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Paulo Vinicius Baptista da Silva

Débora Oyayomi Araujo


Wellington Oliveira dos Santos
(Organizadores)
Paulo Vinicius Baptista da Silva
Débora Oyayomi Araujo
Wellington Oliveira dos Santos
(Organizadores)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
REITOR
Ricardo Marcelo Fonseca
VICE-REITOR
Graciela Bolzón de Muniz

PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
Eduardo Sales de Oliveira Barra
COORDENAÇÃO DE ESTUDOS E PESQUISAS
INOVADORAS NA GRADUAÇÃO
Laura Ceretta Moreira
NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS
Lucimar Rosa Dias

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Paulo Vinicius Baptista da Silva

CONSELHO EDITORIAL
Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos – UFABC
Dr. Alex Ratts – UFG
Dr. Alexsandro Rodrigues - UFES
Dr. Ari Lima – UNEB
Dra. Aparecida de Jesus Ferreira – UEPG
Dra. Conceição Evaristo – Escritora
Dr. Eduardo David de Oliveira – UFBA
Dra. Eliane Debus – UFSC
Dra. Florentina da Silva Souza – UFBA
Dr. José Endoença Martins – FURB
Dra. Lucimar Rosa Dias – UFPR
Dr. Marcio Rodrigo Vale Caetano – UFRG
Dr. Moisés de Melo Santana – UFRPE
Dra. Nilma Lino Gomes – UFMG
Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – USFCAR
Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso – UDESC
Dra. Wilma Baía Coelho – UFPA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ


SISTEMA DE BIBLIOTECAS
BIBLIOTECA CENTRAL – COORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS
R121 Racismo, discurso e educação: estratégias ideológicas \ organizadores Paulo
Vinicius Baptista da Silva, Débora Cristina de Araújo, Wellington Oliveira dos
Santos. – [Curitiba] : NEAB, [2018].
364 p. : il. (algumas color.) ; 22 cm.

Vários autores.
Inclui referências.

ISBN 978-85-66278-14-9

1. Racismo. 2. Relações raciais. 3. Discriminação na educação. 4. Segregação


na educação. I. Silva, Paulo Vinicius Baptista da, 1965- . II. Araújo, Débora
Cristina de. III. Santos, Wellington Oliveira dos. IV. Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná. V. Título.

CDD: 301.451
CDU: 323.12
Bibliotecário: Arthur Leitis Junior - CRB 9/1548
© Paulo Vinicius Baptista da Silva, Débora Oyayomi Araujo
& Wellington Oliveira dos Santos

RACISMO, DISCURSO E EDUCAÇÃO:


ESTRATÉGIAS IDEOLÓGICAS

Coordenação Editorial
Paulo Vinicius Baptista da Silva

Projeto gráfico
Barbara do Nascimento Ramos
Lucas Garcia da Silva

Revisão
Débora Oyayomi Araujo
Wellington Oliveira dos Santos

Editoração
Reinaldo Cezar Lima

e-book publicado pelo NEAB-UFPR.


Sumário

9 CAPÍTULO 1
Sobre a Hermenêutica de Profundidade e a análise
da ideologia nos estudos do NEAB-UFPR
Paulo Vinicius Baptista da Silva

39 CAPÍTULO 2
Análise de discursos ideológicos: a atuação do Enfoque
Tríplice de Thompson
Débora Oyayomi Araujo

79 CAPÍTULO 3
Relações étnico-raciais e literatura infantil
Verediane Cintia de Souza de Oliveira

103 CAPÍTULO 4
O silêncio como estratégia ideológica: a invisibilidade
negra na história, na arte, nas Diretrizes Curriculares
de Arte para a Educação Básica e no Livro Didático
Público de Arte do Paraná
Megg Rayara Gomes de Oliveira

133 CAPÍTULO 5
Relações raciais no Livro Didático Público
Tânia Mara Pacifico
193 CAPÍTULO 6
Personagens negros e brancos em livros didáticos de
Ensino Religioso
Sergio Luis do Nascimento

225 CAPÍTULO 7
A diferença banalizada: discursos de inclusão do
negro em livros didáticos de Geografia
Wellington Oliveira dos Santos

255 CAPÍTULO 8
Os discursos produzidos sobre os direitos de
crianças e adolescentes com o uso do livro didático
Karina Falavinha

289 CAPÍTULO 9
Sobre teorias de raça no pensamento social
brasileiro: acerca da ideologia e da ruptura do legado
epistemológico
Sergio Luis do Nascimento

319 CAPÍTULO 10
Racismo, poder e legitimação: os discursos sobre
diversidade na gestão do Programa Nacional
Biblioteca da Escola (PNBE)
Débora Oyayomi Araujo

351 CAPÍTULO 11
Estratégias ideológicas nos estudos do NEAB-UFPR
Thaís Regina de Carvalho e Paulo Vinicius Baptista
da Silva

365 Sobre os autores


NEAB
Capítulo 1
SOBRE A HERMENÊUTICA DE
PROFUNDIDADE E A ANÁLISE DA
IDEOLOGIA NOS ESTUDOS DO NEAB-UFPR
Paulo
Ra Vinicius Baptista
E u a o: da Silva
o, u o t at a ol a
9
Capítulo 1

Sobre a Hermenêutica de Profundidade e a


análise da ideologia nos estudos do NEAB-UFPR

Paulo Vinicius Baptista da Silva1

Este livro tem como objetivo apresentar ao leitor uma


série de pesquisas realizadas no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Fe-
deral do Paraná, pelo Grupo de Pesquisa Núcleo de
Estudos Afro-Brasileiros da UFPR. Os estudos com-
põem um conjunto de dissertações e teses que foram
estruturadas ou utilizaram como referencial auxiliar o
conceito de ideologia e a metodologia da Hermenêutica
de Profundidade (HP), proposta por John B. Thompson
(1995), na obra Ideologia e cultura moderna: teoria so-
cial crítica na era dos meios de comunicação de mas-
sa2.
No processo de formação no Núcleo de Estudos de
Gênero, Raça e Idade (NEGRI) do Programa de Estu-
dos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia
Universidade Católica de São/PUC-SP, tivemos conta-
to com as pesquisas orientadas por Fúlvia Rosemberg,
as quais estiveram centradas em eixos de desigualda-
de de gênero, de raça e de idade. As pesquisas de-

1 Pesquisador do CNPq, Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB-UFPR) e do Progra-


ma de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFPR) da Universidade Federal do Paraná
(PPGE-UFPR).
2 No decorrer deste livro haverá variação entre as edições da obra de Thompson, já que
cada autora ou autor utilizou diferentes edições.

10 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
senvolvidas no NEGRI majoritariamente utilizavam o
arcabouço teórico-metodológico de Thompson (1995),
interessando-se em compreender as “maneiras como
as formas simbólicas se entrecruzam com relações de
poder” (THOMPSON, 1995, p. 75). Ali desenvolvemos
uma tese sobre ideologia em livros didáticos, focada
em desigualdades étnico-raciais, a partir do estudo de
Paulo Vinicius Baptista da Silva (2008), trabalho reali-
zado em conjunto com estudo que estudou a ideologia
de gênero, a partir da pesquisa de Neide Cardoso de
Moura (2007).
Posteriormente, atuando no PPGE-UFPR, passamos
do desafio de desenvolver pesquisas utilizando a HP
para orientar dissertações e teses estruturadas confor-
me tal metodologia. Considerávamos desafio devido à
complexidade do método da HP e o necessário aprofun-
damento de análise que demanda. Foram realizadas,
entre 2009 e 2015 um conjunto de sete dissertações e
duas teses que tiveram como marco teórico principal
ou auxiliar a perspectiva desenvolvida por Thompson
(1995).
Este livro foi organizado com a proposta de apresen-
tar estes estudos: de Sérgio Luis do Nascimento (2009;
2015); Débora Oyayomi Araujo (2010; 2015); Tania
Mara Pacifico (2011); Veridiane Cintia de Souza (2011);
Wellington Oliveira dos Santos (2012); Megg Rayara
Gomes de Oliveira (2012) e de Karina Falavinha (2013),
oferecendo à leitora ou ao leitor, de forma articulada, os
seus resultados mais significativos. A expectativa com
esta publicação é difundir de forma mais ampla tais re-
sultados sob três perspectivas: agregar conhecimento
à pesquisa em educação; destacar o papel relevante

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
11
de tais estudos na análise das desigualdades étnico-ra-
ciais e de gênero; indicador que a HP pode ser profícua
para a pesquisa social voltada a desvelar relações de
dominação.
As análises empreendidas inserem-se no campo de es-
tudos sobre ideologia, em específico nos estudos a par-
tir das proposições da teoria da ideologia formulada por
Thompson (1995) e suas repercussões em pesquisas
brasileiras (LEAL, 2005; VERONESE; GUARESCHI,
2006; SANTOS, 2007; SILVA, 2012) e internacional
(RICE, 2005). Em pesquisas que viemos desenvolven-
do (SILVA, 2001; 2008) adotamos o conceito de ideo-
logia proposto por Thompson (1995) que: realizou um
amplo estudo sobre os diversos usos do conceito de
ideologia; discutiu usos recentes de ideologia na teoria
social; propôs um conceito específico de ideologia vin-
culado à proposta de pesquisa e análise social.

1. O conceito de ideologia e as estratégias


ideológicas

Thompson (1995) sustenta que na obra de Marx são


perceptíveis três distintos conceitos de ideologia, to-
dos críticos, dentre os quais destaca um que denomi-
na de “latente”. Na análise de Marx sobre a Revolu-
ção Francesa, no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte,
Thompson (1995) aponta que, apesar das condições
concretas para a “emancipação”, a sociedade francesa
regrediu em função de ideias equivocadas contidas na

12 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
tradição que foram reativadas por palavras e imagens.
Thompson (1995) afirma que nessa análise Marx ante-
viu o significado da dimensão simbólica da vida social.
As construções simbólicas, nesse caso, apresentaram
certa eficácia, reativando a tradição e funcionando como
meio de sustentação de uma ordem social opressiva.
Tal concepção “latente” em Marx é tomada como fun-
damento da proposta de Thompson (1995) de retorno o
foco do estudo da ideologia para o entrecruzamento das
formas simbólicas com as relações de poder. Formas
simbólicas são, para o autor, construções reconhecidas
socialmente como significativas, podendo ser linguísti-
cas, não linguísticas ou mistas, compreendendo falas
e ações, imagens e escritos, numa ampla acepção, re-
ferindo-se a manifestações verbais, textos, programas
de televisão, obras de arte e também a ações, gestos
e rituais. No caso das pesquisas que compõem este li-
vro, as formas simbólicas são falas, escritos e imagens
analisadas em amostras de objetos culturais dirigidos
à infância e juventude nas seguintes categorias: livros
didáticos, livros literários infantojuvenis, aulas de leitu-
ra, entrevistas e documentos orientadores ou normati-
zadores de políticas educacionais (editais do PNLD e
do PNBE; Diretrizes Curriculares de Artes do Estado do
Paraná).
A partir da análise de usos e conceitos de ideologia,
Thompson (1995) formula seu conceito próprio de ideo-
logia. Para o autor, ideologia deve ser entendida como
formas simbólicas que, em determinados contextos,
servem para estabelecer (produzir, instituir) e sustentar
(manter, reproduzir) relações de poder sistematicamente
desiguais, ou seja, relações de dominação. Ou, “falando

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13
de uma forma mais ampla, é o sentido a serviço do po-
der” (THOMPSON, 1995, p. 16). Os fenômenos simbó-
licos não são intrinsecamente ideológicos, mas devem
ser analisados em contextos sócio-históricos definidos.
Tal aspecto que Thompson denominou de “contextual”
indica que as formas simbólicas estão sempre inseridas
em contextos sociais estruturados, nos quais podem
atuar para estabelecer e sustentar relações desiguais.
Nos contextos sociais estruturados, um dos aspectos
relevantes é que as pessoas têm localizações sociais
diferentes e, em virtude de sua localização, diferentes
graus de acesso aos recursos disponíveis. As formas
simbólicas são ideológicas quando atuam, em contextos
específicos, para estabelecer ou manter relações de de-
sigualdade no acesso aos bens, materiais e simbólicos.
A concepção “negativa” de ideologia importa-se mais
com o uso de uma ideia que com a sua veracidade ou
origem. Determinadas ideias, independentemente de
serem verdadeiras ou falsas, podem operar (conscien-
te ou inconscientemente) para sustentar formas opres-
sivas de poder. O exame crítico da ideologia não se dá
em função da veracidade ou da falsidade das ideias,
mas da legitimação de formas injustas de poder: “Não
é absolutamente o caso que essas formas simbólicas
servem para estabelecer e sustentar relações de do-
minação somente devido ao fato de serem errôneas,
ilusórias ou falsas” (THOMPSON, 1995, p. 77). O mais
importante é o fato de formas simbólicas atuarem, em
contextos específicos, para legitimarem desigualdades
sociais. Portanto, a ideologia se ocupa mais dos confli-
tos no campo dos significados do que com os próprios
significados.

14 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
A mobilização de significados para manter desigualda-
des sociais ocorre em diferentes planos. Para Thomp-
son (1995, p. 77), Marx não esteve atento às relações
de poder em outros planos igualmente importantes,
para além da dominação de classe. A ideologia atua
também no estabelecimento e sustentação de outras
relações de desigualdade, como as de raça, gênero,
idade e nação. Em função disso, “ao estudar a ideo-
logia, podemos nos interessar pelas maneiras como o
sentido mantém relações de dominação de classe, mas
devemos, também, interessar-nos por outros tipos de
dominação” (THOMPSON, 1995, p. 78, grifo do autor).
Nos diferentes estudos que compõem o livro foram mo-
bilizamos tais instrumentos teóricos conceituais, para
analisar como formas simbólicas específicas (textos,
falas e imagens) inseridas em um contexto social estru-
turado – a sociedade nacional na qual opera o “racis-
mo à brasileira” (SILVA, 2008, p. 67-77) – atuam para
produzir e reproduzir desigualdades étnico-raciais e
etárias. No caso específico das análises realizadas, a
discussão foi desenvolvida sobre modos de operação e
estratégias ideológicas que atuam na produção e repro-
dução de hierarquizações étnico-raciais e etárias.
Vinculado à sua proposta metodológica de crítica à
ideologia, Thompson (1995) também desenvolveu um
quadro com cinco modos gerais de operação da ideo-
logia: legitimação, dissimulação, unificação, fragmenta-
ção e reificação. A cada um destes modos gerais estão
relacionadas algumas estratégias típicas de construção
simbólica ideológica. O Quadro 1 apresenta uma adap-
tação nossa a partir da proposta do autor. Os modos
de operação descritos não são os únicos pelos quais

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
15
a ideologia opera, podendo se sobrepor e reforçar mu-
tuamente ou se associar. E as estratégias típicas de um
determinado modo podem, em contextos específicos,
se associar a outros modos de operação.
As estratégias não são ideológicas em si, mas depen-
dem do contexto no qual são produzidas, veiculadas
e recebidas, bem como de seu uso em circunstâncias
particulares. Apresentam algumas formas pelas quais
se pode pensar a interação entre sentido e poder na
vida social, mas Thompson, ao propô-las, ressalta que
o quadro oferece orientações gerais para a pesquisa.
Portanto, é importante uma análise acurada de contex-
tos particulares para decifrar maneiras pelas quais as
formas simbólicas se entrecruzam com relações de po-
der desiguais. No caso dos estudos constantes neste
livro o contexto das hierarquias de raça, de idade, de
gênero e sexualidade que são estruturais na sociedade
brasileira definem em grande medida o papel ideológi-
co das formas simbólicas, conforme análises específi-
cas em cada um dos estudos.
No Quadro 1 apresentamos os cinco modos de ope-
ração da ideologia e as estratégias típicas a ele asso-
ciadas, com alguns acréscimos sugeridos por estudos
brasileiros (destacados com fundo cinza). Pedrinho
Guareschi (2000, p. 321-325) propõe que a banaliza-
ção é uma forma geral de operação da ideologia, a
qual está associada às estratégias típicas que deno-
mina como divertimento/cômico; fait-divers e ironia
(VERONESE; GUARESCHI, 20063). O autor analisa

3 Os autores dispõem no quadro uma estratégia a mais, o chiste. Optamos por não incor-
porar tal estratégia por ausência de discussão mais pormenorizada sobre tal nas publica-
ções referidas.

16 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
discursos de programa de humor televisivo no qual o
cômico, fait-divers e ironias são utilizados como forma
de satirizar ou ridicularizar movimentos sociais ou
partidos políticos que buscam mudanças na sociedade,
fazendo uso do humor e do deboche como forma de
“diluir fenômenos sociais que possivelmente podem
tornar-se hegemônicos e questionar o imobilismo de
uma sociedade que, da maneira que existe, privilegia a
alguns” (GUARESCHI, 2000, p. 336).

Quadro 1: Modos gerais e estratégias de operação da ideologia4


Modos Gerais Estratégias típicas de construção simbólica
Legitimação: Racionalização: cadeia de argumentos racionais que justifi-
formas simbólicas são re- cam as relações, tendo como objetivo a obtenção de apoio
presentadas como justas e persuasão.
e dignas de apoio, isto é, Universalização: interesses de alguns são apresentados
como legítimas. como interesses de todos.
Narrativização: o presente é tratado como parte de tradições
eternas, que são narradas com o objetivo de mantê-las.
Dissimulação: Deslocamento: transferência de sentidos, conotações positi-
formas simbólicas são vas ou negativas, de pessoa ou objeto a outro/a.
representadas de modos Eufemização: ações, instituições ou relações sociais
que desviam a atenção. são referidas de forma a suavizar suas características e
Ocultação, negação ou estabelecer valoração mais positiva.
obliteração de processos Tropo: uso figurativo das formas simbólicas.
sociais existentes. Sinédoque: tropo caracterizado pelo uso do todo pela parte,
do plural pelo singular, do gênero pela espécie, ou vice-versa.
Metonímia: tropo caracterizado pelo uso de atributo ou ca-
racterística de algo para designar a própria coisa.
Metáfora: tropo que consiste na aplicação de termo ou frase
a outro, de âmbito semântico distinto.
Silêncio: ausência ou falta no discurso que atua ativamente
para construir sentidos (SILVA, 2012).
Unificação: construção de Padronização: as formas simbólicas são adaptadas a de-
identidade coletiva, inde- terminados padrões, que são reconhecidos, partilhados e
pendente das diferenças aceitos.
individuais e sociais. Simbolização da unidade: símbolos de unidade, de identidade
e de identificação coletivos são criados e difundidos.

4 Como forma de auxiliar na diferenciação entre os modos gerais e as estratégias típicas,


adotamos como forma de destaque no Quadro 1 e no decorrer do texto, o sublinhado para
os modos gerais de operação da ideologia e o itálico para as estratégias típicas.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
17
(Quadro 1 - Continuação)

Fragmentação: segmen- Diferenciação: ênfase em características de grupos ou


tação de grupos ou indi- indivíduos de forma a dificultar sua participação no exercício
víduos que possam signi- de poder.
ficar ameaça aos grupos Expurgo do outro: construção social de inimigo, a que são
detentores de poder. atribuídas características negativas, ao qual as pessoas de-
vem resistir.
Estigmatização: “a desapropriação de indivíduo(s) ou gru-
po(s) do exercício de sua humanidade pela valorização de
uma deficiência ou corrupção de alguma condição física, mo-
ral ou social” (ANDRADE, 2001, p. 107-108).
Reificação: processos são Naturalização: fenômeno social ou histórico é tomado como
retratados como coisas. natural e inevitável.
Situações históricas e Eternalização: fenômeno social ou histórico é considerado
transitórias são tratadas como permanente, recorrente ou imutável.
como atemporais, perma- Nominalização: transformação de partes de frases ou ações
nentes, naturais. descritas em nomes, ou substantivos, atribuindo-lhes sentido
de coisa.
Passifização: uso de voz passiva que leva à retirada de su-
jeitos das ações.
Banalização: “diluição” da Divertimento: por meio do cômico, desvia-se a atenção de
realidade ou da importân- problemas fundamentais para assuntos secundários, ou
cia do tema, induzindo à para situações triviais ou ridículas.
conformidade e ausência Fait-Divers: “um fato diverso”, ou seja, desvio do assunto,
de reflexão crítica (GUA- reorientando o foco para direção diversa; forma de lidar com
RESCHI, 2000, p. 321- a informação de maneira sensacionalista, perpetuando seu
325). valor emocional.
Ironia: consiste em dizer o contrário do que se pensa, dei-
xando intencionalmente uma lacuna entre o explícito e o im-
plícito (seu contrário).
FONTE: Adaptado de Thompson (1995, p. 80-89), com aportes de Guareschi
(2000, p. 321-325), Andrade (2001, p. 107-108) e Silva (2012).

Por sua vez Andrade (2001), ao analisar o discurso do


jornal A Folha de São Paulo sobre prostituição infanto-
juvenil, apreende formas de estigmatização da infância
pobre no tratamento dado pelo jornal ao tema. Defende
que a estigmatização (conceito retirado da teorização
de Goffman sobre o estigma) é uma forma específica de
expurgo do outro, constituindo-se em estratégia ideoló-
gica típica associada ao modo geral de fragmentação.
Em artigo que analisamos estratégias discursivas de
hierarquização entre brancos e negros no Brasil e na

18 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
América Latina, a proposta é que o silêncio pode ser
compreendido como uma estratégia ideológica rela-
cionada ao modo de operação descrito por Thompson
como dissimulação, visto que sistematicamente é o si-
lêncio que opera para ocultar processo social de de-
sigualdade racial (SILVA, 2012). O argumento é que,
para a análise do discurso racista no Brasil, é importan-
te estar atento ao silêncio que é atuante na hierarquiza-
ção entre brancos/as e negros/as (como entre brancos/
as e indígenas). Para sustentar tal afirmação, o artigo
discute e traz exemplos de quatro diferentes formas de
manifestação do silêncio que identificamos no discurso
racista brasileiro, a saber: o silêncio sobre a branqui-
dade, que atua para estabelecer o branco como norma
de humanidade; a negação da existência plena ao ne-
gro: invisibilidade e sub-representação; o silêncio sobre
particularidades culturais do negro brasileiro; o silêncio
como estratégia para ocultar desigualdades. A análise
empreendida lança mão de formas simbólicas retira-
das da literatura especializada sobre relações raciais
no plano simbólico (SILVA; ROSEMBERG, 2008; SILVA
2008) e, principalmente, utiliza resultados de análises
que empreendemos em pesquisas sobre relações ra-
ciais no plano simbólico brasileiro, em diferentes supor-
tes discursivos, conforme pesquisa que vimos desen-
volvendo (SILVA, 2008; SILVA, 2010; SILVA; SANTOS;
ROCHA, 2007; SILVA; SANTOS; ROCHA, 2010; SAN-
TOS; SILVA, 2010; ARAUJO, 2010; 2015).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
19
2. A (re)interpretação da Ideologia: o método

Além do conceito de ideologia, os estudos deste livro


se ancoram em especial na proposta metodológica
da Hermenêutica de Profundidade (HP), proposta por
Thompson (1995). A análise da ideologia, para o au-
tor, é uma forma particular de HP, cujo foco dirige-se
às inter-relações entre significado e poder. No caso es-
pecífico das dissertações e teses cujos resultados são
sintetizados nos capítulos deste livro, relacionam-se na
maneira como formas simbólicas podem ser utilizadas
para estabelecer e manter relações de poder desiguais
entre os grupos étnico-raciais e entre os grupos etários.
O ponto de partida para a análise, como proposta por
Thompson, é a interpretação da doxa, ou hermenêutica
da vida cotidiana (THOMPSON, 1995, p. 363). É um es-
tágio preliminar quando se busca a apreensão de como
as formas simbólicas são compreendidas em contextos
concretos da vida social.
O termo doxa é originário do grego e o dicionário de
Aurélio B. H. Ferreira (1986, p. 610) assinala os signifi-
cados de crença e opinião. É neste sentido que Thomp-
son utiliza o termo. O ponto de partida da investigação
social é o estudo das crenças e opiniões sustentadas
e partilhadas pelas pessoas que compõem o contex-
to a ser estudado. É um uso do conceito diferente do
realizado por Bourdieu (1994), que utiliza o termo para
discutir a acumulação de capital simbólico, particular-
mente no campo da ciência. Doxa, para esse autor, re-
fere-se a ordens sociais estáveis, ao que é prescrito
pela tradição e, devido a tal, naturalizado, implícito, que
não pode ser questionado. A tradição determina aquilo

20 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
que não é preciso mencionar. Quando existem desa-
fios à doxa, tratam-se das “heterodoxias”. Por vezes,
estas motivam a organização de argumentos em de-
fesa da doxa, as “ortodoxias”. Diferem da doxa, pois
essas são implícitas, não precisam de argumentos para
sustentá-la, são a posição, ao passo que as ortodoxias
precisam organizar argumentos em prol das tradições
(BOURDIEU, 1994). Quando explicitadas, passam a
ser somente uma das posições possíveis.
Para Thompson (1995), a interpretação da doxa é o pri-
meiro passo da HP. Mas a HP se caracteriza por ir além
da interpretação da doxa: é necessária uma “ruptura
metodológica com a hermenêutica da vida cotidiana”
(THOMPSON, 1995, p. 364, grifos do original). A inter-
pretação da doxa é, para o autor, um passo necessá-
rio, mas não suficiente. O ponto de partida é o reco-
nhecimento dos sentidos compartilhados no contexto a
ser estudado. Mas outros aspectos da vida simbólica
devem constituir o campo-objeto da pesquisa. As for-
mas simbólicas são construções significativas, mas são
também construções estruturadas de forma específica
e inseridas em contextos sociais e históricos determi-
nados. Para ir além da hermenêutica da vida cotidia-
na, é necessário tentar compreender as formas em que
os sentidos fundam e mantêm relações de dominação.
Thompson propõe, nesse aspecto, o referencial me-
todológico da HP constituído de três fases principais.
Tais fases “devem ser vistas não tanto como estágios
separados de um método sequencial, mas antes como
dimensões analiticamente distintas de um processo in-
terpretativo complexo” (THOMPSON, 1995, p. 365).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
21
Hermenêutica da vida Interpretação da Doxa
Vida cotidiana

Situações espaço-temporais
Campos de interação
1) Análise Instituições sociais
sócio-histórica Estrutura social
Meios técnicos de transmissão

Referencial Análise semiótica


Metodológico da 2) Análise formal Análise da conversação
Hermenêutica de ou discursiva Análise sintática
Profundidade Análise narrativa
Análise argumentativa
Análise de conteúdo

3) Interpretação/
Re-interpretação

Figura 1. Formas de investigação hermenêutica


FONTE: adaptado de Thompson (1995, p. 365)

A primeira fase é a análise sócio-histórica, cujo objetivo


é “reconstruir as condições sociais e históricas de pro-
dução, circulação e recepção das formas simbólicas”
(Thompson, 1995, p. 366, grifos do autor). Algumas
condições podem ser particularmente relevantes: 1) a
estrutura social na qual as relações de poder são esta-
belecidas e mantidas, e as assimetrias e diferenças re-
lativamente estáveis; 2) as circunstâncias espaço-tem-
porais nas quais as formas simbólicas são produzidas e
reproduzidas; 3) os campos de interação5, suas regras
e convenções, as posições das pessoas e o “capital”
a elas disponível; 4) as instituições sociais, os conjun-
tos de regras, recursos e relações que a constituem, as
formas particulares que dão aos campos de interação;
5) os meios técnicos de construção e transmissão das

5 “Segundo Bourdieu, um campo de interação pode ser conceituado, sincronicamente,


como um espaço de posições e, diacronicamente, como um conjunto de trajetórias. Essas
posições e trajetórias são determinadas, em certa medida, pelo volume e distribuição de
variados tipos de recursos ou ‘capital’ [econômico, cultural, simbólico]. Dentro de qualquer
campo de interação, os indivíduos baseiam-se nesses diferentes tipos de recursos para
alcançar seus objetivos particulares” (THOMPSON, 1995, p. 195).

22 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
formas simbólicas que lhes conferem características
determinadas.
A preocupação com a ideologia dirige a atenção para
as relações de dominação do contexto nas quais as for-
mas simbólicas são produzidas, difundidas e recebidas.
Determinadas relações de poder “são sistematicamente
assimétricas e relativamente duráveis” (THOMPSON,
1995, p. 366), como é o caso das relações raciais no
Brasil. A pesquisa sócio-histórica deve tentar compreen-
der a contextualização social das formas simbólicas:

A produção de objetos e expressões signifi-


cativas – desde falas quotidianas até obras
de arte – é uma produção tornada possí-
vel pelas regras e recursos disponíveis ao
produtor, e é uma produção orientada em
direção à circulação e recepção antecipada
dos objetos e expressões dentro do campo
social (THOMPSON, 1995, p. 368).

As instâncias do discurso estão sempre situadas em


contextos sócio-histórico particulares, mas apresen-
tam características e relações estruturais que podem
ser analisadas formalmente. Para Thompson, estas ca-
racterísticas devem ser estudadas por meio de análise
formal ou discursiva, a segunda fase da HP. Podem ser
empregados métodos distintos de análise discursiva,
selecionados em função dos objetivos e circunstâncias
específicas da pesquisa. Na análise formal são utiliza-
das técnicas específicas com um sentido de “objetiva-
ção” das formas simbólicas, para analisar certas carac-
terísticas internas, regras, padrões, recursos, relações.
“Formas simbólicas são os produtos de ações situadas

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
23
que estão baseadas em regras, recursos, etc., disponí-
veis ao produtor” (THOMPSON, 1995, p. 369). A análi-
se formal engloba as estruturas articuladas das formas
simbólicas e tem como foco as características estrutu-
rais de tais formas que agem para mobilizar significa-
dos a serviço do poder. Nos estudos realizados foram
utilizadas técnicas de Análise Crítica de Discurso (ACD)
e de Análise de Conteúdo, sendo esta última baseada
em Rosemberg (1981) e Bardin (1985). Para Rosem-
berg (1981, p. 70):

A técnica de análise de conteúdo se propõe


a descrever aspectos de uma mensagem,
objetiva e sistematicamente, e algumas ve-
zes, se possível, quantificável, a fim de in-
terpretá-la, de acordo com os pressupostos
da investigação. O processo de análise de
conteúdo, nesta perspectiva, nada mais é
que uma tentativa de categorizar partes de
um discurso, tentando, assim, desvendar
significados pouco claros ou trazer, para o
primeiro plano, aspectos comuns subjacen-
tes e sossobrados na diversidade estilística.

Entendemos que a análise de conteúdo é um conjun-


to de procedimentos que deve ser posto a serviço de
objetos de estudo e de teorias. Analogamente às ou-
tras formas de análise discursiva, “este tipo de análise
torna-se ilusório quando [...] discutido isoladamente da
interpretação (e re-interpretação)” (THOMPSON, 1995,
p. 369), pois as formas simbólicas (construções com
uma estrutura articulada) são também construções sim-
bólicas complexas, por meio das quais algo é expresso

24 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
ou dito e, portanto, devem ser examinadas em relação
ao contexto em que são evocadas. Na perspectiva críti-
ca que adotamos, a análise de conteúdo visa auxiliar a
desvendar sentidos que podem estar a serviço de criar
e manter dominações étnico-raciais e etárias.
A Análise Crítica de Discurso (ACD) é uma abordagem
interdisciplinar que foco em especial o papel dos discur-
sos na reprodução do poder, dominação e desigualda-
des, preocupada com as propriedades do discurso em
vários níveis. De acordo com van Dijk (2001), a ACD
analisa estruturas e estratégias globais do discurso
(macroproposições, legitimações, representações de si
e do outro) assim como estruturas locais (categoriza-
ção, descrição e atributos de sujeitos, dispositivos de
retórica, indiretividade, pressuposições, implicitudes,
argumentação, topoi, atribuições, uso lexical).
A terceira fase da HP é a interpretação/reinterpretação
da ideologia. Tem um sentido de continuidade e comple-
mentaridade da fase anterior, a análise discursiva, mas
difere dessa. A interpretação procede por síntese. Nes-
sa fase, o intuito é estabelecer a articulação dos resul-
tados das duas fases anteriores, isto é, a interpretação
do que foi expresso pela análise discursiva à luz dos
contextos socialmente estruturados de sua produção. A
síntese dos dois momentos leva à “construção criativa
de novos significados” (THOMPSON, 1995, p. 375) que
transcendem os sentidos dados nas fases anteriores.
As formas simbólicas são sempre um “território pré-in-
terpretado” pelos sujeitos que compõem o campo-ob-
jeto da investigação. Devido a isso, Thompson utiliza
a ideia de “reinterpretação” à atribuição de novos sen-
tidos para formas simbólicas estudadas. Estudar ideo-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
25
logia, para o autor, é explicitar os sentidos que criam e
sustentam relações de poder desiguais. A terceira fase
da HP tem o objetivo de evitar que a pesquisa social se
limite à “falácia do internalismo” (THOMPSON, 1995, p.
377), isto é, que as formas simbólicas sejam estudadas
somente em suas características internas, minorando
as condições sócio-históricas e os processos cotidia-
nos de sua produção e recepção.
Interpretar a ideologia é, portanto, “explicitar a cone-
xão entre o sentido mobilizado pelas formas simbólicas
e as relações de dominação que este sentido ajuda a
estabelecer e sustentar” (THOMPSON, 1995, p. 379).
O trabalho de análise formal ou discursiva e de aná-
lise de formas simbólicas em um contexto determina-
do procura captar as características formais/estruturais
das formas simbólicas como instâncias ou processos
específicos de construção ideológica. Pode-se, então,
argumentar que nas situações específicas de constru-
ção das formas simbólicas elas podem estar ligadas a
certos modos de operação da ideologia. A análise parte
das estratégias ideológicas para caracterizar a atuação
de modos de operação da ideologia, conforme exemplo
de Thompson (1995, p. 379):

Assim, podemos tentar mostrar que o uso


generalizado de verbos nominalizados e da
modalidade passiva são indicativos das es-
tratégias ou processo de nominalização e
passivização; e podemos continuar a argu-
mentar que, em circunstâncias específicas,
essas estratégias ou processos servem
para sustentar relações de dominação atra-
vés da reificação dos fenômenos sócio-his-

26 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
tóricos, isto é, apresentando uma situação
transitória, histórica, como se fosse perma-
nente, natural, fora do tempo.

A interpretação da ideologia busca explicar o significado


e, em seguida, compreender como ele tem servido ao
estabelecimento e manutenção de relações de domina-
ção. “É um trabalho que exige tanto uma sensibilidade
às características estruturais das formas simbólicas,
como uma consciência das relações entre indivíduos
e grupos” (THOMPSON, 1995, p. 380). Nas pesquisas
desenvolvidas no NEAB-UFPR temos utilizado operado
a re-interpretação da ideologia utilizando os modos de
operação e estratégias típicas da ideologia como forma
de explicitar como os discursos analisados têm opera-
do em contextos específicos, como forma de sustentar
a ideologia (SILVA, 2008; NASCIMENTO, 2009; 2015;
ARAUJO, 2010; 2015; PACIFICO, 2011; SOUZA, 2011;
SANTOS, 2012; OLIVEIRA, 2012; FALAVINHA, 2013).
Os capítulos que seguem trazem sínteses dos resulta-
dos de cada uma das pesquisas. No Capítulo 2, “Análise
de discursos ideológicos: a atuação do Enfoque Tríplice
de Thompson”, de Débora Oyayomi Araujo, é apresen-
tado o único exemplo do Enfoque Tríplice desenvolvido
no grupo de pesquisas do NEAB-UFPR. Tal abordagem
analisou desde a produção da literatura infantojuvenil
e sua distribuição pelo Programa Nacional de Bibliote-
ca da Escola (PNBE), passando pela a construção das
mensagens em livros utilizados literários até chegar à
análise da recepção e apropriação das mensagens co-
municativas da leitura de obras literárias durante aulas
de leitura em escolas municipais de Curitiba. A opção

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
27
foi de apresentar dois blocos dos resultados. O primeiro
que se refere à branquidade expressa em duas formas
distintas, uma como possibilidade de reconhecimento
das diferenças, outra como normativa. O segundo ana-
lisa duas diferentes formas discursivas de construção
da imagem da África, ambas estereotipadas de forma
a atuarem ideologicamente para difundir e crias hierar-
quias raciais.
O texto a seguir, “Relações étnico-raciais e literatura
infantil”, de Veridiane Cintia de Souza de Oliveira, com-
põe o Capítulo 3 e analisa as estratégias ideológicas
presentes nos acervos de 2008 do Programa Nacional
Biblioteca da Escola destinados à Educação Infantil.
O estudo consistiu na análise de estratégias ideológi-
cas presentes nos textos e nas imagens de vinte obras
de literatura infantil enviadas para as escolas públicas
de Educação Infantil e Ensino Fundamental no ano de
2008. Na análise sócio-histórica desenvolveu-se um le-
vantamento específico sobre pesquisas que articularam
literatura infantojuvenil e relações raciais; na análise
formal ou discursiva foi possível estabelecer as carac-
terísticas das amostras analisadas e, aliada às outras
duas, na terceira etapa foi possível identificar que exis-
tem, ainda que em baixa frequência, representações
positivas de alguns personagens negros. Contudo, os
personagens brancos, além de continuarem aparecen-
do mais vezes que os negros nas narrativas, são (re)
tratados de forma mais elaborada. Além disso, a parti-
cipação constante de brancos na literatura tem servido
para o estabelecimento da manutenção do seu grupo
como norma social e pressupondo, inclusive, que os lei-
tores presumidos sejam também brancos.

