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Léo Carrer Nogueira

UMBANDA EM GOIÂNIA
LIMITES ENTRE RELIGIÃO E MAGIA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS
UNIDADE DE CIÊNCIAS SÓCIO-ECONÔMICAS E HUMANAS DE ANÁPOLIS
COORDENAÇAO DO CURSO DE HISTÓRIA

UMBANDA EM GOIÂNIA
LIMITES ENTRE RELIGIÃO E MAGIA

Léo Carrer Nogueira


Orientador: Prof. Ms. Eliézer Cardoso de Oliveira

Trabalho de Monografia apresentado à Coordenação


do Curso de História da Unidade Universitária de
Ciências Sócio-Econômicas e Humanas de Anápolis
da Universidade Estadual de Goiás como exigência
para a conclusão do curso de Graduação em História.

Anápolis

2005

2
Aprovado com nota 10,0 por:

___________________________________________________

Orientador: Prof. Ms. Eliézer Cardoso de Oliveira

_____________________________________________________

Examinador: Prof. Ms. Itelvides José de Morais

______________________________________________________

3
Aos meus avós, que dedicaram sua vida ao
estudo e prática desta religião e tão bem
souberam usá-la na edificação de nossa
família.

4
SUMÁRIO

Lista de Tabelas ................................................................................................................... 06


Resumo ................................................................................................................................ 07
Introdução ........................................................................................................................... 08
Capítulo I – Religião e Magia ............................................................................................. 12
Capítulo II – No Reino da Umbanda ................................................................................... 23
2.1. Antecedentes Históricos ................................................................................... 23
2.2. O Fenômeno da Incorporação .......................................................................... 33
2.2.1. O Kardecismo .................................................................................... 35
2.2.2. O Candomblé ..................................................................................... 36
2.3. As Várias Faces da Umbanda ........................................................................... 39
Capítulo III – Estudo da Umbanda em Goiânia .................................................................. 45
3.1. Caracterização dos Centros .............................................................................. 45
3.1.1. CEMEC - Centro Espírita Mensageiros da Caridade (CA) ............... 46
3.1.2. Centro Espírita Raio de Luz (CM) .................................................... 48
3.1.3. Terreiro do Pai Kênio (CM) .............................................................. 50
3.1.4. Tenda Romper da Casa da Jurema (CB) ........................................... 52
3.2. Do Kardecismo ao Candomblé ......................................................................... 53
3.3. Os Freqüentadores da Umbanda ....................................................................... 56
3.4. Conclusão - Religião e Magia dentro da Umbanda .......................................... 65
Referências Bibliográficas .................................................................................................. 69
Anexos ................................................................................................................................ 71
Glossário ............................................................................................................................. 78

5
LISTA DE TABELAS

Tabela 01 - Classes Sociais dos Freqüentadores da Umbanda - 2005 ................................ 56


Tabela 02 - Grau de Escolaridade – 2005 ........................................................................... 57
Tabela 03 - Raça / Cor da Pele – 2005 ................................................................................ 58
Tabela 04 - Por que procuraram a Umbanda – 2005 .......................................................... 59
Tabela 05 - Como consideram a Umbanda – 2005 ............................................................. 59
Tabela 06 - Conseguiu atingir o resultado que buscava? – 2005 ........................................ 61
Tabela 07 - Outras Religiões – 2005 ................................................................................... 61
Tabela 08 - Tempo que freqüenta – 2005 ........................................................................... 63
Tabela 09 - Freqüência no Centro de Umbanda – 2005 ...................................................... 63
Tabela 10 - Qual sua Religião? – 2005 ............................................................................... 64
Tabela 11 - Existe preconceito contra a Umbanda? – 2005 ................................................ 65
Tabela 12 - Quadro da Religiões – 2000 ............................................................................. 66

6
RESUMO

Dentro do contexto urbano atual encontramos diferentes possibilidades religiosas. Cada


uma delas permite ao homem moderno se relacionar de formas diversas com o mundo
sobrenatural, sagrado, religioso. Neste trabalho pretendemos analisar uma destas religiões e
investigar como ela se insere no contexto urbano e de que forma se relaciona com seus
freqüentadores. Nosso alvo é a Umbanda, religião de origem sincrética que agrega
elementos de várias outras religiões, se constituindo em um mosaico de diferentes
interpretações. Através do estudo desta religião pretendemos identificar suas principais
características, fazendo um levantamento de suas raízes histórico-sociais bem como uma
análise da prática desta religião nos centros de Umbanda da atualidade. Para isto, partimos
dos conceitos weberianos de religião e magia, com o intuito de compreendermos melhor
como esta religião se insere num limiar entre estes dois extremos da prática religiosa. Como
campo de estudo, definimos a cidade de Goiânia e através da observação de seus centros
selecionamos quatro que, pelas variações apresentadas em sua organização e seu culto, se
tornam rico campo de comparações e análises. O que identificamos é que os centros de
Umbanda se estabelecem num continuum, uma linha que vai de um pólo embranquecido e
intelectualizado representado pelo Kardecismo, até outro pólo africanizado e mágico
representado pelo Candomblé. Neste sentido, buscamos definir as principais características
de cada uma destas religiões com o objetivo de diferenciá-las convenientemente da
Umbanda, identificando assim seus traços próprios através dos elementos que lhe são
indispensáveis. Com isto tentamos contribuir para a compreensão desta religião em nossa
cidade e abrir o leque de discussões para futuros trabalhos de pesquisas.

7
INTRODUÇÃO

É paradoxal o fato de que, coincidindo com o desenvolvimento científico e


tecnológico, tenha renascido o interesse pela Magia.1

A constatação de João Ribeiro Júnior nos alerta para um fato que vem sendo
observado ultimamente nos grandes centros urbanos: o crescimento das religiões que
utilizam rituais mágicos, especialmente os de origem africana. Entre os motivos apontados
por vários autores para este crescimento, podemos destacar a desilusão do homem, não só
com outros tipos de religiões, como também com a ciência e outras formas de
conhecimento. Tal desilusão é que tem levado, na maioria das vezes, cada vez um número
maior de pessoas a procurar os centros de Candomblé, e especialmente os de Umbanda.
Os motivos pelos quais destacamos a Umbanda serão melhor explicados ao longo
deste trabalho. Em primeiro lugar, a própria essência desta religião nos permite uma leitura
desta acessibilidade maior da Umbanda. Seus cultos hoje são permeados por um
racionalismo de cunho científico – o Kardecismo – e é este elemento que traz a Umbanda
mais próxima do conceito moderno de “civilizado” e a distancia de outra religião que
utiliza rituais africanos: o Candomblé. No entanto, não podemos encarar a Umbanda
simplesmente como uma extensão do Kardecismo ou um “baixo espiritismo”, como muitos
autores colocaram até alguns anos atrás. Tratam-se de religiões distintas, e tanto a
Umbanda quanto o Kardecismo mantêm suas autonomias, tanto ritualísticas quanto
doutrinárias, como veremos. O fato é que a Umbanda, por se tratar de uma religião bastante
diversificada e aberta a novas influências, acaba se moldando ao Kardecismo em alguns
casos, enquanto outros centros preferem manter a autonomia, e outros até incorporam
elementos do Candomblé. É, portanto, nesta linha entre o Candomblé e o Kardecismo que
transita a Umbanda.
Ao mesmo tempo, ao lado deste racionalismo científico, o fator mágico age como
um atrativo a mais no caso da Umbanda. O que percebemos ao longo de nossa pesquisa é
que as pessoas estão cada vez mais desiludidas com o mundo, com outras religiões e com a
ciência, e buscam na Umbanda, não apenas o conforto que precisam, mas muito mais ajuda

1
RIBEIRO JÚNIOR, 1985, p. 09.

8
direta para seus problemas, seja de saúde, financeiro ou amoroso. Este tipo de busca só é
possível graças a um fator fundamental existente na Umbanda e que a diferencia de todas as
outras religiões existentes, inclusive o Candomblé e o Kardecismo: o acesso direto ao
universo a que chamamos sagrado, através das entidades incorporadas, e a possibilidade de
obter a ajuda direta destas entidades. Este é o caráter definitivo da Umbanda, já destacado
em inúmeros outros trabalhos, mas que voltamos a frisar aqui. Um dos nossos objetivos
neste trabalho seria o de estudar este fenômeno dentro da Umbanda, e definir os principais
motivos que levam as pessoas a procurarem uma religião deste tipo, já esboçados aqui, mas
que serão aprofundados ao longo do trabalho.
Como religião tipicamente urbana, a Umbanda compete com outros tipos de
religiosidades consideradas mais tradicionais, especialmente as cristãs, e se inserem no
espaço urbano de forma peculiar. Na maioria dos centros não há, grande parte das vezes,
uma assimilação do culto umbandístico por parte dos freqüentadores, mas sim uma relação
descontínua, de procura, porém sem assumir um compromisso com o culto umbandista, e
às vezes até uma negação da Umbanda, através de um mascaramento na forma de
espiritismo kardecista. Esta relação de distanciamento do “leigo” com o culto umbandista
propriamente dito só é possível pelo cunho mágico que permeia esta religião, e que acaba
permitindo um relacionamento com o “leigo” mais aberto e fragmentado.
Ao mesmo tempo, há os que se identificam com a Umbanda e acabam adotando a
religião pra si, estudando seus princípios e suas origens, e se tornando assim adeptos da
prática umbandista. Nestes casos podemos perceber uma continuidade do culto por parte do
“leigo”, que estabelece uma relação mais profunda com a Umbanda, vindo a conhecer
assim seus preceitos e sua filosofia, que na maioria dos casos se confundem com os
preceitos da própria doutrina espírita. Haja visto que no Candomblé também há esta relação
de identificação com o culto, fazendo adeptos da religião, teremos oportunidade ainda de
caracterizar cada uma destas religiões e diferenciá-las convenientemente, assim como com
o Kardecismo, e criar assim uma identidade própria da Umbanda.
Nosso objetivo principal, portanto, se fundamenta neste aspecto. Estabelecer as
bases da Umbanda enquanto limite entre a Religião e a Magia, utilizando as noções de Max
Weber e outros autores sobre estes conceitos. Não pretendemos aqui dar uma definição
fechada do que seria a Umbanda, como outros autores já tentaram fazer. Muito pelo

9
contrário, nosso objetivo é o de manter a diversidade como característica fundamental do
culto umbandista, e acreditamos ser esta indefinição um dos fatores que vem fazendo-a
crescer e se expandir nos grandes centros urbanos.
Nosso recorte espacial é a cidade de Goiânia, onde tivemos oportunidade de
observar vários centros, tanto de Umbanda, quanto de Candomblé e Kardecismo.
Pretendemos estabelecer as bases da Umbanda em nossa cidade, como ela se fundamenta, e
traçar um estudo histórico-sociológico desta religião em Goiânia, estudo este que já foi
realizado em outras cidades como Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, e que pode ajudar
muito na interpretação e na compreensão desta religião dentro de nosso espaço urbano.
Neste sentido, entendemos ser de fundamental importância um estudo realizado de dentro
para fora, ou seja, que leve em consideração primeiramente os próprios integrantes desta
religião e procure resgatar suas memórias e sua história de vida, além da sua própria visão
do culto e da religião Umbanda.
A escassez de trabalhos sobre este tipo de religiosidade em nosso estado torna difícil
nossa tarefa, e ao mesmo tempo nos impulsiona a preencher uma lacuna existente em nossa
historiografia regional. Goiânia apresenta hoje um campo umbandista bem formado, com a
existência de vários centros e terreiros que são cada vez mais procurados, especialmente
pelas classes média e alta, que buscam ajuda nestes centros para resolver os mais diversos
problemas. O estudo deste fenômeno se justifica, portanto, não só pela escassez de
trabalhos nesta área, como também por verificarmos uma necessidade real de estudarmos o
crescimento destas religiões enquanto possível reflexo de uma desilusão por parte dos
freqüentadores com as religiões cristãs tradicionais, que se reflete na busca cada vez maior
pela magia.
Um trabalho similar já foi realizado pela professora Sandra Maria Machado em sua
tese de mestrado pela Universidade Católica de Goiás, cujo título, Umbanda:
reencantamento na pós-modernidade?2 nos dá uma breve noção da perspectiva adotada em
relação à Umbanda. O que nos propomos, portanto, é dar continuidade ao estudo desta
religião em Goiânia e esperamos estar lançando as bases para muitos outros estudos sobre
este tema, que contribuam para uma compreensão melhor a respeito deste assunto que traz

2
MACHADO, 2003.

10
tanto tabu e mistificação, não só no meio intelectual e acadêmico, como principalmente
entre a população em geral.
Para realizar tal pesquisa, utilizamos vários métodos que se complementam e nos
levam a uma melhor compreensão do objeto. Em primeiro lugar buscamos as bases teóricas
para a compreensão do fenômeno religioso. Fomos buscar em Max Weber e Émile
Durkheim estas bases, que nos permitirão chegar às definições de religião e magia. Outros
autores como João Ribeiro Júnior e Mary Douglas também nos auxiliam neste processo de
busca de uma teoria da magia e religião. Em segundo lugar, buscamos na bibliografia
existente aprofundar nosso conhecimento sobre o objeto em si. Entre os destaques, as obras
de Lísias Negrão, Patrícia Birman e Antônio Pierucci, entre outros, que fazem um estudo
histórico-sociológico da Umbanda no Brasil, e a já citada tese de Sandra Machado que se
reporta ao fenômeno umbandista na cidade de Goiânia especificamente.
No campo prático, partimos da observação de quatro centros de Umbanda na cidade
de Goiânia e entorno, que foram divididos entre centros de classe alta, classe média e classe
baixa. O segundo passo foi a utilização de questionários nos diversos centros de Umbanda
visitados, chegando a um número de 61 questionários aplicados, para que pudéssemos obter
um perfil dos freqüentadores, tanto econômico quanto social e intelectual, além de
sabermos outras questões como o motivo de procurarem a Umbanda e o que pensam a
respeito dela. Por último, conversamos com os líderes dos centros e selecionamos 2 para
serem entrevistados, para que pudéssemos estabelecer um histórico destes centros e a visão
que cada um deles apresenta da religião em si.
Estes são os pontos principais que serão abordados no trabalho e voltaremos a eles
em seu devido tempo.

11
CAPÍTULO I
RELIGIÃO E MAGIA

A Umbanda é um tipo de religiosidade híbrida, na qual diversos elementos se


aglutinam, mantendo uma certa diversidade de características em torno dela. Ao nos
deparamos com uma religiosidade deste tipo, primeiramente temos de lidar com a
dificuldade de entender seus múltiplos aspectos, e, numa tentativa de fazê-lo, corremos o
risco de lançar considerações que abarquem apenas alguns destes aspectos, relevando
outros. Para melhor atingirmos nosso objetivo, portanto, que é o de conseguir explicar o
quadro desta religião de forma mais completa possível, vamos partir dos conceitos
weberianos de religião e magia.
Max Weber foi um dos primeiros a travar estas discussões em torno das definições
de religião e magia num capítulo em que ele trata da Sociologia da Religião.3 E é a ele,
principalmente, que vamos recorrer em nossa discussão a fim de buscarmos identificar uma
e outra em nosso trabalho. Tal discussão, antes de tudo, se torna bastante útil, e até mesmo
fundamental, eu diria, para a compreensão do trabalho que aqui vamos desenvolver.
Uma discussão deste tipo foi utilizada também por Lísias Negrão 4 em sua obra.
Nela o autor faz uma abordagem da dicotomia entre a religião de cunho moral, em oposição
ao caráter amoral da magia. Partindo deste princípio, ele tenta desconstruir estes conceitos,
e recorre a outros autores como Gurvitch, para o qual a magia não é avessa à moralidade,
mas sim uma forma alternativa de afirmação do desejo frente à moralidade estabelecida.
Outro ponto discutido pelo autor e que nos interessa aqui é a questão de colocar-se a
religião enquanto uma evolução da magia pura e simplesmente, como se, a partir do fato da
constituição daquela, esta deixe de existir. Como o autor coloca muito bem, tal tipo de
evolucionismo inexiste e a prova disto é a existência de tantas seitas e religiosidades de
cunho mágico existentes nos dias de hoje. A discussão entre religião e magia, portanto, vai
além do universo que aqui queremos abarcar, que é o da Umbanda.

3
WEBER. 1991.
4
NEGRÃO, 1996.

12
Não devemos, pois, encarar a magia como um tipo de religiosidade subalterna5 ,
como “um obstáculo a ser vencido no processo racionalizador e moralizador de constituição
do mundo moderno.”6 Lísias Negrão em sua obra discute bem esta questão utilizando a
teoria de Gurvitch, para o qual a magia “apresentar-se ia como uma moralidade de
aspiração por parte de segmentos minoritários ou subordinados no interior de uma dada
sociedade.”7 Não se trata portanto de considerar a questão da moralidade ou da imoralidade
dentro da magia ou da religião. Nossa discussão vai por outro caminho.
Dentro da visão sociológica proposta por Weber e Durkheim, podemos perceber a
magia enquanto tentativa de utilizar-se de meios sagrados para atingir algum objetivo
concreto neste mundo. Segundo estes dois autores, os rituais mágicos têm esta função, de
influenciar os deuses e demônios para que se consiga algum fim definido dentro da
sociedade. Este caráter de coação sobre o deus ou sobre entidades sobrenaturais é que
garante a eficácia da magia, frente ao caráter contemplativo das religiões de salvação.
Talvez isto explique em partes a procura cada vez maior pelas seitas e religiosidades
que apresentam um cunho mágico. Sandra Maria Machado8 discute bem esta questão em
sua tese de mestrado. Segundo ela, o crescimento da Umbanda nos dias de hoje,
principalmente entre as classes média e alta, deve-se a uma desilusão por parte do homem
com o mundo pós-moderno, tanto com as religiões tradicionais, quanto com a própria
ciência. E é na Umbanda que elas vão encontrar novamente este encantamento do mundo,
através da magia, que apresenta uma maior eficácia na relação do profano com o sagrado,
do homem com os deuses.
Utilizando Weber, a autora nos traz uma importante discussão sobre este
desencantamento do mundo. Em sua análise, Weber diz que “toda sociedade, ao longo de
sua história, passa de um período pré-racional para um período de racionalidade máxima.”9
Na religião, isso se refletiria na passagem de uma período de domínio da magia e da
superstição a uma racionalidade extremamente científica. Claro que tais pólos não são
estáticos, e dentro de ambos períodos temos características comuns; assim como dentro do
período pré-racional temos elementos racionais quanto dentro do período racional,

5
Idem, p. 22.
6
Idem, p. 24.
7
GURVITCH apud NEGRÃO, 1996, p. 24.
8
MACHADO, 2003.
9
WEBER apud MACHADO, 2003, p. 33.

13
elementos místicos. O que ele busca explicitar aqui são os pólos de maior concentração de
um e outro, ora de misticismo, ora de racionalização. Esta racionalização, hoje representada
pela ciência e pela tecnologia no mundo capitalista, está veiculada a um desencantamento
do mundo, através da desmistificação das coisas. Tudo é explicado pela ciência, e restam
poucos mistérios ao campo religioso. As relações com os deuses, com o sobrenatural,
perdem seu sentido diante das explicações científicas. Juntamente com esta perda do
sobrenatural, há uma perda de sentido do próprio homem, que tinha nos deuses e no mundo
sobrenatural uma forma de dar objetivos à sua existência, assim como obter um alívio em
relação às dores e ao sofrimento deste mundo.
Diante deste quadro, o interesse pela magia reacende na sociedade. João Ribeiro
Júnior levanta esta questão em sua obra. Segundo ele, a racionalização da sociedade não
conseguiu fazer desaparecer de seu meio a magia, conforme percebemos no trecho seguinte:

A magia sempre existiu. Ela foi a primeira manifestação da razão humana,


da qual todas as outras atividades de cultura, religião, técnica, ciência e de
arte são em grande parte originárias. Em termos axiológicos, o
desaparecimento da magia significaria a dissolução da própria cultura, a
negação da sua forma fundamental.10

Ribeiro Júnior defende que a magia seria uma manifestação inata ao homem que o
levou a realizar todas as outras coisas e, portanto, não poderia desaparecer, mesmo com o
desencantamento do mundo provocado pela crescente racionalização. Ela é importante para
o homem na medida em que dá a este uma sensação maior de poder e liberdade de controlar
poderes considerados ocultos ou sobrenaturais, e aplicar tais poderes para influir em sua
realidade concreta. Este é um dos objetivos da magia para o autor.
Em sua definição de magia, Júnior parte do princípio da existência, na natureza, de
elementos ocultos ao homem. Para ele, o mundo divide-se em duas esferas:

