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ATO 1
Luz difusa. Três pessoas na sala.
Silêncio.
Pausa
Pausa
Pausa
DEELEY: O quê?
Pausa
DEELEY: Mas você se lembra dela. Ela se lembra de você. Senão porque ela viria
aqui essa noite?
Pausa
Pausa
Se você só tem uma unidade de alguma coisa não pode dizer que é a melhor de coisa
nenhuma.
KATE: Huhum.
Pausa
Pausa
Pausa
DEELEY: De quem?
KATE: De mim.
(Deeley ri)
Pausa
KATE: O quê?
KATE: Não.
Pausa
KATE: Não.
KATE: Em que?
DEELEY: Definitivamente.
Pausa
Pausa
KATE: Nenhuma.
Pausa
Por que ela não é casada? Quero dizer, por que não vem com o marido?
Pausa
DEELEY: Então por que é que ela não vem com o marido?
Pausa
KATE: Não.
DEELEY: Como é que você acha que ele seria? Quero dizer, com que tipo de homem
ela teria casado? Afinal ela era tua melhor - tua única - amiga. Você deve ter alguma
idéia. Que espécie de homem ele seria?
KATE: Não tenho a menor idéia.
Pausa
Pausa
KATE: Uma.
Pausa
KATE: Centenas.
KATE: Não todos, eu acho. Mas afinal, nós morávamos juntas. Tínhamos visitas, de
vez em quando. Eu me encontrava com eles.
KATE: O que?
Pausa
(abruptamente) Vocês viviam juntas?
KATE: Mmmmm?
KATE: Claro.
KATE: Claro que vivíamos. De que outra forma ela ia roubar as minhas calcinhas?
Na rua?
Pausa
DEELEY: Eu sabia que você tinha dividido apartamento com alguém numa época...
Pausa
Pausa
ANNA: Na fila a noite inteira, aquela chuva, você se lembra? meu deus, o Albert
Hall, Convent Garden, nós comemos o quê? ficar lembrando, no meio da noite, para
fazer coisas que nós amávamos fazer, nós éramos jovens é claro, mas que resistência,
e trabalhar de manhã, e depois um concerto, ou a ópera, ou o balé, naquela noite, você
não esqueceu? e depois no andar de cima do ônibus atravessando a Kensington High
Street, e os motoristas dos ônibus, e depois correndo pra procurar os fósforos e
acender o aquecimento e eu acho que ovos mexidos, ou será que? quem cozinhava? as
duas dando risadinhas e falando besteira, as duas se enroscando junto do calor, depois
cama e dormir, e todo o corre-corre pra lá e pra cá de manhã cedinho, disparando pro
ônibus de novo pra chegar no trabalho, almoço no Green Park, contando nossas
fofocas, com nossos sanduíches, meninas inocentes, secretárias inocentes, e então a
noite chegando, e só Deus sabe a ansiedade, o emocionante sentido de expectativa,
quero dizer o gosto de esperar por tudo o que ia vir, e tão pobres, mas ser pobre e
jovem, e mulher, em Londres, naquele tempo... e os bares que descobríamos, quase
privados, não é? onde artistas e escritores e às vezes atores se reuniam, e outros com
dançarinos, nós sentávamos quase sem fôlego com nossos cafés, de cabeça baixa,
para não ser vistas, para não perturbar, para não perder nada, e ouvindo e ouvindo
todas aquelas palavras, todos aqueles bares e aquela gente toda, gente muito criativa
sem dúvida, será que isso ainda existe? você sabe? pode me dizer?
Pausa ligeira
(Põe leite e açúcar na xícara e leva-a a Anna. Serve um café puro a Deeley e se senta
com a xícara dela na mão.)
(Deeley serve conhaque para todos e distribui os copos. Fica de pé com um copo na
mão.)
Pausa
Você pode até ouvir o mar de vez em quando, se prestar bem atenção.
ANNA: Como vocês foram sábios em escolher esta parte do mundo, e que corajoso e
sensível da parte de ambos viver permanentemente em tal silêncio.
DEELEY: Meu trabalho me faz sair freqüentemente, é claro. Mas a Kate fica aqui.
ANNA: Ninguém que vivesse aqui iria querer ir muito longe. Eu não quereria ir muito
longe, eu teria medo de ir longe, quiçá quando eu voltasse a casa não estivesse mais
aqui.
DEELEY: Quiçá?
ANNA: O quê?
KATE: Às vezes eu ando até o mar. Não tem muita gente. É uma praia comprida.
Pausa
ANNA: Mas eu sentiria falta de Londres, apesar de tudo. Mas claro que eu era uma
menina em Londres. Nós éramos duas meninas juntas.
ANNA: É mesmo?
DEELEY: É.
DEELEY: Como?
ANNA: Quero dizer esposa. Me desculpe. Você tem uma esposa maravilhosa.
DEELEY: Ah.
Pausa
Pausa
ANNA: Nós não complicávamos muito na cozinha, não tínhamos tempo, mas de vez
em quando, muitas vezes até, inventávamos um picadinho inacreditável de enorme,
nos empanturrávamos com tudo, e também a maior parte das vezes passávamos a
noite lendo Yeats.
