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Marcus Orione
Jorge Luiz Souto Maior
Flávio Roberto Batista
Pablo Biondi1
Engels e Kautsky, certa feita, mencionaram com muito acerto que o direito
“ocupa posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx”, aparecendo em
primeiro plano “a legitimidade histórica, as situações específicas, os modos de
apropriação, as classes sociais de determinadas épocas” (ENGELS; KAUTSKY, 2012,
p. 34). Em Marx, portanto, o direito nunca aparece no centro da análise. Ainda assim,
mesmo tangenciando o fenômeno jurídico, a investigação marxiana deixou as
indicações necessárias para uma compreensão científica e materialista do direito,
sobretudo em O capital. Isto porque a crítica da economia política, ao consistir numa
crítica do cerne da sociedade burguesa, de sua “anatomia” (MARX, 2008, p. 47),
permite um vislumbre mais acurado sobre os outros aspectos da vida social do
capitalismo, sobretudo no tocante às suas formas históricas.
A crítica marxista do direito propriamente dita é posterior, portanto, a Marx e
Engels, ainda que este último tenha se aproximado muito dela ao estudar a ideologia
jurídica. Foi somente a partir do início do século XX que o fenômeno jurídico começou
a receber uma atenção maior por parte da análise marxista, e isto se deve ao evento mais
importante do período, e quiçá de todo o século: a revolução russa.
Com o triunfo da revolução de outubro de 1917, instaurou-se na Rússia uma
ditadura revolucionária do proletariado sob a direção política do partido bolchevique.
Naquele momento, teve início um processo de transição ao socialismo, que se
materializou no desmantelamento do aparelho de Estado burguês e na expropriação da
burguesia russa. E foi no calor da tentativa de construção de uma nova sociedade, isto é,
1
Os autores são tradutores da obra de Bernard Edelman, “A legalização da classe operária” (Editora
Boitempo, 2016) e, com exceção de Pablo Biondi, que é Doutor em Direitos Humanos pela
Faculdade de Direito da USP, são professores da Faculdade de Direito da USP.
de ultrapassagem da ordem social burguesa, que o problema do direito se colocou para
os marxistas como um tema a ser aprofundado.
Pode-se dizer que o marco inaugural da crítica marxista do direito é a polêmica
entre Petr Stucka e Evgeny Bronislavovich Pachukanis. Na referida polêmica, houve um
rico debate metodológico sobre a abordagem do direito, sendo que a contribuição
pachukaniana revelou-se muito mais sofisticada – ainda que tenha sido relegada ao
esquecimento por força da contrarrevolução burocrática stalinista, a qual, inclusive,
custou a vida do autor. De qualquer maneira, é certo que
Vamos explicar melhor como o trabalho é o único valor que gera valor.
Uma pedra, na natureza, é apenas uma pedra. Descoberto que se trata de uma jazida
de plutônio, trata-se de matéria-prima importantíssima. No entanto, acreditar que a
jazida ou os instrumentos utilizados no seu processamento é que geram a riqueza se
trata de uma ingenuidade.
O trabalho, nessa fase da obra de Marx, que culmina com O Capital em seus três
livros, assume uma conotação menos ontológica e passa a estar mais ligado às relações
sociais de produção e reprodução da vida material.
Logo, dinheiro ou troca de mercadorias aqui somente têm sentido com a apropriação
da força de trabalho alheia, esta também considerada agora no capitalismo como
mercadoria. Essa a grande sacada do capitalismo em relação aos outros modos de
produção. Para que se possa aumentar a extração da mais-valia, diversamente de outras
expropriações que já ocorreram anteriormente no seio da sociedade, é importante que o
possuidor desta mercadoria (força de trabalho) se sinta livre e igual a qualquer
proprietário, para operar no mercado a sua troca.
Essa nova relação social específica, que diverge de troca de mercadorias em uma
sociedade com escravos (antiguidade) ou com servos (idade média), promove uma nova
dimensão do valor de troca das mercadorias em geral, com o dado específico de que a
mercadoria força de trabalho aparece – apenas aparece, atenção para esse termo – como
se fosse realizada por sujeitos proprietários que são tratados como livres e iguais.