Dado um determinado acervo de conhecimentos e técnicas, um desses


mundos pode ser dominado e controlado de tal maneira que o homem está
apto a satisfazer suas necessidades; fora dessa esfera, a capacidade

10
RIBEIRO JÚNIOR, 1985, p. 10.

14
disponível é insuficiente por si mesma para garantir a consecução dos
objetivos humanos, e é aqui que a Magia entra em cena.11

Através da magia, portanto, o homem tem a possibilidade de controlar este mundo


de sorte, no qual seu desempenho não depende de seus próprios esforços, mas sim de
fatores que escapam ao seu controle e entendimento. Por isso ela lhe dá a ilusão de livre-
arbítrio pleno.
Percebemos uma aproximação desta concepção de magia com a de Weber,
considerando que ambas partem do princípio de que os rituais magicamente motivados
visam obter algum tipo de controle sobre um mundo sobrenatural ou divino, a fim de
conseguirem interferir a seu favor neste mundo. Ambas partem do princípio da existência
de seres sobrenaturais, divindades ou demônios, que podem ser venerados ou até mesmo
coagidos, como é o caso da magia, e assim interferirem no mundo terreno a favor do mago.
Trata-se de uma troca, em que de um lado temos o mago e seus rituais e do outro o deus ou
demônio e seu poder. O poder do mago está em conseguir realizar bem os rituais, para obter
do deus a ajuda que busca. Mas, em último caso, quem age diretamente é o deus e não o
mago em si, que age apenas indiretamente.
Durkheim explica a natureza desta relação entre o homem e as divindades através
do princípio do mistério, representado pelo mundo sobrenatural, que permeia grande parte
das religiões. O pensamento religioso está baseado nesta noção de sobrenatural. Para ele, “a
religião seria, portanto, uma espécie de especulação sobre tudo o que escapa à ciência e, de
maneira mais geral, ao pensamento claro.”12 A idéia deste sobrenatural, porém, provém da
ciência. O termo sobrenatural se relaciona a uma idéia da existência de acontecimentos que
estejam fora do natural, ou seja, “como estão fora do curso ordinário das coisas, esses
acontecimentos são atribuídos a causas extraordinárias, excepcionais, ou seja, em suma,
sobrenaturais.”13 Esta idéia só pode ser concebida quando a ciência estabeleceu a existência
de uma “ordem natural das coisas”, que pode ser explicada por meios racionais e até certo
ponto, provada cientificamente. Tudo o que escapa a esta explicação, portanto, está fora do

11
Idem, p. 11.
12
DURKHEIM, 1996, p. 5.
13
Idem, p. 9.

15
âmbito científico, e é relegado ao mundo do sobrenatural. As religiões seriam, então, de
alguma forma, uma especulação a respeito do sobrenatural.
Deste mundo sobrenatural fazem parte os deuses ou seres espirituais. Ainda
segundo Durkheim,

(...) por seres espirituais, devemos entender seres conscientes, dotados de


poderes superiores aos que possui o comum dos homens; essa qualificação
convém, portanto, às almas dos mortos, aos gênios, aos demônios, tanto
quanto às divindades propriamente ditas.14

Nem todas as religiões, porém, se preocupam em explicar ou admitir a existência


destes seres, como é o caso do budismo, citado por Durkheim. E mesmo dentro de certas
religiões que admitem tal idéia, há vários ritos que não estão relacionados à idéia de deuses
ou demônios.
Para melhor diferenciar as religiões das práticas mágicas, Durkheim classifica os
fenômenos religiosos em crenças e ritos. “As primeiras são estados da opinião, consistem
em representações; os segundos são modos de ação determinados.”15 Do mesmo modo,
também a magia se constitui de crenças e ritos, porém para Durkheim eles são apenas mais
rudimentares. A magia tem fins mais práticos e utilitários e não se detém em especulações.
Ela não se preocupa em forjar um corpo doutrinário que explique suas ações. Apenas busca
no mundo sobrenatural uma forma de obter ajuda e atingir seus objetivos terrenos, ao
contrário da religião, que busca dar conforto aos que a buscam, através de especulações e
doutrinas que expliquem o funcionamento deste mundo sobrenatural.
Percebemos assim, que tanto Weber quanto Durkheim distinguem religião e magia
pela forma de se relacionarem com este mundo sobrenatural. Para Mary Douglas, estas
concepções estão veiculadas à noção que o homem tem de milagre. Analisando autores
como Malinowski e Robertson Smith, a autora parte da idéia que estes antropólogos tinham
da magia como uma forma de milagre. Assim, “por magia permitimo-nos ler milagre (...);
alguns objetos, lugares e pessoas tinham um poder miraculoso.” 16 O sentido mágico,

14
Idem, p. 11.
15
Idem, p. 19.
16
DOUGLAS, 1990, p.76-77.

16
portanto, para eles está na “esperança de pôr um tal poder miraculoso ao serviço dos
homens.”17 No entanto, Mary Douglas traz um novo ponto de vista a esta discussão:

Se formos realistas, deveremos supor que, na religião primitiva, existe uma


relação igualmente lassa entre rito e efeito mágico. A possibilidade de uma
intervenção mágica está sempre presente no espírito dos crentes, é humano,
é natural esperar que a representação de símbolos cósmicos traga consigo
qualquer vantagem material. Mas é errado pensar que os rituais primitivos
têm por objetivo principal uma intervenção mágica. Nas culturas primitivas,
o sacerdote não é necessariamente um fazedor de milagres.18

O que a autora pretende é nos atentar para a relação lassa entre os rituais realizados
e o efeito esperado por eles. Para Weber e Durkheim, esta relação está na interferência que
se pretende obter por parte dos deuses na vida dos homens. Mary Douglas contrapõe esta
teoria com o efeito simbólico do rito, pura e simplesmente. O ritual em si não tem uma
motivação mágica. Ele está presente também em nossa vida, ele é um símbolo que
representa alguma coisa, e tem diversas funções: “permitem-nos isolar certos fenômenos e
valorizá-los, fornecem-nos um método mnemônico e, por fim, um meio de dominar a nossa
experiência.”19
Um exemplo deste tipo de ritual é o que os cristãos utilizam na sexta-feira santa,
quando deixam de comer carne vermelha. O objetivo deste ritual não é obter qualquer
vantagem do mundo sobrenatural; pelo menos não diretamente. Ele tem muito mais uma
relação de relembrar a tradição cristã. Outro exemplo é a eucaristia, o ato de comer o pão e
beber o vinho. Também este ritual não espera qualquer intervenção divina, mas serve
apenas para relembrar a santa ceia; vemos assim que nem todo ritual tem esta função de
interferir no mundo divino. Também com os primitivos ocorre desta forma. Os rituais, por
exemplo, de dança da chuva, não tem o efeito que lhe atribuem alguns antropólogos, de
diretamente trazer a chuva. Representa muito mais a vontade destes povos de que a chuva
venha, em consonância com o universo, que naturalmente trará a chuva até eles.

17
Idem, p. 77.
18
Idem, p. 77.
19
Idem, p. 80.

17
Sobre a eficácia da magia, Mary recorre a Mauss, que compara a magia a uma
moeda falsa. A correspondência com o dinheiro, segundo ela, é bastante apropriada. Isto
porque ambas são símbolos, que representam valores, operações.

Mas Mauss estava errado ao comparar a magia com a moeda falsa. O


dinheiro permite multiplicar as relações econômicas, mas só o poderá fazer
enquanto o público confiar nele. Se esta confiança vacilar, o dinheiro não
valerá mais nada. O mesmo se passa com os ritos; os seus símbolos são
eficazes enquanto inspirarem confiança.20

Assim percebemos que, para a autora, o poder do ritual está na confiança que nele
se deposita. Se uma determinada sociedade confia em seu xamã e em seus ritos, sua
eficácia estará assegurada. Podemos relacionar esta assertiva com o conceito de fé que
muitas religiões possuem. Também aqui, o fato do crente ter seus desejos atendidos, seja de
cura de doenças ou resolução de problemas financeiros, se baseia na sua fé na utilização do
ritual, seja ele uma prece ou uma promessa. Também aqui percebemos que o ritual, apesar
de ter seu caráter mágico, que se baseia no milagre, também tem um caráter puramente
simbólico, que está no fato daquele ritual representar a vontade de cura.
Em oposição, João Ribeiro Júnior defende que o funcionamento da magia não
depende de nela se crer:

É de se notar que a Magia não depende de que nela acreditem aqueles sobre
os quais ela é praticada. (...) Não tem importância que a pessoa a quem se
dirige a prática mágica tenha ou não consciência disso – ou a força existe e
atua, ou não; o acreditar apenas nela não basta para seu êxito.21

Júnior nos fornece, portanto, mais uma visão sobre a questão da magia. Mas, de
uma certa forma, ele considera todas as concepções de magia aqui apresentadas. Em sua
obra, ele divide a magia em duas modalidades: a magia natural e a magia divina ou
evocativa.

20
Idem, p. 88.
21
RIBEIRO JÜNIOR, 1985, p. 20.

18
A magia natural estuda os fenômenos paranormais, ocultos, do organismo
humano e a maneira de obtê-los e reproduzi-los nos limites do organismo.
A magia divina ou evocativa dedica-se a preparar o estado espiritual do
mago para fazer possíveis as relações do homem com as naturezas
superiores, ocultas aos olhos do profano.22

A magia natural, portanto, abarca os diversos tipos de adivinhação, como a


quiromancia, a astrologia, a interpretação dos sonhos, e também a magia analógica. Ribeiro
Júnior define esta magia analógica pelo seguinte postulado: “não há nenhum princípio
natural cujas formas não se possam relacionar.”23 É possível relacionar, assim, o homem
com o universo. O homem seria um microcosmo do universo (macrocosmo), ele é análogo
ao universo (não idêntico). Segundo a lei da analogia, “o que está embaixo é como o que
está em cima”24 e vice-versa.

Dessa forma, basta colocar as coisas materiais de certa maneira para que se
determine um fenômeno análogo nos mundos superiores, que são os
mundos das causas por cuja ação se obtém o efeito desejado. Daí a magia
analógica confundir-se com a magia simbólica (magia cerimonial).25

Esta concepção de magia não entra na questão dos deuses ou entidades


sobrenaturais. Com ela, se pode obter o efeito desejado diretamente, por meio de um ritual,
baseando-se no princípio de que no universo existe uma certa unidade e que o que nós
fazemos aqui neste mundo, repercute simbolicamente no outro mundo, o mundo
sobrenatural.
A outra forma de magia apresentada por ele é a magia divina, que se baseia na teoria
de Weber e Durkheim, da magia como forma de evocar espíritos, deuses ou entidades
sobrenaturais e fazê-las agir neste mundo a favor do mago. Ribeiro Júnior reconhece ainda
a existência de outras formas de magia, como a apresentada por Mary Douglas: “Os rituais

22
Idem, p. 22.
23
Idem, p. 26.
24
Idem, p. 27.
25
Idem, p. 27

19
podem ser: efetivos, quando se pretende produzir um determinado efeito sobre um objeto,
pessoa ou grupo de pessoas; e simbólicos, quando tem por fim relembrar uma tradição.”26
Ele reconhece, portanto, as diversas concepções de magia aqui apresentadas como
coexistentes, sendo que nenhuma se sobrepõem às outras, podendo ser utilizadas
conjuntamente ou em separado, e um mesmo rito acumular funções diversas dentro deste
quadro apresentado.
Uma outra discussão pertinente a respeito da relação entre a religião e a magia é a
relação estabelecida entre cada uma delas e o “leigo”. Tal discussão nos será útil para
diferenciá-las de forma mais bem definida, e também por se relacionar diretamente com a
Umbanda. Ela está presente nas teorias de Weber e Durkheim, aos quais voltaremos agora
nossa atenção.
Weber é um dos primeiros a dedicar atenção à diferente relação estabelecida entre o
“leigo” e o sacerdote, e entre o “leigo” e o mago.

Denominam-se “sacerdotes” os funcionários de uma empresa permanente,


regular e organizada, visando à influência sobre os deuses, em oposição à
utilização individual e ocasional dos serviços dos magos. (...) Considera-se
decisivo para o conceito de sacerdote a circunstância de que os funcionários
exercem sua função (...) a serviço de uma associação com base em relações
associativas de natureza qualquer, (...) em oposição aos magos, que
exercem uma profissão liberal. (...) (Outra) característica essencial (do
sacerdócio é) a adaptação de um círculo especial de pessoas ao exercício
regular de culto, vinculado a determinadas normas, a determinados tempos
e lugares e que se refere a determinadas associações.27

Durkheim também parte desta discussão para diferenciar religião e magia:

As crenças propriamente religiosas são sempre comuns a uma coletividade


determinada, que declara aderir a elas e praticar os ritos que são solidários.
(...) Os indivíduos que compõem essa coletividade sentem-se ligados uns
aos outros pelo simples fato de terem uma fé comum. (...) Ora, não

26
Idem, p. 45
27
WEBER, 1991, p. 295.

20
encontramos, na história, religião sem igreja. (...) Algo bem diferente se dá
com a magia. (...) Ela não tem por efeito ligar uns aos outros seus adeptos e
uni-los num mesmo grupo, vivendo uma mesma vida. Não existe igreja
mágica. Entre o mágico e os indivíduos que o consultam, como também
entre esses indivíduos, não há vínculos duráveis que façam deles os
membros de um mesmo corpo moral, comparável àquele formado pelos
fiéis de um mesmo deus, pelos praticantes de um mesmo culto. (...) Mesmo
as relações que estabelecem com o mágico são, em geral, acidentais e
passageiras; são em tudo semelhantes as de um doente com seu médico. 28

Podemos perceber assim a diferença fundamental que os dois autores colocam entre
religião e magia. Não se trata, pois, de uma relação dicotômica entre ambos. Tanto Weber
quanto Durkheim deixam claro que se tratam apenas de dois extremos da relação leigo-
culto, mas que podem se relacionar e se misturar de formas diferentes, variando de um tipo
de religiosidade para outro. Porém, de uma forma geral, podemos identificar cada um deles
em separado, para efeito de estudo. É o que faremos neste trabalho, utilizando estes dois
conceitos para analisar a relação leigo-culto na Umbanda e buscar assim uma melhor
definição de nosso objeto.
Sobre esta relação religião e magia, ainda, Júnior nos apresenta uma outra visão
sobre a distinção entre ambas.

A distinção estaria no fato de que, enquanto a religião deixa a decisão


última relativa a qualquer ação nas mãos de uma divindade, que pode atuar
ou não, conforme ache conveniente, a magia não faz nenhum apelo à
divindade. Nela o fim almejado pode ser atingido diretamente, desde que os
rituais, as práticas e as fórmulas mágicas sejam convenientemente
executadas.29

Ribeiro Júnior não entra na discussão da relação entre o leigo e o culto. Para ele, a
distinção entre religião e magia está na forma de conseguir o objetivo almejado por aquele
que a procura. Enquanto na religião ela fica restrita a súplicas ao deus, ou seja, a decisão

28
DURKHEIM, 1996, p. 29.
29
RIBEIRO JÚNIOR, 1985, p. 60.

21
última de interferir no mundo terreno fica por conta do ser sobrenatural, da divindade, na
magia ela não depende da decisão deste deus. Basta que sejam corretamente executados os
ritos que o objetivo almejado será alcançado, seja na magia natural, na magia analógica ou
mesmo na magia divina, em que a divindade é coagida a interferir através do ritual. Ela não
deve decidir se vai atuar ou não, mas é coagida a fazê-lo pelo mago. A força da magia não
está no mundo sobrenatural, mas sim no mago em manipular este mundo. Todas estas
discussões em torno da diferença entre religião e magia nos são válidas e serão utilizadas na
análise da prática dos cultos de Umbanda por nós estudados.
Dentro deste quadro geral apresentado, em que buscamos delinear e precisar melhor
os vários conceitos de religião, e principalmente de magia, utilizados pelos autores, não
trabalharemos com uma única definição, utilizando a definição deste e negando a daquele
determinado autor. Entendemos que, como Júnior coloca em sua obra, todas as definições
de magia aqui discutidas são coexistentes e podem ser utilizadas conjuntamente ou em
separado dentro de uma sociedade, e até dentro de um mesmo culto. Portanto voltaremos a
elas a seu devido tempo, para melhor compreendermos na prática o fenômeno religioso que
pretendemos estudar.
Para uma melhor compreensão deste objeto, convém agora definirmos suas
principais características, sua história e sua origem, para que possamos relacionar a teoria
com a prática observada em nosso trabalho de campo. Passemos, portanto, a esta definição
da Umbanda em nosso segundo capítulo.

22
CAPÍTULO II
NO REINO DA UMBANDA

Entraremos agora em um domínio totalmente novo para a maioria das pessoas. Um


domínio cercado por mistificações de toda espécie, o que dificulta muito sua análise,
mesmo pelo observador mais atento. Para buscar sua compreensão, é necessário adentrar
este domínio, conviver com ele, entender suas peculiaridades, sua lógica própria e sua
maneira de explicar o mundo. É a esta tarefa que nos dedicaremos agora. Penetrar os
mistérios da Umbanda e buscar dar-lhe sentido. Mais ainda, buscar como ela se insere no
espaço urbano e no imaginário das pessoas. Não se trata apenas de um trabalho de
descrever o que tivemos a oportunidade de observar em nossas visitas de campo; muito
menos apenas quantificar os centros e seus freqüentadores. Para que nosso objetivo se dê
por completo, pretendemos ir a fundo, pesquisar suas raízes, sua origem e procurar explicar
a Umbanda em suas várias formas, às vezes tão diferentes entre si, mas não deixando de
pertencer ao mesmo quadro simbólico. Isto nos permitirá, em meio aos vários elementos de
outras religiosidades incorporados a esta religião, identificar aquilo que está sempre
presente dentro da Umbanda, aquilo que a define e nos permite diferenciá-la de outras
religiões.
Encontramos esta diferenciação no trabalho com as entidades de caboclos, pretos-
velhos e exus, principalmente, incorporados num médium e dando consultas às pessoas que
os procuram, receitando ervas, simpatias ou simplesmente dando conselhos. Este é o eixo
que dá significação à Umbanda e que nos permitirá diferenciá-la de outras religiões
baseadas também na mediunidade: o Candomblé e o Kardecismo. Estas três religiões
trabalham com o fenômeno da incorporação, mas cada uma a seu modo, conforme teremos
a oportunidade de demonstrar.

