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UMA PORTA DE ENTRADA PARA A CRÍTICA MARXISTA DO DIREITO: “A

LEGALIZAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA”.

Marcus Orione
Jorge Luiz Souto Maior
Flávio Roberto Batista
Pablo Biondi1

1. A crítica marxista do direito no século XX

Engels e Kautsky, certa feita, mencionaram com muito acerto que o direito
“ocupa posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx”, aparecendo em
primeiro plano “a legitimidade histórica, as situações específicas, os modos de
apropriação, as classes sociais de determinadas épocas” (ENGELS; KAUTSKY, 2012,
p. 34). Em Marx, portanto, o direito nunca aparece no centro da análise. Ainda assim,
mesmo tangenciando o fenômeno jurídico, a investigação marxiana deixou as
indicações necessárias para uma compreensão científica e materialista do direito,
sobretudo em O capital. Isto porque a crítica da economia política, ao consistir numa
crítica do cerne da sociedade burguesa, de sua “anatomia” (MARX, 2008, p. 47),
permite um vislumbre mais acurado sobre os outros aspectos da vida social do
capitalismo, sobretudo no tocante às suas formas históricas.
A crítica marxista do direito propriamente dita é posterior, portanto, a Marx e
Engels, ainda que este último tenha se aproximado muito dela ao estudar a ideologia
jurídica. Foi somente a partir do início do século XX que o fenômeno jurídico começou
a receber uma atenção maior por parte da análise marxista, e isto se deve ao evento mais
importante do período, e quiçá de todo o século: a revolução russa.
Com o triunfo da revolução de outubro de 1917, instaurou-se na Rússia uma
ditadura revolucionária do proletariado sob a direção política do partido bolchevique.
Naquele momento, teve início um processo de transição ao socialismo, que se
materializou no desmantelamento do aparelho de Estado burguês e na expropriação da
burguesia russa. E foi no calor da tentativa de construção de uma nova sociedade, isto é,

1
Os autores são tradutores da obra de Bernard Edelman, “A legalização da classe operária” (Editora
Boitempo, 2016) e, com exceção de Pablo Biondi, que é Doutor em Direitos Humanos pela
Faculdade de Direito da USP, são professores da Faculdade de Direito da USP.
de ultrapassagem da ordem social burguesa, que o problema do direito se colocou para
os marxistas como um tema a ser aprofundado.
Pode-se dizer que o marco inaugural da crítica marxista do direito é a polêmica
entre Petr Stucka e Evgeny Bronislavovich Pachukanis. Na referida polêmica, houve um
rico debate metodológico sobre a abordagem do direito, sendo que a contribuição
pachukaniana revelou-se muito mais sofisticada – ainda que tenha sido relegada ao
esquecimento por força da contrarrevolução burocrática stalinista, a qual, inclusive,
custou a vida do autor. De qualquer maneira, é certo que

O momento mais alto do pensamento jurídico marxista se dá com Evgeny


Pachukanis. Num notável aprofundamento das teses de Marx, Pachukanis se
põe a identificar a específica relação social que dá base à manifestação
jurídica. Para além de Stutchka – que, se identificava o direito à luta de
classes, não lhe apontava os mecanismos íntimos –, Pachukanis se põe a
identificar a especificidade do direito (MASCARO, 2009, p. 48)

Enquanto Stucka (1988, p. 16) pensava o direito como um “sistema (ou


ordenamento) de relações sociais correspondente aos interesses da classe dominante e
tutelado pela força organizada desta classe”, qualquer que fosse o caráter do modo de
produção dominante (feudal, capitalista, socialista etc.), Pachukanis propôs que o direito
seria uma manifestação própria das formações sociais capitalistas, consistindo numa
forma social gerada pela estrutura mercantil da ordem social burguesa.
Para Pachukanis, não é suficiente identificar a divisão de classes no seio de uma
sociedade para se determinar a presença do direito. Isto porque o direito, tal como o
valor, a mercadoria, o capital etc., é uma categoria social que diz respeito a um
determinado modo de produção e organização da vida material. Não se pode, assim,
imaginar que os traços distintivos do fenômeno jurídico estariam presentes em
sociedades muito distintas entre si (feudal, capitalista, socialista), apenas modificando-
se a classe dominante favorecida (aristocracia, burguesia, proletariado). Esta seria uma
maneira de se eternizar a forma jurídica, o que impede o conhecimento de suas
características peculiares. Eis a ponderação de Pachukanis contra a formulação de
Stucka:

O conceito de direito é aqui considerado exclusivamente do ponto de vista de


seu conteúdo; a questão da forma jurídica como tal de nenhum modo é
exposta. Porém, não resta dúvida de que a teoria marxista não deve apenas
examinar o conteúdo material da regulamentação jurídica nas diferentes
épocas históricas, mas dar também uma explicação materialista sobre a
regulamentação jurídica como forma histórica determinada (PACHUKANIS,
1988, p. 21).

As incursões de Pachukanis na sua mais famosa obra, “A teoria geral do direito e o


marxismo” são frutos do materialismo histórico-dialético, em que o autor situa o direito
na perspectiva histórica, destacando um período, o capitalismo, que lhe atribui
elementos próprios que o caracterizam. Portanto, a noção de forma jurídica, que não se
confunde com o conteúdo jurídico, é a mais perfeita tradução de como componentes
específicos do capitalismo moldam determinadas categorias econômico/sociais e lhes
dão conotação específica. A forma social somente é possível, dadas determinações
históricas, observadas características típicas de um modo de produção. Em outro modo
de produção distinto, a forma também assume outra conotação. Assim, as
especificidades do capitalismo moldam a forma jurídica, assim como essa última é
moldada por aquele. A respeito de tais especificidades, que permitem o perfeito
acoplamento da forma jurídica ao capital, trataremos no decorrer do artigo.
Antes de aprofundarmos ainda mais no tratamento dado a Pachukanis ao direito,
algumas palavras sobre conceitos básicos marxistas se fazem necessárias.
A obra de Marx considera o trabalho como dado central para se entender o processo
econômico de produção e circulação do capital. Ao discutir em especial com os
economistas clássicos, como Ricardo e Adam Smith, o trabalho aparece como o único
meio de produção capaz de valorizar o valor.
Aqui é importante perceber que todas as mercadorias possuem valor de uso e valor
de troca.

O valor de uso da mercadoria é qualidade intrínseca, inerente a ela, no sentido de


que, conforme a sua natureza, atenda às necessidades humanas. Uma cadeira serve para
se sentar, assim como uma faca para cortar os alimentos. Esses são os valores de uso de
uma cadeira e de uma faca. É claro que o valor de uso deve ser visto historicamente,
mas o ponto do qual se parte é da coisa em si mesma.

O valor de troca faz aderir uma qualidade extrínseca às mercadorias no sentido de


que, segundo a natureza das relações sociais (e não somente à sua própria) marcadas
pela exploração do trabalho alheio, passam a ser mensuradas no mercado. Aqui não
bastam as qualidades específicas de que são dotadas, mas também as qualidades sociais
de que passam a ser dotadas, determinadas pela quantidade de trabalho despendido para
a sua produção. No mercado, realiza-se uma troca de equivalentes. Uma faca, observada
a quantidade de trabalho necessário para que fosse produzida, poderia valer duas
cadeiras, e assim por diante. No entanto, para evitar que todos precisem ir com facas e
cadeiras para o mercado, o que seria impossível, constituiu-se mercadoria considerada o
equivalente universal: o dinheiro.

Perceba-se: troca de mercadorias e dinheiro já existiam antes do capitalismo. O que


então faz com que sejam percebidas como forma específica do capital? A resposta está
exatamente na mercadoria chamada força de trabalho. Ou seja, de novo o trabalho como
central na teoria de Marx.

Sendo o trabalho o único meio de produção que produz valor, no capitalismo, a


grande sacada é a sua dominação e expropriação por outro que detém os demais meios
de produção, como forma de acumulação de sua riqueza. Prestem atenção: o trabalho
enquanto fator de riqueza das nações, no lugar de coisas inanimadas, como os metais ou
a terra (para os fisiocratas), o que já havia sido percebido por autores como Adam Smith
(A riqueza das nações). No entanto, a percepção de sua expropriação como forma de
acúmulo de riqueza de uma classe e montagem de todo um sistema (o capitalismo) é
obra do engenho de Marx.

Vamos explicar melhor como o trabalho é o único valor que gera valor.

Uma pedra, na natureza, é apenas uma pedra. Descoberto que se trata de uma jazida
de plutônio, trata-se de matéria-prima importantíssima. No entanto, acreditar que a
jazida ou os instrumentos utilizados no seu processamento é que geram a riqueza se
trata de uma ingenuidade.

Sem o trabalho de alguém que, devidamente preparado, descobrisse as propriedades


daquela jazida ou mesmo sem a descoberta, pelo trabalho humano, das formas de
processamento, aquela jazida seria, na natureza, uma como tantas outras. Mas não
apenas o trabalho intelectual é importante aqui. Esse de nada valeria sem o esforço de
operários que realizam, com a força de seus músculos, o processamento.

