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14/04/2021 Como o cristianismo fundamenta e orienta a Direita global – Iser Assessoria

Artigo Notícia Publicação

Como o cristianismo fundamenta e


orienta a Direita global
Em livro recém-publicado, vaticanista Iacopo Scaramuzzi
mostra como Igrejas cristãs fundamentam e orientam a
direita global
iserassessoria • 27 de julho de 2020  14 minutos lidos

Entrevista com o jornalista Iacopo Scaramuzzi


Por Lucas Ferraz para https://theintercept.com/ – 27 de Julho de 2020.

De Roma a Washington, de Moscou a Paris, de Budapeste a Brasília, a


geogra a política e religiosa da extrema direita que ascendeu nos
últimos anos contém um particular denominador comum: a
instrumentalização do cristianismo como estratégia política.

O sacro tornou-se um meio para marcar território, distinguir inimigos e


– quem sabe – erradicar a diversidade, seja ela representada por gays,
muçulmanos, imigrantes ou qualquer outra “modernidade” que ameace a
tríade “Deus, pátria e família”.

Do ex-capitão do Exército defensor da tortura e de milicianos ao ex-


araponga Vladimir Putin, o todo-poderoso da Rússia que também
abraçou a Igreja Ortodoxa de seu país, da jovem Marion Marechal-Le
Pen na França, integrante da terceira geração de uma família

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ultraconservadora que está numa cruzada contra os muçulmanos, aos


espanhóis do Vox, a extrema direita global desfruta dos símbolos e
supostos valores do cristianismo.

Trata-se de um caso de marketing político (particularmente bem-


sucedido em alguns ambientes) que encontrou ressonância também em
pensadores, instituições, cardeais e bispos no interior da Igreja Católica
insatisfeitos com o ponti cado do papa Francisco. O argentino acabou
se transformando num inimigo comum para todos eles, sejam políticos
ou religiosos.

A eleição de Donald Trump em 2016, com o entusiasmado apoio que o


republicano recebeu – e ainda recebe – de católicos tradicionalistas e
demais grupos conservadores, serviu como ponto de partida para a
consolidação do que muitos estudiosos classi cam de “nacional-
catolicismo”.

O fenômeno opera atualmente numa rede global e é um dos pilares de


projetos como o de Viktor Orbán e sua democracia cristã iliberal na
Hungria, do recém-reeleito Andrzej Duda e sua tradição sacra na
Polônia, de Matteo Salvini, que tentou se tornar homem forte do
governo da Itália  brandindo rosários e falando em nome de Maria, além
de ter pavimentado a vitória de Jair Bolsonaro e seu “Deus acima de
todos”.

“Eles dizem defender o cristianismo, mas o transformam, infelizmente,


em uma ideologia petri cada, num esqueleto, num monumento aos
caídos”, escreve o vaticanista Iacopo Scaramuzzi,  autor de um pequeno
mas informativo livro recém-publicado na Itália em que destrincha como
o cristianismo virou uma peça importante na radicalização política da
extrema direita.

Intitulada “Dio? In fondo a destra – Perché i populismi sfruttano il


cristianesimo” (em tradução literal, Deus? No fundo à direita – Porque os
populismos desfrutam do cristianismo), a obra estampa na capa quatro
dos principais expoentes desse fenômeno: Salvini, Trump, Bolsonaro e
Putin. Jornalista da agência italiana Askanews, Scaramuzzi acompanha o
cotidiano do Vaticano em Roma desde 2006.

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No meio da tempestade que agita o mundo, o cristianismo é explorado


como uma “estrutura sólida”, um “outro país protegido”, lugar de paz e
prosperidade para a “família tradicional” – a dos que os brasileiros
conhecem como “homens de bem”. Não importa se, na prática, a política
implementada seja notadamente marcada pela ausência de valores
cristãos.

Como escreve Scaramuzzi, a exploração visa louvar um passado


supostamente glorioso, além de ter um forte apelo a todos aqueles
perdidos com as crises econômica, política, cultural, da globalização etc.
A estratégia é mais ou menos simples e fácil de ser compreendida pelo
eleitorado. O objetivo também é pueril: criar um sentido comum e
respeitabilidade, conta o autor.