Pausa
Pausa
Vocês estão vendo aquela faixinha de luz? Aquilo é o mar? Aquilo é o horizonte?
DEELEY: Eu sei.
Pausa
DEELEY: É bom pra Kaká ver você. Ela não tem muitos amigos.
DEELEY: Ela não tem feito muitos amigos, embora tenham aparecido todas as
oportunidades para isso.
Pausa
DEELEY: Estamos.
DEELEY: Ela gosta de dar grandes caminhadas. Essas coisas. Você sabe. De capa de
chuva. Vai pela estrada, as mãos enfiadas nos bolsos. Esse tipo de coisa.
(Anna se volta para olhar Kate)
ANNA: Eu sei.
DEELEY: De vez em quando eu seguro o rosto dela nas minhas mãos e fico olhando.
ANNA: É mesmo?
DEELEY: É, eu olho pra ele, segurando-o com as mãos. Então eu como que o solto
no ar, afasto as mãos, e ele fica flutuando.
KATE: Está comigo. Minha cabeça está muito bem atarraxada. Onde deve estar.
(Anna se senta)
De vez em quando, andando, no parque, eu dizia para ela, você está sonhando, você
está sonhando, acorda, que é que você está sonhando? e ela se virava pra mim,
sacudindo o cabelo, e olhava pra mim como se eu fosse parte do sonho.
Pausa
Um dia ela me disse, eu passei a sexta-feira dormindo. Não, não passou nada, eu
respondi, do que você está falando? Eu passei a sexta-feira inteira dormindo. Mas
hoje é sexta-feira, eu disse, tem sido sexta-feira o dia inteiro, agora é sexta-feira à
noite, você não passou a sexta-feira inteira dormindo. Sim eu dormi, ela disse, eu
dormi o dia inteiro, hoje é sábado.
DEELEY: Você quer dizer que ela literalmente não sabia que dia era?
ANNA: Não.
Pausa
KATE: Setembro.
Pausa
DEELEY: Estamos forçando ela a pensar. Devemos ver você com mais freqüência.
Você é uma influência saudável.
ANNA: Delicioso.
ANNA: Ah, essas canções. Costumávamos ouvir todas, todas elas, o tempo todo,
tarde da noite, deitadas no chão, coisas antigas encantadoras. Algumas vezes eu
olhava para o rosto dela, mas ela nem percebia o meu mirar.
DEELEY: Mirar?
ANNA: O quê?
KATE: (para Ana) Eu não conheço essa canção. Nós tínhamos essa?
DEELEY: (cantando para Kate) You're lovely to look at, delightful to know...
DEELEY: (cantando) I've got a woman crazy for me. She's funny that way.
Pausa ligeira
DEELEY: (cantando) And someday I'll know that moment divine, when all the things
you are, are mine!
Pausa ligeira
Pausa.
Pausa.
Pausa.
ANNA: (cantando) The park at evening when the bell has sounded...
Pausa.
Pausa
Silêncio.
O que aconteceu comigo foi o seguinte. Eu caí num cineminha pulguento pra ver Um
Homem a Mais. Uma tarde de verão maldita, andando sem rumo. Eu lembro que
pensei que tinha algo familiar naquele bairro e de repente me lembrei que foi naquele
mesmíssimo bairro que meu pai me deu meu primeiro triciclo, na verdade o único
triciclo que eu tive na vida. Enfim, tinha ali a loja de bicicletas e tinha esse cineminha
pulguento passando Um Homem a Mais e na entrada estavam duas lanterninhas e uma
delas estava mexendo nos próprios peitos e a outra estava dizendo “puta safada” e a
que mexia nos peitos dizia “hummm” e sorria para a colega com uma expressão muito
sensual, então eu avancei no meio daquela tarde insuportavelmente quente no meio do
nada e fiquei assistindo Um Homem a Mais e achei que o Robert Newton era
fantástico. E eu ainda acho que ele era fantástico. E eu seria capaz de cometer um
assassinato por ele, ainda hoje. E só tinha mais uma pessoa no cinema, uma única
pessoa na imensidão do cinema vazio, e lá está ela. E lá estava ela, bem apagada, bem
imóvel, sentada eu acho bem no centro da platéia. Eu estava num canto e fiquei por
ali. E eu saí quando filme acabou, e percebi, apesar do James Mason estar morto, que
a primeira lanterninha parecia estar completamente exausta, suada, e eu fiquei parado
um tempinho no sol, pensando em qualquer coisa eu acho, até que essa moça saiu e eu
dei uma olhada nela e falei o Robert Newton não é fantástico, e ela disse qualquer
coisa, só Deus sabe, mas ela me olhou, e eu pensei Jesus é isso, peguei um peixe
grande, essa é sangue azul, e quando já estávamos sentados no café ela olhou pra
xícara de chá depois olhou para mim e disse que ela achava o Robert Newton
inesquecível. De modo que foi o Robert Newton quem nos juntou, e só o Robert
Newton pode nos separar.
Pausa.
DEELEY: Eu sei que o F. J. McCormick era bom. Mas não foi ele quem nos juntou.