Retornando a Pachukanis, é imprescindível, pois, conceber-se o direito enquanto
forma social, e uma forma que se distingue por trazer em si o chamado princípio da
subjetividade jurídica, entendido como “o princípio formal da liberdade e da igualdade;
da autonomia da personalidade etc.” (PACHUKANIS, 1988, p. 10). O que caracteriza o
direito, então, não é uma normatividade organizada, como supõem os juristas
tradicionais, ou interesse de classe inscrito na dominação de uma classe sobre a outra,
qualquer que seja o caráter da formação social, como quer Stucka, mas sim a figura do
sujeito de direito, a consagração do indivíduo como uma pessoa abstrata, desgarrada de
vinculações estamentais.
Ora, esse indivíduo abstrato só tem lugar na história num período bastante
determinado, é dizer, a época das relações de produção capitalistas. Foi com o
entranhamento da relação de capital na produção material da vida que a sociedade
burguesa erigiu-se como tal. Isto se deu, sobretudo, com a subsunção real do trabalho ao
capital e com o surgimento da grande indústria capitalista, organizada em torno do
trabalho produtivo do trabalhador coletivo e do ciclo do capital industrial. Nessa
perspectiva, compreende-se a emergência do sujeito abstrato, e que reflete a abstração
do trabalho na troca de mercadorias e também na própria produção do valor. O teórico
pachukaniano Márcio Bilharinho Naves (2014, p. 55-56) nos traz uma elaboração muito
profícua a este respeito:
2
“O direito é forma que vai se sofisticando na medida em que se separa das outras manifestações da
humanidade, como, por exemplo, a religião. Assim, por exemplo, em períodos mais remotos da
humanidade, quando o direito não tinha a mesma função atual (...), a sua convergência com a noção
de religião era muito mais comum. Por exemplo: nos primórdios, o sistema de provas era
determinado pelo chefe religioso. Aliás, sequer havia o que se provar se o deus/homem que
governasse determinasse a solução do conflito, prescindindo até mesmo de provas. Em momento
posterior, as ordálias ou juízos de deus eram também um bom exemplo de como a prova estava (...)
ligada à questão religiosa. Aquele que ultrapassasse as limitações impostas (como passar incólume
por um chão de brasas, por exemplo) contava com a aquiescência divina, já que a verdade estaria ao
seu lado. Com o tempo, admitiu-se o sistema de prova legal (...), (que) corresponde a uma
necessidade do nascituro capitalismo, envolvido com a ideia liberal da legalidade em seu sentido
estrito. “ (CORREIA, 2013, p. 556).
desenvolvimento da forma jurídica como tal. Esta, depois de haver surgido
num estágio determinado da civilização, permanece, durante longo tempo,
num estado embrionário com uma leve diferenciação interna e sem
delimitação no que concerne às esferas próximas (costumes, religião). Foi
apenas desenvolvendo-se progressivamente que ela atingiu o seu supremo
apogeu, a sua máxima diferenciação e precisão. Este estágio de
desenvolvimento superior corresponde a relações econômicas e sociais
determinadas. Ao mesmo tempo este estágio caracteriza-se pelo
aparecimento de um sistema de conceitos gerais que refletem teoricamente o
sistema jurídico como totalidade orgânica (PACHUKANIS, 1988, p. 35-36).
Foi sob esta perspectiva de crítica radical que Edelman desvendou como o
direito, introduzindo categorias charmosas na vida social, chancela a exploração
capitalista e seus desdobramentos. Em sua investigação implacável, nem mesmo noções
como liberdade e igualdade foram poupadas. A base dos direitos humanos, tidos como
um dos maiores marcos da civilização, restou desmistificada. O passo seguinte do autor
seria levar esta concepção aos domínios do direito do trabalho, o que elevaria sua
contribuição ao marxismo a um novo patamar.
Devemos nos livrar de uma vez por todas da ilusão tenaz de um “direito
operário” que manteria distância do direito burguês, que seria um tubo de
ensaio em que se elaboraria um “novo direito”. Tradicionalmente, os
especialistas têm empregado seus esforços nesse sentido. É necessário, dizem
esses especialistas, autonomizar o direito do trabalho, dar-lhe seus títulos,
reconhecer sua especificidade. Ele é, continuam eles, um direito coletivo, um
direito de massa, para as massas, que não tem mais nada – ou cada vez menos
– a ver com o direito “comum”, leia-se, o direito civil. Desse esforço nasceu
o “socialismo dos juristas”, que se perpetua até hoje sob as espécies sutis e
técnicas das relações entre direitos: direito do trabalho/direito civil, direito do
trabalho/direito comercial, direito do trabalho/direito público…
Como se o trabalho estivesse “do lado” do capital e do Estado! Como se o
“direito operário” não fosse o direito burguês para o operário! E como se,
enfim, milagrosamente, o direito do trabalho fosse uma zona juridicamente
“protegida”!