2.1. Antecedentes Históricos

A Umbanda nasceu no início do século XX, em Niterói, no Rio de Janeiro, e foi


revelada por um caboclo incorporado num médium chamado Zélio de Moraes, dentro de
um centro kardecista. Quanto à data deste início, há uma ligeira discordância entre os

23
autores que consultamos sobre o assunto. Patrícia Birman e Sandra Machado apontam para
o ano de 1937; para Magnani e Pierucci, o ano foi 1920; e Eneida Gaspar e Robson
Pinheiro apontam o ano de 1908 como sendo o da primeira manifestação de um caboclo,
que se identificou como Caboclo das Sete Encruzilhadas, incorporado no médium Zélio de
Moraes num centro kardecista de Niterói.30
Mesmo com esta discordância em relação à data, existe uma unanimidade de que
teria sido Zélio de Moraes o primeiro a utilizar o termo Umbanda e a incorporar um
caboclo em centros kardecistas. Este é o nascimento oficial da Umbanda e pouco tempo
depois Zélio de Moraes fundava a Tenda Nossa Senhora da Piedade, o primeiro centro de
Umbanda do país, onde diversos médiuns vindos do Kardecismo receberiam os espíritos de
caboclos, pretos-velhos e crianças, e dariam consultas às pessoas.
Mas para uma melhor compreensão deste nascimento da Umbanda, devemos voltar
um pouco mais no tempo e resgatar um pouco da história das religiosidades afro-brasileiras.
Desde o período colonial já se presenciava em nosso país uma diversidade de cultos e
religiosidades. Indígenas e seu culto às forças da natureza, o cristianismo europeu e, por
último, os rituais africanos, com suas danças e seus orixás, se encontraram em terras
brasileiras, encontro este que tomou expressões violentas em alguns casos e expressões
mais conciliadoras em outros. A imposição cultural, especialmente religiosa, partia do
homem branco cristão, que tentava catequizar índios e negros, transformando-os em
cristãos novos.
Os negros africanos tinham uma religiosidade baseada na tribo ou clã, um espécie
de família, em sua terra de origem. Esta família compreendia não só as pessoas vivas, como
também os espíritos dos mortos, os ancestrais, que após a morte continuavam vivendo
próximo a tribo. Era dever então dos que ficaram na terra alimentar estes mortos através de
sacrifícios.31 Os ancestrais, que se tornavam deuses ancestrais para os que ficaram vivos,
não podiam parar de receber oferendas, do contrário deixariam de existir. Gaarder explica
que

fazer um sacrifício a um ancestral pode ser algo bastante simples. Um


membro da tribo vai até o túmulo de seu pai, por exemplo, oferece uma

30
GASPAR, 2002, p. 196; PINHEIRO, 2004, P. 24.

24
pequena quantidade de comida e bebida, e pede ajuda para resolver uma
situação difícil.32

Além deste tipo de culto, os africanos acreditavam também num deus supremo,
criador de todas as coisas, inclusive do homem. Mas quando precisavam de algo, raras
vezes os homens pediam a este deus supremo. Ao invés disto, recorriam aos deuses e
espíritos menores, que eram intimamente ligados a fenômenos naturais, como o raio e o
trovão, a cachoeira, etc. A magia era também algo bastante praticado nos rituais das tribos
africanas, que tinham pessoas especializadas nesta função. Utilizavam-se de várias técnicas,
como a magia homeopática, em que se acredita que semelhante atrai semelhante e que ao se
criar uma situação de chuva, por exemplo, a chuva é atraída; a magia de contágio, em que
se acredita que possuindo uma peça de alguém, ao agredi-la a pessoa a quem pertença a
peça também sofrerá; e a adivinhação, que pode ser jogando objetos para cima e vendo de
que modo caem, ou pode ser utilizando a dança, quando o indivíduo entra em transe,
possuído por algum espírito, que pode ser interrogado e dar respostas aos interessados.33
Este modelo religioso, de um modo geral, era o modelo apresentado nas tribos
primitivas africanas, mas variava bastante de uma região a outra da África. Podemos
perceber nelas os traços distintivos das religiões afro-brasileiras atuais, como o transe
mediúnico e o jogo de búzios (adivinhação). Mesmo com a repressão dos senhores de
escravos e das instituições católicas, a feitiçaria e o culto aos deuses africanos continuaram
existindo, mas só parcialmente.
Dentre os principais grupos que foram trazidos para o Brasil e que conseguiram
manter sua religiosidade, de algum modo, frente à repressão católica, merecem destaque o
dos sudaneses (iorubás e dahomeanos) e dos bantos de Angola, Congo e Moçambique. A
religiosidade destes grupos se diferenciava, segundo Magnani, pelo tipo de culto que
faziam. Enquanto a religião dos últimos se associava mais ao culto aos antepassados, os
sudaneses representavam os deuses como forças da natureza, que eram cultuados por
sacerdotes e por um grupo de iniciados. Magnani diferencia assim a permanência destas
duas grandes vertentes:

31
GAARDER, 2000, p. 90.
32
Idem, p. 93.
33
Idem, p. 94, 95.

25
A que desembocou nos candomblés, principalmente na Bahia, e xangôs de
Pernambuco – constituída basicamente pelas tradições das nações do grupo
sudanês, em especial dos nagôs – e a dos povos bantos que, em contato com
a anterior, vão constituir os chamados “candomblés de caboclo” e
candomblé de angola. Já no contexto urbano e sob o influxo do espiritismo,
ambas servirão de base para a Umbanda.34

O sincretismo católico foi forte nos primeiros momentos das religiões afro no Brasil.
Reprimidos pela igreja católica, os negros eram obrigados a assumir a religião cristã, e
como forma de resistência e preservação de sua cultura religiosa, iniciou-se um processo de
assimilação entre os santos católicos e os espíritos ou deuses menores africanos, conhecidos
como orixás. Segundo Prandi, esta seria a primeira fase das religiões afro no Brasil.35 Mais
tarde, a partir do século XVIII houve a criação das irmandades religiosas católicas
destinadas a dar assistência aos escravos. Para facilitar o trabalho de catequisação dos
negros, eles estimulavam a superposição entre os deuses africanos e os santos católicos,36
alimentando ainda mais este sincretismo.
Assim a religiosidade africana foi sobrevivendo, moldando-se ao catolicismo e
incorporando elementos indígenas, principalmente o uso de ervas e o curandeirismo. Tal
sincretismo deu origem a uma figura folclórica que ganhou força principalmente no século
XVIII, após a abolição: a do feiticeiro e curandeiro negros. Conhecedor de rezas e ervas,
eram mal vistos pela sociedade, mas ao mesmo tempo procurados por quem precisasse de
ajuda. Negrão nos aponta alguns jornais de 1850 que denunciavam tais episódios. “A
denúncia de práticas de curandeirismo e de exercício ilegal da medicina foi freqüente nos
jornais nesta década de 5037.” A prática de tais “sortilégios”, como eram chamados à época,
se dava de forma esporádica e não sistemática. Eram fragmentos das antigas práticas dos
escravos. Ao mesmo tempo, grupos de negros se reuniam para celebrar e praticar os antigos
rituais africanos, agora modificados pelo sincretismo. Os principais grupos eram os

34
MAGNANI, 1986, p. 18.
35
PRANDI apud MACHADO, 2003, p. 42.
36
GASPAR, 2002, p. 196.
37
NEGRÃO, 1996, p. 43.

26
candomblés, reunindo cultos de origem sudanesa, e a cabula, de origem banto, aos quais
nos descreve Magnani:

As religiões dos bantos eram mais permeáveis à influencia de outros cultos:


dos candomblés nagôs, a cabula banto assimila a estrutura do culto e alguns
orixás; em contato com outras crenças e ritos adota os caboclos
catimbozeiros, práticas mágicas européias e muçulmanas, os santos
católicos e, finalmente, sofre o influxo do espiritismo, que fora introduzido
no Brasil por volta da segunda metade do século XIX.38

Esta religiosidade fragmentada, que apresentava resquícios das tradições


africanas sincretizadas é denominada por Roger Bastide como Macumba39. Magnani nos
define este tipo de religiosidade:

Menos do que um culto organizado (a macumba) era um agregado fluido de


elementos do candomblé, cabula, tradições indígenas, catolicismo popular,
espiritismo, práticas mágicas, sem o suporte de uma mitologia ou doutrina
capaz de integrar seus vários pedaços.40

Neste momento, não existia ainda um movimento religioso unificado, com


uma doutrina estabelecida e que desse corpo aos rituais e crenças existentes, o que se podia
encontrar apenas no Candomblé. O que havia era um conjunto de práticas e rituais
desconexos, que misturavam elementos diversos, e eram conhecidos na sociedade por
diversos nomes como feitiçaria, curandeirismo, bruxaria, macumba e vários outros, todos
com um sentido pejorativo carregado pelo preconceito da sociedade da época. Tal quadro
durou até início do século XX, inclusive com a imprensa dispensando esforços no sentido
de combater estas práticas, como nos relata Negrão em transcrição de uma nota de jornal:

Estou informado que diversos indivíduos exploram a credulidade pública


com a feitiçaria e a cartomancia. São, em geral, pretos boçais e mulatos

38
Idem, p. 21.
39
BASTIDE, apud MAGNANI, 1986, p. 21.
40
MAGNANI, 1986, p. 22.

27
pernósticos (...). Essas baiúcas são freqüentadas às vezes até por pessoas de
certa colocação que, não raro, saem daqueles antros imundos com os
maléficos embriões que são a causa de destruição da harmonia ou da
felicidade de lares. O meu informante garantiu-me a veracidade de fatos
que não devo relatar, limitando-me a pedir a salutar ação da polícia contra
tais exploradores.41

Percebe-se claramente na notícia, retirada de um jornal do início do século,


qual era a visão que a imprensa e a sociedade em geral tinham dos feiticeiros. Na maioria
dos casos, feitiçaria era caso de polícia, e a mesma era convocada a agir para acabar com o
que consideravam “horrorosos crimes”, “uma imoralidade” ou “exploração da tolice
humana.”42
Mas ao lado deste conjunto de manifestações consideradas de baixo teor,
começava a crescer no Brasil o movimento espírita, conhecido como Kardecismo, que
chegara ao Brasil na segunda metade do século XIX, vindo da França. A base da doutrina
desta nova religião era a possibilidade de comunicação dos vivos com os mortos, e a crença
na teoria da transmigração das almas, ou reencarnação. Por se tratar de uma religião
nascida no seio intelectual francês, agregava elementos que se diziam em parte científicos,
em parte filosóficos e religiosos.
No Brasil, o espiritismo encontrou terreno propício para se propagar, principalmente
entre as classes mais intelectualizadas da sociedade. Porém esta aceitação não era unânime.
Setores mais conservadores da sociedade, não só religiosos, viam nesta nova religião uma
ameaça, e logo o termo espiritismo foi associado às antigas práticas de feitiçaria e
curandeirismo já existentes aqui. Assim o espiritismo se dividiu em dois no Brasil,
conforme nos explica Negrão:

O “alto” Espiritismo seria, portanto, religião protegida pelo Estado, culto


semelhante aos demais e livre, inspirado nos nobres princípios da caridade,
envolvendo pessoas instruídas de elevada condição social. O “baixo”
Espiritismo seria a prática de “sortilégios”, de feitiçaria e curandeirismo

41
O Estado de S. Paulo, 06/06/1914 In NEGRÃO, 1996, p. 51.
42
NEGRÃO, 1996, p. 43-54.

28
enquadráveis no Código Penal, despido de moralidade e motivado por
interesses escusos, envolvendo pessoas desclassificadas socialmente e
ignorantes. É obvio que as práticas mágico-religiosas de origem negra
enquadravam-se dentro desta última categoria.43

Como se vê, o “alto” Espiritismo deu seus frutos entre as classes mais altas no país,
e logo surgiram as primeiras organizações voltadas ao estudo e divulgação dos ideais
kardecistas no Brasil, conforme nos demonstra Pierucci:

O Kardecismo foi introduzido no Brasil durante a segunda metade do


século XIX. As principais organizações espíritas surgiram por volta de
1870 na Bahia e no Rio de Janeiro. Desde a chegada, o traço distintivo de
sua proposta foi a terapia mediúnica por meio de ”passes” para combater
todos os tipos de enfermidade e desconforto.44

Diversos tipos de tratamentos são oferecidos nestes centros kardecistas, sem deixar
de lado o estudo científico da doutrina. O passe magnético, como é conhecido hoje, trata-se
de uma troca de fluídos (energia) positivos do médium com o paciente, com o intuito de
afastar as energias negativas que possam estar presentes nele e lhe trazer uma sensação de
alívio e bem-estar. Além dele, alguns centros utilizam o tratamento através do transe
mediúnico. Neste tipo de tratamento, que será melhor discutido mais a frente, o médium
entra numa espécie de transe, quando é possuído por um espírito. O espírito passa a
controlar o corpo do médium, inclusive sendo capaz de falar através de suas cordas vocais.
Quando o médium já está totalmente dominado pelo espírito, são chamados os pacientes,
que conversam com o espírito incorporado no corpo do médium, recebendo conselhos e
receitas de tratamentos. Estes tipos de práticas, quando vistas por alguém de fora, só
reforçavam o preconceito, especialmente da imprensa, que as enquadravam como
“evocação dos espíritos dos mortos.”45
Na maior parte dos casos, os centros trabalhavam com espíritos de médicos,
doutores, padres e outras figuras que mereciam destaque e respeito pela posição social que

43
Idem, P. 57.
44
PIERUCCI, 2000, p. 290.

29
tiveram em vida. Mas não eram só espíritos deste tipo que se manifestavam nas sessões
espíritas.

Em suas sessões não era raro, ao lado de desencarnados de mais prestígio, a


presença de espíritos de velhos escravos e indígenas, inicialmente
identificáveis, como os demais, pela lembrança de suas vidas passadas, mas
que aos poucos vão perdendo os traços individualizadores e constituindo as
categorias mais genéricas de pretos-velhos e caboclos.46

A primeira destas manifestações teria sido a do Caboclo das Sete


Encruzilhadas, que veio, segundo a própria literatura espírita, anunciar uma nova religião, a
aumbandhã47. Tal revelação teria se dado, segundo Pinheiro, no dia 15 de novembro de
1908, na Federação Kardecista de Niterói, no Rio de Janeiro, e teria sido pronunciada pelo
Caboclo das Sete Encruzilhadas incorporado no corpo do médium Zélio de Moraes.
Segundo o autor, o Caboclo teria anunciado que o intuito da nova religião seria o de falar
“aos corações mais simples e numa linguagem despida de preconceito.”48
O trabalho com caboclos e pretos-velhos logo começou a incomodar alguns
kardecistas mais conservadores. Vários adeptos não aceitaram esta nova religião,
encarando-a como uma degradação da doutrina espírita. Ela foi logo banida dos centros
kardecistas, e começou a aparecer nos becos de bairros mais afastados, em casebres simples
que se denominavam tendas. Vários kardecistas, curiosos e cansados do profundo
intelectualismo de seus centros, trocaram o Kardecismo pela Umbanda, e assim foi
crescendo o número de terreiros e adeptos desta última.
Isto causou uma multiplicidade de características presentes na Umbanda.
Enquanto de um lado ela nascia “embranquecida” pelos adeptos que vinham de uma
tradição Kardecista, mais europeizada e intelectualizada, de outro lado ela recebia adeptos
da Macumba, feiticeiros negros, curandeiros, que lhe imprimiam um caráter mais
africanizado e buscavam resgatar suas raízes afro através dela, trazendo influências do
Candomblé e de outras práticas afro-brasileiras. Neste sentido, a Umbanda já nasce entre

45
NEGRÃO, 1996, p. 61.
46
MAGNANI, 1986, p. 24.
47
PINHEIRO, 2004.
48
Idem.

30
dois pólos opostos: de um lado representantes de uma “Umbanda branca”, cujas principais
influências eram do Kardecismo; de outro lado os representantes de uma “Umbanda afro”,
cujas principais influências eram do Candomblé. E foi entre estes pólos que a Umbanda foi
crescendo cada vez mais e se espalhando por várias capitais de nosso país.
Utilizando os números de São Paulo, por exemplo, apresentados por Negrão em seu
livro, de 1929 a 1944 o número de centros espíritas kardecistas registrados em cartórios
representava 94% do total de Unidades Religiosas registradas, contra apenas 6% da
Umbanda. Alguns anos depois, no período de 1953 a 1959, este número já havia invertido,
com 68% de casas de Umbanda contra 31% de kardecistas. A tendência de crescimento da
Umbanda prosseguiu, com seu ápice nos anos de 1968 a 1970, com 91% de registros de
casas de Umbanda contra apenas 4% de kardecistas.49
Tais números deixam claro o vertiginoso crescimento que a Umbanda teve
desde seu aparecimento no Rio de Janeiro. No caso de São Paulo e Rio de Janeiro, este
crescimento foi marcado pelas várias tentativas de federalização e unificação que esta
religião teve ao longo destes anos. Tais iniciativas se devem, principalmente, à busca de
uma legitimidade frente à sociedade, já que os primeiros anos de existência da Umbanda
foram marcados pela repressão policial e ideológica, cujos principais agentes foram as
igrejas (católicas no início e pentecostais mais recentemente) e a imprensa.
A partir dos anos 30, enquanto o Kardecismo conseguia sua legitimidade junto à
sociedade, principalmente em razão de sua “alta qualificação social e acomodação política,
voltados à pratica da caridade tradicional”50, a Umbanda era perseguida pelo Estado Novo,
que em nome do “combate ao arcaísmo e à ignorância” 51 , criava ações policiais para
combater os cultos afro-brasileiros. A divisão entre estas duas religiões, como já vimos, se
dava pelas designações de “alto espiritismo” dada ao Kardecismo, e de “baixo espiritismo”
conferido à Umbanda, ao Candomblé e demais práticas mágicas de origem afro ou
européias (bruxaria). Para evitar a perseguição policial neste período, vários centros de
Umbanda

49
NEGRÃO, 1996, p. 68, Quadro 1.
50
Idem, p. 70.
51
Idem, p. 70.

31
travestiram-se de espíritas para obterem o registro em cartório que lhes
asseguraria o caráter de organização religiosa legalizada. Se os santos
católicos constituíram-se em uma primeira “mascara branca” atrás da qual
se esconderam rostos negros, o Espiritismo veio a constituir-se na
segunda.52

Tal perseguição policial durou até a década de 50, quando se inicia então o
movimento federativo, principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
A repressão no entanto não cessa neste período, ela apenas muda sua forma. Agora, ao
invés de perseguição policial, a Umbanda sofreria a perseguição ideológica da igreja
católica e da imprensa conservadora, especialmente de jornais como O Estado de S. Paulo.

Pode-se concluir que a Umbanda, em fins da década de 50, estava entre os


dois fogos cruzados da ortodoxia religiosa e do intelectualismo positivista,
cuja configuração, em fins do século passado e início do atual, conduzira às
tragédias de Canudos e do Contestado.53

Levadas pelas críticas, as federações tendem a fugir aos seus estigmas de


origem, e tentam retirar de seus rituais tudo aquilo que possa remeter ao seu passado negro,
ou que pudesse passar a imagem de primitivo ou bárbaro. Inicia-se um forte movimento de
“branqueamento” dos rituais umbandistas. A perseguição ideológica e o movimento
federativo vão da década de 50 até o ano de 64, quando se inicia uma expansão umbandista
devido ao apoio do governo militar.

A Umbanda continuou a crescer, reconhecida e estimulada pelos governos


que se apropriaram do poder em 1964. A Igreja Católica cessara a
campanha contra ela, varrida pelos ventos ecumênicos que sopraram do
Concílio Vaticano II.54

52
Idem, p. 74.
53
Idem, p. 86
54
Idem, p. 99.

32
Na década seguinte a Umbanda chega ao seu ápice com nada menos do que 94,1%
dos registros em cartório sendo de terreiros umbandistas, frente a apenas 4,7% de centros
espíritas e 4,2% de candomblés. A partir desta década, tirando um ou outro artigo publicado
em jornais criticando a Umbanda, ela passa a gozar de uma certa legitimidade dentro da
sociedade brasileira. Apoiada por políticos e intelectuais, tendo seus congressos regionais e
nacionais, e tendo suas festas incluídas nos calendários de vários estados, como a
tradicional festa para Iemanjá que é feita em várias praias brasileiras na virada do ano, a
Umbanda vira sinônimo de nacionalismo e passa a ser defendida por muitos intelectuais
como sendo a “legítima religião brasileira”.
Seu crescimento ao longo de todo este período se deu em duas frentes distintas. “De
um lado, ao expandir-se, (a Umbanda) atingia setores da classe alta, e de outro lado era
invadida pelo Candomblé.” 55 O crescimento polarizado continuou, portanto, presente
dentro da Umbanda. Isso foi possível graças ao intenso hibridismo que a marcou desde seu
início, não tendo ela nascido com corpo doutrinário estabelecido e modelos fechados de
rituais. Pelo contrário, cada pai-de-santo, cada chefe de centro manteve sua autonomia para
conduzir o culto conforme seus interesses e conhecimentos, podendo ele agregar elementos
de diversas outras religiosidades, desde a doutrina kardecista até elementos das chamadas
religiões da Nova Era. Para entender este hibridismo e esta diversidade que caracteriza a
Umbanda e a torna tão rica, passaremos agora ao estudo de suas principais características.

