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A Manipulação do Homem através da Linguagem

Alfonso López Quintás


lquintas@eucmax.sim.ucm.es
(Tradução: Elie Chadarevian)
Coleção e observações (*): Pedro Henrique Chrispim
(*) – em azul, no texto
INTRODUÇÃO

A história do artigo abaixo é mais ou menos a seguinte:


• De longa data, tem havido dominadores, na História da Humanidade. Alexandre, o Grande;
os Césares de Roma, Gengis Khan, Átila, Carlos Magno, Filipe IV (o Belo), Napoleão, etc.
etc.;
• Países também exerceram forte domínio: Egito, Macedônia, Roma, França, Inglaterra,
Estados Unidos....
• A mais eficaz forma de domínio sempre foi a de os dominados aceitarem a situação de
dominados;
• O poder seduz e a História comprova que os poderosos tentaram manter, aumentar e
perpetuar sua dominação;
• É, portanto, meramente um resultado de raciocínio lógico a afirmação de que os
dominadores (e seus seguidores próximos) sempre estiveram a estudar como dominar mais
amplamente, mais abrangentemente, mais duradouramente, mais intensamente;
• Estudaram, portanto, como convencer os povos de que era bom para eles serem dominados
– não desta forma direta, é lógico, mas com requinte e sutileza: de como é bom para eles um
determinado sistema de vida e de pensamento que, sem que eles os percebam leva-os a
serem dominados, a serem manipulados;
• Pensadores de todos os povos e de todas as épocas se ocuparam do assunto. Dentre as
mais famosas, uma das obras resultantes desses pensamentos é "O Príncipe", de Niccolo
Macchiavelli;

O pensador espanhol Alfonso Lopez Quintás estudou o assunto e escreveu um artigo interessante, onde
cita fontes insuspeitas, como Ortega y Gasset, MacLuhan, Albert Einstein, Heidegger...
Este artigo foi traduzido do espanhol para o português por Elie Chadarevian;
Mais tarde, Luiz Barros fez uma condensação do trabalho.

A leitura atenta do artigo abaixo faz-nos pensar sobre assuntos aparentemente desconectados entre si,
como a massificação de programas de TV que não só nada contribuem para a formação e
esclarecimento das pessoas, como também atuam como ópio alienante --- veja-se os programas de
auditório e os de vulgarização de conflitos familiares --- e a divulgação de fatos importantes, como os
políticos, econômicos e sociais.

Talvez devamos reavaliar nossa atitude ante a [des]informação que nos chega diariamente, escrita,
falada ou televisada; talvez devamos reavivar e aguçar nosso senso crítico, passando a analisar o
conteúdo do que nos chega aos olhos e ouvidos, exercitando mentalmente a retirada das "embalagens"
vistosas com que nos chegam (textos elaborados e bem paginados, imagens "autênticas" bem montadas
e nos melhores ângulos, entrevistas com gurus nem sempre capacitados para o papel que exercem, mas
muito bem propagados e bajulados, editoriais de âncoras cuja imagem é cuidadosamente fabricada e
mantida...).

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A Manipulação do Homem através da Linguagem[1]

O grande humanista e cientista Albert Eisntein fez esta severa advertência: "A força
desencadeada pelo átomo transformou tudo menos nossa forma de pensar. Por isso caminhamos para
uma catástrofe sem igual". Que forma de pensar deveríamos ter mudado para evitar esta hecatombe?
Sem dúvida, Einstein se referia ao estilo de pensar objetivista, dominador e possessivo que se esgotou
com a primeira guerra mundial e não foi substituído por um modo de pensar, sentir e querer mais
adequado à nossa realidade humana.

Os pensadores mais lúcidos têm insistido desde o entre-guerras a mudar o ideal, realizar uma
verdadeira metanóia e, mediante uma decidida vontade de servir, superar o afã de poder. Esta mudança
foi realizada em círculos restritos, mas não nas pessoas e nos grupos que decidem os rumos da
sociedade. Nestes, continuou operante um afã descontrolado de domínio, domínio sobre coisas e sobre
pessoas.

O domínio e controle sobre os seres pessoais se leva a cabo mediante as técnicas de


manipulação. O exercício da manipulação das mentes tem especial gravidade hoje por três razões
básicas:
1. Continua orientando a vida para o velho ideal de domínio, que provocou duas hecatombes
mundiais e hoje não consegue preencher nosso espírito pois já não podemos crer nele;
2. Impede de se dar uma reviravolta para um novo ideal que seja capaz de levar à plenitude de
nossa vida;
3. Incrementa a desordem espiritual de uma sociedade que perdeu o ideal que perseguiu durante
séculos e não consegue descobrir um novo que seja mais de acordo com a natureza humana.

Se quisermos colaborar eficazmente para construir uma sociedade melhor, mais solidária e mais
justa, devemos identificar os ardis da manipulação e aprender a pensar com todo o rigor. Não é muito
difícil. Um pouco de atenção e agudeza crítica nos permitirá desmascarar as prestidigitações de
conceitos que se estão cometendo e aprender a fazer justiça à realidade. Esta fidelidade ao real nos
proporcionará uma imensa liberdade interior.

Não basta vivermos num regime democrático para sermos livres de verdade. A liberdade deve
ser conquistada dia a dia opondo-se àqueles que ardilosamente tentam dominar-nos com os recursos
dessa forma de ilusionismo mental que é a manipulação. Esta conquista só é possível se tivermos uma
idéia clara a respeito de quatro questões:

1ᄎ O que significa manipular ?


2ᄎ Quem manipula ?
3ᄎ Para que manipula ?
4ᄎ Que tática utiliza para este fim ?

A análise destes quatro pontos permitir-nos-á discernir se é possível dispor de um antídoto para
a manipulação. Estamos a tempo de defender nossa liberdade pessoal e tudo o que ela representa.
Façamo-lo decididamente.

1. O que significa manipular ?

Manipular equivale a manejar. De per si, somente os objetos são suscetíveis de manejo. Posso
utilizar uma esferográfica para minhas finalidades, guardá-la, trocá-la, descartá-la. Estou no meu direito,
porque se trata de um objeto. Manipular é tratar uma pessoa ou grupo de pessoas como se fossem
objetos, a fim de dominá-los facilmente. Essa forma de tratamento significa um rebaixamento, um
aviltamento.

Esta redução ilegítima das pessoas a objetos é a meta do sadismo. Ser sádico não significa ser
fisicamente cruel, como geralmente se pensa. Implica em tratar uma pessoa de uma forma que a rebaixa
de condição. Esse rebaixamento pode realizar-se através da crueldade ou através da ternura erótica.
Quando, ainda em tempos recentes, introduzia-se um grupo numeroso de prisioneiros num vagão de
trem como se fossem embrulhos, e os faziam viajar durante dias e noites, o que se pretendia não era
tanto fazê-los sofrer, mas aviltá-los. Sendo tratados como meros objetos, em condições subumanas,
acabavam considerando-se mutuamente seres abjetos e repelentes. Tal consideração os impedia de
unirem-se e formar estruturas sólidas que poderiam gerar uma atitude de resistência. Reduzir uma
pessoa à condição de objeto para dominá-la sem restrições é uma prática manipuladora sádica. Já a
carícia erótica reduz a pessoa ao corpo, a mero objeto de prazer. É reducionista, e, nessa mesma
medida, sádica, ainda que pareça terna. A carícia pode ser de dois tipos: erótica e pessoal. Para
compreender o que, a rigor, o erotismo é, recordemos que, segundo a pesquisa ética contemporânea, o
amor conjugal apresenta quatro aspectos ou ingredientes:
1. A sexualidade, na medida em que implica atração instintiva pela outra pessoa, de prazer
sensorial, de comoção psicológica;
2. A amizade, forma de unidade estável, afetuosa, compreensiva, colaboradora, que deve ser
criada de modo generoso, já que não possuímos instintos que, postos em jogo, dêem lugar a
uma relação deste gênero;
3. A projeção comunitária do amor. O homem, para viver como pessoa, deve criar vida comunitária.
O amor começa sendo dual e privado, mas abriga em si uma força interior que o leva a adquirir
uma expansão comunitária. Isto acontece no dia do casamento, quando a comunidade de
amigos e – no caso religioso – de fiéis acolhe o amor dos novos esposos;
4. A relevância e fecundidade do amor. O amor conjugal tem um poder singular para incrementar o
afeto entre os esposos e dar vida a novos seres. Não há nada maior no universo do que uma
vida humana e o amor verdadeiro por outra pessoa. Por isso o amor conjugal tem uma
relevância singular, uma plenitude de sentido e um valor impressionantes.

Estes quatro elementos (sexualidade, amizade, projeção comunitária, relevância) não devem
estar meramente justapostos, um ao lado do outro. Devem estar estruturados. Uma estrutura é uma
constelação de elementos articulados de tal forma que, se um falha, o conjunto desmorona.

Agora podemos compreender de modo preciso o que é o erotismo. Consiste em isolar o primeiro
elemento, a sexualidade, para obter uma recompensa passageira, e prescindir dos outros três. Essa
separação puramente passional destrói o amor na raiz, privando-o de seu sentido pleno e de sua
identidade. Por isso é violento ainda que pareça cordial e terno. Exerço a sexualidade isolada, porque
interessa a meus próprios fins, e prescindo da amizade. Na realidade, não amo a outra pessoa; desejo o
prazer que me é dado por alguns de seus atributos. Deixo também de lado a expansão comunitária do
amor. Não presto atenção à vida de família que o amor está chamado a promover. Recolho-me à solidão
de meus proveitos imediatos. Por isso reduzo a outra pessoa a mera fonte de satisfações para mim.
Essa redução desconsiderada é violenta e sádica. Posso jurar amor eterno, mas serão palavras vãs,
pois o que aqui entendo por amor é simplesmente interesse de saciar minha avidez erótica.