Pausa
ANNA: Vi.
DEELEY: Quando?
Pausa
Pausa
Pausa
E depois num estágio um pouco mais avançado nossos corpos nus se encontraram, o
dela frio, depois morno, extremamente agradável, e eu fiquei imaginando o que
Robert Newton pensaria disso. O que é que ele pensaria disso eu fiquei imaginando
enquanto tocava profundamente todo o corpo dela. (para Anna) O que você acha que
ele pensaria?
ANNA: Eu nunca conheci o Robert Newton mas sei que sei o que você quer dizer. Há
coisas que a gente lembra mesmo que nunca tenham acontecido. Há coisas que eu
lembro que talvez nunca aconteceram, mas como eu me lembro delas, elas passam a
ter acontecido.
DEELEY: O quê?
ANNA: Esse homem chorando no nosso quarto. Numa noite eu voltei tarde e
encontrei ele soluçando, com a mão no rosto, sentado na poltrona, todo enroscado na
poltrona e a Kaká sentada na cama com uma caneca de café e ninguém falou comigo,
ninguém falou, ninguém olhou pra cima. Não tinha nada que eu pudesse fazer. Eu
tirei a roupa, apaguei a luz e entrei na cama, as cortinas eram finas, a luz da rua
entrando, a Kaká imóvel, na cama dela, o homem soluçou, a luz entrando, piscando na
parede, uma brisa suave, as cortinas balançavam de vez em quando, não havia nada
além dos soluços, eles pararam de repente. O homem veio na minha direção, muito
rápido, olhou pra mim na cama, mas eu não teria absolutamente nada com ele, nada.
Pausa
Não, não, não é nada disso... ele não veio rápido... não é nada disso... ele veio... bem
devagar, não tinha muita luz, e parou. Ficou de pé no meio do quarto. Olhou para nós
duas, nas nossas camas. E então se virou na minha direção. Se aproximou da minha
cama. Se curvou sobre mim. Mas eu não teria absolutamente nada com ele, nada.
Pausa
ANNA: Mas depois de um tempo eu ouvi ele sair. Ouvi a porta da frente fechando, e
passos na calçada, e silêncio, os passos se afastando e depois o silêncio.
Pausa
Só que mais tarde na noite eu acordei e olhei para a cama dela do outro lado do quarto
e vi duas sombras.
Pausa
DEELEY: Claro que passou. Foi embora duas vezes e só entrou uma vez.
Pausa
Pausa
(Kate se levanta, vai a uma mesinha, tira um cigarro de uma caixa, acende-o. Olha
pra Anna)
ANNA: Não, não, você não estava morta, você era tão cheia de vida, tão animada,
estava sempre rindo...
DEELEY: Claro que estava. Eu fiz você sorrir também, não fiz? Andando na rua, de
mãos dadas. Você sorriu da cabeça aos pés.
DEELEY: Animada não é a palavra. Quando ela sorria... como é que eu posso dizer...
(Deeley se levanta, vai à caixa de cigarros, pega a caixa, sorri para Kate. Kate o
olha, observa enquanto ele acende um cigarro, tira a caixa dele, vai até Anna,
oferece um cigarro a ela. Anna aceita)
KATE: Eu disse que vocês falam de mim de um jeito, que parece que eu estou morta.
Agora.
ANNA: Como é que você pode dizer isso? Como é que você pode dizer isso, se eu
estou olhando pra você agora, vendo você curvada sobre mim tão timidamente, me
olhando...
Pausa
Pausa
Essa é a situação tal como eu a vi naquela época. Quer dizer, esse é o meu
pronunciamento categórico sobre a situação tal como eu a vi naquela época. Há vinte
anos.
Silêncio.
ANNA: Quando eu soube que a Kaká tinha se casado meu coração pulou de alegria.
Pausa
Sim, pulou de alegria. Porque veja bem eu sabia que ela nunca fazia as coisas
desleixada, irrefletida, precipitadamente. Algumas pessoas jogam uma pedra num rio
para ver se a água está muito fria para entrar, enquanto outras, algumas poucas, vão
sempre esperar até as últimas ondulações antes de pular.
DEELEY: Algumas pessoas fazem o quê? (para Kate) O que foi que ela disse?
ANNA: E eu sabia que a Kaká sempre iria esperar não só o surgimento da primeira
ondinha, mas também que as ondinhas se ampliassem mais e mais sobre toda a
superfície, porque naturalmente como você sabe as ondulações na superfície indicam
a profundidade através da vibração de cada partícula de água até o fundo do rio, mas
mesmo quando ela sentia isso acontecer, quando ela estava segura do que acontecia,
ainda assim ela talvez não pulasse. Porém nesse caso ela pulou e portanto eu soube
que ela tinha se apaixonado de verdade e fiquei contente. E deduzi que deve ter
acontecido também contigo.
Pausa
ANNA: E depois quando eu soube que tipo de homem você era eu fiquei duplamente
encantada porque eu sabia que a Kaká sempre se interessou pelas artes.
KATE: Eu me interessei pelas artes uma época, mas agora eu não lembro quais artes
me interessavam.