Não existe o “direito do trabalho”; existe um direito burguês que se ajusta ao
trabalho, ponto final (EDELMAN, 2016, p. 19).
É claro que, para chegar a um diagnóstico tão “drástico” como esse, Edelman
não se limitou a construções simplórias ligadas à metáfora marxiana da relação entre
estrutura e superestrutura. O autor guiou-se pela compreensão acerca das formas sociais
e de suas consequências. Uma vez que tais formas cristalizam as relações de produção
que as engendram, delas não se pode esperar qualquer tipo de subversão contra a ordem
existente. Nessa ordem de considerações, não se poderia conceber o direito do trabalho
como um direito do trabalhador contra a classe capitalista, ou então imaginá-lo como
um ramo jurídico “menos burguês”. Ao longo de sua obra, Edelman demonstra à
exaustão que as relações entre capital e trabalho, ao serem mediadas juridicamente pelo
direito coletivo do trabalho, encontram um ponto de sustentação bastante sólido, e que a
forma jurídica aplicada ao embate capital-trabalho sofistica a supremacia burguesa a
partir da “captura” do movimento operário, do seu enredamento.
Ao dizer que não existe um direito do trabalho que “pertença” ao trabalhador, ou
que possua uma substancialidade distinta daquela que compõe o direito burguês em
geral, Edelman recupera a radicalidade de Pachukanis, já que este, coerentemente com o
caminho teórico que trilhou, propôs que o direito é sempre o direito burguês, não
podendo prestar-se ao serviço de construção de um outro tipo de sociedade, ou mesmo
de contraposição aos interesses da classe capitalista. O pensador russo compreendia que
“o aniquilamento de certas categorias (precisamente de certas categorias e não de tais ou
quais prescrições) do direito burguês, em nenhum caso significa a sua substituição pelas
novas categorias do direito proletário”. E é assim pelo mesmo motivo que a supressão
“das categorias do valor, do capital, do lucro etc., no período de transição para o
socialismo evoluído, não significa o aparecimento de novas categorias proletárias do
valor, do capital etc.” (PACHUKANIS, 1988, p. 26-27). Portanto, por mais que o
direito do trabalho apresente figuras alternativas àquelas do direito civil, mais liberal em
sua compleição, daí não se infere que elas atentem contra a lógica da sociedade
burguesa.
Em acréscimo, a sutileza da função cumprida pelo direito do trabalho está no seu
modo de envolver o proletariado em sua oposição face à burguesia. A “legalização da
classe operária” consiste nesse expediente de subsunção de uma classe potencialmente
revolucionária, e que traz em si uma negatividade ínsita em relação à burguesia e ao
capitalismo, aos ditames da forma jurídica. Significa fazer com que o confronto de
classe se realize numa arena segura, onde os limites do enfrentamento estejam bem
delimitados, impedindo-se uma radicalização que ultrapasse as margens de tolerância
das relações de produção. Para tanto, o capital tem a “astúcia” de dar à classe operária
“uma língua que não é a sua, a língua da legalidade burguesa, e é por isso que ela se
exprime gaguejando, com lapsos e hiatos que às vezes rasgam o véu místico (Maio de
1968 na França)” (EDELMAN, 2016, p. 22). Observe-se, inclusive, que Edelman não é
um fatalista, que ele prevê a possibilidade de rupturas com a ordem burguesa. A
diferença é que, contrariamente aos adeptos do “socialismo jurídico”, ele vislumbra essa
possibilidade nos processos revolucionários, e não no direito ou nos demais aparatos
institucionais do capitalismo.
A tarefa assumida por Edelman, pois, é a de decodificar a “linguagem” da
legalidade burguesa, entender como ela aprisiona o movimento operário nas molduras
da sociabilidade capitalista, como se processa o enquadramento jurídico da classe
operária e de sua luta contra o capital.
O primeiro passo para o entendimento desse processo é o correto
dimensionamento da relação capital-trabalho. Edelman esmiúça a unidade dialética
desse par, pondo em relevo o fato de que, no capitalismo, trabalho e capital se
determinam mutuamente. Esta unidade, com efeito, é basilar ao modo de produção
capitalista, e não há um único conflito trabalhista que coloque em causa a natureza
desse vínculo. Ao contrário, o direito do trabalho reproduz as condições sociais da
produção capitalista e conforma a exploração de classe:
Como visto nas seções anteriores, A legalização da classe operária pode ser
considerada a principal obra de Edelman do ponto de vista teórico, uma vez que
consuma seu projeto crítico do direito e consubstancia o momento em que ele dá o
passo decisivo além da elaboração pachukaniana. Por isso, é com estranhamento que se
constata que a obra permaneceu por quase quatro décadas inédita em língua portuguesa,
sequer tendo recebido traduções em outros idiomas latinos como espanhol ou italiano.