É muito conveniente distinguir nitidamente nossos dois planos: o corpóreo e o espiritual, o que é
passível de ser manejado e o que requer respeito. Quando uma pessoa acaricia a outra, põe seu corpo
em primeiro plano, concede-lhe uma atenção especial. Sempre que uma pessoa se relaciona com
outras, seu corpo assume certo papel na medida em que lhe permite falar, ouvir, ver... Se não se trata de
uma comunicação afetiva, o corpo exerce a função de trampolim para passar ao mundo das
significações que se quer transmitir. Falamos durante horas sobre uma coisa e outra, e ao final
lembramos perfeitamente o que dissemos, a atitude que tomamos, os fins que perseguimos, mas
possivelmente não sabemos de que cor são os olhos do nosso interlocutor. Estivemos juntos, mas não
detivemos nossa atenção na vertente corpórea. Não acontece assim nos momentos de trato amoroso.
Nestes, o corpo da pessoa amada adquire uma densidade peculiar e prende a atenção daquele que
manifesta seu amor. O amante volta-se de modo intenso para o corpo da amada. Vê-se nele a
expressão sensível do ser amado e toma seu gesto de ternura como um ato no qual está incrementando
seu amor à pessoa, seu modo de acariciar terá um caráter pessoal. Em tal caso, o corpo acariciado
adquire honras de protagonista, mas não exclui a pessoa, antes a torna presente de modo tangível e
valioso. A carícia pessoal não se limita ao corpo, se estende à pessoa. Quando duas pessoas se
abraçam, seus corpos entrelaçados assumem um papel de destaque, mas não constituem a meta da
atenção; são o meio de expressão do afeto mútuo. A pessoa, em tal abraço, não fica relegada a um
segundo plano. É, pelo contrário, realçada. Porém, se a atenção se detém exclusivamente no corpo
acariciado, simplesmente pela atração sensorial que tal gesto implica, o corpo invade todo o campo da
pessoa. Esta é vista como objeto, realidade de que se pode dispor, manejar, possuir, desfrutar... Ora, um
objeto não pode ser amado, mas somente apetecido. Daí o caráter triste da expressão "mulher-objeto"
aplicada a certas figuras femininas exibidas como objeto de contemplação em alguns espetáculos ou
tomadas como objeto de posse no dia-a-dia.

O amor erótico dos sedutores do tipo Dom Juan é possessivo, e na mesma medida une-se ao
engodo e à violência. Dom Juan, o "Burlador de Sevilha", segundo a perspicaz formulação de Tirso de
Molina, comprazia-se em burlar as vítimas de seus enganos e resolver as situações comprometedoras
com o manejo eficaz da espada. Esta violência inata, muitas vezes encoberta, do amor erótico explica
como se pode passar sem solução de continuidade de situações de máxima "ternura" aparente a outras
de extrema violência. Na realidade, aí não há ternura, mas sim redução de uma pessoa a objeto. A
violência de tal redução não fica menor ao afirmar que se trata de um objeto adorável, fascinante. Estes
adjetivos não retiram do substantivo "objeto" o que ele tem de injusto, de não ajustado à realidade.
Rebaixar uma pessoa do nível que lhe corresponde é uma forma de manipulação agressiva que gera os
diferentes modos de violência que a sociedade atual registra. A principal tarefa dos manipulados consiste
em ocultar a violência sob o véu sedutor do fomento das liberdades.

Na origem da cultura ocidental, Platão entendeu por "eros" a força misteriosa que eleva o homem
a regiões cada vez mais altas de beleza, bondade e perfeição. Atualmente, se entende por "erotismo" o
manejo desenfreado das forças sexuais, sem outro critério e norma que o da própria satisfação imediata.
Obviamente, este encerramento no plano do proveito imediato indica uma regressão cultural.

2. Quem manipula ?

Manipula aquele que quer vencer-nos sem convencer-nos, seduzir-nos para que aceitemos o
que nos oferece sem dar-nos razões. O manipulador não fala à nossa inteligência, não respeita nossa
liberdade; atua astutamente sobre nossos centros de decisão a fim de arrastar-nos a tomar as decisões
que favorecem seus propósitos.

Em um comercial de televisão apresentou-se um carro luxuoso. Em seguida, no lado oposto da


tela, apareceu a figura de uma belíssima jovem. Não disse uma só palavra, não fez o menor gesto;
simplesmente mostrou sua encantadora imagem. Imediatamente o carro começou a andar por paisagens
exóticas, e uma voz nos sussurrou amavelmente ao ouvido: "Deixe rolar todo tipo de sensações!". Nesse
anúncio não se dá razão alguma para se escolher esse carro em vez de outro. Sua imagem se articula
com realidades atrativas para milhões de pessoas e envolve todas no halo de uma frase impregnada de
aderências sentimentais. Desse modo, o carro fica aureolado de prestígio. Quando você for à
concessionária, você se sentirá inclinado a escolher este carro. E o carro você leva, mas não a mulher.
Na verdade, ninguém tinha prometido que, se você comprasse o carro, teria a possibilidade de acesso à
mulher, o que teria sido um modo de dirigir-se à sua inteligência. Limitaram-se a influir sobre sua vontade
de forma tortuosa, astuta. Não o enganaram; mas sim manipularam-no, o que é uma forma sutil de
enganar. Estimularam seu apetite com sensações gratificantes a fim de orientar sua vontade para a
compra deste produto, não para satisfazer ou ajudar a desenvolver sua personalidade. Você foi reduzido
a mero objeto (cliente-objeto). Essa forma de reducionismo é a quintessência da manipulação e,
infelizmente, é a própria mola mestra do método que a civilização escolheu para a publicidade – de
produtos, serviços, políticos e até idéias.

Uma das conseqüências da massificação desse tipo de publicidade já é perceptível no


comportamento de grande parte das pessoas, incluindo as crianças, desde pequenas: um forte
sentimento de posse. Já não é mais possível apreciar algo belo; é necessário possuí-lo, ser-lhe o dono,
o proprietário. Este tipo de pessoa se encontra em um estágio de alienação que o torna grandemente
manipulável.

Este tipo de manipulação comercial costuma acompanhar outra muito mais perigosa ainda: a
manipulação ideológica, que impõe idéias e atitudes de forma oculta, graças à força de arrasto de certos
recursos estratégicos. Assim, a propaganda comercial difunde, muitas vezes, a atitude consumista e a
faz valer sob o pretexto de que o uso de tais e quais artefatos é sinal de alta posição social e de
progresso. Um anúncio de um carro luxuoso dizia: "O carro dos vencedores. Você que é um vencedor
deve usar este carro, que vence na estrada. Carro tal: o vitorioso!" Se considerarmos a forte
predominância, praticamente em todos os momentos da humanidade, do respeito humano – expressão
que significa, explicando simplificadamente, o medo e o desconforto em ser ‘diferente’, em manifestar-se
de forma diferente do ‘comum’ das pessoas, em opinar com tom de crítica ou discordância sobre teses
que todos ou a maioria esteja defendendo - o trabalho de manipulação da publicidade se mostra
facilitado.
Ambições e desejos menos consistentes e menos confessáveis também constituem fragilidades
que tornam as pessoas e os grupos mais sujeitos à manipulação, pois ampliam o espaço de manobra
dos manipuladores, que aproveitam todas as fragilidades disponíveis, destituídos que são de escrúpulos
morais, e lhes oferecem terreno fértil, pois promessas de atendimento a ambições ou afagos a um ego
suscetível, explícitos ou implícitos, constituem ferramentas muito poderosas para manipulação.

Para um entendimento mais claro, exemplificamos com a já citada campanha publicitária do


automóvel, associando-o a mulheres lindas: quanto mais suscetível for a “vítima” (neste caso, masculina)
à idéia subliminar de que o número, a beleza e o status social das mulheres conquistadas representam
galardões de realização humana, mais atingido será pela citada publicidade – que também ‘funciona’
com as mulheres, estas se deixando sugestionar na medida em que se identificam com a imagem de
sucesso transmitida na campanha e – por que não – com a beleza física das modelos ali mostradas. Já
pessoas mais amadurecidas, tanto homens quanto mulheres, mostram-se menos sugestionáveis a essa
propaganda porque não se sentem tão espicaçados por desejos e ambições íntimas.

Quando se quer impor atitudes e idéias referentes a questões básicas da existência – a política,
a economia, a ética, a religião... – a manipulação ideológica torna-se extremamente perigosa.
Atualmente, muitas vezes se entende por "ideologia" um sistema de idéias esclerosadas, rígido, que não
suscita adesões por carecer de vigência e, portanto, de força persuasiva. Se um grupo social assume
radicalmente este sistema como programa de ação e quer impô-lo, só dispõe de dois recursos:
1. A violência, que se encaminha para a tirania explícita;
2. A astúcia, que o faz recorrer à manipulação. As formas de manipulação praticadas por razões
"ideológicas" costumam mostrar um notável refinamento, já que são programadas por
profissionais de estratégia [2].

3. Para que se manipula ?

A manipulação atende, em geral, à vontade de dominar pessoas e grupos em algum aspecto da


vida e dirigir sua conduta. A manipulação comercial quer converter-nos em clientes, com o simples
objetivo de que adquiramos um determinado produto, compremos entradas para certos espetáculos, nos
associemos ao clube tal... O manipulador ideólogo pretende modelar o espírito de pessoas e povos a fim
de adquirir domínio sobre eles de forma rápida, contundente, massiva e fácil. Como é possível dominar
um povo desta forma? Reduzindo-o de comunidade a massa. Aristóteles já citava a grande diferença
entre a nobreza da arte de governar uma comunidade pensante – a mais elevada das artes – e a
baixeza de dominar uma massa ideologicamente passiva.