28 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
O Capítulo 4, “O silêncio como estratégia ideológica: a
invisibilidade negra na história, na arte, nas Diretrizes
Curriculares de Arte para a Educação Básica e no Livro
Didático Público de Arte do Paraná”, de Megg Rayara
Gomes de Oliveira, levantou a hipótese de que o pro-
cesso de invisibilização da população negra na história
oficial do estado do Paraná atualiza-se na construção
de um currículo que silencia a estética africana e afro-
-brasileira no ensino da Arte, no ensino médio. A partir
de tal hipótese, a autora investigou quais as estratégias
de hierarquização entre brancos/as e negros/as podiam
ser observadas nesses documentos, produzidos e pu-
blicados pela Secretaria de Estado da Educação do Pa-
raná. Na análise, a autora identificou diversas formas
de operação da ideologia na história da presença negra
na sociedade paranaense, assim como nos dois docu-
mentos analisados: as Diretrizes Curriculares de Artes
e Arte para a Educação Básica do Estado do Paraná
e o Livro Didático Público de Arte para o Ensino (tan-
to nos textos, quanto nas imagens). A dissimulação foi
a mais frequente, estabelecendo o ser humano branco
como norma de humanidade; negando existência plena
ao negro; silenciando sobre as particularidades cultu-
rais da população negra no Brasil e ocultando as desi-
gualdades historicamente construídas.
No Capítulo 5, Tânia Mara Pacifico, em “Relações ra-
ciais no Livro Didático Público”, analisa as relações ra-
ciais no Livro Didático Público – Folhas, uma iniciativa
de produzir livros de autoria de professoras e profes-
sores da rede estadual do Paraná. A pesquisa fez uso
do conceito de ideologia e da metodologia da Herme-
nêutica de Profundidade (HP) desenvolvida por Thomp-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
29
son (1995), tomando como focos de análise: a) em que
medida o Livro Didático Público – Folhas contempla as
definições legais do artigo 26-A da LDB (modificado
pela Lei 10.639/2003 e alterado pela Lei 11.645/2008),
o Parecer 03/2004 e Resolução 01/2004 do Conselho
Nacional de Educação; b) que estratégias ideológicas
de hierarquização entre brancos/as e negros/as foram
captadas nas políticas públicas e nos livros. A análise
das políticas de produção apontou que não foram le-
vadas em consideração as propostas de promoção de
igualdade racial que ocorriam dentro da própria estru-
tura da Secretaria Estadual de Educação. Foram sele-
cionados para análise livros de duas disciplinas: Língua
Portuguesa e Educação Física. De forma geral, somen-
te o livro de Educação Física atende, parcialmente e
com contradições internas, às definições legais sobre
Educação das Relações Étnico-Raciais. Foram anali-
sadas formas simbólicas dos livros que naturalizam o
branco como representante da humanidade; que estig-
matizam personagens negros/as, em especial a mulher
negra; que se silenciam sobre a presença negra, sobre
a história e cultura africana e afro-brasileira e sobre os
processos de discriminação e desigualdade racial.
O Capítulo 6, “Personagens negros e brancos em li-
vros didáticos de Ensino Religioso”, de Sergio Luis do
Nascimento, apresenta análise dos discursos sobre os
segmentos raciais negros e brancos em livros didáti-
cos de Ensino Religioso de 5ª e de 8ª séries do ensino
Fundamental, publicados entre 1977 e 2007. A análise
foi produzida nos contextos interpretativos da teoria da
ideologia (THOMPSON, 1995) e dos estudos contem-
porâneos sobre relações raciais. Para tanto o autor se-

30 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
lecionou livros didáticos produzidos de acordo com os
três modelos tradicionalmente presentes em diversas
escolas do Brasil, a saber: as concepções denomina-
das Confessional, Interconfessional e a Fenomenológi-
ca. A análise formal ou discursiva consistiu na análise
interna às próprias formas simbólicas por meio de téc-
nicas de análise de conteúdo. Para análise quantitativa
foi investigada uma amostra de 467 personagens nos
textos retiradas de 20 livros didáticos de Ensino Religio-
so de 5ª e de 8ª séries do Ensino Fundamental.
O texto “A diferença banalizada: discursos de inclusão
do negro em livros didáticos de Geografia”, de Wellin-
gton Oliveira dos Santos, compõe o Capítulo 7. Nele,
o autor analisa o modo como os personagens negros
são incluídos em livros didáticos brasileiros, a partir da
análise de personagens negros e brancos presentes
em ilustrações de livros didáticos de Geografia para o
2º ano do ensino fundamental recomendados pelo Pro-
grama Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2010. O
principal argumento é que essa inclusão pode, em cer-
tos casos, contribuir para a estigmatização e racializa-
ção do negro no Brasil, quando ocorre de forma bana-
lizada, isto é, de modo a tratar a diferença racial como
equivalente a diferenças construídas de maneira sócio-
-historicamente distinta, desconsiderando as relações
de poder existentes entre os diversos grupos raciais,
ao mesmo tempo em que a presença negra é explici-
tamente inferior à presença de personagens brancos.
Considera que, como parte de uma agenda antirracis-
ta em políticas educacionais do livro didático, além de
uma maior participação de negros em ilustrações é pre-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
31
ciso desconstruir a ideia de que o branco é o tipo nor-
mal, não racializado.
O Capítulo 8, “Os discursos produzidos sobre os direi-
tos de crianças e adolescentes com o uso do livro di-
dático”, de Karina Falavinha, apresenta uma pesquisa
que teve como mote central compreender os discursos
produzidos sobre a criança a partir do estatuto de sujei-
to de direitos, via uso do Livro Didático de Língua Por-
tuguesa do 5º ano do Ensino Fundamental, buscando
analisar se ocorrem relações de hierarquia etárias. Em
síntese, a relação geracional entre a professora adulta
e as crianças consolida-se como uma relação desigual
em que o poder encontra-se manifestado pela imposi-
ção de discursos reguladores advindos da professora,
constituindo-se como uma relação de dominação e,
portanto, na acepção de Thompson (2009), em discur-
sos ideológicos. As estratégias ideológicas atuaram no
sentido de silenciar, por meio da ausência e/ou da pou-
ca informação, o tema contido no LD, como também no
sentido da naturalização, já que personagens infantis
na relação com personagens adultos se apresentam
em condições de subalternidade discursivamente cons-
truída como parte integrante do desenvolvimento hu-
mano.
O artigo seguinte, “Sobre teorias de raça no pensamen-
to social brasileiro: acerca da ideologia e da ruptura do
legado epistemológico”, de Sergio Luis do Nascimento,
compõe o Capítulo 9 e analisa, no interior do pensamen-
to social brasileiro, a discussão de como atores sociais
negros podem construir um campo de interação consti-
tuído de trajetórias e posições diferenciadas dentro de
uma estrutura social caracterizada por assimetrias, di-

32 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
ferenças e divisões. Nessa relação de confrontação, as
regras e as convenções já estavam estruturadas e ar-
ticuladas dentro de contextos sócio-históricos definidos
(THOMPSON, 1995). Qualquer proposta de ruptura te-
ria que confrontar com a concepção de um país em que
as relações raciais estavam concebidas dentro de um
contexto harmonioso. O que os atores sociais negros
fizeram nas quatro últimas décadas são problematiza-
das nesse texto com intuito de provocar a autorreflexão
e a crítica à ideia de um país como “laboratório da civi-
lização” ou como uma “democracia étnica”. Essas ex-
pressões cumpriram e de certa forma cumprem o papel
do principal legado do mito de fundação do Brasil e que
durante décadas conseguiu manter um discurso públi-
co harmonioso e hegemônico.
O Capítulo 10, “Racismo, poder e legitimação: os dis-
cursos sobre diversidade na gestão do Programa Na-
cional de Biblioteca da Escola (PNBE)”, de Débora
Oyayomi Araujo, analisa como operavam estratégias de
racialização no Programa Nacional Biblioteca da Esco-
la (PNBE). Utilizando como metodologia a Hermenêu-
tica de Profundidade com apoio da Análise Crítica de
Discurso, a autora analisa excertos de uma entrevista
realizada com representante da avaliação pedagógica
do PNBE. Os trechos apresentados da entrevista expli-
citam que o poder simbólico foi demonstrado e exercido
pela definição de critérios subjetivos tanto na compo-
sição dos membros da equipe de avaliação como na
forma de seleção dos livros que compõem os acervos
do PNBE.
Por fim, no Capítulo 11, “Estratégias ideológicas nos
estudos do NEAB-UFPR”, Thaís Carvalho e Paulo Vi-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
33
nicius Baptista da Silva apresentam uma síntese das
estratégias ideológicas identificadas pelas teses e dis-
sertações que foram base para o livro, discutindo o al-
cance da Hermenêutica de Profundidade (HP) para a
análise das hierarquias etárias e étnico-raciais em dis-
cursos brasileiros.
A expectativa é que esta obra contribua com os estudos
sobre relações raciais, oferecendo suportes teórico-me-
todológicos consistentes – seja por meio dos modos e
estratégias de operação da ideologia, seja da HP ou do
Enfoque Tríplice – para análise do racismo operante em
formas simbólicas e na vida cotidiana de modo geral.

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38 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
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Capítulo 2
ANÁLISE DE DISCURSOS IDEOLÓGICOS:
A ATUAÇÃO DO ENFOQUE TRÍPLICE DE
THOMPSON
Débora Oyayomi
u o EAraujo
Ra o, u a o: t at a ol a
39
Capítulo 2

Análise de discursos ideológicos: a atuação do


Enfoque Tríplice de Thompson

Débora Oyayomi Araujo1

Introdução

Thompson propõe que, atrelado à Hermenêutica da


Profundidade, sejam discutidos aspectos específicos da
produção e transmissão das formas simbólicas dentro
do contexto de comunicação de massa, pois considera
duas importantes características desta comunicação: a
produção das formas simbólicas é “feita para ouvintes
que geralmente não estão fisicamente presentes no lo-
cal de produção e transmissão ou difusão” (THOMP-
SON, 2002, p. 392); pela grande demanda de produção
de mensagens que atingem o “receptor”, a capacidade
deste de “intervir no processo comunicativo é, muitas
vezes, limitado” (THOMPSON, 2002, p. 392).
É, portanto, considerando tais características que o autor
constrói o que ele chama de Enfoque Tríplice, respon-
sável por analisar as formas simbólicas mediadas pelos
meios de comunicação de massa. Thompson (2002) as-

1 Doutora em Educação pela UFPR, graduada em Letras – Português/Inglês, com es-


pecialização em Língua Portuguesa e Literatura. Professora do Centro de Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo, atuando na disciplina de Educação das Relações
Étnico-Raciais.

40 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
sim divide o Enfoque Tríplice: 1) Produção e transmis-
são ou difusão das formas simbólicas; 2) Construção da
mensagem dos meios de comunicação; 3) Recepção e
apropriação das mensagens comunicativas.
Fazendo uso do Enfoque Tríplice, este artigo apresen-
tará partes da dissertação de mestrado intitulada “Re-
lações raciais, discurso e literatura infantojuvenil”, cuja
pesquisa de campo foi realizada em duas escolas mu-
nicipais de Curitiba.
No que se refere à Produção e transmissão ou difusão
das formas simbólicas, por estar situado “dentro de con-
dições sócio-históricas específicas e geralmente envol-
vem acordos institucionais particulares” (THOMPSON,
2002, p. 392), tal enfoque foi responsável por analisar
as principais características do Programa Nacional de
Biblioteca da Escola (PNBE) e como vem se dando a
implementação da Lei 10.639/2003 no contexto escolar.
Para tanto foram analisados documentos institucionais
além de pesquisas que investigaram o PNBE.
Inicialmente, a análise destinou-se à interpretação dos
dados referentes à distribuição gratuita de livros de lite-
ratura para as escolas públicas brasileiras. Durante sua
vigência, por mais de 15 anos ininterruptos, o PNBE
teve como objetivo principal “democratizar o acesso a
obras de literatura infantojuvenis, brasileiras e estran-
geiras, e a materiais de pesquisa e de referência a
professores e alunos das escolas públicas brasileiras”
(Aparecida PAIVA2, 2008, p. 8). Tal objetivo relaciona-se

2 Em exercício de uma educação, linguagem e produção intelectual antissexista, neste


texto, além de utilizar o gênero feminino e masculino em referência às pessoas em geral,
serão destacados/as os/as autores/as citados/as. Sendo assim, na primeira vez que há
a citação de um/uma autor/a, seu nome completo será apresentado para a identificação
do gênero e, consequentemente, para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras
e estudiosas. Assim também por todo o texto, e não somente na introdução, a linguagem

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
41
diretamente com o processo de emancipação intelec-
tual ao qual o sistema educacional público almeja e,
que, por consequência, amplia a produção da indústria
de livros, possibilitando geração de lucros em maior es-
cala.
Sendo considerado “uma ação pública de incentivo à
leitura, como parte da política educacional [...]” (BRA-
SIL, 2008, p. 5), esse Programa foi criado em 1997 com
a proposta de difundir, em escolas públicas, o uso do
livro como bem cultural. Anteriormente a isso, Zilber-
man (1995) e outros/as especialistas apresentam um
histórico de programas nacionais e regionais que ti-
nham como objetivo expandir o acesso ao livro literário.
Zilberman (1995) inclusive afirma que diversos projetos
foram criados no século passado, dos quais ela desta-
ca alguns:

Oriundo do poder público federal é o projeto


de financiamento de publicações de obras li-
terárias, por intermédio do Instituto Nacional
do Livro. Este implantou, nos anos 70, uma
política de coedições que patrocina parte do
custo de produção de textos, responsabili-
zando-se também pela distribuição de sua
cota de livros, procurando, com isso, suprir
bibliotecas públicas nos níveis estadual e
municipal (ZILBERMAN, 1995, p. 125).

No entanto, os dados apresentados a seguir sobre o


PNBE indicam problemas relacionados ao cumprimento

de gênero se fará presente: em alguns momentos por meio de barras (/) e em outros pelo
registro total dos vocábulos. Ressalva-se que tal processo, considerado por muitos/as
como “subversão” das normas, só ocorre em função de as normas serem restritivas na
representação de gênero.

42 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
de seus objetivos. Mesmo sendo visível o investimento
financeiro na aquisição de obras literárias para os di-
versos espaços possíveis de fomento à leitura (escola,
biblioteca pública, residência de estudantes, de educa-
doras e educadores) e a busca em atingir todas as mo-
dalidades de ensino, o simples fato da aquisição e dis-
tribuição não foi responsável por contribuir na tentativa
de sanar os problemas relacionados aos baixos índices
de leitura e o combate ao analfabetismo funcional.
Uma publicação do Ministério da Educação (BRASIL,
2008) realizada com profissionais da educação, estu-
dantes e familiares, intitulada Avaliação diagnóstica do
Programa Nacional de Biblioteca da Escola – PNBE
possibilitou, por meio de seus dados, uma verificação
mais detalhada da veiculação e disponibilização dos li-
vros distribuídos pelo PNBE às escolas públicas. Com-
pondo uma amostra formada por 149.968 unidades,
sendo 96.600 na área rural e 53.368 na área urbana, os
dados apresentados referem-se ao ano de 2003, época
em o número de estudantes matriculados/as nas esco-
las da amostra foi de 31.162.624, com 6.136.317 em
área rural e 25.026.307 em área urbana. Sendo uma
pesquisa de imersão no cotidiano da escola, e possibi-
litando ouvir as vozes dos diversos sujeitos que com-
põem o ambiente escolar no que se refere à difusão do
livro como um bem cultural para a comunidade no qual
se insere, os resultados apontaram para uma realidade
pessimista:

Nenhum programa de incentivo à leitura,


vinculado a políticas educacionais, entretan-
to, pode subestimar as condições em que a
educação escolar vem sendo realizada nas

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
43
redes públicas deste país. O cotidiano das
escolas visitadas pelas equipes, as condi-
ções sociais onde estão inseridas, revelam
o PNBE como uma ação cultural de baixo
impacto em políticas de formação de leitor e
produtor de textos (BRASIL, 2008, p. 123).

É válido considerar, portanto, que um Programa de di-


mensão nacional que tem como objetivo primordial a
democratização da leitura não acontece de maneira
efetiva a ponto de ser reconhecido e reconhecer-se
com tal função. Embora alguns resultados da pesquisa
tenham apontado boas práticas de incentivo à leitura
que acontecem mesmo em condições de infraestrutura
adversas, a maior parte dos dados coletados e analisa-
dos ratifica a informação de que o PNBE tinha, até sua
interrupção em 2015, ficado restrito à mera função de
aquisição e distribuição de livros, ou seja, “[o] modelo
de intervenção adotado vem historicamente privilegian-
do um único aspecto que compõe uma política de for-
mação de leitores: a compra e a distribuição de livros às
escolas e aos alunos” (BRASIL, 2008, p. 5).
Sob outro prisma de interpretação da ideologia, se a
constatação de que as influências ideológicas operam
de forma a produzir, nos meios de comunicação de
massa (especialmente na produção literária infantoju-
venil) uma “bipolarização dominador-dominado” (RO-
SEMBERG, 1985, p. 20) relegando a criança a um es-
paço menor, no que se refere às relações raciais esta
influência se expressa de forma ainda mais evidente.
A desigualdade na caracterização de personagens
negras em relação a brancas, aliada à estereotipia e

44 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
explícitas manifestações racistas, fizeram da literatura
um dos maiores fomentadores do preconceito racial no
Brasil, pois, concordando com o que afirma Regina Dal-
castagnè (2008, p. 88) “[...] uma vez que a opressão
é tanto material quanto simbólica, podemos percebê-la
também na própria literatura, uma forma socialmente
valorizada de discurso que elege quais grupos são dig-
nos de praticá-los ou de se tornar seu objeto”.
Para enfatizar a produção infantojuvenil e sua intrín-
seca aproximação com as relações raciais no Brasil,
um artigo de Maria Cristina Soares de Gouvêa (2005),
Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análi-
se historiográfica, recuperou, em obras clássicas deste
gênero literário, a representação de personagens ne-
gras. Sua pesquisa recaiu sobre a produção das três
primeiras décadas do século 20, cujos principais ex-
poentes são Olavo Bilac, Menochi Del Picchia e Montei-
ro Lobato. Diante da análise de publicações da época,
a autora chegou à seguinte síntese de resultados:

Por um lado, o negro vinha reafirmar a iden-


tidade nacional, associado ao folclore brasi-
leiro e marcando com suas histórias, práticas
religiosas e valores, a infância dos persona-
gens. Por outro, esses mesmos valores não
encontravam lugar no seio de uma socie-
dade que se pretendia moderna, fazendo-o
ocupar um espaço social à parte. Enquanto
a modernidade, associada à urbanidade, ao
progresso, à técnica, e à ruptura, era repre-
sentada pelos personagens brancos adultos,
os negros eram relacionados a significantes
opostos, como tradição e ignorância, univer-
so rural e passado (GOUVÊA, 2005, p. 84).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
45
Assim como a literatura endereçada ao público adulto
estava firmada nas bases do racismo científico, não é
de se estranhar que a literatura infantojuvenil seguis-
se os mesmos passos, porém com um agravante: seu
caráter didatizante que, por consequência, servia para
reafirmar às novas gerações quem ocupava cada um
dos “seus devidos lugares” na sociedade da época. E,
inegavelmente, Monteiro Lobato firmou-se como um
dos maiores representantes desta característica euge-
nista, tema apresentado na pesquisa de Paula Arantes
Botelho Briglia Habib (2003). Por meio da investiga-
ção de parte da vida e obra de Lobato e relacionando-
-as com as teorias racistas da época, a pesquisadora
apontou que, em diversas produções, seus anseios por
uma nação próspera estavam firmados no ideal de raça
pura, livre das mestiçagens, ou “má semente” (LOBA-
TO apud HABIB, 2003, p. 168) encontradas no Brasil.
A regeneração da espécie seria responsável pela rea-
locação do país a um status de progresso, digno de
sua história. Com tais apontamentos, a intenção é de
evidenciar muito além de um momento histórico espe-
cífico: é, sobretudo, discutir o cânone e quais os aspec-
tos que o constituem como tal. Neste prisma, concordo
com Habib (2003, p. 20) que afirma que:

[...] o objetivo central [...] não é, diferente


do que possa parecer, destruir um mito ou
negar o encanto de páginas que marcaram
sucessivas gerações de brasileiros nas
quais, evidentemente, me incluo. Pretende-
-se chamar a atenção para uma outra faceta
deste escritor tão popular e cultuado, tanto
no meio acadêmico quanto pelas pessoas

46 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
em geral, – através do livro ou da TV – para
enxergá-lo em seu tempo histórico, como
um sujeito que viveu intensamente seus
equívocos e contradições.

Acabaria por se tornar inviável assumir uma empreitada


de interpretação da ideologia por meio do discurso e
da literatura sem buscar desvelar aspectos subjetivos
(e outros nem tantos) que podem ser responsáveis por
construir as bases desta ideologia, como é o caso da
herança literária deixada por Lobato. Em duas pesqui-
sas (mestrado e doutorado) sobre as discriminações
raciais nos livros didáticos, Ana Célia da Silva (2001;
2004) discutiu amplamente o caráter ideológico imbri-
cado nas produções didáticas e literárias para a escola:

Os materiais pedagógicos têm papel funda-


mental na reprodução das ideologias, uma
vez que expandem visões estereotipadas
dos segmentos oprimidos da sociedade.
Entre eles, sobressai-se pela importância
que lhe é conferida pelos pais, alunos e
professores, o livro didático, considerado
o depositório da verdade, a memória con-
servada das civilizações. Contudo, muitos
processos civilizatórios e muitas visões de
mundo são omitidos ou minimizados pelo li-
vro, que veicula, na maioria das vezes, a vi-
são de mundo e o processo civilizatório das
classes dominantes (SILVA, 2004, p. 51).

Mesmo fazendo referência direta ao livro didático, é


possível inferir que é o que faz, em suma, Lobato ao
descrever Tia Nastácia como uma “negra beiçuda [...]

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
47
sem cultura nenhuma, que nem ler sabe [...] e que ou-
tra coisa não faz [...] senão ouvir as histórias de outras
criaturas igualmente ignorantes, e passá-las para ou-
tros ouvidos, mais adulterados ainda” (LOBATO, 1982
[1937]). Associar o conhecimento de uma personagem,
que traz tradições orais advindas da cultura africana
(e que o próprio autor as resgata) a um conhecimento
inferior e alienante, é negar qualquer possibilidade de
descendentes que têm acesso a estas leituras de se
identificarem com tal cultura. Ou seja, “[o]mitindo e mi-
nimizando a história, os valores culturais, o cotidiano e
as experiências da criança negra, o livro concorre signi-
ficativamente para o recalque da sua identidade étnica
e seu branqueamento mental e físico” (SILVA, 2004, p.
52). Além disso, para as crianças de forma geral, men-
sagens que poderiam operar no sentido de valorização
da origem africana fazem o contrário, a desvalorizam.
Da mesma forma, Célia Maria Escanfella (1999; 2007),
em uma análise comparativa de 30 obras infantojuve-
nis publicadas entre 1976 e 2000, “com o objetivo de
compreender como o setor editorial tem representado a
questão étnica/racial” (ESCANFELA, 2007, p. 1), apon-
tou para manutenções na relação assimétrica entre a
disposição (tanto imagética quanto literária) de perso-
nagens brancas e não-brancas:

Os resultados ressaltam, apesar do aumen-


to na representação de personagens ne-
gros, a manutenção da assimetria na repre-
sentação racial na produção literária para
crianças, pois permanece pouco expressivo
o índice de personagens negros no texto e
nas ilustrações tanto na produção de edito-

48 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
ras laicas como católicas. Evidencia-se, as-
sim, que o leitor implícito no texto é a crian-
ça branca para a qual a relação étnica/racial
é apresentada de forma ideológica, acima
de tudo pela ausência de representação de
grupos étnicos não-brancos, universalizan-
do-se a representação da espécie como
branca, ou por meio de uma representação
estereotipada.
[...]
Ao comparar esses resultados com outros
estudos sobre a questão racial, pode-se afir-
mar que a literatura infantil contemporânea
não sofreu grandes alterações quanto aos
aspectos raciais nela representados, princi-
palmente quando se toma como referência
a produção de editoras católicas, permane-
cendo, portanto, uma fonte de produção,
manutenção e reprodução das assimetrias
raciais (ESCANFELA, 2007, p. 7).

Com isto, pode-se concluir que não basta, a quem preten-


de discutir a trajetória da literatura infantojuvenil, focar-se
somente nas produções do início do século 20 (mesmo
estando presentes ainda hoje em bibliotecas e escolas)
mas também intensificar a análise de publicações atuais,
que visam manter relações assimétricas de poder, já que
elas compõem, juntamente com muitas obras mais anti-
gas, acervos de bibliotecas de escolas podendo, desta
forma, atuarem de modo negativo e depreciativo na for-
mação de estudantes acerca da população negra.
Com relação à Construção da mensagem dos meios de
comunicação, este enfoque tem relação com a análise
formal ou discursiva, proposta na Hermenêutica de Pro-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
49
fundidade. Neste trabalho especificamente, esse se-
gundo enfoque recairá sobre a análise das produções
infantojuvenis que apresentam personagens negras. O
objetivo é, portanto, de analisar elementos que apon-
tem para a valorização ou depreciação deste grupo em
função dos preceitos de uma Educação para as Rela-
ções Étnico-Raciais.
Diante dos estudos já desenvolvidos sobre a relação
entre literatura infantojuvenil e educação, é possível
identificar a produção literária como uma relação intrin-
secamente ideológica por revelar-se criadora de um fe-
nômeno simbólico específico – a leitura literária inserida
num espaço de poder, a escola – que atua para “estabe-
lecer e sustentar uma relação de dominação” (THOMP-
SON, 2002, p. 76). Portanto, este campo, por si só, já se
torna possível e passível de análise e interpretação da
ideologia. Mas, se adicionarmos o elemento “relações
raciais”, esse campo amplia-se consideravelmente, por
firmar-se em uma base ideológica a priori que passa a
refletir também a ideologia racista, da qual estas duas
grandes instituições sociais (literatura e escola) atuaram
historicamente para a sua manutenção e reificação; ou,
como, nas palavras de Silva (2007, p. 161), “[o]s nossos
leitores infantojuvenis continuam convivendo com dis-
cursos literários que difundem a hierarquia entre bran-
cos e negros e que discriminam a não-brancos”.
Para ilustrar o que se afirma como uma considerá-
vel ampliação do campo de literatura juvenil e escola
acrescida do estudo sobre relações raciais, um quadro,
inicialmente elaborado por Silva (2007) e que recebeu
a adição de novas categorias e pesquisas, busca expli-
citar a gama de produções científicas que se preocupou

50 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
com estes eixos. Nele inseridas estão pesquisas elabo-
radas desde o final da década de 19703.

Quadro 1. Síntese de formas de hierarquização captadas por pesquisas


sobre personagens negras na literatura infantojuvenil brasileira entre
1985 a 2008.
• Praticamente não existiam personagens negras na literatura infantojuvenil
anterior a 1920 (GOUVÊA4, 2004, 2005);
• obras do período entre 1890-1920 cujos enredos ignoram as atrocidades da
escravização, embora relatem o período (FRANÇA, 2006) e obra atual que
apresenta a mesma omissão (OLIVEIRA, 2003);
• sub-representação de personagens negras, em textos e ilustrações
(ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999; LIMA, 1999; GOUVÊA, 2004, 2005;
KAERCHER, 2006; PESTANA, 2008; FERREIRA, 2008; VENÂNCIO, 2009);
• menor elaboração de personagens negras, com altas taxas de
indeterminação de situação familiar e conjugal, escolaridade, origem geográfica,
religião (ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999; OLIVEIRA, 2003; GOUVÊA,
2004, 2005; KAERCHER, 2006);
• estereotipia na ilustração de personagens negras (ROSEMBERG, 1985;
LIMA, 1999, GOUVÊA, 2004, 2005; KAERCHER, 2006; FRANÇA, 2006;
FERREIRA, 2008; PESTANA, 2008);
• associação do ser negro com castigo e com feiura (ROSEMBERG, 1985;
OLIVEIRA, 2003; KAERCHER, 2006);
• associação do ser negro com simplicidade, primitivismo, ignorância,
proximidade à natureza (ROSEMBERG, 1985; GOUVÊA, 2004, 2005;
KAERCHER, 2006; PESTANA, 2008);
• associação com personagens antropomorfizados (não-humanos)
(ROSEMBERG, 1985; OLIVEIRA, 2003; GOUVÊA, 2004, 2005);
• associação, pela cor, com maldade, tragédia, sujeira, escravidão
(ROSEMBERG, 1985; LIMA, 1999; OLIVEIRA, 2003; FRANÇA, 2006;
PESTANA, 2008);
• correlação de personagens negras com profissões socialmente
desvalorizadas (ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999; LIMA, 1999;
OLIVEIRA, 2003; SOUZA, 2005; PESTANA, 2008);
• o/a branco/a é apresentado/a como condição humana “natural”, como
representante da espécie. Ser branco é a condição normal e neutra da
humanidade: os não-brancos constituem exceção (ROSEMBERG, 1985;
BAZILLI, 1999; NEGRÃO 1988; NEGRÃO E PINTO, 1990; PESTANA, 2008;
FERREIRA, 2008);
• glamourização do mundo branco, em que se vinculam imagens de
luxuosidade, requinte e riqueza a personagens brancas (KAERCHER, 2006);

3 A publicação do livro de Fúlvia Rosemberg (1985) apresenta síntese de resultados de


pesquisa da Fundação Carlos Chagas com relatórios depositados na biblioteca desta fun-
dação em 1978-79.
4 Para não expandir exageradamente a extensão deste quadro, os nomes por extenso
das pesquisadoras e pesquisadores serão explicitados apenas nas referências, ou, no
caso das pesquisas já indicadas no quadro original, ver mais em Silva (2007).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
51
(Quadro 1 - Continuação)

• os livros são produzidos pressupondo como leitores crianças brancas. O


cotidiano e a experiência da criança negra são alijados do ato de criação das
personagens e do enredo dessa literatura (ROSEMBERG, 1985; NEGRÃO,
1987; NEGRÃO, 1988; NEGRÃO E PINTO; 1990);
• mulher negra presa ao estereótipo de empregada doméstica,
particularmente as senhoras submissas, sem vida própria, devotada aos patrões
brancos (ROSEMBERG, 1985; NEGRÃO, 1998; NEGRÃO E PINTO, 1990;
PIZA, 1995; LIMA, 1999; GOUVÊA, 2004, 2005; SOUZA, 2005; KAERCHER,
2006; FRANÇA, 2006). Na literatura infantojuvenil publicada após a década
de 1970, entrada de outra personagem estereotipada, a “mulata sensual”
(PIZA, 1995; KAERCHER, 2006; FRANÇA, 2006);
• ascensão social de personagem negra devido ao auxílio de personagem
branca, por meio de adoção ou de incentivo financeiro e moral, personagens
brancas conseguem mudar o destino de personagens negras (OLIVEIRA, 2003;
FERREIRA, 2008);
• maioria de personagens masculinos, adultos e brancos, que, além de
heterossexuais e representando a normatividade sexual, indicam, nos seus
caracteres e personalidades, modelos a serem seguidos (KAERCHER, 2006);
• ênfase no discurso sobre a mestiçagem, em uma perspectiva de “evolução da
espécie” (OLIVEIRA, 2003; KAERCHER, 2006; FRANÇA, 2006);
• clareamento, nas ilustrações, de personagens negras (Negritude
radializada5), de modo a promover a ocultação das características fenotípicas
de tais personagens, padronizando as ilustrações (KAERCHER, 2006);
• personagem negra com identidade construída de modo fragmentado, em
que não há referências específicas e corretas sobre sua verdadeira origem
(OLIVEIRA, 2003);
• discurso de tolerância às diferenças ao invés de valorização das
diferenças, reafirmando a inferioridade e desconsiderando uma perspectiva de
olhar altero acerca de personagens não-brancas (KAERCHER, 2006);
• auto-rejeição e desejo de embranquecimento por parte de personagens
negras, como uma fuga diante do sofrimento que as atingem (OLIVEIRA, 2003;
FRANÇA, 2006);
• nomes atribuídos a personagens negras que representam metaforicamente
uma carga negativa ou apelidos depreciativos, seja pela sua relação de
vinculação comumente feita com profissões de menor prestígio social ou
pobreza (OLIVEIRA, 2003; PESTANA, 2008);
• configuração pedagógica e didática formando um “manual da cultura afro-
brasileira”, em que ilustrações indicam a composição de instrumentos musicais,
mapas de quilombos e de locais de origem de povos africanos, minivocabulários,
etc. (FRANÇA, 2006).
FONTE: Paulo Silva (2007, p. 161-162); Araujo (2010, p. 22)

5 A autora define Negritude radializada como o “[...] resultado da fusão dos conceitos
de raça e cor no Brasil que [...] termina por criar um leque de matizes cromáticos (como
um radial) que pode chegar ao infinito e que, apesar disto, exclui as cores localizadas
nas extremidades: o branco e o preto. Ou seja, ao articular o processo de reificação da
branquidade com o processo de radialização da negritude, terminamos por criar repre-
sentações cromáticas da negritude que excluem o preto, e os demais matizes escuros,
como cores possíveis de serem utilizadas em suas ilustrações. Deste modo, ao promover
o desaparecimento do escuro implementa-se um embranquecimento” (KAERCHER, 2006,
p. 137-138).

52 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Contudo, diante de resultados diferentes sobre a leitura
de outras pesquisas, surgiu a necessidade da elabora-
ção de um quadro em separado, apontando os resul-
tados que revelam algumas mudanças nas hierarquias
sociais, com resultados positivos para a população ne-
gra – ainda que com limites – no tocante à criação lite-
rária e ilustrações.

Quadro 2. Síntese de mudanças captadas por pesquisas sobre


personagens negras na literatura infantojuvenil brasileira entre 1985 a
2008

presença de narradores/as negros/as, ainda em desvantagem em relação


a brancos/as, mas com um aumento em relação a pesquisas anteriores
(Venâncio, 2009);
incidência maior, no acervo do PNBE/2008 (ainda com “lacunas”) de
personagens negros em contextos familiares (Venâncio, 2009);
enredos contemporâneos que expressam crítica à escravidão capitalis-
ta ao invés de ênfase na escravização como fato passado, evidenciando
outros elementos (problemas sociais) que compuseram este momento histó-
rico do Brasil (França, 2006);
personagem negra escravizada em obra contemporânea cuja imagem
distancia-se da representação de escravo submisso, em que sua voz
ganha um tom de denúncia em relação ao processo ao que foi submetida
(França, 2006);
diminuição da taxa de branquidade relativa a personagens masculinos
negros e aumento relativo a personagens femininas negras em obras do
acervo do PNBE/2008 (Venâncio, 2009);
resultados menos desiguais que pesquisas anteriores, no que se refere
ao percentual de personagens brancas ilustradas nas capas e no corpo
da obra (Venâncio, 2009);
traços físicos e comportamentais de personagens negras idealizadas e
superiorizadas em obras contemporâneas (França, 2006);
aumento no número de protagonistas negras em obras de 1979-1989,
embora a representação quantitativa não represente qualidade na constru-
ção de suas identidades, enredos e contextos sociais (Oliveira, 2003).
FONTE: Araujo (2010, p. 24)

Em síntese, os resultados de pesquisas brasileiras so-


bre relações raciais na literatura infantojuvenil apontam

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
53
para um tratamento profundo e sistematicamente desi-
gual entre brancos/as e negros/as e as pesquisas mais
recentes indicam mudanças nos discursos dessa litera-
tura, passando a apresentar algumas formas mais fa-
voráveis a negros/as, concomitante com a manutenção
de formas de hierarquização branco/a-negro/a. Essas
pesquisas focaram-se nas desigualdades manifestadas
nos discursos dos textos de obras literárias infantojuve-
nil.
Por último, a Recepção e apropriação das mensagens
comunicativas forneceu elementos para investigar se a
ideologia se faz presente no campo da recepção das
mensagens ou se o encaminhamento e os debates
suscitados pela leitura podem estabelecer relações de
dominação ou hierarquização entre o modelo cultural
eurocêntrico, bastante difundido no espaço escolar, e
o africano (e/ou afro-brasileiro). Em função do espaço,
os resultados aqui apresentados remetem a três turmas
de apenas uma das escolas pesquisadas, aqui intitula-
da como “Escola B”, localizada em uma região histori-
camente de imigração italiana, porém que rompe com
os estereótipos construídos no início da pesquisa: uma
escola localizada em um bairro de boa estrutura, com
crianças provenientes de famílias com renda salarial
razoável e, sobretudo, em sua maioria branca. O que
verifiquei, contudo, foi uma escola de periferia, com di-
versos problemas de ordem econômica e social e uma
população negra razoavelmente grande para os índices
da cidade.
Código transcritivo: o sistema de convenção utilizado
foi baseado em Luiz Paulo da Moita Lopes (2002), com
algumas adaptações:

54 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Quadro 3. Códigos das transcrições

AS quando várias crianças falam ao mesmo tempo


G fala de um garoto
M fala de uma menina
P fala da professora
M¹, M², M³, etc. para meninas cujos nomes não são conhecidos
G¹, G², G³, etc. para garotos cujos nomes não são conhecidos
Gn e Mn quando houve a dificuldade de identificação até dentro de
uma sequência numérica
Pq fala da pesquisadora
( ) algo inaudível
[ fala sobreposta
FONTE: Adaptado de Araujo (2010, p. 109).