No capítulo dedicado ao Brasil, o título dado por Scaramuzzi é um


sucinto resumo do país de Bolsonaro: “Aliança entre militares,
neoliberais e pentecostais”. Ele ressalta que o presidente brasileiro
(católico) tem vários referentes religiosos, além dos pastores

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evangélicos, entre eles católicos tradicionalistas como o youtuber


Bernardo Küster, e que frequentemente faz uso político do cristianismo
quando transmite ao eleitorado a necessidade de um sacrifício, “quase
um martírio”, para se afastar do mal.

Isso vale para defender reformas econômicas de cunho neoliberal, para


falar da facada que quase o matou na campanha eleitoral ou ainda sobre
a necessidade de promover uma guerra cultural contra os valores
considerados de “esquerda” para proteger a família.

A formação de um “povo puro” a partir da instrumentalização do


cristianismo, mostra o autor, encontra ferrenha oposição no atual chefe
do Vaticano, que já declarou que mensagens revestidas de ódio e certas
políticas como as que preveem muros contra imigrantes nada têm de
cristãs. O desencontro entre essas correntes tem sido uma das marcas
do papado de Jorge Mario Bergoglio.  “Não é surpresa que existe um
pedaço da igreja que se reconhece mais em Salvini do que no papa
Francisco”, me disse Scaramuzzi num bar do centro de Roma.

Leia, a seguir, a entrevista com o pesquisador.

The Intercept Brasil – O seu livro mostra métodos semelhantes da


extrema direita em diversos países para explorar politicamente o
cristianismo, muitas vezes para criar uma imagem de respeito ou mesmo
para seduzir o eleitorado. É só uma estratégia eleitoral ou estamos
diante de um retorno do fundamentalismo religioso à política? 

Iacopo Scaramuzzi – Não estamos na fase do retorno do sacro, mas sim


na fase da nostalgia. O que é muito diferente. É mais a recordação
romantizada de um passado que não existe mais e que talvez nunca
tenha existido. É um pequeno retrato de um mundo antigo. Esse ideal de
mundo, com uma família tradicional formada por homem e mulher, é
idealizado. Parece o mundo de uma peça publicitária, todo mundo loiro e
feliz.

Sempre houve um cruzamento entre religião e política, seja no


cristianismo, no judaísmo, no islã, no hinduísmo. O que surpreende
nesses últimos anos é a forma como a religião católica vem sendo
instrumentalizada. Ela é usada como um objeto, de forma
completamente super cial. Reduzida a um elemento identitário.

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Católicos conservadores ou progressistas sempre existiram, isso faz


parte da história e não é novo. Mas, em poucos anos, essa estratégia
virou algo comum para a direita populista em muitos países.

Todas as religiões estão um pouco atravessadas pela questão da


secularização [processo no qual a religião perde in uência sobre as
diversas esferas da vida social] e são reutilizadas de forma nostálgica e
instrumentalizada, seja por parte do populista de direita europeu ou do
jovem jihadista que não tem ideia nenhuma do que é o islã e depois se dá
conta de que aquela é a sua identidade e se casa com ela. Não se trata de
radicalização do islã, mas da islamização do radicalismo. Agora acontece
algo semelhante com o catolicismo. Qualquer um pega um pedaço que
lhe é mais cômodo e utiliza. Contradizem uma história etnográ ca,
teológica, doutrinária, mas isso não é importante para esses líderes.

Você descreve estratégias de radicalização a partir do cristianismo que


acabaram adaptadas às realidades de cada país. Não há um coordenador
por trás disso?