Portanto, nem matéria-prima e nem máquinas, como se costuma pensar, produzem a


riqueza do capitalista. O que produz a sua riqueza é a apropriação do trabalho alheio,
para gerar valor (mais-valia). Assim, detendo os outros meio de produção, o capitalista
quer agregar valor a esse capital e somente pode fazê-lo por meio da exploração do
trabalho alheio.

O trabalho, nessa fase da obra de Marx, que culmina com O Capital em seus três
livros, assume uma conotação menos ontológica e passa a estar mais ligado às relações
sociais de produção e reprodução da vida material.

Logo, dinheiro ou troca de mercadorias aqui somente têm sentido com a apropriação
da força de trabalho alheia, esta também considerada agora no capitalismo como
mercadoria. Essa a grande sacada do capitalismo em relação aos outros modos de
produção. Para que se possa aumentar a extração da mais-valia, diversamente de outras
expropriações que já ocorreram anteriormente no seio da sociedade, é importante que o
possuidor desta mercadoria (força de trabalho) se sinta livre e igual a qualquer
proprietário, para operar no mercado a sua troca.

Essa nova relação social específica, que diverge de troca de mercadorias em uma
sociedade com escravos (antiguidade) ou com servos (idade média), promove uma nova
dimensão do valor de troca das mercadorias em geral, com o dado específico de que a
mercadoria força de trabalho aparece – apenas aparece, atenção para esse termo – como
se fosse realizada por sujeitos proprietários que são tratados como livres e iguais.
Retornando a Pachukanis, é imprescindível, pois, conceber-se o direito enquanto
forma social, e uma forma que se distingue por trazer em si o chamado princípio da
subjetividade jurídica, entendido como “o princípio formal da liberdade e da igualdade;
da autonomia da personalidade etc.” (PACHUKANIS, 1988, p. 10). O que caracteriza o
direito, então, não é uma normatividade organizada, como supõem os juristas
tradicionais, ou interesse de classe inscrito na dominação de uma classe sobre a outra,
qualquer que seja o caráter da formação social, como quer Stucka, mas sim a figura do
sujeito de direito, a consagração do indivíduo como uma pessoa abstrata, desgarrada de
vinculações estamentais.
Ora, esse indivíduo abstrato só tem lugar na história num período bastante
determinado, é dizer, a época das relações de produção capitalistas. Foi com o
entranhamento da relação de capital na produção material da vida que a sociedade
burguesa erigiu-se como tal. Isto se deu, sobretudo, com a subsunção real do trabalho ao
capital e com o surgimento da grande indústria capitalista, organizada em torno do
trabalho produtivo do trabalhador coletivo e do ciclo do capital industrial. Nessa
perspectiva, compreende-se a emergência do sujeito abstrato, e que reflete a abstração
do trabalho na troca de mercadorias e também na própria produção do valor. O teórico
pachukaniano Márcio Bilharinho Naves (2014, p. 55-56) nos traz uma elaboração muito
profícua a este respeito:

Ao revestir-se da forma de um sujeito – nas condições de um modo de


produção especificamente capitalista, isto é, sob as condições da subsunção
real do trabalho ao capital –, o indivíduo se transmuta em vontade pura,
abstraída de qualquer determinação. [...] Assim, a constituição do sujeito de
direito está vinculada ao processo de abstração próprio da sociedade do
capital, de tal modo que podemos dizer que ao trabalho abstrato vai
corresponder à abstração do sujeito, ou seja, o processo de equivalência
mercantil derivado do caráter abstrato que toma o trabalho em certas
condições sociais determina o processo de equivalência entre os sujeitos, que
só é possível se as pessoas perderem qualquer qualidade social que possa
diferenciá-las.

Como se nota, a linha de raciocínio apresentada por Pachukanis, e que está


centrada no papel distintivo do princípio da subjetividade e do nexo necessário entre
capitalismo e direito – tanto no sentido de que não há capitalismo sem direito quanto no
sentido de que só pode haver direito, em sua expressão mais acabada, sob o capitalismo
–, é a que melhor diferencia o fenômeno jurídico de outras instâncias da vida social.
Aliás, como bem identificou o jurista soviético, esta diferenciação é condizente com um
processo histórico real que, com o advento da ordem social burguesa, separou a forma
jurídica da moral, da religião2, dos costumes etc., permitindo um desenvolvimento
singular de suas categorias:

Não devemos nos esquecer que a evolução dialética dos conceitos


corresponde à evolução dialética do próprio processo histórico. A evolução
histórica não implica apenas uma mudança no conteúdo das normas jurídicas
e uma modificação das instituições jurídicas, mas também um

2
“O direito é forma que vai se sofisticando na medida em que se separa das outras manifestações da
humanidade, como, por exemplo, a religião. Assim, por exemplo, em períodos mais remotos da
humanidade, quando o direito não tinha a mesma função atual (...), a sua convergência com a noção
de religião era muito mais comum. Por exemplo: nos primórdios, o sistema de provas era
determinado pelo chefe religioso. Aliás, sequer havia o que se provar se o deus/homem que
governasse determinasse a solução do conflito, prescindindo até mesmo de provas. Em momento
posterior, as ordálias ou juízos de deus eram também um bom exemplo de como a prova estava (...)
ligada à questão religiosa. Aquele que ultrapassasse as limitações impostas (como passar incólume
por um chão de brasas, por exemplo) contava com a aquiescência divina, já que a verdade estaria ao
seu lado. Com o tempo, admitiu-se o sistema de prova legal (...), (que) corresponde a uma
necessidade do nascituro capitalismo, envolvido com a ideia liberal da legalidade em seu sentido
estrito. “ (CORREIA, 2013, p. 556).
desenvolvimento da forma jurídica como tal. Esta, depois de haver surgido
num estágio determinado da civilização, permanece, durante longo tempo,
num estado embrionário com uma leve diferenciação interna e sem
delimitação no que concerne às esferas próximas (costumes, religião). Foi
apenas desenvolvendo-se progressivamente que ela atingiu o seu supremo
apogeu, a sua máxima diferenciação e precisão. Este estágio de
desenvolvimento superior corresponde a relações econômicas e sociais
determinadas. Ao mesmo tempo este estágio caracteriza-se pelo
aparecimento de um sistema de conceitos gerais que refletem teoricamente o
sistema jurídico como totalidade orgânica (PACHUKANIS, 1988, p. 35-36).

Por conta da repressão stalinista, a teoria pachukaniana foi brutalmente


interrompida no seu desenvolvimento. Pachukanis foi executado em 1938, no contexto
dos famigerados Processos de Moscou3. Desse modo, a produção teórica marxista sobre
o direito sofreu um revés muito grande. Sob o stalinismo, inclusive, predominou a
doutrina de Andrei Vichinsky, que identificada o direito à legalidade posta e fazia a
mais completa apologia ao regime stalinista e à deformação burocrática do Estado
nascido com a revolução de outubro.
E com o trágico desfecho da revolução russa, que acabou enterrada pela
degeneração stalinista, o impulso teórico que colocou em foco o problema do direito se
perdeu. A transição socialista na URSS foi abortada, de modo que a ditadura
revolucionária do proletariado, o regime dos soviets, foi substituída pela ditadura
burocrática de um partido bolchevique irreconhecível, dirigido por uma camarilha que
aniquilou moral e fisicamente a vanguarda e as lideranças da revolução. No campo de
estudo do direito, esse retrocesso colossal se manifestou no fim das pesquisas mais
profundas. O fenômeno jurídico voltaria a ter uma dimensão marginal nas obras
marxistas.
Com efeito, encontramos considerações sobre o direito em autores clássicos do
marxismo do século XX, como, por exemplo, Louis Althusser em seu Sobre a
reprodução (1995). Todavia, faltavam estudos de fôlego que se debruçassem direta e
prioritariamente sobre a questão do direito. Faltava um sopro renovador que pudesse
retomar o caminho trilhado por Pachukanis e avançar nas elaborações. Este sopro não
3
Em 1938, a pretexto do assassinato de Kirov, um quadro do partido bolchevique, desencadeou-se na
URSS uma onde de perseguições contra antigos militantes do partido, e que consistiu num
recrudescimento da burocratização e da repressão política que assolavam o país desde o final da
década de 1920. Figuras históricas do partido bolchevique como Kamenev, Zinoviev, Bukharin e
muitas outras foram forçadas a confessarem crimes que não cometeram, o que resultou em sua
condenação e execução - muitos desses, inclusive, haviam integrado blocos com Stalin antes de
serem renegados. A maioria da antiga direção bolchevique foi fisicamente eliminada nos Processos
de Moscou. Trotsky foi condenado, mas se encontrava no exílio. Em 1940, foi assassinado por um
agente da GPU.
foi dado por Althusser, mas alguns de seus seguidores tomaram para si, de certa
maneira, esta tarefa. Dentre eles, Bernard Edelman mostrou-se o mais brilhante.