1. Branquidade como norma: os limites entre


alteridade e ideologia

É concordando com a tarefa do antirracismo que


a proposta desta seção é discutir quais os limites
verificados na branquidade no que se refere à criação
ou reprodução de ideologias racistas, e a construção de
elementos relacionados à alteridade e reconhecimento
do Outro como ser constituinte de sua própria identida-
de branca.
A professora de literatura participante da pesquisa na
Escola B foi heteroclassificada por branca, tendo suas
características associadas ao modelo do imaginário co-
letivo de Curitiba, de uma cidade que teve sua imagem
construída como sendo eminentemente de origem eu-
ropeia (especialmente italiana – quando se refere ao
bairro onde a escola se localiza). Contudo, o destaque
de sua atuação profissional revelou-se muito mais de

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
55
interesse desta pesquisa no que se refere à aborda-
gem pedagógica sobre a representação do continente
africano.
Os discursos analisados a seguir são partes de aulas
de leitura em que a professora utilizou três contos e
um filme. Os contos são Ulomma: a casa da beleza
(SUNNY, 2006), Okpija (SUNNY, 2006) e Kiriku e a feiti-
ceira (Roberto BENJAMIN et al., 2006) sendo que este
último é também o título do filme que foi exibido nas
semanas subsequentes. A apresentação e análise não
serão estabelecidas cronologicamente em relação aos
discursos produzidos, pois a preocupação é de reuni-
-los de acordo com as categorias.

a) A alteridade e o reconhecimento das diferenças


Com limitações bem demarcadas, certamente, a pos-
tura da professora das turmas pesquisadas serviu para
romper com estereótipos também construídos no bojo
desta pesquisa, seja por mim como pesquisadora e
militante, seja pelo próprio contexto de estudo voltado
para as relações raciais. Pesquisas diversas apontaram
para problemas relacionados à forma de abordagem
pedagógica acerca da cultura afro-brasileira e africana
por parte de professoras da educação básica e, de cer-
ta forma, o olhar deste estudo também foi direcionado
para encontrar tais elementos.
Buscando elucidar e evidenciar características de des-
taque (positivos e negativos) na atuação de uma profes-
sora branca na forma de encaminhamento das leituras,
inicialmente indicarei aspectos positivos, tendo como
suporte teórico estudos sobre branquidade. É o caso,
por exemplo, do produzido na 4ª B, no dia 05/06/2009:

56 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
01 P: O que que a gente percebe do comportamento da Okpija, gente? O que que a
02 gente pode perceber? Por que que ela não se casou cedo?
03 Gn: Porque ela sempre rejeitava os maridos.
04 P: Mas por quê?
05 AS: Porque ela se achava bonita.
06 P: Ela se achava bonita.
07 GEORGE: Mas num era bonita.
08 P: Ela era bonita. Todos achavam ela muito bonita. E realmente era muito bonita. Só
09 que ela tinha um pequeno problema, né, ela tinha uma vaidade muito grande. Será
10 que é legal a gente ter essa vaidade, achar que é melhor do que os outros?
11 AS: Não.
[...]
12 P: E me diga uma coisa: é... ela se achava, e realmente ela era muito bonita, né?
13 É... e aí você, daí alguns disseram: “ah professora mas ela não era bonita não ela era
14 feia”. Por que ela era feia? Por que vocês acham que ela era feia?
15 M1: Eu não sei.
16 G1: Eu não falei nada.
17 P: Acho que foi você, Ryan?
18 AS: Foi.
19 P: George, por que que você acha, não, a gente tá conversando. Não to dizendo se tá
20 certo ou tá errado, quero saber a opinião. Por que você acha que ela era feia? Vou
21 mostrar de novo pra você olhar bem pra ela pra não... pra [não
22 GEORGE: Ah, por causa do rosto dela, professora, cheio de enfeite.
24 P: Por causa do rosto.
23 G2: [O rosto não tem nada de enfeite.
25 GEORGE: Tem sim, tem umas bolinhas.
26 P: Tem, ela tem alguns desenhos no rosto.
27 G2: Ah.
28 AS: [( ).
29 GEORGE: ( ) que ela é indiana.
30 P: E me diga uma coisa, e aquelas pessoas que usam piercing, põem piercing aqui na
31 sobrancelha,
32 GEORGE: [Nossa eu acho ridículo, horrível!
33 G2: [No nariz.
34 P: [No nariz?
35 G2: [Na língua.
36 GEORGE: Nossa eu acho ridículo!
37 P: Elas também, elas também têm ( ), Elas são feias?
38 AS: [Sim.
39 AS: [Não. ( ).
40 G3: O professora, professora, meu primo tá assim, ó: ele coloca uma bola assim, ó.
41 P: E me diga uma coisa, e aqueles meninos que fazem topete, passam gel no cabelo
42 pra ficar arrepiadinho, eles são feios?
43 AS: [Sim.
44 AS: [Não.
45 P: [É uma maneira de se arrumar.
46 AS: Eu uso assim, professora.
47 P: É? E aquelas meninas que fazem os frufruzinhos, põem as presilhinhas, arrumam
48 [maria-chiquinhas,
49 Gn: [Ridículas! Acho elas ridículas!

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
57
50 P: Elas também são feias?
51 AS: [Sim.
52 AS: [Não.
53 P: Olha só, em todas as perguntas que eu fiz eu ouvi sim e não
54 AS: ( ).
55 P: Uma parte sim e uma parte não. Então olha só, gente, na verdade, é bem o caso lá
56 da Ulomma, que a professora Charlote contou semana passada. É... não existe o
57 feio.
58 Gn: A Ulomma é feia porque ela é careca.
59 P: Mas ela não é feia, sabe por quê? Porque lá na tribo onde ela mora, é... [ter
60 Gn: [Tudo careca.
61 P: [A cabeça raspada é um sinal de nobreza e um sinal de beleza.
62 M1: E se a gente raspasse a cabeça?
63 AS: [( ) (Risos).
64 P: [Pra nós ia ser normal?
[...]
65 P: Pois é, olha lá. O Marvin tem a cabeça raspada, vocês é... deram risada.
66 AS: É a maneira [( ).
67 P: [Por que o que acontece? É uma coisa normal?
68 AS: [Não.
69 AS: [É.
70 P: Pra nós é normal?
71 AS: [É.
72 P: [É normal ( )? Por que normal?
73 AS: [Não é normal.
74 P: [( ). Então, o que que [acontece,
75 Então olha só, como disse o George, ela é feia porque ela tem uns desenhos, né?
76 Então veja ( ), qualquer pessoa que tenha algo ( ) vai se tornar feia?
77 AS: Não.
78 P: Não. Até porque lembram que nós estamos vendo contos africanos. Então, assim
79 como vocês estão vendo na novela do Caminho das Índias,
80 Gn: É massa.
81 P: Então o que que acontece? Aquela parte do mundo na Ásia e na África, as
82 pessoas têm por é... tradição,
83 M3: Aquele carinha careca, lá que tem aqueles negocinhos...
84 P: Isso! Eles têm por por símbolos, por por maneiras, [por costumes,
85 Gn: ( ) é um Dalit.
86 AS: ( ).
87 P: Então olha só, eles têm, por tradição esses costumes, e a gente pode pensar,
88 bem aquilo, né: é feio pra mim, mas pra uma outra pessoa é bonito. O George de
89 topetinho e gel pode ser feio, mas para uma outra pessoa pode ser bonito, né? A...
90 Grace, de touquinha na cabeça aqui pode estar feia para alguns, pra alguns ela pode
91 estar bonita. [A Marie, com o cabelinho preso, pra alguns pode estar feia, pra outros
92 pode estar bonita.
[...]

Neste momento, verifica-se uma tentativa da professo-


ra de propor às crianças uma nova forma de interpre-
tação acerca das diferenças. Usando como exemplo

58 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
a novela Caminho das Índias6 que foi, inclusive, uma
4

“leitura” feita por algumas crianças de outras salas, a


sua abordagem tentou despertar nos/as alunos/as no-
vas perspectivas para o reconhecimento e valorização
das diferenças, como sendo marcas culturais presentes
em todas as sociedades. A sugestão proposta por uma
aluna (linha 62) “E se a gente raspasse a cabeça?” am-
plia o debate para a perspectiva da alteridade, em que
o “Outro” pode se transmutar no “Nós”. E neste trecho
como em diversos outros, mesmo que com dificuldades,
a professora não se omitiu do debate. Pode-se conside-
rar, portanto, que sua postura acaba por não promover
o silêncio (SILVA, 2008) como forma de omissão acerca
dos preconceitos.
Sob a perspectiva proposta por Moita Lopes (2002)
para a interpretação dos discursos no espaço escolar,
é possível considerar que a postura da professora ao
não se furtar da promoção de um debate crítico sobre
as diferenças responsáveis por construir as hierarquias
entre a estética africana e a ocidental, favoreceu para
a construção de identidades que têm sua base fundada
na alteridade. Esta inferência é possível se concordar-
mos com a afirmativa de que “[...] os significados gera-
dos em sala de aula têm mais crédito social do que em
outros contextos, particularmente devido ao papel de
autoridade que os professores desempenham na cons-
trução do significado” (MOITA LOPES, 2002, p. 38).
É possível considerar outros elementos sobre tal
episódio: levando-se em conta a fragilidade ainda
vigente em cursos de formação sobre propostas
6 Novela exibida pela emissora TV Globo durante o ano de 2009 abordou como
tema os costumes e tradições, sob a concepção e perspectiva de sua autora,
Glória Peres, da população indiana, dividida em castas e religiões.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
59
teórico-metodológicas de encaminhamentos acerca da
forma mais “adequada” de se abordar a(s) cultura(s)
africana(s), a postura de tal professora surpreendeu,
sobretudo, se considerado do ponto de vista de sua
posição numa escala de branquidade, do grupo que po-
deria afirmar: “[...] o significado de ser branco é a pos-
sibilidade de escolher entre revelar ou ignorar a própria
branquitude... não nomear-se branca...” (PIZA, 2002, p.
75). Tal postura remete ao que Helms (1990, apud Ben-
to, 2002) propõe como uma sequência de estágios pe-
los quais uma pessoa branca pode passar até desen-
volver a autonomia, ou seja, “a internalização de uma
nova percepção do que é ser branco [...] [em que o]s
sentimentos positivos [...] energizam os esforços pes-
soais para confrontar a opressão e o racismo na sua
vida cotidiana” (BENTO, 2002, p. 44).
É possível, portanto, considerar que, independentemente
de maior ou menor qualidade na formação específica
sobre a Educação das Relações Étnico-Raciais, a
opção teórica da professora pelo não-silenciamento ou
omissão acerca do que sabia sobre a cultura africana
demonstrou seu posicionamento, se não autônomo em
relação a sua condição, pelo menos aproximado e em
constante evolução. Os cursos de capacitação (e o in-
centivo da presença desta pesquisa de cunho observa-
tório participante) auxiliaram a professora na ampliação
de suas possibilidades de trabalho com a literatura in-
fantojuvenil para além do cânone, ou seja, dos modelos
tradicionais de literatura. Esta atitude interfere direta-
mente na formação das crianças acerca das diferenças
étnico-raciais, culturais, sociais e econômicas, além de
atuar de forma relevante na constituição de sua forma-

60 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
ção identitária, conforme defende Ware (2004): “[o] es-
forço necessário para que o sujeito se identifique com
as histórias e contextos de outras culturas oferece-lhe
uma oportunidade de interpretar sob uma nova luz
aquilo que é conhecido em sua própria cultura” (WARE,
2004, p. 16).

b) A ideologia da branquidade como norma


Embora elementos de avanços existam no que se re-
fere à branquidade como componente não mais de
uma perspectiva normativa e sim de uma possibilida-
de de reconhecimento das diferenças, é possível ainda
definir alguns episódios como sendo frágeis por esta-
belecerem-se em uma linha tênue entre a valorização
e a folclorização. O próximo episódio ocorreu no dia
03/07/2009 na 4ª B, quando as crianças estavam assis-
tindo à parte final do filme Kiruku e a feiticeira, que ha-
via iniciado na aula anterior (dia 26/06/2009). O trecho
compilado a seguir corresponde a mais de 4 minutos de
exibição da última cena do filme, quando os homens da
aldeia retornam junto com o avô de Kiriku. Eles estão
tocando tambores e dançando.

01 G1: Parece uns macaquinho (Risos)


02 G2: Batendo, né? (Risos).
03 G1, G2: ( ).
04 G1: Parece uns macaco, cara!
05 Gn: Todos macaquinhos!
06 G3: Ó o pai do Kiriku ali!
07 G3: Ó o pai do Kiriku!
08 G1: É o pai do Kiriku?
09 G3: Ali, ó!
10 G1: Kiriku! (Risos)
11 G2: É o Kirikão!
(Risos)

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
61
12 G2: É o pai dele! Parece ( ).
13 Gn: Todos macaquinhos!
14 P: Gostaram do filme, gente?
15 AS: Sim!
16 P: Legal, né?
17 G1: Professora, traz mais filme igual este.
18 G2: Traz o Negrinho do Pastoreiro!
19 P: Então olha só, gente, ( ) O que que vocês acharam do filme?

Os comentários feitos pelas crianças não foram tema


de pauta do debate que a professora desenvolveu na
sequência. Para estabelecer a interpretação sobre este
episódio, será preciso descrever alguns aspectos sobre
a professora e os produtores do discurso. A professora,
que estava de pé ao lado do aluno que emitiu o primeiro
comentário (linha 1), continuou ali até o momento quan-
do outro aluno fez o comentário sobre o pai de Kiriku
(linha 11). A posição de ambos era próxima à porta que
se localizava a frente da sala, ao passo que eu – que
ouvi o comentário independentemente de ter sido cap-
tado pelos dois gravadores (e o foram) – estava no fun-
do da sala em uma fileira do meio. Diante isso, é pos-
sível propor três hipóteses acerca do silêncio por parte
da professora: i) ela não ouviu tais comentários (o que
de certa forma parece impossível, dada a distância); ii)
ela não considerou relevante o tema e/ou concordou
que as ilustrações realmente indicaram características
daqueles homens parecidas com as de macacos, ou,
ainda; iii) por não saber como encaminhar a situação,
optou por ignorar ou silenciar-se diante do fato.
Como este trabalho propõe interpretar “se o sentido,
construído e usado pelas formas simbólicas, serve ou
não para manter relações de poder sistematicamente
assimétricas” (THOMPSON, 2002, p. 16), e nem sem-

62 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
pre estes tipos particulares de formas simbólicas “são
ideológicos em si mesmos” (THOMPSON, 2002, p. 16),
o exercício de análise e interpretação deste episódio
exige uma atenção especial do ponto de vista da di-
mensão que tais comentários têm para as relações ra-
ciais no Brasil.
Recorrendo ao que Michel Apple (1996, p. 36) aponta
sobre a branquidade como um “conceito espacial” , a
proposição defendida pelo autor converge com os efei-
tos que o silenciamento por parte da professora criou:

Isto requer que vejamos a branquidade como


sendo ela mesma um termo relacional. O
branco é definido não como um estado, mas
como uma relação com o preto, ou com o
marrom, ou amarelo, ou vermelho. O centro
é definido como uma relação com a periferia.

Nos nossos modos usuais de pensar essas


questões, a branquidade é algo sobre o qual
não temos que pensar. Ela está simples-
mente aí. Trata-se de um estado naturaliza-
do de ser. Trata-se de uma coisa ‘normal’.
Tudo o mais é o ‘outro’. É o lá que nunca
está lá. (APPLE, 1996, p. 39-40).

A naturalização com que o fato ocorre e é ignorado reite-


ra a constatação do autor de que a branquidade atua de
modo a não reconhecer o que não se relaciona com sua
construção identitária. Assim, se acrescentada de outras
estratégias e modos de operação da ideologia, é válido
caracterizar este episódio como uma marca da ideologia

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
63
racista operando de maneira latente por meio da recep-
ção de formas simbólicas. Sobretudo o expurgo do outro,
estigmatização e silêncio são os modos mais evidentes
pelos quais foi possível interpretar tal microcena.

2. Ideologia e discurso para a construção de


imagem da África

a) A África tribal: os limites na construção do imaginário in-


fantil sobre povos africanos e suas culturas
O momento a seguir aconteceu na 4ª C da Escola B
quando, na semana anterior (dia 29/05/2009), havia
sido a primeira aula de campo, ainda em caráter de
observação. Na primeira aula, uma das pedagogas da
escola é que havia feito, por meio de contação de his-
tórias, a narração do conto Ulomma: a casa da beleza.
A professora, portanto, ao retomar o tema (neste dia
05/06/2009) e comentar sobre a protagonista da próxi-
ma história (Okpija) diz:
01 P: Ela também mora na África, tá, ela faz parte de uma tribo e, a gente vai observar
02 que neste conto acontece também algumas situações que a gente tem que pensar,
03 tá? Então eu quero que vocês prestem bastante atenção, não quero que vocês
04 conversem agora, porque a gente vai conversar [...]

Já na aula anterior, quando foi a pedagoga que rea-


lizou a contação de histórias, um aspecto havia sido
evidenciado por seu discurso: a ideia de África tribal.
Um recurso utilizado historicamente para a construção
depreciativa da imagem do continente africano é a sua
associação com a ideia de tribo. Historicamente este

64 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
termo sofreu alterações na sua aplicação semântica,
embora etimologicamente o vocábulo tenha como sig-
nificado “grupo racial unido pela mesma língua, tradi-
ções e costumes e que vivem em comunidade sob um
ou mais chefes” (LUFT, 2000, p. 651) sendo, portanto,
passível de associação a qualquer grupo étnico. Po-
rém, escolhas ideológicas marcam a sua real aplica-
ção: generalizadamente não se encontra em exemplos
midiáticos, sobretudo, expressões como “conflitos tri-
bais” associados a guerras civis ocorridas na história
recente europeia (como a guerra da Bósnia e antiga Iu-
goslávia, por exemplo) mas, frequentemente é possível
identificá-la quando a referência é feita a grupos étnicos
de países africanos. Um estudo italiano, de Bernardo
Bernardi (1998), aponta elementos relevantes na corre-
lação entre África e tribo:

No curso dos últimos cem anos da História


da África se chegou à adoção dos conceitos
de etnicidade e de etnia, pelo refuto ao uso,
antes prevalente, de tribo e tribalismo. A pa-
lavra tribo, já obsoleta, foi ‘repescada’, na
metade do século XIX pelos antropólogos
evolucionistas, da linguagem bíblica e latina
para indicar a organização de parentesco
dos ‘povos primitivos’. Na Bíblia as ‘doze tri-
bos de Israel’ afirmam a descendência de
todos do patriarca Jacó. Na antiga Roma
monárquica a tribo – tribus – era uma es-
pécie de bairro pois indicava a distribuição
territorial do parentesco, distinto em tribo ur-
bana e tribo rústica ou do campo. O termo
foi largamente aplicado às sociedades tradi-
cionais africanas, mas a atribuição percebi-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
65
da de sentidos negativos torna-se ofensiva.
No mesmo campo antropológico é descar-
tada quando a concepção evolucionista de
povos primitivos foi considera da errada. Na
África independente o termo tribo soa im-
próprio e seu derivado tribalismo assumiu o
significado sinônimo de atitudes conserva-
doras e retrógradas contrárias ao progres-
so político ou, comumente, com interesse
pessoal a favor de parentes ou do próprio
eleitor. Durante o processo Otieno7 o jovem 5

filho do advogado morto refuta a palavra ‘tri-


bú’, como notado, e se serve da expressão
‘grupos étnicos’ (BERNARDI, 1998, p. 47).

Nesse sentido, a escolha pelo vocábulo ‘tribo” ao invés


de “grupo étnico”, “civilização” ou “nação”, por exem-
plo, denota uma negação da possibilidade de reconhe-
cimento de um grupo humano como sendo civilizado,
participante de um mesmo patamar que o identifica
como ser de características humanas. É o que afirma
Augustinho Portera (2000, p. 138-139): “[o] uso do ter-
mo tribo é criticado por relacionar-se a abordagem ex-
terior e folclórica de povos africanos, contribuindo para
mediar a imagem preconceituosa e estereotipada do
‘selvagem violento e primitivo’”.
Em análise de notícias jornalísticas da imprensa euro-
peia, Teun A. van Dijk (2008, p. 146) identifica marcas
do racismo por meio das escolhas lexicais:

Assim, a imigração é sempre definida como


um problema fundamental, e nunca como
7 Caso de “conflito étnico entre direito comum e direito consuetudinário” analisa-
do pelo autor nas páginas 45-46.

66 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
um desafio, muito menos como um benefí-
cio para o país, frequentemente é associa-
da a um fardo financeiro. [...] O crime, ou os
tópicos relacionados ao crime, tais como as
drogas, são quase sempre entre os primei-
ros cinco retratos das minorias – inclusive
focando no que é tido como crimes étnicos
‘típicos’, tais quais tráfico e venda de dro-
gas, mas também definido como ‘terrorismo’
político [...].

Não é adequado associar diretamente que o contex-


to de produção dos discursos analisados por van Dijk
(2008) tenha a mesma carga ideológica que os verifica-
dos na Escola B nas falas das duas professoras. Mas o
que se verifica em relação à ideologia é que, ao servir
para sustentar relações de dominação, ela é capaz de
produzi-las em novos sujeitos. Em outras palavras, não
há como reconhecer uma explícita intencionalidade das
professoras em formar nas turmas analisadas a ideia de
associação de grupos humanos africanos como “tribo”,
mas é possível interpretar tais falas como ideológicas
por serem frutos de acúmulo teórico (ou do senso co-
mum) que representa a África como tribal (sendo sinô-
nimo de atrasada, primitiva ou tacanha, por exemplo).

b) Estética africana: os limites na representação estereotipa-


da das personagens
Por meio da análise de um evento discursivo e produ-
ção de ilustrações por parte de algumas crianças, os
modos de operação pelos quais foi possível afirmar a
reificação ideológica da estética africana foram unifica-
ção e fragmentação, sendo que do primeiro a padroni-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
67
zação e simbolização da unidade foram as estratégias
identificadas, e do segundo, a estratégia de expurgo do
outro.
O episódio a seguir refere-se ao momento em que a pro-
fessora apresenta à 4ª B, também no dia 05/06/2009, o
conto que irá ler (Okpija).

01 P: Então olha só, eu vou contar a história o conto sobre a Okpija. Então olha só, a
02 Okpija é essa moça,
03 Gn: Horrível! (Risos)
04 P: Tá? Lembram que a... professora Charlote havia comentado com vocês sobre a
05 questão dos costumes? Porque nós estamos falando de tribos africanas,
06 que nem nessa tribo, essa é a Ulomma, [o costume é, até pelo sinal de nobreza, era
07 Gn: [Ui!
08 Mn: [Deixa eu ver, professora.
09 AS: [( ).
10 Gn: [Todas careca!
11 Gn: [Ô professora, acho que essas mulher tá tudo sem ( ).
12 P: Manter a cabeça raspada.
13 AS: ( ).
14 P: E agora, olha só, neste outro nesse outro conto já, a gente não percebe mais que é
15 um sinal de nobreza estar com a cabeça raspada, então
16 Gn: ( ).
17 P: Então provavelmente aqui é uma outra tribo, é... os enfeites já são diferentes.
18 ela tem adornos no cabelo, ela tem os colares, ela tem pinturas no [corpo né?
19 Gn: [Professora, é implante, num é cabelo não, né?
20 P: Não, não é implante de cabelo. São os cabelos dela mesmo.

Além da ideia de tribo presente nesta passagem, outros


elementos chamam a atenção: os comentários relacio-
nados às características fenotípicas e estéticas das
personagens (linhas 03, 07 e 10), e a hipótese de um
aluno sobre as origens do cabelo da personagem Okpi-
ja (linha 19) evidenciam marcas do olhar ocidental, ou
do Nós (nas palavras de van Dijk) sobre o Eles. O es-
tranhamento presente nos comentários das crianças só
ganha reforço com a argumentação rasa de que as di-

68 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
ferenças entre uma e outra personagem são relaciona-
das às diferenças entre as “tribos”. A seguir, ilustrações
de ambas as histórias apresentam personagens negras
retratadas em sua altivez, mas que foram insuficientes
para impedir um olhar e interpretação estereotipados.
Como assinalado anteriormente, a proposta (que partiu
da professora) de ilustrar as histórias, teria como obje-
tivo ampliar as possibilidades de interpretação de re-
cepção sobre a compreensão das crianças acerca das
leituras realizadas.
As duas primeiras ilustrações feitas pelas crianças (fi-
guras 1 e 2) evidenciam os efeitos de uma abordagem
pedagógica que enfatiza a relação entre “tribal” e povos
africanos. Mesmo que as ilustrações não apresentem

Figura 1. Ilustração produzida por Figura 2. Ilustração produzida por


aluno/a sobre o conto Okpija. aluno/a sobre o conto Ulomma.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
69
Figura 3. Ilustração produzida por
aluno/a sobre o conto Okpija.

Figura 4. Ilustração produzida por aluno/a sobre o conto


Ulomma.

70 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
tonalidade de pele condizente com as personagens, as
vestimentas indicam marcas que associam as persona-
gens a um contexto primitivo. Já nas figuras 3 e 4 a pre-
sença de uma formação eurocêntrica arraigada impede
que a leitura de uma obra literária sob perspectiva dife-
rente seja “lida” de modo mais aproximado de seu con-
texto de enredo e de produção. Tanto no que se refere
às marcas físicas (tipo e cor dos cabelos, vestimentas,
etc.) como às marcas de cenário (castelos, disposição
e tipo de mobílias, entre outros) a presença de ideo-
logia é explícita, dentre os quais se podem identificar
alguns dos modos e estratégias em que ela opera:
a) padronização: no que se refere às ilustrações de per-
sonagens negras retratadas em contextos e com carac-
terísticas europeias, fator influenciado, sobretudo, pelo
fato de as crianças terem contato constante com um
único grupo humano nos enredos literários8;6;
b) simbolização da unidade: a recorrência de ilustrações
que apresentam as personagens com características “tri-
bais” ou, nas palavras de Thompson (2002, p. 86) “envol-
ve a construção de símbolos de unidade, de identidade
e de identificação coletivas”. Esta estratégia, como bem
aponta o autor, relaciona-se diretamente com a narrativi-
zação, estratégia difundida para “tratar o presente como
parte de uma tradição eterna e aceitável” (THOMPSON,
2002, p. 83). A aproximação está, portanto, no fato de
símbolos, como as roupas feitas de peles de animais ou
uma seminudez, por exemplo, serem associados cons-
tantemente como representação simbólica de grupos

8 Não considero que esta interpretação seja fruto de uma inferência. Acredito
ser consenso entre pesquisadoras/es e profissionais da educação que a presen-
ça constante de enredos literários e de uma branquidade como modelo civiliza-
tório estabeleçam esta elaboração de cenários e locações de origem europeia.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
71
africanos, por firmar-se “na medida em que símbolos de
unidade podem ser uma parte integrante da narrativa das
origens que conta uma história compartilhada e projeta
um destino coletivo” (THOMPSON, 2002, p. 86);
c) expurgo do outro: quando o comentário “horrível” (li-
nha 3) seguido de risos evidenciam o quão estranho
é a imagem de uma mulher negra em sua estética de
origem. Thompson (2002, p. 87) define esta estratégia
como sendo “a construção de um inimigo, seja ele in-
terno ou externo, que é retratado como mau, perigoso
e ameaçador e contra o qual os indivíduos são chama-
dos a resistir coletivamente ou a expurgá-lo”. Embora
não tenha essa complexidade, a interpretação dessa
estratégia como recorrente nesse episódio denota do
fato de que o estabelecimento de um comentário como
este pode representar, do ponto de vista histórico para
nossa sociedade, como uma demarcação étnica sobre
qual estética é a tradução do belo e qual simboliza a
feiura. Sobre isso, Gomes (2002, p. 21) aponta:

Foi a comparação dos sinais do corpo negro


(como o nariz, a boca, a cor da pele e o tipo
de cabelo) com os do branco europeu e co-
lonizador que, naquele contexto, serviu de
argumento para a formulação de um padrão
de beleza e de fealdade que nos persegue
até os dias atuais. Será que esse padrão
está presente na escola? A existência de
um padrão de beleza que prima pela “bran-
cura”, numa sociedade miscigenada como a
nossa, afeta ou não a nossa vida nas dife-
rentes instituições sociais em que vivemos?
Essas representações estão presentes na
escola? Como?

72 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Considerações finais

Dada a dimensão dos dados produzidos/coletados po-


deriam suscitar novas categorias, com vistas a elucidar
outros aspectos que certamente aqui podem não ter
sido apontados, já que foram análises e interpretações
feitas sob um prisma e olhar específicos. Contudo, o
mesmo autor também aponta para uma importante con-
sideração a respeito de pesquisas com o perfil deste
trabalho:

Afirmar que existe grande exigência para


uma reflexão crítica desse tipo é um fato
que não pode ser colocado em dúvida por
ninguém que esteja familiarizado com as
múltiplas formas de desigualdades e confli-
to, que permanecem como características
generalizadas, explosivas e aparentemente
intocáveis do mundo moderno (THOMP-
SON, 2002, p. 417).

Num contexto de interpretação da ideologia racista, os


modelos expressos por meio da teoria de Thompson
sobre ideologia e meios de comunicação de massa re-
presentam subsídios teóricos relevantes e adequados.
A presença desse modelo tríplice de análise em todos
os momentos da pesquisa foi responsável por ampliar
as possibilidades de interpretação da ideologia desde a
produção, difusão ou transmissão das formas simbóli-
cas, perpassando pela construção das mensagens co-
municativas e a sua respectiva recepção e apropriação.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
73
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Ra o, u o E u a o: t at a ol a
77
NEAB
Capítulo 3
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E
LITERATURA INFANTIL
Verediane Cintia de Souza de Oliveira
Ra o, u o E u a o: t at a ol a
79
Capítulo 3

Relações étnico-raciais e literatura infantil

Verediane Cintia de Souza de Oliveira1

Introdução

Esta pesquisa toma parte do campo de estudos sobre


relações raciais no Brasil, em especial dos estudos que
analisam desigualdades entre negros/as e brancos/as
no plano simbólico. O estudo de relações raciais em
produtos culturais voltados à infância iniciou-se na dé-
cada de 1950 (SILVA, 2008) e embora tenha apresenta-
do uma série de novos estudos a partir dos anos 1990,
continua sendo um tema minoritário em pesquisas
nas áreas de Educação, Ciências Sociais e Literatura.
Com o intuito de garantir nova forma de participação
dos negros nos currículos escolares, foi sancionada a
Lei 10.639/2003 alterando a Lei de Diretrizes e Bases
para a Educação Nacional – LDB (Lei 9.394 de 20 de
novembro de 1996), para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “Histó-
ria e Cultura Afro-Brasileira”. Na sequência foi aprovado
pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) o Parecer
03/2004 e a Resolução 01/2004, instituindo Diretrizes
1 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná, pedagoga pela mesma
universidade, atua na direção de instituição de Educação Infantil e como formadora do
Projeto “A Cor da Cultura”.

80 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana, com o intuito de normatizar o
artigo da LDB e apresentando a definição de necessi-
dade de aplicação da referida lei em todas as etapas e
modalidades de ensino, incluindo a Educação Infantil.
Temos, por um lado, resultados das pesquisas, tanto
mais antigas quanto recentes, que apontam um trata-
mento sistematicamente desigual a brancos e negros
na literatura infantojuvenil (ROSEMBERG, 1985; PIZA,
1996; BAZILLI, 1999; OLIVEIRA, 2003; VENÂNCIO,
2009; ARAUJO, 2010). Por outro lado, observa-se sig-
nificativa movimentação social em torno das desigual-
dades raciais na educação e são aprovadas normativas
orientadas pela perspectiva dos movimentos sociais e
de pesquisadores. A pesquisa orienta-se para como es-
tão configuradas as relações raciais nos acervos dis-
tribuídos pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola
(PNBE) para a etapa de Educação Infantil em 2008. A
opção pelo ano de 2008 foi em função de ter sido pela
primeira vez incorporada a Educação Infantil (etapa da
Educação Básica) nas compras do PNBE (embora ain-
da de forma parcial, tendo sido comtemplada naquele
ano somente a pré-escola). A análise de amostra de li-
vros distribuídos para essa etapa focou relações étnico-
-raciais, verificando possíveis formas de hierarquização
racial e/ou a valorização de negros/as e brancos/as2. O
objetivo central foi analisar as estratégias ideológicas
presentes no acervo de 2008 do Programa Nacional Bi-
blioteca da Escola destinada à Educação Infantil.

2 A partir desse momento e no decorrer do texto será utilizado o genérico masculino.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
81
A pesquisa fez uso do conceito de ideologia definido
por Thompson (2002) como o estudo das formas pelas
quais os sentidos servem, em circunstâncias particula-
res, para estabelecer e sustentar relações de poder que
são sistematicamente assimétricas (denominadas de
“relações de dominação”). Adotou também a metodo-
logia de estudo da ideologia proposta por esse autor, a
Hermenêutica da Profundidade (HP), com organização
da pesquisa em três partes: análise do contexto sócio-
-histórico; análise formal ou discursiva e interpretação/
reinterpretação da ideologia.
A investigação foi realizada analisando a bibliografia
disponível sobre a temática, os editais do PNBE e um
acervo de livros de literatura infantil distribuídos pelo
Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) no
ano de 2008, com a intenção de discutir os discursos
presentes nos livros e possíveis formas de hierarquiza-
ção racial. Nessa perspectiva, buscou-se observar que
tipo de relações de poder foram estabelecidas entre os
personagens, traçar um perfil dos livros e dos perso-
nagens, procurar manifestações sobre o cumprimento
das definições das Diretrizes Curriculares Nacionais de
Educação das Relações Étnico-Raciais. O ensino de
História e cultura Afro-brasileira e africana, de acordo
com as determinações da Resolução 01/03 e do Pare-
cer CNE/CP 03/2004, do Conselho Nacional de Educa-
ção salientam que as políticas têm como meta o direito
dos negros de se reconhecerem na cultura nacional,
expressarem visões de mundo próprias, manifestarem
autonomia, individual e coletiva. Também, tem como
meta o direito dos negros, assim como o de todos os
cidadãos brasileiros, cursarem cada uma das etapas e

82 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
modalidades (inclui, portanto, a Educação Infantil), em
escolas devidamente instaladas e equipadas, orienta-
das por professores qualificados para o ensino das di-
ferentes áreas de conhecimentos com formação para
lidarem com as relações produzidas pelo racismo e dis-
criminações, sensíveis e capazes de conduzir a reedu-
cação entre diferentes grupos étnico-raciais. Em função
das limitações de artigo este item será menos detalha-
do nos resultados que apresentamos. A partir do ponto
de vista apresentado, os propósitos da pesquisa podem
ser sintetizados na pergunta:
Que estratégias ideológicas, particularmente formas de
racialização entre brancos e negros, são observadas
em amostra de livros de literatura infantojuvenil distri-
buídos para escolas de Educação Infantil pelo PNBE
em 2008?

1. Sobre o PNBE e seus editais

A política de acesso à cultura é abordada nesta pes-


quisa relacionada à expansão e distribuição de livros
às várias etapas de ensino. Criado em 1997, nos anos
2000 o PNBE teve um incremento significativo: tendo
distribuído cerca de 160 milhões de livros entre 2001
e 2009. Sendo uma política pública do governo, geri-
da pelo FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação) o PNBE afirma como objetivo proporcionar
a professores e alunos acesso aos bens culturais por
meio da distribuição gratuita de livros de Literatura. O

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
83
Programa tem como objetivo também a expansão das
bibliotecas escolares e o incentivo à leitura. A distribui-
ção de livros pelo Programa Nacional Biblioteca da Es-
cola (PNBE) alcançou a Educação Infantil apenas no
ano de 2008 e limitada à pré-escola (4-6 anos), apesar
de existir desde o ano de 1997. O PNBE adquiriu e
distribuiu uma quantidade significativa de livros para o
ensino fundamental e, além de incluir a Educação In-
fantil (EI) tardiamente, tratou essa etapa de forma frag-
mentada, dividindo-a entre creche e pré-escola, andan-
do na contramão das pesquisas da área que defendem
políticas integradas para a EI e para a Educação Básica
(FARIA, 2005). A ausência de inclusão da EI no PNBE
foi tomada por Rosemberg (2007) como manifestação
da perspectiva adultocêntrica na execução das políticas
educacionais, apontando que idosos e crianças, via de
regra, não têm seus direitos respeitados. Nesse caso,
fere-se o direito das crianças pequenas de acesso ao
livro nas instituições escolares.
Paralelo à expansão do PNBE observaram-se significa-
tivas mudanças em propostas educacionais de atendi-
mento à diversidade étnico-racial do país. A busca por
políticas de igualdade racial tem sido intensa, principal-
mente por parte dos movimentos negros.
Analisando os editais durante a trajetória do Programa
Nacional Biblioteca da Escola, visualizamos algumas
mudanças (e esperamos por outras). Foram analisados
os editais referentes aos anos de 2003, 2005, 2008,
2009, 2011 e até de 2012. Apresentaremos algumas
ideias e contradições encontradas na leitura do mate-
rial, com destaque para questões relacionadas ao edital
de 2008.

84 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
O edital de 2003 não apresentava qualquer restrição
para as obras a serem adquiridas. Neste edital não apa-
rece nenhuma solicitação de qualidade literária, e ne-
nhum aspecto relacionado à presença da diversidade.
No ano de 2004 apenas deu-se continuidade ao PNBE
2003, e por essa razão em dois anos seguidos não foi
possível vislumbrar nenhum tipo de mudança. No edital
do ano de 2003 foi possível perceber uma preocupação
grande com os processos burocráticos para adquirir
as obras, bem como entrega de documentos e cumpri-
mento de prazos por parte dos editores.
Quanto ao edital de 2005, este previa que seriam sele-
cionadas obras com temáticas diversificadas, de dife-
rentes contextos sociais, culturais e históricos. Ainda,
que os temas não deviam apresentar didatismos ou
moralismos, e ausência de preconceitos, estereótipos
ou discriminação de qualquer ordem (BRASIL/MEC,
2005). Sobre a representatividade das obras pedia-se
que esta apresente unidade e consistência de seleção,
bem como diversidade de estilo, época e região. Ain-
da, para o edital de 2005 pedia-se que o projeto gráfico
apresentasse qualidade nas ilustrações, ainda que fos-
sem em preto e branco. Diz que “são desaconselháveis
reprodução de clichês, preconceitos, estereótipos ou
qualquer tipo de discriminação” (MEC, 2005). O edital
nesse aspecto não proibia que as imagens apresentas-
sem situações de preconceito, apenas salientava que
não eram aconselháveis a veiculação de certas ima-
gens.
Houve um detalhamento considerável nos textos dos
editais a partir de 2005. Pelo que foi possível observar,
alguns acréscimos foram feitos aos textos no decorrer

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
85
dos anos, ao passo que mais algumas partes do texto
se repetem em todos os editais, inclusive no edital de
2012.
O edital do PNBE/2008 possuía, entre os anexos, um
específico sobre critérios de avaliação e seleção das
obras. Quando o acervo era destinado à Educação In-
fantil, o edital enfatizava que o contato das crianças
com a literatura “deve promover momentos de alegria,
de desafios para a imaginação e a criatividade, de tro-
ca e de experiência com a linguagem escrita. O livro
destinado às crianças precisa envolver sentimentos,
valores, emoção, expressão, movimento e ludicidade,
permitindo inúmeras interações” (BRASIL/MEC, 2008).
Além de citar esses e outros aspectos importantes no
momento de avaliação dos livros, o edital dava explica-
ção sobre a origem das crianças que chegam à escola.
E afirma que, como esses alunos eram provenientes de
contextos sociais diferentes e possuíam experiências
diferenciadas de contato com a leitura e a escrita, que
as obras e acervos de literatura, além da qualidade e
do valor artístico, deviam contar com títulos e temáti-
cas diversificadas, capazes de aproximar as crianças
das diferentes realidades e ampliar suas experiências
de leitura.
O edital expressava ainda, que os textos deviam ser eti-
camente adequados, evitando-se preconceitos, mora-
lismos e estereótipos (MEC, 2008). Essa formulação de
carácter genérico sobre a não presença de preconceito
e estereótipo repetiu-se nos diversos editais. No que se
refere aos livros didáticos Silva (2005) criticou a formu-
lação como não levando em consideração as formas,
via de regra, implícitas pelas quais operam os discur-

86 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
sos do “racismo à brasileira”, não oferecendo subsídio
aos avaliadores e tendo pouco impacto nas avaliações.
No caso dos livros didáticos as prescrições deixaram o
carácter genérico e negativo, para serem propositivas e
específicas, afirmando que os livros deviam promover
a valorização dos diferentes segmentos étnico-raciais
da sociedade brasileira. Tal tipo de formulação não foi
observada nos editais do PNBE.
O edital do PNBE/2010 ganhou uma mudança significa-
tiva no texto e na composição dos livros destinados às
crianças. Neste edital afirmava-se que a literatura é um
patrimônio cultural a que todos os cidadãos devem ter
acesso. O edital trouxe considerações dos direitos es-
tabelecidos na Constituição de 1988 e da LDB que res-
saltava o dever do Estado em oferecer uma educação
básica de qualidade nas três etapas que a constituem:
Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Mé-
dio, inclusive a Educação de Jovens e Adultos (MEC,
2010, p.25).
Ainda, de acordo com o edital, a escola é reconhecida
como um dos espaços mais importantes e democráticos
de acesso aos bens culturais, e é direito de todo cida-
dão desfrutar desse espaço para obter conhecimentos.
O texto do edital dizia que como uma das formas de as-
segurar esses direitos, o MEC tem constituído acervos
literários para as escolas das bibliotecas públicas. “Os
acervos por sua vez precisam dar conta da diversidade
que caracteriza o público escolar dos diferentes níveis
e modalidades a educação” (BRASIL/MEC, 2010).
A análise dos editais do PNBE e do edital específico de
2008 apontou para melhora gradativa nas formulações
e detalhamento, mas que ainda apontavam para a efe-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
87
tividade do objetivo de valorização dos grupos racializa-
dos no Brasil, em especial a valorização de negros/as
e indígenas. Como estratégias ideológicas observou-se
no texto dos editais o silêncio sobre as particularidades
culturais da população negra brasileira e formulações
que podiam operar para dissimular as desigualdades
no tratamento dos grupos étnico-raciais, bem a moda
do “racismo à brasileira”. Ou seja, num contexto em que
as formas generalizantes e indiretas foram constituintes
do discurso racista, não ser explícito não foi suficiente.
Ainda corríamos o risco de que o implícito operasse so-
cialmente para manter as coisas do jeito que eram.