2.2. O Fenômeno da Incorporação

Não resta dúvida de que o exercício da possessão, que permite aos fiéis um
contato mais rápido e mais direto com as forças sagradas, ameaça o poder
do padre, que pretende ter o direito exclusivo de fazer a mediação entre os
homens e o mundo das forças sagradas.56

A maioria dos autores que escreveram sobre a Umbanda são unânimes em afirmar
que a base central do culto umbandista está no fenômeno da possessão, ou incorporação
como é mais conhecido. Portanto, para iniciarmos um estudo sobre esta religião convém

55
Idem, p. 122.
56
BIRMAN, 1983, p. 17.

33
começarmos por este fenômeno, tão incompreendido e mistificado em nossa sociedade. Ele
é conhecido dentro do meio espírita por transe mediúnico, ou simplesmente transe para
outros autores, e é no espiritismo que buscamos inicialmente a explicação para o mesmo.
Em primeiro lugar, utilizaremos alguns conceitos tão caros, não só à esta
religiosidade específica – o espiritismo, como o conceito de alma ou espírito, que Tylor
denominava duplo57, e da possibilidade de contato entre nós vivos e os espíritos dos mortos.
Tais idéias estão presentes em vários tipos de religiosidades, mas foram sistematicamente
concebidas pelo espiritismo de Allan Kardec.
Segundo o espiritismo, o homem tem o dom de comunicar-se com o mundo
invisível, o mundo dos espíritos. Este dom recebe o nome de mediunidade, conforme nos
explica Maria Laura:

Mediunidade é no Espiritismo uma palavra com muitos sentidos. Apresento


pelo momento a mediunidade em seus dois sentidos mais básicos e
interrelacionados: como dom inerente ao homem, e como comunicação
entre espíritos encarnados e desencarnados.58

A mediunidade, portanto, seria o dom que cada homem e mulher tem de se


comunicar, de diferentes formas, com o mundo sobrenatural ou dos espíritos. Mas não
desenvolvemos este dom de forma igual. Alguns o tem mais forte e conseguem desenvolvê-
lo melhor. A estas pessoas o espiritismo chama de médiuns. “O médium, no seio do
Espiritismo, é aquele que transforma o dom que todo homem possui em mediunidade
ostensiva, através do desenvolvimento da mediunidade.”59 Esta pessoa que desenvolve sua
mediunidade se torna mais vulnerável à influência dos espíritos, e por isto mesmo se torna
apta a trabalhar com estes espíritos na forma que lhe for mais conveniente, seja através da
psicografia, da psicofonia ou através do transe mediúnico ou incorporação.
Este último é o que mais no interessa aqui. No fenômeno da incorporação “o
espírito comunicante desliga algumas ligações do perispírito com o espírito do médium e
(se) liga a ele.”60 Desta forma, o espírito passa a controlar o corpo do médium, falando e

57
DURKHEIM, 1996, p. 35.
58
CASTRO, 1985, p. 33.
59
Idem, p. 47
60
Idem, p. 59.

34
agindo através de seu corpo. O espírito do médium, que pode estar consciente, inconsciente
ou semiconsciente, apenas se afasta de seu corpo para que o espírito incorporante possa
tomá-lo e realizar seu trabalho. Encontramos este fenômeno presente tanto na Umbanda
quanto no Kardecismo e no Candomblé. Estas são consideradas religiões de cunho
mediúnico, ou seja, nas quais esta manifestação mediúnica acaba sendo o eixo central do
culto.
Mas, se as três religiões trabalham com este fenômeno, o que as diferencia? É
importante neste momento buscarmos caracterizar cada uma delas em separado, para uma
melhor compreensão do objeto que estudamos aqui, a Umbanda.

2.2.1 O Kardecismo

O Espiritismo kardecista foi uma religião surgida na França do século XIX. Sua
primeira obra, O Livro dos Espíritos, foi escrita em 1857 por Allan Kardec, nome adotado
por Léon Hippolyte D. Rivail (1804-1869), estudioso francês que ficou conhecido então
como o codificador da doutrina espírita. Composto por um corpo doutrinário bem definido,
o espiritismo se baseia na crença da existência de um mundo dos espíritos, um mundo
invisível que nos cerca, e na possibilidade de comunicação e interferência deste mundo
invisível no nosso mundo, o mundo dos encarnados. Também fazem parte da doutrina
espírita a teoria da transmigração das almas, ou reencarnação, e a do karma, ou redenção
dos erros através da reencarnação.
No culto kardecista o eixo central do trabalho é o passe magnético. Este tipo de
tratamento consiste na troca de energias fluídicas entre o médium, que capta as energias
positivas do ambiente e as transmite ao paciente trazendo-lhe benefícios tanto físicos
quanto espirituais. Raramente um centro kardecista trabalha com a incorporação direta dos
espíritos no médium, e quando o fazem são em reuniões fechadas. Nestes casos, o médium
recebe “espíritos de luz”, como os chamam os kardecistas, que se tratam de espíritos mais
“evoluídos”, dentro da linha evolutiva estabelecida pela teoria kardecista. Estes espíritos
vem apenas para dar passes ou conselhos, não se identificando na maioria dos casos.
Quando há uma identificação, geralmente é o espírito de um médico que vem para realizar
alguma cura ou cirurgia espiritual. No culto não há ponto cantado nem riscado, o ambiente

35
geralmente é envolto em penumbra, com lâmpadas roxas ou azuis acesas, incensos e
músicas suaves de meditação.
Alem deste tipo de culto, outros mais comuns são os que se dedicam à prática da
psicografia, chamados trabalhos de mesa. Neles os médiuns se sentam ao redor de uma
mesa, e recebem mensagens dos espíritos, escrevendo-as e depois entregando-as a quem se
destinam. No Espiritismo não há rituais de iniciação, nem a obrigatoriedade de freqüentar o
centro. Geralmente o início no espiritismo se dá através do estudo intelectual da doutrina
espírita, e esta é uma característica marcante desta religião, baseada na evolução espiritual
do homem, que se configura tanto na evolução intelectual quanto na moral. Portanto, o
Espiritismo acaba se tornando uma religião mais intelectualizada. Isto explica seu
crescimento entre as classes mais altas da sociedade.

2.2.2 O Candomblé

Inicio o estudo de um modelo de religião (antes de tudo, uma congregação


de sobrevivências étnicas da África), o chamado candomblé, denominação
originária do termo kandombile, que significa culto e oração. Esse modelo
encontrou, no Brasil, campo fértil para sua disseminação e reinterpretação,
nos diferentes locais em que o processo religioso se desenvolveu.61

Conforme afirma Raul Lody em sua obra, o Candomblé pode ser definido como
uma “congregação de sobrevivências étnicas da África.” Ele está intimamente vinculado,
portanto, à religiosidade dos negros africanos. Trata-se de uma sobrevivência das práticas
religiosas africanas no Brasil, através da preservação dos negros escravos que aqui viveram.
Estas sobrevivências estão separadas por nações, que dizem respeito aos grupos étnicos que
vieram para o Brasil, identificados principalmente através da língua. Lody apresenta pelo
menos 7 divisões de nações, das quais se destacam as nações Kêtu-Nagô, de origem iorubá,
e a Nação Jejê, de origem fon, que formam o binômio jejê-nagô, que se refere a um tipo de
candomblé mais próximo do ideal africano.
O termo Candomblé está relacionado ao local onde é realizado o culto. Geralmente
uma casa grande, pois para a realização dos cultos são necessários inúmeros espaços, cada

36
um com sua função específica. Assim encontraremos em uma casa de Candomblé o peji,
que é o local do santuário onde ficam alojados os objetos sagrados do culto; os
assentamentos, que são as casas dos orixás; a casa de Exu e a de balé (dos eguns); cada um
destes se constituindo em um cômodo com localização e função específicas dentro do
templo do Candomblé. Eneida Gaspar aponta ainda outros elementos deste templo:

Além das casas dos orixás, dos alojamentos dos membros do terreiro e das
áreas de serviço, o templo conta com o salão de dança, que é o centro das
atividades do culto público.62

A base do Candomblé está no culto às divindades africanas, conhecidas como orixás.


Os orixás são arquétipos representativos aos quais são associadas virtudes, qualidades e
defeitos. Assim, por exemplo, Oxum representa o amor e a fertilidade, Oxóssi representa a
força, Xangô a justiça, Iemanjá a maternidade, e assim por diante. Ao contrário do que se
possa pensar, porém, os orixás não tem um caráter normatizador da conduta humana. Quem
nos dá uma explicação a respeito é Pierucci:

O candomblé não é uma religião ética, como o cristianismo. É uma religião


mágica e ritual. Nas religiões mágicas não há a idéia de salvação da
corrupção do pecado (...) No candomblé o que se busca é a interferência
concreta do sobrenatural “neste mundo” presente, mediante a manipulação
de forças sagradas, a invocação das potências divinas e os sacrifícios
oferecidos às diferentes divindades, os chamados orixás. (...) Os orixás não
são divindades moralistas, que exigem e recompensam quem é bom, ou
condenam e castigam quem faz o mal. (...) A ênfase no Candomblé é ritual.
E as regras de comportamento, normalmente bastante minuciosas e estritas,
tem fundamento apenas ritual, não ético.63

61
LODY, 1987, p. 8.
62
GASPAR, 2002, p. 49.
63
PIERUCCI, 2000, p. 293.

37
Os orixás, portanto, se limitam a fornecer modelos de comportamentos, que podem
ser copiados por seus filhos, ou servirem para legitimar um comportamento que a pessoa já
tenha.
É importante frisarmos que o Candomblé é formado por uma rígida estrutura, em
que o ritual e a tradição, ao contrário do que ocorre na Umbanda, são muito fortes e não
podem ser quebrados. Para se iniciar no Candomblé é necessário passar por um ritual
complexo, quando primeiro deve ser definido o santo da cabeça do candidato à iniciação,
que é seu orixá protetor. Eneida Gaspar nos explica melhor sobre este ritual:

(O iniciando) é levado para o roncó (alojamento do templo), onde receberá


a orientação do babalaô. Após ser confirmado seu orixá principal, o
iniciando passa pela cerimônia de feitura do orixá na cabeça, com banhos
rituais de purificação, colocação dos paramentos de iaô (...), raspagem da
cabeça e realização de oferendas ao orixá.64

Após este ritual, ele deverá ficar recluso na camarinha, local do templo apropriado
para isto, por um período que varia de 3 a 7 dias. Este é um período de aprendizagem,
quando o iniciado deverá ser reeducado para a vida espiritual que agora deverá levar.
Somente após passar por este ritual é que ele estará apto para tomar parte nas festas
públicas, e assumir uma função dentro do templo.
Durante os cultos, que são divididos em cultos públicos e privados, o objetivo dos
participantes é se ligar aos seus orixás, realizando oferendas, banhos de purificação, danças
específicas a cada orixá, tudo isto para agradar o orixá de sua cabeça. O culto é dirigido
pelo babalorixá ou ialorixá, que são os pais e mães-de-santo, os chefes religiosos do
Candomblé. Eles exercem papel fundamental no culto através do jogo de búzios, por onde
os orixás fazem revelações aos seus filhos. “O jogo de búzios sempre se faz fora dos rituais
comunitários, em sessões de atendimento individualizado, e é um serviço pago.”65
Durante os cultos públicos há muita música, comida e presentes que as pessoas
trazem aos orixás. Os filhos de santo entram em transe, incorporando os orixás, que
dançam em volta do salão.

64
GASPAR, 2002, p. 51.
65
PIERUCCI, 2000, p. 24.

38
Os orixás, contudo, não se comunicam verbalmente com os membros do
culto. Para entrar em contato com eles e conhecer seus desígnios é preciso
recorrer a um sacerdote especializado – o babalaô – que, através do jogo de
búzios ou colar de Ifá, interpreta e transmite suas ordens e vaticínios.66

Não há, portanto, contato entre os orixás incorporados e as pessoas. Os orixás não
conversam, apenas dançam e seguem o ritual. Por isto a função do babalorixá se torna
fundamental, pois no Candomblé, é ele quem faz a ponte entre o filho-de-santo e as
divindades, através dos búzios. Ao contrário da Umbanda, o ritual da incorporação não se
destina a dar a oportunidade da pessoa se comunicar com o mundo sobrenatural. Ele tem
apenas uma função ritualística.

2.3 As várias faces da Umbanda

Como ficou claro ao longo deste capítulo, a Umbanda é uma religião marcada pela
diversidade dentro de seus cultos. De um centro para outro, podemos perceber intensas
variações, tanto na forma quanto no conteúdo dos rituais realizados. Esta diversidade pode
ser explicada ao nos voltarmos para a história desta religiosidade, desde o período que
antecedeu seu surgimento até a gênese da Umbanda em si. Surgida da união de vários
elementos trazidos de outras religiosidades, ela herdou da Macumba suas práticas mágicas
e rituais africanizados; do Kardecismo a doutrina dos espíritos; do Candomblé o panteão
dos orixás; do xamanismo indígena suas ervas e curas; além de ter sofrido influências
orientais, ciganas, islâmicas e até mesmo das religiões holísticas da chamada Nova Era.
Dentro deste quadro de elementos, cada centro pôde se estruturar a seu modo, agregando as
influências que o líder do centro achasse mais convenientes para o desenvolvimento de seu
trabalho, o que provocou esta diversidade em torno dos rituais umbandistas.
Portanto, para buscarmos compreender a Umbanda, devemos primeiramente buscar
aquilo que a define e a caracteriza. Para isto, se torna fundamental despirmos seus cultos de
todos aqueles elementos que sejam indiferentes à ela, elementos que ajudam a dar forma ao

66
MAGNANI, 1986, p. 36.

39
seu culto, mas que não fazem parte do conteúdo da Umbanda em si. Como define
Durkheim, temos de reduzi-la ao indispensável67, àquilo sem o qual ela não pode existir.
Não é difícil identificarmos estes elementos indispensáveis. Conforme já
destacamos anteriormente, a Umbanda se inicia com o fenômeno da incorporação de um
caboclo, logo após seguido por pretos-velhos, crianças, exus, e diversas outras entidades. O
que estas entidades tem em comum é sua condição de “inferioridade” em relação a um tipo
ideal de homem civilizado. Na Umbanda há uma inversão de poder, em que o homem
branco “civilizado” é submetido ao poder de entidades consideradas “inferiores” na escala
social, como negros, índios, malandros, crianças, ciganos, baianos, e vários outros. Portanto,

podemos dizer que o poder religioso da Umbanda decorre disto, de


uma inversão simbólica em que os estruturalmente inferiores na sociedade
são detentores de um poder mágico particular, advindo da própria condição
que possuem.68

Estes tipos de manifestações são logo banidas do Kardecismo tradicional, e passam


a se realizar em cultos separados, vindo a constituir-se em uma nova religião, que a partir
daí vai agregando elementos variados à sua forma. Mas, inicialmente, havia somente o
fenômeno da incorporação, aliado a um tipo específico de entidade manifesta, como os
pretos-velhos e caboclos, espíritos considerados “subalternos e inferiores, em comparação
com a imagem ideal de homem e civilização” 69 que, incorporados ao médium, prestam
consultas aos pacientes que procuram o centro em busca de ajuda espiritual ou física.
Fica assim estabelecido portanto, os três elementos que definem a Umbanda. O
primeiro é o fenômeno da incorporação, que a distingue das religiões de veneração como o
cristianismo; o segundo o trabalho com espíritos que são marginalizados na sociedade
“civilizada”, o que a distingue do Kardecismo, que trabalha com entidades consideradas
“evoluídas”, como médicos, padres, etc., e do Candomblé, que trabalha diretamente com os
orixás; e o terceiro a conversa direta entre a entidade incorporada e o paciente que procura

67
DURKHEIM, 1996, P. XII.
68
BIRMAN, 1985, p. 46.
69
Idem, p. 45.

40
o centro de Umbanda, que a distingue do Candomblé, em que os orixás incorporados não
conversam com os freqüentadores do culto.
Sobre isto, Ortiz afirma que

a religião umbandista fundamenta-se no culto dos espíritos e é pela


manifestação destes, no corpo do adepto, que ela funciona e faz viver suas
divindades; através do transe, realiza-se assim a passagem entre o mundo
sagrado dos deuses e o mundo profano dos homens. A possessão é portanto
o elemento central do culto (...).70

O culto de Umbanda pode ser simples ou complexo, dependendo dos rituais e das
influências utilizadas em cada centro. Geralmente se iniciam com os pontos cantados pela
assistência, que se dispõem em círculo ao redor da gira, e entoam cantos específicos da
Umbanda, que em suas letras louvam aos orixás e chamam pelas entidades. Outra
característica são os pontos riscados. Tratam-se dos desenhos que as entidades realizam no
chão, com giz, que trazem símbolos considerados sagrados para a Umbanda, como o
pentagrama, a cruz, a flecha ou seta, espadas e etc. Os pontos riscados podem ser simples
como uma espiral desenhada por um caboclo, ou complexos, com símbolos hindus, como o
ying-yang, o olho, a estrela de Salomão, entre outros. É raro um centro que não trabalha
com estes pontos cantados e riscados. Durante a gira as entidades podem fumar e utilizar
bebidas alcóolicas, principalmente o vinho dos caboclos e pretos-velhos, a cerveja dos
baianos, a pinga dos exus e a champanhe e sidra das pombagiras. Tais bebidas não são
apenas ingeridas pelos médiuns, mas também servem como forma de benzer e dar os passes
nos freqüentadores, assim como os cigarros, charutos e cachimbos. Já a decoração do
centro varia muito. Alguns trazem adornos diversos, como flechas, estátuas de caboclos e
pretos-velhos, quadros de santos e orixás, altares, etc. Outros apresentam decoração
simples, com no máximo um altar de flores no centro.
O trabalho da Umbanda é dividido em duas linhas ou falanges principais, que são a
esquerda e a direita. Cada uma destas linhas apresenta um tipo de culto específico, com
entidades diferentes para cada uma e seus cultos são realizados, geralmente, em dias e
locais separados. Na linha da direita o trabalho é realizado com caboclos, pretos-velhos,

41
crianças, baianos, e outros espíritos que se caracterizam por já possuírem uma elevada
condição moral, não realizando trabalhos para prejudicar outras pessoas. Já os trabalhos de
esquerda, também conhecidos como Quimbanda, que seria uma espécie de subdivisão da
Umbanda, são realizados com espíritos de exus e pombagiras. Estas entidades são marcadas
por um profundo dualismo dentro da visão umbandista. A priori eles não possuem uma
distinção moral elevada como as outras entidades. Sua forma muitas vezes se aproxima
com a de um demônio, como demonstram suas estatuetas, e durante o culto eles falam
palavrões e andam mancando ou arrastando os pés, bebem pinga e fumam charuto. Por essa
amoralidade e pelo seu poder, que lhe atribuem os umbandistas, são espíritos considerados
potencialmente perigosos, que podem fazer trabalhos tanto para ajudar quanto para
prejudicar outras pessoas, dependendo apenas que lhe seja pedido.

Criou-se o hábito, entre pessoas pouco escrupulosas, de utilizar a


Quimbanda para fazer o mal, vingar-se de desafetos e obter vantagens por
meios poucos honestos. Entretanto, as pessoas que trabalham a sério com
estas entidades sabem que elas podem ser boas protetoras de seus fiéis,
como o exu que guarda a porteira da casa.71

Alguns centros não possuem restrições ao trabalho destas entidades, deixando-os


livres para fazer o mal ou o bem, dependendo do interesse de quem os procuram; outros
utilizam-se deles somente como proteção, realizando apenas trabalhos benéficos, não
permitindo que sejam realizados trabalhos com o intuito de prejudicar ou interferir
diretamente na vida de outras pessoas. Vemos, assim, que o trabalho da Quimbanda não
está necessariamente vinculado à prática do mal, como alguns autores colocam.72
Ao contrário do que pensa a maioria, o culto aos orixás não faz parte da essência da
Umbanda. Em primeiro lugar, eles não estão presentes em todos os centros e nem são
indispensáveis ao exercício do culto umbandista. Em segundo lugar, quando estão presentes
é no sentido de divindades, de deuses distantes, que devem ser venerados. Os orixás estão
para os umbandistas assim como os santos estão para os católicos. Inclusive a

70
ORTIZ apud MACHADO, 2003, p. 49.
71
GASPAR, 2002, p. 184.
72
MAGNANI, 1986; BIRMAN, 1983; MACHADO, 2003; PIERUCCI, 2000. Uma interpretação mais
apropriada dos Exus pode ser encontrada em NEGRÃO, 1996; e GASPAR, 2002.