ANNA: Não vai me dizer que esqueceu dos nossos dias na Tate? e como nós
exploramos Londres e todas as velhas igrejas e os velhos edifícios, estou falando dos
que sobraram depois do bombardeio, no centro da cidade e ao sul do rio em
Greenwich? Ah meu deus. Ah sim. E os jornais de domingo! Eu nunca consegui
arrancá-la da página de críticas. Ficava sedenta por elas, e depois insistia para
visitarmos aquela galeria, aquele teatro, aquela sala de concerto, mas é claro que tinha
tanta coisa, tanta coisa para ver e para ouvir, naquela Londres adorável daquela época,
que de vez em quando perdíamos coisas, ou não tínhamos mais dinheiro nenhum,
então perdíamos algumas coisas. Por exemplo, eu me lembro que uma vez ela me
disse, levantando os olhos do jornal, vem rápido, rápido, vem comigo rápido, e nós
agarramos nossas bolsas e fomos, de ônibus, para um bairro totalmente obscuro e
desconhecido para ver, quase sozinhas na platéia, um filme maravilhoso chamado
“Um Homem a Mais”.
Silêncio
ANNA: E a Kaká, pobrezinha, quando você está fora? Que é que ela faz?
ANNA: Você deixa tua mulher sozinha por períodos tão longos? Como você pode?
ANNA: Claro.
ANNA: Ele não é vegetariano. Pelo contrário, é quase um gourmet. Nós moramos
numa Villa muito agradável, estamos lá há muitos anos. Fica bem no alto, nos
penhascos.
ANNA: Ao lado.
DEELEY: Ao lado, claro. Muito alto. É, é possível que eu tenha dado uma olhada na
tua Villa.
Pausa
DEELEY: Meu trabalho me levou à Sicília. Meu trabalho tem muito a ver com a vida,
entende, em todo o planeta. Com pessoas de todo o planeta. Eu uso a palavra planeta
porque a palavra mundo possui pretensões e ressonâncias emocionais, políticas,
sociológicas e psicológicas das quais eu prefiro, por uma questão de escolha minha,
me abster, ou talvez seja melhor dizer que me mantenho aparte, ou se você preferir
que eu as rejeito. Como anda o iate?
DEELEY: Não está achando a Inglaterra um pouco úmida, agora que voltou?
DEELEY: Dissimuladamente úmida? (para si mesmo) Que diabo ela quer dizer com
isso?
Pausa
Bom, a qualquer momento que o seu marido passe por aqui minha mulherzinha vai
ficar contentíssima de botar a velha panela no velho fogão para cozinhar pra ele
alguma coisa deliciosa e até mesmo voluptuosa. Sem problemas.
Pausa
Imagino que os negócios dele o impediram de fazer a viagem. Como é o nome dele?
Gian Carlo ou Per Paulo?
ANNA: Temos.
ANNA: Andamos. Mas no terraço sempre uso sandálias, porque pode ser muito
agressivo com a sola dos pés.
ANNA: Sim.
KATE: (para Anna) Vocês tomam suco de laranja no terraço de manhã e gin-tônica
no pôr-do-sol, olhando para o mar?
DEELEY: Eu estive lá. Não tem mais nada pra se ver, mais nada pra se investigar,
nada. Não tem mais nada pra se investigar na Sicília.
Silêncio
ANNA: (tranqüilamente) Não vamos sair esta noite, não vamos a lugar nenhum esta
noite, vamos ficar em casa. Eu cozinho qualquer coisa, você pode lavar o cabelo, você
pode relaxar, ouvimos uns discos.
ANNA: O parque é sujo à noite, tudo quanto é tipo de gente horrorosa, homens
escondidos atrás das árvores e mulheres com vozes terríveis, elas gritam contigo
quando você passa, e sai gente de repente de trás das árvores e das moitas e tem
sombras em todos os lugares e tem policiais, e você vai detestar o passeio, e você vai
ver o engarrafamento e o barulho do trânsito e você vai ver todos os hotéis e você
sabe que você odeia olhar por aquelas portas giratórias, você odeia, ficar vendo aquilo
tudo, aquelas pessoas todas naquelas luzes nos lobbies todos falando e se mexendo... e
aqueles candelabros...
Pausa
Você só vai querer voltar pra casa se você for pra rua. Vai querer correr pra casa... e
pro teu quarto...
Pausa
ANNA: Ficar em casa. Quer que eu leia pra você? Você gostaria?
Pausa
KATE: Não.
Pausa
Pausa
KATE: Quem?
KATE: Quem?
ANNA: McCabe.
Pausa
Os dois se olham.
ATO 2
O quarto do casal.
Uma janela comprida. Porta do banheiro à esquerda alta. Porta para a sala direita
alta.
Dois divãs, uma poltrona. Estão dispostos exatamente na mesma relação entre eles
que a mobília do primeiro ato, mas em posições invertidas.
Luzes baixas. Percebe-se Anna sentada no divã. Brilho forte vindo do quadro de
vidro da porta do banheiro.
Silêncio
Luzes sobem. A outra porta se abre. Deeley entra com uma bandeja, o coloca sobre
uma mesa.
