho, bre Gilberto Freyre, pelos modos
que produz o açúcar, não é ape- de ser e sentir (n)o Recife.
nas fora, mas dentro da gente. Não por outro motivo, os títulos
Dentro da riqueza polissê- trazem dilemas, jogos de palavras,
mica das expressões encontra- paradoxos e desafios para a com-
das no livro, temas variados preensão do leitor, a exemplo do
surgem quando percebemos o conto/cena “Em nome do pai que
autor flertar com a psicanáli- não (h)ouve”. O cinema está pre-
se, a historia dos bairros e lo- sente igualmente na precisão dos
calidades do Recife, os hábitos diálogos, na maneira fluida com
citadinos de uma província, o que os personagens deslizam por
cheiro e o sabor de comidas tí- ele e destilam uma ironia galopan-
picas. De Gilberto Freyre à An- te, sem amarras. Tudo em Os mortos
tônio Maria, Nelson Rodrigues não comem açúcar, portanto, parece
e Ascenso Ferreira, passando calculado. Cada palavra, cada iro-
pela música popular, com Pau- nia, cada expressão e cena descriti-
linho da Viola, Chico Buarque e va. Se há excessos, estes se devem à
Lô Borges, até autores pernam- característica remissiva, detalhista
bucanos mais recentes, como e ritmada com que Alexandre guia
Cícero Belmar, este livro de o leitor pelo seu universo. Com a
Alexandre Furtado possui uma certeza de que o livro também tem
transversalidade de lingua- seus planejamentos, ele fora feito
gens, histórias, heranças cultu- para ser degustado. Açúcar que é;
rais e trejeitos. Não à toa, ao ini- vivos que somos.
cio e fim de cada conto há uma Na riqueza de referências, den-
passagem de canções da música tro e fora dos contos, o leitor poderá
popular e a lembrança de livros perceber menções inteligentes e fa-
e autores, de cuja inspiração ceiras, de Gabriel García Márquez
adveio a ideia para o conto ou à Yukio Mishima. O Pernambuco
cena escrita. Assim, Alexandre de Alexandre Furtado foge de uma
reconstrói uma versão da histó- regionalização excessiva para se
ria de Recife dos anos de 1970, focar no dito de Guimarães Rosa
partindo de relações familiares, sobre o sertão: interessa-o aquele
amigáveis e afetivas. Uma me- Pernambuco que mora dentro da
mória que salta aos olhos, mas gente; ou, a partir de Joyce: a pátria
também aos lábios. de Os mortos não comem açúcar so-
O cinema se faz presente em mente se torna importante porque
Os mortos não comem açúcar quan- habita nele, e não o contrário. Trans-
do Alexandre Furtado evoca des- ferindo este local imaginário para a
crições profundas, imagéticas esfera da linguagem, dos diálogos
e sinestésicas. Como falei, a lin- e das referências citadas, interessa
guagem também é doce, e revela deixar claro que o estado, no senti-
este doce das contradições, das do de localidade imaginária a que
paixões, dos ciúmes e de ima- pertence o livro, é o próprio açúcar.
gens resguardadas em um filme Dessa forma, os mortos jamais se-
passando a brancos olhos. A sen- riam capazes de habitar um açúcar
sibilidade destas cenas remonta que não lhes pertence. Um açúcar
a um cinema pernambucano ali que, antes de ser terra, corre nas
pelos idos de 70, mas também a veias, e desgarra, disseca, apanha e
um olhar desafiador das revela- aprende o que em todos os sentidos
ções sobre incesto, profanação, significa estar vivo. I
jogos de poder, relações fami-
liares pecaminosas e vingança.
Neste aspecto, ao fim do livro, o João Matias de Oliveira Neto
leitor perceberá uma progressão é escritor, editor e pesquisador.
violenta das relações familiares, Doutorando em Sociologia (Programa
de Pós-Graduação em Sociologia) na
uma fronteira que separa amor Universidade Federal de Pernambuco
e ódio, desejo e vingança. Por (UFPE). Mora em João Pessoa (PB).