42
correspondência entre orixás e santos católicos ainda prevalece nos centros, resquícios do
sincretismo ocorrido no passado colonial dos cultos afro. A Umbanda, portanto, não
trabalha com os orixás como ocorre com o Candomblé, onde há a incorporação dos
mesmos no terreiro. Na Umbanda, apenas os eguns, espíritos dos antepassados, é que
incorporam durante o culto.
Baseado nisto, podemos afirmar que a identidade africana na Umbanda não é tão
forte quanto no Candomblé. Conforme afirma Pierucci,

apesar de suas origens negras, a Umbanda nunca esteve preocupada com a


idéia de preservação das raízes africanas e nem mesmo se empolga hoje
com o movimento de reafricanização que perpassa as suas congêneres,
principalmente o Candomblé.73

Claro que há líderes dentro da Umbanda que estão inseridos neste projeto de
reafricanização e utilizam a Umbanda como manutenção de uma consciência negra e
identidade afro. Mas esta não é uma preocupação presente na Umbanda como um todo.
Isto ocorre devido ao próprio modo como a Umbanda cresceu e se estabeleceu
enquanto religião. Conforme já vimos, este crescimento se deu entre dois pólos distintos.
No primeiro pólo, ela era “embranquecida” pelas influências do Kardecismo, enquanto que
no segundo pólo era invadida pelo Candomblé, sendo “africanizada” pelos rituais deste
último. Estes dois pólos fazem parte da teoria do continuum, de Cândido Procópio Ferreira
de Camargo, que é analisada por Negrão em sua obra. Segundo este autor,

(o Kardecismo) consistiria em um pólo branco, ocidental e impregnado de


ética cristã, de um continuum espírita que teria na Umbanda seu outro pólo,
negro e mágico: entre ambos haveria uma infinidade de gradações, casos
intermediários mais próximos de um ou de outro.74

Negrão analisa tal afirmativa, e faz ressalvas ao modelo proposto por Procópio,
alegando que a teoria é válida, mas o “pólo negro deveria ser considerado como constituído

73
PIERUCCI, 2000, p. 298.
74
NEGRAO, 1996, p. 28.

43
pela antiga Macumba (...) ou, então, o próprio Candomblé.”75 Para Negrão seria então mais
conveniente considerar o Kardecismo como fornecedor de uma matriz branca,
intelectualizada e espiritualizada, e o Candomblé ou a Macumba se constituindo em sua
matriz negra de influências mágicas. Consideraremos aqui esta afirmativa de Negrão, de
que a Umbanda estaria dentro de um continuum sim, uma linha entre dois pólos distintos: o
Kardecismo de um lado e o Candomblé de outro.
Portanto,

não há uma Umbanda “oficial”, com relação à qual as mudanças


constituiriam deturpações; na realidade, cada terreiro dispõe e combina, à
sua maneira, elementos de uma rica e variada tradição religiosa, em torno
de alguns eixos mais ou menos invariantes.76

A diversidade da Umbanda permite que os centros se estruturem como queiram, e a


tendência é de que os centros fiquem entre estes dois pólos mencionados, aproximando-se
mais de um ou de outro, dependendo dos interesses e necessidades do líder do centro.
Podemos concluir assim que apesar das várias tentativas de unificação e codificação
de uma doutrina única dentro da Umbanda e da uniformização de seus rituais, já propostas
por várias federações através dos congressos realizados pelo país, a Umbanda mantém a
diversidade como sua principal característica, continuando a ser reinterpretada e
reinventada conforme as idéias e vivências de seus líderes, o que, de certa forma, acaba se
tornando o grande atrativo desta religião brasileira, cada vez mais procurada nos dias de
hoje, conforme veremos no próximo capítulo.

75
Idem, p. 29.
76
MAGNANI, 1986, p. 43.

44
CAPÍTULO III
ESTUDO DA UMBANDA EM GOIÂNIA

Após todas as discussões teóricas, partimos agora para a análise da prática dos
centros de Umbanda. Tomamos como campo de estudo a cidade de Goiânia, que apresenta
hoje um campo umbandista bem formado e diversificado, onde encontramos uma boa
variação entre um centro e outro, o que nos permite fazer uma análise comparativa mais
profunda e rica em conclusões. Apesar deste estudo empírico se circunscrever à cidade de
Goiânia, entendemos ser possível uma certa generalização dos resultados encontrados.
Muitos pesquisadores, ao voltarem os olhos para esta pesquisa, encontrarão fonte segura de
caracterização desta religião, que servirá não só para Goiânia mas também como fonte de
estudo desta religião em outras cidades do Brasil.
Conforme já foi dito em nossa introdução, escolhemos quatro centros de Umbanda
de nossa cidade para análise. A escolha destes centros não foi aleatória, como se verá. Cada
um deles apresenta uma forma de culto que entendemos se relacionar e exemplificar as
várias formas da Umbanda que apresentamos, dentro da linha que vai do Kardecismo ao
Candomblé. Portanto, através do estudo destes centros conseguiremos definir melhor esta
teoria e identificar as características que cada centro assume dentro desta linha.

3.1. Caracterização dos Centros

Para efeito de análise, dividimos os centros em três classes: centros de classe alta
(CA), classe média (CM) e classe baixa (CB). Tal divisão não está relacionada apenas ao
nível econômico de cada centro, mas também com sua estrutura: tamanho, número de
freqüentadores, organização e etc.; com a forma do culto: embranquecido e intelectualizado,
mais próximo ao Kardecismo, ou africanizado e rústico, mais próximo do Candomblé. Tais
fatores de classificação se misturam aos econômicos, como a estrutura do bairro em que se
localizam, o nível econômico e de instrução de seus médiuns e dos freqüentadores.
Entendemos que alguns destes fatores de classificação são bastante subjetivos, mas
queremos deixar claro que eles são apenas para efeito de estudo e comparação.

45
Primeiramente, os centros de classe alta tem como característica uma estrutura mais
complexa, tanto física quanto organizacional do centro, com uma rígida organização do
culto, tanto em relação ao horário quanto às funções desempenhadas por cada membro,
além de uma estrutura física capaz de atender uma grande quantidade de pessoas (50
pessoas ou mais), e se localizarem em bairros de classes média e alta, mais próximos da
região central.
Os centros de classe média apresentam uma estrutura mais modesta, mas ainda
assim são bem organizados. Não têm tanta rigidez em relação ao culto e são capazes de
atender uma quantidade menor de pessoas, uma média de 20 pessoas por culto. Se
localizam em regiões mais afastadas, porém com uma boa estrutura em relação a serviços
públicos e imóveis de alto padrão.
Por último, os centros de classe baixa se localizam em regiões periféricas e do
entorno da cidade, com condições precárias em sua estrutura. São centros bem modestos,
geralmente localizados em cômodos dentro da própria casa de seu líder, portanto, têm uma
capacidade pequena de atendimento, geralmente um máximo de 10 pessoas por culto.
Os centros que analisamos foram os seguintes: de CA, o CEMEC (Centro Espírita
Mensageiros da Caridade), localizado no Parque Anhangüera; de CM, o Centro Espírita
Raio de Luz, localizado no Jardim Petrópolis; e o Ile Ase Alaketu Omi Osolufon, mais
conhecido como Terreiro do Pai Kênio, localizado na Vila Rosa; e de CB, a tenda Romper
da Casa da Jurema, que fica localizada no Jardim Tiradentes, em Aparecida de Goiânia,
cidade do entorno de Goiânia. Cada um destes serve como exemplo das classes citadas e se
aproximam bastante dos tipos ideais criados. Passemos agora a descrevê-los.

3.1.1. CEMEC – Centro Espírita Mensageiros da Caridade (CA)

O CEMEC foi fundado em 1989 pela sua presidente Tânya Torres e fica localizado
em um bairro de classe média na periferia de Goiânia, o Parque Anhangüera, que possui
uma boa estrutura urbana, não faltando serviços públicos essenciais e com imóveis de alto
padrão, o que podemos perceber pelas faixadas das casas e comércios. A sede do centro é
em uma casa ampla onde os cômodos se distribuem entre as várias atividades realizadas. A
casa é mantida pelos próprios assistentes e médiuns, cerca de trinta pessoas, que pagam

46
uma taxa fixa por mês, e também com a realização de eventos sociais como almoços
beneficentes e outros. Não há qualquer tipo de cobrança financeira aos freqüentadores do
centro.
Quanto ao espaço físico, por fora aparenta ser uma casa comum, com portão de
grade que fica sempre aberto em dias de culto. O salão onde se realiza o culto é amplo, com
bancos de madeira que lembram bancos de igreja divididos em duas fileiras e voltados para
o fim do salão onde é realizado o ritual de incorporação. O salão é capaz de abrigar uma
quantidade grande de pessoas, segundo a tese da professora Sandra Machado77 que realizou
um estudo de caso neste centro, ele atende uma média de 90 a 130 pessoas por culto. Na
ante-sala que dá acesso ao salão principal ficam dispostas nas paredes as programações
semanais e mensais de cursos e palestras, a maioria sobre espiritismo kardecista, e dos
vários eventos que são oferecidos pela casa. Ao lado desta ante-sala, em uma saleta
separada, está uma pequena biblioteca/livraria onde podemos encontrar diversos títulos da
literatura espírita. Neste local também é onde são distribuídas as senhas de atendimento ao
público.
No fundo do salão principal fica um corredor estreito que leva a uma salinha lá no
fundo onde são realizados os passes magnéticos. O centro conta ainda com outros espaços
ao fundo e acima do salão que podem ser acessados pelas laterais externas da casa. Estas
salas são: do lado esquerdo dois banheiros e mais ao fundo a sala onde são realizados os
trabalhos de esquerda, em dias e horários separados do culto público e para um público
reservado; e do lado direito se pode acessar uma escada que leva ao andar superior onde
temos três salas que são usadas para a “evangelização infantil e de adolescentes, durante os
cultos, ou para as consultas médicas durante o dia.”78
Os médiuns e assistentes se dividem entre as várias funções necessárias durante o
culto como a distribuição de senhas, a evangelização, a realização de palestras e outros.
Durante a realização do culto todos se vestem de branco. O local destinado à gira não é
muito grande, como nos descreve Sandra:

À frente dos bancos fica o lugar reservado para a chamada incorporação


dos médiuns, denominado de “altar”. Os adornos são simples: um altar com

77
MACHADO, 2003.

47
vaso de flores, velas no centro e nos cantos, um crucifixo na parede. Possui
música ambiente.79

Os cultos da linha de direita são realizados duas vezes por semana. Às segundas-
feiras há o trabalho com pretos-velhos e às quintas-feiras são caboclos e baianos, sempre se
iniciando as 19:00h e com horário fixo para terminar as 22:00h. Os trabalhos de esquerda
são realizados de sete em sete sextas-feiras e se iniciam sempre após as 22:30h para um
público reservado.
O culto público se divide em três partes. A primeira delas se inicia a partir das
19:00h com o que chamam de musicoterapia. Um assistente com um violão fica à frente
dos bancos tocando músicas selecionadas pelos freqüentadores que cantam junto. As
músicas são retiradas de um hinário que o centro possui onde estão as letras das músicas,
cerca de vinte. Após essa fase, que dura cerca de uma hora, é realizada uma palestra com
início pontualmente as 20:00h. As palestras são pré-agendadas com temas definidos e
realizadas por membros do centro e outras figuras ilustres do movimento espírita
goianiense, e duram quarenta minutos. A programação das mesmas fica afixada na ante-
sala que dá acesso ao salão. A seguir é iniciado o ritual de incorporação em si. Algumas
músicas são cantadas para dar início ao trabalho e a seguir o silêncio se faz. Na gira ficam
apenas os médiuns incorporados com seus cambones e o restante dos assistentes vai para a
sala dos fundos realizar os passes magnéticos. Os freqüentadores são chamados pelas
senhas, primeiro para o passe, depois para falar com as entidades. Durante o culto algumas
entidades podem fumar mas não há bebidas alcóolicas nem os chamados pontos riscados e
cantados, no que podemos perceber uma forte influência kardecista.

3.1.2. Centro Espírita Raio de Luz (CM)

O Centro Espírita Raio de Luz foi fundado no final da década de 70 pelo casal Seu
Léo e Dª Otília, inicialmente apenas para a família, depois passando a receber pessoas
interessadas em participar dos trabalhos. Ele está localizado em um bairro mais afastado do
centro de Goiânia, que fica na saída para Trindade-GO: o Jardim Petrópolis, mais

78
Idem. p. 82.

48
conhecido como “Morro do Mendanha”. O bairro tem uma estrutura razoável, serviços
públicos como água encanada e luz elétrica não faltam, porém asfaltamento e transporte
público são mais precários. Os imóveis são recentes na região, na qual podemos encontrar
ainda muitos terrenos sem construção. A casa é mantida pela própria família que cuida do
centro e que constituem a assistência, cerca de 10 pessoas, não sendo necessário nenhum
tipo de cobrança financeira aos freqüentadores.
O espaço onde está localizado o centro é bem amplo e está dividido entre a
residência dos líderes do centro, uma creche e o centro em si. O conjunto destes três
espaços interligados ocupam o quarteirão inteiro, possuindo entradas separadas para cada
um deles. No lado que poderíamos considerar a frente estão a entrada principal da
residência e ao lado a entrada da creche, chamada Creche Espírita Raio de Luz. Nos fundos
fica localizado o centro, com entrada própria localizada no lado oposto do quarteirão, que
consideraremos como sendo os fundos. Na verdade o centro não tem nome mas recebeu o
nome de Raio de Luz em virtude da creche de que fica aos fundos.
A entrada do centro é um pequeno portão que dá acesso a um quintal grande onde
está construída a casa em que ele funciona. A casa é bem menor do que a do CEMEC e só
possui dois cômodos externos, que são um banheiro do lado direito e uma salinha do lado
esquerdo, onde são realizados os trabalhos de esquerda em dias e horários separados do
culto público e também para um público restrito. O salão onde são realizados os cultos
públicos é amplo e divide-se ao meio em duas partes iguais. Na primeira é onde ficam
sentados os freqüentadores, em cadeiras brancas dispostas em duas fileiras de cada lado e
voltadas para o local onde se realiza o ritual de incorporação.
O local onde é realizado este ritual apresenta um altar no centro com uma bíblia
grande aberta ao meio, uma espada prateada sobre ela, uma estátua grande de Iemanjá atrás
e as estatuetas de um caboclo do seu lado esquerdo e de um preto-velho do seu lado direito.
No canto esquerdo do salão há uma estátua grande de um preto-velho e no outro canto há
um arco e flecha e uma lança indígenas, que representam os caboclos. Nas paredes estão
quadros de santos como São Jorge e Cosme & Damião, de índias como a cabocla Jurema, e
de Jesus Cristo. A decoração é simples mas deixa claro a simbologia umbandista presente,

79
MACHADO, 2003, p. 81.

49
com a reverência a caboclos e pretos-velhos, e aos orixás, através dos santos sincretizados,
como São Jorge que representa a figura do orixá Ogum.
Os cultos de direita são realizados às segundas-feiras e se revezam entre caboclos
numa semana e pretos-velhos e baianos na outra, se iniciando sempre as 20:00h. Os
trabalhos de esquerda são realizados na última quinta-feira de cada mês, mas podem ser
alterados para a última quarta ou terça, dependendo da disponibilidade dos médiuns, e se
iniciam sempre a partir das 21:00h. Os cultos públicos se dividem em duas partes. Primeiro
há a leitura de alguma obra kardecista e a seguir uma pequena explanação sobre o assunto
lido, feito por um dos membros da assistência. A seguir apagam-se as luzes, deixando o
local iluminado apenas por velas, e é iniciada a segunda parte do trabalho: o ritual da
incorporação. Os assistentes e médiuns, todos vestidos de branco, começam a entoar os
pontos cantados e as músicas são escolhidas sempre de acordo com a entidade que se
trabalha naquele dia. Os médiuns começam a se incorporar e são ajudados por seus
cambones. As músicas não cessam de serem cantadas durante o culto. As entidades
recebem velas, giz, cigarro ou charuto, um copo com água e outro com vinho, e galhinhos
de arruda, dependendo do tipo de entidade. No culto de esquerda os artigos utilizados são
charuto, pinga ou champanhe, giz, velas e pólvora. Ao se incorporarem nos médiuns as
entidades fazem seu ponto riscado, desenhando no chão os símbolos mágicos de sua
preferência e colocando os objetos recebidos dispostos à sua maneira. A seguir são
chamadas as pessoas para se consultarem: primeiro as crianças, depois mulheres e por
último os homens. As consultas não seguem uma ordem definida, as pessoas vão sendo
chamadas aleatoriamente e dependendo do caso podem até escolher as entidades de sua
preferência. O culto só termina após todos terem sido atendidos, uma média de vinte
pessoas por culto.

3.1.3. Terreiro do Pai Kênio (CM)

O terceiro centro que escolhemos é também de CM e trata-se do Terreiro do Pai


Kênio, fundado no início da década de 80 com a construção da casa pelo pai-de-santo
Kênio. Fica localizado também em um bairro afastado da região central de Goiânia, na Vila
Rosa, bairro que faz divisa com a cidade de Aparecida de Goiânia. Este bairro também

50
apresenta estrutura razoável, com algumas áreas faltando asfaltamento e bastantes lotes sem
construção. As duas regiões de CM que destacamos se caracterizam por um crescimento
recente em suas estruturas, isto explica o fato de alguns serviços públicos estarem
defasados, principalmente asfalto e transporte público. Este centro na verdade trata-se de
um terreiro de Candomblé mas que realiza também trabalhos dentro da Umbanda. Ele
contém cerca de 15 pessoas em sua assistência e é mantido pelos trabalhos de Candomblé
realizados fora da Umbanda, como os ebós e o jogo de búzios, e também por uma pequena
contribuição voluntária pedida durante os trabalhos de Umbanda, quando uma das
assistentes “passa o chapéu” ao público pedindo doações.
Por ser uma casa de Candomblé a configuração de seu espaço físico está mais ligada
à prática desta religião. Trata-se de um sobrado grande onde adentramos por um pequeno
quintal que dá acesso ao templo principal da casa. O templo é bem amplo, todo azulejado,
com bancos de cimento cobertos de azulejos junto às paredes do lado direito, que é onde
ficam os freqüentadores. No meio do templo há uma pilastra de madeira em volta da qual
se realiza a gira. Ao fundo há o espaço dos atabaques e uma outra porta que dá acesso aos
outros cômodos da casa. A decoração é composta por quadros dos vários orixás ao longo
das paredes do templo e estatuetas de deuses africanos. Nos dias que não se realizam cultos
uma mesa é disposta do lado esquerdo do templo para o atendimento de Pai Kênio aos que
procuram o jogo de búzios ou outras orientações. No segundo andar fica a residência do
pai-de-santo e dos seus filhos-de-santo e no fundo da casa ficam localizados os outros
cômodos do Candomblé.
Os cultos de Umbanda se realizam às terças-feiras a partir das 20:00h. Os
assistentes são dispostos ao redor do pilar central, todos vestidos de branco e com roupas
cheias de adornos, como saias de baianas para as mulheres e batas indianas para os homens.
O ritual se divide em três partes. A primeira delas é a dos pontos cantados, que se inicia
com a chegada do pai-de-santo. Três assistentes tocam os atabaques enquanto os outros
ficam em círculo ao redor do pilar e começam a entoar os pontos cantados ao mesmo
tempo em que dançam e giram. Após executarem os pontos cantados de vários orixás, é
iniciada a segunda parte do trabalho, destinada às orações. Os assistentes abrem o círculo e
os freqüentadores são convidados a integrarem-no, ficando todos de mãos dadas.
Coordenadas pelo Pai Kênio, várias pessoas são convidadas a fazer uma oração, decorada

51
ou espontânea. Após várias orações o pai-de-santo faz um pequeno discurso, uma espécie
de pregação, falando sobre coisas do outro mundo e sobre o papel da religião e dos orixás
na vida das pessoas. A seguir é iniciada a terceira parte do trabalho: o ritual de
incorporação. Novamente são cantados os pontos, os freqüentadores são convidados a se
sentarem em seus lugares e os médiuns começam a receber as entidades, se espalhando ao
redor do salão. Também aqui as entidades não fazem os pontos riscados. Os cultos são
realizados na linha de direita numa semana com o trabalho conjunto de caboclos e pretos-
velhos, e na outra semana na linha de esquerda com exus e pombagiras, e só acabam
quando todas as pessoas são atendidas, uma média de 20 pessoas por culto.