As semelhanças entre os países são muitas. Utilizam palavras de ordem e


referências que demonstram uma certa coordenação. A ideia de fazer o
livro surgiu após eu escrever sobre a coincidência de vários políticos se
referirem à Nossa Senhora de Fátima. Salvini usa a santa para defender a
eleição de seus aliados. Mais ou menos no mesmo dia [de maio de 2019],
Bolsonaro participou de uma cerimônia em Brasília com um grupo de
parlamentares católicos ao lado de Nossa Senhora de Fátima. Depois
Viktor Orbán e seu chefe de gabinete falam de Fátima. Então logo você
entende que isso não é casual. Há uma coordenação. Há toda uma
história sobre Nossa Senhora de Fátima, que funcionou como um ímã de
toda a mitologia política anticomunista do século passado. A imagem
dela foi bastante utilizada politicamente, sobretudo por Salazar [António
de Oliveira Salazar, ditador português], que citava frequentemente os
três “Fs”, futebol, fado e Fátima.

A conclusão que cheguei é que há uma coordenação entre um grupo de


ideólogos, que se encontram em eventos, em Roma, onde ocorreu um
em fevereiro, em Budapeste, onde houve um encontro dos cristãos
perseguidos. Eles se conhecem, trocam informações. O lho de
Bolsonaro [o deputado federal Eduardo Bolsonaro] encontra Salvini,
Orbán se encontra com o chefe de gabinete de Trump. Há uma rede.

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Esses políticos têm estrategistas que elaboraram as ideias. Acho errado


reduzir tudo a um grande arquiteto, uma pessoa que está por trás de
tudo. É quase uma teoria da conspiração que agrada tanto a esses
populistas de direita.

Quando exatamente começa essa exploração do cristianismo?

Simpli cando, começa com a crise da globalização, a crise econômica de


2008. Esse coordenação será compreendida ao longo dos anos. Depois,
em 2015, vem a crise da imigração na Europa. É um processo longo e
complexo.  Se olharmos para políticos como Salvini, Putin e Bolsonaro,
vamos ver que a conversão deles acontece de maneira muito rápida. Eles
tomam esse caminho de forma muito super cial. Por exemplo, Salvini,
na Itália, não tem nenhum background católico. Nunca foi interessado
em religião, não vai à missa. Salvini usa com frequência um rosário, que
ele nunca rezou. Não são políticos interessados nos ensinamentos da
igreja, muito menos em temas como o acolhimento aos imigrantes, tão
caro ao papa. Trata-se de uma evolução muito diferente da agenda
teocon conservadora que esteve em moda durante o governo de George
W. Bush nos EUA e de [Silvio] Berlusconi na Itália.

Agora, são mensagens dirigidas a um eleitorado perdido, seja por causa


da secularização, de uma sociedade multicultural, com uma mistura de
pessoas de diferentes etnias e religiões, onde o percentual de católicos é
cada vez menor. De frente a essa mudança de panorama sócio-etno-
religiosa, há um pedaço da sociedade, na Itália e também em outros
países, que reconhece nesses símbolos religiosos da extrema direita
qualquer coisa de confortável. Os ideólogos entenderam que esse é um
caminho a ser explorado. O cristianismo é uma linguagem que mais ou
menos todos entendem, há uma referência cultural, traz um senso de
identidade, mesmo se a maioria do eleitorado não frequenta a igreja. O
referimento tem pouco a ver com a fé cristã, funciona mais como
marcador identitário. Isso se tornou forte nos últimos anos e tenho a
convicção de que vai aumentar com a pandemia.

Não há um grande arquiteto por trás desse uso político do cristianismo,


como você diz, mas ao menos há um alvo claro, que é o papa.

Isso é muito interessante. Roma, que para muitos era uma cidade em
declínio, voltou a ser um centro importante e de atração nesse cenário.

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Isso explica porque Steve Bannon queria criar um centro de estudos


para novos populistas ao lado de Roma. Aleksandr Dugin, que não é o
ideólogo de Putin, mas uma pessoa muito importante no seu círculo,
vem a Roma expor suas ideias no prédio do Casa Pound [movimento e
partido politico italiano neofascista, que se autointitula fascistas do
terceiro milênio].