2. A obra de Bernard Edelman

A denúncia dos crimes de Stalin e a poderosa vaga revolucionária de 1968, a


última em solo europeu, enfraqueceram o prestígio e a hegemonia do aparato stalinista
na esquerda francesa. Desenhou-se, assim, um cenário de oportunidade para uma
renovação do marxismo, tanto em relação à dogmática oficial patrocinada por Moscou
quanto em relação a algumas tendências reformistas.
Não houve na França, como na Rússia de 1917, uma insurreição proletária que
culminou com o início de uma transição socialista. Contudo, a vaga revolucionária de
1968 colocou a classe operária em movimento, num ascenso fortíssimo que se enfrentou
não apenas com o governo conservador de Charles De Gaulle, mas também com a linha
política do PCF, que canalizou a força espetacular do levante operário e popular para o
terreno reformista das negociações econômicas – o que deu sobrevida a um governo que
estava prestes a cair, e que de fato poderia cair se houvesse uma decidida direção
revolucionária à frente do movimento de massas.
A frustração de um ascenso revolucionário que terminou em negociações
econômicas conduzidas por uma direção política conciliatória colocou a questão do
“terreno” da luta de classes, ou seja, do espaço social em que ela se realiza. Provou-se
novamente na prática a tese leninista de que, no confronto econômico, prevalece a
consciência sindicalista, “tradeunionista”, “uma convicção de que é preciso reunir-se em
sindicatos, lutar contra os patrões, cobrar do governo a promulgação de umas e outras
leis necessárias aos operários etc.” (LÊNIN, 2010, p. 89), mas sem se colocar em causa
a dominação do capital e a questão do poder. Isso porque a luta econômica e sindical se
limita a barganhar o preço da força de trabalho, deixando intocado o problema da sua
comercialização, é dizer, o cerne do modo de produção capitalista.
Ora, um conflito que se encerra na sua pauta econômica, que não ultrapassa as
determinações mercantis do capitalismo, é um conflito que se dá no interior da arena do
direito, e com pleno respeito às suas linhas de demarcação. Prevalecem, nessas
condições, tanto a forma jurídica em sua generalidade quanto o seu arcabouço
institucional sindical, o qual instrui e dá sustentação à permanência da relação capital-
trabalho. Não se pode esquecer que a estrutura sindical é um componente necessário de
um regime social em que a força de trabalho é uma mercadoria, e que, como tal, precisa
passar por foros de negociação do seu preço. E dado o liame intrínseco entre direito e
mercadoria no capitalismo, como bem demonstrou Pachukanis, a forma jurídica
demonstra todo o seu peso ao envolver e disciplinar o mercado de trabalho.
Na conjuntura inaugurada em 1968, portanto, restou escancarada a influência do
direito sobre a luta de classes. Apesar do ímpeto revolucionário inicial, o movimento de
massas se viu prisioneiro das armadilhas do terreno jurídico, as quais necessariamente o
conduziriam à conciliação de classes, à restauração da ordem e à reprodução da
sociabilidade do capital. Discutir o direito sob um ponto de vista marxista, então,
tornou-se uma necessidade urgente naquele contexto. Neste contexto é que surge o
marxismo que assenta bases nas proposições de Louis Althusser, em sua posição de
afastamento contínuo do stalinismo e de crítica implacável ao reformismo, logrou
produzir obras de enorme importância para a crítica do fenômeno jurídico. E é
exatamente no contexto da crítica althusseriana que se deve conceber a obra de Bernard
Edelman.
Em 1973, Edelman inicia esse movimento de crítica radical do direito com a
obra O direito captado pela fotografia (2001). Três anos depois, Michel Miaille lança a
sua Introdução crítica ao direito (2005), igualmente partindo das premissas
pachukanianas. E, em 1978, outras duas obras desses autores foram publicadas: O
Estado do direito, de Michel Miaille (1980), e A legalização da classe operária, de
Bernard Edelman (2016).
Em que pese a importância dos textos de Miaille, colocaremos nosso foco no
trabalho de Edelman. Neste autor, encontramos uma teoria do direito que parte
decididamente dos pressupostos pachukanianos, e que se propõe a sofisticá-los por meio
da teoria do sujeito – e de sua interpelação ideológica – em Althusser. Segundo Louis
Althusser (1995, p. 23), “não há ideologia que não seja pelo sujeito e para sujeitos 4”, no
sentido de que o indivíduo é “sempre já” (isto é, desde sempre) sujeitado pela ideologia,
constituído por ela concretamente por meio das práticas materiais que a instituem e dos
aparelhos ideológicos que cuidam da sua reprodução. Em uma apertada síntese, desde o
instante em que qualquer sujeito vem ao mundo já se encontra sujeito a uma ideologia
na qual estará inserido, sendo que, individualmente, não terá condições de superá-la. Na
realidade, mais do que isto há aparelhos que reforçam esta ideologia, tais como a escola,
o sindicato, a mídia (para usar um exemplo mais atual) e outros.
4
Todas as citações de obras em idioma estrangeiro serão traduzidas por nós livremente.
Em seu livro O direito captado pela fotografia, Bernard Edelman mostra-se
caudatário desta concepção althusseriana, indicando um caminho de diálogo com a linha
teórica de Pachukanis:

Os “indivíduos” são interpelados como sujeitos pelo direito. Essa


interpelação é constitutiva de seu ser jurídico mesmo, no sentido de que é
esta interpelação “tu és um sujeito de direito” que lhes dá o poder concreto,
que lhes permite uma prática concreta. “Já que tu és o sujeito de direito, tu és
capaz de adquirir e de (te) vender” (EDELMAN, 2001, p. 26).

Coerentemente com a crítica pachukaniana, Edelman identifica o mercado como


o espaço de realização das práticas materiais que ensejam a figura do sujeito de direito.
A forma mercantil engendra um indivíduo à imagem e semelhança do portador de
mercadorias, um sujeito formalmente livre, igual aos outros e potencialmente
proprietário. E dentre os três aspectos centrais desse sujeito de direito, destaca-se a
propriedade, ou seja, a sua característica de ser “um proprietário de mercadorias abstrato
e transposto para as nuvens”, para usarmos a expressão pachukaniana (1988, p. 78). É
com referência na propriedade que as categorias jurídicas de liberdade e igualdade se
estabelecem. Uma vez que a liberdade e a igualdade são categorias derivadas da esfera
mercantil do valor e da troca, elas se colocam em função dos proprietários de
mercadorias. É por meio da realização contratual delas que a propriedade se transfere de
mãos em mãos no processo incessante de permutas. Edelman (2001, p. 110) conclui que
“a movimentação da propriedade privada cria, de fato, uma liberdade e uma igualdade,
mas esta liberdade e esta igualdade são aquelas mesmas da propriedade privada”. Na
perspectiva do mercado, o trabalhador deve estar apto para vender a sua força de
trabalho, como proprietário dela. Não pode ser tratado de forma distinta dos que
possuem o capital, que da força de trabalho extraem o principal elemento de
concentração de suas riquezas. Caso contrário, não passaria de um escravo ou de um
servo. No entanto, como não estamos mais na antiguidade ou na idade média, a
expropriação da força de trabalho precisa contar com a aquiescência do próprio
trabalhador. Portanto, ao se conceber a figura do sujeito de direito como homem livre,
igual e proprietário, para a circulação da principal mercadoria que deve ser expropriada
pelo capital, a força de trabalho, há a consolidação concomitante de uma ideologia
jurídica – a que qualquer indivíduo se encontra submetido, e que corresponde a
categorias estudadas por Althusser, como a de que o sujeito é interpelado pela ideologia,
no sentido de que não tem condições, individualmente, de a ela resistir, nela já se
inserindo desde o instante em que passa a existir como ser vivente.
Assim, consagra-se uma imagem abstrata do homem na sociedade burguesa, um
indivíduo que é nivelado pelo mercado, e que dele participa independentemente da sua
ascendência social. Os indivíduos se apresentam como portadores não apenas das
mercadorias que oferecem, mas também das relações sociais que dão base às trocas.
Personificando a equivalência do trabalho abstrato, eles são postos como “equivalentes
vivos”, de tal sorte que “o processo do valor-de-troca torna-se o processo do sujeito, e o
processo do sujeito, o processo do valor-de-troca” (EDELMAN, 2001, p. 111).
Esmiuçando a relação entre a forma jurídica e a forma mercantil, Edelman
explicita as funções concretas e ideológicas do direito, postulando que ele, em sua
vivência, “fixa as formas de funcionamento do conjunto das relações sociais, torna
eficaz, no mesmo momento, a ideologia jurídica, que é a relação imaginária dos
indivíduos com as relações sociais em geral”, assumindo a “dupla função de fixar
concretamente e ‘imaginariamente’ – e seria melhor dizer que a fixação concreta
jurídica é ao mesmo tempo ideológica – o conjunto das relações sociais” (EDELMAN,
2001, p. 104). E nisto, inclusive, se vê mais uma apropriação do pensamento de
Althusser acerca da ideologia, concebendo-a como uma “relação imaginária dos
indivíduos com as relações sociais em geral”.
Como síntese da crítica de Edelman à forma jurídica em sua generalidade, vale
citar a seguinte passagem:

O que me proponho a demonstrar ao deixar voluntariamente de lado o que se


passa “alhures”, no “laboratório secreto da produção”, é que o direito toma a
esfera da circulação como dado natural; que esta esfera, tomada em si como
absoluta, não é nenhuma outra senão a noção ideológica que porta o nome
hobbesiano, rousseauniano, kantiano ou hegeliano, de sociedade civil; e que
o direito, ao fixar a circulação, não faz senão promulgar os decretos dos
direitos do homem e do cidadão; que ele escreve sobre a fronte do valor-de-
troca os signos da propriedade, da liberdade e da igualdade, mas que estes
signos, no secreto “alhures”, lêem-se como exploração, escravidão,
desigualdade, egoísmo sagrado (EDELMAN, 2001, p. 107).