3.1.4. Tenda Romper da Casa da Jurema (CB)

Por último a tenda Romper da Casa da Jurema é o centro de CB que escolhemos. De


todos este é o mais recente com apenas um ano de funcionamento. Está localizado em um
bairro bastante periférico, o Jardim Tiradentes na cidade de Aparecida de Goiânia, que
oferece uma estrutura razoável quanto aos serviços públicos. Transporte, água encanada,
luz elétrica e asfalto não faltam. Porém a estrutura das casas é precária com vários barracos
de lona, ou seja, a maioria das casas são simples e pobres. O centro fica localizado dentro
de um cômodo da casa de seu babalaô. Possui apenas 2 pessoas na assistência, o médium,
que é o próprio babalaô, e 1 assistente, e é mantido pela cobrança das consultas e dos
trabalhos realizados.
O cômodo onde se localiza o centro é bastante pequeno e antecedido por uma
pequena área de serviço onde ficam alguns banquinhos e cadeiras improvisadas para as
pessoas que aguardam o início dos trabalhos. Lá dentro da pequena sala o espaço é dividido
entre as linhas de direita e esquerda. O mesmo cômodo dá lugar a ambos os tipos de
trabalhos, mas estes são realizados em dias diferentes. Os espaços de ambas as linhas são
divididos por uma cortina. De cada lado há um altar cheio de estatuetas dos santos e orixás
referentes à linha a qual pertencem. Assim sendo, na parte destinada à linha de direita estão
imagens de santos católicos, pretos-velhos, caboclos e orixás desta linha, como Ogum,
Oxum, Iemanjá, Oxóssi. Já no lado da linha da esquerda encontramos imagens de exus e
pombagiras.

52
Não há dia nem horário fixo para o início dos trabalhos. Geralmente se iniciam por
volta das 21 horas e o dia pode ser qualquer um, dependendo da disponibilidade do médium
e da pessoa que encomenda o trabalho. O ritual de incorporação é bastante simples. Se
inicia com alguns pontos cantados até a incorporação do médium. A entidade não faz
nenhum ponto riscado. A partir daí os freqüentadores vão sendo chamados para conversar
com ele e pedir o que querem. Depois que todos são atendidos a entidade se despede e
deixa o corpo do médium, sendo encerrado o trabalho. Geralmente o atendimento pode ser
realizado a apenas 1 pessoa, podendo chegar num máximo de cinco. Vê-se assim que o
público do centro é bastante pequeno. Além do trabalho de incorporação, o jogo de búzios
também é realizado pelo babalaô, geralmente antes do início dos trabalhos de incorporação.

3.2. Do Kardecismo ao Candomblé

A descrição dos centros nos dá uma pequena mostra de como o ritual de Umbanda
realizado varia de um centro pro outro. Desde a Umbanda praticamente destituída de seus
aspectos afros através do Kardecismo até aquela que praticamente se mistura ao Candomblé,
todas tem suas peculiaridades e se estabelecem na linha que traçamos anteriormente do
continuum Kardecismo–Candomblé.
Mas mesmo com toda a diferença, o elemento central que assinalamos se mostra
presente em todos os centros: a incorporação nos médiuns das entidades consideradas
“inferiores” pela sociedade, como caboclos e pretos-velhos, e a conversa direta entre estas
entidades e os freqüentadores do centro. Este elemento pode ser percebido nos quatro
centros analisados, comprovando nossa tese inicial. Partiremos agora para analisar as
peculiaridades de cada centro, tanto em relação ao culto quanto à sua organização.
Selecionamos, como ficou claro na descrição dos centros, dois com orientação
kardecista e dois com influência do Candomblé. Dentro da linha kardecista o que podemos
perceber é uma maior preocupação com os aspectos moralizantes da Umbanda. Os líderes
acreditam que a religião deve servir a um ideal de moralizar as pessoas e tal crença está
inserida na teoria kardecista da evolução espiritual. Segundo as palavras de Dª Otília, líder
do Centro Espírita Raio de Luz,

53
todo centro precisa ter o evangelho. Esses centros que dá muita confusão,
muita coisa, é porque não tem o evangelho, porque a maioria do povo de
Umbanda não lê o evangelho, só abre o trabalho e pronto, não tem o
evangelho, não tem explanação, não tem nada; não tem uma orientação
segura.

Vemos assim, que os centros de orientação kardecista vêm no evangelho espírita


uma “orientação segura” para a prática da Umbanda, em oposição àqueles que não o
utilizam, onde acontece “muita confusão” pela falta desta orientação. A Umbanda nestes
casos se apresenta moralizada pela doutrina kardecista e por isto mesmo é mais procurada,
principalmente pelas classes mais altas. Nestes centros a prática da Umbanda é voltada
apenas para tratamentos de saúde e para o estudo da doutrina kardecista, como coloca Dª
Otília:

Já veio gente conversar comigo, fora do dia de trabalho, na creche, umas 3


ou 4, (...) uma que não se dava bem com o marido, marido tinha arrumado
muié, e mais umas coisêra. Eu deixei ela falar, depois falei: “olha minha
filha, vou te falar a verdade: nosso trabalho aqui não mexe com isso, aqui é
só tratamento de saúde, e as orientação que a gente dá pras pessoas tar
tratando de saúde... é só... tem a leitura do evangelho, tem explanação, mas
esse tipo de trabalho nós não fazemos... aqui não tem nada disso. (...) se
vocês quiserem vir, assistir o trabalho, pra você receber uma limpeza, tudo
bem, mas com esse fim, de vir arrumar coisêra, e mexer com marido, mexer
com namorado e mexer com muié, ó, não precisa vir porque não é atendido,
nesse ponto não é atendido.”

Pode-se perceber pela fala da líder que há uma distinção entre os centros que
realizam trabalhos somente para tratamentos e aqueles que realizam trabalhos considerados
amorais, que buscam utilizar da magia para conseguir fins considerados “não louváveis”
pelo Kardecismo.
No Terreiro de Candomblé apresentado, o Terreiro do Pai Kênio, a Umbanda
também se encontra, pelo menos aparentemente, de forma moralizada. Porém o efeito
moralizador neste caso não está no sincretismo com o espiritismo mas sim com o

54
catolicismo. Conforme observamos na descrição do culto realizado nesta casa, há uma parte
somente destinada às orações, que são em sua maior parte recorrentes do catolicismo. O
próprio líder do centro, pai Kênio, costuma se referir à sua casa como uma igreja. Tal
influência maior do catolicismo está ligada ao forte sincretismo existente entre esta religião
e o Candomblé. Raul Lody afirma este sincretismo do Candomblé com o Catolicismo ao
apontar, por exemplo, as denominações presentes no Candomblé de pai-de-santo, filho-de-
santo, a correspondência entre os orixás e os santos católicos e as recomendações
constantes dentro do Candomblé de que a pessoa freqüente de vez em quando a igreja
católica.80
Somente em um dos casos analisados a Umbanda não apresenta um aspecto
moralizante. Na tenda Romper da Casa da Jurema não há nenhuma restrição em relação a
estas práticas consideradas amorais. Os trabalhos são realizados de acordo com o pedido do
“cliente”, seja ele qual for, desde que o mesmo pague. A Umbanda neste caso é praticada
como uma prestação de serviço e não tem qualquer relação com o Kardecismo ou o
Catolicismo. A influência maior do centro provém do Candomblé, como podemos perceber
na utilização dos orixás e das guias, colares que identificam os santos da cabeça da pessoa,
e do jogo de búzios, também presente nas atividades do centro.
Em relação às linhas de Umbanda trabalhadas nos quatro centros, percebemos que
todos trabalham tanto com a direita quanto com a esquerda, somente de formas diferentes.
A presença dos exus nos terreiros de Umbanda, portanto, é bastante comum. A forma de se
relacionar com esta entidade, porém, vai depender da orientação do centro. No caso dos
centros de orientação kardecista os exus são moralizados e “civilizados” para a prática do
bem, como podemos perceber na fala de Dª Otília:

É uma idéia muito errada que as pessoas fazem do exu. Claro que tem
alguns que ainda não tá bem esclarecido, (...) não tem conhecimento de
nada, (aí) as pessoas usam ele pra fazer essas coisas; ele faz aquilo pra
ganhar o que eles prometeram, ele não sabe se tá fazendo o bem, se tá
fazendo o mal, não tem distinção.(...) mas depois que ele começa um
esclarecimento, ele quer crescer, ele tem compreensão que ele precisa
crescer, ele não faz isso mais.

80
LODY, 1987.

55
As próprias entidades dos exus acabam sendo inseridas na teoria evolucionista do
Kardecismo. Elas também são consideradas almas em busca de um aperfeiçoamento, e
quando já estão moralizadas, servem como fonte de proteção e auxílio aos praticantes da
Umbanda. Já no caso dos terreiros influenciados pelo Candomblé tal distinção inexiste.
Pelo próprio fato do Candomblé ser essencialmente uma religião aética o trabalho com os
exus não segue um padrão moral como no caso do Kardecismo. Eles atendem a todos e não
há qualquer restrição ao tipo de pedido feito pelas pessoas como há nos centros de
orientação kardecista. Esta diferenciação acaba influenciando decisivamente no tipo de
pessoas que freqüenta cada um dos centros citados, conforme veremos no próximo tópico.

3.3. Os freqüentadores da Umbanda

Iremos nos utilizar agora de alguns dados colhidos durante nosso trabalho de campo
nos centros visitados através de questionários distribuídos aos freqüentadores. Nosso
objetivo é o de analisar quem são as pessoas que procuram os centros de Umbanda em
Goiânia hoje e porque o fazem. O que observamos é que o tipo de trabalho realizado em
cada um dos centros está intimamente relacionado com o nível econômico e intelectual das
pessoas que o freqüentam.

Tabela 1: Classes Sociais dos Freqüentadores da Umbanda - 2005


Classes  Baixa Média-Baixa Média-Média Média-Alta Alta N.E N.º Pessoas
Centros de Classe Alta 4% 16% 31% 34% 13% 2% 45
Centros de Classe Média 10% 10% 30% 20% 30% 0% 10
Centros de Classe Baixa 33% 0% 67% 0% 0% 0% 6
Total 8% 13% 34% 28% 15% 2% 61
Fonte: Pesquisa de Campo

Neste quadro apresentamos a relação entre o nível do centro e a classe social dos
freqüentadores. Os dados foram obtidos baseados na renda familiar apontado por cada
freqüentador. O que podemos perceber, em primeiro lugar, é que a quantidade de pessoas
pertencentes à classe baixa vai subindo quanto mais descemos o nível do centro. Assim,
enquanto o centro de classe alta apresenta um número pequeno de pessoas de classe baixa,

56
apenas 4%, o de classe média apresenta uma taxa maior, de 10%, e o de classe baixa
apresenta uma taxa ainda mais alta, de 33%.
Já com o número de pessoas da classe média-alta acontece o contrário. No centro de
classe alta este número está em 34% de seus freqüentadores, abaixando para 20% nos
centros de classe média e para 0% no de classe baixa. Se somarmos o número de pessoas
das classes média-alta e alta, no centro de classe alta obteremos uma taxa de 47% dos
freqüentadores, no de classe média a taxa sobe para 50% enquanto que no de classe baixa
esta taxa permanece zero.
Tudo isto demonstra que nos centros de classe alta e média há uma maior incidência
de pessoas das classes sociais média e alta enquanto que no centro de classe baixa há uma
maior incidência de pessoas das classes sociais média e baixa. Mesmo no centro de classe
baixa há ainda assim uma grande incidência de pessoas de classe média. O que podemos
concluir é que o perfil da Umbanda apresentado nestes dados é o de uma religião elitizada,
bastante procurada hoje por pessoas das classes sociais mais altas, especialmente da classe
média. Observemos agora o próximo quadro:

Tabela 2: Grau de Escolaridade - 2005


Sem Escolaridade Primário 1º Grau 2º Grau Superior Pós-Graduado N.º Pessoas
Centros CA 0% 0% 16% 27% 46% 11% 45
Centros CM 0% 0% 0% 40% 20% 40% 10
Centros CB 0% 17% 33% 17% 33% 0% 6
Total 0% 2% 15% 28% 40% 15% 61
Fonte: Pesquisa de Campo

Ao relacionarmos estes dois quadros apresentados podemos chegar à conclusão que


a Umbanda hoje é procurada pelas classes mais altas e mais intelectualizadas. No total, a
maioria, ou 40%, das pessoas que procuram esta religião possuem curso superior contra
apenas 2% que possuem apenas o primário e nenhuma sem escolaridade. A Umbanda hoje,
portanto, ao mesmo tempo em que é combatida e demonizada principalmente pelas igrejas
pentecostais, recebe um número cada vez maior de adeptos vindos de setores mais
elitizados da sociedade. Ela deixa de ser uma religião marginalizada para, no início do
século XXI, se constituir em uma religião da classe média.
Além de possuir curso superior e pertencer à classe média, a maioria dos
freqüentadores da Umbanda apresenta uma terceira característica importante. Observemos
agora a próxima tabela apresentada:

57
Tabela 3: Raça / Cor da Pele - 2005
Branco Pardo Mulato Negro Oriental N.E Nº Pessoas
Centros CA 60% 20% 9% 2% 2% 7% 45
Centros CM 80% 20% 0% 0% 0% 0% 10
Centros CB 50% 50% 0% 0% 0% 0% 6
Total 61% 23% 7% 2% 2% 5% 61
Fonte: Pesquisa de Campo

Como podemos perceber nesta tabela, 61% dos freqüentadores da Umbanda se


declaram brancos. Isto demonstra porque a Umbanda, ao contrário do Candomblé, não se
insere hoje em um movimento de consciência negra. Sobre estes dados apresentados até
agora, Silveira afirma que

é muito difícil perceber na Umbanda carioca a presença de uma memória


coletiva negra. (...) Os líderes do espiritismo de Umbanda, que a
consideram a religião nacional do Brasil (...) são, em geral, membros de
uma classe média muito mais luso-brasileira do que afro-brasileira. São
pessoas instruídas que buscam uma síntese coerente das religiões do Brasil
em um sincretismo refletido.81

A própria história desta religião demonstra que parte dela já nasce embranquecida,
vinda de uma influência kardecista forte e portanto mais intelectualizada, enquanto a outra
parte se misturava à Macumba e ao Candomblé criando um vínculo mais forte com as
raízes negras. Mas este perfil embranquecido vem crescendo bastante nos últimos anos. A
Umbanda, assim, não pode ser analisada como o Candomblé que foi utilizado como uma
forma de manter a tradição dos ancestrais negros que foram escravos no Brasil colonial. A
Umbanda hoje está mais intelectualizada e embranquecida, como podemos notar pelos
dados apresentados até agora, e cada vez mais é procurada por pessoas das classes mais
altas da sociedade.
Entre os motivos apontados por estas pessoas para procurarem a Umbanda, a
influência da família, a busca pela resolução de problemas e a descrença nas outras
religiões são os motivos mais apontados.

81
SILVEIRA, 2003, p. 14.

58
Tabela 4: Porque procuraram a Umbanda - 2005
Curiosidade Família Problemas Descrença N.E. Outros N.º Pessoas
Centros CA 8% 42% 19% 6% 10% 15% 45
Centros CM 0% 40% 0% 20% 30% 10% 10
Centros CB 50% 33% 0% 0% 0% 17% 6
Total 10% 41% 15% 7% 12% 15% 61
Fonte: Pesquisa de Campo

A influência da família ainda é decisiva entre os motivos que as pessoas apontam


para procurarem esta religião, ocupando uma taxa de 41% das respostas. Mas é interessante
notarmos, por exemplo, que nos centros de classe baixa a maioria das pessoas, 50%, que
procuram a Umbanda o fazem por curiosidade. Este fato se relaciona com a visão que se
tem da religião nestes centros. Por não apresentarem uma doutrina bem estabelecida e por
seus freqüentadores não terem muitas condições de estudos, a maioria acaba tendo uma
visão limitada desta religião, o que ficou demonstrado na própria conversa que tivemos
com o líder deste centro. O quadro abaixo mostra que uma parte das pessoas que
freqüentam os centros de classe mais baixa vêem a Umbanda apenas como culto, como
macumba ou até mesmo como folclore.

Tabela 5: Como consideram a Umbanda - 2005


Religião Culto Macumba Folclore N.E. N.º Pessoas
Centros CA 89% 9% 0% 0% 2% 45
Centros CM 90% 0% 0% 0% 10% 10
Centros CB 49% 17% 17% 17% 0% 6
Total 85% 8% 2% 2% 3% 61
Fonte: Pesquisa de Campo

Apesar de a maioria ainda encarar a Umbanda como religião, se somarmos as outras


respostas encontraremos que 51% das pessoas entrevistadas nos centros de classe baixa a
vêm como uma forma de culto apenas, como macumba ou como folclore. Misticismo e
crendices populares se misturam ao imaginário destas pessoas e elas acabam vendo na
Umbanda apenas uma prática de feitiçaria e superstição e a procurando apenas a título de
curiosidade, sem qualquer interesse sério em conseguir algum proveito através de sua
prática.
Voltando à tabela 4 podemos perceber ainda que 7% das pessoas entrevistadas
alegaram terem procurado a Umbanda por sentirem uma descrença com relação às suas
práticas religiosas anteriores. Já a busca pela solução de problemas, seja de ordem médica,

59
financeira ou amorosa, ocupa 19% das respostas nos centros de classe alta, e 15% no total,
ou seja, uma parte significativa das pessoas ainda procuram a Umbanda apenas para
resolverem problemas, principalmente entre as classes mais altas. Se considerarmos que
esta busca pela resolução de problemas na Umbanda vêm de uma insatisfação, seja em
relação à outras práticas religiosas, seja em relação à própria ciência da medicina, já que, se
a pessoa está buscando solução na Umbanda é porque provavelmente não a obteve em
outras entidades sociais, podemos considerar, então, que este argumento também é válido
como uma procura pela Umbanda devido a uma descrença em relação a outras instituições.
Se somarmos estas respostas, portanto, obteremos que 22% das pessoas procuram a
Umbanda por se sentirem descrentes em relação ao mundo, um número significativo.
Sandra Machado encontrou em sua pesquisa dados semelhantes. Segundo ela,

as pesquisas colocadas apontam para um desencanto dos adeptos e


freqüentadores para com a religião que tradicionalmente freqüentavam, bem
como um desacreditar no tratamento das ciências modernas: a Medicina,
Psiquiatria e Psicologia.82

Ao se voltarem para a Umbanda, portanto, estas pessoas “encontram respostas às


suas necessidades e anseios de uma forma bem mais completa que em suas igrejas.”83 Este
desencanto e desacreditar nas religiões e ciências modernas tradicionais seria devido a uma
fragilidade existente na sociedade brasileira em resolver seus problemas, conforme afirma
Silveira:

Numa sociedade incapaz de resolver os problemas sociais que a constituem,


a população brasileira se vale da multiplicidade religiosa para encontrar
soluções e respostas para os problemas que a afligem. Assim, o sucesso da
religião, em particular dos cultos de possessão, estaria diretamente
relacionado com esse dilema da sociedade brasileira. As soluções que esses
cultos apresentam são mágicas e distantes da vida política em sentido
estrito.84

82
MACHADO, 2003, p. 106.
83
Idem, p. 106.
84
SILVEIRA, 2003, p. 28.

60
Tais hipóteses se relacionam na explicação para esta procura cada vez maior destes
cultos de cunho mágico como é o caso da Umbanda. Os próprios freqüentadores afirmam a
eficácia destes cultos se dizendo satisfeitos com os resultados obtidos nos centros de
Umbanda.

Tabela 06: Conseguiu atingir o resultado que buscava na Umbanda? - 2005


Sim Não Em Partes Não Buscavam Nada N.E. N.º Pessoas
Centros CA 65% 2% 29% 0% 4% 45
Centros CM 90% 0% 0% 0% 10% 10
Centros CB 50% 0% 0% 33% 17% 6
Total 67% 2% 21% 3% 7% 61
Fonte: Pesquisa de Campo

A tabela 6 nos demonstra que nos centros de classe baixa 33% das pessoas alegaram
não buscarem nada no centro de Umbanda, ou seja, não vêem na Umbanda nenhuma
finalidade prática, reforçando nossa tese sobre a relação de curiosidade existente entre estas
pessoas e o culto de Umbanda praticados nestes centros. Mas o dado mais importante que
encontramos é que, no geral, a maioria das pessoas, ou 67% delas, está satisfeita com os
resultados encontrados no centro de Umbanda. Esta maior eficácia da Umbanda na
resolução dos problemas cotidianos está intimamente relacionada com o caráter mágico
desta religião. Isto permite que as pessoas busquem dentro dela uma forma de obter ajuda
espiritual para seus problemas, ou seja, a Umbanda seria uma forma de utilizar o mundo
sobrenatural para agir diretamente neste mundo concreto, conforme definiu Max Weber ao
tratar da magia em sua sociologia da religião.
Outra característica da Umbanda decorrente deste seu caráter mágico é que ela
permite às pessoas freqüentarem-na concomitantemente com outras religiões.