36 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 conto ilustraçÃo: Tônio

A outra
Cláudio Feldman
Especial para o Correio das Artes

O táxi parou defronte ao


“Belvedere”, de três andares cin-
zentos. Uma senhora desceu do
veículo, pagou o chofer só com
moedas e penetrou no edifício,
sem porteiro. Sua face pálida,
agoniada, mais se vincou, quan-
do percebeu que não havia eleva-
dor. Subiu os degraus – que lhe
pareceram infinitos – e chegou
ao terceiro pavimento. Enxugou
o suor da testa, penteou os cabe- das por passos ecoantes. de minha morte”. Nisto ouviu
los grisalhos, desgrenhados, e só O médico, maleta na mão, chinelos arrastados e suas pupi-
então tocou a campainha do nº dirigiu-se a ela e disse, bigodes las se aguçaram na direção do
37. Enquanto aguardava, recor- farfalhantes: som. O que surgiu desagradou-a
dou-se, alma pelo avesso, das pa- - Sou o doutor Corbino. A se- ainda mais (ou teria que pôr os
lavras do telefonema: “Seu ma- nhora deve ser a esposa de Dur- óculos?): Darcy fugia totalmente
rido morreu do coração em meu val, não? Lamento muito o ocor- à figura ideal do marido, pois,
apartamento.” rido. embora jovem, era miúda, mo-
Uma empregada parda, com - Obrigada. rena, lânguida e tinha os olhos
um possível olho de vidro, abriu E após segundos de silêncio: úmidos... de um homem! Um
a porta, confusa. - Console-se, ele não sofreu. travesti! (O pensamento quase
- Sou Lídia Toledo. Estava contando uma anedota transpôs a boca).
- Quem?! para Darcy, quando houve o in- A senhora Lídia Toledo que,
- Lídia Toledo, a esposa. farto. Não é a melhor maneira de até ali, conseguira manter a com-
- Ah, então entre. A patroa falecer? postura, apesar do mundo sobre
está com o médico, agora. - E, in- Lídia Toledo baixou a cabeça, os ombros, desabou num choro
dicando a sala: constrangida, e, com voz desco- convulso.
- Não sente na cadeira de cou- rada, disse um talvez. Darcy, também arrasada, per-
ro, que está com a perna quebra- - A senhora é corajosa, vai su- cebeu que a reação brotara tan-
da. E com licença: tenho que pre- perar a tristeza. Em todo caso... to da perda conjugal quanto do
parar o leitão. - e estendeu-lhe um cartão com nojo pela amante. E, num imenso
Só em sua dor, deslocada no odor de tabaco. esforço de persistente delicadeza,
ambiente, a senhora notou o bom - Obrigada. Estou bem. procurou acalmá-la, até que Lí-
gosto da mobília, os quadros A empregada surgiu para dia aceitou o convívio eventual.
modernos, o lustre de pingentes, acompanhar o médico até a por- Então Darcy conduziu-a a um
as cortinas de seda. “Será que ta e, depois de vê-lo sair, apontou quarto, onde Durval jazia entre
Durval é que pagou tudo? E está para Lídia o possível olho de vi- quatro velas. No recinto, as duas
faltando um aquecedor lá em dro e informou que a patroa logo viúvas compartilharam suas lá-
casa.” Seu tormento se expandiu, viria. grimas na mesma dor, esqueci-
ao flagrar sobre a cristaleira o Novamente só, distraiu a an- das do relógio. Mas a empregada
retrato do esposo, com ar de ju- gústia conjeturando a anatomia veio quebrar o círculo, avisando
ventude. Estariam juntos desde de Darcy: de acordo com o no- que o agente funerário entrara
quando? Como não percebera a tório gosto do marido, devia ser sem tocar a campainha.I
vida dupla do marido? Quem te- uma loira alta, bonita, de belas
ria a culpa do desvio? Estas e ou- pernas e olhos claros (provavel-
tras interrogações flecharam sua mente calculistas). “De qualquer Cláudio Feldman é poeta, escritor e
mente, até que foram interrompi- maneira, vou odiá-la até o dia roteirista. Mora em Santo André (SP).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 37


6 artigo

Peripécias
tecidas na fábrica:
“Alemães e paraibanos”
entre história, literatura e lenda