Entretanto, sua publicação no Brasil pela Editora Boitempo, em 2016, não poderia se
dar em oportunidade melhor: o país encontra-se em momento político ímpar para que o
público leitor possa verificar em sua própria vida cotidiana a insuperável atualidade da
obra. Mais do que isso, como o próprio Edelman, a despeito de ter abandonado o
projeto d’A legalização da classe operária5, reconheceu no prefácio que elaborou a
pedido dos tradutores para a publicação no Brasil, a obra pode ser considerada quase
profética, depois de ter sido rejeitada à época de sua publicação:
Com efeito, em 1978, no momento de sua publicação original, a obra talvez não
fizesse tanto sentido deste lado do Atlântico. Naquele instante, depois de uma década e
5
A esse respeito, é interessante notar que o original em francês trazia como subtítulo a indicação
“Tomo I”, sugerindo que haveria continuidade da obra em outros tomos, que, entretanto, jamais
vieram a existir. A leitura do prefácio à edição brasileira é bastante elucidativa das razões de tal
abandono, já que a rejeição à obra foi bastante frustrante ao autor, que a viu realizar-se anos mais
tarde, como se pode verificar na transcrição que segue.
meia de uma violenta ditadura militar, em que o movimento sindical foi sufocado de
todas as formas possíveis pelo direito e pela força e substituído por uma atuação
meramente assistencial sem qualquer conteúdo de classe 6, o operariado retomava suas
lutas a partir de uma organização de base totalmente independente da organização
sindical oficial:
6
“Os instrumentos já estavam dados pela própria CLT, que facultava ao Ministério do Trabalho o
poder de intervir nas entidades sindicais, destituindo diretorias eleitas e substituindo-as por
interventores. (...). A cassação dos direitos políticos e a instauração de inquéritos policiais militares
contra os principais dirigentes sindicais cassados criaram, para os que conseguiram escapar à prisão
imediata, a alternativa da clandestinidade e do exílio. (...). Após nova leva de intervenções, a
ditadura, em inícios dos anos 1970, tratou de valorizar um ‘novo’ modelo de atuação sindical,
pautado pela ação exclusivamente assistencial e afinado com as ideias de crescimento econômico
como pré-requisito para uma posterior política redistributiva” (MATTOS, 2009, pp. 101-111).
vez mais aprofundada desde então, é a crônica da legalização da classe operária
brasileira e justifica o crescente ganho de interesse da obra de Edelman a partir de então.
Com efeito, não se pode esquecer a inarredável contribuição de Althusser no
sentido de que, na sociedade capitalista, a dominação de classe é exercida por meio de
uma multiplicidade de aparelhos, repressivos e ideológicos, que conjuntamente formam
o que se convencionou chamar de Estado8. O que permite a Edelman apontar o sindicato
como um aparelho ideológico de Estado (2016, p. 123) no sentido althusseriano é uma
estratégia de controle que deve ser exercida de acordo com a configuração do aparelho
repressivo de Estado9. Com o enfraquecimento do aparato militar do Poder Executivo a
partir da redemocratização em 1988, desenhou-se a estrutura para que o controle sobre o
aparato sindical no direito brasileiro fosse exercido na modalidade de um controle
judicial (CORREGLIANO, 2013). As elaborações críticas de Edelman a decisões
judiciais e manifestações da doutrina francesa sobre diversos aspectos do direito
sindical ajustam-se perfeitamente ao processo observado no Brasil pós-1988.
Um primeiro ponto interessante diz respeito à questão da representação sindical.
A Constituição de 1988 fez-nos persistir convivendo com o modelo oriundo Decreto n.