As pessoas, quando têm idéias valiosas, convicções éticas sólidas, vontade de desenvolver
todas as possibilidades de seu ser, tendem a unir-se solidariamente e estruturar-se em comunidades.
Devido à sua coesão interna, uma estrutura comunitária torna-se inexpugnável. Pode ser destruída de
fora com meios violentos, mas não dominada interiormente por meio de assédio espiritual. Se as
pessoas que integram uma comunidade perdem a capacidade criadora e não se unem entre si com
vínculos firmes e fecundos, deixam de integrar-se numa autêntica comunidade; perdem sua cultura; dão
lugar a um punhado amorfo de meros indivíduos: uma massa. O conceito de massa é qualitativo, não
quantitativo. Um milhão de pessoas que se manifestam numa praça com um sentido bem definido e
ponderado, denotando possuir uma cultura, não constituem uma massa, mas sim uma comunidade, um
povo. Duas pessoas, um homem e uma mulher, que compartilham a vida numa casa mas não se
encontram devidamente unidas formam uma massa. A massa se compõe de seres que agem entre si
como se fossem objetos, através de justaposição e choque. A comunidade é formada por pessoas que
unem seus âmbitos de vida para dar lugar a novos âmbitos e enriquecer-se mutuamente.

Ao carecer de coesão interna, a massa é facilmente dominável e manipulável pelos sequiosos do


poder. Isso explica porque a primeira preocupação de todo tirano – tanto nas ditaduras como nas
democracias, já que em ambos os sistemas políticos existem pessoas desejosas de vencer sem
necessidade de convencer – seja a de privar as pessoas, na maior medida possível, da capacidade
criadora e da capacidade de observação crítica. Tal despojamento se leva a cabo mediante as táticas de
persuasão dolosa que a manipulação mobiliza.
4. Como se manipula ?

Numa democracia as coisas não são fáceis para o tirano. Ele quer dominar o povo, e deve faze-
lo de forma dolosa para que o povo não perceba, pois, numa democracia, o que os governantes
prometem é, antes de tudo, liberdade. Nas ditaduras se promete eficácia à custa das liberdades. Nas
democracias são prometidos níveis nunca alcançados de liberdade, ainda que à custa da eficácia. Que
meios um tirano tem à sua disposição para submeter o povo enquanto o convence de que é mais livre do
que nunca?

Esse meio é a linguagem. A linguagem é o maior dom que o homem possui, mas também, o mais
arriscado. É ambivalente: a linguagem pode ser terna ou cruel, amável ou displicente, difusora da
verdade ou propagadora da mentira. A linguagem oferece possibilidades para, em comum, descobrir a
verdade, e proporciona recursos para tergiversar as coisas e semear a confusão. Basta conhecer tais
recursos e manejá-los habilmente, e uma pessoa pouco preparada mas astuta pode dominar facilmente
as pessoas e povos inteiros se estes não estiverem de sobreaviso. Para compreender o poder sedutor
da linguagem manipuladora, devemos estudar quatro pontos: os termos, os esquemas, as propostas e
os procedimentos.

a. Os termos

A linguagem cria palavras e expressões, e em cada época da história algumas delas adquirem
um ‘prestígio’ especial, de forma que ninguém ousa questioná-la (vide o respeito humano...). São
palavras e expressões "talismãs", que parecem condensar em si tudo que há de positivo e excelente na
vida humana.

Uma importante palavra talismã de nossa época é liberdade. Uma palavra talismã tem o poder
de prestigiar as palavras que dela se aproximam e desprestigiar as que se opõem ou parecem opor-se a
ela. Hoje se aceita como óbvio – o manipulador nunca demonstra nada, assume como evidente o que
lhe convém – que a censura, qualquer tipo de censura, sempre se opõe à liberdade. Conseqüentemente,
a palavra censura está atualmente desprestigiada. Já as palavras independência, autonomia,
democracia e co-gestão estão unidas com a palavra liberdade e convertem-se, por isso, numa espécie
de termos talismãs por aderência.

O manipulador dos termos talismãs sabe que, ao introduzi-los num discurso, o povo fica
intimidado, não exerce seu poder crítico, aceita ingênua e/ou amedrontadamente o que lhe é proposto.
Quando, em certo país europeu, realizou-se uma campanha a favor da introdução da lei do aborto, o
ministro responsável por tal lei tentou justificar-se com o seguinte raciocínio: "A mulher tem um corpo e é
necessário dar à mulher liberdade para dispor desse corpo e de tudo que nele acontece". A afirmação de
que "a mulher tem um corpo" é desmontada pela melhor filosofia desde há quase um século. Nem a
mulher nem o homem ‘temos’ corpo; ‘somos’ corpóreos. Há um abismo enorme entre estas duas
expressões. O verbo ter é adequado quando se refere a realidades possuíveis, ou seja: objetos. Mas o
corpo humano, seja da mulher ou do homem, não é algo possuível, algo de que possamos dispor –
senão o suicídio seria perfeitamente válido e até sadio – é, sim, uma vertente de nosso ser pessoal,
assim como o espírito é outra vertente. Posso vender meu automóvel e comprar outro, mas não posso
fazer isso com meu corpo. Estendo a mão para cumprimentar e você sente a vibração do meu afeto
pessoal. É toda minha pessoa que sai ao seu encontro. O fato de que meu ser pessoal inteiro vibre na
palma de minha mão põe em evidência que o corpo não é um objeto. Não há objeto, por excelente que
seja, que tenha esse poder. O ministro intuiu sem dúvida que a frase "a mulher tem um corpo" é muito
frágil, não se sustenta no estado atual da pesquisa filosófica e assim, para dar força a seu argumento,
introduziu imediatamente o termo talismã liberdade: "A mulher tem um corpo e é necessário dar à mulher
liberdade para dispor desse corpo...". Ele sabia que, com a mera utilização desse termo supervalorizado
no momento atual, milhões de pessoas iriam encolher-se timidamente: "É melhor não contestar essa
sentença porque o que está em jogo é a liberdade e serei tachado de antidemocrata, de fascista, de
radical" (de novo o respeito humano, talvez a característica mais útil nos manipuláveis para os
manipuladores). E assim, efetivamente, aconteceu.
Se queremos ser interiormente livres de verdade, devemos perder o medo da linguagem do
manipulador e matizar o sentido das palavras, isto é, explicar-lhe o significado tão exato quanto possível
no contexto em que é pronunciada ou escrita. O ministro não indicou a que tipo de liberdade se referia,
porque o primeiro mandamento do demagogo é não matizar a linguagem. De fato, ele aludia à liberdade,
à "liberdade de manobra", à liberdade, neste caso, de cada mulher manobrar, segundo seu capricho, a
vida nascente: respeitá-la ou eliminá-la. A "liberdade de manobra" não é propriamente uma forma de
liberdade; é antes uma condição para ser livre. Alguém começa a ser livre quando, podendo escolher
entre diversas possibilidades – liberdade de manobra – opta por aquelas que lhe permitem desenvolver
sua personalidade de modo completo – liberdade criativa – Mas uma pessoa que utilize essa liberdade
de manobra contra a semente da vida, que corre aceleradamente até a plena constituição de um ser
humano, estará se orientando para a plenitude de seu ser pessoal? Viver pessoalmente é viver fundando
e fundamentando-se em relações comunitárias, criando vínculos. Aquele que rompe vínculos
fecundíssimos com a vida que nasce destrói na raiz seu poder criador e, portanto, bloqueia seu
desenvolvimento como pessoa.

Tudo isto se vê claramente quando se reflete. Mas o demagogo, o tirano, o que deseja
conquistar o poder pela via rápida da manipulação, age com extrema rapidez, para não dar tempo às
pessoas para pensar e submeter à reflexão pausada cada um dos temas. Com isso não se detém nunca
para matizar os conceitos e justificar o que afirma; como se houvesse um grande consenso, expõe seu
tema com termos ambíguos, imprecisos. Isso lhe permite a cada momento destacar dos conceitos o
aspecto que interessa a seus fins. Quando realça um aspecto, o faz como se fosse o único, como se
todo o alcance de um conceito se limitasse a essa vertente. Dessa forma evita que as pessoas a quem
se dirige tenham elementos de juízo suficientes para esclarecer as questões por si mesmas e fazerem
uma idéia serena e bem ponderada dos problemas tratados. Ao não poder aprofundar-se numa questão,
o homem está predisposto a deixar-se arrastar. É uma árvore sem raízes que qualquer vento leva,
principalmente se este sopra a favor de suas próprias tendências elementares. Daí, para facilitar seu
trabalho de arraste e sedução, o manipulador afaga as tendências inatas das pessoas e se esforça em
obstruir seu sentido crítico.

Toda forma de manipulação é uma espécie de malabarismo intelectual. Um mágico, um


ilusionista faz truques surpreendentes que parecem "mágica" porque realiza movimentos muito rápidos,
que o público não percebe. O demagogo procede desse mesmo modo, com estudada precipitação, a fim
de que as multidões não percebam seus truques intelectuais e aceitem como possíveis os malabarismos
e as escamoteações mais inverossímeis de conceitos, e toda sorte de sofismas. Um manipulador
proclama, por exemplo, às pessoas que "lhes devolveu as liberdades", mas não se detém para precisar a
que tipo de liberdades se refere: se são as liberdades de manobra que podem levar a experiências de
fascinação – que precipitam o homem na asfixia – ou a liberdade para serem criativos e realizar
experiências de encontro, que leva ao pleno desenvolvimento da personalidade. Basta pedir a um
demagogo que matize um conceito para desvirtuar suas artes hipnóticas.