2. Análise formal e estratégias ideológicas

Para a análise formal foi definido analisar um acervo do


PNBE 2008, sendo que cada acervo contava com 20 li-
vros. Definidos os critérios de análise, iniciou-se a bus-
ca pelo acervo 1 distribuído pelo PNBE em 2008 para
Centros Municipais de Educação Infantil de Curitiba. Os
livros foram lidos na integra e em seguida submetidos a
técnicas de análise de conteúdo. Foram definidos como
unidades de análise, personagens no texto, na capa e
nas ilustrações e utilizadas planilhas e manuais adapta-
dos da pesquisa de Silva (2008). Os personagens são
definidos como ficcional de pessoa, podendo assumir
naturezas distintas (humana, antropomorfizada ou fan-
tástica); existir no contexto ficcional ou fora dele, realizar
ações ou somente ser mencionados. Os personagens fo-

88 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
ram enumerados de acordo com o número de vezes que
apareciam, quando apareciam no coletivo e possuíam
características distintas uns dos outros eram contabiliza-
dos individualmente. Não foram considerados persona-
gens não mencionados no texto ou quando faziam parte
da imagem e não tinha ação nenhuma como exemplo:
o ursinho encostado na parede do quarto. Personagens
quando antropomorfizados também eram contabiliza-
dos. Os personagens foram descritos usando uma série
de atributos pré-determinados, posteriormente gerando
tabelas de frequência e de cruzamentos de variáveis.
Foram observados 382 personagens nos textos, 315
nas ilustrações e nas ilustrações das capas 23 perso-
nagens. No Quadro 1 estão transcritos resultados cor-
respondentes aos personagens brancos e negros na
ilustração, com o cruzamento da variável cor/etnia com
as variáveis natureza e individualidade. São também
apresentadas as “Taxas de branquidade” (ROSEM-
BERG, 1985) que fornece a relação entre número de
personagens brancos identificados correspondentes à
unidade de personagem negro identificado.
Foram levantados 263 personagens humanos nas
ilustrações, sendo que 166 (63,1%) são brancos, e 42
(15,9%) são negros, sendo a taxa de branquidade de
3,95. Observamos aqui um aparecimento intensivo de
personagens brancos na ilustração, além desses per-
sonagens serem tendencialmente mais complexos
que os personagens negros. Com relação a individua-
lidade foram categorizados 112 personagens sendo
65 (38,9%) dos personagens brancos, enquanto que
8 (7,2%) negros. Para a categoria multidão foram en-
contrados 269 personagens 102 (61,1%) brancos e 36

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
89
(25,5%) negros. Comparando as taxas de branquidade
observa-se que personagens brancos/as são tenden-
cialmente mais humanos e indivíduos, ao passo que
personagens negros/as são proporcionalmente mais
antropomorfizados (embora somente três personagens
antropomorfizados tenham sido contabilizados, contou-
-se 0,5 personagem branco/a antropomorfizado para
cada personagem negro/a) e multidão.

Quadro 1. Resultados personagem na ilustração.


ITENS COR/ETNIA VALOR PORCENTAGEM
ANALISADOS ABSOLUTO
Humana 263 100%
Branco 166 63,1%
Negro 42 15,9%
Taxa de Branquidade 3,95 19,4%
Natureza Antropomorfizada 52 100%
Branco 1 1,9%
Negro 2 3,8%
Indeterminado 49 94,2%
Taxa de Branquidade 0,5
Indivíduo 112 100%
Branco 65 38,9%
Negro 8 7,2%
Taxa de Branquidade 8,12
Individualidade
Multidão 269 100%
Branco 102 61,1%
Negro 36 25,5%
Taxa de Branquidade 2,83
FONTE: Tabulações da autora.

Ou seja, de forma geral esses resultados reiteram ou-


tros estudos (ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999;
OLIVEIRA, 2003; GOUVÊA, 2004, 2005; KAERCHER,
2006, ARBOLEYA, 2009; DEBUS, 2010) que apontam
que os personagens negros/as, além de menos fre-

90 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
quentes, são também, via de regra, menos elaborados
que os personagens brancos/as, compondo um quadro
de “desvantagem cumulativa”.
Nas relações etárias o número de personagens crian-
ças encontrados foi bastante relevante, sendo os livros
destinados a um público infantil buscando maior identi-
ficação dos leitores com os personagens. O número de
vezes que apareciam personagens infantis foi 153, sen-
do 93 (55,7%) personagens brancos e 15 (9,8%) ne-
gros, com taxa de branquidade de 6,2, uma proporção
ainda maior quando comparada com o estudo de Bazilli
(1998, amostra 1977-1997) de personagens brancas
em comparação com negras, que fora de 3,6.
A síntese dos resultados dos livros apontou mudanças
e permanências. Como exemplo, temos a participação
de personagens negros ilustrados positivamente em re-
lação ao ambiente em que se encontram. Apesar de
aparecerem algumas personagens negras, observou-
-se uma participação muito limitada em relação à pre-
sença de personagens brancas.
Dos livros analisados, percebemos que alguns perso-
nagens recebiam características diferenciadas, ou seja,
alguns continuaram recebendo características estereo-
tipadas, enquanto que outros eram apresentados vi-
sualmente com características positivas.
Pode-se dizer que apesar de receber características
positivas os negros ainda estão sujeitos à estratégia de
passifização, pois nenhuma das personagens negras
recebeu fala como personagem principal. Nas falas e
imagens analisadas nos livros, os negros que apare-
cem estão todos relacionados a papéis secundários, e
tais personagens não tem voz, são apenas figurantes.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
91
Também analisamos que diante dos textos e imagens,
os personagens negros não receberam um papel de
exercício de poder ou ao menos dividem essa possibili-
dade com algum outro personagem. Interpreta-se nes-
se aspecto a diferenciação, personagens negros não
sendo relacionados a nenhum papel de poder, apenas
apresentados nas imagens, apesar de as imagens tra-
zerem em alguns livros personagens negros bem dese-
nhados e bem colocados diante das figuras de perso-
nagens brancos.
Visualizando ainda as condições em que os persona-
gens aparecem, percebeu-se que ainda permanece no
imaginário coletivo a imagem do branco como repre-
sentante da espécie, estando sempre bem colocado e
numa situação de naturalização do ser branco. O con-
junto de livros trazem características de naturalização
de que a felicidade, o conforto e a beleza são específi-
cos de um mundo branco, caracterizando a branquida-
de normativa como ligada ao bom, ao belo, a riqueza.
Sobre a permanência constante de personagens bran-
cos nos livros, interpretamos como estratégia de dis-
simulação da racialização, que permanece devido ao
fato de os personagens brancos em sua grande maioria
apresentarem-se em situações de privilégio em compa-
ração aos negros. Pode dizer que essa situação perma-
nece relacionada ao silêncio e à omissão da participa-
ção de personagens negros na literatura brasileira.
Interpretamos as estratégias ideológicas apreendidas
na análise formal, como meio de operação dos modos
gerais da ideologia, propostas por Thompson (2002).
As formas simbólicas em contextos específicos atua-
ram por meio da universalização e os interesses dos

92 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
brancos operaram para a legitimação das desigualda-
des raciais. As considerações foram feitas através das
formas simbólicas, que em contextos específicos atua-
ram para a manutenção da hierarquização, nesse caso,
entre os grupos negro e branco.
Em outros momentos, ocorreu o deslocamento de sen-
tidos relativos à discriminação racial, a dissimulação
das desigualdades sociais entre negros e brancos. As
estratégias continuam operando a fim de promover a di-
ferenciação e a estigmatização de personagens negros
em suas formas de representação, elementos que con-
tribuem para reforçar a construção social que impede o
negro de assumir na sociedade posições de poder, ou
seja, a fragmentação. Mas, as formas simbólicas atua-
ram, principalmente, para determinar o branco como re-
presentante da espécie, além de serem colocados nas
obras sempre como personagens principais. Pudemos
observar que o negro pode não aparecer, em alguns
livros, subalternizado, mas aparece na maioria das ve-
zes como personagem secundário, aliado a passifiza-
ção do negro, ou seja, ao uso de voz passiva em deter-
minadas histórias, em decorrência da participação dos
personagens brancos nas mesmas. Ainda, deparamo-
-nos com situações racistas baseadas, principalmente,
na omissão e/ou pequena parcela de participação dos
negros na literatura, o que nos levou a considerar que
os discursos ditos ou silenciados atuam para a reifica-
ção das relações de desigualdades sociais entre ne-
gros e brancos no Brasil.
A análise das obras permitiu a constatação de alguns
resultados encontrados em outras pesquisas como: a) a
sub-representação de personagens negras nos textos e

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
93
ilustrações (ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999; LIMA,
1999; GOUVÊA, 2004, 2005; KAERCHER, 2006; PES-
TANA, 2008; FERREIRA, 2008; ARBOLEYA e ERES,
2008; ARBOLEYA, 2009; VENÂNCIO, 2009; MONTEI-
RO, 2010; DEBUS, 2010), limitando o aparecimento de
personagens negros; b) alguns personagens no acervo
analisado ainda aparecem estereotipados; c) o branco
continua aparecendo como representação da espécie
(ROSEMBERG, 1985; NEGRÃO E PINTO, 1990; NE-
GRÃO 1988; BAZILLI, 1999; FILHO, 2004; PESTANA,
2008; FERREIRA, 2008; ARBOLEYA e ERES, 2008;
DIAS, 2008; ARAUJO, 2010).
Observou-se ainda no processo de análise, que existe
a permanência da figura do branco como protagonis-
ta da história, e a prevalência de personagens infantis
também brancos. A mudança observada foi em relação
à valorização da estética negra por meio de represen-
tações de características étnicas valorizadas em ilus-
trações.

Considerações finais

No que se refere aos resultados relativos à cor/etnia, a


taxa de branquidade é consideravelmente alta quando
a questão de quantos personagens brancos para cada
personagem negro é examinada. De forma geral, os re-
sultados reiteram outros estudos (ROSEMBERG, 1985;
BAZILLI, 1999; OLIVEIRA, 2003; GOUVÊA, 2004, 2005;
KAERCHER, 2006, ARBOLEYA, 2009; DEBUS, 2010)

94 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
que apontam que os personagens negros/as, além de
menos frequentes, são também, via de regra, menos
elaborados que os personagens brancos/as, compondo
um quadro de “desvantagem cumulativa”.
Resultados positivos também foram encontrados, prin-
cipalmente no que diz respeito à representação de
personagens negras. Apesar de perceber um silen-
ciamento relativo à participação dos negros nas obras
analisadas, foi constatada uma melhora na qualidade
das ilustrações, sejam elas correspondentes aos per-
sonagens indígenas ou negros. Os livros analisados
apontam para uma frequência maior de personagens
infantis, mas a cultura adultocêntrica permanece, le-
vando-se em consideração que personagens adultos
aparecem mais que personagens infantis negros ou
indígenas. E, aparecem também para cultivar a pers-
pectiva de dominação do adulto para com a criança,
intensificando a relação de emissor adulto e receptor
criança.
A utilização, como forma de reinterpretação da ideolo-
gia, do método proposto por Thompson (2002) propor-
cionou a identificação das estratégias ideológicas das
obras, que muitas vezes passam despercebidas por um
olhar menos preciso. A síntese a seguir responde ao
problema de pesquisa proposto, que indaga que estra-
tégias ideológicas, particularmente forma de racializa-
ção entre brancos e negros, são observadas em amos-
tra de livros de literatura infantojuvenil distribuídos para
escolas de Educação Infantil pelo PNBE em 2008.
As análises realizadas possibilitam a identificação de
diversas formas de operação e estratégias ideológicas
nos processos relacionados ao PNBE 2008. Na análise

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
95
dos editais e em particular do edital de 2008 identifica-
mos o silêncio sobre particularidades culturais da popu-
lação negra brasileira e formulações que podem ope-
rar para dissimular as desigualdades étnico-raciais, de
forma similar aos processos de hierarquização implícita
comuns ao “racismo à brasileira”. Se por um lado os edi-
tais do PNBE apresentaram ao longo do tempo determi-
nadas mudanças que avaliamos positivamente e maior
detalhamento, no que se refere ao objetivo de valoriza-
ção das populações negra e indígena as mudanças são
de pouco impacto. Ou seja, as formas discursivas que
valorizam a diversidade étnico-racial encontram pouco
subsídio no processo normatizador do Programa, tendo
pouca efetividade no cumprimento da legislação vigen-
te, do artigo 26A da LDB (modificado pela Lei 10.639/03
e pela Lei 11.645/08) da Resolução 01/04 e do Parecer
03/04 do CNE/CP sendo pouco são atendidos.
Na análise dos personagens nos textos, nas ilustrações
e nas capas da amostra observamos também diversas
manifestações de estratégias e modos de operação da
ideologia. Como nos editais, na análise dos persona-
gens também se observou o de operação da dissimula-
ção, aliada à estratégia ideológica do deslocamento de
sentidos de poder e valorização social a personagens
brancos em detrimento de negros; e a estratégia ideo-
lógica do silêncio nas páginas de tal literatura sobre a
participação da população negra na realidade brasilei-
ra. Os livros analisados reforçam a ideia do silencia-
mento relativo às relações étnico-raciais na literatura
infantil. Ressaltam-se nas obras as estratégias ideo-
lógicas dominantes ocultadas pela representação de
brancos com características peculiares, fazendo parte

96 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
de uma composição familiar, recebendo nome e sendo
inseridos num contexto social melhor.
Umas das formas de hierarquia que atua em discur-
sos diversos no Brasil (SILVA, 2008; SILVA e ROSEM-
BERG, 2009) e que identificamos em nosso estudo é a
branquidade normativa, a estratégia ideológica de na-
turalização do branco como representante da humani-
dade, que na amostra analisada estabelecia a imagem
do branco como representante da espécie e associado
com bondade, beleza e riqueza. As formas simbólicas
que atuaram definindo o branco como representante da
humanidade também os colocaram via de regra como
personagens principais.
Personagens negros, por outro lado, foram mantidos
em papéis secundários, majoritariamente personagens
sem voz, compondo papéis de figurantes. Nenhuma
personagem negra da amostra pronunciou fala como
personagem principal. Nas raras falas de personagens
negras ainda foi observado o uso de voz passiva, confi-
gurando a estratégia ideológica de passificação do dis-
curso do negro.
Aliado aos papéis secundários, observou-se que os
personagens negros não usufruíram, nos textos ou nas
imagens, de papéis de exercício do poder. Analisamos
que nos textos e imagens os personagens negros não
ocuparam espaços de poder ou ao menos dividem
essa possibilidade com algum outro personagem. Os
espaços sociais de subalternidade estabelecidos nos
discursos da amostra enfatizaram características que
dificultam a tais indivíduos e grupos a participação no
exercício do poder, configurando-se, portanto, como
forma de diferenciação de personagens negros.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
97
Analisando as ilustrações, observamos uma série de
personagens negros ilustrados de forma a valorizar os
traços fenotípicos africanos. Por outro lado, ainda fo-
ram observadas passagens específicas com estereo-
tipia de personagens negros, que interpretamos como
formas de diferenciação e estigmatização de persona-
gens negros, de forma que contribuem para reforçar a
construção social que impede o negro de assumir na
sociedade posições de poder, ou seja, a fragmentação.
Ainda, deparamo-nos com situações racistas basea-
das, principalmente, na omissão e/ou pequena parcela
de participação dos negros na literatura, o que nos le-
vou a considerar que os discursos ditos ou silenciados
atuam para a reificação das relações de desigualdades
sociais entre negros e brancos no Brasil. Ou seja, num
contexto em que as formas generalizantes e indiretas
foram constituintes do discurso racista, não ser explíci-
to não foi suficiente. Identificamos o implícito operando
socialmente para manter as coisas do jeito que eram.

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102 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
NEAB
Capítulo 4
O SILÊNCIO COMO ESTRATÉGIA IDEOLÓGICA:
A INVISIBILIDADE NEGRA NA HISTÓRIA, NA
ARTE, NAS DIRETRIZES CURRICULARES DE
ARTE PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA E NO LIVRO
DIDÁTICO PÚBLICO DE ARTE DO PARANÁ
Ra
Megg o, u o E u a o: t at
Rayara a
Gomes de Oliveira ol a
103
Capítulo 4

O silêncio como estratégia ideológica: a


invisibilidade negra na história, na arte, nas
Diretrizes Curriculares de Arte para a Educação
Básica e no Livro Didático Público de Arte do
Paraná

Megg Rayara Gomes de Oliveira1

Introdução

No campo de estudos sobre currículo têm sido desen-


volvidas críticas sobre o eurocentrismo e a organização
discriminatória de conteúdos, de sistemas e de políticas
educacionais. Michael W. Apple2 (1989) afirma que o
Estado, logo a escola pública, é um local de conflito
entre classes e também entre grupos raciais e por isso
procura forçar todo mundo a pensar de forma igual, e
o currículo, por sua vez, decide o que deve fazer parte
dos conteúdos e o que deve ficar distante do ambiente
1 Travesti preta, doutora e mestra em educação pela Universidade Federal do Paraná;
especialista em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, Educação e Ações Afirmati-
vas no Brasil pela Universidade Tuiuti do Paraná/IPAD Brasil – Instituto de Pesquisa da
Afrodescendência; especialista em História da Arte pela Escola de Música e Belas Artes
do Paraná; graduada em Licenciatura em Desenho pela Escola de Música e Belas Artes
do Paraná.
2 Como propõe Débora Cristina de Araujo (2010, p. 14, nota 3), “por defender uma edu-
cação não-sexista, [...] além de utilizar o gênero feminino e masculino para me referir
às pessoas em geral, adoto também outra postura originada dos Estudos Feministas: o
destaque dos/as autores/as citados/as. Sendo assim, na primeira vez que há a citação de
um/a autor/a, transcrevo seu nome completo para a identificação do sexo (gênero) e, con-
sequentemente, para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e estudiosas [...]”.

104 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
escolar. Considero ser importante refletir a respeito do
que não faz parte dos conteúdos e questionar os silên-
cios de um texto (e também das imagens) para desco-
brir quais os interesses ideológicos em funcionamento
(APPLE, 1989, p. 46).
Em minha dissertação, Arte e Silêncio: a Arte Africana
e Afro-Brasileira nas Diretrizes Curriculares Estaduais e
no Livro Didático Público de Arte do Paraná (2012), de
onde deriva esse texto, levanto a hipótese de que o pro-
cesso de uma possível invisibilização da população ne-
gra na história oficial do estado do Paraná atualiza-se
na construção de um currículo que silencia a estética
africana e afro-brasileira no ensino da Arte, no ensino
médio. A partir dessa hipótese procuro investigar quais
as estratégias de hierarquização entre brancos/as e
negros/as podiam ser observadas nesses documentos,
produzidos e publicados pela Secretaria de Estado da
Educação do Paraná.
Para realizar essa investigação, utilizo o conceito de
ideologia e do método da Hermenêutica de Profundi-
dade, ambos propostos por John Brookshire Thompson
(2009).

1. Ideologia e Hermenêutica de profundidade

a) Ideologia
Para construir seu conceito de ideologia Thompson fez
um estudo detalhado da obra dos principais pesquisa-
dores ocidentais que discutiram o tema a partir do sé-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
105
culo XVIII e definiu ideologia como formas simbólicas
que operam para criar ou manter relações de poder de-
siguais (THOMPSON, 2009, p. 72).
Formas simbólicas, de acordo com o autor, compreen-
dem uma série de ações, falas, imagens e textos, po-
dendo ser linguísticas, ou não, e decodificáveis – por
quem produz e por quem as recebe – para que possam
operar da maneira pretendida.
Os estudos de Thompson apontam para cinco modos
de operação da ideologia – Legitimação, Dissimulação,
Unificação, Fragmentação e Reificação –, podendo ser
identificados agindo separadamente ou em conjunto.
Paulo Vinicius Baptista da Silva (2008) propõe o acrés-
cimo de uma estratégia ideológica relacionada ao modo
de operação da dissimulação: o silêncio, que age tanto
para ocultar o processo social de desigualdade racial,
quanto “na hierarquização entre brancos/as e negros/
as (como entre brancos e indígenas)” (SILVA, 2008, p.
5). Quatro formas de silêncio são identificadas pelo au-
tor, sendo fundamentais para nossa discussão.
a) O silêncio sobre a branquidade: que atua para esta-
belecer o branco como norma de humanidade;
b) A negação da existência plena ao negro: invisibili-
dade e sub-representação;
c) O silêncio sobre particularidades culturais do negro
brasileiro;
d) O silêncio como estratégia para ocultar desigualda-
des (SILVA, 2008, p. 6-7).

b) Hermenêutica de Profundidade
Nas pesquisas às quais esse trabalho afilia-se, o foco
volta-se para a análise crítica de desigualdades raciais

106 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
em discursos específicos e o método da Hermenêutica
de Profundidade foi utilizado de forma estruturadora.
Esse método compreende três fases e é bastante efi-
caz para a análise dos meios de comunicação de mas-
sa3, inclusive porque possibilita tanto a interpretação de
textos quanto de imagens.
1) Análise sócio-histórica: procura reconstruir as con-
dições sociais e históricas em que as formas simbólicas
foram produzidas, transmitidas e recebidas.
Nesse trabalho, as análises sobre a presença de ne-
gros e negras no Paraná e sobre a presença negra na
arte paranaense fazem parte desse primeiro nível de
análise. A discussão refere-se a um contexto específico
de racialização e dá sustentação a interpretações pos-
teriores à análise discursiva.
2) Análise formal ou discursiva: trata as formas sim-
bólicas como produtos que tem por objetivo dizer algu-
ma coisa sobre algo e não deve ser feita separadamen-
te da análise sócio-histórica para evitar o risco de uma
análise abstrata, sem relação com as condições de
produção e recepção das formas simbólicas (THOMP-
SON, 2009, p. 369-370).
Nessa pesquisa, a análise formal foi realizada sobre as
Diretrizes Curriculares de Artes e Arte para a Educação
Básica do Paraná e sobre o Livro Didático Público de
Arte para o Ensino Médio. Foram utilizadas técnicas
de Análise Crítica de Discurso e de Análise Semiótica

3 Nesse artigo, assim como em minha dissertação, as Diretrizes Curriculares de Ensino


de Artes e Arte para a Educação Básica do Estado do Paraná e o Livro Didático Público
de Arte para o Ensino Médio foram considerados meios de comunicação de massa, não
porque um determinado número ou proporção de pessoas receba esses produtos, mas
porque esses produtos estão disponíveis a uma pluralidade de receptores (THOMPSON,
2009, p. 287).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
107
para o exame dos discursos de tais documentos,
identificados inclusive nas imagens.
3) Interpretação/reinterpretação: essa última faceta
da Hermenêutica de Profundidade implica a construção
criativa de novos significados, ou seja, “uma explica-
ção interpretativa do que é representado ou do que é
dito” (THOMPSON, 2009, p.375). Uma forma simbóli-
ca, porém, pode apresentar mais de um sentido ou até
mesmo vários, possibilitando múltiplas e divergentes in-
terpretações, situação comum no estudo de imagens4.
Nos estudos do NEAB-UFPR em que o presente se
insere, a reinterpretação da ideologia dialoga com os
modos de e estratégias de operação da ideologia.

2. Presença negra no Paraná

Nesse artigo, as análises sobre a presença de negros


e negras no Paraná5 e sobre a presença negra na arte
paranaense fazem parte do primeiro nível de análise da
Hermenêutica de Profundidade.
Tal discussão é importante para minha argumentação
de que havia – e ainda há – uma ação deliberada de
invisibilização da população negra na história oficial do
estado, ou seja, um processo ideológico que procura
4 Nesse artigo, trabalhamos com duas categorias de imagem. A primeira é a imagem
construída especificamente através de uma narrativa escrita que repassa ao leitor a tarefa
de dar forma às personagens, aos fatos e as cenas descritas. A segunda é a imagem
iconográfica – desenho, pintura, gravura, fotografia, escultura, etc. – que, via de regra,
está subordinada a um texto, dando suporte para as ideias apresentadas de forma escrita.
5 Apesar da Província do Paraná ser criada apenas em 1853, os fatos que aconteceram
em seu território antes dessa data serão tratados como pertencentes a sua história, como
tem sido feito pelos/as autores/as que servem de referência para esse trabalho.

108 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
negar a existência plena da população negra (SILVA,
2008).
Tal argumento se apoia inclusive na oferta reduzida de
pesquisas que discutem o assunto e, na maioria dos
trabalhos a que tivemos acesso essa população está
restrita ao período escravista, ainda assim redimensio-
nada para menos, com alguns autores (Romário MAR-
TINS, 1920; Wilson MARTINS, 1995) apresentando
dados manipulados para omitir sua participação no pro-
cesso de ocupação do território paranaense (Marcilene
Garcia de SOUZA, 2003, p. 31). Outros/as pesquisado-
res/as, no entanto (Eduardo Spiller PENA, 1990; Sérgio
Odilon NADALIN, 2001; SOUZA, 2003; Beatriz Gallot-
ti MAMIGONIAN, 2011; Adriano Bernardo Moraes de
LIMA, 2011), apresentam dados que procuram provar o
contrário e afirmam que além de numerosa a população
negra foi fundamental no processo de estruturação da
província do Paraná. Embora importantes esses traba-
lhos trazem poucas informações a respeito da popula-
ção negra livre e/ou liberta6, bem como de suas estraté-
gias de resistência contra o regime escravista, e acaba
contribuindo, em certa medida, para reafirmar que a
única possibilidade de relação entre brancos/as e ne-
gros/as até 1888 era a de escravizado7 e escravizador.

6 “Liberta” é a pessoa livre, porém, em alguma fase de sua vida, foi escravizada.
7 Opto pelo conceito de escravizado por entendermos que “o conceito de escravo tem o
nítido sentido de reduzir uma realidade histórico-cultural ao estado de natureza” (Dagober-
to José FONSECA, 2011, p. 15), ou seja, “o escravo nasce, cresce e morre irremediavel-
mente preso a sua natureza” (FONSECA, 2011, p. 15). O conceito de escravizado, está
mais de acordo com a realidade vivenciada pela população negra aqui no Brasil até 1888,
mesmo porque se tratava de uma situação transitória que poderia ser alterada de muitas
maneiras, individual ou coletivamente, através de dispositivos legais, como a compra de
cartas de alforria ou questionando de maneira mais incisiva a legitimidade do regime es-
cravista através de fugas, da organização de quilombos e de rebeliões e revoltas.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
109
Outra situação recorrente entre os/as autores/as que
discutem a história do Paraná e que contribui para si-
lenciar a respeito da presença de negros/as é ignorar o
estado como rota para o tráfico e comércio de pessoas
escravizadas. Até a proibição oficial do tráfico em 1830,
Paranaguá era a principal porta de entrada de africa-
nos/as no estado, porém as “localidades de Guaraque-
çaba, Antonina, Superagui e Guaratuba” (LIMA, 2011,
p. 104) também eram utilizadas com essa finalidade.
Tal proibição não representou, de fato, o fim do comér-
cio de pessoas e o ingresso de africanos/as no Paraná
e “nas décadas de 1830 e 1840, o litoral paranaense
abrigou o tráfico ilegal [...] graças à corrupção dos ofi-
ciais da alfândega e das autoridades judiciais e policiais”
(MAMIGONIAN, 2011, p. 4). Em dois anos apenas,
1837 e 1839, “foram desembarcados comprovadamen-
te mais de 4 mil africanos em Paranaguá” (MAMIGO-
NIAM, 2011, p. 4).
Entre eles Horácio Gutierrez (1988) identificou, através
das listas nominativas de habitantes8 no início do século
XIX, dois grupos principais, Bantos e Sudaneses. Entre
os Bantos havia pessoas de origem Benguela, Ango-
la, Congo, Rebolo, Cassange e Cabinda, enquanto que
entre os Sudaneses, Gutierrez identificou apenas duas
etnias: Mina e Guiné9 (1988, p. 11).
Muitos/as desses/as africanos/as foram mantidos ali
mesmo, outros encaminhados para fazendas e vilas

8 As listas nominativas deviam, por ordem imperial, indicar a procedência de todos os


moradores da província.
9 Essas denominações “podiam significar etnias, ou também, portos de embarque, fai-
xas costeiras de intermináveis quilômetros, estuários fluviais, famílias linguísticas e até
linhagens ou antropônimos” (GUTIERREZ, 1988, p. 10), isso porque “o olhar do branco
dos europeus que participaram do comércio negreiro raramente conseguia perceber as
diferenças étnicas dos povos africanos” (LIMA, 2011, p. 107).

110 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
serra acima e, outros ainda foram apreendidos/as pelo
governo imperial e declarados emancipados, o mesmo
que livre de acordo com os estudos de Mamigoniam
(2011).
Mesmo de posse da carta de emancipação que prova-
va nunca terem sido escravizados, esses/as africanos/
as eram obrigados/as a adotar o mesmo comportamen-
to dos libertos10, registrando na polícia seu endereço e
qual a atividade profissional que desempenhavam.
Outra categoria que acredito ser composta majorita-
riamente por negros/as e pouco discutida pelos histo-
riadores paranaenses é o/a agregado/a, definido por
Carlos Roberto Antunes dos Santos (2001, p. 31) como
pessoa juridicamente livre, mas que vivia subordinada
à classe senhorial.
Minha suposição leva em consideração o fato de o con-
ceito de liberdade jurídica em operação durante o re-
gime escravista ser diferente do atual que, de maneira
resumida, consistia em questionar na justiça a condição
de escravizado/a. Tal atitude tinha motivações variadas,
como a tentativa de se impedir uma venda que não ha-
via sido previamente consentida pelo/a escravizado/a,
chamada por Pena (1990) de “venda vingativa”:

Para escapar da possibilidade de ter que se


transformar num cativo ordeiro e disciplina-
do ou de ser vendido para a temida ‘zona
cafeeira’, o nosso protagonista lança mão,
por sua vez, do próprio espaço que a lei lhe
oferecia, entrando com uma ação de liber-
dade para alegar que era uma pessoa livre

10 “Libertos” são pessoas oficialmente livres, porém em alguma fase de suas vidas, foram
escravizados.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
111
por ter seu senhor o abandonado, doente e
esfarrapado (PENA, 1990, p. 21).

Não apenas os/as pesquisadores/as, mas o próprio po-


der público, de forma ainda mais eficiente, procurou ne-
gar a existência da população negra em nosso estado.
Os recenseamentos foram utilizados com essa finalida-
de e consideravam em suas contagens apenas duas
categorias – as livres e as escravizadas –, às vezes
subdivididas em sexo masculino e feminino, sem espe-
cificar o pertencimento racial, dando a entender que o
conceito de “escravo” era o mesmo que negro, já que o
termo “preto”, “por força do uso, tornou-se sinônimo de
escravo” (GUTIERREZ, 1988, p. 9).
Em 1772, de acordo com o primeiro censo geral da
Capitania de São Paulo, “a população paranaense era
composta de 7.627 habitantes, dos quais 28,8% eram
escravos” (SANTOS, 2001, p. 33). Já “a Vila de Curiti-
ba possuía uma população escrava que correspondia
a 18% da população total” (SANTOS, 2001, p. 34). Em
1780, oito anos após o primeiro censo, Brasil Pinheiro
Machado (1780 apud Etelvina Maria de Castro TRIN-
DADE; Maria Luiza ANDREAZZA, 2001, p. 27) afirmava
que dos 17.685 habitantes do Paraná, 5.336 eram es-
cravizados, ou seja, 33,14% da população.
Os números apresentados por Santos (2001) e Ma-
chado (1780) são oficiais, porém incompletos. Por isso
chamamos a atenção para a necessidade de se conta-
bilizar ao/as negros/as livres, libertos/as e agregados/
as para que tenhamos uma contagem, se não exata
ao menos aproximada da população negra que vivia no
Paraná.

112 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Em 1798, por exemplo, a população escravizada em
Curitiba era de 17,6 %, menor que a população negra li-
vre que era de 27,2 %. Juntas, somavam 44,8% do total
da população da futura capital da província11. Em todos
os censos realizados a população negra livre12 era mais
numerosa que a população negra escravizada, e à me-
dida que nos aproximamos do final do regime escravis-
ta essa diferença aumenta. A redução no número de
pessoas escravizadas, no entanto, não representa uma
diminuição expressiva da população negra em Curitiba
que continua mantendo, ao longo do século XIX, um
percentual próximo dos 40%.
A situação observada em Curitiba se repete em outras
cidades paranaenses o que me autoriza a supor que
número de pessoas negras vivendo em nosso estado
seja maior do que os números oficiais. O Relatório do
Presidente da Província do Paraná Zacarias de Góes
e Vasconcelos apresentado na abertura da Assembleia
Legislativa Provincial, em 15 de julho de 1854, em Curi-
tiba, por exemplo, colabora com nossa argumentação e
leva o próprio presidente a afirmar que um em cada 2,5
habitantes da província não era branco.
No período pós-abolição o silêncio em torno da popula-
ção negra aumenta, e autores considerados importan-
tes para a historiografia paranaense (MARTINS, 1920;
MARTINS 1995; Ruy WACHOWICZ, 1995) destacam
apenas a presença de imigrantes europeus na constru-
ção do Paraná. Tal posicionamento é estratégico para a

11 Dados extraídos da Tabela II - Participação da população escrava e livre na Comarca


de Curitiba — séculos XVIII e XIX (SPILLER PENA, 1990, p. 85).
12 Há diferenças entre os conceitos “livres e libertos”, no entanto essas diferenças não
são consideradas nos números relacionados à população negra não escravizada, por de-
sempenhar a mesma função.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
113
política de embranquecimento do estado já que opera
para promover o apagamento de fatos e personalida-
des negras importantes e é ideológico no sentido que
utilizamos, pois atua para estabelecer diferentes espa-
ços de poder.
A respeito da política de embranquecimento, em nível
federal, é possível afirmar que nas primeiras décadas
do século XX ela realmente funcionou e reduziu signifi-
cativamente a população negra em todo país que caiu
de 47,0% em 1890 para 35,8% em 1940. O Paraná,
que recebeu um contingente significativo de imigran-
tes europeus, conseguiu resultados mais expressivos
e reduziu drasticamente a presença de negros/as em
todas as suas regiões. Para tanto, foi mais específico
em sua política de embranquecimento e apoiou aber-
tamente os imigrantes europeus, distribuindo terras,
priorizando a contratação de mão de obra estrangeira
no serviço público, etc. e ignorou a população negra,
forçando, assim, seu deslocamento para outros locais.
Ainda assim a população negra paranaense continuou
com uma presença importante e, a partir da década de
1970, a exemplo do que acontece em todo o país, só
aumentou e hoje com 27, 8% é a mais numerosa entre
os três estados da Região Sul.

2.1 Presença negra nas Artes Plásticas

Durante o regime escravista a população negra exercia


as mais variadas funções, tanto na cidade quando na
zona rural e dominavam técnicas de tecelagem e cos-
tura, teciam rendas finas de bilro, fabricavam roupas e

114 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
objetos em couro, extraiam e fundiam o ouro na região
de Curitiba, fabricavam e tocavam instrumentos musi-
cais, conheciam técnicas de entalhe em madeira e tam-
bém de arquitetura. A música e a dança faziam parte de
suas celebrações religiosas e de suas festas, embora a
Congada, o Batuque, a Dança de São Gonçalo e a Ca-
poeira fossem “especialmente reprimidas” (TRINDADE;
ANDREAZZA, 2001, p. 27) e sofressem “constante as-
sédio da polícia e das autoridades provinciais” (PENA,
1990, p. 3), por estarem associadas à ociosidade que
poderia conduzir à criminalidade.
Dentre as contribuições negras para as artes plásticas
no estado do Paraná no período escravista, destaco a
arquitetura religiosa. Ainda que sob a influência estética
do escravizador, nasceu da iniciativa de uma irmanda-
de negra que construiu em 1578, em Paranaguá, a pri-
meira igreja do país em homenagem a Nossa Senhora
do Rosário “protetora das irmandades terceiras dos ne-
gros, que a ela pediam proteção e alívio dos sofrimen-
tos” (Roberto CONDURU, 2007, p. 19).
A Igreja do Rosário13, em Curitiba, inicialmente chama-
da de Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito,
também foi patrocinada, projetada e construída por
pessoas negras, em 1737. Em estilo colonial, era maior
e mais bonita que a igreja matriz, bem mais simples,
construída em madeira onde os/as negros/as não po-
diam entrar. Provavelmente foi a segunda igreja inau-
gurada na capital paranaense, pois entre 1875 e 1893
serviu de igreja matriz enquanto a nova catedral era
construída.

