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Fotografar é definir (Década de 80)

Vilém Flusser

Tradução Rodrigo Maltez Novaes

Na lógica, "definir" significa uma operação que varia e/ou delineia conceitos. Por
exemplo: com a definição "uma mesa é um móvel", o conceito "mesa" é variado sob o
conceito "móvel" e com a definição "uma mesa não é uma cama", uma linha clara é
traçada entre os conceitos "mesa" e "cama". Este artigo pretende sugerir que uma
câmera fotográfica pode ser considerada, entre outras coisas, uma ferramenta lógica,
uma ferramenta que pode ser usada para produzir definições.

Se defino uma mesa como um móvel, o que fiz foi restringir a extensão e aumentar o
conteúdo do conceito "móvel". Há mais móveis no mundo do que mesas: a extensão do
conceito "móvel" é mais vasta do que a extensão do conceito "mesa". Por outro lado,
posso dizer de uma mesa que é uma escrivaninha sustentada, o que não é verdade para
todos os móveis: o conteúdo do conceito "móvel" é mais pobre do que o conteúdo do
conceito "mesa". O objetivo final da operação de definição é chegar a um conceito que
tem uma extensão de "um e apenas um", e com um conteúdo infinito. Tal conceito é, por
exemplo: "esta mesa aqui". É um conceito que significa apenas um e único fenômeno, e
que tem um conteúdo infinito: é redondo, marrom, feito de madeira, tem manchas, é
antiquado, e assim por diante ad infinitum, o que torna impossível enumerar todo o
conteúdo do conceito. Agora, conceitos com os quais a extensão é "um", e o conteúdo é
"infinito", são chamados de "nomes próprios": "esta mesa aqui" é um nome próprio. E o
fenômeno que significa um nome próprio é chamado de "concreto": o conceito "esta
tabela aqui" significa algo concreto. A câmera fotográfica é uma ferramenta para produzir
nomes próprios.

Parece que nada seria mais simples do que delinear um nome próprio a partir de outro.
"João" pode ser definido como algo que não é "Fred" ou "Margaret", ou mesmo "Hans",
ou "Jean", ou "Juan". Infelizmente, não é bem assim. O nome próprio "João" tem um
conteúdo infinito, assim como o nome próprio "Fred", e para delimitar um do outro, seria
necessário enumerar tudo o que está contido dentro desses dois conteúdos. Assim,
torna-se óbvio que é impossível separar claramente um nome próprio de outro, para
definir corretamente nossos conceitos do mundo concreto. São apenas conceitos
abstratos ("nomes de classes"), que podem ser definidos corretamente, e quanto mais
abstratos forem, mais fácil é defini-los corretamente. Porque quanto mais abstratos são,
mais fácil é enumerar seu conteúdo. Nossos conceitos do mundo concreto são
necessariamente confusos, porque "concreto" e "confuso" são sinônimos: ambos "con-
crescere" e "con-fundere" significam "emaranhar". A câmera fotográfica é uma
ferramenta para desemaranhar nossas confusões. Permite produzir nomes próprios que
podem ser adequadamente delineados um do outro. Permite tornar mais adequados
nossos conceitos sobre o mundo concreto.

Para realizar esta tarefa esmagadora e sobre-humana, a câmera fotográfica deve ser
capaz de enumerar completamente todo o conteúdo infinito de todos os nomes próprios
que aparecem em todas as fotos. Dito de outra forma: ela deve ser capaz de fotografar
todos os fenômenos concretos do mundo, e cada fenômeno em uma série infinita de
fotos, de modo que nenhuma foto seja idêntica a qualquer outra anterior ou consecutiva
em sua série. Este número infinito de séries infinitas seria "fotografia documental", no
sentido estrito deste termo. Mas fazer isso, é claro, é impossível por duas razões: A
primeira é que tal série fotográfica seria infinitamente maior do que o universo concreto,
e a outra é que a leitura de tal série fotográfica levaria um tempo infinitamente maior do
que a duração esperada do universo concreto. Portanto, a "fotografia documental" é
impossível no sentido estrito do termo.