Na verdade, Ortega y Gasset tinha razão ao advertir: "Cuidado com os termos, que são os
déspotas mais duros a subjugar a humanidade!". Um estudo da linguagem, por sumário que seja, nos
revela que "na história as palavras são freqüentemente mais poderosas que as coisas e os fatos". (M.
Heidegger [3] ). A versão vale mais que o fato…

b. Os esquemas mentais

Do mau uso dos termos decorre uma interpretação errônea dos esquemas que articulam nossa
vida mental. Quando pensamos, falamos e escrevemos, estamos sendo guiados por certos pares de
termos: liberdade-norma de conduta, dentro-fora, autonomia-heteronomia... Se pensamos que estes
esquemas são dilemas, de forma que devamos escolher entre um ou outro dos termos que os
constituem, não poderemos realizar nenhuma atividade criativa na vida. A criatividade é sempre dual. Se
penso que o que está fora de mim é diferente, distante, externo e estranho a mim, não posso colaborar
com aquilo que me rodeia e anulo minha capacidade criativa em todos os níveis.
Um dia uma aluna disse em classe o seguinte: "Na vida temos que escolher: ou somos livres ou
aceitamos normas; ou agimos conforme o que nos vem de dentro ou conforme o que nos vem imposto
de fora. Como eu quero ser livre, deixo de lado as normas". Esta jovem entendia o esquema liberdade-
norma como um dilema. E assim, para ser autêntica, para agir com liberdade interior se sentia obrigada
a prescindir de tudo o que lhe tinham dito de fora sobre normas morais, dogmas religiosos, práticas
piedosas, etc. Com isso se afastava da moral e da religião que lhe foi dada e -o que é ainda mais grave-
tornava impossível toda atividade verdadeiramente criativa.

Aqui está o temível poder dos esquemas mentais. Se um manipulador lhe sugere que para ser
autônomo em seu agir você deve deixar de ser heterônomo e não aceitar nenhuma norma de conduta
que lhe seja proposta do exterior, diga-lhe que é verdade mas só em um caso: quando agimos de modo
passivo, não criativo. Seus pais pedem que você faça algo, e você obedece forçado. Então você não age
autonomamente. Mas suponhamos que você percebe o valor do que foi sugerido e o assume como
próprio. Esse seu agir é ao mesmo tempo autônomo e heterônimo, porque é criativo.

Quando era criança, minha mãe me dizia: "Pega esse sanduíche e dá ao pobre que tocou a
campainha". Eu resistia porque era um senhor de barba comprida e me dava medo. Minha mãe insistia:
"Não é um bandido; é um necessitado. Vai lá e dá para ele". Minha mãe queria que eu me iniciasse no
campo de irradiação do valor da piedade. O valor da piedade me vinha sugerido de fora, mas não
imposto. Ao reagir positivamente ante esta sugestão de minha mãe fui, pouco a pouco, assumindo o
valor da piedade, até que se converteu numa voz interior. Com isso, este valor deixou de estar fora de
mim para converter-se no impulso interno do meu agir. Nisto consiste o processo de formação. O
educador não penetra na área de imantação dos grandes valores, e nós os vamos assumindo como algo
próprio, como o mais profundo e valioso de nosso ser.

Agora vemos com clareza a importância decisiva dos esquemas mentais. Um especialista em revoluções
e conquista de poder, Stalin, afirmou o seguinte: "De todos os monopólios de que desfruta o Estado,
nenhum será tão crucial como seu monopólio sobre a definição das palavras. A arma essencial para o
controle político será o dicionário". Nada mais certo, desde que vejamos os termos dentro do quadro
dinâmico dos esquemas, que são o contexto em que desempenham seu papel expressivo.

c. As abordagens (‘plantea- mientos’) estratégicas

Com os termos da linguagem se propõem (plantean) as grandes questões da vida. Devemos ter
o máximo cuidado com o que se propõe (planteamientos). Se você aceita uma proposta (planteamiento),
terá que ir para onde o levem. Desde a infância deveríamos estar acostumados a discernir quando uma
proposta (planteamiento) é autêntica e quando é falsa. Nos últimos tempos as coisas estão mal
colocadas (planteadas), com a finalidade estratégica de dominar o povo. Temas tão graves como o
divórcio, o aborto, o amor humano, a eutanásia... Quase sempre são abordados (plantean) de forma
sentimentalóide, como se apenas se tratasse de resolver problemas agudos de certas pessoas. Ou de
personagens momentaneamente famosos de novelas e programas de TV... Para comover o povo,
apresentam-se cifras exageradas de matrimônios dissolvidos, de abortos clandestinos, realizados em
condições desumanas... Tais cifras são um ardil do manipulador. O Dr. B. Nathanson, diretor da maior
clínica abortista dos EUA, manifestou que foi ele e sua equipe que inventaram a cifra de 800.000 abortos
por ano em seu país. E ficavam surpresos ao ver que a opinião pública engolia o dado e o propagava
com total ingenuidade. Hoje, convertido à defesa da vida, sente vergonha de tal fraude e recomenda
vivamente que não se aceitem as cifras apresentadas para apoiar certas campanhas.

Hoje em dia, a indústria do entretenimento chega a mostrar tais ‘truques' em suas peças, tal a
confiança de que o público não se conscientiza. No filme “Seis dias, sete noites”, com os atores Harrison
Ford e Anne Heche, há um interessante diálogo entre a editora chefe de uma revista feminina nova-
iorquina e sua principal assessora. Afirmava a primeira, a propósito de problemas sentimentais da
segunda, que “26% dos casamentos são desfeitos em restaurantes”, ao que responde prontamente a
segunda: “Incrível! Você se esqueceu de que inventamos essa estatística para a edição de maio de
nossa revista ?” Quantas vezes fatos semelhantes devem ocorrer com os veículos de comunicação ?
d. Os procedimentos estratégicos

Há diversos meios para dominar o povo sem que este repare. Vejamos um exemplo; nele eu não minto
mas manipulo. Três pessoas falam mal de uma Quarta, e eu conto a esta exatamente o que me
disseram, mas altero um pouco a linguagem: ao invés de dizer que tais pessoas concretas disseram
isso, digo que é o ‘pessoal’ que anda falando. Passo do particular ao coletivo. Com isso não só infundo
medo a essa pessoa, mas também angústia, que é um sentimento muito mais difuso e penoso. O medo
é um temor ante algo adverso que nos enfrenta de maneira aberta e nos permite tomar medidas. A
angústia é um medo envolvente: você não sabe a que recorrer. Onde está "o pessoal" que o atacou com
maledicências? "O pessoal" é , assim como o clássico “eles”, uma realidade anônima, envolvente, como
neblina que nos envolve. Sentimo-nos angustiados.

Tal angústia é provocada pelo fenômeno sociológico do boato, que parece ser tão poderoso
quanto covarde devido a seu anonimato. "Andam dizendo que tal ministro praticou um desvio de verbas".
Mas quem anda dizendo? "O pessoal, ou seja, ninguém em concreto e potencialmente todos".

Outra forma tortuosa, sinuosa, sub-reptícia, de vencer o povo sem preocupar-se em convencê-lo é a de
repetir uma e outra vez, através dos meios de comunicação, idéias ou imagens carregadas de intenção
ideológica. Não se entra em questões, não se demonstra nada, não se vai ao fundo dos problemas.
Simplesmente lançam-se chavões, fazem-se afirmações contundentes, propagam-se slogans buscando
maquiá-los de sentenças carregadas de sabedoria. Este bombardeio diário modela a opinião pública,
porque as pessoas acabam tomando o que se afirma como o que todos pensam, como aquilo de que
todos falam, como o que se usa, o atual, o normal, o que faz norma e se impõe – e acaba por impor-se
realmente...

Atualmente, a força do número é determinante, já que o que é decisivo depende do número de votos. O
número é algo quantitativo, não qualitativo. Daí a tendência a igualar todos os cidadãos, para que
ninguém tenha poder de direção de ordem espiritual e a opinião pública possa ser modelada
impunemente por quem domina os meios de comunicação. Uma das metas do demagogo é anular, de
uma forma ou outra, aqueles que podem descobrir suas trapaças, seus truques de ilusionista.

A redundância desinformativa tem um poder insuspeitável de criar opinião, fazer ambiente,


estabelecer um clima propício a toda classe de erros. Basta criar um clima de superficialidade no
tratamento dos temas básicos da vida para tornar possível a difusão de todo tipo de falsidades. Segundo
Anatole France, "uma tolice repetida por muitas bocas não deixa de ser uma tolice". Certamente, mil
mentiras não fazem uma só verdade. Mas uma mentira ou uma meia verdade repetida por um meio
poderoso de comunicação se converte em uma verdade de fato, incontrovertida; chega a construir uma
"crença", no sentido orteguiano de algo intocável, de base, em que se assenta a vida intelectual do
homem e que não cabe discutir sem expor-se ao risco de ser desqualificado. A propaganda
manipuladora tende a formar este tipo de "crenças" com vistas a ter um controle oculto da mente, da
vontade e do sentimento da maioria.

Nesse universo, o que afirmar sobre o perigo representado pelas “pesquisas de opinião”, pelas
pesquisas de intenção de voto ? Como não desconfiar de manipulação, visto que é fato comprovado sua
influência nas pessoas ? Ademais, temos assistido a pesquisas que vão ao grotesco de coletar opiniões
de pessoas sobre assuntos de que elas nada conhecem... Qual o propósito ?

O grande teórico da comunicação MacLuhan cunhou a expressão: "o meio é a mensagem"; não
se diz algo porque seja verdade; toma-se como verdade porque se diz. A televisão, o rádio, a imprensa,
os espetáculos de diversos tipos têm um imenso prestígio para quem os vê como uma realidade
prestigiosa que se impõe a partir de um lugar inacessível para o cidadão comum. Aquele que está
sabendo do que se passa nos bastidores tem algum poder de discernimento. Mas o grande público
permanece fora dos centros que irradiam as mensagens. É insuspeitável o poder que implica a
possibilidade de fazer-se presente nos cantos mais afastados e penetrar nos lares e falar ao ouvido de
multidões de pessoas, sem levantar a voz, de modo sugestivo.
Antídoto contra a manipulação

A prática da manipulação altera a saúde espiritual de pessoas e grupos. Eles possuem defesas naturais
contra esse vírus invasor? É possível contar com algum antídoto contra a manipulação demagógica?