13 O prédio atual é uma construção em estilo barroco, inaugurado em 1946. Da igreja


construída em 1737 foram mantidos apenas os azulejos que decoram parte da fachada.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
115
Embora importante, a arquitetura religiosa introduzi-
da no Paraná pela população negra é mal estudada
e impede-nos, por exemplo, de identificar quem eram
os arquitetos, os mestres-pedreiros e os artistas que
decoravam as igrejas patrocinadas pelas irmandades
que atuaram em várias regiões, principalmente nas ci-
dades litorâneas. Em meu entendimento, essa é mais
uma das formas de operação do silêncio situação que
envolve não apenas a arquitetura, mas as artes plás-
ticas como um todo, sendo praticamente inexistentes
os registros de artistas negros em atividade no Paraná
até a década de 1960, mesmo que a história da pintura
paranaense comece a ser escrita em 1806 em Curitiba
por um deles: João Pedro – O mulato, primeiro “artista
paranaense que se tem notícia” (Adalice ARAÚJO apud
Aramis MILLARCH, 1986). Essa afirmação também foi
feita pelo professor Newton Carneiro em 1975 no livro
O Paraná e a caricatura, que ainda reivindica para
João Pedro o título de primeiro caricaturista brasileiro.
Parte da produção de João Pedro foi localizada em Por-
tugal em 1966 e fez parte do acervo do Visconde de
Vieiros. Essas obras foram encaminhadas a Europa por
Antônio de Araújo de Azevedo, o Conde da Barca, uma
espécie de Ministro das Relações Exteriores da época
e que também organizou a Missão Artística Francesa,
em 1816. Essa aproximação com personalidade tão
ilustre atesta o reconhecimento de seu talento por seus
contemporâneos, porém o mesmo não aconteceu após
a sua morte, uma vez que caiu no esquecimento.
Além de ser o primeiro pintor em atividade no Paraná,
João Pedro também fez os primeiros registros da popu-
lação negra em nosso estado. Depois dele identifica-

116 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
mos registros semelhantes em algumas aquarelas de
Jean Baptiste Debret (1827) e William Lloyd (1872) em
cenas que procuram mostrar o cotidiano de Curitiba,
Antonina, Paranaguá, Ponta Grossa e Castro.
Debret e Lloyd são considerados artistas viajantes, já
que fixaram residência no país por poucos anos, o que
nos permite afirmar que durante todo o século XIX os
artistas paranaenses negaram de forma sistemática a
existência de grupos raciais não brancos.
Essa situação se mantém até 1928 quando o pintor ita-
liano Guido Viaro se muda definitivamente para Curitiba
e insere a população negra em suas obras de forma
recorrente.
A obra de Viaro encantava a classe artística pelas no-
vidades pictóricas que apresentava, mas não pela te-
mática e somente a partir das décadas de 1940 e 1950
é que outros artistas vão retratar pessoas negras com
certa frequência, algumas vezes como protagonistas,
como fazem Erbo Stenzel, Margarida Wollemann e Nilo
Previdi, outras integrando a paisagem ou compondo
uma cena de multidão, como fazem Theodoro de Bona,
Arthur Nísio, Paul Garfunkel e Luiz Carlos de Andrade
Lima. Ainda assim a obra desses artistas é caracteri-
zada por uma estética e um pensamento eurocêntrico,
pois a presença negra é percebida em situações pon-
tuais. Em algumas obras ainda é possível identificar
certos estereótipos, como a associação da população
negra a pobreza e ao trabalho braçal, mesmo nos raros
retratos individualizados, numa evidente associação
com o regime escravista. É o que Thompson chama
de naturalização, ou seja, determinadas situações são
descritas e tratadas como naturais e não como o resul-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
117
tado das relações sociais estabelecidas (THOMPSON,
2009, p. 88).
Depois de João Pedro – O Mulato, somente na década
de 1960 é que encontro registros de artistas negros em
atividade no Paraná. Esses registros são feitos quando
eles/as conseguem expor seus trabalhos em espaços
elitizados como museus e galerias, depois de passa-
rem por um criterioso processo de avaliação.
Esse processo, que leva em conta as qualidades es-
téticas impostas pelo modelo europeu, via de regra,
atua de forma a dificultar e até impedir que artistas sem
uma formação nesses moldes consiga algum reconhe-
cimento.
O acesso a um conhecimento formal significa também
o afastamento das estéticas africana e afro-brasileira já
que estas não fazem parte dos programas oficiais dos
cursos de arte em todo o país, inclusive aqueles que
formam professores/as, críticos/as e historiadores/as. A
relação entre o conhecimento formal e uma estética eu-
ropeia acaba representando um trajeto mais seguro em
direção à visibilidade no cenário das artes plásticas, o
que também é uma forma de silenciamento. Talvez isso
explique, ao menos parcialmente, as escolhas estéticas
de vários/as artistas negros/as que evitam tratar de te-
mas relacionados ao seu grupo racial.
Por sua vez, os/as artistas negros/as que optam por
linguagens que dialogam com a arte e com a estética
de matriz africana têm sua produção analisada de ma-
neira superficial, não sendo raras as classificações, por
críticos/as e historiadores/as, de primitiva e/ou popular.
Esses equívocos estão atrelados, como já alertei, ao
processo de formação desses/as profissionais, mas

118 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
também a uma visão preconceituosa em relação a arte
africana, considerada inferior em relação a arte euro-
peia.
Como afirmei anteriormente, a partir das décadas de
1970 e 1980 a população negra paranaense apresen-
ta índices significativos de crescimento, aumentando
também o número de artistas negros que conseguem
alguma projeção. No entanto, de maneira geral, a arte
paranaense sofre poucas alterações em sua estrutura
e se caracteriza pelo silêncio em relação à estética e
à cultura afro-brasileira, bem como em relação ao tra-
jeto de artistas negros/as, principalmente em relação
àqueles que se mantiveram fora de espaços elitizados,
como museus e galerias de arte.
Essa situação também é observada nas Diretrizes Cur-
riculares de Artes e Arte Para a Educação Básica do
Estado do Paraná e no Livro Didático Público de Arte
para o ensino médio que discutiremos a seguir.

3. Diretrizes Curriculares de Artes e Arte Para a


Educação Básica do Estado do Paraná e o Livro
Didático Público de Arte

As reflexões que fiz até aqui servem-nos para com-


preender o contexto de análise das formas simbólicas
expressas nas Diretrizes Curriculares de Artes e Arte
para a educação básica do Estado Paraná e o Livro
Didático Público de Arte14 para o Ensino Médio. A partir
14 O Livro Didático Público de Arte para o Ensino Médio faz parte do “Projeto Folhas” e
reuniu quatro autoras e três autores de seis cidades diferentes, todos/as professores/as

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
119
da análise empreendida posso afirmar que o conjunto
de ideias, principalmente o silêncio em relação à popu-
lação negra e suas contribuições para a construção do
estado e do país, está em operação dentro do sistema
educacional do Paraná. Ao menos é o que explicitam as
publicações que analisei.
Tanto as Diretrizes quanto o Livro Didático Público fo-
ram construídos ao longo de três anos, entre 2003 e
2006. As duas publicações, no entanto, ignoram as mo-
dificações no artigo 26A da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB) pela Lei 10.639/2003 que
institui a obrigatoriedade do ensino da História e Cultu-
ra Africana e Afro-Brasileira em todos os níveis da edu-
cação básica, nos estabelecimentos de ensino públicos
e privados.
No artigo 26-A da LDB lê-se:

§ 1º O conteúdo programático a que se


refere o caput deste artigo incluirá o estudo
da História da África e dos Africanos, a luta
dos negros no Brasil, a cultura negra brasi-
leira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo
negro nas áreas social, econômica e políti-
ca pertinentes à História do Brasil.

de Arte vinculados à Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED). Dois autores


e uma autora também participaram do processo de construção das Diretrizes Curricula-
res de Artes e Arte para a educação básica do estado do Paraná – 2006, integrando a
equipe técnico-pedagógica de Arte do ensino médio da SEED. O Livro Didático Público
se propunha a inovar na maneira de se produzir livros didáticos no estado do Paraná. A
proposta consistia em aproveitar professores e professoras da rede estadual de ensino
como autores e autoras. Para tanto, deveriam produzir textos (artigos), chamados “folhas”,
e proporem atividades que pudessem ser aplicadas em sala de aula e submetê-los a um
processo de seleção. Os trabalhos selecionados, no entanto, antes de serem publicados
em 2006 passaram pela análise de professores/as que trabalham com ensino superior,
contratados/as pela Secretaria de Estado da Educação como consultores/as.

120 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
§ 2º Os conteúdos referentes à História e
Cultura Afro-Brasileira serão ministrados
no âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de Educação Artística
e de Literatura e História Brasileiras (BRA-
SIL, 2004, grifo nosso).

Como suporte teórico para a aplicação da Lei


10.639/2003, em março de 2004, o Conselho Nacional
de Educação (CNE) aprovou as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Ra-
ciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasilei-
ra e Africana, tendo como relatora a professora doutora
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (BRASIL, 2004).
O curioso é que no mesmo período em que as Diretri-
zes Curriculares e o Livro Didático Público foram ela-
borados era intensa a relação dos Movimentos Sociais
de Negros e Negras com a Secretaria de Estado da
Educação do Paraná (SEED) para implementar o artigo
26A da LDB, resultando, entre outras coisas, na rea-
lização do I Seminário Estadual de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana e na instituição do I Encontro
de Educadores/as Negros/as do Paraná, em 2004 e no
I Encontro do Fórum Permanente de Educação e Diver-
sidade Étnico-Racial do Paraná, em 2005.
Essas e outras ações revelam que a SEED estava in-
teirada a respeito das normativas e das políticas de re-
conhecimento e valorização da população negra bra-
sileira desenvolvidas pelo Ministério da Educação. Por
outro lado, o silêncio em torno da estética e da cultura
africana e afro-brasileira nas Diretrizes Estaduais e no
Livro Didático Público de Arte evidencia a falta de uni-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
121
dade e de comunicação no seu interior e que as ações
que desenvolveram em âmbito estadual parecem não
ter atingido, ainda que superficialmente, as equipes que
trabalharam nas duas publicações.
Posso compreender que a formação que é hegemoni-
camente “analfabeta da diáspora”, ou seja, a formação
secular que estabelece as ideias de Europa como “lu-
gar” do desenvolvimento e da racionalidade e a África
como espaço de subdesenvolvimento e ausência de
racionalidade é atuante em diversos espaços de forma-
ção e na formação escolar, produzindo e reproduzindo
hierarquias raciais e atuando para a naturalização das
mesmas.
Embora distintos, e produzidos no mesmo período por
equipes diferentes, do ponto de vista das relações ra-
ciais os dois materiais analisados revelam uma visão
muito similar e vários dos modos e estratégias de ope-
ração da ideologia propostos por Thompson (2009) po-
dem ser observados. No QUADRO 1 apresento uma
síntese das ideias presentes tanto nas Diretrizes Curri-
culares de Artes e Arte para a Educação Básica do Es-
tado do Paraná quanto no Livro Didático Público de Arte
para o Ensino Médio, e relaciono o tratamento dado às
relações étnico-raciais a formas de operação da ideolo-
gia propostas por Thompson (2009), complementadas
pelo estudo de Silva (2008).

122 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Quadro 1. Formas de operação da ideologia identificadas
Diretrizes Curriculares Livro Didático Público Formas de operação da ideo-
de Artes e Arte para a de Arte para o Ensino logia
Educação Básica do Médio – 2006
Estado do Paraná –
2006
Omissão em relação à Omissão em relação às Silêncio sobre particularidades
temática africana e afro- contribuições da popula- culturais da população negra
-brasileira. ção negra para a estética brasileira e, nesse caso, do/a
da arte nacional e interna- negro/a africano/a.
cional.
A população branca é A população branca é Naturalização do/a branco/a
apresentada como nor- apresentada como norma como representante da humani-
ma de humanidade. de humanidade. dade e silêncio sobre a afirma-
ção da branquidade.
A arte europeia é apre- A arte europeia é apre- Padronização: formas simbó-
sentada como modelo sentada como modelo licas são apresentadas como
para as demais. para as demais. referencial padrão, como se fos-
se um fundamento partilhado e
aceito pela coletividade.
Reforça a ideia de hie- Reforça a ideia de hierar- Naturalização: determinadas
rarquia entre brancos/as quia entre brancos/as e situações são descritas e trata-
e negros/as. negros/as. das como naturais e não como
o resultado das relações sociais
estabelecidas.
Na impossibilidade de Alguns fatos envolvendo Eufemização, efetuando peque-
omitir fatos envolvendo a população negra fica- nas modificações de sentido
indígenas e negros/as, ram no campo da suposi- e que podem alterar o grau de
a participação destes/ ção, revelando a falta de certeza ou de realidade (pode
as é redimensionada de interesse pelo assunto. ser, talvez, possivelmente).
modo que pareça insig-
nificante.
Invisibilidade de artistas Invisibilidade e sub-re- A negação da existência plena
negros/as. presentação de artistas ao/à negro/a: invisibilidade e
negros/as. sub-representação;

Silêncio sobre particularidades


culturais do/a negro/a brasilei-
ro/a.
Sub-representação da Sub-representação da Uso genérico do masculino nos
mulher branca e invisibi- mulher, especialmente da discursos, ignorando a existên-
lidade da mulher negra. mulher negra. cia das mulheres;

A negação da existência plena


da mulher: invisibilidade e sub-
-representação de artistas do
sexo feminino, especialmente
negras.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
123
(Quadro 1 - Continuação)

Imagens estereotipadas Naturalização: determinadas


da população negra as- situações são descritas e trata-
sociadas ao grafite, ao fu- das como naturais e não como
tebol, ao samba, ao jazz, o resultado das relações sociais
à pobreza e ao trabalho estabelecidas
braçal, operando para es-
tabelecer qual o espaço
que deve ocupar na geo-
grafia social do país.
Ausência de identidade Nominalização e passivização:
das personagens negras, concentram a atenção do ouvin-
identificadas ora pela cor te ou leitor em certos temas com
da pele ora pela função prejuízos de outros.
que exercem
A população negra con- Narrativização: o passado e
temporânea é retratada o presente são apresentados
como se ainda estivesse como parte de uma tradição
presa ao regime escra- eterna e aceitável;
vista.
Eternalização: determinados
fatos são apresentados como
permanentes, imutáveis, reafir-
mando um caráter a-histórico.
Costumes, tradições e institui-
ções que parecem prolongar-se
em direção ao passado, adqui-
rindo uma rigidez que não pode
ser facilmente quebrada.
O funk, a axé-music e o Expurgo do Outro: é a constru-
pagode foram classifica- ção de um inimigo, retratado
dos como músicas sem como mau, perigoso e ameaça-
qualidade e de forte apelo dor e contra o qual se deve lutar
sexual. coletivamente.

FONTE: Organização do autor com aportes de Thompson (2009) e de


Silva (2008)

Os resultados de minha pesquisa, infelizmente, pouco


se distanciam de outros obtidos nas pesquisas que fo-
ram desenvolvidas a partir da década de 1950 e que
tiveram como objeto livros didáticos produzidos pela ini-
ciativa privada. Mesmo depois que o Programa Nacio-
nal para o Livro Didático (PNLD) passou a considerar

124 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
situações de racismo em suas avaliações o problema
manteve-se e publicações com conteúdos racistas fo-
ram aprovadas e chegaram às salas de aula em todo
o país. Segundo Wellington Oliveira dos Santos (2012)
a formulação das políticas do PNLD sofreu o impacto
das posições defendidas pelos Movimentos Sociais de
Negros e Negras e, ao longo dos anos anteriores, foi
incorporando e dando maior ênfase, nos editais, à ne-
cessidade de valorização da população negra, afirman-
do que os livros devem, como critérios de qualificação,
promover positivamente a imagem de afrodescenden-
tes, promover positivamente a cultura afro-brasileira e
abordar a temática das relações étnico-raciais. Além
disso, os editais citam explicitamente as normativas re-
lacionadas com a temática: a LDB, com as modificações
determinadas pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, a
Resolução 01/2004 e o Parecer 03/2004 do Conselho
Nacional de Educação. Tais definições nos editais tive-
ram algum impacto positivo no tratamento dado à po-
pulação negra nos discursos dos livros, em especial no
tratamento de imagens e ilustrações (SANTOS, 2012).
No entanto, permanece o tratamento desigual em rela-
ção a personagens negras e brancas, que se manifesta
via distintas formas de discursos que hierarquizam a
brancos e negros, expressos de forma heterogênea se
consideradas as diferentes disciplinas escolares e eta-
pas de ensino a que se destinam os livros.
O fato dos livros com formas específicas de discursos
racistas continuarem sendo aprovados, comprados e
distribuídos, revela que as normatizações têm um al-
cance limitado na produção dos discursos e na efetiva-
ção das políticas educacionais. Estamos lidando com

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
125
formas simbólicas muito arraigadas e que circulam de
forma diversa nos discursos de meios diversos, sem a
percepção que operam para criar e manter desigualda-
des raciais. O impacto das normativas sobre equipes de
avaliadores dos livros, que são leitores muito especiais
e atentos a aspectos variados dos discursos, também
não tem incorporado as determinações das normativas.
Os resultados de pesquisas revelam que as equipes de
avaliadores do PNLD não estavam exatamente prepa-
radas para identificar situações de racismo implícito,
atendo-se a exemplos mais visíveis de discriminação.
O fato de um documento oficial e um livro didático pro-
duzidos pelo estado do Paraná apresentarem conteú-
dos racistas apontam que as equipes responsáveis,
mesmo com assessoria de professores e professoras
universitários/as, alguns/mas atuando na área de for-
mação docente, não estiveram atentas para as formas
de hierarquização entre brancos/as e negros/as que
configuram discursos racistas.
É possível que tal situação pudesse ter sido minimizada
com a aproximação entre as equipes que efetivaram
tais políticas educacionais e os Movimentos Sociais de
Negros e Negras que estavam atuando em comissão
dentro da própria SEED. Muitos/as integrantes e lide-
ranças desses movimentos buscaram formação espe-
cializada para se expressarem de forma mais acadê-
mica e buscarem legitimação para suas denúncias e
reivindicações. Como a SEED já vinha desenvolvendo
uma série de ações em parceria com essas organiza-
ções não é possível argumentar desconhecimento a
respeito da existência desses movimentos e do traba-
lho que desenvolviam na área da educação.

126 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Embora ambas as publicações deixem de cumprir o
artigo 26A da LDB é o Livro Didático Público de Arte
para o Ensino Médio que me preocupa um pouco mais
por ter sido distribuído em todo o estado, levando-me a
questionar a respeito de seu impacto em sala de aula.
Algumas formas de racismo são implícitas, outras, po-
rém, são mais evidentes e podem atuar para eclodir ou
justificar atitudes discriminatórias, já que estão presen-
tes em um livro produzido e distribuído pelo próprio go-
verno do Paraná.

Algumas considerações

Ao longo de minha discussão a respeito da presença


negra na sociedade paranaense, durante e depois do
regime escravista, identifiquei formas diversas de ope-
ração da ideologia nos moldes propostos por Thomp-
son, sendo a dissimulação a mais frequente, agindo das
quatro formas apresentadas por Silva (2008), ou seja,
estabelecendo o branco como norma de humanidade;
negando existência plena ao negro; silenciando sobre
as particularidades culturais do negro brasileiro e ocul-
tando as desigualdades historicamente construídas.
A mesma situação é observada nos dois documentos
analisados, as Diretrizes Curriculares de Artes e Arte
para a Educação Básica do Estado do Paraná e o Livro
Didático Público de Arte para o Ensino, tanto nos tex-
tos, quanto nas imagens.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
127
Minha crítica não se dirige apenas às equipes respon-
sáveis pelos materiais analisados, mas a uma estrutu-
ra de governo representada pela SEED que permitiu a
construção das Diretrizes Curriculares de Artes e Arte
para a Educação Básica do Estado Paraná e o Livro
Didático Público de Arte para o Ensino Médio sem de-
monstrar nenhuma preocupação, ao menos aparente,
com a promoção da igualdade racial, já que as formas
de hierarquização entre brancos/as e negros/as esti-
veram bastantes presentes e atuantes nos discursos
analisados, mantendo um quadro de muito mais perma-
nência que mudança nos discursos das políticas edu-
cacionais analisadas.

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NEAB
Capítulo 5
RELAÇÕES RACIAIS NO
LIVRO DIDÁTICO PÚBLICO
Tânia Mara Pacifico
Ra o, u o E u a o: t at a ol a
133
Capítulo 5

Relações raciais no Livro Didático Público

Tânia Mara Pacifico1

Introdução

Este artigo foi desenvolvido a partir da dissertação Re-


lações raciais no Livro Didático Público do Paraná2. Foi
realizada a análise das relações raciais no Livro Didá-
tico Público – Folhas, que foi uma Política Pública do
Estado do Paraná. A pesquisa para tanto utilizou-se do
conceito de ideologia e da metodologia da Hermenêu-
tica de profundidade (HP) desenvolvida por Thompson
(1995). Os focos de análise foram: a) em que medida
o Livro Didático Público – Folhas contempla as defi-
nições legais do artigo 26-A da LDB (modificado pela
Lei 10.639/03 e alterado pela Lei 11.645/08), o Parecer
03/2004 e Resolução 01/2004 do CNE; b) que estraté-
gias ideológicas de hierarquização entre brancos/as e
negros/as foram captadas nas políticas públicas e nos
livros. A análise das políticas de produção apontou que
não foram levadas em consideração as propostas de
promoção de igualdade racial que ocorriam dentro da
1 Pedagoga, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná, pesquisadora
do NEAB-UFPR, foi coordenadora pedagógica no convênio NEAB-UFPR e Projeto A cor
da Cultura (2012-2014).
2 Defendida em 2011 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Paraná, na Linha de Políticas Educacionais.

134 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
própria estrutura da Secretaria Estadual de Educação.
Foram selecionados para análise livros de duas disci-
plinas, Língua Portuguesa e Educação Física. De for-
ma geral somente o livro de Educação Física atende,
parcialmente e com contradições internas às definições
legais sobre Educação das Relações Étnico-Raciais.
Foram analisadas formas simbólicas dos livros que
naturalizam ao branco como representante da huma-
nidade; que estigmatizam as/os personagens negros/
as, em especial à mulher negra; que silenciam sobre
a presença negra; sobre a história e cultura africana e
afro- brasileira; sobre os processos de discriminação e
desigualdade racial.

1. Análise de contexto

O contexto histórico e político, ao ser analisado, possibili-


ta inferências sobre a política de produção e distribuição
de livros didáticos pela Secretaria Estadual de Educação
do Paraná (SEED). Hutner (2008) descreveu o processo
de formulação do projeto do Livro Didático Público como
paralelo à implementação pelo MEC do PNLEM. Segun-
do a autora, em 2003, a SEED recebeu informações que
muitas escolas da rede estadual solicitavam ou mesmo
exigiam que os/as alunos/as de Ensino Médio compras-
sem livros didáticos ou apostilas. Além da preocupação
com a qualidade dos livros e em especial de apostilas, a
medida adotada pelas escolas contrariava a legislação
sobre gratuidade do ensino público.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
135
O Departamento de Ensino Médio (DEM) resolveu reali-
zar compra de livros para distribuição às escolas. Como
o processo de aquisição dos livros através do pregão
eletrônico foi dificultado pelas editoras, a iniciativa de
transformar os Folhas no Livro Didático Público, teve
como um dos objetivos sanar esta lacuna, no que tange
à falta de livros para o Ensino Médio com distribuição
gratuita.
O formato Folhas foi elaborado inicialmente como pro-
duções de professores/as sobre temas específicos que
pudessem circular entre outros/as professores/as e
posteriormente foram utilizados para estruturar os ca-
pítulos do Livro Didático Público. A SEED implementou
o programa do Livro Didático Público - Folhas como um
projeto relacionado com a formação continuada e bus-
cando a “produção colaborativa” entre os docentes da
rede.
Os livros foram produzidos pelo Governo do Estado do
Paraná através da Secretaria Estadual de Educação,
com recursos públicos. Foram editados para cada dis-
ciplina escolar que compõe a matriz curricular da Edu-
cação Básica da escola pública paranaense, conforme
citado na introdução: Arte, Biologia, Educação Física,
Física, Filosofia, História, Língua Portuguesa e Litera-
tura, Língua Estrangeira Moderna – Inglês e Espanhol,
Matemática, Química e Sociologia. Os livros foram pro-
duzidos com o intuito de serem utilizados, nas corres-
pondentes disciplinas, nas três séries do Ensino Médio.
Os/as autores/as do Livro Didático Público – Folhas,
que são os/as professores/as da rede pública estadual,
também sofrem influência do momento histórico, social
e político em que estão vivendo.

136 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Analisar criticamente uma política pública, na qual estão
desenvolvidos/as professores/as da rede pública esta-
dual, sendo uma pedagoga da rede pública estadual,
não é tarefa fácil. A inovação da iniciativa tendo como
uma das perspectivas formar professores/as pesquisa-
dores/as exige um olhar diferenciado para esta política.
Inovadora, termo proposto por Hutner (2008), levando
em consideração qual ponto de vista? O do Governo
do Estado? O dos professores/as/autores/as? O dos/as
professores/as que “deveriam” utilizar desta produção
para “enriquecer” suas aulas? O/a dos/as alunos/as?
O projeto tem aspectos que consideramos inovadores,
mas uma análise criteriosa aponta contradições e limi-
tações, muitos pontos que merecem críticas e, confor-
me o foco dessa pesquisa, uma ausência de preocupa-
ção, quando da produção, sobre atender a critérios de
Educação das Relações Étnico-Raciais. Não observa-
mos, na análise documental sobre o processo de pro-
dução, qualquer preocupação sobre integrar as políti-
cas de promoção de igualdade racial que repercutiam
na própria Secretaria, o mesmo ocorrendo às diversas
temáticas relativas à diversidade.
A existência de uma política pública, tais como o artigo
26-A da LDB e a Resolução 01/04 do CNE, ou a política
de formação continuada que resultou na publicação do
Livro Didático Público, por si só, não se efetiva na escola.
Demanda um esforço dos/as envolvidos/as, nestes ca-
sos, acompanhamento por parte da SEED e investimento
para acompanhamento da implantação destas políticas.
Segundo Hutner (2008, p. 83), no processo de elabora-
ção do Livro Didático Público foi consultada a socieda-
de civil, através do Conselho do Idoso.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
137
Quais os critérios para selecionar somente um movi-
mento social como interlocutor? Sendo que essa parte
importante da sociedade civil, que é o Conselho Esta-
dual do Idoso foi consultado, por que não foi consul-
tado o Movimento Negro? Acredito que a contribuição
poderia se constituir como contribuição tão importante
quanto a dada pelo CEDI/PR, com a possibilidade de
minimizar equívocos que porventura foram realizados
em relação à Educação das Relações Étnico-Raciais
(ERER).
Tal consulta provavelmente era relativamente fácil de
executar, pois a SEED propiciava, à época, alguns es-
paços de interlocução com movimento docente e movi-
mentos negros, em especial na elaboração de proposi-
ções de dar cumprimento ao artigo 26-A da LDB.
No que se refere à ERER, ainda em 2003, a SEED pro-
moveu o “Seminário de História e Cultura Afro-Brasilei-
ra e Africana”, em articulação com movimentos negros.
Nesse momento de adaptação à mudança do artigo
26-A da LDB e início de governo que se propunha a
retomar valores democráticos, foi definido pela SEED
que a gestão da educação das relações étnico-raciais
passava por um Grupo de Trabalho formado por equi-
pe da SEED e membros da APP-Sindicato (que tinha
acúmulo de discussão na temática e articulação com
movimentos negros).
Em 2004, os relatos são de organização de reunião
técnica com representantes dos 32 Núcleos Regionais
tendo como pauta as Diretrizes Curriculares para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensi-
no de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, vi-
sando à divulgação das diretrizes e sua implementa-

138 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
ção nas escolas de cada jurisdição. Em 2005, foram
editados e distribuídos pela rede 6 mil exemplares do
“Caderno Temático de História e Cultura Afro-Brasilei-
ra e Africana”, que trazia impressos a Lei 10.639/03, a
Resolução 01/04 e o Parecer 03/04 do CNE. Em 2006,
foi impresso o II Caderno Temático sobre o assunto,
trazendo novamente o texto da Lei 10.639/03; a Delibe-
ração 04/06 do Conselho Estadual de Educação (CEE);
seleção de trabalhos de professores apresentados no
I Simpósio de História e Cultura Afro-Brasileira e Africa-
na; de artigos de colaboradores, a maioria profissionais
da educação das redes públicas; artigo do pesquisador
Henrique Cunha Junior e de indicação de filmes e sítios
de internet relacionados com Educação das Relações
Étnico-Raciais.
No mesmo ano, o Conselho Estadual de Educação era
presidido pelo Prof. Romeu Gomes de Miranda, repre-
sentante da APP-Sindicato e ativista do movimento do-
cente e Movimento Negro, que atuou como relator e
articulador da Deliberação 02/06 do CEE, que estabele-
ceu normas complementares às Diretrizes Curriculares
Nacionais para ERER, definindo a existência de equi-
pes multidisciplinares, nas redes de ensino e nas esco-
las, responsáveis pela implementação do artigo 26-A
da LDB.
Em 2007, algumas mudanças internas ocorreram na
SEED: a criação do Departamento de Educação Bá-
sica (DEB), congregando os departamentos de Ensi-
no Fundamental (DEF) e Médio (DEM), e a criação do
DEDI – Departamento da Diversidade. Englobou tam-
bém a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. No
âmbito de um setor específico da SEED, as movimen-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
139
tações foram bastante significativas e revelam que o
tema da Educação das Relações Étnico-Raciais esteve
presente. A hipótese elaborada para esta pesquisa, é
que essa movimentação repercutiu pouco nesse pro-
grama em específico. Mais ainda, os anos de gesta-
ção do Livro Didático Público – Folhas eram os anos
em que a educação das relações étnico-raciais estava
sendo gerida por uma comissão que tinha participação
dos movimentos negros e, embora situada no Depar-
tamento de Ensino Fundamental, tinha representação
do próprio Departamento de Ensino Médio. Notória a
falta de diálogo e execução de uma política educacio-
nal de forma não integrada. Levando em consideração
a referida consulta ao Conselho Estadual do Idoso, a
ausência de consulta a outros segmentos da socie-
dade civil e em particular aos movimentos negros que
atuavam internamente na SEED pode ser interpretada
como manifestação do silêncio em torno da promoção
de igualdade racial na educação, que pode ter se refle-
tido nos silêncios em torno da educação das relações
étnico-raciais e do ensino de História e Cultura Africana
e Afro-Brasileira nos conteúdos abordados pelos livros.

2. Análise formal

Foram analisados qualitativamente, ancorada em estu-


dos críticos sobre desigualdades raciais no Brasil, os
livros de duas disciplinas escolares: Português e Lite-
ratura, Educação Física. A partir da análise formal dos

140 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
livros, buscamos a reinterpretação da ideologia, por
meio da análise de modos de operação e estratégias
ideológicas observadas nos discursos dos referidos li-
vros. Optou-se pelo Livro de Português e Literatura por
apresentar alguns equívocos teóricos que mereciam
ser pontuados e pelo de Educação Física, por apresen-
tar conteúdos indicados pela Lei 10.639/03 e Parecer
Nacional 01/04 abordados de forma adequada. A su-
gestão teve como critério fazer um contraponto entre
um livro que mais se aproximasse da resposta positiva
às normativas de Educação das Relações Étnico-Ra-
ciais e outro que não atendia às demandas da educa-
ção promotora de igualdade racial.
O livro didático público é organizado com algumas espe-
cificidades, seguindo a estrutura contida nas Diretrizes
Curriculares do Estado do Paraná, elaborada através
de encontros coletivos com os/as professores/as das
respectivas áreas. A teoria norteadora que serviu como
base para essa discussão e elaboração que se propôs
a ser coletiva, foi o Materialismo Histórico Dialético. Os
livros foram organizados partindo de conteúdos estru-
turantes. O processo de seleção da produção científica,
denominado “Folhas”, apresentou-se de forma a exigir
um rigor metodológico dos/as professores/as autores/
as, que seria elaborado de forma dialógica com duas
áreas do conhecimento que tivessem convergência,
para posterior validação pelo Departamento de Educa-
ção Básica em parceria com docentes de instituições
de Ensino Superior.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
141
3. Análise do Livro Didático Público de
Português e Literatura

O livro de Língua Portuguesa e Literatura tem início


com o Rap da Língua Portuguesa, escrito pelos/as
autores/as do livro, que está organizado seguindo um
único conteúdo estruturante – “O discurso como práti-
ca social: oralidade, leitura, escrita, literatura”. Contém
dezesseis capítulos, totalizando 208 páginas, tamanho
A4. Teve como consultores dois professores da Univer-
sidade Federal do Paraná (UFPR) e como leitora crítica
uma professora da Universidade Estadual de Londrina
(UEL). As ilustrações são coloridas e trazem desenhos
e imagens retirados da internet. É um livro não consu-
mível e foi publicado pela Editora do Estado do Paraná.
O Livro Didático Público de Língua Portuguesa e Lite-
ratura, encontra-se em formato eletrônico no site Dia a
dia Educação (www.diaadiaeducacao.pr.gov.br) e pode
ser acessado e impresso.
Neste artigo estão destacados os capítulos que se re-
ferem a temática étnico-racial. O capítulo três intitula-
-se Discursos da Negritude. O termo negritude remete
a um movimento político e literário desenvolvido por
pesquisadores/as e políticos com objetivo de valorizar
o continente africano e mostrar para o mundo a con-
tribuição desse continente em vários aspectos. Bernd
(1984) descreve que o termo surgiu pela primeira vez
num poema de Aimé Césaire (poeta da Martinica), que
convidava o povo negro a se conscientizar da existên-
cia de diferentes mundos – um branco e um negro –
afirmando os valores negros, na tentativa de recuperar
o orgulho negro. Destaca também que as revoltas no

142 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Haiti, vividas pelos/as escravizados/as, e os quilombos
brasileiros, podem ser consideradas as primeiras ma-
nifestações da negritude. Munanga (2009) destaca os
principais nomes da negritude que, segundo ele, po-
dem ser considerados os fundadores do movimento:
Aimé Cesairé, Leon Damas, Léopold Sedar Senghor,
Leonard Sainville, Aristide Maugée, Birago Diop, Ous-
mane Soce e irmãos Achile. Esses autores escreveram
obras da literatura negra de expressão francesa.
No capítulo em análise, no entanto, observa-se o silên-
cio sobre esse movimento literário, como no restante
do livro de Português e Literatura. Um argumento que
por vezes aparece como justificativa para a não temati-
zação da “literatura negra” seria o não reconhecimento
como movimento literário e a ausência em manuais ge-
rais. Nesse caso, a ausência não se justifica, visto que
a qualidade literária da obra do criador do movimento
é inegável e reconhecida internacionalmente. As pro-
posições da modificação do artigo 26-A da LDB são na
direção de que esse conhecimento de matriz africana
seja parte do currículo escolar. No entanto, o capítulo
em questão tem no título o nome do movimento literário
mais significativo, tanto para a literatura africana quan-
to para a africana da diáspora, e nem o conceito do
referido movimento é apresentado. Observamos que
no Brasil (e na América Latina, conforme SILVA, 2008c)
ocorre uma tendência de silenciar sobre a negritude
em específico e sobre o legado de conhecimento de
matriz africana em geral. Interpretamos esse silêncio
como estratégia ideológica que opera socialmente para
manter no plano simbólico uma hegemonia dos que se
autorrepresentam como de origem europeia em relação

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
143
aos de origem africana (e indígena). Caracterizando o
racismo acadêmico e institucional, decorrente da rela-
ção com o movimento do poder pelas elites da América
Latina.
Na parte inicial do capítulo, abaixo do título Discurso
da Negritude, apresenta quatro textos, três deles rela-
cionados à escravidão (termo adotado pela autora, ao
longo de todo o capítulo), e lança a pergunta: A que
tipo de escravidão referem-se esses textos? O primeiro
texto anuncia a pretensão de alugar um preto ou uma
preta para cozinhar e arrumar casa de família. O se-
gundo anuncia a venda de uma preta. No terceiro, um
morador de Paranaguá (cidade portuária do Estado do
Paraná) anuncia a fuga de um escravo e o quarto solici-
ta um motorista particular com 2º grau, inglês, espanhol
e domínio de internet e boa aparência.
Por essa abertura, é possível fazer uma ideia nada oti-
mista do desenvolvimento do capítulo, pois ao retrata
diversos tipos de escravização, reforçando uma das
formas de hierarquia que é comum na sociedade bra-
sileira, a desvalorização do negro em função de seu
passado como escravizado. Mesmo assim, se seu uso
fosse contextualizado e os/as alunos/as convidados/as
a refletir sobre esse período histórico, o uso poderia ser
adequado. Entretanto, essa reflexão não é proposta.
Os textos selecionados para composição do capítulo
três utilizam-se da relação negro-escravo e também
apresentam características de estereotipia e estigma-
tização que reforçam as ideias de hipersexualidade da
mulher negra brasileira – no sentido negativo – além de
utilizar o termo negritude de forma equivocada. Foram
usados fragmentos da obra de Gilberto Freyre, o poe-

144 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
ma Essa Negra Fulô, de Jorge de Lima, o poema Ne-
gra, de Lêdo Ivo e o texto A última crônica, de Fernan-
do Sabino. Através do poema Essa Negra Fulô, o texto
propõe como proposta pedagógica explicitar como se
constrói um poema e um texto poético. Ao analisar a
obra de Jorge de Lima Raça e Cor na Literatura Brasi-
leira, Brookshaw (1983, p. 92) afirma que:

[...] tudo ilustra a inabilidade fundamental de


parte do autor em ver no negro algo mais do
que um animal exótico, erótico, imoral, um
preconceito demonstrado em um dos seus
poemas mais conhecidos e mais citados
Essa negra Fulô, que comenta humoristica-
mente a influência sexual da escrava sobre
o senhor a quem ‘rouba’ da esposa.