Foi sob esta perspectiva de crítica radical que Edelman desvendou como o
direito, introduzindo categorias charmosas na vida social, chancela a exploração
capitalista e seus desdobramentos. Em sua investigação implacável, nem mesmo noções
como liberdade e igualdade foram poupadas. A base dos direitos humanos, tidos como
um dos maiores marcos da civilização, restou desmistificada. O passo seguinte do autor
seria levar esta concepção aos domínios do direito do trabalho, o que elevaria sua
contribuição ao marxismo a um novo patamar.

3. A crítica do processo de legalização da classe operária

Em A legalização da classe operária, Edelman apresenta uma crítica do direito


do trabalho, em especial do direito coletivo do trabalho. E por meio dessa crítica, ele
demonstra como a forma jurídica incide sobre a luta de classes, inclusive nos momentos
em que esse conflito aparece mais claramente, como nas greves operárias. A grandeza
dessa obra reside, assim, não apenas no rigor metodológico e na extensão do campo de
análise, mas também no fato de ela conjugar dois elementos muito caros ao marxismo:
as formas sociais do capitalismo (no caso, o direito) e a luta de classes, esta contradição
fundamental que tem colocado a história em movimento até dos dias de hoje.
O conteúdo da obra consiste num desvelamento profundo das ilusões da doutrina
jurídica acerca do direito do trabalho e de seu papel na sociedade. Na contramão desta
tradição que vê no ramo juslaboral apenas um inventário de conquistas obreiras
históricas, ou mesmo um sinal de triunfo da dignidade humana, Edelman (2016, p. 18)
alerta que “a classe operária pode ser 'desviada', precisamente por suas próprias
'vitórias', que podem apresentar-se também como um processo de integração ao capital”,
lembrando, ainda, que “a 'participação' nunca esteve ausente da estratégia da burguesia,
e há veneno em seus 'presentes'”.
Edelman não despreza as medidas de bem-estar que foram obtidas sob
pressão do movimento operário. Contudo, seu esforço é o de salientar o outro lado
da moeda, ou, se quisermos, o “preço” que foi pago por essas concessões do capital.
Esse preço, por certo, não foi a supressão da luta de classes. Em sua filiação
althusseriana, Edelman seguramente entende que “a luta de classes e a existência das
classes são uma só e mesma coisa”, uma vez que a divisão da sociedade em classes “não
se faz post festum; é a exploração de uma classe por outra e, portanto, a luta de classes
que constitui a divisão em classes. Pois a exploração já é luta de classes”
(ALTHUSSER, 1978, p. 27). É por isso que nosso autor fala em desvio desse conflito, e
não na sua abolição. Ocorre que, com as conquistas econômicas da classe operária e sua
integração política (e jurídica, pelo reconhecimento de direitos) à sociedade burguesa, o
enfrentamento entre capital e trabalho desloca-se para o âmbito institucional dos
partidos da ordem e do sindicalismo oficial, ou seja, para o campo do Estado em sua
concepção ampliada, de maneira que “as próprias lutas operárias são travadas nesses
aparelhos, elas se desenvolvem nessas estruturas e essas estruturas provocam efeitos
sobre o combate” (EDELMAN, 2016, p. 19).
Eis aí o cerne da questão. O terreno sobre o qual se realiza o embate está longe
de ser indiferente para o seu resultado. Enquanto uma forma, o direito envolve o seu
conteúdo e o submete às constrições necessárias para moldá-lo em favor da reprodução
da sociabilidade do capital – de tal sorte que as posições jurídicas conquistadas pela
classe operária não traduzem o seu poder de classe propriamente, mas antes o poder da
ordem social que se organiza juridicamente. Isto porque a relação entre capital e
trabalho é uma relação jurídica entre sujeitos, é um antagonismo social expresso num
liame entre contratantes.
Todos os avanços do movimento operário que foram contemplados legalmente
são concretizados a partir das categorias jurídicas que instruem a sociedade burguesa e o
direito como uma de suas formas sociais. Logo, não é possível imaginar que a classe
operária possa se amparar no direito para questionar o modo de produção capitalista.
Tampouco é possível que ela construa no interior da forma jurídica qualquer estratégia
de poder, pois o poder, nessa sociedade, só pode ser aquele que corresponde à sua
estruturação capitalista.
Para o direito do trabalho, as consequências desse raciocínio são tremendas.
Visto como uma espécie de direito de resistência pelos juristas progressistas, ou mesmo
como o embrião para um novo direito, como uma possibilidade de renovação geral da
ordem jurídica e do seu liberalismo tradicional, o direito do trabalho se revela, graças à
inquirição implacável de Edelman, como mais um espaço de consagração do domínio
burguês. Transcrevamos as palavras do autor em toda a sua crueza:

Devemos nos livrar de uma vez por todas da ilusão tenaz de um “direito
operário” que manteria distância do direito burguês, que seria um tubo de
ensaio em que se elaboraria um “novo direito”. Tradicionalmente, os
especialistas têm empregado seus esforços nesse sentido. É necessário, dizem
esses especialistas, autonomizar o direito do trabalho, dar-lhe seus títulos,
reconhecer sua especificidade. Ele é, continuam eles, um direito coletivo, um
direito de massa, para as massas, que não tem mais nada – ou cada vez menos
– a ver com o direito “comum”, leia-se, o direito civil. Desse esforço nasceu
o “socialismo dos juristas”, que se perpetua até hoje sob as espécies sutis e
técnicas das relações entre direitos: direito do trabalho/direito civil, direito do
trabalho/direito comercial, direito do trabalho/direito público…
Como se o trabalho estivesse “do lado” do capital e do Estado! Como se o
“direito operário” não fosse o direito burguês para o operário! E como se,
enfim, milagrosamente, o direito do trabalho fosse uma zona juridicamente
“protegida”!
Não existe o “direito do trabalho”; existe um direito burguês que se ajusta ao
trabalho, ponto final (EDELMAN, 2016, p. 19).