Atualmente é impossível de fato reduzir o alcance dos meios de comunicação ou submetê-los a


um controle de qualidade eficaz. Não há defesa mais confiável que a devida preparação por parte de
cada cidadão. Tal preparação inclui três pontos básicos:
1. Estar alerta, conhecer detalhadamente os ardis da manipulação.
2. Pensar com rigor, saber utilizar a linguagem com precisão, propor bem as questões, desenvolve-las
com lógica, não cometer saltos no vazio. Pensar com rigor é uma arte que devemos cultivar. Aquele
que pensa com rigor dificilmente é manipulável. Um povo que não cultive a arte de pensar, com a
precisão devida, está à mercê dos manipuladores.
3. Viver criativamente. O que há de mais valioso na vida somente se pode aprender verdadeiramente
quando se vive. Se você, por exemplo, promete criar um lar com outra pessoa e for fiel a essa
promessa, vai aprendendo dia a dia que ser fiel não se reduz à capacidade de agüentar. Agüentar é
a para muros e colunas. O homem está chamado a algo mais alto, a ser criativo, ou seja: a ir criando
em cada momento o que prometeu criar. A fidelidade tem um caráter criativo. Quando o manipulador
de plantão diz a seu ouvido: "Chega de agüentar, procure satisfações fora do casamento, pois isso é
que é imaginativo e criador", você saberá responder adequadamente: "Amigo, não estou para
agüentar, mas para ser fiel, que é bem diferente". Você dirá isso porque saberá por dentro o que é a
virtude da fidelidade e suas conseqüências.

A mobilização de um contra-antídoto: a confusão da vertigem com êxtase

Se tomamos estas três medidas, seremos livres apesar da manipulação. Mas aqui surge um
grave perigo: quem deseja dominar-nos está pondo em jogo um contra-antídoto, que consiste em
confundir dois grandes processos de nossa vida: o da vertigem e o do êxtase. Se caímos nesta
armadilha, perderemos definitivamente a liberdade.

A vertigem é um processo espiritual que começa com a adoção de uma atitude egoísta. Se sou
egoísta na vida, tendo a considerar-me como o centro do universo e a tomar tudo o que me rodeia como
meio para meus fins. Quando me encontro com uma realidade – por exemplo, uma pessoa – que me
atrai porque pode saciar meus apetites, me deixarei fascinar por ela. Deixar-se fascinar por uma pessoa
significa deixar-se arrastar pela vontade de dominá-la para pô-la a meu serviço. Quando estou a
caminho de dominar aquilo que inflama meus instintos, sinto euforia, exaltação interior. Parece que estou
para obter uma rápida e comovedora plenitude pessoal. Mas essa comoção eufórica degenera
imediatamente em decepção, porque, ao tomar uma realidade como objeto de domínio, não posso
encontrar-me com ela, e não me desenvolvo como pessoa. Lembremos que o homem é um ser que se
constitui e desenvolve através do encontro. Essa decepção profunda me produz tristeza. A tristeza
sempre acompanha a consciência de não estar a caminho do desenvolvimento como pessoa. Essa
tristeza, quando se repete uma e outra vez, se torna envolvente, asfixiante, angustiante. Vejo-me
esvaziado de tudo o que necessito para ser plenamente homem. Ao vislumbrar esse vazio, sinto
vertigem espiritual, angústia.

Se o sentimento de angústia é irreversível porque não sou capaz de mudar minha atitude básica de
egoísmo, a angústia dá lugar ao desespero: a consciência lúcida e amarga de que tenho todas as saídas
fechadas para minha realização pessoal.

Um jovem estudante um dia se esforçou em convencer uma amiga viciada em drogas de que
ela estava se destruindo. Ela o interrompeu e disse com desalento: "Não perca seu tempo. Sei
perfeitamente que estou à beira do abismo. O que acontece é que não posso voltar atrás, o que é muito
diferente". Esta consciência de não ter saída é o desespero. O desespero leva rapidamente à destruição,
própria ou alheia, física ou moral. (Digamos entre parêntesis que este processo se refere àqueles que
em perfeito estado de saúde se entregam ao afã de possuir o que deslumbra os próprios apetites, não
àqueles que sofrem algum tipo de depressão por motivos fisiológicos).

Resumindo: a vertigem não exige nada no princípio; tudo promete, mas tira tudo no final. A
vertigem enche você de ilusões (ilusiones) e o acaba transformando em iludido.

Vejamos agora o processo oposto: o do êxtase ou criatividade. Se não sou egoísta, mas generoso, não
reduzo o que me rodeia a meio para meus fins. Eu sou um centro de iniciativa, mas você também o é.
Por isso o respeito como você é e no que você está chamado a ser. Este respeito me leva a colaborar
com você, não a dominá-lo. Colaborar é articular minhas possibilidades com as suas. E esta articulação
é o encontro. Ao encontrar-me, desenvolvo-me como pessoa e sinto alegria. Esta alegria, em seu grau
máximo, se chama entusiasmo. Entusiasma-me encontrar realidades que me oferecem tantas
possibilidades de agir criativamente que me elevam ao melhor de mim mesmo. Essa elevação é o
êxtase. Quando me sinto próximo à realização de minha vocação mais profunda, experimento uma
grande felicidade interior. Esta felicidade me leva à construção de minha personalidade, da minha e as
daqueles que se encontram comigo. Aqui está um dado decisivo: No processo de êxtase o encontro cria
vida de comunidade. O processo de vertigem a destrói.

O êxtase é um processo espiritual que ao princípio exige de você por inteiro, promete tudo e ao
final lhe dá tudo. O que é que exige no princípio? Generosidade. Você não encontrará nem uma só ação
que seja criativa no esporte, na vida de relação, na vida estética ou religiosa que não tenha em sua base
alguma dose de generosidade. Se você for egoísta ao praticar esporte, você reduzirá o jogo a mera
competição, que é uma das formas de vertigem da ambição. Você vai tomar os companheiros de jogo
como meios para seus fins. Você não construirá unidade mas dissensão, e vai gerar violência.

Ficam claras as conseqüências da vertigem e do êxtase:

A vertigem anula pouco a pouco a criatividade humana – porque impossibilita o encontro, e toda
forma de criatividade ocorre no homem através da construção de diversos modos de encontro – diminui
ao máximo a sensibilidade para os grandes valores e torna impossível a construção de formas elevadas
de unidade.

O êxtase, ao contrário, incrementa a criatividade, a sensibilidade para os grandes valores, a


capacidade de unir-se de forma sólida e fecunda com as realidades ao redor.

Agora podemos responder lucidamente à pergunta que deixamos pendente. Dizíamos que o
tirano domina os povos reduzindo as comunidades a meras massas. Faz isso minando a capacidade
criadora de cada uma das pessoas que constituem tais comunidades. Este empobrecimento das
pessoas se consegue orientando-as para diversas formas de vertigem e não para o êxtase. Para isso o
demagogo manipulador confunde ambas as formas de experiência, e diz às pessoas, sobretudo aos
jovens: "Concedo a vocês todo tipo de liberdades para realizarem experiências exaltantes de vertigem.
Essa exaltação é a verdadeira forma de entusiasmo, e conduz à felicidade e à plenitude".

Se caímos nesta armadilha ardilosa, não teremos futuro como pessoas. Vertigem e êxtase são
polarmente opostos em sua origem – que é a atitude de egoísmo, por um lado, e a de generosidade, por
outro – e são diferentes em seus fins: A vertigem tende ao ideal de dominar e desfrutar; o êxtase se
orienta para o ideal da unidade e solidariedade. Confundir ambas as experiências significa projetar o
prestígio secular das experiências que os gregos denominavam êxtase – elevação ao que há de melhor
em si mesmo – sobre as experiências de vertigem e dar uma justificação aparente às práticas que
conduzem o homem a formas de exaltação aniquiladora.

Nossa vontade de sobrevivência como seres pessoais nos leva a perguntar se há um antídoto
contra a confusão entre vertigem e êxtase. Afortunadamente, há, e se baseia na convicção de que o
ideal é que decide tudo em nossa vida. Somo seres dinâmicos, devemos configurar nossa vida de
acordo com um ideal; temos liberdade para assumir um ideal ou outro como meta da existência, impulso
e sentido de nosso agir, mas não podemos evitar que o ideal do egoísmo e de domínio nos exalte
primeiro e nos destrua ao final, e que o ideal da generosidade e de unidade nos exija no princípio um
grande desprendimento e nos dê a plenitude no final. O fato de orientar a vida para este ideal
plenificante nos impulsiona a escolher em cada momento o que é mais adequado para nosso verdadeiro
ser. Esta liberdade interior nos imuniza em boa medida contra a manipulação.

A configuração de um Novo Humanismo

Uma vez que recuperemos a linguagem seqüestrada pelos manipuladores e ganhemos liberdade
interior, podemos abordar com garantia de êxito a grande tarefa que a humanidade atual tem diante de
si: dar vida a uma nova forma que assuma as melhores realizações da Idade Moderna e supere suas
deficiências, as que provocaram duas hecatombes mundiais. Esta tarefa, que em linguagem religiosa
está sendo chamado de "re-evangelização", somente poderá ser levada a cabo se formos à raiz de
nosso agir. A raiz é o ideal que nos move.