O poema Essa Negra Fulô de Jorge de Lima foi ampla-


mente estudado por pesquisadores/as da temática étni-
co-racial. Uma das estratégias ideológicas possíveis de
se detectar no poema é o silêncio, pois Fulô é retratada
como um objeto, sem voz, que não oferece resistência,
que aceita os insultos da senhora e os abusos do se-
nhor. Fonseca (2002) afirma que:

No silenciamento da voz negra que transita


nos versos do poema apenas como objeto
sensual Fulô é citada num discurso que inibe
o seu dizer, ou melhor, que só permite que
ele se mostre em um mesmo horizonte em
que as coisas estão sempre num mesmo
lugar. Não é de se admirar, portanto, que o
poema de Jorge de Lima, querendo tirar o ne-
gro de um espaço cultural que o vê enquanto

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
145
“excrescência” ou deformação, ainda fortale-
ça estereótipos que paralisam na cor de sua
pele, em traços que fazem dele objeto, sem-
pre objeto exótico e erótico para deleite do
senhor branco (FONSECA, 2002, p. 196).

Na busca pela mudança da imagem da mulher negra e


para mostrar sua resistência e luta pela sobrevivência,
digna e com direito a escolhas, o poeta Oliveira Silveira,
escreveu o poema Outra Nega Fulô, se contrapondo ao
poema de Jorge de Lima. Seguindo essa tendência, o
mais adequado seria incluí-lo no Livro Didático de Por-
tuguês, já que os outros textos reforçam a visão negati-
va sobre a mulher negra.
Após a explicação de conteúdo relacionada ao poema
citado, o texto argumenta que faz uso do termo “es-
cravidão” e não “escravização” como recomendado por
pesquisadores/as de relações étnico-raciais, para dar
ideia de um período e não de um estado do povo ne-
gro; que não é tema exclusivamente do discurso poéti-
co (Bueno, 2006) e faz uma discussão simplista sobre
mestiçagem utilizando-se do autor Lezama Lima, escri-
tor cubano. Relata também a contribuição dos diversos
povos, para a formação da identidade cultural brasileira,
ressaltando a importância da mestiçagem, destaca que
“na religião: santos do devocionário católico que são a
máscara de deuses surgidos na África” (Bueno, 2006,
p. 47). A preocupação e questionamento que surge ao
ler essa informação é muito significante, pois a autora
não cita a fonte dessa afirmação e adentra numa temá-
tica polêmica que é o sincretismo religioso, envolvendo
a Igreja Católica e as religiões de matriz africana, sem
propriedade e aprofundamento teórico. Portanto:

146 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
O sincretismo, pois, elemento característico
e de fundação das religiões afro-brasileiras,
não é uma simples “colcha de retalhos”, as-
sociação superficial de símbolos ou imagens
ou sobreposição mecânica de elementos
culturais oriundos de tempos e lugares dife-
rentes. O sincretismo não é algo tão simples
e pueril que se possa compreender com uma
olhadela de superfície: é um processo com-
plexo que resulta na construção de culturas
singulares e não parece correto considerá-lo
como expressão de submissão (mesmo que
essa ideia de submissão receba o adjetivo
‘parcial’) (CARVALHO, 2006, p. 188).

Para falar sobre o índio e o negro, utiliza-se da expres-


são “antropofagia“ e “canibalismo”, enfatizando que o
índio ingeria carne humana de guerreiros em rituais,
mexendo em outra temática sem aprofundamento e
que pode causar constrangimentos a adolescentes do
Ensino Médio, com descendência indígena ou mesmos
aos demais alunos/as com discernimento para respei-
tar as variadas formações da população brasileira. Ou
seja, ao contrário de valorização da população negra e
indígena como definido pelo artigo 26-A da LDB, o texto
oferece exemplos múltiplos de desvalorização.
Posteriormente, para ilustrar a “contribuição da mulher
negra” na educação do menino branco, filho do senhor
do engenho, utiliza-se de um fragmento do sociólogo
brasileiro Gilberto Freyre, do livro Casa Grande e Sen-
zala, também é reproduzido:

Na ternura, na mímica excessiva, no catoli-


cismo em que se deliciam nossos sentidos,

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
147
na música, no andar, na fala, no canto de ni-
nar menino pequeno, em tudo que é expres-
são sincera de vida, trazemos quase todos
a marca da influência negra. Da escrava ou
sinhama que nos embalou. Que nos deu de
mamar. Que nos deu de comer, ela própria
amolengando na mão o bolão de comida.
Da negra velha que nos contou as primei-
ras histórias de bicho e mal-assombrado.
Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-
-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos
iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao
ranger da cama de vento, a primeira sensa-
ção completa de homem. Do moleque que
foi nosso primeiro companheiro de brinque-
do. Já houve quem insinuasse a possibilida-
de de se desenvolver das relações íntimas
da criança branca com ama-de-leite negra
muito do pendor sexual que se nota pelas
mulheres de cor no filho-família dos países
escravocratas (FREYRE, 1978).

Ao fazer uso desse fragmento a autora (2006, p. 48)


destaca os atributos sexuais da mulher negra e do seu
papel na iniciação sexual do menino branco, filho de
proprietário de escravizados. Reduz a mulher negra à
ama de leite – de sexualidade exacerbada – com fun-
ção de satisfazer sexualmente o desejo de seu proprie-
tário e de seus descendentes. Nenhuma consideração
foi feita a respeito do abuso sexual cometido pelo seu
dono e dos traumas que a mulher negra sofre nesse
período de escravização, naturalizando essa situação
sem uma contextualização histórica. Utilizou-se tam-
bém de uma ilustração, que traz um texto explicativo,

148 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
retirada do site: http://www.cliohistoria.hpg.ig.com.br/
bco_imagens/escravos/escravos.htm. Os escritos não
fazem menção ao texto explicativo, que contextualiza a
foto, o que compromete a função ilustrativa da mesma.
Chega a chocar, pois ao levantar a hipótese daquela
criança ter sido iniciada sexualmente pela ama de leite,
pode causar constrangimentos em quem vê e associa o
fragmento de Freyre (1978) à ilustração. A gravidade do
conjunto torna-se maior para leitoras adolescentes ne-
gras que estão formando sua identidade e, por vezes,
iniciando sua vida sexual.
Na atividade apresentada após o texto, aborda a “negri-
tude”, usando o termo de forma equivocada, e solicita
aos alunos uma comparação, destacando semelhanças
e diferenças entre o posicionamento de Jorge de Lima
e o fragmento de Gilberto Freyre. No texto seguinte, faz
a seguinte afirmação:

O pendor sexual a que se refere Gilberto


Freyre, e que, no poema Negra Fulô, apa-
rece na opção feita pelo Sinhô ao trocar a
Sinhá pela Fulô, também se faz presente no
poema Negra, do poeta brasileiro Lêdo Ivo.
A leitura desse poema ajuda a ampliar nos-
so tecido sobre a negritude (BUENO, 2006,
p. 49).

Durante o decorrer do capítulo, ressalta de uma forma


que parece compulsiva a sexualidade da mulher negra.
Autoras como Evaristo (2006) e Nascimento (2009), en-
tre outras, escreveram sobre essa tendência ao retratar
a mulher negra como símbolo de sexualidade exacer-
bada. Com o intuito de desconstruir essa estereotipia,

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
149
produzem poemas, literatura, contos e desenvolvem
pesquisas. O texto em análise atua no sentido contrá-
rio, pois não produz reflexões a respeito da erotização
da mulher negra. Contudo, em nada contribui para a
reversão dessa visão difundida por uma parcela da po-
pulação e reforçada por diversos discursos midiáticos,
entre eles revistas e emissoras de televisão. Alguns íco-
nes representando a sexualidade escancarada da mu-
lher negra foram criados, entre eles, a “Globeleza” (per-
sonagem criada para a vinheta do Carnaval da Rede
Globo) e as “mulatas” do Sargenteli (denominação que
serve para se referir a dançarinas negras). Essa cons-
trução social identitária que é imputada à mulher negra
desencadeia graves consequências para o posiciona-
mento de algumas delas na sociedade e principalmen-
te nos relacionamentos amorosos. Desde a infância, a
maioria das mulheres negras tem que lidar com suas
características corporais, pois o corpo da mulher e do
homem negro, apresenta algumas especificidades.
Em certas famílias a proteção, geralmente partindo da
mãe, regula cores e modelos de roupas que disfarcem
ou mascarem essas características. A extensão dessa
visão para a literatura acaba reforçando a ideia.
O parâmetro que utilizamos para a análise das obras,
o artigo 26-A da LDB, a Resolução 01/04 e o Parecer
02/04 do CNE, corroboram a afirmação e propõe que o
ambiente escolar seja um dos responsáveis pela des-
construção dessa imagem negativa da mulher negra,
ao se posicionar a favor de uma educação antirracista.
No caso do capítulo analisado, ocorre o inverso, cau-
sando na pesquisadora (que é negra) sentimentos de
desconforto e incredulidade. Afinal esse livro foi finan-

150 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
ciado por uma política pública paranaense e subsidia-
do teoricamente, no caso específico, por um doutor da
UFPR. Nessa produção, se o objetivo fosse ressaltar
a beleza negra e destacar a mulher negra, a sugestão
seria utilizar contos, poesias e outras produções literá-
rias realizadas também por mulheres negras e autores/
as de outros pertencimentos étnicos-raciais que a apre-
sentasse de maneira digna e respeitosa.
Evaristo (2006) discute que a mulher negra na litera-
tura, por vezes tem suas características associadas à
sexualidade, permissividade e vulgaridade e na maioria
das vezes negam a ela sua função de mãe e provedo-
ra do lar, função que muitas vezes ela exerce sozinha,
que exige cuidar dos filhos, da limpeza da casa e prover
alimentação e todo o tipo de sustento. A luta travada
para sobrevivência, por uma grande parte das mulhe-
res negras, desde a abolição da escravatura, através
do trabalho doméstico e produção de alimentos, pouco
é mencionada na literatura, retirando dessas mulheres
o direito à fala. Nascimento (2008) comenta como as
vozes das mulheres negras são silenciadas:

A prática camuflada da discriminação, ao


lado de um discurso democrático racial, in-
sere a mulher negra num contexto que de-
nominaríamos aqui como espaço de falta.
Sofrendo uma tripla discriminação – racial,
social e sexual – a mulher negra, numa so-
ciedade racista e discriminadora, nada mais
faz que acumular perdas no que se refere
à dificuldade de sua inserção nos quadros
sociais representados no país. O silêncio
em que vem envolvida sua figura e a ausên-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
151
cia quase total de sua representação social
evidenciam a perversão e/ou hipocrisia em
que está assentada nossa sociedade (NAS-
CIMENTO, 2008, p. 50).

Dando continuidade ao capítulo, observa-se uma nova


atividade, com as seguintes questões:

O poema de Lêdo Ivo toca as margens do


erotismo em relação à mulher negra. Identi-
fique, no poema de Jorge de Lima, trechos
que erotizam a mulher negra.
É possível identificar a mesma erotização
em Gilberto Freyre? Identifique os trechos
e analise quais recursos discursivos ele uti-
liza. Por que ele não é tão explicito quanto
Lêdo Ivo? (BUENO, 2006, p.50).

Nas atividades propostas, as reflexões não avançam e


só reforçam e afirmam a sexualidade da mulher negra
de forma pejorativa e contrária ao artigo 26-A da LDB,
Resolução 01/04 e Parecer 03/04 do CNE.
No texto seguinte, usa como fundamentação teórica a
historiadora Hebe M. Mattos de Castro. Porém, ao fazer
os comentários a respeito do texto, usa diversos termos
para se referir ao negro, tais como escravo, crioulo, pre-
to, sem justificar por que usa tantos termos num único
texto.
Posteriormente adota o texto A última crônica, de Fer-
nando Sabino, que discorre sobre uma comemoração
realizada por uma família negra, num botequim do Rio
de Janeiro. Trata-se do aniversário de uma criança, que
está acompanhada pelo pai e pela mãe. O pai compra

152 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
um pedaço de bolo só para a menina e a mãe retira de
uma bolsa de plástico três velinhas brancas e juntos
cantam parabéns. Como leitora adulta e negra, consigo
ver uma beleza poética no texto, mas ao me colocar
no lugar de alunas e alunos do Ensino Médio, princi-
palmente dos alunos negros e alunas negras, consigo
ver a miséria, a pobreza e a falta de recursos atribuídos
às famílias negras. Segundo Chinellato (1996), em tese
sobre crônicas em livros de Língua Portuguesa, essa
crônica foi a mais frequente nos livros. Silva (2008a)
analisa como as personagens negras das crônicas
transcritas para livros didáticos trazem personagens es-
tereotipados/as, em especial na condição não somente
de pobreza, mas tendencialmente de miserabilidade.
Nas descrições dos personagens da crônica em pauta,
os termos utilizados são: “casal de pretos”, “compostura
da humildade”, “uma negrinha de seus três anos, toda
arrumadinha no vestido pobre”, “três seres esquivos”,
“a negrinha finalmente agarra o bolo com as duas mãos
sôfregas e põe-se a comê-lo”. Ou seja, o discurso atua
para definir o “lugar” do negro na sociedade, o lugar
da subalternidade, naturalizando a miséria como lugar
do/a negro/a na sociedade brasileira.
Para finalizar, o capítulo discorre sobre a importância
do Movimento Negro, fala sobre políticas afirmativas,
usando o conceito sem lançar mão de nenhum teóri-
co para subsidiá-la e faz uso de um fragmento de fala
de um membro de um Conselho Estadual do Rio de
Janeiro, com discurso contrário às cotas raciais para
acesso ao ensino superior, se utilizando de argumento
simplista de melhoria do ensino para todos. Não recor-
re a nenhum pesquisador(a) ou político do Paraná, na

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
153
intenção de promover um debate entre os/as alunos/
as, para que eles/as possam formar consciência crítica.
Porém, utiliza um gráfico do Censo de 2000 do IBGE e
acrescenta um box intitulado A cara da discriminação,
mostrando que o acesso dos/as alunos/as negros/as à
universidade, se configura de forma mais difícil do que
para alunos/as brancos/as. Na atividade, propõe que
os/as alunos/as pesquisem as contribuições dos afro-
descendentes para a língua brasileira, sem antes ter
feito qualquer menção a essa contribuição. Após a ati-
vidade, indica leituras sobre o assunto:
Se você quiser saber mais sobre o assunto, leia, por
exemplo, os seguintes textos da literatura brasileira e
ocidental:

• “A escrava Isaura” – Bernardo Guimarães.


• “A Cabana do pai Tomaz” – Harriet Eliza-
beth Stowe.
• “Coração das Trevas” – Joseph Conrad.
• “A canção de Salomão” e “O olho mais
azul” – Toni Morrison.
• “As vinhas da Ira” – John Steinbeck.
Essas são apenas algumas indicações de
leitura. Há muito mais obras interessantes
para ler sobre nosso tema. (BUENO, 2006,
p. 53).

Ao indicar a leitura de A escrava Isaura, de Bernardo


Guimarães, propõe a leitura de um livro que fala sobre a
escravização e destaca o embranquecimento como po-
sitivo e a subserviência da escravizada de tez clara, que
deve agradecer aos seus donos pela educação refinada
que recebeu. Na obra, além da valorização do branquea-

154 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
mento, o/a negro/a é induzido/a a saber qual é o seu lu-
gar social, ou seja, mesmo recebendo uma educação re-
finada, deve agradecer e se comportar sabendo da sua
condição de escravizado ou ex-escravizado. Brookshaw
(1983), ao analisar o referido romance, afirma que:

Está evidenciado que Isaura, a heroína, é


uma escrava branca (...). Evidentemente,
a equivalência de negritude com beleza,
inocência ou pureza moral era inimaginá-
vel pela sociedade branca do século XIX,
a qual estava completamente condicionada
ao simbolismo tradicional de branco e preto.
Além disso, Isaura vence seu amo cruel. A
combinação de beleza negra e vitória negra
teria sido, portanto, subversiva moral e so-
cialmente. Em qualquer situação literária na
qual o escravo estava em posição de supe-
rar o branco ou de mostrar um grau de inte-
gridade moral ou educação, então sua cor
não era mencionada, ou se salientava que
era branca (BROOKSHAW, 1983, p. 29).

Sem debate e discussão sobre os assuntos abordados,


o livro, apesar de ser uma obra literária reconhecida,
que foi transformada em novela, enfatiza e torna natural
características que não favorecem a população negra.
Sobre a mesma ótica está A cabana do pai Tomaz, de
Harriet Elizabeth Stowe, obra da literatura afro-ameri-
cana, que destaca o negro bom e submisso. Essa obra
também foi transformada em novela no Brasil, tendo
como ator um branco pintado de negro.
Ao indicar como leitura a autora afro-americana Toni
Morrison, o texto em análise poderia alcançar o objeti-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
155
vo de destacar uma autora norte-americana de literatu-
ra afro-americana, que escreve romances de altíssima
qualidade, tendo inclusive recebido o Prêmio Nobel de
Literatura no ano de 1993. O livro mais conhecido no
Brasil, O olho mais azul, trata de uma menina que que-
ria ter olhos azuis. Para tanto, usa de vários artifícios
e mostra os maus tratos vividos por Pecola Breedlo-
ve ao longo de sua vida, que sempre almejou ter os
olhos azuis de Shirley Temple, ícone infantil do cinema
norte-americano. Permeando esse romance, algumas
situações mostram a beleza e a proteção que uma co-
munidade negra oferece quando uma pessoa da comu-
nidade é abandonada pela família, entre outras formas
de resistência. Segue uma passagem inspirada em di-
versas comunidades afro-americanas, contida no livro
O olho mais azul, Morrison (2003, p. 21):

Há uma diferença entre ser posto pra fora e


ser posto na rua. Se a pessoa é posta pra
fora, vai para outro lugar; se fica na rua, não
tem para onde ir. A distinção é sutil, mas
definitiva. Estar na rua era o fim de alguma
coisa, um fato físico, irrevogável, definindo
e complementando nossa condição meta-
física. Sendo uma minoria, tanto em casta
quanto em classe, nos movíamos nas bai-
nhas da vida, lutando para consolidar nossa
fraqueza e nos aguentar, ou para rastejar,
cada um por si, até as dobras maiores do
vestuário. Nossa existência periférica, po-
rém, era coisa com que tínhamos aprendido
a lidar – provavelmente porque era abstrata.
Mas estar na rua era outra história, era fato
concreto, como a diferença entre o concei-

156 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
to de morte e estar morto. Um morto não
muda, e estar na rua é estar para ficar.

Através do fragmento de Morrison (2003), percebe-se


a qualidade linguística e literária dessa autora negra
americana, que escreve com densidade e sensibilida-
de sobre a temática étnico-racial nos Estados Unidos,
e que por vezes acontece com maior ou menor inten-
sidade com comunidades negras ao redor do mundo.
A autora do Livro Didático Público, poderia ter lançado
mão dessa e de outras passagens, não menos belas,
contidas no livro O olho mais azul, para incentivar alu-
nos/as negros/as e não negros/as a lerem essa obra.
Morrison (2002, p. 02) declara em artigo intitulado So-
bre o Negro:

Meu trabalho requer que eu pense sobre


quão livre eu posso ser como escritora Afro-
-Americana em meu gênero e sexualidade,
neste mundo racista. Pensar sobre (e com
luta) como é cheia de implicações esta mi-
nha pesada situação. Por isso peço que se
considere o que acontece quando outros
escritores também trabalham numa socie-
dade altamente e historicamente racista.
Para eles, tanto quanto para mim, imaginá-
vel não é apenas olhar ou olhar para; nem
estar a si mesmo intacto no outro. É, para
efeitos de trabalho, tornar-se.

Ao fazer essa declaração, deixa evidente como é difícil


tornar-se humano, homem e mulher, negro/a ou não ne-
gro/a, em uma sociedade racista, sexista e capitalista,

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
157
para pessoas dos mais variados pertencimentos étnico-
-raciais. Especialmente para negros e negras de qualquer
lugar do mundo, o esforço exige colaboração conjunta,
inclusive de escritores/as, professores/as e da sociedade
como um todo. Nenhuma menção foi feita para apresen-
tar essa respeitada e premiada autora afro-americana,
simplesmente foi indicada a leitura, sem que nada fosse
destacado que despertasse o interesse dos/as alunos/as.
A menção à literatura afro-americana colabora com a
discussão sobre a linguagem, que é bastante elabora-
da, pois através da produção literária e poética, os/as
negros/as afro-americanos/as se expressam linguisti-
camente e constroem sua identidade. No Brasil, esse
processo também é expressado na literatura afro-brasi-
leira, tendo os/as escritores/as se destacado ano após
ano, entre eles/as Conceição Evaristo, Cuti, Lino Gue-
des, Solano Trindade, Geni Guimarães entre outros/
as. Hooks (2008, p. 863) discorre sobre a importância
da linguagem para os afro-americanos, que constroem
sua identidade americana, sem perder a raiz africana,
pois características físicas, emocionais e culturais pre-
servam a ancestralidade africana:

Reconhecer que nós nos tocamos uns aos


outros na linguagem parece particularmen-
te difícil numa sociedade que quer acredite-
mos que não há dignidade na experiência
da paixão, que sentir profundamente é ser
inferior; pois dentro do dualismo do pensa-
mento metafísico ocidental, ideias são sem-
pre mais importantes que a linguagem. Para
cicatrizar a fissura da mente e do corpo, nós
povo marginalizado e oprimido, tentamos

158 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
retomar nós mesmos e nossas experiências
na linguagem (HOOKS, 2008, p. 863).

Diante dessas considerações sobre o termo negritude


e após análise criteriosa da organização do capítulo,
conclui-se que a autora usou o termo de forma incoe-
rente e até prejudicial à formação intelectual, emocional
e social dos/as alunos/as negros/as e não negros/as.
O texto realiza exatamente o contrário de levar a ter-
mo as normativas do artigo 26-A da LDB, Resolução
01/04 e Parecer 03/04 do CNE, como poderia se supor
pelo título atribuído. A ótica centrada numa “branquida-
de normativa e ancorada num racismo à brasileira” é
expressa de forma explícita, pela escolha dos temas e
autores, das imagens e do tratamento discursivo, das
propostas pedagógicas.
O capítulo quatro, denominado Pescando Significados,
escrito por uma professora, que aborda à temática ét-
nico-racial. A autora destaca e valoriza o cantor negro
Milton Nascimento, traz um texto com uma breve bio-
grafia dele e uma entrevista dada por ele para a Revista
Raça, que é uma revista com tiragem mensal, especia-
lizada na temática étnico-racial.
No capítulo nove, intitulado Estratégias de manifestar
opinião, a autora apresenta formas textuais para produ-
zir uma opinião através da fala e da escrita. Para tanto
utiliza os textos: Da arte brasileira de ler o que não está
escrito, de Cláudio Moura e Castro; Receita de gover-
no, de Sérgio Andreoli e o texto Filme da campanha do
agasalho, acentua o apartheid de Mário Sabino.
Ao manifestar sua opinião sobre a campanha do agasa-
lho, Mário Sabino faz uma reflexão pertinente, falando

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
159
da forma com que os recursos utilizados para sensi-
bilizar a população acabam acentuando as diferenças
sociais. A autora do capítulo, ao utilizar a gravura de um
adolescente negro tremendo de frio, recebendo uma
doação de agasalho, que foi jogado pela janela, repro-
duz a forma com a população negra é representada no
discurso midiático – através de fotografias, gravuras,
pinturas. Na imagem, ao analisar o semblante sarcásti-
co do adolescente que está jogando o agasalho e o de
sofrimento e dor do adolescente que recebe, é possível
perceber a estratégia ideológica de dominação descrita
por Thompson (1995) que é a do expurgo do outro. Po-
demos relacionar a imagem do menino branco jogando
o agasalho para o menino negro como uma forma es-
pecial de expurgo do outro que, segundo Silva (2008a,
p. 34) é a estigmatização.
A ilustração resgata ou reforça o estigma de que o ne-
gro tem como situação peculiar a miséria social, em si-
tuação que necessita de auxílio do outro para as situa-
ções mais básicas, como a de se agasalhar. Estudos
sobre representação midiática do negro observam que
a situação de “negro assistido” é uma retórica constan-
te, que estabelece o espaço da carência e necessida-
de social como peculiar a personagens negras (BELE-
LI 2005; CORRÊA, 2006; SILVA, ROCHA e SANTOS,
2011). O menino em destaque se encontra em condi-
ções vulneráveis – na rua, passando frio e fome – re-
força a ideia que esse espaço é o espaço social a ele
destinado, e não outros espaços como o da escola. Por
outro lado, a imagem estabelece de forma indiscutível
uma hierarquia, colocando o personagem branco numa
posição superior na imagem e numa situação de van-

160 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
tagem social, que pode desfazer-se de um agasalho
sem maiores dificuldades. O olhar do menino branco
talvez mostre a indiferença, podendo ser interpretado
que acredita que as condições que o outro se encontra
é consequência de escolhas próprias (tendo em vista
a crença de uma parte da população brasileira, na de-
mocracia racial), demonstrando não ter capacidade de
análise das condições sócio-históricas que marginali-
zaram e continuam marginalizando parte da população
negra deste país. Como comenta Hasenbalg (2005, p.
251):

Do ponto de vista dos não-brancos, os efei-


tos dos membros da ideologia da democra-
cia racial são semelhantes àqueles do cre-
do liberal da igualdade de oportunidades.
Isto é, a responsabilidade pela sua baixa
posição social é transferida ao próprio gru-
po subordinado. A consequência lógica da
negação do preconceito e discriminação é a
de trazer para o primeiro plano a capacida-
de individual dos membros do grupo subor-
dinado como causa de sua posição social,
em detrimento da estrutura de relações in-
tergrupais.

Naturalização do branco como superior e do negro


como subalterno. A imagem de crianças e adolescen-
tes negros/as em condição de vulnerabilidade é recor-
rente na mídia, por vezes é o retrato da realidade, mas
o cuidado com a representação da população negra
nos livros e materiais didáticos é imprescindível para
alertar para as possibilidades que todos deveriam ter

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
161
na sociedade e não limitar e condicionar uma parte da
população, que no caso é a negra, a pobreza e impos-
sibilidade de viver em condições adequadas.
No capítulo quinze, denominado Mercado de trabalho:
que bicho é esse?, a autora faz uma abertura utilizando
uma foto de Gonçalo Alonso Dias, com uma criança ne-
gra angolana, intitulada O Pensador. O discurso midiático
brasileiro faz uso recorrente da imagem de crianças, ado-
lescentes e adultos negros/as relacionando-os à feiura,
demônio, maldade, a animais e bichos. Fanon afirma que:

Na Europa o Mal é representado pelo ne-


gro. (...) O carrasco é o homem negro, Satã
é negro, fala-se de trevas, quando é sujo,
se é negro – tanto faz que isso se refira à
sujeira física ou à sujeira moral. (...) Na Eu-
ropa, o preto, seja concreta, seja simbolica-
mente, representa o lado ruim da persona-
lidade. (...) O negro, o obscuro, a sombra,
as trevas, a noite, os labirintos da terra, as
profundezas abissais, enegrecer a reputa-
ção de alguém; (...) Na Europa, isto é, em
todos os países civilizados e civilizadores, o
negro simboliza o pecado. O arquétipo dos
valores inferiores é representado pelo negro
(FANON, 2008, p. 160).

Nesse caso, vários questionamentos surgem: Sendo o


assunto relacionado ao mercado de trabalho, por que
a ilustração traz uma criança negra? É possível inferir
que o uso tenha sido inadequado, pois criança em idade
escolar inicial tem como preocupação básica estudar e
não trabalhar. Infelizmente no Brasil e em outras partes
do mundo crianças negras e não negras, são submeti-

162 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
das de forma precoce ao mercado de trabalho; Por que
a indagação que bicho é esse? Outra associação pos-
sível é a de que para uma criança negra, caso ela tenha
baixa escolaridade, o mercado de trabalho torna-se um
bicho, pois sua condição de empregabilidade é menor.

4. Análise do Livro Didático Público de


Educação Física

O livro de Educação Física está organizado seguindo


cinco conteúdos estruturantes: 1) Esporte, 2) Jogos,
3) Ginástica, 4) Lutas, 5) Dança. Contém 14 capítulos,
totalizando 248 páginas, tamanho A4. Internamente as
ilustrações são coloridas com desenhos e imagens reti-
radas da internet. O Livro Didático Público de Educação
Física, encontra-se em formato eletrônico no site Dia a
dia Educação (www.diaadiaeducacao.pr.gov.br) e pode
ser acessado e impresso.
O primeiro capítulo intitulado Para além das quatro li-
nhas foi escrito por dois professores, um homem e
uma mulher. Os autores abordam o futebol e propõem
aos(às) alunos/as a apreciação do futebol “por trás
da cortina”. São enfatizadas as sensações positivas,
causadas pela alegria de uma boa partida de futebol e
os aspectos negativos, que são as brigas e confusões
que podem ser geradas após e durante a partida.
Ao destacar os jogadores que se tornaram grandes ído-
los do futebol brasileiro, os autores acentuam o lugar
social reservado, para o jovem negro e homem negro

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
163
no Brasil, com possibilidade de sucesso. No discurso
midiático, o jovem negro e homem negro, aparecem
com chances de alcançar uma boa condição financeira
e sair da miséria, através do futebol. Afirmam que:

Pelé, Garrincha, Ronaldo e Ronaldinho


Gaúcho, todos jogadores espetaculares,
que saíram da miséria, e talvez da crimina-
lidade, para ganharem o mundo, com um
futebol de encher os olhos e conquistarem
milhões de fãs pelos clubes que passaram
(SANTOS; CÁSSIA, 2006, p. 19).

Na afirmação de que os jogadores citados, todos ne-


gros (apesar de não terem explicitado seu pertencimen-
to étnico-racial no texto, por serem muito conhecidos na
mídia, são notadamente negros), de que se não fosse
o futebol, poderiam até se envolver com criminalidade,
reforça um determinismo social para população negra.
Como determinar que pessoas como Pelé, Garrincha,
Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho só poderiam alcançar
o sucesso financeiro e profissional através do futebol?
Eles não poderiam escolher outra profissão e serem
bem-sucedidos? Para alunos do Ensino Médio que não
são habilidosos como jogadores de futebol, uma das
perspectivas possíveis é o crime? Estando no Ensino
Médio, vislumbrar outras condições de vida e de traba-
lho numa sociedade que prime por uma educação an-
tirracista é possível para alunos negros e não negros.
Para Nascimento (2003, p. 147):

Os estereótipos da preguiça, indolência,


atraso intelectual e tendências criminais dos

164 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
afrodescendentes frequentam o imaginário
social por meio da noção de que tais carac-
terísticas se ocultam “no sangue” dessas
populações, assim como se considera que
um talento especial e uma vocação para o
ritmo, samba e futebol “correm nas veias”
dos descendentes de africanos. Trata-se
do racismo de critério biológico, inequívoco,
vivo e ativo, porém recalcado.

Adotando uma definição marxista de ideologia, os auto-


res discutem o futebol, como o ópio do povo e afirmam
que “Os defensores do futebol, como ópio do povo, en-
tendiam este esporte como uma das possibilidades de
veiculação ideológica do pensamento da classe domi-
nante (SANTOS; CÁSSIA, 2006, p. 20).
O capítulo quatro, chamado Competir ou cooperar: eis a
questão!, apresenta uma ilustração com dois persona-
gens. Um homem branco, representando um economis-
ta, vestindo terno e gravata e, logo abaixo, um jogador
de basquete, vestindo o uniforme de um time, batendo
um cartão de ponto. As ilustrações representam uma
forma de determinismo social, típico de uma socieda-
de em que as estruturas de desigualdade se articulam
com papéis sociais bem definidos. O papel de destaque
permitido ao negro, via de regra, está associado aos
esportes (que demandam habilidades físicas “naturais”
e pouco investimento intelectual) e a profissões ligadas
à arte. Essas atividades profissionais são importantes,
o que se questiona, no entanto, é o estabelecimento de
espaços sociais específicos para os grupos raciais, a
diferença de oportunidades de acesso para negros/as
e brancos/as em profissões de alta hierarquia e que de-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
165
mandam formação intelectual (por exemplo, medicina,
engenharia e odontologia):

No trabalho, a pessoa obtém não somente


um salário, mas também um sentimento de
utilidade (econômico, técnico e social), de
mérito, portanto de reconhecimento. Mas na
medida em que as oportunidades de aces-
so aos postos de prestígio não se apresen-
tam da mesma maneira quando se é branco
e negro, já que se observa a presença de
uma hierarquia racial implícita na socieda-
de brasileira, pode-se dizer que o reconhe-
cimento de conformidade predomina entre
os negros que são levados, de acordo com
os lugares que lhes são tacitamente atribu-
ídos, a aspirar posições intermediárias ou
subalternas. A trajetória para a conquista,
para o prestígio, não lhes é desconhecida,
mas as escolhas são reduzidas, excetuan-
do o esporte e a música. Para os brancos,
se existe o reconhecimento de conformida-
de, as oportunidades de escolha são mais
extensas (D’ADESKY, 2006, p. 90).

O capítulo dez, intitulado Capoeira: Jogo, luta ou dan-


ça?, escrito por um professor, inicia-se com o refrão de
uma música Paraná uê, Paraná uê, Paraná! Paraná uê,
Paraná uê, Paraná! E a pergunta: No Paraná tem ca-
poeira? Capoeira é jogo, luta, ou dança? A proposta do
capítulo é definir, o que é jogo, luta e dança e, ao final
do capítulo, levar o/a aluno/a a refletir e chegar à con-
clusão do que é a capoeira. O autor descreve a criação
da capoeira, realizada pelos escravizados, e destaca

166 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
o Quilombo de Palmares e seu líder Zumbi, como um
ágil capoeirista. No texto A capoeira como expressão
de luta pela liberdade, o autor trata da prática da ca-
poeira e descreve a identificação hierárquica dentro de
um grupo específico, chamado Beribazu, que é deter-
minado por cores diferenciadas de cordões:

Hoje considerada um dos símbolos da cul-


tura brasileira, a capoeira sempre foi perse-
guida, tendo sido descriminada apenas há
cerca de setenta anos. Apesar das tentati-
vas de libertos e membros da elite carioca
do começo do século XX de fazer dela uma
‘gymnastica brasileira’, seria pelas mãos de
dois mestres de capoeira baianos, negros
e oriundos das classes populares que a ca-
poeira se tornaria, de fato, um esporte na-
cional, a partir das décadas de 1930 e 40
(REIS, 2004, p. 189).

No texto A história da capoeira, o autor aborda mais


detalhadamente a importância do Quilombo de Palma-
res e seu líder Zumbi. Para ilustrar, traz um desenho
de Zumbi dos Palmares e um box explicativo sobre o
significado da capoeira. Utiliza uma ilustração de Johan
Moritz Rugendas intitulada Jogar Capoeira e um texto
explicativo de R. Naves A forma difícil: ensaios sobre
a arte brasileira. O autor utilizou uma modalidade da
capoeira, a capoeira regional, versou sobre seu criador,
o Mestre Bimba, mas não faz nenhuma referência ao
Mestre Pastinha, que difundiu a capoeira angola, que
tem características diferentes:

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
167
Mestre Bimba – Manoel dos Reis Machado
(1899-1974) – e mestre Pastinha – Vicente
Ferreira Pastinha (1889-1981) – formula-
ram, cada qual a seu modo, um projeto re-
gional e étnico para a luta. Mestre Bimba,
pioneiro na criação de uma pedagogia para
a prática esportiva da capoeira, chamou a
nova modalidade que desenvolveu de ca-
poeira regional baiana. Já mestre Pastinha
é considerado o principal sistematizador da
modalidade conhecida como capoeira an-
gola (REIS, 2004, p. 189).

Foi enfatizado que a capoeira é uma manifestação cul-


tural e teve origem no Brasil, com os escravizados. O
autor utilizou um texto descrevendo os benefícios da
capoeira e fez a demonstração de alguns movimentos,
usando desenhos explicativos.
O capítulo doze, intitulado Quem dança seus males...,
tem início com um fragmento da letra da música Cardá-
pio do Amor, que tem como uma das autoras, Tati Que-
bra Barraco, e é por ela interpretada. Posteriormente,
os autores fazem uma explicação sobre dança, ritmo e
as intenções nas letras das músicas.
Num texto intitulado A dança como reprodutora de mo-
delos, são explorados os aspectos da dança reprodu-
zida pela mídia. Também diferenciam a “dança como
movimento” e a “dança como arte”. Ao fazer referência
a ritmos e estilos musicais, os autores afirmam que:

Você já prestou atenção nos estilos de dan-


ça, como o axé, o rap e o funk, entre outros,
nos quais os gestos são sugeridos, deter-
minando a forma de expressão dos grupos

168 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
que dançam esses estilos? Muitas vezes,
quando as pessoas estão dançando, aca-
bam se preocupando com a execução das
coreografias, o que impede a reflexão sobre
as mensagens veiculadas pelas letras das
músicas e sobre os movimentos corporais,
“muitas vezes apelativos”, sugeridos nestas
coreografias (FUGIKAWA; GUASTI, 2006,
p. 196).

Através dessa afirmação, surge a pergunta: Quem são


os jovens brasileiros que gostam dos estilos de dança,
como o axé, o rap e o funk? Esses estilos de dança são
expressões culturais de jovens, em sua maioria, negros,
da periferia, ou seja, que têm sua maior representativi-
dade na camada popular brasileira, distribuídos pelas
diversas regiões do país. Os autores sugerem que es-
ses estilos de dança, que por vezes estão acompanha-
das de letras apelativas, ao serem utilizados em sala
de aula, devem ser problematizados. Mesmo com essa
ressalva, a utilização do fragmento da música Cardá-
pio do Amor, de Tati Quebra Barraco, e a afirmação de
que os movimentos dos estilos de dança, como axé,
rap e funk, muitas vezes são apelativos, adquire uma
conotação preconceituosa e discriminatória. Existem
diferentes gêneros musicais com letras, que produzem
coreografias que exploram a sensualidade, não se res-
tringindo aos ritmos citados acima. Esses ritmos são
expressões culturais e políticas de uma parcela da po-
pulação, que luta por inserção e liberdade de expres-
são. Os autores desse livro didático teriam outras op-
ções de letras de música, que representassem esses
sentimentos. Duarte (1999) comenta que:

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
169
Na cultura ocidental, a dança baseia-se
fundamentalmente na sincronia dos movi-
mentos – daí a necessidade de aprendiza-
gem. No caso do rap, a dança contrapõe-se
exatamente a essa disciplinarização dos
corpos imposta pela mesma sociedade que
segregou todas as manifestações culturais
negras, à medida que faz uma contraposi-
ção do particular ao coletivo. Nesse senti-
do, poderíamos dizer que o corpo individual
se especifica totalmente, ou seja, assume
plenamente todas as suas potencialidades.
Assume uma autonomia significativa, explo-
rando plenamente suas capacidades, assu-
mindo sua identidade. O corpo se expõe,
não se retrai, se esconde (DUARTE, 1999,
p. 20).