É claro que, para chegar a um diagnóstico tão “drástico” como esse, Edelman
não se limitou a construções simplórias ligadas à metáfora marxiana da relação entre
estrutura e superestrutura. O autor guiou-se pela compreensão acerca das formas sociais
e de suas consequências. Uma vez que tais formas cristalizam as relações de produção
que as engendram, delas não se pode esperar qualquer tipo de subversão contra a ordem
existente. Nessa ordem de considerações, não se poderia conceber o direito do trabalho
como um direito do trabalhador contra a classe capitalista, ou então imaginá-lo como
um ramo jurídico “menos burguês”. Ao longo de sua obra, Edelman demonstra à
exaustão que as relações entre capital e trabalho, ao serem mediadas juridicamente pelo
direito coletivo do trabalho, encontram um ponto de sustentação bastante sólido, e que a
forma jurídica aplicada ao embate capital-trabalho sofistica a supremacia burguesa a
partir da “captura” do movimento operário, do seu enredamento.
Ao dizer que não existe um direito do trabalho que “pertença” ao trabalhador, ou
que possua uma substancialidade distinta daquela que compõe o direito burguês em
geral, Edelman recupera a radicalidade de Pachukanis, já que este, coerentemente com o
caminho teórico que trilhou, propôs que o direito é sempre o direito burguês, não
podendo prestar-se ao serviço de construção de um outro tipo de sociedade, ou mesmo
de contraposição aos interesses da classe capitalista. O pensador russo compreendia que
“o aniquilamento de certas categorias (precisamente de certas categorias e não de tais ou
quais prescrições) do direito burguês, em nenhum caso significa a sua substituição pelas
novas categorias do direito proletário”. E é assim pelo mesmo motivo que a supressão
“das categorias do valor, do capital, do lucro etc., no período de transição para o
socialismo evoluído, não significa o aparecimento de novas categorias proletárias do
valor, do capital etc.” (PACHUKANIS, 1988, p. 26-27). Portanto, por mais que o
direito do trabalho apresente figuras alternativas àquelas do direito civil, mais liberal em
sua compleição, daí não se infere que elas atentem contra a lógica da sociedade
burguesa.
Em acréscimo, a sutileza da função cumprida pelo direito do trabalho está no seu
modo de envolver o proletariado em sua oposição face à burguesia. A “legalização da
classe operária” consiste nesse expediente de subsunção de uma classe potencialmente
revolucionária, e que traz em si uma negatividade ínsita em relação à burguesia e ao
capitalismo, aos ditames da forma jurídica. Significa fazer com que o confronto de
classe se realize numa arena segura, onde os limites do enfrentamento estejam bem
delimitados, impedindo-se uma radicalização que ultrapasse as margens de tolerância
das relações de produção. Para tanto, o capital tem a “astúcia” de dar à classe operária
“uma língua que não é a sua, a língua da legalidade burguesa, e é por isso que ela se
exprime gaguejando, com lapsos e hiatos que às vezes rasgam o véu místico (Maio de
1968 na França)” (EDELMAN, 2016, p. 22). Observe-se, inclusive, que Edelman não é
um fatalista, que ele prevê a possibilidade de rupturas com a ordem burguesa. A
diferença é que, contrariamente aos adeptos do “socialismo jurídico”, ele vislumbra essa
possibilidade nos processos revolucionários, e não no direito ou nos demais aparatos
institucionais do capitalismo.
A tarefa assumida por Edelman, pois, é a de decodificar a “linguagem” da
legalidade burguesa, entender como ela aprisiona o movimento operário nas molduras
da sociabilidade capitalista, como se processa o enquadramento jurídico da classe
operária e de sua luta contra o capital.
O primeiro passo para o entendimento desse processo é o correto
dimensionamento da relação capital-trabalho. Edelman esmiúça a unidade dialética
desse par, pondo em relevo o fato de que, no capitalismo, trabalho e capital se
determinam mutuamente. Esta unidade, com efeito, é basilar ao modo de produção
capitalista, e não há um único conflito trabalhista que coloque em causa a natureza
desse vínculo. Ao contrário, o direito do trabalho reproduz as condições sociais da
produção capitalista e conforma a exploração de classe:

Podemos compreender agora como o contrato de trabalho reproduz o direito


de propriedade, e como o direito de propriedade reproduz o contrato de
trabalho. De um lado, o contrato de trabalho aparece como uma técnica de
venda do “trabalho”, que só dá direito a um salário; de outro, o proprietário
dos meios de produção compra a força de trabalho sob a forma de salário e a
incorpora juridicamente a sua propriedade.
No final das contas, a relação capital/trabalho resolve-se numa relação de
título: título de trabalho em oposição ao título de propriedade.
Assim, quando combinam contrato de trabalho e propriedade privada, os
tribunais reproduzem de fato a separação do trabalhador de seus meios de
produção (EDELMAN, 2016, p. 31).

Há, pois, uma simetria entre o contrato de trabalho e o direito de propriedade, ou


melhor, uma correlação necessária, e que instrui o que Edelman chama de poder
jurídico do capital. A dominação do capital sobre o trabalho é exercida sob a forma de
um vínculo contratual que atribui direitos e deveres para as partes envolvidas num
arranjo aparentemente igualitário, destoante do perfil estamental da sociedade feudal,
por exemplo. Mas é essa igualdade entre polos contratantes que abriga a coleta do mais-
valor e que dá a dinâmica da exploração capitalista.
A incidência da igualdade jurídica sobre a relação capital-trabalho traz efeitos
sobre o modo como esse antagonismo imanente se desenvolve, e Edelman faz uma
imersão nessas implicações. O teórico francês aponta, primeiramente, a contratualização
das greves: o confronto entre as classes é enquadrado como um confronto entre sujeitos
munidos de direitos, de sorte que os antagonistas guardam obrigações entre si mesmo
quando entram em choque. E mesmo o alcance e a intensidade desse choque são
submetidos a uma disciplina jurídica, a uma avaliação de licitude e ilicitude dos atos
praticados. Dessa maneira, “a greve é lícita na medida do contrato de trabalho; quando
há abuso contratual, há greve abusiva”, o que significa dizer que “a greve, quando se
torna extracontratual, torna-se, por consequência, ilícita ou ilegal, segundo sutilezas que
não nos interessam por ora” (EDELMAN, 2016, p. 38).
O intuito último dessa contratualização é a defesa da produção. O critério
aferidor da abusividade ou não da greve é o seu potencial lesivo à normalidade da
produção capitalista. Não sendo dado à classe burguesa, em condições de normalidade
política, simplesmente proibir as greves – ao menos não na época de maturidade do
capitalismo –, a política oficial para essas formas de luta proletária é a de contenção
segundo regras dedicadas a poupar a produção capitalista de maiores abalos. Nesse
sentido, admite-se a prática grevista, mas com a condição de que o empregador seja
avisado previamente, que um mínimo do processo produtivo seja mantido em
funcionamento, que a posse do capital sobre os meios de produção não seja afrontada e
que as reivindicações do movimento paredista não ultrapassem o âmbito sindical, quer
dizer, a seara econômico-profissional da categoria mobilizada.
Com tudo isso, a forma jurídica não só preserva a fluidez da produção, como
também pretende forçar os trabalhadores a adotarem uma estratégia de luta previsível e
admissível, tolerável para os padrões capitalistas. Merece destaque, dentre os requisitos
usuais para a licitude da greve, o perfil econômico-profissional que se espera das
reivindicações do movimento operário. Trata-se simplesmente de se reproduzir a
separação formal entre Estado (política) e sociedade civil (interesses econômicos) que
caracteriza o capitalismo, além de se interditar a politização da luta operária e a
formação de mobilizações que superem a divisão do proletariado em categorias
profissionais. Pois é da superação desse fracionamento em interesses profissionais que
depende a unificação do proletariado na sua oposição inconciliável perante o capital.
Somente assim a luta de classes pode atingir um patamar superior, comportando uma
disputa não mais em torno do preço de venda da força de trabalho, e sim das relações de
propriedade que transformam a força de trabalho em mercadoria.
Pelo aspecto ideológico do direito estudado por Edelman, logo se percebe que a
forma jurídica conspira contra qualquer tentativa de se por em causa as relações de
produção capitalistas. Ela se empenha, ao revés, em naturalizar tais relações e
dissimular seu caráter de classe por meio de um discurso humanista muito difundido
pelos juristas, e que, apropriado pelos tribunais, fundamenta decisões repressivas contra
os trabalhadores em greve, exercendo uma disciplina férrea contra eles sempre que suas
mobilizações ameaçam sair da esfera sindical-profissional. Daí se entende a visão do
autor quanto à impossibilidade de uma ordem jurídica admitir, a título ilustrativo, as
greves políticas ou as ocupações dos locais de trabalho.
Tendo em vista todas essas circunstâncias, Edelman não exagera em nada ao
sintetizar suas reflexões sobre o direito de greve, tido como um triunfo absoluto da
classe operária pelos juristas progressistas e humanistas, da seguinte maneira:

O direito de greve é um direito burguês. Entendamos: não digo


que a greve é burguesa, o que seria um absurdo, mas que o
direito de greve é um direito burguês. O que quer dizer, muito
precisamente, que a greve só atinge a legalidade em certas
condições, e essas condições são as mesmas que permitem a
reprodução do capital (EDELMAN, 2016, p. 48).
4. A atualidade d’A legalização da classe operária perante o direito coletivo do
trabalho brasileiro

Como visto nas seções anteriores, A legalização da classe operária pode ser
considerada a principal obra de Edelman do ponto de vista teórico, uma vez que
consuma seu projeto crítico do direito e consubstancia o momento em que ele dá o
passo decisivo além da elaboração pachukaniana. Por isso, é com estranhamento que se
constata que a obra permaneceu por quase quatro décadas inédita em língua portuguesa,
sequer tendo recebido traduções em outros idiomas latinos como espanhol ou italiano.
Entretanto, sua publicação no Brasil pela Editora Boitempo, em 2016, não poderia se
dar em oportunidade melhor: o país encontra-se em momento político ímpar para que o
público leitor possa verificar em sua própria vida cotidiana a insuperável atualidade da
obra. Mais do que isso, como o próprio Edelman, a despeito de ter abandonado o
projeto d’A legalização da classe operária5, reconheceu no prefácio que elaborou a
pedido dos tradutores para a publicação no Brasil, a obra pode ser considerada quase
profética, depois de ter sido rejeitada à época de sua publicação:

Devo dizer que esta abordagem suscitou verdadeira revolta. Lembro-


me que quando expus minhas teses na Escola Normal Superior, onde
lecionava na época, a companheira de Althusser, antigo membro da
resistência e cegetista ardorosa, interpelou-me violentamente e me
chamou de reacionário, de traidor e de mercenário da burguesia...
Louis Althusser manteve prudentemente o silêncio. Em resumo, este
livro foi retirado de cena, e apenas um jornal anarquista lhe fez
apologia. Então, o que se pode dizer dele hoje? Que ele era
premonitório, mas que a realidade o ultrapassou? Sim e não. Sim,
porque o desmoronamento do comunismo se produziu com uma
rapidez que me surpreendeu. (...). Mas, sobretudo, parece-me que
minha decodificação jurídica da realidade político-econômica
conservou todo o seu valor (EDELMAN, 2016, pp. 9-10).