Ana Monique Moura


Especial para o Correio das Artes

C
om dados de uma partícula da história da Paraí- A simpatia dos Lundgren pela
ba, trago também aqui um pouco de sua literatura, Alemanha, para além da referên-
ao apresentar algo do belo conto de José Bezerra Fi- cia à nação de um continente ao
lho, intitulado “Zé Cândido, Tibiro e o cavalo de Zé qual os Lundgren pertenciam e
Ubaia ou se a gente facilitar, os alemães invadem até do qual recebiam seus tecelões
Mamanguape”, extraído da obra Coletânea de contos germânicos, tinha motivos “po-
paraibanos, publicada em João Pessoa, pela A União líticos”. É ainda polêmico dizer
Editora em 1999. Parece oportuno fazer reconhecer e isso, mas eles simpatizavam com
justificar porque este conto revela o espírito paraiba- a ideologia nazista no período
no não simpático aos alemães num determinado pe- pré-guerra e durante a guerra.
ríodo de nossa história. Tal conto, de alguma maneira, Não é mera teoria da conspira-
se coaduna com o espírito da época em que emblemas, ção, como céticos de costa para
ideias e práticas nazistas não só aconteciam nos terri- a história e membros atuais da
tórios conquistados pelos alemães, lá no “além-mar”, família Lundgren querem tentar
mas também nos territórios em que pequena parcela fazer parecer que seja.1
de famílias alemãs apenas imigrava, sobrevivia e tra- A arquitetura da Fábrica dos
balhava longe de suas terras originais. Um desses ter- Lundgren, os emblemas utiliza-
ritórios foi a América Latina e, nela, o Brasil. dos no período de guerra e outras
Pois bem, acima do sul do Brasil, onde houve forte peripécias ocorridas na Fábri-
imigração de famílias alemãs, a Companhia de Tecidos ca de Rio Tinto confirmam isto.
Rio Tinto, ou a “Fábrica de tecidos da Família Lund- Mas, convenhamos, a simpatia
gren”, não meramente instalada na cidade paraibana de pelo Nazismo não foi algo ca-
Rio Tinto, mas fundadora da própria cidade na década racterístico apenas deles.
de 20, importou para a Paraíba certa expressividade cul- O próprio Getúlio Var-
tural germânica, além do que revelou, com isso, a exis- gas mantinha estima
tência de simpatizantes do pensamento que viria a se pelo Führer. Chegou a c
configurar futuramente como ideologia nazista, ainda
que disfarçada. Os Lundgren, que na verdade não eram
alemães, mas suecos, mantiveram relações físicas e,
principalmente, abstratas com a Alemanha, pois
importaram trabalhadores alemães e compar-
tilharam com eles certos “ideais germânicos”.
Por isso, apesar de suecos, os Lundgren eram
chamados de alemães. Além do que, tecnica-
mente, fundaram uma verdadeira colônia ale-
mã entre Pernambuco e Paraíba.

38 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c cancelar vários pedidos de vistos de judeus para o
Brasil e só se colocou contra a Alemanha após a for-
çada montagem dos Aliados contra a guerra provo-
cada pelo idealista psicótico do Terceiro Reich. Foi
quando uma onda de revanchismo à cultura
alemã se iniciou no país. Qualquer indício
de simpatia ao Nazismo era inteiramen-

Fotos: domínio público/autoria não divulgada


te combatido, por meio de persegui-
ções brutais. Na região sul, principal-
mente, as leis da perseguição foram
ainda mais duras.
Até isto acontecer, João Pessoa já tra-
zia, além do que adveio a partir da Fábri-
ca dos Lundgren, outras manifestações
pró-nazistas como, por exemplo, os azu-
lejos ornados com a suástica no Palácio
do Governo da Paraíba, os quais foram
retirados apenas na gestão de Antônio
Mariz (e permanecem guardados até
hoje). Indo para a serra brejeira, em
Areia (PB), há até hoje o convento das
Irmãs de Dilligen, cujas freiras alemãs
foram, no período de guerra, constan-
temente alvo de perseguições por parte
do povo da cidade, pois havia indícios
de que fossem espiãs nazistas.2
Em Rio Tinto, havia rumores de que
o casarão da Família Lundgren recebe-
ria a visita de Hitler, caso ele vencesse
a guerra – e não é descoberta nova que
o Brasil, ao lado de outros países, fazia
parte daquilo que Hitler chamava de
Lebensraum, um lugar de vida futura,
dentro de seu obstinado projeto de
expansão e extermínio de etnias. O
emblema da águia alemã, tão invoca-
do pelo Nazismo, pode ser visto na
Igreja de Rio Tinto, construída por
trabalhadores alemães. E o casarão
Igreja de Rio
da Família Lundgren, chama- Tinto, construída
do até hoje de “O cas- por alemães
telo de Hitler”,
p e r - c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 39


