Você está na página 1de 4

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas


Graduação em Filosofia
Prof Luiz Bernardo Leite Araújo
Ética II e Ética III
Frederick Chame de Mello Caldas

QUESTÃO 1

Partindo da afirmação kantiana na abertura da 1ª. Seção da Fundamentação da Metafísica dos


Costumes − “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser
considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade” −, responda: o
que torna boa a vontade?

RESPOSTA

Da frase pela qual nos compete dissecar o conceito de boa vontade, podemos destacar
pelo menos três teses cabíveis de comentário: 1) que a razão é o núcleo da universalidade e
necessidade da moral; 2) que apenas deste núcleo deriva o fundamento inconfundível e oposto
aos alicerces derivados da experiência; 3) e que este fundamento é a boa vontade. Segundo a
análise das duas primeiras teses, chegaremos a resposta precisa do conteúdo específico da boa
vontade.
A primeira está contida na primeira observação: “Neste mundo, e até também fora dele”.
Em conformidade ao restante do texto, o motivo desta colocação é o de acentuar uma
especificidade não centrada em alguma idiossincrasia, necessária e exclusivamente ligada a
espécie humana, mas sim a algo de caráter plenamente universal que tenha a sua validade por si
mesma onde quer que ela se apresente. Estamos falando da razão. Isto é, pois ainda havendo o
fato contingente de, na Terra, serem os humanos os únicos dotados desta faculdade, não implica
que assim o seja por necessidade. E assim tratando da estrutura da razão em sua pureza, portanto
descontando em grande medida os aspectos a posteriori do ser humano, as consequências desta
investigação devem valer para todo e qualquer mundo e espécie onde a razão se encontre
presente – universal e necessariamente. Se estivermos corretos ao interpretarmos o primeiro
conteúdo implícito, segue-se, portanto, que uma sentença colocada em tais termos revela uma
ligação entre o conceito de boa vontade e a razão, e que toda demonstração moral subsequente
deve atender ao critério para uma investigação de abrangência universal: ser uma investigação a
priorística.
Em seguida, podemos destacar a passagem “nada é possível pensar que possa ser
considerado como bom sem limitação”. Esta passagem, por sua vez, nos leva a crer na
legitimidade de uma distinção entre aquilo que é bom de maneira não absoluta e aquilo que é o
bom sem limitação. Ora, aquilo que é bom sem limitação não pode, por definição, ter o seu valor
perturbado por qualquer relação ou contexto. Ou ainda, subjaz ao ritmo desta passagem a trilha
para oposição radical aos sistemas éticos que precedem Kant. Pois, como se sabe, aquilo que é
tomado como bom para todo e qualquer caso ou relação valorativa pode ser chamado Bem em si
mesmo, ou Sumo Bem – uma categoria central dos sistemas éticos –; ao passo que Kant delimita
ser único este bem ilimitado, e de caráter a priori. Nesse sentido, todas as supostas éticas,
erguidas sobre alicerces empíricos, estariam erradas. Posta uma tal separação entre os bens
relativos e o bom em si mesmo, e assentida a existência deste bem em si, o próximo passo não
poderia ser outro: apontar precisamente qual é este bem absoluto e depurá-lo, de modo a torná-lo
inconfundível e justificar enfim o seu privilégio ontológico.
Logo em seguida nos acrescentado: “a não ser uma só coisa: uma boa vontade”. Eis que
nos é revelado o bom sem limitação. Ao atribuir um papel à razão na concepção de boa vontade,
Kant oferece uma resposta à questão acerca de qual seria a fonte da ordem moral, e acerca da
nossa capacidade acessá-la. Pois, uma vez afirmado o primado da razão, significa que todo
aquele dotado de suas faculdades cognitivas em estado normal deve estar apto, em princípio, a
alcançar a moralidade. Portanto, o primeiro requisito para tornar boa a vontade é o bom senso
natural derivado da razão em sua plena capacidade. O segundo aspecto deriva da introdução de
um novo conceito: o conceito de dever. O conceito de boa vontade seria derivado da relação de
determinação obrigatória da vontade por meio do dever. Já o dever, por sua vez, seria a
necessidade de uma ação por respeito à lei – isto é, uma atividade de vontade voltada à lei. Isto é,
se trata de uma atividade necessária da vontade norteada plenamente pela razão, e sem a
mediação de conseqüências empíricas, por motivos já enunciados antes. Não estando o valor
moral da vontade determinado pelas suas conseqüências, portanto, ele estaria na máxima que a
determina. Podemos notar que Kant concebe o conceito de boa vontade também por influência
cristã, enquanto se fala em amor não por inclinação, e sim pela vontade.
A questão da vontade ganha suma importância na ética kantiana, pois somente através
dela podemos dizer que alguém pode agir conforme ao que se espera de uma ação por dever,
mesmo sem estar por ele condicionado. Em geral, um ser racional que se serve dos mesmos
meios para realizar um determinado fim pode não estar realizando uma ação de conteúdo moral,
na medida em que visa o benefício pessoal e egoísta no interior de uma sociedade.
QUESTÃO 2

Analise a seguinte passagem da 2ª. Seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes de


Kant: “Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua
lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é portanto:
não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no
querer mesmo, como lei universal”.