DEELEY: Aqui estamos. Bom e quente. Bom e forte e quente. Você prefere com leite
e açúcar, não é?
Gosta do quarto?
ANNA: Gosto.
DEELEY: Nós dormimos aqui. Essas coisas são camas. O genial dessas camas é que
elas permitem uma grande variedade de combinações. Podem ficar separadas como
estão agora. Ou colocadas em ângulo reto, ou uma dividindo a outra ao meio, pode-se
dormir pé com pé, cabeça com cabeça ou lado a lado. O sistema de encaixes torna
tudo isso possível.
ANNA: Do quê?
1 Stroller = Andarilho. No original, “Wayfarers Pub” = Bar dos Viajantes. Considerei Wayfarers
muito difícil de pronunciar, e traduzir literalmente “Bar dos Viajantes” seria muito mais simbólico
que no original.
DEELEY: Anos atrás.
DEELEY: Ah, era você sim, sem dúvida. Eu nunca esqueço um rosto. Você se
sentava no canto, quase sempre, algumas vezes sozinha, algumas vezes com outras
pessoas. E aqui está você, sentada na minha casa de campo. A mesma mulher.
Incrível. Um camarada chamado Luke costumava ir lá. Você conhecia ele.
ANNA: Luke?
DEELEY: Pois é, tinha uma multidão deles, poetas, dublês, jockeys, comediantes,
esse tipo de gente. Você costumava usar um cachecol, isso mesmo, um cachecol
preto, e uma blusa preta, e uma saia.
ANNA: Eu?
ANNA: Eu não era rica, você sabe. Não tinha dinheiro pra bebidas.
ANNA: Você?
DEELEY: Claro.
ANNA: Nunca.
Pausa
ANNA: Você?
Pausa
Pausa
Já nos falamos inclusive. Nesse pub, por exemplo. No canto. O Luke não gostou
muito mas nós ignoramos ele. Mais tarde fomos todos para uma festa. O apartamento
de alguém, ali por Westbourne Grove. Você se sentou num sofá muito baixo, eu
sentei na tua frente e fiquei olhando por baixo da tua saia. As tuas meias pretas
ficavam muito pretas porque as tuas coxas eram branquíssimas. Claro que isso é uma
coisa que acabou, não é, já não é grande coisa agora, foi tudo embora. Mas na época
valia a pena. Valeu a pena naquela noite. Fiquei só ali sentado bebericando minha
cerveja e olhando... Mirando por baixo da tua saia. Você não se importou, achou o
meu mirar perfeitamente aceitável.
DEELEY: Tinha uma grande discussão comendo, sobre a China ou outra coisa
qualquer, ou sobre a morte, ou sobre a China e a morte, não me lembro qual dos dois,
mas ninguém além de mim tinha a visão das tuas coxas brancas e só você tinha coxas
brancas. E aqui está você. A mesma mulher. As mesmas coxas.
Pausa
Aí entrou alguém pra te chamar, uma moça, uma amiga. Ela sentou no sofá com você,
vocês conversaram e riram, sentadas juntas, eu me acomodei ainda mais baixo para
mirar as duas, as coxas das duas, encostando e raspando uma na outra, você
consciente, ela inconsciente. Mas aí uma multidão de homens me cercou, me exigiram
minha opinião sobre a morte, ou sobre a China, ou sobre o que fosse, e eles não me
largavam e estavam todos curvados em cima de mim, com os hálitos fedorentos os
dentes quebrados os cabelos nos narizes e a China e a morte e os rabos deles nos
braços da minha poltrona e eu fui forçado a me levantar e abrir caminho no meio
deles, todos me seguindo com ferocidade, como se eu fosse o motivo de toda a
discussão, olhando pra trás através da fumaça, correndo até a mesa com toalha de
linóleo para pegar mais um garrafa de cerveja, olhando pra trás através da fumaça,
vendo de relance duas garotas no sofá, uma delas você, as cabeças juntas,
cochichando, já não conseguindo ver mais nada, já não conseguindo ver meias ou
coxas, e aí vocês tinham ido embora. Voltei pra perto do sofá. Não tinha ninguém
nele. Fiquei contemplando no sofá as marcas de quatro nádegas. Duas delas eram
tuas.
Pausa
DEELEY: Concordo.
Nunca mais vi você. Você desapareceu daquela área. Talvez tenha se mudado.
Silêncio
ANNA: Sei.
Pausa
Realmente se ensaboa toda, depois tira o sabão com a água, até a última bolha.
Meticulosamente. Ela é ao mesmo tempo asseada e, devo dizer, sensual. Ela esfrega o
corpo todo e sai limpíssima, novinha em folha. Você não acha?
DEELEY: Exatamente isso. Nenhuma mancha. Nenhuma marca. Brilhante como uma
bolinha de sabão.
DEELEY: O quê?
ANNA: Ela sai do banheiro flutuando. Como num sonho. Inconsciente de que tem
alguém de pé, com uma toalha, esperando por ela, esperando para envolvê-la com a
toalha. Completamente ausente.