Desde o período de entre-guerras pede-se na Europa uma mudança no estilo de pensar, de


sentir e agir. Essa mudança não se realizou, Daí o desconcerto e a apatia da sociedade contemporânea.
É hora de abandonar a indecisão e lançar as bases de uma concepção de vida ponderada, mais
ajustada à verdadeira condição do ser humano. Isso requer ter a valentia de optar pelo ideal da
generosidade, da unidade, da solidariedade. Esse ideal – e a cultura correspondente – tem uma antiga e
prestigiosa tradição na Europa, mas, diante de épocas anteriores à nossa, apresenta-se a nós como uma
novidade. Se o assumimos com garra, sem restrição alguma, veremos nossa vida cheia de alegria, pois,
como bem dizia o grande Bergson, "a alegria anuncia sempre que a vida triunfou" [4] . E não há maior
triunfo que o de criar modos autênticos de união pessoal.

Levar a cabo esta tarefa criativa na sociedade atual depende em boa medida dos meios de
comunicação. Um dia e outro, com o poder de persuasão exercido pela insistência, os meios abrem ante
o homem atual duas vias opostas: a via da criatividade e a edificação cabal da personalidade, e a via da
fascinação e o desmoronamento da vida pessoal. Quando se fala de manipulação, se alude a uma forma
de abuso dos meios de comunicação que tendem a encaminhar as pessoas por uma via destrutiva.

Cabe, no entanto, outra forma de uso que assuma todas as possibilidades de tais meios e lhes
confira uma profunda nobreza e uma grande fecundidade. Somente quando as pessoas se orientem por
esta via terão garantido sua liberdade no seio dos regimes democráticos, que – é bom lembrar – o não
geram liberdade interior automaticamente.
?
NOTAS:

1. Este trabalho servirá de Introdução a um curso que o autor dará em breve na Internet do Vaticano
(Conselho Pontifício para as Comunicações Sociais) com esse mesmo título.
2. Sobre este conceito de "ideologia" pode-se ver meu trabalho "Conhecer, sentir, querer. A propósito
do tema das ideologias", em Hacia un estilo de pensar I. Estética. Edit. Nacional, Madrid 1967, págs.
39-96.
3. Cf. Nietzsche I, Neske, Pfullingem 1961, p. 400.
4. Cf. L'energie spirituelle, PUF, París 32 1944, p. 23
?
ESTUDO DE CASOS: 1. A INDÚSTRIA DO FUMO

Diferentemente de outros insumos, como as bebidas, as quais, em doses moderadas, podem


não ser maléficas para a saúde humana – até mesmo benéficas, em certos casos – o tabaco é
comprovadamente maléfico, qualquer que seja a dose. Afinal, fumar significa, sob o aspecto mecânico
do ato, aspirar, juntamente com o ar, os produtos da combustão incompleta das folhas de fumo. A
ciência humana chegou a um estágio, com o desenvolvimento da higiene industrial, um campo da
medicina preventiva associada às conquistas sociais da era pós-industrialização, que permite ao homem
afirmar sem dúvida que a inalação de compostos provenientes de combustão incompleta de qualquer
material orgânico é maléfica à saúde.
No caso do tabaco, há ainda uma discussão adicional: além dos compostos tóxicos da
combustão do fumo, chamados “alcatrão”, acontece a inalação de nicotina, alcalóide componente dos
fumos que, comprovadamente, causa dependência química, tornando o fumante sequioso de prosseguir
com seu vício.

E a indústria do tabaco, enquanto produzia intensa publicidade apelando para as emoções e os


desejos do público – associando visualmente ao hábito de fumar lindas mulheres e belos tipos
masculinos, além de automóveis, embarcações e ambientes de luxo e até, em alguns casos, a
“inteligência” e o “bom gosto” – realizava suas pesquisas e introduzia nos cigarros produtos à base de
amoníaco, capazes de aumentar, por sinergia química, o poder viciante da nicotina.

O artigo abaixo transcrito, “Confusão de liberdades”, publicado no “Jornal do Brasil”, edição de 29 de


agosto de 2000, de autoria do médico Jacob Kliegerman, à época Diretor Geral do Instituto Nacional do
Câncer; é uma demonstração maravilhosamente clara dos temas estudados neste trabalho. Vamos a
ele:

CONFUSÃO DE LIBERDADES
Jacob Kliegerman
Em 29 de maio deste ano, o Presidente Fernando Henrique Cardoso enviou ao Congresso
Nacional um Projeto de Lei que restringe a veiculação de publicidade de alguns produtos, entre eles
todos os derivados do tabaco. Servindo de porta-voz das indústrias de derivados do tabaco, a
Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e televisão (Abert) vem declarando, em comunicações
que o projeto atenta contra a liberdade de expressão. Em todos os países onde houve proibição ou
restrição da publicidade de cigarros, a indústria tabageira utilizou-se de entidades civis como aquela
para defende-la.
Dentro de seu papel de defensora da indústria, a Abert tenta confundir a opinião pública e os
parlamentares que discutem a emenda, utilizando argumentos falaciosos. Segundo os comunicados da
Abert, proibir propaganda de cigarro seria um sinal da volta da censura que vigorava à época da
ditadura. No entanto, propaganda é mensagem paga para apoio à venda de produtos e só mostra um
lado da moeda – aquele que interessa ao anunciante, que compra o espaço e nele pode escrever o que
quiser. Já a liberdade de expressão, pela qual tantos lutaram tão corajosamente durante os anos de
chumbo – inclusive o Ministro da Saúde, José Serra – diz respeito ao direito dos veículos de
comunicação abordarem certos assuntos do ponto de vista editorial, em suas matérias jornalísticas.
Nunca em tempo algum ou em qualquer país do mundo o conceito de liberdade de expressão se aplicou
à propaganda. Misturar dois conceitos totalmente diferentes dentro do mesmo pacote é tentativa quase
pueril de confundir a opinião pública e que apenas comprova a tese de que não há argumentos para
defender o levantamento da proibição da publicidade de cigarro. Só isso explica o uso de argumento tão
frágil pela Abert: a total ausência de qualquer outro.
Ao mencionar uma pretensa “volta da censura”, a Abert finge desconhecer a proibição de
publicidade de diversos produtos legalmente fabricados, como armas, pesticidas e alguns
medicamentos. Restrições também atingem produtos que não representam riscos para a saúde, entre
eles mamadeiras e chupetas, cujas embalagens não podem sequer ter a imagem de bebês. Os
fabricantes de tais artigos não faliram ao se adequar às prescrições legais. Há que se destacar que em
diversos países democratas, como Noruega e Bélgica, a propaganda de cigarros já é proibida.
O ministério da Saúde não pretende ferir a soberania de empresas que comercializam produtos
legais, mas tem a obrigação constitucional de zelar pelo bem maior de todos os brasileiros: a saúde de
cada um. Há muito o Ministério adotou uma postura de combate ao tabagismo e de apoio aos
dependentes do tabaco: mais de 30 milhões de brasileiros fumam, sendo 2,4 milhões entre 5 (!) e 19
anos. É muita gente viciada na mais poderosa droga conhecida, a nicotina, que chega ao cérebro em
[apenas] 7 segundos e causa dependência em mais de metade dos que a experimentam.
Tabagistas não precisam de condenação social, mas de compreensão e auxílio médico,
psicológico e social, para se livrarem do vício. O que pretendemos impedir é a formação de novo
mercado de consumidores de tabaco. O cigarro não torna ninguém mais saudável, bonito, charmoso ou
poderoso [como sua publicidade quer fazer o público crer, inconscientemente]. Ao contrário. O cigarro
causa sérias doenças cardiovasculares e está [efetivamente] associado a diversos tipos de câncer.
Quando não mata, prejudica as condições de vida do tabagista e dos que estão à sua volta. Isso todos
sabemos, inclusive os fabricantes de produtos derivados de tabaco e os membros da Abert. Tanto que,
tenho certeza, nenhum deles quer ter um filho fumante.
Por isso, o alerta do Instituto Nacional do Câncer à opinião pública e, especialmente, aos
parlamentares que em breve votarão essa emenda é o que não se deixem levar por falsas mensagens
como a que está sendo veiculada em anúncios pagos. Reflitam sobre o motivo pelo qual a indústria usa
argumentos falsos, e votem com a responsabilidade que o tema merece. Nossos filhos e netos
agradecerão no futuro.

ESTUDO DE CASOS: 2. LEI DE RESPONSABILIDADE...


Outro estudo de caso, com destaque aos termos talismãs e aos “anti”-talismãs, envolvendo a TV e a
política. Trata-se de um artigo publicado em AGO/2002:
O PODER DAS PALAVRAS
César Benjamin
(Autor de "A Opção Brasileira" [Rio de Janeiro, Contraponto Editora, 1998] e
integrante da coordenação nacional do Movimento Consulta Popular)