RESPOSTA

Das chaves possíveis para a análise da passagem indicada, optamos por duas delas: 1)
sobre a possibilidade de algo autônomo – no caso, a vontade – se subordinar de algum modo às
leis, sem que se siga disso a supressão da autonomia; 2) sobre a relação das leis e uma vontade
não-divina.
Por outras palavras, nos conta Kant logo no início da seção 3, que a autonomia da
vontade significa uma vontade livre. Isso não significa que o âmbito liberdade não possa ser
compatível com o âmbito das leis – ainda que leis outras às da causalidade natural, presente nos
objetos materiais. De fato, a vontade livre é submetida ao âmbito da lei moral. Mas como
entender essa relação? Devemos ter em mente que o projeto kantiano se configura como um dos
maiores representantes do esclarecimento iluminista e a sua máxima “pensar por si mesmo”, de
maneira que cada indivíduo se encontre com recursos racionais suficientes para julgar a
legitimidade de dogmas morais e epistêmicos. Por outro lado, a autonomia da vontade é aquela
que se põe contra as inclinações impermanentes do agradável dos sentidos e a contingência do
conceito empírico de felicidade. Liberdade é, em certa medida, libertar-se disto com vistas à
permanência, à necessidade e à universalidade dos mandamentos da razão. A vontade não se
confunde com a razão, mas a vontade só existe em seres racionais, e só age conforme a si mesma
enquanto norteada pela representação de certas leis. Mas como pode se autodeterminar apenas
quando na presença de uma representação de leis? Isso decorre da abstração que estas leis
realizam contra a individualidade na qual a razão se apresenta. Há um salto, portanto, da massa,
do conteúdo subjetivo e seus fins, para a mera forma sem rosto ou preferências. Apenas assim
pode-se dizer que a vontade é livre para fazer o que deve – aquilo ao que ela pode ter sido
delegada teleologicamente por Deus, uma vez que ela mesma não é eficiente na busca pela
felicidade, se compararmos a eficiência de cada órgão e sua função aparente –, ou seja, é livre
para executar sua função de agir segundo regras.
Do que foi dito, podemos perceber a pretensão de esvaziamento do sujeito enquanto
agente moral em prol de uma perspectiva coletiva. Se por um lado colocamos nesses termos,
estes só possuem validade desde que compreendamos também a tentativa de resgate e
preservação do respeito e da dignidade intersubjetiva. Pois, segundo Kant, apenas por esse salto
espontâneo, necessário e racional podemos assegurar uma valoração incondicional do homem,
que não pode ser pesada e calculada. É sob essa garantia que está fundada a concepção de que o
ser racional deve ser visto sempre como fim e nunca como meio – concepção que, por sua vez, é
chamada de princípio objetivo da vontade. E por tais razões, uma das expressões do princípio
categórico – isto é, a lei com vistas exclusivamente à forma e princípios da ação – é a de querer
que as nossas máximas e ações, sejam tais que elas possam se transformar em leis universais. Em
suma, a ligação entre a liberdade e as leis parecem revelar também uma faceta social, onde
apenas por meio de uma lei o coletivo de sujeitos arrazoados possa gozar de sua liberdade sem
que ela possa colocar em risco a liberdade alheia.
Ademais, vale comentar que a vontade não é de todo determinada pela razão, ao menos
no que concerne aos humanos, em virtude da imperfeição que é própria à espécie. É
precisamente por conta dessa imperfeição e de nossa finitude que apenas tendemos e precisamos
de ideais, ainda mesmo que jamais o atinjamos plenamente e para sempre. Quando não tomados
plenamente pela razão, tendemos à sensibilidade e suas inclinações. E é justo por conta dessa
imperfeição que nos relacionamos com as leis objetivas da moral segundo a ordem da obrigação.
Com olhar atento, novamente todo o resquício de individualidade, do olhar subjetivo, é posto
como defeito e nos afasta da perfeição objetiva e globalizante, que por sua vez só seria passível
de plena conformidade por um ser divino. Com efeito, estando por natureza desprovida dos
aspectos negativos, a vontade divina estaria submetida às leis objetivas do bem, mas jamais
obrigada a ela por via de imperativos, na medida em que o seu querer seria sempre coincidente
com a lei. Dito de maneira inversa, enfim, a relação entre as leis e a vontade imperfeita é
condicionada pelos imperativos por conta da condição que nós chamamos humanas, mas que em
verdade se coloca a todo ser não-divino e racional: as oscilações provocadas pelo egoísmo.

Você também pode gostar