Pausa
Pausa
DEELEY: Por outro lado, ela é totalmente incompetente na hora de se enxugar, você
percebeu? Eu descobri isso na minha experiência com ela. Quando se ensaboa é de
uma eficiência absoluta, mas é incapaz de demonstrar a mesma eficiência quando se
enxuga. Você sempre vai achar uns glóbulos de água gordinhos e indesejados
pingando por aí.
ANNA: Como é que você poderia enxugar ela sem a toalha dela?
Pausa
DEELEY: Por que você não enxuga ela com a toalha dela?
ANNA: Eu?
DEELEY: Tem certeza? Quer dizer, você é mulher, sabe como e onde e com que
densidade a umidade se acumula no corpo das mulheres.
Pausa
DEELEY: Não é?
Pausa
Ouve. Vou te dizer o que. Eu vou fazer. Vou fazer o serviço completo. A toalha e o
talco. Afinal, eu sou o marido. Mas você pode supervisionar tudo. E me dar algumas
dicas bem quentes enquanto assiste. Assim matamos dois coelhos com uma cajadada
só.
Pausa
(para si próprio) Deus do céu. (olha para ela devagar) Você deve estar pelos
quarenta hoje em dia, eu acho.
Pausa
(A porta do banheiro se abre. Kate entra no quarto. Usa um roupão. Sorri para os
dois.)
(Anda até a janela e olha a noite. Deeley e Anna observam. Deeley começa a cantar
bem suavemente.)
ANNA: (cantando) No, no, they can't take that away from me...
DEELEY: (cantando) No, no, they can't take that away from me...
(Kate anda em direção a eles e pára, sorrindo. Anna e Deeley cantam de novo, mais
rápido nas deixas, e mais superficialmente)
ANNA: (cantando) The way you hold your knife...
DEELEY: No, no, they can't take that away from me.
DEELEY: Não é?
KATE: Obrigada. Me sinto refrescada. A água é bem macia aqui. Muito mais macia
que a de Londres. Eu sempre acho a água muito áspera em Londres. Essa é uma das
razões pelas quais eu gosto de viver no campo. Tudo é mais macio. A água, a luz, as
formas, os sons. Aqui não há tantas arestas. E viver perto do mar também. Não se
sabe onde ele começa e onde termina. Isso me agrada. Eu não gosto de linhas ásperas.
Detesto esse tipo de urgência. Gostaria de ir pro Oriente, ou algum lugar assim, algum
lugar bem quente, onde a gente pode se meter embaixo de um mosquiteiro e respirar
bem devagarinho. Sabe?... algum lugar em que se pode olhar pela fresta da tenda e ver
a areia, essas coisas. A única coisa bonita numa cidade grande é que quando chove
tudo fica meio borrado, e as luzes dos carros ficam borradas, não é, e nossos olhos
ficam borrados, e nós ficamos com gotinhas nos cílios. Essa é a única coisa bonita
numa cidade grande.
ANNA: Não é única coisa bonita. Você pode ter um belo quarto e um belo
aquecimento a gás e uma camisola de dormir quentinha e uma bela bebida quente,
tudo esperando por você quando você chegar.
Pausa
ANNA: Não.
KATE: Bem, de qualquer forma eu decidi que não vou sair esta noite.
ANNA: Ah, bom. Fico feliz. Assim você pode tomar uma boa xícara de café bem
forte depois do banho.
Eu posso fazer a bainha do teu vestido preto. Posso terminar agora mesmo e você
pode experimentar.
KATE: Mmmmmmm.
(Anna passa o café para ela.)
DEELEY: Você tem certeza? Eu não quero ver você toda úmida se sentando por aí.
(Kate sorri.)
Olha esse sorriso. Esse é o mesmo sorriso que ela sorriu quando eu estava andando
pela rua com ela, depois de “Um Homem a Mais”, quer dizer, bastante tempo depois.
Que é que você acha desse sorriso?
DEELEY: Não está não. Não como estava agora há pouco, não como você sorriu
naquela vez. (Para Anna) Você sabe de que sorriso estou falando?
Pausa
Pausa
O Charles vem?
KATE: E o McCabe?
ANNA: Ah, é.
Pausa
ANNA: Quem?
KATE: O Christian.
KATE: Tão gentil, né? E o humor dele? Ele não tem um senso de humor adorável?
Acho também que ele é tão... tão sensível. Por que você não convida ele?
Silêncio
DEELEY: (para Anna) Você pretende visitar alguém mais enquanto está na
Inglaterra? Parentes? Primos? Irmãos?
Pausa
ANNA: Ah. Só um pouco, não muito. (Para Kate) Você ainda é tímida, não é?
(para Deeley) Mas quando eu a conheci ela era tão tímida, mais tímida que um
esquilo, era mesmo. Quando alguém se aproximava pra lhe falar ela se dobrava e
ainda que estivesse ali, fisicamente ao alcance, ela se fazia inacessível. Se dobrava, e
ninguém conseguia falar ou entrar em contato físico com ela. Eu atribuía isso à
educação, filha de um pastor, e realmente havia nela muito de Brontë.
ANNA: Mas se eu pensava em Brontë eu não pensava que ela era Brontë na paixão
mas apenas no mistério, no ato de ser tão obstinadamente reservada.