O projeto era o de O conto de José Bezerra Fi- batem para comprar esse animal.
lho não menciona o povo ale- Mas eu amarrei os penteios e não
mão da Fábrica segundo o vendo nem por cem mil réis. Já
incendiar o casarão tema ideologia nazista no pe- botaram noventa e eu não dei. Se
ríodo de guerra, mas expressa botarem os cem, eu subo pra du-
que supostamente o clima difícil de convivência zentos. Não é que eu não precise
entre paraibanos e alemães e de dinheiro, porque você sabe que
recebia espiões foi aqui que me permiti pen- lá em casa não se tem um pau para
sar mais sobre o pano de fundo se dar num gato. Mas é que não
alemães nazistas desta tensão, pois o conto se quero vender meu cavalo a esses
encaixa no espírito de resistên- bichos da cor de fogo, de cabe-
cia na Paraíba, que não foi só ça raspada, que tão querendo se
para reuniões de ordem de reinvindicações apoderar de Rio Tinto, só, não!
de direitos trabalhistas, mas Eles estão chegando devagarinho.
clandestinas, e a do embate contra a ideologia Montam uma fábrica em Paulista,
nazista camuflada, reconhe- outra qui em Rio Tinto... Daqui
ideia também era cida nos “rumores do povo”, a pouso, se agente facilitar, eles
naquele resíduo de constata- invadem até Mamanguape, que
ção de fatos que nem sempre a quase chegou a ser capital do Es-
a de expulsar os história oficial (um nome para tado. Vendo não! O rabo arranca,
“história permitida”) se baseia. a tábua lasca de avoar as bandas
tecelões alemães Há três personagens emble- pros infernos, mas eu não vendo
máticos no espírito deste povo, meu cavalo a alemão nem por du-
de seus chalés, mas invocado por José Bezerra Filho zentos! (...) Agora, se aparecer um
no seu conto: Zé Cândido, um brasileiro e botar trinta mil réis, aí
não conseguiram tipo de Macunaíma paraibano, eu dou até fiado, porque o preço de
Tibiro, a figura de um capitalis- um cavalo bom é esse mesmo!
ta de microeconomias provin-
atear fogo, porque cianas, e Zé Ubaia, um finado, Esta parte do conto é clara-
morto pelos vigias da Fábrica mente ontológica. Define para
os vigias chegaram e que aparece para os vivos da o que o conto pode se destinar:
cidade, sendo muito respeitado. colocar em tema a resistência
a tempo. Ele é também um tipo de Don frente aos germânicos em tem-
Quixote invertido, bêbado e es- pos difíceis de lidar com isso 4.
garçado. Os personagens com- Haja vista, com base na histó-
põem um cenário que expressa ria, o poder dos Lundgren en-
no geral as transmutações na ci- controu o prelúdio de seu declí-
dade por conta da “invasão dos nio com uma invasão revoltada
alemães”. Frases no conto, como dos trabalhadores, em período
“qualquer dia desses, vou a essa de guerra, ao casarão da famí-
Baía da Traição, só para ver se lia. O projeto era o de incendiar
ainda tem índio” (FILHO, 1999, o casarão que supostamente re-
c manece como um mistério que 60) –, e outras mais, trazem o cebia espiões alemães nazistas
guarda segredos de um futuro clima de estranhamento diante para reuniões clandestinas, e a
que não ocorreu e também uma da conjuntura. Mas especial- ideia também era a de expulsar
densa história por ser contada. mente a frase citada foi muito os tecelões alemães de seus cha-
O clima de recusa da Paraíba sugestiva, pois me fez recordar lés, mas não conseguiram atear
ao povo estrangeiro, leia-se povo o massacre de índios acometido fogo, porque os vigias chega-
alemão, não foi do campo da xe- pelos donos da Fábrica, num ram a tempo. Além de algumas
nofobia, que é uma manifestação episódio conhecido como “Noi- leis trabalhistas consolidadas
de ódio numa busca de dirimir o te da Palha Queimada”, com in- em 1943, o clima de fim da Se-
reconhecimento da potência cul- cêndio em suas aldeias. 3 gunda Guerra haveria de fragi-
tural nativa de outros povos. A si- Com Zé Ubaia, a tensão lizar a autoestima dos alemães
tuação no Brasil era outra, grosso com os alemães é expressa em na cidade, até o movimento da
modo, de desespero mesmo, para maior vivacidade, quando ele história, em sua douta ironia,
findar com a guerra provocada fala, no desfecho do conto, so- trazer mais tarde um ex-ope-
pela xenofobia alemã. Estando o bre seu cavalo para Zé Cândi- rário da Fábrica dos Lundgren
Brasil na ala dos Aliados para com- do. E aqui está toda a beleza da para a gestão da cidade e a de-
bater contra o Führer do povo ale- resistência, expressa num por- marcação pelos índios da região
mão, como poderia se comportar tuguês particular (Id, 64): outrora invadida. Imaginem
o povo brasileiro sobre isso, senão como Zé Ubaia ficaria feliz com
no calor de sua clássica emoção? (...) os galegos da Fábrica se todo este ocorrido! Imaginem c