Orbán e Marechal-Le Pen vêm a Roma para falar de João Paulo II e de


sua aliança com [o ex-presidente e ícone conservador americano
Ronald] Reagan contra o comunismo. Duda, o presidente polonês
recém-eleito, disse que sua primeira viagem, quando a covid-19 permitir,
será a Roma, por causa do centenário de João Paulo II [comemorado em
2020]. Roma, como capital do cristianismo, voltou a ter importância.

O renascimento desse nacionalismo que abraça o cristianismo como


uma de suas bases de sustentação acontece exatamente no momento
em que há no Vaticano um papa que vai para outra direção. Um papa
que, com todos os seus limites, abriu a Igreja para o mundo. No mesmo
momento em que esses movimentos se fecham em seus países, usando
um cristianismo que o próprio Francisco diz não ser cristianismo. Cria-
se um con ito mundial em que Roma se torna um ponto de atração, um
alvo e também um ponto de observação privilegiado.

Francisco já fez várias críticas aos populismos da direita, inclusive


citando recentemente que as declarações de ódio de alguns políticos o
fazem lembrar dos anos 1930 (quando houve a ascensão de Hitler e do
nazismo).

Esse papa criou condições para um movimento que representa uma


contradição na história recente da Igreja Católica. Mesmo que não seja
um revolucionário, Bergoglio é um reformista que mudou algumas
coisas. Ele fala coisas diversas não só dos católicos conservadores, mas
também dos seus dois antecessores e do mainstream católico. Ele se liga
ao Concílio Vaticano II [realizado na primeira metade dos anos 1960 com
o objetivo de modernizar a Igreja Católica, entre outras coisas tornando-
a mais próxima dos pobres]. Nos últimos trinta anos o catolicismo
conservador foi majoritário e encontrou referências em papas como
João Paulo II e Bento XVI, pontí ces que deixaram de lado os pontos do
concílio e que zeram alianças conservadoras.

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Enquanto esse papa abria a igreja, em poucos anos houve a eleição de


Trump, Mauricio Macri, Bolsonaro, a reeleição de Orbán, de Erdogan. O
mundo foi para a direita de uma forma muito rápida e impressionante, e
o papa, que não pode ser considerado de esquerda, mas diz muitas
coisas de esquerda, claramente mudou a dinâmica de seu ponti cado.
Essa mudança aconteceu signi cativamente após a eleição de Trump. A
oposição a ele cresceu rapidamente depois daquela eleição. Os
opositores caram mais orgulhosos. Começaram as dúvidas
doutrinárias, os manifestos de cardeais opositores e um deles fez até um
pedido de demissão de Bergoglio.

O que esses grupos católicos conservadores, cardeais e outros líderes


religiosos ganham com essa aliança com políticos da extrema direita?

A história que vemos hoje é uma mutação daquele conservadorismo


católico dos últimos 30 anos. Políticos como Trump, Salvini, Bolsonaro,
Orbán são uma evolução em relação a Bush, Berlusconi e outros dos
anos 2000. São muito mais radicais, mais nacionalistas, mais anti-União
Europeia, muito mais protecionistas. Eles vêm daquela história, quando a
política também tinha uma aliança com a Igreja Católica. Então não é
surpresa que existe um pedaço da igreja que se reconhece mais em
Salvini do que no papa Francisco.

Uma parte dos católicos está muito perdida e cansada do mundo de


Francisco, que fala de pobreza, de ambientalismo, de crise do
capitalismo, então isso causou uma fratura. Muitos desses líderes, como
Bannon e Salvini, colocaram na cabeça que se deve fazer uma oposição a
Francisco, uma oposição eclesial. Muitas vezes nanciando-a, mas
também mantendo contatos com cardeais contrários.

Há um incômodo e uma preocupação no confronto com o papa, estamos


numa época histórica de desencontros e os líderes religiosos também se
radicalizaram. E estão ali a testemunhar, do seu ponto de vista, o que é o
catolicismo. Também há uma divisão interna entre os opositores sobre
como enfrentar o papa.