Pausa ligeira
ANNA: Eu tinha pego uma calcinha dela para ir numa festa. Mais tarde, de
madrugada, eu confessei. Eu tinha agido mal. Ela me olhou fixo, perplexa, acho que é
essa a palavra. Mas eu disse a ela que na verdade eu já tinha sido castigada pelo meu
pecado, pois um homem na festa havia passado a noite inteira olhando por baixo da
minha saia.
Pausa
ANNA: Profundamente.
DEELEY: Olhando pra calcinha dela, por baixo da tua saia. Hummm.
ANNA: Mas dessa noite em diante ela passou a insistir, de vez em quando, que eu
usasse as calcinhas dela - ela tinha mais do que eu, e muito mais variadas - e cada vez
que me propunha isso ela ruborizava, mas a proposta era feita, ainda assim. E quando
havia alguma coisa pra contar a ela, quando eu voltava, qualquer coisa interessante
pra contar, eu contava a ela.
ANNA: Aí eu já não conseguia ver. Eu chegava tarde e encontrava ela lendo embaixo
do abajur, e começava a contar, mas ela dizia não, apaga a luz, e eu contava a ela no
escuro. Ela preferia que eu contasse no escuro. É claro que nunca estava
completamente escuro, com a luz do gás ou a luz através das cortinas, e o que ela não
sabia é que, como eu sabia o que ela preferia, escolhia uma posição onde eu podia ver
a cara dela, mas ela não podia ver a minha. Só podia ouvir a minha voz. E então ela
escutava e eu a observava escutando.
Pausa
DEELEY: Você diz que ela era Brontë no mistério mas não na paixão. Como ela era
na paixão?
DEELEY: Você acha que é o meu departamento? É, você tem toda a razão. É o meu
departamento. Fico contente em ver alguém com um pouco de discernimento afinal.
Claro que é o meu maldito departamento. Eu sou o marido dela.
Pausa
Ou seja, eu gostaria de fazer uma pergunta. Eu sou o único que começa a achar tudo
isso desagradável?
ANNA: Mas o que é que você poderia achar desagradável? Eu voei de Roma para ver
a minha amiga mais antiga, após vinte anos, e pra conhecer o marido dela. O que é
que te preocupa?
DEELEY: É, mas você está aqui, conosco. Ele está lá, sozinho, vagando pelo terraço,
pra baixo e pra cima, esperando por uma lancha lotada de gente glamurosa, pelo
menos. Gente glamurosa do Mediterrâneo. Esperando por tudo aquilo, um tipo de
elegância que nós nem conhecemos, uma coisa meio barriga tanquinho na Cote
d'Azur que nós não temos a menor idéia do que se trata, uma ideologia de lagostas e
de molho de lagostas que não temos a mais puta idéia, as pernas mais compridas do
mundo, as vozes mais extraordinariamente suaves. Posso até ouvir agora. Quero dizer
vamos botar as cartas na mesa, eu estou sempre atento a uma variedade de opiniões,
opiniões do globo inteiro, ofensas e privações, porque que eu vou ficar perdendo um
precioso tempo ouvindo duas...
Pausa
DEELEY: Você sabe o que fariam comigo na China se me encontrassem num blazer
branco. Me esquartejariam a sangue frio. Você sabe como é que eles são por lá.
Pausa ligeira
ANNA: Vocês serão bem-vindos à Sicília quando quiserem, os dois, são meus
convidados.
Silêncio
ANNA: (para Deeley, tranqüilamente) Eu gostaria que você compreendesse que não
vim aqui para perturbar mas para celebrar.
Pausa
Celebrar uma velha e inestimável amizade, uma coisa que se forjou entre nós muito
antes de você saber da nossa existência.
Pausa
Pausa
DEELEY: (para Kate) Nós já nos conhecíamos antes, sabia? A Anna e eu.
É, nos conhecemos no Stroller's Pub. Ali no canto. Ela ficou afim de mim. Claro que
eu era magrinho naqueles tempos. Bem elegante. Até um pouco petulante, para ser
honesto. Cabelo ondulado. Aquela coisa. Fizemos uma ceninha, ela se descontrolou.
Ela não tinha um tostão, então eu lhe paguei um drinque. Ela me olhava com olhos
enormes, tímida, aquela coisa. Ela fingia que era você naquela época. Fazia o papel
muito bem. Também usava as suas calcinhas, naquela época. Com muita gentileza me
deixou dar uma olhada. Generosidade aristocrata2. Admirável numa mulher. Fomos a
uma festa. Organizada por filósofos. Uma galera legal. A turma da Edgware Road.
Boa gente mesmo. Faz anos que não vejo ninguém daquela turma. Velhos amigos.
Sempre pensando. E dizendo o que pensavam. Eu sinto falta dessa gente. Estão todos
mortos, seja como for nunca mais vi nenhum deles. O grupo da Rua Maida Vale, Erik
o grandão e Tony, o pequenininho. Moravam ali por perto da biblioteca de
Paddington. No caminho da festa paramos num bar, paguei uma xícara de café, gente
barbada. Ela pensava que era você, falava pouco, muito pouco. Talvez ela fosse você.