Tabela 7: Outras Religiões - 2005


7.1. Pessoas que freqüentam outras religiões atualmente
Centros CA Centros CM Centros CB Total
Católica 25% 0% 66% 25%
Evangélica 0% 0% 0% 0%
Católica e Evangélica 4% 0% 0% 3%
Kardecismo 4% 0% 0% 3%
N.E. 4% 10% 0% 5%

61
7.2. Pessoas que já freqüentaram outras religiões
Centros CA Centros CM Centros CB Total
Católica 41% 60% 17% 41%
Evangélica 0% 0% 0% 0%
Católica e Evangélica 4% 0% 0% 3%
Kardecismo 0% 0% 0% 0%
Nunca 18% 30% 17% 20%
N.º Pessoas 45 10 6 61
Fonte: Pesquisa de Campo

Notemos que nos centros de classe baixa 66% das pessoas responderam que
freqüentam a igreja católica concomitantemente com a Umbanda. Isto demonstra que não
há uma relação mais profunda entre o “leigo” e o culto de Umbanda nestes casos, já que as
pessoas continuam a freqüentar suas religiões normalmente. Outro dado importante nesta
tabela é que apenas 20% das pessoas nunca freqüentaram outras religiões, enquanto que no
total 44% delas já freqüentaram outras e abandonaram-nas, estando agora somente na
Umbanda ou no Espiritismo. Este dado reforça que uma grande quantidade de adeptos da
Umbanda provém de pessoas que tiveram alguma descrença com suas antigas religiões,
buscando outras formas de práticas religiosas e possivelmente encontrando na Umbanda
uma forma de reencantamento através do caráter mágico presente nela.
Ao mesmo tempo em que há este abandono de outras religiões para a busca de um
encantamento do mundo na Umbanda, há também a utilização da Umbanda apenas como
prática de culto, que podemos perceber através do grande número de pessoas, 31% delas,
que alegaram freqüentarem outras religiões concomitantemente à Umbanda. Estas pessoas
freqüentam os centros sem abandonarem sua religião inicial, adotando a Umbanda como
um tipo de prática religiosa à qual recorrem apenas em caso de necessidade.
Conforme afirmam Weber e Durkheim, este tipo de relação observada na Umbanda
é típica da relação estabelecida entre o “leigo” e o mago. A magia é procurada apenas como
uma forma de auxiliar na resolução de problemas, não tendo aquele que a procura a
necessidade de se vincular à prática mágica como acontece com a religião nas igrejas. Uma
parte significativa das pessoas, portanto, vê na Umbanda apenas uma forma de pedir auxílio
ao sobrenatural. A eficácia da magia neste caso é preferível às outras formas de religiões e
por isso mesmo ela é procurada.

62
Ao mesmo tempo em que ocorre essa relação de busca da magia dentro da
Umbanda, por outro lado ela consegue estabelecer um vínculo maior com grande parte de
seus freqüentadores, que passam a procurá-la com maior freqüência.

Tabela 8: Tempo que freqüenta a Umbanda - 2005


1º Vez 1 Mês 1-6 Meses 6 Meses-1 Ano 1-5 Anos Mais de 5 anos N.E. N.º Pessoas
Centros CA 11% 0% 15% 11% 17% 44% 2% 45
Centros CM 0% 0% 0% 0% 0% 90% 10% 10
Centros CB 0% 0% 17% 17% 0% 66% 0% 6
Total 8% 0% 13% 10% 13% 53% 3% 61
Fonte: Pesquisa de Campo

Tabela 9: Freqüência no Centro de Umbanda - 2005


1º vez Semanal Mensal Esporádico N.E. N.º Pessoas
Centros CA 11% 51% 16% 20% 2% 45
Centros CM 0% 90% 10% 0% 0% 10
Centros CB 0% 33% 0% 67% 0% 6
Total 8% 56% 13% 21% 2% 61
Fonte: Pesquisa de Campo

Na tabela 8 podemos perceber que a maioria das pessoas entrevistadas, 53%,


freqüenta a Umbanda há mais de 5 anos. Há nestes casos uma forte ligação do “leigo” com
o culto que o faz recorrer a ela de forma contínua, ou seja, faz com que ele crie uma
freqüência no culto de Umbanda, conforme demonstrado na tabela, na qual podemos
perceber ainda que nos centros de classe média 90% das pessoas vão ao centro toda semana;
no de classe alta esta taxa cai para 51%, ainda assim um número significativo; já nos
centros de classe baixa a maioria, ou 67%, vai ao centro apenas esporadicamente.
Tal diferenciação se deve, em primeiro lugar, à forma de Umbanda praticada nos
centros de classe média e alta, que através do Kardecismo dão aos seus adeptos não só a
possibilidade de simplesmente resolver seus problemas mas também de adquirir uma
crença, de se tornar adepto de uma religião através de uma doutrina que busca explicações
para a vida e para os mistérios do mundo. Em segundo lugar a visão limitada que as pessoas
têm da Umbanda nos centros de classe baixa faz com que não seja possível, na maioria das
vezes, se criar um vínculo contínuo com o culto de Umbanda. Este é mais um motivo para a
alta taxa de pessoas que permanecem no catolicismo nestes centros e para a visão que elas
tem da Umbanda como macumba ou folclore. Como não há um corpo doutrinal

63
estabelecido que procure orientar as pessoas, elas acabam buscando as explicações do
mundo em outras religiões. A Umbanda nestes casos é apenas magia e ritual.
Esta relação estabelecida entre o leigo e o culto nos centros de classe média e alta se
aproxima do conceito que Weber tem de religião. Para ele, a religião requer

a adaptação de um círculo especial de pessoas ao exercício regular de culto,


vinculado a determinadas normas, a determinados tempos e lugares e que se
refere a determinadas associações.85

Assim, portanto, fica estabelecida a relação fluida que a Umbanda tem com seus
freqüentadores. Ao mesmo tempo em que ela apresenta um caráter mágico, o caráter
religioso está presente e ambos funcionam conjuntamente dentro da Umbanda, tornando-a
adaptável às necessidades de cada pessoa, permitindo que ela freqüente a Umbanda
regularmente, sem no entanto precisar deixar suas práticas religiosas e assumir um vínculo
mais profundo com esta religião. Este duplo aspecto da Umbanda é reforçado ao
analisarmos as religiões assumidas pelas pessoas que freqüentam a Umbanda presentes na
tabela abaixo:

Tabela 10: Qual sua Religião? - 2005


Centros CA Centros CM Centros CB Total
Católica 4% 0% 67% 10%
Espírita 67% 40% 0% 56%
Evangélica 0% 0% 0% 0%
Umbandista 9% 0% 33% 10%
Sem Religião 4% 0% 0% 3%
Católica-Espírita 7% 0% 0% 5%
Espírita-Umbandista 2% 60% 0% 11%
Outros 7% 0% 0% 5%
N.º Pessoas 45 10 6 61
Fonte: Pesquisa de Campo

Nos centros de classe alta, a maioria das pessoas, 67%, se afirmam enquanto
espíritas. Isto se deve ao fato deste centro ser fortemente influenciado pelo espiritismo
kardecista. Há, portanto, um certo mascaramento, não só por parte do centro como também
dos freqüentadores atrás do termo espiritismo. Isto se deve ao preconceito ainda existente

85
WEBER, 1991, p. 295.

64
por parte da sociedade com este tipo de religião, já que 67% das pessoas disseram haver
preconceito sim por parte da sociedade contra quem pratica ou freqüenta a Umbanda,
conforme é mostrado na tabela abaixo:

Tabela 11: Existe preconceito contra a Umbanda? - 2005


Sim Não Pouco N.º Pessoas
Centros CA 72% 4% 24% 45
Centros CM 60% 0% 40% 10
Centros CB 50% 0% 50% 6
Total 67% 3% 30% 61
Fonte: Pesquisa de Campo

Voltando à tabela 10, nos centros de classe média a maioria, ou 60% das pessoas, se
afirmam enquanto espíritas-umbandistas. Isto demonstra mais uma vez a forte influência do
Kardecismo nestes centros. Tal denominação está relacionada à prática de rituais
umbandistas aliados à base doutrinal kardecista, o que permite que seus adeptos se
classifiquem tanto em uma quando na outra religião. O fato de se dizerem espíritas-
umbandistas e não apenas umbandistas como seria o mais natural, demonstra que o
espiritismo tem um peso forte na relação destas pessoas com o centro, sendo ele um
elemento decisivo na prática desta religião, sem o qual talvez não houvessem tantos adeptos
dela. Aliás este é o quadro apresentado no centro de classe baixa. Lá a maioria, ou 67% das
pessoas se disseram católicas, ou seja, não assumem qualquer vínculo com a prática
Umbandista conforme ficou demonstrado ao longo deste capítulo.

3.4. Conclusão – Religião e Magia dentro da Umbanda

Ao mesmo tempo que freqüenta o centro de Umbanda regularmente as


pessoas não se assumem enquanto umbandistas. No máximo se dizem espíritas. As relações
de religião e magia, conforme definidas no primeiro capítulo, se misturam dentro da
Umbanda, fazendo-a assumir uma dupla face na relação com o “leigo”. Esta dupla relação
existente dentro da Umbanda, se assumindo ora como religião, ora como magia, pode
parecer contraditório em um primeiro momento ou pode passar despercebido à maioria das
pessoas. Mas ao olharmos mais atentamente esta religião veremos que esta contradição é

65
apenas aparente. O próprio processo formador da Umbanda, que privilegiou a diversidade
ao invés da unidade, foi que deu origem às várias formas da Umbanda que encontramos.
Apesar de ser uma religião que tem crescido muito ultimamente, este crescimento é
pouco percebido quando analisamos os dados oficiais do censo do IBGE, por exemplo.

Tabela 12: Quadro das Religiões - 2000


12.1. Em Goiás % N.º 12.2. No Brasil % N.º
Católica 66,52% 3,323,676 Católica 73,77% 124,976,912
Evangélica 20,85% 1,041,980 Evangélica 15,45% 26,166,930
Espírita 2,81% 140,584 Espírita 1,38% 2,337,432
Umbanda e 0,10% 4,946 Umbanda e 0,34% 571,329
Candomblé Candomblé
Judaica - - Judaica 0,06% 101,062
Orientais 0,07% 3,616 Orientais 0,25% 427,449
Outras 1,45% 72,307 Outras 1,25% 2,118,055
Sem Religião 7,87% 393,355 Sem Religião 7,28% 12,330,101
N.E. 0,33% 16,258 N.E. 0,23% 382,489
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000

Conforme demonstra a tabela acima, os adeptos da Umbanda e do Candomblé


chegam a 0,34% no Brasil e apenas 0,10% em Goiás. Pelo que pudemos analisar, porém,
estas taxas devem ser bem maiores, se levarmos em conta as pessoas que simplesmente
freqüentam o culto mas não se declaram enquanto umbandistas. Saber, portanto, o número
de freqüentadores exatos dos cultos de Umbanda e Candomblé hoje é praticamente
impossível.
Essa relação de “dupla pertença”, como define Antoniazzi86, não é levada em conta
pelo censo. O próprio autor nos esclarece que

o Censo pergunta pela "religião" do entrevistado. Ora, um bom número de


brasileiros freqüentam práticas religiosas de vários cultos. A recente
pesquisa do CERIS sobre as seis maiores regiões metropolitanas brasileiras
encontrou cerca de 25% dos entrevistados que freqüentam mais de uma
religião e cerca de metade deles (12,5% do total) o fazem sempre. O Censo
não considera esses fenômenos de dupla (ou mais...) pertença, de mistura de
várias religiões. Dificilmente um sociólogo ou um antropólogo reduzirá os
adeptos de Umbanda e Candomblé, em todo o Brasil, a pouco mais de

66
570.000 indivíduos (0,33% da população!), como faz o Censo 2000
Certamente há muitas pessoas freqüentando estes cultos, ao menos
ocasionalmente, mas que não se declaram "umbandistas".87

A Umbanda portanto apresenta uma diferença em relação a outras religiões, e até


mesmo em relação ao Candomblé. Tal diferença se constitui na não obrigatoriedade de que
o freqüentador estabeleça um vínculo mais profundo com a religião. No Candomblé tal
possibilidade existe apenas parcialmente. Claro que ele pode ir nas festas públicas do
Candomblé, ou utilizar do jogo de búzios quando achar necessário. Mas para que a pessoa
possa participar mais ativamente do culto, ela deve passar por um complexo ritual de
iniciação, onde assumirá o Candomblé como parte de sua vida. A partir de sua iniciação ela
passará a ter obrigações para com esta religião, terá um compromisso para com ela. Já na
Umbanda nada disto é necessário. A pessoa pode ir ao centro de Umbanda, conversar com
as entidades, pedir auxílio a elas sem que seja necessário qualquer ritual iniciático e voltar
pra casa sem a obrigatoriedade de retornar ao centro. Se retorna é apenas porque se
identifica com o culto ou vê na Umbanda uma ligação maior com o mundo sobrenatural
através do contato com as entidades. Mas em nenhum momento lhe é exigido que abandone
sua prática religiosa original para freqüentar a Umbanda.
Tal flexibilidade presente na Umbanda é que lhe garante um grande número de
freqüentadores, mesmo que isto não seja percebido pelas pesquisas do censo. Fica
comprovada assim a relação fluida existente entre o freqüentador e o culto da Umbanda, na
medida em que ele passa a ter uma regularidade na freqüência ao centro porém sem assumir
maiores vínculos com a religião umbandista em si.
Estes são os eixos que nos permitem identificar características tanto de religião
quanto de magia na Umbanda, dois conceitos sociológicos que se fundem nesta religião e
acabam proporcionando aos seus freqüentadores diferentes formas de se relacionar com o
culto, algumas mais profundas, outras mais passageiras, mas todas com sua significação
própria.
Deste modo, podemos perceber um significativo crescimento da Umbanda, atestado
pela grande quantidade de centros que têm aparecido em várias capitais de nosso país e

86
ANTONIAZZI, 2003.
87
Idem, p. 76.

67
pelo número cada vez maior de freqüentadores. Este crescimento ocorre, no entanto, sem
haver qualquer perda de fiéis por parte das igrejas católicas ou evangélicas. A posição de
superioridade destas religiões fica assegurada pelo fenômeno da “dupla pertença”, onde a
pessoa se assume como adepto de uma única religião mas na prática freqüenta várias, como
forma de aumentar a eficácia na resolução de seus problemas cotidianos. Poderíamos dizer
assim que o crescimento da Umbanda nas grandes cidades é um crescimento quase
invisível pois não pode ser percebido pelos dados oficiais, como demonstrou a análise dos
dados do último censo. Mas este crescimento existe e só pode ser percebido através de
estudos sérios e profundos que busquem compreender a complexidade e riqueza desta
religião.

68
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTONIAZZI, Alberto. As Religiões no Brasil Segundo o Censo de 2000. In: Revista de


Estudos da Religião. Nº 2, 2003. (p. 75-80). Retirado do site:
http://www.pucsp.br/rever/rv2_2003/p_antoni.pdf
BIRMAN, Patrícia. O que é Umbanda. São Paulo: Brasiliense, 1983.
CASTRO, Maria Laura Viveiros de. O que é Espiritismo – 2º Visão. São Paulo: Brasiliense,
1985.
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo – Ensaio sobre as noções de poluição e tabu. Rio de
Janeiro: Edições 70, 1991, Introdução e Cap. I “A Impureza Ritual” (p. 13-91).
DUARTE, Eneida Gaspar. Guia de Religiões Populares do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas,
2002 (p. 47-55; 183-186; 195-251).
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
GAARDER, Jostein. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, Cap.
“Religiões Africanas” (p.89-96).
JACINTHO, Roque. O que é Espiritismo. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1985.
LODY, Raul. Candomblé - religião e resistência cultural. São Paulo: Ática, 1987.
MACHADO, Sandra Maria Chaves. Umbanda: reencantamento na pós-modernidade?
Goiânia: UCG, 2003. 111p. Tese - Mestrado em Ciências da Religião, Universidade
Católica de Goiás.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Umbanda. São Paulo: Ática, 1986.
NEGRÃO, Lísias. Entre a Cruz e a Encruzilhada. São Paulo: Edusp, 1996.
PIERUCCI, Antônio Flávio. Apêndice: As Religiões no Brasil. In GAARDER, Jostein. O
Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, (p. 281-302).
PINHEIRO, Robson; INÁCIO, Ângelo. Tambores de Angola. Contagem-MG: Casa dos
Espíritos, 1998.
_________________. Aruanda. Contagem-MG: Casa dos Espíritos, 2004.
RIBEIRO JÚNIOR, João. O que é Magia. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1985.
SILVEIRA, Marcos Silva da. A cidade dos muitos rostos: o campo religioso da capital
federal visto nos cultos de possessão afro-brasileiros. In Fragmentos de Cultura. V. 13, Ed.
Especial. Goiânia: UCG, 2003, (p. 11-30).

69
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: UNB, 1994, Vol. 1, Cap. V “Sociologia da
Religião (Tipos de Relações Comunitárias Religiosas)” (p. 279-418).

BIBLIOGRAFIA CITADA POR OUTROS AUTORES

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1971, 2 v.


Apud MAGNANI, José Guilherme Cantor. Umbanda. São Paulo: Ática, 1986.

GURVITCH, Georges (1986). La Magie, la Religion et le Droit. In: La Vocation Actuelle


de la Sociologie. Paris: PUF, 2 vols. Apud NEGRÃO, Lísias. Entre a Cruz e a
Encruzilhada. São Paulo: Edusp, 1996.

PRANDI, Reginaldo. Referências sociais das religiões afro-brasileiras. In.: CAROSO,


Bacelar e BACELAR, Jéferson (Org.). Faces da tradição afro-brasileira: religiosidade,
sincretismo, anti-sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida.
Rio de Janeiro/Salvador: Pallas/CEAO, 1999. Apud MACHADO, Sandra Maria Chaves.
Umbanda: reencantamento na pós-modernidade? Goiânia: UCG, 2003. 111p. Tese -
Mestrado em Ciências da Religião, Universidade Católica de Goiás.

ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda e sociedade brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 1999 Apud MACHADO, Sandra Maria Chaves. Umbanda:
reencantamento na pós-modernidade? Goiânia: UCG, 2003. 111p. Tese - Mestrado em
Ciências da Religião, Universidade Católica de Goiás.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. 4º Ed. Tradução Régis Barbosa e Karen Elsabe
Barbosa. Brasília: UnB, 1991 Apud MACHADO, Sandra Maria Chaves. Umbanda:
reencantamento na pós-modernidade? Goiânia: UCG, 2003. 111p. Tese - Mestrado em
Ciências da Religião, Universidade Católica de Goiás.

70
ANEXO I

Transcrição da entrevista com Dª Otília Medeiros, líder do Centro Espírita Raio de Luz,
realizada em 11 de Setembro de 2005.