Não há um grande arquiteto por trás desse uso político do cristianismo,


como você diz, mas ao menos há um alvo claro, que é o papa.

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Isso é muito interessante. Roma, que para muitos era uma cidade em
declínio, voltou a ser um centro importante e de atração nesse cenário.
Isso explica porque Steve Bannon queria criar um centro de estudos
para novos populistas ao lado de Roma. Aleksandr Dugin, que não é o
ideólogo de Putin, mas uma pessoa muito importante no seu círculo,
vem a Roma expor suas ideias no prédio do Casa Pound [movimento e
partido politico italiano neofascista, que se autointitula fascistas do
terceiro milênio].

Orbán e Marechal-Le Pen vêm a Roma para falar de João Paulo II e de


sua aliança com [o ex-presidente e ícone conservador americano
Ronald] Reagan contra o comunismo. Duda, o presidente polonês
recém-eleito, disse que sua primeira viagem, quando a covid-19 permitir,
será a Roma, por causa do centenário de João Paulo II [comemorado em
2020]. Roma, como capital do cristianismo, voltou a ter importância.

O renascimento desse nacionalismo que abraça o cristianismo como


uma de suas bases de sustentação acontece exatamente no momento
em que há no Vaticano um papa que vai para outra direção. Um papa
que, com todos os seus limites, abriu a Igreja para o mundo. No mesmo
momento em que esses movimentos se fecham em seus países, usando
um cristianismo que o próprio Francisco diz não ser cristianismo. Cria-
se um con ito mundial em que Roma se torna um ponto de atração, um
alvo e também um ponto de observação privilegiado.

Francisco já fez várias críticas aos populismos da direita, inclusive


citando recentemente que as declarações de ódio de alguns políticos o
fazem lembrar dos anos 1930 (quando houve a ascensão de Hitler e do
nazismo).

Esse papa criou condições para um movimento que representa uma


contradição na história recente da Igreja Católica. Mesmo que não seja
um revolucionário, Bergoglio é um reformista que mudou algumas
coisas. Ele fala coisas diversas não só dos católicos conservadores, mas
também dos seus dois antecessores e do mainstream católico. Ele se liga
ao Concílio Vaticano II [realizado na primeira metade dos anos 1960 com
o objetivo de modernizar a Igreja Católica, entre outras coisas tornando-
a mais próxima dos pobres]. Nos últimos trinta anos o catolicismo
conservador foi majoritário e encontrou referências em papas como

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João Paulo II e Bento XVI, pontí ces que deixaram de lado os pontos do
concílio e que zeram alianças conservadoras.

Enquanto esse papa abria a igreja, em poucos anos houve a eleição de


Trump, Mauricio Macri, Bolsonaro, a reeleição de Orbán, de Erdogan. O
mundo foi para a direita de uma forma muito rápida e impressionante, e
o papa, que não pode ser considerado de esquerda, mas diz muitas
coisas de esquerda, claramente mudou a dinâmica de seu ponti cado.
Essa mudança aconteceu signi cativamente após a eleição de Trump. A
oposição a ele cresceu rapidamente depois daquela eleição. Os
opositores caram mais orgulhosos. Começaram as dúvidas
doutrinárias, os manifestos de cardeais opositores e um deles fez até um
pedido de demissão de Bergoglio.

O que esses grupos católicos conservadores, cardeais e outros líderes


religiosos ganham com essa aliança com políticos da extrema direita?

A história que vemos hoje é uma mutação daquele conservadorismo


católico dos últimos 30 anos. Políticos como Trump, Salvini, Bolsonaro,
Orbán são uma evolução em relação a Bush, Berlusconi e outros dos
anos 2000. São muito mais radicais, mais nacionalistas, mais anti-União
Europeia, muito mais protecionistas. Eles vêm daquela história, quando a
política também tinha uma aliança com a Igreja Católica. Então não é
surpresa que existe um pedaço da igreja que se reconhece mais em
Salvini do que no papa Francisco.