19.770, de 19 de março, de 1931, integrado, posteriormente, à CLT de 1943, que,
embora tivesse sido revogado em duas ocasiões, foi revigorado, sobretudo, por
iniciativa dos governos militares de Dutra e do golpe de 64, modelo este em que, de
maneira atrelada à unicidade sindical, é atribuída ao sindicato a exclusividade da
representação de sua categoria nos limites territoriais em que ele estiver constituído. A
7
“A redemocratização do país, com a aprovação da Constituição de 1988 e as eleições presidenciais
de 1989 encerra, em certo sentido, a ‘era’ do novo sindicalismo brasileiro. O fim do controle do
Ministério do Trabalho sobre os sindicatos, do ‘estatuto-padrão’ e da proibição de sindicalização do
funcionalismo público foram conquistas inscritas naquela carta. Porém, a manutenção da unicidade
sindical, do monopólio da representação, do imposto sindical e do poder normativo da Justiça do
Trabalho indicou que o programa do novo sindicalismo não se concretizou completamente na
legislação, pois a estrutura oficial, com a herança corporativista, continuou pesando” (MATTOS,
2009, p. 125).
8
“No entanto, teremos de nos dar conta um dia de que a hegemonia burguesa somente triunfa por seu
recorte social, que lhe permite governar por aparelhos interpostos” (EDELMAN, 2016, p. 148).
9
Nesse contexto, é importante apontar que Edelman vê nos sindicatos instrumentos de colaboração
entre as classes e não de luta: “Dito de outro modo, quanto mais fora o sindicato está de sua base,
mais ele é descentrado das lutas, mais escapa da ‘espontaneidade’ operária e mais é eficaz. A
institucionalização da negociação supõe uma ‘máquina’ sindical ‘concentrada’ no mesmo modo da
concentração estatal ou capitalista. (...). Quando substituímos a luta de classes por uma negociação,
conduzida por um ‘poder’ concretizado em aparelhos que funcionam com base na representação, na
hierarquia, na disciplina, não há dúvida de que estamos em plena colaboração de classe”
(EDELMAN, 2016, p. 140).
exclusividade de representação resolve um problema antigo da organização do
movimento operário na forma sindical, e que Edelman ironicamente aborda na forma de
uma pergunta: a quem pertence a classe operária? (2016, p. 109). Sua resposta a esta
questão, ao mesmo tempo em que aponta a representação sindical como solução jurídica
apresentada pelo Estado, expõe seus limites e tece sua crítica:
Ou, de forma ainda mais sintética: “Em nome do direito, os trabalhadores não
podem vincular sua luta contra o capital a sua luta contra o Estado” (EDELMAN, 2016,
p. 57).
A separação, por assim dizer, “filosófica” entre o profissional e o político
desemboca, do ponto de vista prático, em trabalho que, na França como no Brasil, foi
elaborado pela reiteração de decisões judiciais tratando dos limites de conteúdo a
animar o exercício do direito de greve. Tais limites passam por diversos aspectos. No
Brasil, tem ganhado proeminência em tempos recentes a questão do atendimento às
necessidade inadiáveis da comunidade em caso de greve em serviços essenciais, nos
termos definidos pelos artigos 9º, § 1º, da Constituição, e 10 e 11 da Lei nº 7.783/89,
tema este abordado apenas de passagem por Edelman, quando registra que o prejuízo
inerentemente causado pela greve é um dos pontos a ser levado em conta na discussão
de sua contratualização promovida pelo direito. Edelman aponta, a esse respeito, a
moralização inerente à imposição de limites materiais ao exercício da greve10.
10
Esta moralização é pressuposta ao conceito do direito brasileiro de necessidade inadiável da
comunidade, uma repaginação sindical do antigo brocardo romano alterum non laedere. Edelman
também percebeu essa relação entre os modelos de comportamento pressupostos no direito de forma
bastante perspicaz: “A luta de classes, de acordo, mas ‘com lealdade’. Como se a luta de classes fosse
leal! E o que é a ‘lealdade’? A ideologia contratual, a boa-fé, o respeito das convenções etc. É por
isso que o operário não deve aproveitar-se de sua posição na produção para trapacear patrão. Não. Ele
deve comportar-se como um parceiro responsável, ‘fair play’. (...). O ‘grevista normal’ é a tradução
‘ousada’ do ‘bom pai de família’, e eis aí a moral burguesa transferida para o direito de greve!”