[Como você conheceu a Umbanda?] Nós conhecemos a Umbanda através do sofrimento. A


gente tava sofrendo muito com perdas de pessoas da família, foi aonde nós conhecemos a
Umbanda. Nós éramos kardecistas, e passamos a conhecer a Umbanda; não abandonamos o
Kardecismo, mas passamos a fazer parte do terreiro de Umbanda. [Foi em que ano?] Foi a
partir do ano de 1959 que nós conhecemos, através de uma amiga nossa, fomos assistir a
um trabalho de Umbanda. Daí pra cá gostamos e continuamos, mas sempre trabalhando no
Kardecismo também, mas eu gostei demais do trabalho de Umbanda. [Onde vocês
moravam nessa época?] Morávamos na Av. Paraná, 629 (Bairro Campinas, Goiânia-GO).
[Onde ficava esse centro que vocês conheceram?] O centro que a gente freqüentava era na
Paraná, lá no fim da Paraná, era 3 vezes por semana que tinha trabalho. Ficamos
conhecendo os pretos-velhos, os caboclos. [O trabalho era parecido com o que vocês fazem
hoje?] Era a mesma coisa. [Tinha Kardec também?] Não, lá não tinha Kardec, depois foi
que puseram Kardec, mas não foi pra adiante não. [Qual era o nome do centro?] Era Fé e
Amor... não me lembro direito... Tenda de Umbanda... União e Fraternidade... era uma
coisa assim. Aí nós mudamos daqui de Campinas, o centro mudou de muitos lugares;
depois o presidente do centro morreu, ai ficou aquele vai pra aqui, vai pra ali, ai nós
mudamos daqui de Campinas lá pra saída de Trindade, pro setor Jardim Petrópolis, daí veio
o Renato, o Ricardo e a Janete (Filhos de Dª Otília e médiuns do Centro) que
desenvolveram (mediunidade). [Desenvolveram em outros centros?] É, em outros centros,
mas sempre de Umbanda também. Mas sempre teve muita coisa que a gente não adota, o
jeito da gente trabalhar é diferente. Aí o Léo (Seu Léo, esposo de Dª Otília.) resolveu fazer
(o centro) lá em cima, nem que fosse só para a família; (o centro) trabalhou muitos anos só
para a família, só algumas pessoas amigas que conheciam o trabalho iam. Mas depois
recebeu orientação que podia abrir as portas, a entidade que mandou abrir as portas; depois
de um tempo que tava firme, trabalhando direitim, ai as entidade mandou que podia abrir os
portão. [Nessa época já tinha a Creche?] Não, a creche veio depois. Ai trabalhamos muito

71
tempo assim, tudo direitim, trabalhava o Renato, o Ricardo, a Janete; nesse meio tempo o
Renato desenvolveu, a Janete e o Ricardo já estavam desenvolvidos, o Renato desenvolveu
por último. [A Sra. Lembra o ano em que foi construído o centro?] (Depois de pensar
bastante) Ah.... eu não guardo data assim não... [Em que ano vocês mudaram pra lá?] Foi
no ano em que a Lívia (Neta de Dª Otília) nasceu, a Lívia tem 27 anos... nós mudamos pra
lá numa quinta-feira... não, a Lívia nasceu numa quinta-feira e nós mudamos no domingo,
ela nasceu no dia 06 de junho; agora precisa ver, ela tá com 27 anos... não, 29 anos, agora
tem que ver, tem que fazer as conta [Dá em 1976 então]. É deve ser isso, porque foi nessa
época, o ano em que a Lívia nasceu; ela nasceu numa quinta-feira, dia 06 de junho, e nós
mudamos no domingo lá pra cima. Ai depois demorou um tempo ainda pra fazer o centro,
nós trabalhávamos com o seu Milton (Líder de um centro), era kardecista. Aí o Léo ia num
centro, ia noutro, ai tinha coisa que a gente não gostava, sei lá, o povo ficava olhando a
gente de rabo de olho, que é logo que chega... parece que fica com ciúme... aí nós
afastamos... afastamos e ai o Léo falou “eu vou fazer um cômodo ai só pra gente trabalhar”;
e fez, um cômodo só. E assim trabalhava, tinha um dia da semana os meninos iam pra lá, a
gente abria o trabalho, fazia explanação, leitura do evangelho, e iam algumas pessoas
conhecidas, às vezes sabia e ia. Até que a entidade falou que podia abrir os portão, pra
praticar a caridade, ai nós abrimo os portão, e tá trabalhando até hoje. Depois de uns 3 anos
ou mais... não, foi mais... foi uns 5 anos, aí que veio a creche. [Também teve alguma
ligação com as entidades?] Não, o Renato chegou aí, ele tava em Uberaba, chegou, fez
uma reunião, e disse que queria montar uma creche, queria saber se podia contar com a
ajuda de todos nós. Ai eu falei “ah, a minha pode contar”; porque eu gostava, toda vida
mexia com criança, fazia natal de criança, ia distribuir, toda vida mexia com isso; quando
não fazia, ia ajudar nas creche, ia procurar nas creche, ia fazer lanche lá pro Leprosário
(Hospital Colônia Santa Marta, entidade que cuida de doentes de Hanseníase), pro Abrigo
dos Velho (Casa que cuida de idosos), fazia tudo isso; então, todo mundo disse que ajudava,
ai inaugurou a creche. O dia da inauguração da creche foi o dia do aniversário do Alex
(Neto de Dª Otília), dia 06 de abril, que ela (Janete, filha de Dª Otília, mãe do Alex) saiu de
lá, a inauguração foi a noite, ela saiu lá de casa de madrugada ela já foi pro hospital, quer
dizer que já tem 22 anos que tem a creche. Ai depois uma entidade chegou e me pediu, que
queria que eu ajudasse ele; foi o Baiano. Eu disse “mas como que eu vou ajudar? O que eu

72
puder fazer eu faço de todo coração”. Ele falou assim: “me incumbiram de dirigir essa
creche espiritualmente, e eu quero que a mãe véia me ajuda e toma conta ai pra mim.”
Então se eu to lá não foi porque eles me puseram encarnado por lá não, foi a entidade do
Baiano que me pediu e que eu fiquei feliz demais, e to feliz demais; eu pra mim largar
aquilo ali só no último caso, porque se eu largar aquilo ali eu tô largando o Baiano. E tamo
lá lutando até hoje. Agora já tem muita assistência, graças a Deus já tem muita gente que
foi socorrida, então a gente tá feliz. [Desde o início do centro as entidades que
trabalhavam...] Lá é as entidade que dirige os trabalho, é o Baiano, os pretos-velhos, os
caboclos. Lá, na faculdade do Ricardo é o Caboclo que toma conta, toma conta do trabalho
de caboclo, e na esquerda é o Seu Sete. Agora na falta dele é a Janete, o caboclo da Janete é
que é o responsável no dia que o Ricardo não tá lá. [Quais são as entidades do Ricardo?] É
o Caboclo Pedra-Grande, o Baiano (preto-velho), e o Seu Sete (Exu Sete Encruzilhadas).
Agora na falta do Ricardo é o preto-velho da Janete, o Caboclo dela e o Seu Ventania (Exu
Ventania). [Esse modelo de trabalho que tem lá, com explanação da doutrina de Kardec, e
depois a incorporação, como foi a implantação, a Sr.ª viu em outro centro?] Não, é porque
toda vida foi... todo centro precisa ter o evangelho. Esses centros que dá muita confusão,
muita coisa, é porque não tem o evangelho, porque a maioria do povo de Umbanda não lê o
evangelho, só abre o trabalho e pronto, não tem o evangelho, não tem explanação, não tem
nada; não tem uma orientação segura. Então o nosso é diferente, a gente tem o evangelho,
tem explanação, dá a palavra pra quem quiser fazer a explanação. Lá geralmente quem mais
fazia era o Léo, porque ninguém fazia, a não ser a Janete, era ele, e toda vez iam as
entidades e logo avisou que era pra ter o evangelho, a explanação, pras pessoas aprenderem,
não é só ir lá, receber passe e sair, precisava ter conhecimento de alguma coisa. [E como lá
é voltado pra prática do bem e da caridade, a Sr.a já teve problema com pessoas que
queriam fazer outros tipos de trabalhos?] Problema assim... lá dentro não, mas veio gente
já conversar comigo, fora do dia de trabalho, na creche, umas 3 ou 4, que chegava lá na
hora que os meninos tavam saindo, esperava os meninos saírem pra conversar comigo, ia
saber era isso; uma que não se dava bem com o marido, marido tinha arrumado muié, e
mais umas coisêra. Eu deixei ela falar, depois falei: “olha minha filha, vou te falar a
verdade: nosso trabalho aqui não mexe com isso, aqui é só tratamento de saúde, e as
orientação que a gente dá pras pessoas tar tratando de saúde... é só... tem a leitura do

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evangelho, tem explanação, mas esse tipo de trabalho nós não fazemos... aqui não tem nada
disso.” Ó, mas foi umas 4 ou 5, que ia lá, esperava os menino sair e vinha conversar comigo.
Eu dizia “se vocês quiserem vir, assistir o trabalho, pra você receber uma limpeza, tudo
bem, mas com esse fim, de vir arrumar coisêra, e mexer com marido, mexer com namorado
e mexer com muié, ó, não precisa vir porque não é atendido, nesse ponto não é atendido.”
[Como as pessoas descobrem o centro?] As pessoas que vão no centro fica sabendo por
outras, tanto que cada dia chega gente diferente, gosta do trabalho e volta. [A Sr.a acha que
cresceu muito?] Cresceu, cresceu bastante. Tem época que fica meio assim, de repente
enche o centro, porque o sofrimento tá muito, então as pessoas vão procurar, então é isso.
[Como é a parte jurídica do Centro, a Sr.a já procurou a federação?] Não, não... tanto que
o centro não tem nem nome. O que tá lá é a Creche Espírita Raio de Luz, e ele (o centro) é
no fundo da creche e pronto, nunca mexeu com federação, mexeu com nada, é
independente, não é registrado. Porque no começo era somente pra família, depois começou
a ter assistência, então as entidade vem e trabalha, as pessoa tá precisando né, as entidade
vem e trabalha... mas nunca procurou a federação pra registrar. Mesmo porque quase
ninguém sabe, só quem conhece mesmo, porque não tem nome né. [Lá vocês trabalham
com Exus. Como a Sr.a vê essa entidade e a associação que as pessoas geralmente fazem
dele ao diabo, ao mal?] É uma idéia muito errada que as pessoas fazem do Exu, claro que
tem alguns que ainda não tá bem esclarecido, ai as pessoa ignorante... (pergunta ao seu Léo
se ele quer falar, depois de um tempo de silêncio continua:). Tem entidade que não tem
ainda bem o esclarecimento, não tem conhecimento de nada, as pessoas usam ele pra fazer
essas coisas; ele faz aquilo pra ganhar o que eles prometeram, ele não sabe se tá fazendo o
bem, se tá fazendo o mal, não tem distinção. Depois, como já aconteceu do Seu Sete trazer
Exu, ele assiste o trabalho, então ele já pega uma noção, e ali ele já vai deixando de fazer as
coisa errada, e já vai começando a crescer, a aprender, a evoluir; eles trazem eles no centro,
e eles vão aprendendo conforme o Seu Sete ensina, os outros ensina, eles vão aprendendo.
Já é muito Exu que às vezes vai passar por lá, que fala que ele encontrou uma coisa boa foi
ali, que ele encontrou uma coisa boa pra ele foi ali, e que ele ia continuar indo ali. Então, a
mente da pessoa também que só pensa o que não presta, atrai os que tão desocupados, que
não pensa nada, que pensa trem errado também, então, ele entra em sintonia com a pessoa,
ai tudo o que a pessoa quer, ela dá as coisa e ele faz. Sempre dá pra alguns que não tem

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esclarecimento nem conhecimento de nada; mas depois que ele começa um esclarecimento,
ele quer crescer, ele tem compreensão que ele precisa crescer, ele não faz isso mais. De vez
em quando o Seu Sete chega lá, ele dá uma olhada assim, de repente ele fala assim “eitas
miséria, cuidado com o pensador”. É porque decerto ali dentro tem alguém pensando errado
né, porque se não ele não ia falar isso, se tivesse todo mundo com o pensamento bom ele
não ia falar isso. Então quando você vê ele dar uma parada, olha prum lado, olha pro outro,
fica calado, ele fala assim “ô diabo, cuidado com o pensador”. Então quer dizer que ele tá
alertando as pessoas né, porque quem esconde as coisas dele, ninguém esconde.

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ANEXO II

Modelo do questionário aplicado aos freqüentadores dos centros de Umbanda pesquisados


na cidade de Goiânia.

1. Sexo:
( ) Masculino ( ) Feminino

2. Idade:
( ) 0-18 anos ( ) 18-30 anos ( ) 30-50 anos ( ) Acima de 50 anos

3. Onde você nasceu?


( ) Goiânia-GO ( ) Interior de Goiás ( ) Outro Estado do Brasil ( ) Exterior

4. Situação Civil:
( ) Solteiro (a) ( ) Casado (a) ( ) Viúvo (a) ( ) Separado (a)
( ) Outros________________________________________________________________

5. Na casa que você reside, vivem mais quantas pessoas?


( ) 1 ( ) 2 ( ) 3 ( ) 4 ( ) 5 ( ) 6 ( ) 7 ( ) 8 ( ) 9 ( ) 10 ou mais

6. Qual seu nível de escolaridade?


( ) Sem Escolaridade ( ) Primário ( ) 1º Grau Completo
( ) 2º Grau Completo ( ) Superior ( ) Superior Acima

7. Qual sua renda familiar mensal (somando todos os moradores da casa)?


( ) Até R$ 500,00 ( ) De R$ 500 a 1000,00 ( ) De R$ 1000 a R$ 2000,00
( ) De R$ 2000,00 a 5000,00 ( ) Acima de R$ 5000,00

8. Marque os eletrodomésticos que possui em casa (Indique a quantidade):


( ) Televisão ( ) Rádio ( ) Geladeira ( ) Lavadora ( ) Carro
( ) DVD Player ( ) Freezer ( ) Computador ( ) Microondas

9. Você se considera:
( ) Branco ( ) Pardo ( ) Mulato ( ) Negro ( ) Oriental
( ) Outros________________________________________________________________

10. Qual sua Religião?


( ) Católica ( ) Espírita ( ) Evangélica ( ) Umbandista ( ) Sem religião
( ) Outros________________________________________________________________

11. Se você veio de outra cidade: Em sua cidade já freqüentava a Umbanda?


( ) Sim ( ) Não, somente quando cheguei em Goiânia.

12. Qual Bairro você Mora? __________________________________________________

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13. Você freqüenta ou freqüentava alguma outra Religião?
( ) Sim, freqüento ( ) Já freqüentei ( ) Nunca freqüentei

14. Se freqüenta ou já freqüentou, indique qual:


( ) Igreja Católica ( ) Igreja Evangélica ( ) Outros _______________________

15. Porque você procurou a Umbanda?


( ) Curiosidade ( ) Influência de alguém da família
( ) Para resolver questão amorosa, financeira ou de saúde
( ) Descrença com minha Religião
( ) Outros________________________________________________________________

16. Há quanto tempo freqüenta o Centro de Umbanda?


( ) 1º Vez ( ) Menos de 1 Mês ( ) 1 a 6 Meses
( ) 6 Meses a 1 Ano ( ) 1 a 5 anos ( ) 5 anos ou mais

17. Qual a sua freqüência no Centro de Umbanda?


( ) 1º Vez ( ) Toda semana ( ) 1 Vez p/ Mês ( ) De vez em quando

18. As pessoas têm preconceitos em relação à Umbanda?


( ) Sim ( ) Não ( ) Um pouco

19. Para você, a Umbanda é:


( ) Uma religião como outra qualquer ( ) Apenas uma prática de culto
( ) Magia negra/macumba ( ) Crendice popular/folclore

20. Você conseguiu atingir o resultado que buscava no Centro de Umbanda?


( ) Sim ( ) Não ( ) Em Partes

Comentários:
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_________________________________________________________________________
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GLOSSÁRIO

Assistência – termo que designa o grupo de pessoas que realizam o ritual da Umbanda. A
assistência se constitui do grupo composto pelos médiuns, cambones e pelas demais
pessoas que ficam na gira, executando os pontos cantados e auxiliando em tarefas diversas.
Atabaque – instrumento de percussão utilizado durante os rituais de Candomblé, que pode
ser utilizado também na Umbanda.
Assentamento – local do Candomblé onde ficam o conjunto de objetos que representam os
orixás.
Babalaô, Babalorixá ou Ialorixá – líder religioso do Candomblé, que corresponde a mais
alta posição dentro da hierarquia desta religião. O termo pode ser utilizado também por
líderes de centros de Umbanda.
Cambone – ajudante das entidades. Auxilia os médiuns incorporados pelas entidades
durante o culto da Umbanda, trazendo-lhes seus instrumentos necessários à realização dos
passes e servindo de tradutor para os que não entendem o linguajar típico de cada entidade.
Colar de Ifá – instrumento de adivinhação utilizado pelo Babalaô durante o jogo de Búzios.
Ebó – oferenda aos orixás realizado no Candomblé com o intuito de pedir-lhes ajuda em
determinado problema ou proteção. Pode ser feito com alimentos, bebidas, flores, cigarros
ou através do sacrifício de animais. Também realizado por alguns centros de Umbanda.
Egum – espírito de um antepassado. Esta denominação é dada pelo Candomblé aos tipos de
entidades trabalhadas pela Umbanda, consideradas espíritos de antepassados, em
contraposição com os orixás do Candomblé, considerados espécies de deuses.
Entidade – ente, ser. Na Umbanda esta denominação é dada aos espíritos dos mortos que
incorporam nos médiuns durante os cultos.
Gira – principal ritual que caracteriza a Umbanda, durante o qual se realiza a incorporação
das entidades nos médiuns. É o mesmo que trabalho de Umbanda.
Guias – no masculino, os guias são as entidades espirituais que se manifestam na Umbanda
(caboclos, pretos-velhos, exus, etc.). No feminino se refere aos colares utilizados no
Candomblé e em alguns centros de Umbanda, que representam os orixás ou entidades
protetoras.

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Karma – teoria espírita que afirma que devemos pagar os erros que cometemos em outras
vidas. Esta redenção dos nossos erros a que todo espírito deve se submeter é que é chamado
karma espiritual.
Orixás – divindades do panteão Nagô que representam forças da natureza, atividades
sociais e econômicas, virtudes e paixões, e que incorporam nos médiuns durante o ritual do
Candomblé.
Paramentos de Iaô – roupas e adornos utilizados pelos praticantes do Candomblé durante
culto como forma de reverenciar e representar seu orixá. Os orixás podem ser identificados
pelas cores e tipos dos adornos utilizados.
Passe Magnético – tratamento do espiritismo kardecista que consiste na troca de energias
fluídicas entre um médium não-incorporado, que capta as energias positivas do ambiente e
as transmite ao paciente, trazendo-lhe benefícios tanto físicos quanto espirituais.
Perispírito – termo do espiritismo que designa o corpo espiritual que, segundo acreditam,
todos nós possuímos, e que faz a ligação entre o espírito propriamente dito e o corpo físico
que ele ocupa.
Peji – local do Candomblé onde ficam localizados os objetos sagrados para a realização do
culto.
Psicografia – tipo de comunicação com os espíritos em que um espírito manipula as mãos
de um médium para que ele escreva uma mensagem aos presentes. A maioria das obras do
espiritismo são escritas através desta técnica.
Psicofonia – tipo de comunicação com os espíritos onde um espírito manipula as cordas
vocais do médium, sendo capaz então de falar através dele.
Quimbanda – religião que possui um ritual similar ao da Umbanda mas que trabalha com
entidades amorais, capazes de realizar tanto o bem quanto o mal: os exus e as pombagiras.
Alguns autores consideram a Quimbanda uma religião separada da Umbanda e outros a
consideram uma parte da Umbanda, nestes casos sendo ela chamada de linha da esquerda
da Umbanda.
Reencarnação – teoria kardecista que acredita que cada existência na terra é uma
encarnação, e que todos temos que passar por várias encarnações para evoluirmos e
chegarmos à perfeição espiritual. Portanto, após a morte de nosso corpo físico, nós

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voltamos ao estado de espírito, e aguardamos para nascer novamente na terra sob um novo
corpo material.
Santo da Cabeça – orixá protetor. No Candomblé acredita-se que cada pessoa possua dois
santos de cabeça, sendo um orixá e um juntó.
Transe Mediúnico – ritual em que o espírito do médium se afasta para que outro espírito
possa possuir seu corpo, passando a agir e a falar através dele. Ocorre nas chamadas
religiões mediúnicas, as principais delas sendo o Kardecismo, a Umbanda e o Candomblé.

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Autorizo a reprodução total ou parcial deste trabalho, desde que seja citada a fonte:

NOGUEIRA, Léo Carrer. Umbanda em Goiânia – limites entre Religião e Magia. Anápolis,
2005. 80p. Trabalho de Monografia (Graduação em História) – Unidade de Ciências Sócio-
Econômicas e Humanas de Anápolis, Universidade Estadual de Goiás.

leocarrer@yahoo.com.br

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