Talvez fosse você tomando café ali comigo, falando pouco, muito pouco.
2 No original, “trueblue generosity”: termo intraduzível cuja única referência encontrada é aos
franceses-canadenses de sangue “puro”, ou seja, de descendência francesa direta. Atenção para o
fato de que é o mesmo termo usado por Deeley para descrever Kate na saída do cinema.
Pausa
DEELEY: Achou?
DEELEY: Queria?
DEELEY: Queria amparar o meu rosto, do jeito que só uma mulher sabe?
KATE: Você era tão diferente dos outros. Nós conhecíamos homens que eram brutais,
grosseiros.
DEELEY: Mas eu fui grosseiro, não fui, olhando por baixo da saia dela?
ANNA: (friamente) Olha, era a minha saia. Era eu. Me lembro do teu olhar... Muito
bem. Me lembro de você muito bem.
Pausa.
Me lembro de você estendida, morta. Você não sabia que eu estava olhando. Me
curvei sobre você. Seu rosto estava sujo. Você estava estendida, morta, com a cara
toda rabiscada de terra, várias frases sérias, mas a terra ainda estava úmida,
escorrendo pelo seu rosto, descendo até o pescoço. Seus lençóis estavam imaculados.
Fiquei contente. Me deixaria triste ver o seu cadáver em cima de lençóis sujos. Teria
sido deselegante. Quero dizer, no que me dizia respeito. No que dizia respeito ao meu
quarto. Afinal você estava morta no meu quarto. Quando você acordou meus olhos
estavam sobre você, fixos em você. Você tentou aplicar o meu truquinho, um dos
meus truques que você tinha copiado, meu sorrizinho lento, meu sorrizinho tímido e
lento, meu jeito de inclinar a cabeça de lado, de deixar os olhos semicerrados, esse
jeitinho que nós duas conhecíamos tão bem, mas não funcionou, o sorriso quebrou o
barro nos cantos da sua boca e endureceu. Você endureceu sorrindo. Procurei
lágrimas mas não vi nenhuma. As pupilas não estavam nos seus olhos. Os ossos
arrebentavam a pele do seu rosto. Mas era tudo sereno. Não havia sofrimento. Tudo
havia acontecido em outro lugar. Não achei necessários os ritos funerais. Ou qualquer
cerimônia. Senti que a hora e a época do ano eram apropriadas e que ao morrer
sozinha e suja de terra você tinha agido com muita dignidade. Estava na hora do meu
banho. Tomei um banho bem longo, saí, andei pelo quarto, reluzente, puxei uma
cadeira, sentei nua ao seu lado e observei você.
Pausa
Quando eu trouxe ele pro quarto, o seu corpo, é claro, tinha desaparecido. Era um
alívio ter um corpo diferente no meu quarto, um corpo de homem se comportando de
modo muito diferente, fazendo todas essas coisas que eles fazem e que acham ótimas
como sentar com uma perna em cima do braço da poltrona. Podíamos escolher entre
duas camas. A sua ou a minha. Para deitar sobre as cobertas, ou embaixo delas.
Roçando os narizes em cima ou embaixo delas. Ele gostou da sua cama e achou que
ficava diferente deitado nela por ser homem. Mas uma noite eu disse deixa eu fazer
uma coisa, uma coisinha, um pequeno truque. Ele estava deitado na sua cama. Olhou
pra mim na maior expectativa. Estava contente. Achando que eu tinha aprendido
direitinho. Achando que eu iria tomar a iniciativa sexualmente, algo que ele esperava
há muito tempo. Eu cavei no canteiro da janela, onde você tinha plantado as nossas
lindas violetas, enchi uma tigela e sujei toda a cara dele de terra. Ele resistiu... com
força. Não queria deixar eu sujar a cara dele, borrar a cara dele, não deixou. Em vez
disso, sugeriu casamento e uma mudança de ambiente.
Ligeira pausa
Pausa
Ele me perguntou uma vez, mais ou menos nessa época, quem tinha dormido naquela
cama antes dele. Eu disse que ninguém. Absolutamente ninguém.
Longo silêncio.
(Anna se levanta, anda até a porta, pára. Olha pros dois. Silêncio. Deeley começa a
soluçar, bem silenciosamente. Anna de pé, imóvel. Anna se vira, desliga as luzes,
senta no divã, deita. Os soluços param. Silêncio. Deeley fica de pé. Anda alguns
passos. Olha ambos os divãs. Vai até o divã de Anna, olha pra ela. Ela está imóvel.
Silêncio. Deeley anda em direção à porta, pára, de costas para elas. Silêncio. Deeley
se vira. Se aproxima do divã de Kate. Senta no divã dela, deita-se sobre o colo dela.
Longo silêncio. Deeley ergue o corpo vagarosamente até ficar sentado. Se levanta do
divã. Anda vagarosamente até a poltrona. Senta, afundado. Silêncio. Luzes que sobem
abruptamente. Muito brilhantes.
Deeley na poltrona.
Anna deitada no divã.
Kate sentada no divã).
FIM