Uma das principais preocupações de Edelman no que tange aos limites do direito
de greve é a possibilidade do uso deste meio de ação sindical em defesa de interesses
políticos. O problema também se coloca aqui no Brasil, tendo sido inclusive objeto de
recente pesquisa de pós-graduação (BABOIN, 2013) que aponta por aqui fenômeno
semelhante ao descrito por Edelman: a construção jurisprudencial de um conceito de
direito de greve, moldado na forja da oposição entre profissional e político, que exclui
por si só qualquer pauta de reivindicações que extrapole a relação imediata entre capital
e trabalho e o conteúdo do contrato de trabalho peculiar aos grevistas. Confira-se:
A consequência jurídica de uma greve ser tida como política e, portanto, ilícita
ou abusiva, é bastante simples: o peso da força do Estado se abate contra o movimento
operário. O aparelho repressivo será movimentado e recolocará tudo em seu devido
lugar, como convém ao direito, de modo geral. Por isso, interessam mais de perto a
Edelman, e também às reflexões deste texto, as consequências teóricas do eventual
aspecto político de uma greve. Como se verá, este debate recolocará a questão com que
foi aberta esta seção, demonstrando o limite, bastante estreito, das possibilidades de
legalização da classe operária.
E a greve política? Muito simples. Uma vez que a greve é usada para
fins de poder, ela se torna política. Em poucas palavras, a classe
operária “não tem o direito” de usar seu poder fora dos limites da
legalidade burguesa, que é, evidentemente, a expressão do poder de
classe da burguesia. Como podemos ver, não se trata mais, de modo
algum de um conflito de direito. Trata-se de luta de classes: de um
lado, o direito, inclusive o direito de greve; de outro, o “fato” das
massas, isto é, a greve; de um lado, um poder legal; de outro, um
poder bruto, elementar, inorganizado (EDELMAN, 2016, p. 56).
(EDELMAN, 2016, p. 44). Como nota de curiosidade, não é incomum encontrar em manuais
didáticos destinados ao ensino do direito sindical a informação de que os sindicatos carregariam uma
“função ética” (BRITO FILHO, 2009, p. 140).
A greve política, portanto, devolve à classe operária seu caráter “de fato”, seu
aspecto de “massa”, sua desorganização. Retira-a do direito, em que foi mutilada, para
colocá-la de volta a seu lugar de origem: a luta de classes. Outro fenômeno que voltou a
ocupar a pauta de preocupações do movimento de trabalhadores, recentemente
apresenta um desafio ainda maior ao direito: a questão das greves conduzidas
espontaneamente a partir da base, sem a participação dos sindicatos, que Edelman
apelida de greves selvagens (2016, p. 116). Sua preocupação com este tema assume,
também, um tom premonitório, antecipando o problema em que se enredam hoje os
tribunais brasileiros. Em termos althusserianos: como interpelar o grevista não
organizado em sindicato como sujeito? Em termos jurídicos: quem representa a
coletividade de trabalhadores em greve? A tática tem animado o movimento de
trabalhadores brasileiro desde o bem sucedido movimento grevista dos trabalhadores de
limpeza urbana do Rio de Janeiro, em março de 2014, em razão da catatonia que atingiu
os operadores do direito que, atônitos, ainda não sabem como reagir ao fenômeno.
Muito ao contrário de se animar com as greves selvagens, Edelman identifica
que o descolamento entre base e representação sindical é o que permite que a classe
burguesa atue para dividir a classe operária, incentivando parte dos trabalhadores a não
aderir ao movimento e, com isso, enfraquecendo-o. Sua sentença, embora controversa, é
categórica: “Ora, uma representação sindical de todos os grevistas derrotaria essa tática”
(EDELMAN, 2016, p. 117).
11
Muito ilustrativo de tal situação é o mote utilizado recentemente por uma manifestação de rua que
aglutinou diversos movimentos sociais: “Contra a direita, por mais direitos”.
O fim da grande mitologia política se anuncia no horizonte. A
“esquerda” está morta, seguindo de perto o “socialismo”. Nossa
herança foi dilapidada. As velhas aspirações políticas estão morrendo.
Quem lamentaria? As doenças do marxismo devoraram a si mesmas, e
o marxismo hoje, e talvez pela primeira vez, pode ser liberado de seu
triunfalismo. E o “impossível” revolucionário, o impossível de todas
as revoluções, pode começar a nascer de nossas ilusões perdidas
(EDELMAN, 2016, p. 147).
Referências bibliográficas
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droit. Paris: Flammarion, 2001.
FURLAN, Valéria (org.). Sujeito no direito: história e perspectivas para o século XXI.
Curitiba: CRV, 2012, p. 245-255.
LÊNIN, V. Que fazer? Problemas candentes de nosso movimento. Tradução de
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MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. 2.ª ed.. Tradução de
Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão popular, 2008.
MIAILLE, M. Introdução crítica ao Direito. 3.ª ed.. Tradução de Ana Prata. Lisboa:
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