Com efeito, em 1978, no momento de sua publicação original, a obra talvez não
fizesse tanto sentido deste lado do Atlântico. Naquele instante, depois de uma década e

5
A esse respeito, é interessante notar que o original em francês trazia como subtítulo a indicação
“Tomo I”, sugerindo que haveria continuidade da obra em outros tomos, que, entretanto, jamais
vieram a existir. A leitura do prefácio à edição brasileira é bastante elucidativa das razões de tal
abandono, já que a rejeição à obra foi bastante frustrante ao autor, que a viu realizar-se anos mais
tarde, como se pode verificar na transcrição que segue.
meia de uma violenta ditadura militar, em que o movimento sindical foi sufocado de
todas as formas possíveis pelo direito e pela força e substituído por uma atuação
meramente assistencial sem qualquer conteúdo de classe 6, o operariado retomava suas
lutas a partir de uma organização de base totalmente independente da organização
sindical oficial:

Mas nem só de adesismo vivia o movimento. Se as greves por


categoria e a chegada de grupos políticos de esquerda às direções
sindicais eram impossíveis dado o alcance da repressão, os ativistas
mais combativos não desistiram do trabalho de organização dos
trabalhadores nas empresas (MATTOS, 2009, p. 113).

O paciente e clandestino trabalho de base efetuado ao longo de toda a década de


70, auge da repressão, começou a mostrar seus resultados na fábrica da Scania, em São
Bernardo do Campo, em 12 de maio de 1978: ali irrompia uma greve, organizada
inicialmente sem a presença do sindicato, que desencadearia uma onda de greves que
varreria a região do ABC paulista até 1980. Há inúmeros relatos disponíveis, entre os
quais o de Mattos, acima citado, o brilhante trabalho de Antunes (1988) e o estudo de
Abramo (1999). Em todos eles, com variados níveis de detalhamento, é possível
perceber inúmeras características do movimento operário de que já falava Lênin em seu
clássico Que fazer? (2010): o espontaneísmo, a vanguarda operária e sua relação com a
base, a consciência “tradeunionista” em contraposição à consciência social democrata, o
ganho organizativo da greve por vezes superando os ganhos materiais para os
trabalhadores e o ganho individual de consciência pelos operários a partir de seu
engajamento na luta. Tratava-se, em suma, de um período de “ilusão”, para dialogar
com Edelman, que já noticiava em 1978 terem sido as “ilusões perdidas”, especialmente
a ilusão da existência da classe operária (2016, p. 145).
A história do “novo sindicalismo”, nome que recebeu o movimento inaugurado
em 1978, e de sua captura pelo Estado, consumada pela Constituição de 1988 7 e cada

6
“Os instrumentos já estavam dados pela própria CLT, que facultava ao Ministério do Trabalho o
poder de intervir nas entidades sindicais, destituindo diretorias eleitas e substituindo-as por
interventores. (...). A cassação dos direitos políticos e a instauração de inquéritos policiais militares
contra os principais dirigentes sindicais cassados criaram, para os que conseguiram escapar à prisão
imediata, a alternativa da clandestinidade e do exílio. (...). Após nova leva de intervenções, a
ditadura, em inícios dos anos 1970, tratou de valorizar um ‘novo’ modelo de atuação sindical,
pautado pela ação exclusivamente assistencial e afinado com as ideias de crescimento econômico
como pré-requisito para uma posterior política redistributiva” (MATTOS, 2009, pp. 101-111).
vez mais aprofundada desde então, é a crônica da legalização da classe operária
brasileira e justifica o crescente ganho de interesse da obra de Edelman a partir de então.
Com efeito, não se pode esquecer a inarredável contribuição de Althusser no
sentido de que, na sociedade capitalista, a dominação de classe é exercida por meio de
uma multiplicidade de aparelhos, repressivos e ideológicos, que conjuntamente formam
o que se convencionou chamar de Estado8. O que permite a Edelman apontar o sindicato
como um aparelho ideológico de Estado (2016, p. 123) no sentido althusseriano é uma
estratégia de controle que deve ser exercida de acordo com a configuração do aparelho
repressivo de Estado9. Com o enfraquecimento do aparato militar do Poder Executivo a
partir da redemocratização em 1988, desenhou-se a estrutura para que o controle sobre o
aparato sindical no direito brasileiro fosse exercido na modalidade de um controle
judicial (CORREGLIANO, 2013). As elaborações críticas de Edelman a decisões
judiciais e manifestações da doutrina francesa sobre diversos aspectos do direito
sindical ajustam-se perfeitamente ao processo observado no Brasil pós-1988.
Um primeiro ponto interessante diz respeito à questão da representação sindical.
A Constituição de 1988 fez-nos persistir convivendo com o modelo oriundo Decreto n.
19.770, de 19 de março, de 1931, integrado, posteriormente, à CLT de 1943, que,
embora tivesse sido revogado em duas ocasiões, foi revigorado, sobretudo, por
iniciativa dos governos militares de Dutra e do golpe de 64, modelo este em que, de
maneira atrelada à unicidade sindical, é atribuída ao sindicato a exclusividade da
representação de sua categoria nos limites territoriais em que ele estiver constituído. A
7
“A redemocratização do país, com a aprovação da Constituição de 1988 e as eleições presidenciais
de 1989 encerra, em certo sentido, a ‘era’ do novo sindicalismo brasileiro. O fim do controle do
Ministério do Trabalho sobre os sindicatos, do ‘estatuto-padrão’ e da proibição de sindicalização do
funcionalismo público foram conquistas inscritas naquela carta. Porém, a manutenção da unicidade
sindical, do monopólio da representação, do imposto sindical e do poder normativo da Justiça do
Trabalho indicou que o programa do novo sindicalismo não se concretizou completamente na
legislação, pois a estrutura oficial, com a herança corporativista, continuou pesando” (MATTOS,
2009, p. 125).
8
“No entanto, teremos de nos dar conta um dia de que a hegemonia burguesa somente triunfa por seu
recorte social, que lhe permite governar por aparelhos interpostos” (EDELMAN, 2016, p. 148).
9
Nesse contexto, é importante apontar que Edelman vê nos sindicatos instrumentos de colaboração
entre as classes e não de luta: “Dito de outro modo, quanto mais fora o sindicato está de sua base,
mais ele é descentrado das lutas, mais escapa da ‘espontaneidade’ operária e mais é eficaz. A
institucionalização da negociação supõe uma ‘máquina’ sindical ‘concentrada’ no mesmo modo da
concentração estatal ou capitalista. (...). Quando substituímos a luta de classes por uma negociação,
conduzida por um ‘poder’ concretizado em aparelhos que funcionam com base na representação, na
hierarquia, na disciplina, não há dúvida de que estamos em plena colaboração de classe”
(EDELMAN, 2016, p. 140).
exclusividade de representação resolve um problema antigo da organização do
movimento operário na forma sindical, e que Edelman ironicamente aborda na forma de
uma pergunta: a quem pertence a classe operária? (2016, p. 109). Sua resposta a esta
questão, ao mesmo tempo em que aponta a representação sindical como solução jurídica
apresentada pelo Estado, expõe seus limites e tece sua crítica:

A burguesia contaminou a organização operária, intimou-a a


transformar-se em burocracia, funcionando segundo o modelo do
poder burguês; intimou-a a “representar” a classe operária segundo o
esquema burguês da representação; impôs-lhe uma língua, um direito,
uma ideologia do comando da hierarquia que fariam das massas um
sujeito submisso, sensato e “responsável”. (...). Entretanto, as coisas
não são tão simples. Investidos do poder legal de representar a classe
trabalhadora, os sindicatos são excedidos por sua própria legalidade.
Por quê? Simplesmente porque a classe operária não é
“representável”: não constitui um corpo – como o eleitorado, por
exemplo –, não constitui uma soberania abstrata – como a nação ou o
povo –, é uma classe que conduz a luta de classes. Sua existência de
classe é “extralegal”, “inapreensível”. Ela não pertence a “ninguém”,
senão a ela mesma, ou a sua própria liberdade (EDELMAN, 2016, pp.
111-112).