Uma parte dos católicos está muito perdida e cansada do mundo de


Francisco, que fala de pobreza, de ambientalismo, de crise do
capitalismo, então isso causou uma fratura. Muitos desses líderes, como
Bannon e Salvini, colocaram na cabeça que se deve fazer uma oposição a
Francisco, uma oposição eclesial. Muitas vezes nanciando-a, mas
também mantendo contatos com cardeais contrários.

Há um incômodo e uma preocupação no confronto com o papa, estamos


numa época histórica de desencontros e os líderes religiosos também se
radicalizaram. E estão ali a testemunhar, do seu ponto de vista, o que é o
catolicismo. Também há uma divisão interna entre os opositores sobre
como enfrentar o papa.

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O papa Francisco se move bem nessa história? Ele já fez críticas aos
populistas da direita, mas muitas vezes parece tomar distância e não é
muito incisivo, sobretudo em relação a líderes como Bolsonaro e Trump.

É verdade, mas acho que ele foi mais direto em relação a Bolsonaro. Ele
escreveu uma carta para Lula [quando o ex-presidente estava preso],
depois o recebeu em Roma. Enviou recentemente respiradores para o
Brasil, dizendo ao núncio apostólico que no país havia um grande
problema com o coronavírus. Ele falou certa vez numa homilia sobre
como se faz um golpe, com acosso judicial, que depois é explorado pela
mídia. Faltava só dizer nome e sobrenome, mas era claro para todo
mundo que ele se referia à situação vivida por Dilma Rousseff.

Acho que há pelo menos duas razões para explicar isso. Primeiro, o seu
papel. Ele fala de maneira bastante direta, mas enquanto papa, não pode
promover uma guerra do Vaticano contra Estados Unidos ou Brasil.
Depois, ele é uma autoridade espiritual, não política. O papa dá
indicação de fundo moral, mas o Vaticano já aceitou a diferença entre
Igreja e estado faz tempo. A Igreja não vai entrar em questões político-
partidárias, esse é um ponto saudável da separação entre estado e Igreja.

E acho que existe também uma decisão de salvar a unidade da Igreja. Ele
inclusive diminuiu um pouco a velocidade das reformas que estava
promovendo para preservar essa unidade. Francisco entendeu que
dentro e fora há o risco de uma ruptura, um cisma, pequeno ou grande,
mas existe o risco. E um dos papéis do papa é preservar a unidade da
Igreja. Bolsonaro, Trump ou Putin são referências para uma parte de
cardeais, monsenhores e bispos, e também para uma parcela dos éis,
que vê a modernidade como um incômodo e critica os imigrantes. O
papa vai para outro lado, mas não pode ignorar um pedaço do mundo
católico.

Uma eventual derrota de Trump neste anos é esperada como portadora


de novos ares, principalmente no Brasil. Se isso ocorrer, mudará também
a dinâmica no Vaticano?

Sim, mudaria o mundo e também o Vaticano. Há quatro anos, esse papa


parecia realmente sozinho. Ele iniciou o ponti cado com grande apoio
popular, depois começam as eleições que praticamente deixaram
Bergoglio sozinho ao falar sobre China, islã, imigrantes etc. Mas alguma

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coisa aconteceu nos últimos anos. O jornal Financial Times, ainda antes
do coronavírus, falava da crise do capitalismo, da desigualdade. Quando
o papa escreveu a Laudato Sì [encíclica ecológica divulgada em 2015], ele
era uma pessoa bastante isolada nessa questão ambiental. Agora tem a
Greta Thunberg, goste-se ou não dela. O coronavírus criou, em quem
quer entender, uma consciência sobre a relação com o meio ambiente, o
tempo, o consumo. Nos últimos anos, Francisco passou a estar menos
isolado. Esse papa sabe muito de política, de política externa, e ele levou
seu papado para fora da Europa. Mas houve uma coincidência com a
chegada de todas essas questões da extrema direita a Roma.

Este artigo se encontra em


https://theintercept.com/2020/07/27/entrevista-direita-populista-
usa-cristianismo-para-criar-sentido-comum-e-respeitabilidade/

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