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11/06/2021 Ciência Hoje | Movendo as engrenagens da vida

MOVENDO AS ENGRENAGENS DA VIDA


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sugestão de que nossa espécie compartilhou ancestrais relativamente recentes com os símios, lançada por Charles Darwin no século 19, causou eno
voroço na época. Muitos contemporâneos do naturalista não admitiam a existência de parentesco entre humanos e chimpanzés (imagens: Wikimedia
ommons).

evolução é um processo contínuo e incessante que afeta todos os organismos vivos. Mutações no material genético acumulam-se ao longo de geraçõ
vam a modificações na morfologia, na fisiologia e no comportamento dos organismos.

ocorrência desse processo só começou a ser compreendida pela ciência e aceita pela sociedade na segunda metade do século 19. A sugestão de que
ossa espécie compartilhou ancestrais comuns relativamente recentes com os símios, por exemplo, causou um enorme alvoroço quando foi lançada p
harles Darwin (1809-1882) e, de certa forma, obscureceu e tirou do foco das discussões sua brilhante teoria evolutiva.

uitos contemporâneos de Darwin não admitiam a existência de um parentesco dos humanos com os chimpanzés – uma espécie desprovida da lingua
ticulada e do pensamento abstrato, apesar da semelhança física com o Homo sapiens. Hoje, porém, a genética mostrou que homens e chimpanzés
ompartilham mais de 99% de seu genoma.

utro problema relacionado com a aceitação da evolução é que muitos têm bastante dificuldade para entender que esse é um processo constante, que
stá em ação neste exato momento, sobre os humanos e demais seres vivos. Muitos ainda vêem o processo evolutivo como responsável pela existênci
mensas criaturas extintas como os dinossauros, mas se esquecem que, para realizar tal proeza, foram necessários milhões de anos.

or esse motivo, temos dificuldades em entender que o Homo sapiens não é uma espécie acabada e tampouco o ponto final da cadeia evolutiva, mas e
m constante evolução. Para que isso ocorra, é necessária a presença de variações genéticas e a ocorrência de um processo de seleção que, ao agir s
divíduos com patrimônio genético diferente, afeta sua capacidade de propagar seus genes para as gerações futuras, um processo conhecido entre o
eneticistas como fitness ou aptidão.

versidade genética
espécie humana é riquíssima em variação genética, e as diferenças na aparência das pessoas são apenas parte dessa variabilidade. Acredita-se que
xistam cerca de 10 milhões de pares de base do código genético que diferem entre humanos. Além disso, uma nova dose de variabilidade é adicionad
ada geração na forma de mutações.

oda essa variabilidade constitui um imenso campo de ação para a seleção natural. Algumas versões de genes (alelos) têm um impacto negativo sobre
ptidão dos indivíduos e fazem com que seus portadores tenham uma prole menos numerosa nas gerações seguintes. Outras, porém, têm um impacto
ositivo e tornam seus portadores proporcionalmente mais bem representados nas gerações futuras. Em muitos casos, esses alelos se transformam
rtualmente na única forma gênica presente em uma dada população (um processo conhecido como fixação).

or que, então, as mutações ruins não são totalmente eliminadas enquanto aquelas que proporcionam vantagens são fixadas? Uma das razões é que a
ptidão se modifica à medida que ocorrem mudanças no ambiente. Assim, a “melhor” versão de um gene atual pode ser diferente da que existia há 100
nos ou da que existirá daqui a 50 anos. O alelo que representa maior vantagem para a aptidão de um indivíduo também pode variar de um local para o

ém disso, é importante lembrar que a manutenção de alguns poucos indivíduos que apresentem alelos diferentes dos da maioria de uma população é
ssencial para a preservação da mesma durante um longo período temporal, fazendo frente às mudanças ambientais e, conseqüentemente, a novos
tores de seleção natural.

olerância à lactose

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eiteira, tela de 1658-1660 do pintor holandês Jan Vermeer van Delft (1632-1675).

m exemplo interessante da evolução humana recente é a tolerância de adultos à lactose. Originalmente, os seres humanos, como muitos outros
amíferos, eram alimentados com leite apenas no início da vida e, na fase adulta, eram intolerantes à lactose. Contudo, em populações que tinham
odutos lácteos à disposição e o hábito de consumir leite diariamente, foram selecionados alelos que expressavam durante toda a vida dos indivíduos
nzimas que digerem lactose. O mesmo não ocorreu em grupos que não tinham acesso a esses alimentos.

ganho calórico e nutricional proporcionado por esses produtos gerou vantagens para as populações que os consumiam diariamente. Análises genéti
essa enzima indicaram que os alelos relacionados com a tolerância à lactose na idade adulta evoluíram recentemente em descendentes das primeira
opulações que consumiam diariamente leite e derivados.