O problema da representação sindical no Brasil é especialmente sensível porque,


como já constatado em outra oportunidade (BATISTA, 2012, pp. 245-255) ocorre em
um duplo nível. Além de o sindicato, por si só, operar por meio de dirigentes eleitos,
atraindo o problema apontado por Edelman de buscar adequar ao esquema burguês de
representação a classe operária, que não é passível de tal submissão, o sistema de
exclusividade de representação organizado em torno do sindicato único por categoria
pressupõe a existência de uma configuração uniforme dos membros de tal categoria.
Embora esta questão não se coloque da mesma maneira na França, Edelman também
debruçou-se sobre ela ao investigar as restrições impostas pelo Poder Judiciário francês
à prática de atividades políticas no seio da empresa. Sua percepção elucida o que se
encontra por trás da exclusividade de representação da categoria:

Isso quer dizer que, do ponto de vista da empresa, a comunidade de


trabalhadores é uma comunidade “social”, cuja homogeneidade
encontraria seu sentido no humano. Isso quer dizer também que a
empresa capitalista aparece como o único lugar onde os homens são
ligados pelo humano, o único lugar onde não se opera nenhuma
discriminação, já que o trabalho torna os homens iguais; portanto, o
único lugar onde eles realizam sua liberdade de trabalhador
(EDELMAN, 2016, p. 96).
É claro que há um sentido para que a crítica do autor francês, debruçando-se a
tema diverso, caiba tão perfeitamente à exclusividade de representação do direito
sindical brasileiro. Em nenhum dos casos, não se está diante de um ato de vontade
arbitrário do Estado, mas de uma disposição essencial da própria função do direito na
ordem capitalista, em seu duplo viés de mascarar a exploração do trabalho e assegurar a
continuidade da reprodução. Revelando o pano de fundo desta elaboração, Edelman
profere algumas de suas mais fortes palavras:

Apenas a ordem jurídica coloca, concretamente, o homem no lugar


das classes, o “trabalho” no lugar da força de trabalho, o salário no
lugar do mais-valor; apenas a ordem jurídica considera a exploração
do homem pelo homem o produto de um livre contrato, o exercício da
liberdade; e somente ela considera o Estado de classe a expressão da
“vontade geral” (EDELMAN, 2016, p. 87).

Eis a questão da representação sindical descortinada. O assim chamado


“interesse da categoria”, tido como dado e, por isso, considerado unitário, é tratado
juridicamente na mesma chave rousseauniana de uma vontade geral da nação que
moveria a atuação do Estado. Se, entretanto, seria cabível imaginar que a política seja a
forma adequada de encontrar a vontade geral em meio à multiplicidade de vontades no
Estado como pensado por Rousseau, o mesmo não se dá em relação à categoria
profissional – colocando-se a questão nestes termos apenas para dialogar com o aspecto
normativo do direito brasileiro, já que Edelman entende que o raciocínio estende-se à
classe operária de forma geral – em que a política não teria espaço, reeditando-se na
organização sindical a separação entre Estado e sociedade civil na forma de uma
oposição entre o âmbito profissional e o âmbito político:

Os juristas forjaram uma arma extremamente eficaz: o trabalho,


dizem, é profissional. À primeira vista, o termo parece bem anódino, e
é antes uma tautologia. Não se deixem enganar: ele exprime, de fato e
apesar das aparências, a própria estrutura do poder político burguês.
Com efeito, quando dizemos que o trabalho é profissional,
exprimimos a simples ideia de que ele se manifesta numa relação
estritamente privada. E exprimimos também essa outra ideia de que,
por esse motivo, ele não tem nada a ver com a política. Aqui,
profissional se opõe ao político. O resultado é que a noção de trabalho
está ela própria sujeita a uma distinção tão velha quanto a burguesia, a
uma distinção da constituição do poder político burguês, a saber, a
distinção sociedade civil/Estado (EDELMAN, 2016, p. 48).
O principal efeito dessa separação entre âmbito profissional – em que estão
colocadas as relações de classe entre capital e trabalho – e âmbito político – em que não
há coletivos, mas cidadãos operando enquanto indivíduos perante o Estado – é o
mascaramento do caráter de classe do Estado, que, no modo de produção capitalista,
assume a aparência de um terceiro imparcial que media a relação entre as classes
(2013). Assim, o capital pode, ao mesmo tempo em que exerce sua dominação por meio
do conjunto de aparelhos de Estado, colocar-se no nível das aparências como mais um
ator da disputa de interesses que ali se trava, exclusivamente por meio dos indivíduos
que o personificam, os capitalistas. Na fina ironia que caracteriza a obra de Edelman, lê-
se uma formulação poderosa desta questão:

Lindo, não? O capital não é “responsável” por sua política, não é


“responsável” por “seu” Estado! De um lado, a extorsão de mais-
valor, de outro, o Estado, e se pode ver, concretamente, a eficácia da
separação sociedade civil/Estado (EDELMAN, 2016, p. 52).

Ou, de forma ainda mais sintética: “Em nome do direito, os trabalhadores não
podem vincular sua luta contra o capital a sua luta contra o Estado” (EDELMAN, 2016,
p. 57).
A separação, por assim dizer, “filosófica” entre o profissional e o político
desemboca, do ponto de vista prático, em trabalho que, na França como no Brasil, foi
elaborado pela reiteração de decisões judiciais tratando dos limites de conteúdo a
animar o exercício do direito de greve. Tais limites passam por diversos aspectos. No
Brasil, tem ganhado proeminência em tempos recentes a questão do atendimento às
necessidade inadiáveis da comunidade em caso de greve em serviços essenciais, nos
termos definidos pelos artigos 9º, § 1º, da Constituição, e 10 e 11 da Lei nº 7.783/89,
tema este abordado apenas de passagem por Edelman, quando registra que o prejuízo
inerentemente causado pela greve é um dos pontos a ser levado em conta na discussão
de sua contratualização promovida pelo direito. Edelman aponta, a esse respeito, a
moralização inerente à imposição de limites materiais ao exercício da greve10.
10
Esta moralização é pressuposta ao conceito do direito brasileiro de necessidade inadiável da
comunidade, uma repaginação sindical do antigo brocardo romano alterum non laedere. Edelman
também percebeu essa relação entre os modelos de comportamento pressupostos no direito de forma
bastante perspicaz: “A luta de classes, de acordo, mas ‘com lealdade’. Como se a luta de classes fosse
leal! E o que é a ‘lealdade’? A ideologia contratual, a boa-fé, o respeito das convenções etc. É por
isso que o operário não deve aproveitar-se de sua posição na produção para trapacear patrão. Não. Ele
deve comportar-se como um parceiro responsável, ‘fair play’. (...). O ‘grevista normal’ é a tradução
‘ousada’ do ‘bom pai de família’, e eis aí a moral burguesa transferida para o direito de greve!”
Uma das principais preocupações de Edelman no que tange aos limites do direito
de greve é a possibilidade do uso deste meio de ação sindical em defesa de interesses
políticos. O problema também se coloca aqui no Brasil, tendo sido inclusive objeto de
recente pesquisa de pós-graduação (BABOIN, 2013) que aponta por aqui fenômeno
semelhante ao descrito por Edelman: a construção jurisprudencial de um conceito de
direito de greve, moldado na forja da oposição entre profissional e político, que exclui
por si só qualquer pauta de reivindicações que extrapole a relação imediata entre capital
e trabalho e o conteúdo do contrato de trabalho peculiar aos grevistas. Confira-se:

No interior mesmo do direito de greve, o trabalho dos tribunais traçou


as linhas demarcatórias que lhe permitem tê-lo bem na mão. Releia o
leitor o acórdão da Corte de Cassação: o direito de greve é uma
“modalidade de defesa dos interesses profissionais”. Está tudo aí. Isso
permitirá distinguir as greves lícitas – entenda-se aquelas que
respondem à defesa dos interesses profissionais, isto é, que têm em
vista apenas uma melhoria das cláusulas do contrato de trabalho
(salário, condições de trabalho etc.) – das greves ilícitas ou abusivas –
entenda-se aquelas que excedem o bom funcionamento do contrato de
trabalho, as greves políticas, ditas “políticas” (EDELMAN, 2016, p.
42-43).

A consequência jurídica de uma greve ser tida como política e, portanto, ilícita
ou abusiva, é bastante simples: o peso da força do Estado se abate contra o movimento
operário. O aparelho repressivo será movimentado e recolocará tudo em seu devido
lugar, como convém ao direito, de modo geral. Por isso, interessam mais de perto a
Edelman, e também às reflexões deste texto, as consequências teóricas do eventual
aspecto político de uma greve. Como se verá, este debate recolocará a questão com que
foi aberta esta seção, demonstrando o limite, bastante estreito, das possibilidades de
legalização da classe operária.