O texto continua trazendo a letra da música Cardápio


do Amor e propõe uma interpretação do significado da
letra. Os aspectos relacionados à estimulação da se-
xualidade são ressaltados e a importância do papel da
mídia na veiculação deste tipo de música é destacado,
bem como o incentivo à aquisição de objetos e roupas
que caracterizam um estilo musical e uma padroniza-
ção de vestimentas e atitudes dos adeptos deste estilo,
que no caso específico é o funk. A letra da música em
questão realmente tem um forte apelo à sexualidade e
à vulgaridade, mas o cuidado necessário ao abordar
esta temática é o de não reduzir o funk a uma música
de qualidade duvidosa, tendo em vista a importância
desse movimento musical, no Brasil e em outras partes
do mundo, como expressões relacionadas com a valo-
rização de aspectos de cultura de matriz africana.

170 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
O soul, o funk e o movimento black power
são importantes no Brasil, uma vez que o
povo negro norte-americano desencadeou
um processo no qual a diversão nos bailes
blacks dos anos 70 só se completava se
fosse transformada em espaço de cons-
cientização (TELLA, 1999, p. 58).

O texto segue discorrendo sobre a massificação dos mo-


vimentos que são veiculados pela mídia: “O entendimen-
to do senso comum, superficial e simplista de compreen-
der a realidade, é veiculado intencionalmente pela mídia,
na exploração da repetição dos movimentos coreogra-
fados para determinado estilo de música” (FUGIKAWA;
GUASTI, 2006, p. 199). Para ilustrar a afirmação, foi uti-
lizado um desenho que reproduzimos abaixo, em que
um jovem negro está no seu quarto dançando e ouvin-
do um cantor negro estilizado com boné e correntes no
pescoço, numa transmissão pela televisão. No quarto do
jovem estão colados cartazes, com as inscrições Funk,
Hip Hop e Rap, no cartaz escrito Rap está o símbolo do
poder negro (Black Power), importante movimento políti-
co criado nos Estados Unidos. Segundo LOPES, “Poder
negro – tradução da expressão ‘Black Power’, lema e
título do movimento criado nos Estados Unidos, na dé-
cada de 1960, para afirmar o orgulho de ser negro e a
crença na superioridade das culturas de origem africana”
(2004, p. 536). O desenho utilizado traz uma série de as-
pectos relevantes sobre a cultura afro da diáspora, que
poderiam ser tematizados a partir das proposições do
Parecer 03/04 do CNE. No entanto, o discurso do livro
em questão, além de não tematizar as questões relativas
ao significado dos símbolos dispostos na imagem, não

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
171
agrega informações sobre o papel de protesto e resis-
tência do rap e hip hop. Ao contrário de apresentar as-
pectos de valorização, circunscrevem essas expressões
culturais em sua relação com o consumismo. Em nossa
interpretação da ilustração, essa mostra um jovem negro
se divertindo e se identificando com o estilo musical que
representa seu pertencimento étnico-racial e os cartazes
indicam uma forma política de se posicionar diante da
realidade e não um “entendimento do senso comum, su-
perficial e simplista de compreender a realidade”, como
declaram os autores do texto.
Uma análise da imagem do ponto de vista das relações
étnico-raciais discutiria o significado de Hip Hop e de
movimento Black Power; indicando que os cartazes são
a imagem para criticar a massificação cultural realizada
pela mídia.
O capítulo catorze, intitulado Hip Hop – movimento de
resistência ou de consumo foi o que abordou a temática
étnico-racial de forma mais detalhada. O capítulo inicia
com perguntas sobre os jovens que gostam de hip hop:
Quem são? Onde estão? Segue descrevendo o que é
o movimento Hip Hop e que sua origem foi nos guetos
dos Estados Unidos1.
No texto que acompanha a imagem foi destacada a im-
portância de líderes negros como Martin Luther King
(1929-1968) e Malcolm X (1925-1965) que foram refe-
rências para o movimento Hip Hop. Na definição dada
pelos autores, o termo Hip Hop é: “A palavra Hip Hop é
de origem estadunidense, e significa ‘saltar movimen-
tando os quadris’ (Hip: saltar; Hop: movimentando os
quadris). O termo foi criado pelo DJ Afrika Bambaataa,
fundador da organização Zulu Nation.” A seguir, apre-

172 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
sentam um box, falando sobre o DJ Afrika Bambaataa
e a organização Zulu Nation, fundada por ele, no Bronx,
Nova Iorque, em 12 de novembro de 1973. Andrade
(1999) comenta a relevância desse movimento:

O rap é um dos elementos artísticos de um


movimento juvenil chamado hip hop. Esse
fenômeno é um movimento social dos jo-
vens excluídos, em sua maioria negros.
Nos EUA, o movimento surgiu nos ghetos
de Nova York, numa articulação de jovens
negros e hispânicos. O objetivo dessa arti-
culação era diminuir a violência generaliza-
da entre a juventude agrupada em gangues.
Embora os jovens daquela época, meados
dos anos 70, conhecessem a arte da dança
– denominada break e a arte da pintura de-
nominada grafite (dois elementos básicos –
constitutivos do movimento hip hop), foi so-
mente com a introdução do rap (nos ghetos)
por um DJ (disc-jóquei) jamaicano, que se
possibilitou às equipes de bailes sugerirem
uma competição entre guangues em torno
da produção artística – o que foi de imediato
aceito (ANDRADE, 1999, p. 86).

Os autores enfatizaram ao longo do capítulo o grande


significado do Hip Hop, como movimento político, en-
volvendo a juventude negra dos Estados Unidos e pos-
teriormente a juventude brasileira. O texto dá ênfase ao
movimento de conscientização e de luta pela igualdade
de direitos entre negros e brancos.
Foi utilizado o conceito de cultura popular e os autores
explicaram que os grupos negros se uniram para elimi-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
173
nar a segregação racial, produzindo cultura popular de
resistência. Os autores apresentaram o Hip Hop de for-
ma bem articulada com a produção acadêmica sobre tal
movimento e propuseram exercícios de pesquisa que
consideramos interessantes, para que os/as alunos/as
pudessem conhecer o contexto histórico em que vários
movimentos políticos/culturais foram desencadeados
nos Estados Unidos contra o racismo e a segregação
racial. A seguir, um exercício que foi proposto:

Pesquise sobre o contexto histórico-social e


cultural dos EUA, na segunda metade dom
século XX. Cite os acontecimentos históri-
cos que julgar importantes, relacionando-os
com as condições de vida da população
estadunidense da época. Ainda, pesquise
quem foram Martin Luther King, Malcolm X
e os Panteras Negras. Qual a relação deles
com a luta social e, portanto, com o surgi-
mento do movimento Hip Hop? (ANGUL-
SKI; FIDALGO; NAVARRO; 2006, p. 229).

Portanto, além de fornecer uma série de informações


elaboradas sobre o tema, indica, para os/as alunos/as,
o aprofundamento de estudos e informações. Um bre-
ve relato foi realizado, sobre o contexto histórico em
que o Hip Hop foi desenvolvido, aliado a outras práti-
cas culturais que objetivavam criticar a estrutura social
estadunidense. Foram destacadas a Guerra do Vietnã
(1965-1975), que causou indignação e revolta, pois a
maioria dos soldados colocados na linha de frente era
de negros e latinos, e as milhares de mortes que ocorre-
ram nesta guerra; a morte de Malcolm X e Martin Luther

174 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
King que tiveram grande repercussão mundial. Andrade
(1999) comenta o significado do break:

O break é uma dança caracterizada por movi-


mentos em que o dançarino tenta reproduzir
o corpo debilitado dos soldados que voltavam
da Guerra do Vietnã; há ainda movimentos
que copiavam as hélices dos helicópteros
utilizadas na guerra. O objetivo dessa dança
era justamente mostrar o descontentamento
dos jovens com relação à guerra – um instru-
mento de protesto simbólico, mas de grande
significado para a juventude daquela e desta
época (ANDRADE, 1999, p. 86).

Na sequência, para situar o leitor sobre o início do Hip


Hop no Brasil, foi utilizada referência sobre a questão
que declarou que este movimento teve início no Bra-
sil durante o Regime Militar (1964-1985), com o cres-
cimento de “bailes blacks” na periferia e nas grandes
cidades, em especial em São Paulo.
Os autores fizeram uma crítica à forma como veículos
midiáticos tentaram se apropriar do Hip Hop, massifi-
cando e inserindo palavras indutoras à sexualidade,
para a popularização e obtenção de lucro através da
venda de CD e roupas.
O movimento Hip Hop é contrário a essa exposição mi-
diática. Alguns representantes desse movimento não
concedem entrevistas para canais de televisão, princi-
palmente canais como a Globo e o SBT, e para jornais
de grande circulação como a Folha de São Paulo e o
Globo, sendo os Racionais MC’s o grupo que mais se
preserva e se contrapõe a essa exposição.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
175
Os autores destacam que os grupos que pertencem ao
movimento Hip Hop preferem divulgar suas músicas
nas rádios comunitárias, por estarem inseridas no con-
texto social em que as músicas são criadas e por ser
o local onde os criadores das letras residem, ou seja,
geralmente nas comunidades localizadas nas periferias
e nas favelas. Herschmann (2000) aponta que:
Os b-boys, portanto, têm procurado desen-
volver sua própria indústria da cultura. Para
os membros do hip hop, os programas nas
rádios comunitárias e emissoras de televi-
são, selos e gravadoras independentes, re-
vistas e fanzines, representam uma “estra-
tégia” que não só esperam que garanta isso,
como também um relativo controle sobre o
trabalho, isto é, sobre o sentido e significa-
do da produção que realizam (HERSCH-
MANN, 2000, p. 206).

Essa prática se fundamenta no desejo de que a inten-


ção de revolta, denúncia e resistência que, na maioria
das vezes, tem as letras das músicas, não seja mani-
pulada e distorcida pelos veículos midiáticos de grande
alcance. Salles (2004) afirma que:

Eles (rappers) estabelecem um vínculo en-


tre a arte, cultura e cotidiano de suas comu-
nidades, o qual implica uma recuperação de
aspectos do fazer artístico há muito tempo
superados na história da cultura ocidental,
realizando uma arte profundamente arraiga-
da na cotidianidade, nos problemas e nas
belezas que fazem parte da vida dos seto-
res populares (SALLES, 2004, p. 92).

176 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Os autores valorizam a tentativa dos integrantes do mo-
vimento Hip Hop de preservação de seu pertencimento
étnico-racial e social e a defesa de melhores condições
de vida para uma parcela da população, composta na
maioria das vezes por negros/as e pobres. Para tanto,
apresentam um artigo escrito por Eliana Antônia, cha-
mado “Folha de São Paulo joga o leitor contra os Ra-
cionais MC’s”, que é um questionamento a respeito de
uma reportagem escrita na Folha de São Paulo, que
acusa os Racionais MC’s de terem sido cooptados pela
Rede Globo, por permitirem a inserção de um fragmen-
to da música Negro Drama, num quadro do Fantástico,
apresentado por Regina Casé. Os autores propuseram
a seguinte atividade para os/as alunos/as: “Pesquise,
em revistas, jornais e na internet, reportagens que abor-
dem outros pontos de vista sobre o Movimento Hip Hop.
Escreva um texto comparando os diferentes pontos de
vista com sua opinião sobre o assunto” (ANGULSKI; FI-
DALGO; NAVARRO, 2006, p. 235). O artigo apresenta-
do e a atividade proposta pelos autores fornecem ele-
mentos para que o leitor, no caso específico alunos/as
do Ensino Médio, possa formular uma visão crítica sobre
os meios de comunicação de massa e as formas simbó-
licas que são usadas para manipular a opinião pública.
Os autores dão voz e visibilidade aos integrantes do
movimento Hip Hop, ao transcreverem um fragmento
de uma entrevista concedida ao repórter Sérgio Kalili,
para edição especial da Revista Caros Amigos, por Pe-
dro Paulo Soares, o Mano Brown, um dos integrantes
dos Racionais MC’s.
O capítulo continua com a apresentação de um texto
denominado Os elementos do Hip Hop. No texto são ex-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
177
plicados detalhadamente os elementos que compõem
o movimento Hip Hop: Rap (MC+DJ), o Break e o Gra-
ffiti. Os autores explicaram os elementos do Hip Hop:
Rap (abreviação de rythym and poetry, ritmo e poesia,
em inglês) (DJ+MC), Break e Graffiti, e destacaram que
alguns estudiosos e integrantes do movimento Hip Hop
consideram o conhecimento como o quinto elemento.
Zeni (2010) corrobora esse ponto de vista:

Alguns integrantes do movimento conside-


ram também um quinto elemento, a cons-
cientização, que compreende principalmente
a valorização da ascendência étnica negra, o
conhecimento histórico da luta dos negros e
de sua herança cultural, combate ao precon-
ceito racial, a recusa em aparecer na gran-
de mídia e o menosprezo por valores como
ganância, a fama e o sucesso fácil. Certos
grupos reúnem-se em posses, associações
que têm por objetivo organizar o movimento,
tanto do ponto de vista musical como social,
disponibilizando para a comunidade aulas de
hip hop e outras matérias, como educação
sexual, informática, cultura negra e história,
por exemplo (ZENI, 2010, p. 731).

O reconhecimento do movimento Hip Hop como impor-


tante para a inserção do jovem negro/a na sociedade,
com responsabilidade e conscientização política e étni-
co-racial, vem ao encontro de reivindicações de vários
segmentos do Movimento Negro. Apesar da mídia, por
vezes associar o Hip Hop ao uso de drogas, roubo e
vandalismo, um estudo mais aprofundado mostra que
essa não é a essência do movimento e, como os au-

178 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
tores bem pontuaram nesse capítulo, o uso de drogas,
roubo e vandalismo não é prerrogativa dos membros do
Hip Hop, pois está inserido na sociedade.
As letras das músicas versam sobre a realidade da co-
munidade em que os autores das letras estão vivendo,
geralmente em favelas e comunidades localizadas na
periferia. Muitas vezes, ao trazer a dura realidade do
dia a dia, chocam os ouvintes que vivem longe dessa
realidade. O garoto que dança break foi convencionado
chamar de Break Boy (B. Boy) e a garota Break Girl (B.
Girl) (ANGULSKI; FIDALGO; NAVARRO, 2006).
Ao longo do capítulo trataram com muito respeito o mo-
vimento Hip Hop, enfatizando que é um movimento de
luta e resistência, com um forte apelo étnico-racial; fize-
ram um histórico do desenvolvimento desse movimento
que teve início nos Estados Unidos e como ocorreu no
Brasil; apontaram que, ao ser massificado pela mídia,
incluiu elementos de erotização e consumo. Foram pro-
postas interessantes de atividades para os/as alunos/
as. As duas últimas foram: 1 – Debate sobre o filme, En-
tre Nessa Dança: Hip Hop no pedaço (You got Served).
A sugestão foi que os alunos/as assistissem ao filme e
formassem grupos de discussão, registrando os pontos
discutidos, destacando qual a ideia sobre o Hip Hop que
o filme passa. Após a discussão, os pontos discutidos
pelos grupos deveriam ser apresentados em forma de
dança (break) ou teatro. Outra sugestão foi convidar um
grupo de dança ou colegas para apresentarem movi-
mentos básicos do break. 2 – Organização de um even-
to que contemplasse os quatro elementos do Hip Hop e
outras manifestações corporais, tais como: Street Ball e
Skate (ANGULSKI; FIDALGO; NAVARRO, 2006).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
179
Ao abordarem o significado do Graffiti, afirmaram que
é uma expressão artística, com compromisso político,
que difere da pichação, que é geralmente um ato de
vandalismo. Essa ressalva colabora para a formação
de opinião através do conhecimento, pois explicita que
as pichações feitas em monumentos públicos e espa-
ços particulares não estão associadas ao movimento
Hip Hop:

Os materiais comumente utilizados por gra-


ffiteiros são: spray de tinta, rolinho, pincel,
corante e tinta de galão.
Mas cuidado! Muitas pessoas associam a
prática do Graffiti com pichação. Não são
a mesma coisa! Esta última não está com-
prometida com a crítica social, e pode ser
considerada apenas um ato de vandalismo
(ANGULSKI; FIDALGO; NAVARRO, 2006,
p. 243).

Ao salientar essa diferença, os autores levantaram um


problema que é muito sério nas escolas de Ensino Mé-
dio onde, por vezes, o patrimônio público é danificado
por pichações.
Para terminar o capítulo, os autores retomaram o
questionamento que propuseram no início e fizeram
considerações sobre a importância do Hip Hop, como
movimento que iniciou com propósito de resistência e
conscientização, e destacaram as contradições que
passaram a existir através de alguns grupos que se tor-
naram seguidores de modismos característicos de uma
sociedade de consumo. Durante todo o capítulo, a te-
mática foi abordada com compromisso, por parte dos

180 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
autores, com a proposição de pesquisa e transmissão
de conhecimento através de fragmentos de pesquisa-
dores e, portanto, reconhecimento da riqueza da temá-
tica étnico-racial, utilizando-se de expressão artística
e cultural, seguindo as indicações contidas nos docu-
mentos que contemplam as definições legais da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (doravante
LDB), artigo 26-A (modificado pelas Leis 10.639/03 e
11.645/06), da Resolução 01/2004 e Parecer 03/2004
do CNE.

Considerações finais

Ao analisar o contexto de gestação da política, fica pa-


tente a falta de diálogo entre as diferentes instâncias
que compunham a Secretaria de Estado da Educação.
As políticas de promoção de igualdade racial via imple-
mentação do artigo 26-A da LDB, naquele momento,
passavam por uma comissão articulada com movimen-
tos sociais e localizada no Departamento de Ensino
Fundamental, ao passo que a política levada a termo
pelo Departamento de Ensino Médio não foi sequer per-
meável a qualquer diálogo com tal comissão e expressa
o silêncio em relação à promoção de igualdade racial.
Sobre os mecanismos de produção do “Folhas”, verifi-
cou-se que a chancela de especialistas de áreas disci-
plinares específicas das universidades não é suficiente
para resolver questões relacionadas à diversidade étni-
co-racial (ou de gênero, de sexualidade, etc.). As ava-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
181
liações dos livros didáticos por especialistas realizadas
pelo PNLD também não são suficientes. As hipóteses
explicativas são a formação de tais especialistas con-
sonante com a formação ainda hegemônica no Brasil,
orientada pelo mito da democracia racial, e as formas
de discriminação que são principalmente implícitas, ne-
cessitando de leitura atenta aos mecanismos de discri-
minação para além de generalismos simplistas.
No segundo nível, análise formal ou discursiva, selecio-
namos os livros didáticos das disciplinas escolares de
Língua Portuguesa e de Educação Física. Esses dois li-
vros foram analisados de forma qualitativa, tendo como
parâmetro as políticas de promoção de igualdade racial
na educação (em especial o artigo 26-A da LDB, a re-
solução 01/04 e o parecer 03/2004 do CNE); uma pers-
pectiva crítica de análise das relações raciais no Brasil.
O livro didático público do Paraná, apresenta muitas
peculiaridades, já descritas anteriormente, mas foi pos-
sível verificar (nos livros analisados) a variação da qua-
lidade de um artigo – denominado Folhas (que originou
um capítulo), para o outro. Alguns capítulos apresen-
taram abordagem mais apropriada e aprofundada do
que outros sobre a mesma temática, no mesmo livro.
No livro de Educação Física isto ficou bem visível; no
capítulo 12 (intitulado – Quem dança seus males...) ao
analisar os estilos de danças (axé, rap, funk) que são
de preferência da juventude negra e em sua grande
maioria pobre, enfatizaram o lado apelativo de deter-
minadas danças, sem fazer uma contextualização da
origem destes estilos e a importância que eles têm para
a juventude negra. Entretanto no capítulo 14 (intitulado
Hip Hop – movimento de resistência ou de consumo?)

182 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
verificou-se um cuidado especial ao retratar esses es-
tilos de dança e música, problematizando sobre a fun-
ção da mídia ao introduzir em determinadas músicas,
apelos sexuais, para aumentar o mercado de consumo.
No livro de Português e Literatura o capítulo analisa-
do apresentou vários equívocos teóricos, com textos e
ilustrações inadequados.
O terceiro nível de análise, a re-interpretação da ideolo-
gia, nesse estudo está expresso pela pergunta de pes-
quisa principal que formulamos:
Quais estratégias ideológicas de hierarquização entre
brancos e negros observamos nos processos de pro-
dução e nos textos do “Livro didático público (Folhas)?”
Segundo Thompson (1995) dentre as formas simbó-
licas estão imagens e textos, e ao serem analisadas
num contexto histórico, podem estar a serviço do poder
e estabelecer relações de dominação. O Livro Didático
Público - Folhas no contexto histórico em que foi produ-
zido e distribuído (um mês antes das eleições para go-
verno de Estado) para manutenção do poder em vigên-
cia. A atuação aconteceu através do modo de operação
da ideologia, denominado legitimação, por meio da
estratégia ideológica da racionalização, pois pode-se
inferir que a produção e distribuição do Livro Didático
Público - Folhas, foi uma forma simbólica utilizada para
criar uma rede de raciocínio, entre os eleitores, para
defender a instituição social, representada pela SEED,
vinculada ao governo da época (candidato a reeleição),
que merecia credibilidade por estar apoiando uma edu-
cação de qualidade, ao produzir este material didático;
credibilidade esta demonstrada através do voto, que
garantiria a continuidade do governo e da política públi-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
183
ca educacional. Esta inferência tem como fundamento
relatos de funcionários/as que acompanharam o pro-
cesso de idealização, produção e distribuição do livro
didático público, além do período em que foi realizada a
distribuição (setembro de 2006), sem que não houves-
se a necessidade de devolução por parte dos alunos/as;
ou seja, final de terceiro bimestre e finalização do ano
letivo. Tendo em vista que o plano de trabalho docente
é realizado bimestralmente, a inserção dos conteúdos
contidos nos livros, foi dificultada por alguns fatores,
sendo no meu ponto de vista o mais importante, o tem-
po para reelaboração dos planos de trabalho docente.
Voltando o foco para os discursos dos livros didáticos,
no capítulo três do livro de Português e Literatura – Dis-
cursos da Negritude percebeu-se o uso inadequado do
termo “negritude” e da temática étnico-racial. O silêncio
como estratégia ideológica de dominação, foi eviden-
ciado ao não se fazer nenhuma menção ao movimento
literário da negritude (nesse capítulo e em todo o livro),
que foi um movimento de repercussão mundial, muito
importante para população negra – resultado coinciden-
te com os de Freitas (2009) e Lima (2010). Foi possível
observar a estigmatização da mulher negra, pois o capí-
tulo a retratou como coisa, objeto sexual. Aliado a tal, foi
discursivamente tratando tal hirpersexualidade da mu-
lher negra como “natural” (ou seja, usando da estratégia
ideológica de naturalização) e aliada esteve a estratégia
de passivização, pois a descreve de forma passiva e
submissa, sem vontade própria. Os textos utilizam-se
da relação negro-escravo e também apresentam carac-
terísticas de estereotipia e estigmatização que reforçam
as ideias de hipersexualidade da mulher negra.

184 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
No capítulo nove do Livro Didático Público de Português
– Estratégias de manifestar opinião, observa-se uma
gravura com um adolescente negro tremendo de frio, re-
cebendo uma doação de agasalho, que foi jogado pela
janela, por um adolescente branco. Interpretamos a ima-
gem do menino branco jogando o agasalho para o meni-
no negro como uma forma especial de expurgo do outro
(segundo Silva, 2008a, p.34) que é a estigmatização.
No Livro Didático Público de Educação Física, o capítu-
lo 10 (Capoeira: Jogo, luta ou dança?) elegeu um estilo
de capoeira, denominada Regional e não mencionou a
capoeira Angola, porém apresentou aspectos de valori-
zação da cultura de matriz africana. O capítulo 14 (Hip
Hop – movimento de resistência ou de consumo?) foi o
que melhor atendeu as definições legais do artigo 26-A
da LDB (modificado pelas Lei.10.639/03 e 11.645/06),
da Resolução 01/2004 e Parecer 03/2004 do CNE, pois
apresentou um texto bem elaborado e fundamentado
em pesquisas, que proporcionaram aos alunos/as pos-
sibilidades de reflexões sobre a importância do movi-
mento hip hop para a juventude negra; um movimento
com contradições mas que significa resistência e afir-
mação da cultura negra.
Nos Livros Didáticos Públicos – Folhas, analisados,
nesta pesquisa, ficou evidenciada a representação do
branco, (nos textos e ilustrações) de forma mais ela-
borada e a sub-representação do negro. Nossos resul-
tados apontam para a continuidade do predomínio da
branquidade normativa; hierarquizando em posição su-
perior aos brancos em relação aos negros.
Com resposta principal desse estudo realizamos uma
crítica (e autocrítica) em relação a uma possível gueti-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
185
zação de políticas públicas de promoção de igualdade
racial e sua não incorporação nas políticas mais am-
plas. No caso específico, ao mesmo tempo em que
uma coordenação colegiado e com participação dos
movimentos sociais atuava de forma específica, com
pessoas e equipes subsumidas de tarefas (sempre
urgentes), as políticas educacionais mais amplas, e a
produção e distribuição do Livro Didático Folhas, eram
levadas a termo sem nenhuma preocupação com a pro-
moção da igualdade racial.

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Ra o, u o E u a o: t at a ol a
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Ra o, u o E u a o: t at a ol a
191
NEAB
Capítulo 6
PERSONAGENS NEGROS E BRANCOS EM
LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO RELIGIOSO
Sergio Luis do Nascimento
Ra o, u o E u a o: t at a ol a
193
Capítulo 6

Personagens negros e brancos em livros


didáticos de Ensino Religioso

Sergio Luis do Nascimento1

Introdução

A dissertação da qual deriva este artigo voltou-se para


a análise dos discursos sobre os segmentos raciais ne-
gros e brancos em livros didáticos de Ensino Religioso.
Como referencial metodológico, utilizou-se da Herme-
nêutica de Profundidade (HP), proposta por Thompson
(1995). A análise da ideologia, para o autor, que é uma
forma particular de HP, cujo foco dirige-se às inter-rela-
ções entre significado e poder.
O artigo apresenta os resultados da análise de persona-
gens nos textos das unidades de leitura dos livros didá-
ticos de Ensinos Religiosos, dirigidos à 5ª e à 8ª séries
do ensino fundamental, publicados entre 1977 e 2007.
A proposta inicial para coleta de dados era contemplar
livros didáticos produzidos de acordo com três mode-
los tradicionalmente presentes em diversas escolas do
Brasil, a saber: as concepções denominadas Confes-
1 Doutor em Educação pela UFPR na linha de Políticas Educacionais. Possui graduação
em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1998), mestrado em Edu-
cação pela Universidade Federal do Paraná (2009). Atualmente é professor - Secretaria
Estadual de Educação do Paraná e professor de Filosofia na Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Paraná.

194 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
sional, Interconfessional e a Fenomenológica. Salienta-
mos que, além destas três proposições, existem outras
derivadas. Além disso, as formas de classificação usam,
via de regra, de generalizações e estão pouco atentas
a detalhes, gerando, quase inexoravelmente, impreci-
sões ou ambiguidades. Reconhecendo estas possíveis
imprecisões, ou incertezas, ainda assim consideramos
que a classificação em diferentes “modelos” de Ensino
Religioso no Brasil ajuda a compreender mudanças de
propostas pedagógicas e pensar que tais mudanças se
refletem nos livros didáticos. Tomamos, pois, a classifi-
cação em três modelos que se organizam em períodos
sucessivos, em função do Ensino Religioso presente
nos currículos das escolas brasileiras e que, também,
estão de acordo com o Fórum Nacional Permanente
do Ensino Religioso (FONAPER) que reconhece essas
três correntes como marco estruturador de leitura e in-
terpretação da realidade (JUNQUEIRA, 2008).
Fixamos um período de 30 anos para a análise de da-
dos, porque nesse período ocorreram momentos em
que as propostas de ensino religioso passaram pelas
três proposições descritas. Consideramos que o perío-
do de 1977 até 2007 abrange momentos marcantes do
Ensino Religioso, em particular alguns aspectos da his-
tória recente da Igreja católica.
Pós Concílio Vaticano II em 1965, a Igreja Católica se
abre para o mundo e passa a rever seu lugar nele. A
preocupação é como o homem concreto, o homem his-
tórico, reconhece a importância da cultura e se recon-
cilia com os avanços tecnológicos uma vez que esses
avanços são vistos como possibilidade para progresso
mundial. Todo esse processo postula o projeto de mis-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
195
são num cenário de diversidade cultural que dinamiza
a igreja Católica e leva-a substituir a noção de acultura-
ção pela noção de inculturação rompendo com a antiga
concepção do paganismo das culturas locais para uma
concepção de alteridade cultural. Indianizar-se e africa-
nizar-se são perspectivas tensas, mas a Igreja Católica
busca adaptar-se às culturas locais e com isso man-
ter a universalidade de suas verdades (ESCANFELLA,
2006, p.102).
Todo esse processo pode ser observado nas duas
Conferências dos bispos latino-americanos em Puebla
(1979) e Santo Domingo (1992). Ambas respondiam à
desafios diferentes em contextos históricos alterados
pela situação política das repúblicas latino-americanas
que passavam de ditaduras a regimes mais democrá-
ticos. Apesar das diferenças, Santo Domingo reforça
atenção aos pobres e às culturas indígenas e afro-a-
mericanas e a inculturação do Evangelho.
Nesse mesmo período, o Ensino Religioso legitimado
no Brasil pela Constituição de 1988 e pela Lei de Dire-
trizes Bases/LDB abriu perspectiva para o mercado de
trabalho, em detrimento do mercado livreiro que “têm
as escolas como público cativo e o Estado como gran-
de comprador... com editoras católicas participando ati-
vamente da disputa desse mercado livreiro” (ESCAN-
FELLA, 2006, p.102).
No período estudado, para a realização desse artigo
1977 a 2007, alguns eventos sobre relações entre ne-
gros e brancos foram marcantes, destacam-se: o surgi-
mento do Movimento Negro Unificado/ MNU, em 1979;
os Agentes de Pastoral Negra/APNs, em 1983 e 1984.
Nesse período a Fundação para o Livro Escolar (FLE)

196 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
propõe a busca de um livro didático “livre da presença
de preconceitos e inverdades”. Ao mesmo tempo, apa-
rece a Assessoria Técnica de Planejamento e Controle
Educacional (ATPCE) da Secretária de Educação do
Estado de São Paulo com a criação da Comissão Es-
pecial de Luta Contra as Formas de Discriminação. Em
1984, no mês de abril, foi realizado, em São Paulo, o
III Encontro de Agentes de Pastoral Negros. Em 1986,
foi concluída a pesquisa “Diagnóstico sobre a situação
educacional de negros (pretos e pardos) no Estado de
São Paulo”, realizada pela fundação Carlos Chagas em
convênio com a Secretaria de Educação e o Conse-
lho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade
Negra do Estado de São de Paulo. Em 1988, o Minis-
tério da Cultura promoveu o Programa do Centenário
da Abolição, com incentivos à realização de trabalhos
sobre o negro em que foi incluso o projeto “Salve 13 de
maio”, organizado pelo Grupo de trabalho para Assun-
tos Afro-Brasileiros- GTAAB. Como parte das ativida-
des, o Dia da Abolição da Escravatura foi transformado
e incorporado, por solicitação dos movimentos negros
e por força de uma Resolução da Secretaria da Educa-
ção, em dia de Debate e denúncia contra o Racismo.
Por ocasião do centenário da Abolição da Escravatura,
em 1988, e depois em 1994, o Ministério da Educação
realiza e divulga um estudo reconhecendo que os con-
teúdos veiculados pelo livro didático vinham estimulan-
do o preconceito racial (BEISIEGEL, 2001).
Nesta mesma época, (1995) as comemorações dos tre-
zentos anos da morte de Zumbi dos Palmares, resultou
na Marcha Zumbi Contra o Racismo pela Cidadania e
Vida. Nessa mesma ocasião foi encaminhado um docu-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
197
mento à Presidência da República que incluía, dentre
as reivindicações na área da Educação, modificações
nos livros didáticos e inclusão de conteúdos de Histó-
ria e Cultura Afro-brasileira, além de definir o dia 20 de
novembro como data de Comemoração da Consciência
negra. Em 2001 acontece em Durban a III Conferência
Mundial das Nações Unidas Contra o racismo, discrimi-
nação racial, xenofobia e intolerância correlata. Por fim,
em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancio-
nou a Lei nº 10.639 que estabelece a obrigatoriedade
do ensino de história e cultura afro-brasileira no Ensino
Fundamental e Médio e criou a Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial/SEPPIR.
O quadro abaixo ilustra os 20 selos desses 30 anos es-
tabelecidos para realização da amostragem dos livros
de Ensino Religioso e bem como informa os anos de
suas respectivas edições. Nesse período, as editoras
lançaram títulos diferentes ao longo dessas três déca-
das para atender a exigências do mercado e diferentes
propostas pedagógicas. Tal característica é importante
para a análise que empreenderemos, pois isso indicará
em que medida essas mudanças foram feitas para aten-
der aos contextos históricos nos quais as publicações
estavam inseridas, bem como, em que medida essas
mudanças estavam vinculadas às próprias contingên-
cias de mudanças culturais que cada modelo do Ensino
Religioso passou a exigir nesses períodos específicos2.
Na última coluna do quadro colocamos a classificação
do selo segundo o foco de conteúdo que cada selo
apresentou. Nesse caso o modelo Confessional incor-
2 No quadro a seguir realizamos uma classificação das unidades de leitura seguindo as
orientações de Junqueira (2008), no que se refere aos modelos de educação religiosa e o
perfil característico de cada um dentro do contexto histórico em que foi publicado.

198 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
pora uma linha de conteúdos doutrinais, Interconfessio-
nal que apresenta uma linha de conteúdos cristãos e
Fenomenológicos e outra de conteúdos culturais. Essa
classificação tem que ser compreendida como uma
aproximação, não como um critério que engloba todos
os aspectos de cada uma das obras. Assim, usando os
critérios de cronologia de publicação e de exame das
obras, classificamos os selos conforme a sua maior
proximidade com essas linhas de conteúdos que os
selos apresentam. Ou seja, a classificação tem efeitos
para essa pesquisa, mas não pode ser compreendida
como definidora precisa de cada umas das obras, isso
porque, em passagens específicas cada uma das obras
pode possuir aspectos que são peculiares a outro mo-
delo de ensino religioso, mas na nossa classificação o
esforço foi de classificar os selos conforme o predomí-
nio em um modelo.

Quadro 1. Títulos, autores, série, editoras e anos de referência de


edição analisada.
Modelo
Sé-
Nº Título e autor Editora Ano
rie
Deus nos quer construtores de um
mundo
1 8ª Vozes 1983 Confessional
Secretariado Arquidiocesano de
Pastoral (São Luis. MA)
Deus liberta o seu povo
2 Secretariado Arquidiocesano de 5ª Vozes 1983 Confessional
Pastoral (São Luis. MA)
Alegria de Viver - Educação
3 religiosa 5ª Moderna 1996 Confessional
Maria Izabel de Oliveira Tongu
Alegria de Viver - Educação
4 religiosa 8ª Moderna 1997 Confessional
Maria Izabel de Oliveira Tongu
De Mãos Dadas
5 Amélia Schneiders; Avelino Antônio 5ª Scipione 2002 Confessional
Correa

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
199
(Quadro 1 - Conclusão)
Educação Religiosa Escolar
Interconfes-
6 Conselho Interconfessional para 8ª Vozes 1977
sional
Educação
Educação Religiosa Escolar
Interconfes-
7 Conselho Interconfessional para 5ª Vozes 1980
sional
Educação
De Mãos Dadas
Interconfes-
8 Amélia Schneiders; Avelino Antônio 8ª Scipione 1992
sional
Correa
Irmãos a Caminho Interconfes-
9 5ª FTD 1993
Therezinha Motta Lima da Cruz sional
Irmãos a Caminho
Interconfes-
10 Amélia Schneiders; Avelino Antônio 8ª FTD 1993
sional
Correa
Descobrindo caminhos Interconfes-
11 5ª FTD 1998
Therezinha Motta Lima da Cruz sional
Descobrindo caminhos Interconfes-
12 8ª FTD 1998
Therezinha Motta Lima da Cruz sional
Religião no Mundo Fenome-
13 5ª Paulinas 2001
Maria Inês Carniato nológico
Nossa opção Religiosa Fenome-
14 8ª Paulinas 2002
Maria Inês Carniato nológico
Entre Amigos
André F. Seco; Luiz E. Fernandez; Fenome-
15 5ª Moderna 2004
Márcia Braga; Maria Del Mar I. nológico
Barbosa e Sonsoles C.de La Pena
Entre Amigos
André F. Seco; Luiz E. Fernandez; Fenome-
16 8ª Moderna 2004
Márcia Braga; Maria Del Mar I. Bar- nológico
bosa e Sonsoles C.de La
Todos os jeitos de crer-Vidas
Fenome-
17 Dora Incontri e Alessandro César 5ª Ática 2004
nológico
Bigheto
Todos os jeitos de crer-Vidas Ideias
Fenome-
18 Dora Incontri e Alessandro César 8ª Ática 2004
nológico
Bigheto
Redescobrindo o Universo
Religioso Fenome-
19 5ª Vozes 2007
nológico
Mário Renato Longen
Redescobrindo o Universo
Religioso Fenome-
20 8ª Vozes 2007
nológico
Mário Renato Longen
FONTE: Nascimento (2009).

A seguir está a análise comparativa, na qual apresenta-


mos os resultados da análise de personagens dos tex-

200 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
tos das unidades de leitura dos livros didáticos de En-
sino Religioso dirigidos de 5ª e de 8ª séries do ensino
fundamental, publicados entre 1977 e 2007, nos mode-
los: Confessional, Interconfessional e Fenomenológico.

1. Análise comparativa de personagens negros


e brancos no texto

No quadro abaixo, estão dispostos os 19 personagens


negros das unidades de leitura, dos modelos confessio-
nais, interconfessionais e fenomenológico.

Quadro 2. Descrição dos personagens negros das unidades de leitura.