seqüenciamento do genoma humano e a criação de um catálogo detalhado da diversidade de nossa espécie, conhecido como HapMap, têm gerado
rramentas poderosas para que possamos compreender os mecanismos associados com a seleção natural sobre alelos de nossa espécie. Essas e out
rramentas biotecnológicas têm permitido detectar a ocorrência de seleção positiva em humanos em genes relacionados com a fala, com funções
erebrais, com a cor da pele e a resistência a doenças.

mbora seja difícil prever o ambiente no qual nossa espécie viverá no futuro, doenças causadas por patógenos permanecerão um fator importante par
ossa espécie em um futuro próximo, principalmente em países pobres.

gumas populações européias e do norte da Ásia apresentam um alelo raro que confere resistência contra o vírus HIV, causador da Aids. Os efeitos de
elo ainda não se fazem notar, pois ele não está presente em populações que sofrem taxas elevadas de infecção por esse vírus (principalmente na Áfr
e a epidemia de HIV/Aids se tornar mais severa nessas populações ou se surgirem novas mutações nas populações sob epidemia, uma resistência à
oença pode se desenvolver no futuro.

claro que esse processo não ocorrerá de forma rápida e milhões de indivíduos morrerão antes que possamos combater de forma natural essa doença
ém do mais, o vírus pode também desenvolver mecanismos para evitar que isso ocorra.

caso da malária

cada ano, cerca de 500 milhões de pessoas são infectadas por protozoários do gênero Plasmodium, causadores da malária. Em algumas populações
storicamente afetadas pela doença, a seleção de pelo menos seis genes levou à evolução de resistência a essa enfermidade.

utras doenças têm seguido um caminho similar. Um bom exemplo é o da malária, contra a qual a humanidade tem lutado há milênios – a cada ano, ce
e 500 milhões de pessoas são infectadas por protozoários do gênero Plasmodium, causadores da doença. Esse processo levou à evolução, em alguma
opulações historicamente afetadas pela malária, de resistência à doença, por meio da seleção de pelo menos seis genes.

staríamos, então, interferindo nesse processo natural ao criarmos vacinas e tratamentos contra essas doenças? De certa forma, sim, pois modificam
gime de seleção ao qual nossa espécie está exposta. Do ponto de vista da seleção natural, os efeitos de uma doença sobre nossa aptidão deixam de
uar quando tratamos dessa patologia.

ontudo, nem sempre o tratamento elimina a doença e nem todas as pessoas são tratadas. Voltemos ao exemplo da malária: essa doença foi erradicad
ul dos Estados Unidos e em Cingapura, mas em lugares como o Brasil, os programas de erradicação não têm alcançado sucesso.

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seleção natural mantém os alelos que causam doenças genéticas em baixa freqüência nas populações. Contudo, novos alelos relacionados com essa
atologias são criados em populações humanas por meio de novas mutações com a mesma velocidade em que são eliminados de outras pela seleção
atural. Essa freqüência é determinada parcialmente pelas vantagens ou desvantagens que esses alelos conferem a seus portadores. Será que, ao
atarmos de pessoas com doenças genéticas, estaríamos, portanto, auxiliando a conservar esses alelos nas populações humanas?

importante se estabelecer que qualquer mudança na freqüência gênica devido a esses tratamentos somente ocorrerá após várias gerações, um perí
uficiente para que novos estudos genéticos sejam conduzidos e novas alternativas sejam desenvolvidas. Além disso, esses tratamentos não se distrib
e forma igualitária a toda a população humana, excluindo muitos indivíduos que não têm acesso a eles.

om sua capacidade de moldar dia após dia as espécies vivas às exigências ambientais, a evolução é a força motriz da vida no planeta. Cento e cinqüe
nos após a formulação da teoria da evolução por seleção natural por Charles Darwin e Alfred Wallace, sucessivas evidências tornaram esse processo
questionável nos dias de hoje. O paradoxal é que, apesar disso, um número cada vez maior de pessoas mal informadas levanta dúvidas sobre a sua
corrência. Nem parece que estamos no século 21… 

erry Carvalho Borges


olunista da CH On-line 
2/05/2008

UGESTÕES PARA LEITURA


ersaglieri et al. Genetic signatures of strong recent positive selection at the lactase gene. American Journal of Human Genetics 74: 1111-20, 2004.
abeti et al. The case for selection at CCR5-D32. PLoS Biology 3: e378, 2005.
ephens et al. Dating the origin of the CCR5-D32 AIDS-resistance allele by the coalescence of haplotypes. American Journal of Human Genetics 62: 150
98.
shkoff et al. Haplotype diversity and linkage disequilibrium at human G6PD: recent origin of alleles that confer malarial resistance. Science 293: 455-6
001.
he International HapMap Consortium. A haplotype map of the human genome. Nature 437: 1299-1320, 2005.
Matéria publicada em 02.05.2008

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