40 | João Pessoa, fevereiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c até mesmo ele em meio à noite
de rebelião no casarão, monta-
do em seu cavalo! Poderíamos
também não só imaginar o fina-
do Ubaia a transitar na cidade
provocando aparições (como
nos sugere o conto), mas tam-
bém que a lua de Rio Tinto até
hoje cintila a imagem do cavalo,
com Zé Ubaia nele cavalgando,
intrépido no combate aos “gale-
gos da Fábrica”! Finalmente, o
histórico e o literário ficam aqui
abrilhantados pelo lendário! E

Ana Monique Moura é ensaísta,


crítica cultural e doutoranda em
Filosofia pelo Programa Integrado Acima, casarão da Família
de Doutorado em Filosofia (UFPE- Lundgren. Abaixo, os
UFPB-UFRN), com estágio doutoral Lundgren. No detalhe ao
em Estética e Filosofia da Arte pela lado, a “águia nazista” em
Höchschule für Grafik und Buchkunst Rio Tinto
& Academy of fine Arts (Leipzig,
Alemanha). Mora em João Pessoa (PB).

1
Vale a leitura do texto ‘Oxente Hitler’, de
Hilton Gouvêa, publicado no Click PB ou,
do mesmo autor, ‘Nazismo em Rio Tinto’,
publicado no jornal A União (21 de julho
de 2013), e também o texto ‘Vestígios do
Nazismo na Paraíba ainda persistem’, de
Larissa Claro, publicado no Jornal da Pa-
raíba (24 de abril de 2015).

2
Sugiro o curta-metragem Irmãs (Gian
Orsini, 2011- PB), que narra os mitos e
não mitos da ideologia nazista na cidade
de Areia, onde freiras alemãs se instala-
ram em período da guerra.

3
Indico o curta-metragem Casarão
Potiguara (Poran Potiguara, 2013- PB),
que traz índios potiguaras falando sobre
o massacre de índios e a luta atual dos
Potiguaras frente à Funai e Ministério da
Cultura, para transformar o casarão em
um memorial dos índios ali mortos.

4
No campo da ficção, vale também
notar que o escritor paraibano Horácio
de Almeida, ao considerar a possibili-
dade dos planos de Hitler em chegar o
Brasil, escreveu um romance intitulado
Quando Hitler exilou-se em Cacimba de
Dentro, Paraíba. Sobre a obra, o autor
chegou a afirmar, de maneira provoca-
tiva: “Pesquisei muito sobre a vida de
Hitler para escrever este livro. E eu não
minto. Só aumento.” (In: BALBINO, Jés-
sica. Autor lança romance que narra
morte fictícia de Hitler no sertão. G1 Sul
de Minas. 27/04/2014).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2017 | 41


6 tramas visuais L í v i a
C
o
s
t
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