E a greve política? Muito simples. Uma vez que a greve é usada para
fins de poder, ela se torna política. Em poucas palavras, a classe
operária “não tem o direito” de usar seu poder fora dos limites da
legalidade burguesa, que é, evidentemente, a expressão do poder de
classe da burguesia. Como podemos ver, não se trata mais, de modo
algum de um conflito de direito. Trata-se de luta de classes: de um
lado, o direito, inclusive o direito de greve; de outro, o “fato” das
massas, isto é, a greve; de um lado, um poder legal; de outro, um
poder bruto, elementar, inorganizado (EDELMAN, 2016, p. 56).

(EDELMAN, 2016, p. 44). Como nota de curiosidade, não é incomum encontrar em manuais
didáticos destinados ao ensino do direito sindical a informação de que os sindicatos carregariam uma
“função ética” (BRITO FILHO, 2009, p. 140).
A greve política, portanto, devolve à classe operária seu caráter “de fato”, seu
aspecto de “massa”, sua desorganização. Retira-a do direito, em que foi mutilada, para
colocá-la de volta a seu lugar de origem: a luta de classes. Outro fenômeno que voltou a
ocupar a pauta de preocupações do movimento de trabalhadores, recentemente
apresenta um desafio ainda maior ao direito: a questão das greves conduzidas
espontaneamente a partir da base, sem a participação dos sindicatos, que Edelman
apelida de greves selvagens (2016, p. 116). Sua preocupação com este tema assume,
também, um tom premonitório, antecipando o problema em que se enredam hoje os
tribunais brasileiros. Em termos althusserianos: como interpelar o grevista não
organizado em sindicato como sujeito? Em termos jurídicos: quem representa a
coletividade de trabalhadores em greve? A tática tem animado o movimento de
trabalhadores brasileiro desde o bem sucedido movimento grevista dos trabalhadores de
limpeza urbana do Rio de Janeiro, em março de 2014, em razão da catatonia que atingiu
os operadores do direito que, atônitos, ainda não sabem como reagir ao fenômeno.
Muito ao contrário de se animar com as greves selvagens, Edelman identifica
que o descolamento entre base e representação sindical é o que permite que a classe
burguesa atue para dividir a classe operária, incentivando parte dos trabalhadores a não
aderir ao movimento e, com isso, enfraquecendo-o. Sua sentença, embora controversa, é
categórica: “Ora, uma representação sindical de todos os grevistas derrotaria essa tática”
(EDELMAN, 2016, p. 117).

5. A recuperação das ilusões perdidas

Edelman encerra sua obra fazendo a ponte para o jamais desenvolvido


tratamento da legalização da classe operária sob a perspectiva do Estado - que constaria
de volume posterior da obra que, como vimos, nunca veio à lume. Ele atribui à
conclusão o título de “ilusões perdidas”. Parafraseando-o, este texto será encerrado com
outra leitura sobre a atualidade de sua obra, que buscará transbordar suas poucas
indicações sobre a direção do tratamento da questão do Estado para refletir um
fenômeno recente e bastante relevante no Brasil: a multiplicação de movimentos sociais
reivindicativos de direitos.
Antes de tudo, é importante observar que os movimentos sociais reivindicativos
de direitos vêem recair sobre si várias das estratégias de legalização discutidas por
Edelman em seu texto. Para ficar em apenas dois exemplos, pode-se observar como o
Movimento Passe Livre, embora difuso e horizontal, é interpelado pelo Estado a tornar-
se sujeito de direito por meio da submissão à estapafúrdia obrigatoriedade de informar
previamente à polícia o trajeto de suas manifestações, sujeitando-se à severa repressão
policial em caso de recusa ou de alteração imprevista do trajeto; ou a recente declaração
do Governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, que buscava desqualificar o
movimento de ocupação de escolas por estudantes secundaristas com a observação de
que seu movimento apresentava “nítido cunho político”. Assim, bastaria aplicar ipsis
litteris as ideias da obra a tais realidades, para constatar que tudo faz parte de uma
mesma luta de classes, empreendida com as mesmas armas pelo lado da burguesia e do
Estado. É possível, entretanto, ir além da pura e simples justaposição das reflexões
sobre os sindicatos aos movimentos sociais reivindicativos.
É que está cada vez mais claro que tais movimentos recuperaram as duas ilusões
mencionadas por Edelman: a ilusão da existência da classe operária – em tempos de
discursos “pós-modernos” que apontam o fim da luta de classes, os integrantes de
movimentos sociais que constituem uma das últimas trincheiras de resistência
capitularam apenas parcialmente ao se crerem a expressão contemporânea do que é a
classe trabalhadora – e a ilusão jurídica, “a crença obstinada de que a liberdade se
transforma em direitos” (EDELMAN, 2016, p. 149). É essa recuperação das ilusões que
coloca duas questões, diferentes mas complementares, que se relacionam diretamente
com a conclusão de Edelman e demonstram a manutenção de sua importância: as tais
ilusões mantêm seu caráter ilusório mesmo após serem contemporaneamente
retomadas? É negativo que tais ilusões sejam retomadas?
A resposta, a partir de Edelman, parece ser afirmativa para ambas as questões.
Quanto à primeira, basta retomar seu já mencionado prefácio, em que sustenta
que “minha decodificação jurídica da realidade político-econômica conservou todo o
seu valor” (EDELMAN, 2016, p. 10). Seria possível acrescentar que esta decodificação
não somente conservou seu valor como o conservará enquanto a humanidade viver sob
a égide do modo de produção capitalista. Isso significa que a ilusão da existência da
classe operária não perde seu caráter ilusório nesta retomada, antes o aprofunda. A
pulverização dos movimentos sociais em pautas específicas, normalmente orientadas em
torno do acesso a bens como saúde, educação, moradia, transporte etc., afasta ainda
mais a possibilidade de existência concreta da classe operária – que jamais operará
como classe enquanto estiver organizada em torno de demandas tão restritas – e sua
aparência de existência, consubstanciada nesta já consagrada expressão, sempre
utilizada no plural, “movimentos sociais”. Ao lado da ilusão da existência de uma
“classe trabalhadora” onde operar a legalidade burguesa, é possível antever a ilusão da
existência de um “movimento negro” ou de “um movimento feminista” e assim por
diante. Aliás, é difícil constatar mesmo, se a legalidade burguesa continuar a reger os
fatos, a noção do que seja negro ou do que seja gênero – na medida em que a raça e o
gênero, por exemplo, têm a sua conformação indicada por este sistema legal. De certa
forma e de maneira premonitória, este fato se emerge, através do espelho, da frase que
encerra “A legalização da classe operária” de Bernard Edelman.
A segunda questão, especialmente no que toca à retomada da ilusão jurídica já
havia sido objeto de reflexão crítica de Edelman: “Este é o sonho da burguesia: um
capitalismo garantido de uma vez por todas pelo direito. Este é também o sonho de um
certo ‘socialismo’: um socialismo de uma vez por todas garantido pelo direito”
(EDELMAN, 2016, p. 61)11. A retomada da ilusão jurídica parece fazer bastante sentido
num momento histórico em que uma terceira ilusão, não abordada por Edelman, vem
sendo perdida: a ilusão da transformação social revolucionária.
Duas advertências de Edelman parecem ter sido escritas para serem lidas pelos
movimentos sociais de quatro décadas mais tarde. De um lado, sua crítica pontual e
poderosa, derivada de Lênin, à reivindicação de direitos como estratégia da classe
operária: “Hegemonia burguesa, isso sim, pois, uma vez que a ‘liberdade’ se transforma
em direitos, esses direitos são reapropriados no sistema dos espaços” (EDELMAN,
2016, p. 150).
Sua segunda advertência é bem mais profunda. Antes mesmo que ela fosse
cogitada, coloca em xeque a recuperação das ilusões perdidas como horizonte
estratégico da atuação da classe operária na luta de classes e aponta o caráter
revolucionário da perda de tais ilusões. Sua colocação como palavras finais deste texto
deve ter muito menos o sentido de uma citação e muito mais o sentido de sua nova
enunciação com a mesma força, mas em um outro momento político e jurídico. São
também essas palavras que parecem demonstrar que, ao contrário do que possa sugerir
uma leitura apressada, seu prefácio à tradução não representa uma negação de suas
convicções, mas uma sólida manifestação de sua revolucionária desilusão:

11
Muito ilustrativo de tal situação é o mote utilizado recentemente por uma manifestação de rua que
aglutinou diversos movimentos sociais: “Contra a direita, por mais direitos”.
O fim da grande mitologia política se anuncia no horizonte. A
“esquerda” está morta, seguindo de perto o “socialismo”. Nossa
herança foi dilapidada. As velhas aspirações políticas estão morrendo.
Quem lamentaria? As doenças do marxismo devoraram a si mesmas, e
o marxismo hoje, e talvez pela primeira vez, pode ser liberado de seu
triunfalismo. E o “impossível” revolucionário, o impossível de todas
as revoluções, pode começar a nascer de nossas ilusões perdidas
(EDELMAN, 2016, p. 147).

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