No entanto, os fotógrafos documentaristas são pessoas razoáveis: admitem a


impossibilidade da tarefa diante deles. E são pessoas modestas: se contentam em
fotografar apenas alguns dos fenômenos concretos ao seu redor (atribuindo nomes
próprios a apenas alguns entre eles), e documentando esses poucos fenômenos apenas
com pequenas séries de fotos (enumerando apenas uma pequena parte do conteúdo
dos nomes próprios produzidos). Eles esperam modestamente contribuir modestamente
para tornar nossos conceitos do mundo concreto mais adequados. Mas infelizmente
estão enganados nisto: o que estão praticando é uma lógica muito ruim. Sua escolha do
fenômeno concreto a ser documentado é ilógica, e escolhem do conteúdo do fenômeno
escolhido as poucas fotos de suas séries de forma ilógica. Procedendo assim
ilogicamente, tornam nossos conceitos do mundo concreto ainda menos adequados, ao
invés de torná-los mais adequados.

Câmeras totalmente automatizadas tentam fugir da impossibilidade de sua tarefa


por um método diferente: circulam em torno de um fenômeno concreto (por exemplo,
Marte ou uma molécula), e fotografam-no de todos os ângulos possíveis, até que alguém
se canse dele, ou até que se quebre. Esta é uma lógica excelente: a escolha do
fenômeno é devidamente declarada (por exemplo, em função de um discurso científico),
e a série fotográfica escolhe a partir do conteúdo dos nomes próprios que a câmera
produz de forma heurística, e é interrompida pelo puro acaso. Agora, é claro que não se
pode dizer das séries fotográficas totalmente automatizadas que elas nos permitem
conceber adequadamente o mundo concreto (elas são muito fragmentárias para serem
capazes de fazê-lo). Mas pode-se dizer delas que tornam nossos conceitos (ou nossa
vontade de conceber), cada vez mais adequados, e que o farão ainda melhor no futuro.

Se compararmos "documentário" com séries fotográficas totalmente automatizadas,


podemos ver o que é que está sendo eliminado, graças à automação total, de dentro de
nossa vontade de conceber o mundo concreto: é a ideologia que está sendo eliminada.
Tal comparação nos permite compreender a essência do pensamento ideológico dentro
do próprio gesto de fotografar: as séries fotográficas "documentais" foram feitas de
pontos de vista específicos, onde as totalmente automatizadas foram feitas durante um
deslizamento da câmera de um ponto de vista para outro. Assim, as câmeras totalmente
automatizadas liberam nossos conceitos do mundo concreto de nosso desejo de
posicionar-nos sob um ponto de vista (e de defendê-lo). As câmeras totalmente
automatizadas são ferramentas para a produção de conceitos livres de pontos de vista
(de concepção preconceituosa). Elas são ferramentas lógicas.
É claro: os produtos das câmeras (as fotos), não precisam necessariamente ser tomados
como nomes próprios de fenômenos concretos (conceitos). Podem ser tomados como
modelos de vivência (obras de arte), ou modelos de comportamento (articulações
políticas). Ainda: se a câmera é uma ferramenta fascinante para a contemplação
filosófica, é porque é uma máquina para a produção de conceitos. Não porque é um novo
tipo de pincel, ou um novo tipo de espada, mas precisamente porque é um novo tipo de
cérebro. As câmeras são filosoficamente interessantes, não porque sejam sucessoras
de algo, mas porque são predecessoras de máquinas para pensar e refletir. Não é que
elas nos ajudem a ver melhor, ou a agir de forma diferente, mas porque nos fazem pensar
mais corretamente, que as câmeras são tão fascinantes. Isto é: elas nos fazem pensar
mais corretamente, se as utilizarmos como ferramentas lógicas, como ferramentas de
definição.

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