Oito e meia da noite, começa o Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão: "o governo
reafirmou hoje seu compromisso com o ajuste fiscal" – eis a manchete mais importante. Logo me
dou conta da genialidade perversa da frase, vazia de informações, mas repleta de conteúdos positivos:
"re-afirmar" mostra coerência; "compromisso", de forma sutil, remete à lealdade; "ajustar" é tornar justo.
Tudo soa bem.
Só ao ler os jornais do dia seguinte percebi que o fato gerador da manchete não era tão bom.
Em seu esforço para alcançar (e superar) as metas acordadas com o FMI, o governo brasileiro havia
cortado parte das verbas destinada à merenda escolar. Era essa a "reafirmação" do "compromisso" com
o "ajuste", conforme a hábil escolha de nomes feita pelos jornalistas da Globo.
Nomear é muito mais eficaz que silenciar ou mentir. Quem esconde algo pode ser surpreendido,
quando o que se ocultou vem à tona. Quem tem o poder de dar nomes define como os demais vão
pensar. É o poder das palavras, que vem sendo exercido à exaustão.
Há anos, por exemplo, temos ouvido elogios à construção de uma economia "aberta", associada
a idéia de futuro. Sua suposta antítese, uma economia "fechada", seria típica de um passado ruim. A
imagem é forte e fala por si. Um tempo "aberto" oferece mais oportunidade de lazer que um tempo
"fechado". Uma pessoa "aberta" é mais sociável que uma pessoa "fechada". Logo, também na economia
algo semelhante deve se dar. Ao deslizar, a palavra "aberta" carrega consigo aquele conteúdo positivo
que lhe é atribuído pelo senso comum. Não importa que, nesse outro contexto a dicotomia de "aberto" e
"fechado" não tenha sentido nenhum. (uma economia deve ser suficientemente "aberta" para otimizar o
uso do seu potencial e induzir sua base produtiva a modernizar-se, e suficientemente "fechada" para
manter equilibrado seu balanço de pagamento e impedir a destruição de sua capacidade instalada. Fora
disso, o que se tem é puro non sense.)
Outra possível mistificação desse tipo é a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. É fácil ver
que, também aqui, o nome foi imaginado sob medida para impedir o debate: quem pode ser contra uma
"Lei de Responsabilidade"? Ademais, o que ela diz parece ser coerente com a experiência de cada um:
os governos (como os chefes de família...) não podem gastar mais do que arrecadam. Não é simples?
Não.
Em primeiro lugar, há muitos anos o governo brasileiro arrecada em impostos muito mais do que
gasta com salários, custeio e investimento. Tem superávit primário. O déficit só aparece quando
agregamos as despesas com o pagamento de juros ao capital financeiro. Como a Lei não prevê – nem
admite – a compressão destas despesas mas sim das demais, ela poderia chamar-se "Lei da prioridade
do uso de Recursos Públicos para pagamento aos Bancos" ou "Lei que declara que Educação e Saúde
são menos importantes que Bancos" ou "Lei que torna intocáveis os lucros do sistema financeiro,
nacional e estrangeiro mesmo à custa de cortes em atividades essenciais", ou simplesmente Lei do Mais
Forte – nomes que, pelo menos, teriam o mérito de permitir um debate.
Em segundo lugar, o exemplo doméstico não se aplica à ação de Estados nacionais. Ao
contrário dos chefes de família, os estados podem emitir moedas para fazer frente a compromissos que
geram déficits. Quando a economia está funcionando abaixo de seu potencial, com capacidade ociosa e
desemprego, como é o nosso caso, esta é a atitude correta. Se os gastos públicos tiverem efeito
multiplicador sobre a atividade econômica, as receitas do próprio estado aumentarão, alcançando nova
posição de equilíbrio em um nível mais alto de utilização da capacidade produtiva instalada. Isso
depende não só de quanto o estado gasta, mas de como gasta. Comprar merenda escolar, por exemplo,
além de socialmente mais justo, tem maior efeito multiplicador sobre a economia do que remunerar
agiotas.
Há um sentido estratégico embutido na operação que transformou o "ajuste fiscal" em algo
perene, agora elevado à condição de Lei. Medidas de austeridade monetária se associam ao baixo
crescimento. Podem ser válidas por períodos breves, para atingir objetivos macroeconômicos bem
definidos. Mas não podem se eternizar, especialmente em um país dominado pelas necessidades do
desenvolvimento e da justiça social.
Quem aceita essa receita não cresce, fica para trás. Quem fica para trás perde as condições de
exercer sua soberania. Neste caso, como em inúmeros outros, menos do que debates técnicos, estão
em jogo relações de poder.

ESTUDO DE CASOS: 3. [DES]INFORMAÇÃO NA INDÚSTRIA BRASILEIRA DE PETRÓLEO

O artigo a seguir, publicado no jornal carioca “Tribuna da Imprensa” em 14/NOV/2002 analisa


com felicidade a manipulação em um ramo fundamental da vida de hoje, pela dependência significativa
da economia global em relação à indústria de petróleo.
Principais insumos da matriz energética de praticamente todos os países do Mundo, os
combustíveis fósseis encontrados no petróleo e no gás natural são objeto de interesses, ações e
movimentos como poucos bens o foram em toda a história da humanidade. Como o jogo do poder passa
pelo domínio dos bens escassos mais procurados, é óbvio que o controle das fontes de petróleo e gás
natural, associado ao domínio da indústria desde a produção até a distribuição final dos derivados
confere a quem os possua um poder econômico, político e até mesmo bélico – as forças armadas são
extremamente dependentes de energia – de enormes dimensões e, por isso mesmo, extremamente
cobiçado. Por pessoas, por organizações e por nações.
Interessados na manutenção e ampliação de seu poder, as nações mais ricas do planeta sempre
estiveram a aprimorar os mecanismos de dominação dos países chamados “em desenvolvimento”, ou
“de Terceiro Mundo”, e o terreno das fontes de energia tem sido, desde a Revolução Industrial, talvez o
mais disputado. Como alguns desses países mais pobres têm imensas reversas de petróleo e gás
natural, sua dominação foi objeto de profundos estudos, ação política e até militar e intensa
manipulação, visando o apoio da opinião pública mundial. A análise comparativa das iniciativas dos
Estados Unidos da América relativas a países com e sem reservas significativas de combustíveis fósseis
deixa transparecer a importância que eles dão a essa dominação como fator estratégico em sua política.
O artigo abaixo analisa em parte o caso brasileiro, que merece atenção por estar nosso País em
importante mudança de situação, passando de nação quase totalmente dependente de importação de
petróleo e gás para uma quase autonomia, com possibilidade de se vislumbrar um futuro exportador,
mercê das descobertas de importantes jazidas na plataforma continental, em área marítima. A
manipulação da informação que chega ao grande público, visando tornar-lhes simpáticas as ações das
grandes companhias internacionais de petróleo, torna-se evidente apenas para os estudiosos do ramo,
que passam a perceber o quanto de alterações, omissões e ênfases intencionalmente mal distribuídas
existem na divulgação dos fatos, de modo a tornar o público dócil e simpático à dominação, ainda que
com prejuízo próprio, obviamente não percebido em razão exatamente dessa manipulação.

ARMANDO O QUEBRA-CABEÇA
(publicado na Tribuna da Imprensa de 14/11/02)
Roberto Saturnino Braga (Senador – PT-RJ)
Paulo Metri (Conselheiro do Clube de Engenharia)

Apesar de estar-se na "era da informação", a compreensão nítida dos acontecimentos e do


momento histórico por parte da sociedade não é garantida. Há fortes interesses de forças políticas e
econômicas para que a sociedade não entenda o mundo real. Portanto, os dados e informações muitas
vezes chegam à população brutos, sem análise, quando não são escondidos ou têm o significado
distorcido. Com tanta informação circulando, não raro o entendimento de algumas questões torna-se
mais difícil. Paradoxalmente, na era da informação pode até faltar a informação relevante ou haver a
disseminação de informação confusa.
O setor de petróleo do nosso País não foge a esta constatação. Há alguns anos atrás, eram
comuns notícias do tipo: "o monopólio estatal do petróleo não obriga a Petrobras a competir
internamente e, se existisse competição neste setor, o consumidor brasileiro iria sair beneficiado com o
barateamento do preço do barril e, conseqüentemente, dos derivados" ou "o subsídio do gás de botijão
com a compensação do aumento de preço da gasolina tem que acabar, pois o preço mais acessível do
primeiro está induzindo o aquecimento da água das piscinas da classe alta com este gás". Todo o novo
modelo do setor de petróleo foi criado a partir de premissas como estas.
Recentemente apareceram as seguintes afirmações: "A Petrobras aumentou o preço do gás de
botijão, devido ao aumento do dólar e do petróleo no mercado internacional, pois esta empresa quer
manter o preço dos derivados no Brasil equivalente ao preço no exterior", e "a Petrobras, como ainda é
monopolista, na prática, tem buscado auferir o máximo lucro e, por isso, tem aumentado o preço dos
derivados". Poucos dias atrás, foi noticiado, também, que a Petrobras vai ter lucro fabuloso neste ano.
Porém não é noticiado, e com isso ocorre grave falha de entendimento, que a Petrobras está
calculando o preço dos derivados como se a totalidade do petróleo consumido nas refinarias fosse
importado, por determinação do atual governo, visando tornar a atividade de refino no País atrativa para
o capital estrangeiro. Note-se que, atualmente, 80% do petróleo consumido no País são produzidos aqui
e, portanto, poderia ser utilizada para cálculo do preço dos derivados uma média ponderada
entre o preço do barril nacional e o importado. O preço médio do barril de petróleo produzido pela
Petrobras, em 2001, foi de US$ 3,26 sem impostos e taxas, e US$ 6,55 com impostos e taxas, segundo
o relatório anual da empresa, valores estes bem inferiores aos do mercado internacional. Desta forma,
não é por outra razão que ela está tendo um lucro extraordinário.
Mas outro ponto importante e que está sendo esquecido é que a competição na produção de
petróleo não barateia o preço do barril nem em um centavo, pois este preço, num modelo aberto, é
formado pelo mercado
externo - que é oligopolizado. Assim sendo, o término do monopólio estatal representou a
permissão da entrada do oligopólio estrangeiro no País, o encarecimento do barril e o
conseqüente aumento dos derivados. E a Agência Nacional do Petróleo, gestora do modelo atual do
setor, lançou - num profundo anacronismo, pois se está às vésperas da posse de um novo Governo - a
quinta rodada de licitações de áreas para exploração e produção de petróleo, visando entregar mais
áreas para o oligopólio mundial.
Um ponto, porém, é verdadeiro dentre os citados pelos defensores do mercado aberto para o
exterior. Não se pode trabalhar com ele aberto e obrigar a Petrobras a calcular o preço dos derivados a
partir do preço de produção do seu barril de petróleo. Não só porque os grupos estrangeiros não
investiriam em refino no País, como porque qualquer empresa poderia comprar derivados da Petrobras
e exportá-los, significando, simplesmente, transferência daquele lucro da Petrobras para ela.
Continuando na análise das notícias, o subsídio na economia pode induzir o consumo
inadequado de um bem como pode ter sido o caso do gás. Contudo, esquecem que no caso não existe
outra alternativa, considerada a péssima distribuição de renda no País. A distribuição do tíquete gás tem
se mostrado inviável. Não aparece, agora, ninguém dizendo que nas regiões mais pobres se está
cortando arbustos para servir como lenha para cozinhar.
Ao terminar de armar este quebra-cabeça, fica claro que o monopólio estatal não era prejudicial
à sociedade como foi argumentado. Aliás, foi uma história de sucesso para esta sociedade. Hoje, é
inviável politicamente tentar reconstruir este monopólio. No entanto, urge que a Lei n.º 9.478 seja
reformulada, para evitar a má situação que a nossa sociedade vive hoje. A importação e a exportação
de petróleo e derivados por qualquer empresa, mesmo sem levar em conta aspectos geopolíticos e
estratégicos, deve ser paralisada. Para os contratos já firmados, valerá o que está escrito, obviamente.
Enfim, o setor precisa ser repensado e planejado a longo prazo.
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ESTUDO DE CASOS: 4. DERRAME DE ÓLEO

Vivi um caso que ilustra bem o poder dos veículos de comunicação de massa. Vamos a ele, por
etapas:
De 1986 a 1990 chefiei a atividade corporativa da PETROBRAS de controle de poluição do mar;
Em 22/12/1988, o NT Felipe Camarão, em erro operacional, deixou vazar óleo cru para o mar em
frente a Angra dos Reis, onde a Companhia tem um Terminal Marítimo;
Em 24/12/88, auxiliei a coordenação local das operações de controle, com contenção e
recolhimento do óleo;
Como a operação não se iniciou com grande agilidade, houve a chegada de óleo às praias do
local, com intensidade significativa;
Houve repercussão negativa e o "Jornal Nacional", da Rede Globo, noticiou o fato, mostrando
imagens das praias contaminadas;
Na passagem de 16 para 17/8/89, quando houve -- a referência me auxiliou a manter a memória
com exatidão -- eclipse da Lua, o mesmo NT Felipe Camarão, no mesmo local, deixou novamente
derramar óleo para o mar;
Por ter sido em menor quantidade e por ter sido mais ágil a operação, nenhum óleo chegou às
praias --- e ainda me lembro da alegria do pessoal que atuou nas operações de contenção e
recolhimento do óleo, por conseguir essa façanha;
O "Jornal Nacional" da noite de 17/8/89 mostrou as praias de Angra tomadas por óleo. Estive no
local e sei que o que foi mostrado era falso, pois não chegou óleo nas praias. Eram imagens do derrame
de 22/12/88, pelo que me lembro de ter visto: mesmos ângulos, mesmas tomadas;
Agora o impressionante: um circunstante do local, não sei se pescador, comentou que "devia ter-
se distraído" porque não vira o óleo nas praias com seus próprios olhos... Ele preferiu acreditar na
mídia televisiva que nos próprios olhos ! Dificilmente esquecerei o comentário dito em voz
assustada...

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ESTUDO DE CASOS 5: USO DA EMOÇÃO OBLITERANDO A RAZÃO

O texto abaixo, do filósofo Olavo de Carvalho, autor de “O Imbecil Coletivo”, analisa a


manipulação do público com uso de termos talismãs, chavões e o esterno respeito humano, , com o
“imbróglio” da regulamentação governamental sobre o mecenato oficial (estatais) ao cinema brasileiro,
servindo de fundo. Na ocasião, Luiz Gushiken, da Secretaria de Comunicação, anunciou publicamente,
após um choro público do cineasta Cacá Diegues acerca do “absurdo” da exigência de contrapartida
social quando do financiamento de obras cinematográficas por empresas estatais (o que Cacá considera
“ditadura cultural”, não esclarecendo o que foi definido como contrapartida social), que o governo
recuava de sua posição e que o assunto passava, ou voltava à esfera do Ministério da Cultura, na época
sob Gilberto Gil.
Justiça seja feita à atriz Lucélia Santos, que tentou esclarecer que “contrapartida social” não é
sinônimo de “engessamento cultural”, já que nada a ligava necessariamente ao conteúdo artístico da
obra, nada vendo de inconveniente no engajamento social de todas as classes produtoras.

ENTRE OS CACÁS E OS GUSHIKENS

(publicado n’O Globo, 17/mai/2003)


Olavo de Carvalho

O primeiro passo para a maturidade intelectual é habituar-se a buscar as realidades


e os conceitos por trás das palavras, em vez de deixar-se impressionar pelas associações
emocionais que a linguagem corrente foi depositando nelas
Guardadas no fundo da memória afetiva, essas associações podem ser evocadas por
simples reflexo condicionado. Daí o poder hipnótico das palavras e frases feitas cuja menção
desperta reações imediatas de agrado ou desagrado, aprovação ou desaprovação,
independentemente da referência a fatos ou coisas identificáveis.
Fatos e coisas, ao contrário, nem sempre podem ser recordados por mera
estimulação reflexa, exigindo antes um esforço de reconstituição consciente e crítico. E
conceitos são construções ideais com conteúdo fixo repetível, que permitem à mente
retornar aos “mesmos” pontos da experiência para compará-los, associá-los, distingui-los,
inseri-los em estruturas lógicas maiores.
Entre o homem que pensa por esforço consciente e aquele que se deixa arrastar pelo
automatismo da memória afetiva, a diferença é quase tão grande quanto a que existe entre
um adulto e um bebê de colo. O segundo, quando opina, literalmente não sabe do que fala:
expressa apenas seu estado de alma, passando a léguas do objeto do qual imagina estar
discorrendo. Excetuada uma estreita faixa de conversação pragmática, é assim que pensa a
maior parte das pessoas. Suas opiniões traduzem anseios, cismas, temores: quase nada da
realidade em que vivem.
O problema que daí resulta para as democracias é temível. De um lado, as noções de
direito, liberdade, debate aberto etc. pressupõem no cidadão a força de superar
intelectualmente seu círculo de impressões subjetivas e de comunicação pragmática. De
outro lado, a propaganda ideológica aposta tudo nas reações automatizadas, programáveis
através de símbolos, chavões e slogans. O cidadão é convidado a exercer capacidades
intelectuais superiores que, ao mesmo tempo, são reprimidas e massacradas em favor de
uma lógica pediátrica na qual o rótulo vale pela substância e a proximidade de duas
palavras é identidade de coisas.
Para desfazer o feitiço das palavras, é preciso descompactá-las, separando os vários
significados e intenções que subentendem, e depois montá-los de novo segundo um
conhecimento de experiência traduzido em conceitos claros.
Mas o que a razão se esforça em distinguir e ordenar é justamente aquilo que a propaganda
busca mesclar indissoluvelmente numa grudenta pasta semântica de enorme força
sugestiva e significado objetivo nenhum.
Desvencilhar-se dessa pasta exige uma concentração de espírito, uma amplitude de
informação e um repertório verbal que estão infinitamente acima do que se pode esperar,
no Brasil de hoje, não só da população humilde mas também de gente universitária.
Daí que essas pessoas tomem como realidade qualquer associação de palavras que se torne
suficientemente usual para não suscitar estranheza.
A expressão “sociedade injusta”, por exemplo, é de uso tão freqüente que não
parece conter nenhuma intenção maligna, apenas a descrição de um estado de coisas que
todos admitem como real. Mas o que a experiência mostra é apenas uma sociedade pobre,
mal organizada, encrencada, sofredora. Nessa sociedade há seguramente injustiças, mas
chamar “injusta” à sociedade enquanto tal subentende que haja um tribunal superior a ela,
capaz de julgá-la como um todo. E nenhum tribunal como esse pode existir, exceto no Dia
do Juízo, fora do tempo histórico. Os homens de religião, quando muito santos, são às
vezes admitidos como porta-vozes virtuais dessa justiça supratemporal, com a condição de
que exerçam esse papel com modéstia e prudência, limitando-se a dar conselhos sem
querer impor suas decisões à comunidade. Mas, a partir do momento em que o símbolo
“sociedade injusta” adquire foros de realidade na imaginação das multidões, qualquer
partido ou grupo que lance constantes acusações à “sociedade” acaba sendo aceito como
porta-voz daquela instância judiciária absoluta, superior a todas as jurisdições humanas. Se
a sociedade é injusta, ela não pode fazer justiça. Aquele que prometa fazê-la em seu lugar
torna-se pois juiz da sociedade inteira: torna-se autoridade moral ou religiosa, mas sem o
freio da abstinência política que limitava a esfera de ação dos religiosos tradicionais. Tem as
chaves dos dois reinos: poder terrestre e autoridade celeste, César e o Papa fundidos na
onipotência de uma elite militante. Antonio Gramsci recomendava explicitamente que a
autoridade do Partido se elevasse ao estatuto de um “imperativo categórico”, de um
“mandamento divino” (sic) que moldasse e dirigisse todas as discussões desde alturas
invisíveis à massa dos cidadãos, que seriam então facilmente conduzidos como bois de
carro pela elite partidária no instante mesmo em que acreditassem desfrutar de plena
liberdade.
Somente uma força poderia opor-se a essa estratégia: a educação, a preparação dos
cidadãos para o uso maduro e refletido da linguagem. Mas, se as instituições educacionais
se tornaram caixas de ressonância do discurso ideológico, está tudo perdido: a análise dos
símbolos é condenada como propaganda, enquanto a propaganda é aceita como traslado
literal de realidades inegáveis.
Quando se chega a esse estado de coisas, a derrocada total da inteligência se segue
inexoravelmente, reduzindo a cultura à propaganda. Então só resta decidir se a propaganda
seguirá à risca as normas da burocracia ou, mais gramscianamente, se deixará enfeitar
pelas fantasias vaidosas de artistas colaboracionistas — um debate que, por essas mesmas
razões, só interessa a colaboracionistas e burocratas, ou Cacás e Gushikens.

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