No do
livro (L)
No Nome Caracterização Modelos
No do
texto (T)
Martin Personagem que segundo a unidade de
Confessio-
1 L4 T18 Luther leitura lutou contra o egoísmo e as injus-
nal
King tiças.
Martin No texto o personagem é colocado como
Intercon-
2 L9 T9 Luther modelo que deveríamos procurar conhe-
fessional
King cer.
Personagem que ilustra na unidade de
Maria leitura e aparece como personagem no
José do texto. Na ilustração é uma figura estereo- Intercon-
3 L9 T9
Nasci- tipada, mal vestida, desdentada, envolta fessional
mento em lixo e com balão de fala que reafirma
a crendice popular.
Personagem ilustrado e presente no tex-
to. Analfabeta, moradora de um barraco
Aparecida
embaixo do viaduto do metrô no RJ, que Intercon-
4 L9 T15 David
tentava matricular a filha em uma escola, fessional
Dias
mas não conseguiu por não ter residên-
cia fixa.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
201
(Quadro 2 - Conclusão)

Aparece como personagem ilustrado e


no texto é descrito como pessoa capaz
Nelson Intercon-
5 L11 T3 de viver e morrer por um ideal, ilustrando
Mandela fessional
a frase: “... a conquista dos direitos dos
negros na África do Sul, nos EUA...”
Aparece com um poema de sua autoria
Kahlil Fenome-
6 L13 T1.3 para abrir o tema abordado no texto sinal
Gibran nológico
no transcendente em nosso mundo.
Apresentado como personagem dentro
da descrição de uma celebração destina- Fenome-
7 L13 T4.1 Oxossi
da a este Orixá designado como o deus nológico
da caça, dentro do Candomblé.
Descreve a festa de Xangô, orixá dos
Fenome-
8 L13 T4.1 Xangô raios e trovões, a festa descreve o mito
nológico
de Xangô e suas mulheres.
Festa de Oxalá o pai criador, descreve o
texto que a festa dura 16 dias e passa Fenome-
9 L13 T4.1 Oxalá
pelos rituais de obrigações das “Águas nológico
de Oxalá”.
Orixá que leva água da terra para o céu e Fenome-
10 L13 T4.1 Oxumaré
para os outros orixás. nológico
Descrita no texto as muitas faces da di-
Fenome-
11 L18 T3 Isis vindade como a deusa que criou ou o Nilo
nológico
com suas lágrimas
Descrito no texto como deus do céu e Fenome-
12 L18 T3 Hórus
protetor do Faraó. nológico
Representante humano egípcio protegido Fenome-
13 L18 T3 Faraó
pelo deus Hórus nológico
Fenome-
14 L18 T3 Osíris Esposo de Isis era o deus supremo.
nológico
Descrita como deusa mãe na Mesopotâ- Fenome-
15 L18 T3 Nammu
mia que deu à luz o céu e a terra. nológico
É apresentado no texto como Babalaô
muito procurado por doentes, os quais Fenome-
16 L18 T15 Orunmilá
curavam suas enfermidades com o uso nológico
das ervas miraculosas.
Descrito como o nome de um escravo
que foi vendido a Orunmilá e assim o aju-
Fenome-
17 L18 T15 Ossaim dava a receitar remédios aos doentes e
nológico
acabou sendo conhecido como um gran-
de médico.
Gnomo de uma perna só que ensinou Fenome-
18 L18 T15 Aroni
todo o segredo das ervas para Ossaim nológico
Divindade egípcia que conduzia as almas Fenome-
19 L18 T15 Anúbis
no além. nológico
FONTE: Nascimento (2009).

202 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Os personagens negros catalogados nos modelos Con-
fessionais e Interconfessionais aparecem nos selos em
situações diversas ao apresentarem papéis diferentes
na sociedade. Algumas vezes como heróis de causas
nobres, como a luta contra o racismo e direitos huma-
nos e, às vezes, perpetuando um modus operandi dos
discursos dos livros didáticos de naturalização/eterniza-
ção de ações discriminatórias, como os exemplos dos
casos que ilustram estas tendências nas personagens
femininas, abaixo.
As personagens humanas, Maria José do Nascimento
e Aparecida David Dias são apresentados nos textos
em posições socialmente desfavorecidas. Como nas
pesquisas de Rosemberg (1985), Bazilli (1999) e Silva
(2005), não se observaram expressões explícitas de ra-
cismo e discriminação racial, mas, como nas pesquisas
anteriores, os personagens femininos dos textos des-
critos são estereotipados, sendo que a mulher negra
não existe, quem aparece é a empregada doméstica
negra, representada monotonamente com os traços
“modelares” (lábios grandes, gorda, lenço na cabeça,
brincos e avental, conforme ROSEMBERG, 1985; tam-
bém BAZILLI,1999).
A primeira personagem foi colocada numa situação de
miséria, com signos de pobreza muito explícita, em es-
pecial a imagem de uma mulher desdentada. Evoca a
crença num milagre de São Cosme e Damião no comba-
te a uma epidemia que se alastrou em Pernambuco no
século XVII, e da qual ninguém foi vítima. O texto con-
trapõe essa “crendice” descrevendo que uma lavadeira
de 41 anos deveria ter a clareza de perceber a diferença
entre o que é responsabilidade humana e o que é ação

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
203
de Deus. Ou seja, o papel desempenhado pela perso-
nagem negra é o de ausência de capacidade de julgar,
ausência de inteligência. O velho estereótipo de “ingê-
nuos”, “infantis”, representantes de uma cultura inferior,
não-civilizada, tão presentes na literatura infantojuvenil
(GOUVEIA, 2005) e na literatura (EVARISTO, 2005). A
personagem caricaturada e envolta de lixo é apresenta-
da como se estivesse berrando para que todos acredi-
tassem nos santos populares que realizaram o milagre
em outros tempos, em oposição à crença, na ciência e
na religião oficial. É explicitado, nesse exemplo, que as
crenças populares baseadas na tradição e costumes dos
antepassados não têm valor nenhum diante do conheci-
mento estabelecido no meio científico e na fé que segue
princípios racionais e institucionalizados na religião ofi-
cialmente detentora dos desígnios divinos.
A personagem Aparecida David Dias é representada
no texto como moradora de rua no viaduto da Praça
Bandeirante no Rio de Janeiro, ao ter a matrícula de
sua filha recusada, e resolve educá-la no viaduto mes-
mo que, com o tempo, passa abrigar outras crianças.
O texto ressalta que a personagem não tem residência
fixa e por isso não pode realizar a matrícula. Por um
lado, o texto é uma crítica social à condição de pobre-
za que gera impossibilidade de acesso à educação. A
mulher negra é colocada numa posição de solução e é
ativa, pois não tendo o direito à educação respeitado,
busca alternativa própria para tal situação. Por outro, é
uma das duas únicas personagens femininas negras e
circunscritas à situação miséria e de tarefas do lar.
É significativo que ambas as personagens estereotipa-
das foram as duas únicas mulheres negras humanas

204 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
que figuraram na amostra. Ou seja, a representação de
forma totalmente alienada da realidade e de forma ex-
clusivamente estereotipada vinculou-se especificamen-
te às mulheres negras, reiterando que a hierarquização
racial pesa de forma particular nas mulheres negras e,
que o discurso dos livros didáticos de religião, acentua
o papel ideológico quando olhado pela perspectiva de
gênero.
Ao lado dessas personagens estereotipadas figuram
três personagens negros que representam o contra-
ponto. São discursivamente compostos de forma po-
sitiva e representam características valorizadas, em
particular na luta antirracismo. Notável que sejam todos
personagens masculinos. Martin Luther King aparece
em selos diferentes, desempenhando papéis similares
em ambos os textos. Dois deles foram evocados pela
sua importância histórica nas lutas contra a segregação
racial tanto nos Estados Unidos como na África do Sul.
A presença de tais personagens, que trazem aspectos
de humanização e defesa de direitos humanos, embora
diminuta, é importante como forma de valorizar os per-
sonagens negros. Por outro lado, pelo fato de serem
justamente personagens que se destacam pela luta an-
tirracista, acabam representando, para o discurso dos
livros, uma mensagem de duplo sentido. Tais persona-
gens afirmam o antirracismo, porém, ao mesmo tempo,
reforçam velhas práticas racistas que se mantêm implí-
citas no discurso dos livros.
No modelo fenomenológico foram catalogados 14 per-
sonagens negros sendo que 12 são divindades, um per-
sonagem humano, Kahlil Gibran, (nesse caso cataloga-
do na categoria cor-etnia do manual catalográfico como

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
205
parda, classificação essa devido à origem libanesa do
personagem) e outro personagem humano presente na
história mundial como Faraó. Os dados revelaram uma
abordagem diferente nos livros didáticos desse modelo
em relação às religiões de matriz africana. Em alguns
selos são demonstradas ilustrações com rituais des-
ses segmentos religiosos. Também, verificou-se que
as mesmas estão circunscritas a espaços limitados e
muitas vezes a ilustração desses rituais não está asso-
ciada aos textos.
Nesse modelo os personagens negros descritos em for-
ma de divindades são Xangô, Oxossi, Oxalá, Oxumaré
que foram apresentadas em textos diferentes, de selos
distintos. Em uma das unidades analisada, houve uma
reflexão sobre os conflitos entre ciência e religião. O
conto relatava sobre Ossaim, o orixá detentor da sabe-
doria das folhas e ervas miraculosas. Vale salientar que
para ilustrar a discussão sobre ciência e religião houve
menção nesse caso, de uma divindade de religião de
matriz africana. Num segundo selo observou–se uma
unidade todo dedicado às festas dos orixás Xangô,
Oxalá, Oxossi, descrevendo as comidas dos orixás e
algumas passagens dos rituais festivos do Candomblé.
Em ambos os casos, os selos citam essas manifesta-
ções religiosas, mas não fazem menção às doutrinas,
ensinamentos, diferentemente das unidades que retra-
tam o cristianismo: uma vez que quando tratam deste
assumem cunho catequético; compondo os textos com
atividades com consultas e pesquisas na Bíblia.
Com relação às religiões prestigiadas nos textos, os se-
los Confessionais e Interconfessionais sequer mencio-
naram elementos das religiões de matriz africana. Os

206 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
selos que fazem menção a ela são selos recentes e
datados na década de 2000 e seguem a orientação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) que apre-
sentam como um dos eixos transversais, o tema da
Pluralidade Cultural. Essa constatação trazendo à bai-
la a necessidade de se levar em conta esta dimensão
no cotidiano escolar para contemplar o que diz a Leis
de Diretriz e base da Educação/LDB quando estabele-
ce uma nova concepção para o Ensino Religioso, cujo
foco deixa de ser teológico para assumir um perfil pe-
dagógico de releitura das questões religiosas da socie-
dade. Nos selos analisados do modelo fenomenológico
foi possível perceber uma preocupação dos autores em
conjugar as ciências humanas com a fenomenologia re-
ligiosa e a antropologia religiosa.
De acordo com Piza (1998) isso é uma característica
dos pensadores pós-modernos que se inspiram na fe-
nomenologia heideggariana, cuja filosofia do Ser pro-
cura compreender a existência humana na dimensão
fenomênica “(as formas de aparecimento, permanência
e desaparecimento) dedicando muito pouco espaço à
experiência humana, diferenciada nas sociedades, cul-
turas e tempos históricos, embora se refira à trama so-
cial onde o ser está mergulhado” (PIZA, 1998, p.72).
Uma das considerações que deve ser levada em conta
ao analisar teoricamente esses assuntos, é que os au-
tores abordam, nas suas temáticas, ao relatar as ma-
nifestações religiosas na perspectiva da existência, a
forma que é dada ao ser humano comum e universal a
todos e, a experiência, que não varia intensamente não
pode ser tomada como universal (VARIKAS, 1989 apud
PIZA, 1998).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
207
No final da década de 1987, o primeiro estudo que
identificamos sobre relações raciais em manuais ca-
tequéticos apresentava uma análise crítica ao discur-
so racista que esses manuais ilustravam ao colocar a
criança negra em situação de inferioridade em relação
às crianças brancas. O artigo de Triumpho (1987), já ci-
tado anteriormente, foi inspirador, porque, já passados
20 anos de todas as reivindicações e mobilizações dos
movimentos negros sobre os discursos de brancos e
negros em livros didáticos, podem ser analisados os li-
vros da nossa amostra sobre o modelo Confessional,
Interconfessional e Fenomenológico.
É importante ressaltar que da amostra analisada 4 dos
20 livros são posteriores ao artigo de Triumpho (1987)
e do III Encontro de Agentes de Pastoral Negros, rea-
lizados em abril de 1984 em São Paulo, que propôs
reflexão sobre a presença dos negros nos livros didá-
ticos. O encontro contou com a presença de represen-
tes de algumas editoras3 que participaram de um painel
sobre “O negro e a Educação” (TRIUMPHO, 1987, p.
95). Segundo a pesquisadora, as discussões foram po-
lêmicas, entretanto “hoje, essas editoras já modificaram
parcialmente sua postura e, às vezes, até solicitaram
nossa assessoria para uma análise crítica do que será
editado” (TRIUMPHO, 1987, p. 95). Na constituição da
amostragem, em específico nos 16 livros do modelo in-
terconfessional e fenomenológico, pode-se observar os
indicativos dessas modificações e assinalar a perma-
nência ou a superação de discursos racistas apontados
pela pesquisadora.

3 Triumpho (1987) não cita no seu artigo quais foram as editoras presentes neste encon-
tro.

208 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Nos 5 primeiros selos, que datam de 1983 a 2002 e cor-
respondem ao modelo Confessional, os negros prati-
camente não existiram enquanto personagem, reiteran-
do resultados de outras pesquisas (como TRIUMPHO,
1987; OLIVEIRA, 2000; SILVA, 2005) e a omissão do
personagem negro no contexto sociocultural brasileiro
(SILVA, 2005, p. 14). A negação da população negra
que Triumpho (1987) ressalta na sua pesquisa é trans-
portada para os “livros didáticos, justamente por ser o
pensamento da sociedade dominante” (p .93). O silên-
cio em relação a este grupo étnico quando refletirmos a
distribuição por cor-etnia nesse modelo e cruzamos os
dados que cada categoria nos fornece, mostra o perso-
nagem branco muito mais frequente nos textos e nas
ilustrações, representados na maioria das posições de
destaque (SILVA, 2005).
Na Tabela 1 os resultados dos livros dos três períodos,
Confessional, Interconfessional e Fenomenológico, fo-
ram dispostos de forma desagregada. Os indicadores
dispostos nessa tabela revelaram no modelo Confes-
sional e Interconfessional, uma diferença pequena ou
inexistente. Por exemplo, nesses dois modelos os per-
sonagens de natureza religiosa negros não existiram;
os livros didáticos publicados nesses dois modelos
não fizeram referências às religiões de matriz africana
nem mesmo de elementos que as caracterizam. Já no
modelo fenomenológico os indicadores apresentaram
mudanças. Apareceram 7(50,6%) personagens negros
de natureza religiosa nos selos analisados. Os perso-
nagens citados no texto, divindades religiosas das reli-
giões de matriz africana, por exemplo os orixás citados
no quadro 10, representados na ilustração por pessoas.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
209
Na categoria sexo, os índices de personagens negros
novamente nos modelos Confessional e Interconfes-
sional são muito baixos. No período confessional não
observamos ocorrência de qualquer personagem femi-
nina, negra. O índice de personagens femininas negras
no modelo Interconfessional foi 2 (50%) e no modelo
Fenomenológico 3 (21,1%), sendo que tal proporção
de personagens negras foi muito superior à de perso-
nagens femininas brancas, 12,8%. Importante salientar
que a maior frequência de personagens negras nesses
dois períodos não amenizou a estereotipia presente,
principalmente, no modelo Interconfessional que incor-
porou uma linha de conteúdos cristãos. Já no modelo
fenomenológico essas estereotipias não se apresen-
tam; as personagens são descritas e os selos apre-
sentam uma linha de conteúdos que se orientam pelo
conhecimento do conjunto de normas de cada tradição
religiosa e o contexto da respectiva cultura, buscando
estar em acordo com a proposta pedagógica desse mo-
delo de “sensibilizar o educando para a força e a beleza
da diversidade do fenômeno religioso”.
No que se refere à idade, observa-se a não existên-
cia de qualquer personagem negro/a ao passo que os
personagens infantojuvenis brancos foram diminutos
em número e em percentual nos três modelos, 3,4%
no Confessional, 6,9% no Interconfessional e 1,1% no
fenomenológico.
Os negros passam a ser mais frequentes no modelo fe-
nomenológico, mas a sub-representação praticamente
se manteve, em função do aumento significativo de per-
sonagens brancos que somam 94. Calculadas as taxas
de branquidade (razão entre personagens brancos/ e

210 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Tabela 1. Atributos de personagens brancos e negros presentes em
amostra de 467 unidades de leitura, por modelos confessionais, inter-
confessional e fenomenológico e por cor.
Modelo Modelo Modelo
Atributos Confessional Interconfessional Fenomenológico
Cor-etnia Cor-etnia Cor-etnia
Brancos Negros Brancos Negros Brancos Negros
(N = 29) (N =1) (N =29 ) (N = 4) (N =94 ) (N =14 )
N (%) N (%) N (%) N (%) N (%) N (%)
Humana 27 (93,3) 1 (100) 23 (79,3) 4 (100) 85 (90,4) 6 (42,3)
Natureza
Religiosa 2 (6,9) 0 (0,0) 4 (13,8) 0 (0,0) 7 (7,4) 7 (50,6)
Individua- Indivíduo 29 (100) 1 (100) 29 (100) 4 (100) 92 (97,9) 14 (100)
lidade Multidão 0 (0,0) 0 (0,0) 0 (0,0) 0 (0,0) 2 (2,1) 0 (0,0)
Masculino 27 (93,1) 1 (100) 25 (86,2) 2 (50) 80 (85,1) 11(78,9)
Sexo
Feminino 2 (6.9) 0 (0,0) 4 (13,8) 2 (50) 13 (13,8) 3 (21,1)
Adultos 28 (96,6) 1 (100) 25 (86,2) 4 (100) 92 (98,9) 14 (100)
Idade
Crianças 1 (3,4) 0 (0,0) 2 (6,9) 0 (0,0) 1 (1,1) 0(0,0)

FONTE: Nascimento (2009).

negros/as) houve uma redução em relação aos dois pri-


meiros modelos: 29 no modelo confessional, no modelo
interconfessional 7,25 e no fenomenológico a taxa de
branquidade foi 6,7, ou seja, a desproporção foi enorme
no modelo confessional e em escala bem menor nos
dois últimos modelos, mesmo assim muito significativa.
No período de 1992 a 1998 correspondente ao mode-
lo Interconfessional a ação de movimentos negros irão
exercer, a partir da década de 1990, uma preocupação
explícita e uma reivindicação de que “a inclusão de no-
vas orientações escolares privilegiam a História dos
afro-brasileiros e africanos, além de ser a concretização
de uma política pública há muito almejada, é também a
oportunidade de refletirmos sobre a naturalização das
desigualdades e oportunidades para trabalharmos as-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
211
pectos ainda pouco conhecidos da história de uma po-
pulação que desconhece sua própria história” (SILVA,
2007, p. 14). No entanto, o impacto nos livros didáticos
de Ensino Religiosos parece ter sido relativamente pe-
queno nesse modelo, sendo mais perceptível no poste-
rior, o Fenomenológico.
No modelo Interconfessional verificamos os mesmos
estereótipos e preconceitos que a pesquisadora Ro-
semberg (1985) constatou na sua amostra de literatura
infantojuvenil. Os personagens brancos, considerados
pela pesquisadora “os mais dignos”, também aparecem
em nossa amostra, o que vem validar as observações
feitas em seu estudo. Rosemberg (1985) verificou na
sua pesquisa que as personagens negras “eram apre-
sentadas, nas ilustrações, em traços estereotipados:
gordas, lábios avantajados, lenço na cabeça, avental”
(ROSEMBERG, 1985). Já no período de vigência da
nossa amostragem de 2001 a 2007 temos no mode-
lo fenomenológico uma mudança nesse cenário. Nos
selos pesquisados, em particular na análise qualitativa,
quando os livros foram lidos na integra, os personagens
negros figuram com mais frequência em situações fa-
voráveis e foram observados em ilustrações que os re-
forçam positivamente. No selo “Todos os jeitos de crer”
e no capítulo 15, intitulado “Todos somos iguais” há
subtemas que falam sobre o povo escravizado, como
surge um líder, a luta pela não violência nos quais, os
personagens ilustrados veem figurar e exemplificar os
temas. Alguns estereótipos e temáticas se mantêm.
Por um lado, temos personagens que vêm à baila para
dar subsídios e reforço positivo a ideias e fatos como
a resistência do povo negro a escravidão. Por outro,

212 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
os selos ainda estão presos a personagens importan-
tes e históricos como Zumbi e Martin Luther King. Ne-
gam informações valiosas no sentido de oferecer aos
estudantes negros a chance de reconhecimento e per-
tencimento cultural e racial positivos que poderiam ser
representados nos selos por personalidades negras
contemporâneas, pelos movimentos negros e pela Lei
10.639 que dispõe sobre ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira.
Ao analisar os indicadores de importância dos persona-
gens nos três modelos nos quais estamos realizando
a comparação de cor-etnia (tabela 2), verificamos que
os personagens que tiveram menção no texto por se-
rem nomeados ou por serem narradores do texto ou,
ainda, terem suas falas relatadas por outro narrador e
personagens que contribuem de maneira positiva para
o texto ou apresentando-se com neutralidade mas que,
em ambos os modelos, tanto no Confessional, Intercon-
fessional e fenomenológico praticamente não existiram.
No primeiro modelo os personagens negros tenderam
de 0 a 1 % no total em todas as categorias. Nesse caso
específico o modelo Confessional para esses indica-
dores destacou o que Triumpho (1987) ressalta sobre
a predominância de perspectiva eurocêntrica e a não
abordagem das culturas africanas nos livros didáticos.
No segundo modelo, o Interconfessional, houve um
aumento da representatividade, mas ainda ficando per-
centualmente muito inferior aos personagens brancos.
Calculando a taxa de branquidade temos para cada
personagem negro que recebe um nome nos textos,
9,3 brancos. Nos personagens vivos em toda história
7,3. Portanto nesse modelo, observa-se a presença de

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
213
personagens negros, mas as relações de desigualdade
entre brancos e negros continuou acentuada. No mo-
delo fenomenológico os personagens negros vivos em
toda a história apresentam uma taxa de branquidade
em torno de 6,5 inferior ao do modelo anterior, mas com
um número de personagens brancos 92 (97,9%) bem
superior aos personagens negros 4 (28,9%).

Tabela 2. Indicadores de importância dos modelos confessional,


interconfessional e fenomenológico de personagens brancos e negros
presentes em amostra de 467 unidades de leitura.
Modelo Modelo Modelo
Confessional Interconfessional Fenomenológico
Indicadores de Cor-etnia Cor-etnia Cor-etnia
Importância
Brancos Negros Brancos Negros Brancos Negros
(N =29 ) (N =1 ) (N =29 ) (N = 4 ) (N =94 ) (N = 14)
N (%) N (%) N (%) N (%) N (%) N (%)
Recebe um
Nome 27(93,1) 1 (100) 29 (100) 4 (100) 92 (97,9) 14 (100)
nome
Personagem
Vida e
vivo em toda 20 (69,0) 0 (0,0) 11 (37,9) 3 (75,0) 63 (67,0) 4 (28,9)
Morte
história
Personagem
Diálogo 15 (51,7) 0 (0.0) 6 (20,7) 2 (50) 1 (1,1) 0 (0,0)
fala
Valor do
Positivo ou
Persona- 29 (100) 1 (100) 28 (96,6) 4 (100) 90 (95,7) 14 (100)
neutro
gem
FONTE: Nascimento (2009).

Esses resultados comparativos dos personagens nas


unidades de leitura, tanto nos modelos Confessional e
Interconfessional quanto no Fenomenológico, mostram
que os livros didáticos organizam os seus conteúdos,
não permitindo a visibilidade dos personagens negros
e dos leitores negros enquanto sujeito do processo his-
tórico. Nossos resultados apresentam particularidades,
mas as tendências gerais na perspectiva racial, seguem
tendência similar à de outros estudos (ROSEMBERG,

214 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
1985; TRIUMPHO, 1987; BAZILLI, 1999; SILVA, 2005)
em que os personagens negros continuam sub-repre-
sentados, ocupando posição de menor destaque, con-
finamento da população negra a determinadas temá-
ticas, como escravidão, apartheid, servidão e, mesmo
no modelo fenomenológico o aumento de personagens
negros está circunscritos as religiões de matriz africana.
Isso muitas vezes, reafirmando o lugar social e negan-
do a sua identidade enquanto grupo se comparadas às
de personagens brancos; além de representados, mui-
tas vezes, de forma estereotipa (ESCANFELLA, 2006).
Foram analisados também os personagens negros e
brancos nas ilustrações que acompanharam os textos
de leitura. Repetiu-se nas ilustrações também a hege-
monia de personagens de natureza humana e ao passo
que em todos os modelos figuram alguns personagens
brancos religiosos, porém inexistem personagens ne-
gros religiosos nas ilustrações dos modelos Confessio-
nal e Interconfessional. Ou seja, somente no modelo
Fenomenológico o personagem negro religioso passa
a existir nas ilustrações. Neste modelo observou-se um
caso de contradiscurso relativo à norma branca de hu-
manidade, visto que, nas ilustrações, ocorreu uma pro-
porção de personagens negros infantis superior ao de
personagens brancos infantis.
Parece que as ilustrações têm apresentado resultados
mais expressivos nessa direção de atender a deman-
das sociais e a normativas relativas à diversidade. Por
um lado, podemos interpretar como salutar o fato das
ilustrações apresentarem resultados melhores. A partir
da análise das formas de produção dos livros didáticos,
podem ser resultados de equipes de arte e de ilustração

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
215
mais atentas às demandas sociais e à diversidade. Por
outro lado, as ilustrações com maior diversidade podem
operar como expressão do modo de atuação ideológica
da dissimulação, com a estratégia ideológica de deslo-
camento, contribuindo para obscurecer os discursos ra-
cistas, sexistas e adultocênticos presentes nos textos.
Além disso, as ilustrações guardam resquícios de uma
“midiação do sofrimento”, que Silva (2007) descreve,
em retratar a criança negra em situação de exploração,
de trabalho e pobreza. Em nossa análise qualitativa,
identificamos ilustrações que relacionaram a infância
a “problemas sociais” e, da mesma forma que Silva
(2007) descreve, a infância tem cor e origem. Essa cor
é representada tanto nos textos como nas ilustrações
da amostragem nessa pesquisa, associadas a figura
da criança negra e pobre. As ilustrações, muitas vezes,
operam como formas complementares aos textos de
comunicar determinados sentidos como atribuições de
juízo de valor levando à possíveis formas de interpre-
tação (SILVA, p. 16, 2007). No caso específico, as ima-
gens que se repetem de crianças negras em condições
de pobreza, sofrimento, desvalorização social, necessi-
dade de assistência, por um lado, podem operar como
mote para críticas sociais; por outro, circunscrevem um
espaço social específico para o negro, o espaço da mi-
séria, da subalternidade e da necessidade de assistên-
cia social ou de caridade. Seria expressão do modo de
operação da ideologia da fragmentação, da segmenta-
ção de grupos sociais em espaço de poder específico.
Ao observar que os personagens negros virtualmente
não existiam nos livros dos modelos Confessional e
Interconfessional, eles passam a existir nos discursos

216 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
dos livros do modelo Fenomenológico, mas sua entra-
da é particularmente, em certas situações de subalter-
nidade, principalmente para mulheres e crianças. As
tendências dos livros publicados, mesmo após a déca-
da de 1990 e já na década de 2000, é manter os perso-
nagens negros confinados a determinadas temáticas,
limitando as posições sociais do negro às situações de
desvalorização social, em especial crianças negras cir-
cunscritas à situação de miséria. Observou-se tendên-
cia a naturalizar a criança negra como em situação de
miséria, operando para manter a subalternidade.
Em síntese, as ilustrações dos livros didáticos de Ensi-
no Religioso estudados apresentam, no modelo Feno-
menológico, alguns aspectos de valorização do negro.
No entanto, apresentam também algumas formas dis-
cursivas que podemos qualificar de “discurso racista”,
pois operam de forma a produzir e reproduzir a hierar-
quia racial entre brancos e negros. Ocorreram modifica-
ções nas ilustrações do negro, mas o discurso racista
não deixou de existir, tomou outros formatos.

Considerações finais

Nestes trinta anos de produção (1977 a 2007), os se-


los didáticos de Ensino Religioso apresentaram avan-
ços e permanências no que se refere a relações entre
brancos e negros. Ao longo de todo esse período de
mobilização e sensibilização junto às editoras. Essas,
por sua vez, em certa medida, buscaram responder às

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
217
reivindicações dos movimentos sociais negros e aos
pesquisadores sobre a produção e a veiculação de dis-
cursos racistas.
A movimentação em torno do tema foi particularmen-
te importante a partir do final dos anos 1980, com a
constituinte e a Constituição de 1988, o Centenário da
Abolição em 1988, em 1994 a Marcha Zumbi Contra o
Racismo, pela Cidadania e Vida, a estruturação do Pro-
grama Nacional do Livro didático/PNLD, o processo de
avaliação do Livro didático iniciado em 1996, a discus-
são e aprovação, em 1996, da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, as avaliações promovidas pelo
Ministério da Educação/MEC. Relacionado a toda essa
movimentação o tema racismo em livros didáticos man-
teve-se na agenda das discussões. O feito influenciou
para que os editores de livros didáticos mudassem sua
aparência, seu layout e assimilassem determinados
avanços pedagógicos no combate às manifestações de
racismo explícito e implícito nos livros didáticos.
O problema de pesquisa sobre discursos ideológicos
remete, nessa dissertação, à perspectiva de Thompson
(1995) sobre ideologia e suas proposições sobre estra-
tégias ideológicas (que a pesquisa buscou apreender
na análise formal) e os modos gerais de operação da
ideologia.
No modelo Confessional, observaram-se publicações
que negaram a existência de negros no conjunto da
sociedade brasileira. Os livros didáticos de Ensino Re-
ligioso faziam referência a grupos humanos e as suas
respectivas religiões, mas os personagens negros ana-
lisados, no modelo Confessional, foram submetidos,
principalmente, ao modo de operação ideológica de

218 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
dissimulação que ocultava, a existência social desse
grupo étnico e apresentava um silêncio em torno de
sua participação na sociedade brasileira. Além disso,
a presença do branco como representante natural da
espécie, a “branquidade normativa”, que expressa a
estratégia ideológica de naturalização (umas das estra-
tégias do modo de operação reificação) esteve muito
presente nos discursos das obras desse modelo. No
modelo Interconfessional, vistos os quatro persona-
gens negros identificados na amostra (quadro 10), as
principais estratégias ideológicas identificadas foram
a diferenciação e a estigmatização. Além disso, ob-
servamos que nos selos publicados e classificados do
modelo Interconfessional, em seu conteúdo as formas
simbólicas atuaram de forma a naturalizar os persona-
gens brancos como representantes da espécie e como
interlocutores em potencial dos textos.
O modo de operação denominado por Thompson (1995)
como fragmentação esteve presente em todos os selos
analisados, nos três modelos, sendo mais acentuando
no modelo Fenomenológico. Os livros didáticos desse
modelo apresentaram alterações na representação fic-
cional de personagens negros, com modificações sig-
nificativas em relação aos dois outros modelos, porém,
não escapou de apresentar esse modo de operação
ideológica. Os livros didáticos pesquisados nos três
modelos, ainda atuam no sentido de diferenciação ou
estigmatização dos personagens negros, estabelecen-
do e difundindo sentidos que dificultam a possibilidade
do negro brasileiro de assumir posição de exercício de
poder. Os textos e as ilustrações, muitas vezes, procu-
ram personificar os negros em representações de ex-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
219
pressiva subordinação aos personagens brancos. Os
livros mais recentes valorizaram aspectos fenotípicos
de personagens negros, como no caso do modelo Fe-
nomenológico, mas, permanecem formas de hierarquia
racial e a sub-representação em relação aos persona-
gens brancos.
O modelo Fenomenológico provocou, nesse trabalho,
uma série de indagações sobre a presença e o au-
mento de personagens negros nos selos publicados.
As mudanças observadas resultaram, por exemplo, na
presença de religiões de matriz africana, de mães de
santo, de contos fazendo referência aos Orixás. Esse
fato é muito significativo para os anseios e desejos dos
movimentos negros e de pesquisadores que há muito
tempo refletem as desigualdades raciais no Brasil e a
ausência de personagens negros nos livros didáticos.
Essas mudanças são importantes e significativas e res-
pondem às lutas e reivindicações de outrora e atuais.
Os livros Didáticos do final da década 1990 e início da
década seguinte dão espaços em suas páginas às re-
ligiões de matriz africana, modificaram seu discurso
racista. No entanto, a análise qualitativa e quantitativa
aponta que as modificações nas estruturas simbólicas
das publicações foram limitadas. Dentro das unidades
de leitura dos livros didáticos analisados, prevalecem
enquanto legítimos, os discursos cristãos, tendo mais
representatividade e espaços de conexão entre as te-
máticas abordadas e a realidade do seu público leitor:
os brancos. A análise captou uma preocupação em abrir
espaço para a presença das religiões de matriz africana.
Mas estabeleceu esse espaço como o único do negro
e os espaços hegemônicos, das religiões cristãs, como

220 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
exclusivo para brancos. Interpretamos que tais forma-
tos atuam na correlação entre o modo de operação
ideológica da unificação, construção de uma identidade
coletiva tendencialmente cristã, branca e europeia, que
seria a superior e desejável, complementar ao modo de
operação ideológica da fragmentação, a segmentação
em relação às religiões de matrizes africanas, negras,
construídas discursivamente como o “outro”.

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Ra o, u o E u a o: t at a ol a
223
NEAB
Capítulo 7
A DIFERENÇA BANALIZADA: DISCURSOS
DE INCLUSÃO DO NEGRO EM LIVROS
DIDÁTICOS DE GEOGRAFIA
Wellington
o, Oliveira
u o E u dos
a o: Santos
Ra t at a ol a
225
Capítulo 7

A diferença banalizada: discursos de inclusão


do negro em livros didáticos de Geografia1

Wellington Oliveira dos Santos2

Introdução

Neste texto, analisamos o modo como os personagens


negros/as3 são incluídos em livros didáticos brasileiros,
a partir da análise de personagens negros e brancos
presentes em ilustrações de livros didáticos de Geografia
para o 2º ano do ensino fundamental recomendados
pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de
2010. Argumentamos que essa inclusão pode, em certos
casos, contribuir para a estigmatização e racialização
do negro no Brasil, quando ocorre de forma banalizada.
Os critérios de combate ao racismo e promoção da igual-
dade racial nos livros didáticos resultam de pressões
feitas pelos pesquisadores e de movimentos sociais
negros para mudanças na forma como a população ne-
gra brasileira vem sendo tratada pela educação e pelo

1 Versão reduzida deste texto foi apresentada no IV CIEP em 2012.


2 Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) na linha de
Políticas Educacionais. Possui graduação em Psicologia (2009) e mestrado em Educação
pela UFPR (2012). Professor de Psicologia da Educação; Educação e Relações Étnico-
-Raciais nos cursos de Extensão e Especialização em Educação das Relações Étnico-Ra-
ciais oferecidos pelo NEAB-UFPR
3 A partir deste ponto utilizamos o genérico masculino.

226 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
currículo. Nesse sentido, o movimento negro tem feito
pressões junto ao Estado para que aprove medidas que
modifiquem a apresentação de negros nos currículos e
materiais didáticos. A alteração feita na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei 10.639/2003,
que inclui o ensino de História e Cultura Afro-brasileira
no currículo do ensino básico, foi um primeiro passo
para essa modificação. Tanto é que ela teve desdo-
bramentos na política dos livros didáticos brasileiros: a
partir do edital do PNLD de 2005, ficou estabelecido
que os livros didáticos também devem observar a Lei
10.639/2003 (PAIXÃO; CARVANO; ROSSETTO; MON-
TOVANELE, 2010). Santos (2010) destaca que após o
momento de conquista, por parte dos movimentos ne-
gros, a Lei 10.639/2003 torna-se um instrumento para
o fortalecimento da luta do movimento no campo edu-
cacional “[...] e isto lhe coloca novas pautas: articulação
e capacitação de secretarias, escolas e professores,
produção de materiais de referência, pesquisa e produ-
ção de conhecimento, revisões de currículos, advocacy
frente ao não cumprimento da lei, entre tantas outras”
(SANTOS, 2010, p. 142).
Consideramos que a análise da presença de negros e
brancos entre os personagens das ilustrações dos li-
vros didáticos é importante para destacarmos o quanto
os critérios dos editais dos livros didáticos, como defi-
nidos pelo Ministério da Educação (MEC), conseguem
garantir que parte da diversidade étnico-racial brasilei-
ra esteja presente nos livros didáticos. O texto busca
avaliar, então, o resultado de uma política educacional
que busca garantir diversidade étnico-racial em livros
didáticos de Geografia.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
227
Tomamos os livros didáticos como formas simbólicas
capazes de atuar, em contextos sócio-históricos es-
pecíficos, de maneira a criar ou sustentar relações de
dominação, conforme a proposta de John Thompson
(1995). O autor apresenta alguns modos gerais de ope-
ração da ideologia; modos como o sentido pode servir
para estabelecer e sustentar relações de dominação
em contextos sócio-históricos específicos. A análise
desses modos gerais e estratégias é a forma de reinter-
pretar a ideologia operada neste estudo.
Neste texto, voltamos o foco para um modo de opera-
ção da ideologia sugerido por Guareschi (2000). Quan-
do analisa o discurso de um programa televisivo que
utiliza o humor para falar de política e de problemas
da sociedade brasileira, Guareschi (2000) sugere que
o discurso pode atuar de maneira ideológica quando
banaliza a importância de determinados temas que são
relevantes para os grupos dominados, induzindo à con-
formação. Esse modo geral pode atuar de acordo com
três estratégias típicas: divertimento, que é o desvio,
por meio do cômico, da atenção das relações de do-
minação para questões triviais ou ridículas; fait-divers,
que é uma forma de lidar com o assunto de maneira
sensacionalista, exagerando seu valor emocional e
desviando o foco de atenção; e a ironia, que é o dizer o
contrário do que se pensa, de maneira intencional, com
uma lacuna entre o explícito (o que se diz) e o implícito
(o que se quer dizer). O que sugerimos é que a propos-
ta inicial de banalização como modo geral de ideologia
também pode ser aplicada quando o discurso atua de
modo a tratar a diferença racial como uma diferença
equivalente a diferenças construídas de maneira sócio-

228 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
-historicamente distintas, desconsiderando as relações
de poder existentes entre os diferentes grupos raciais
no Brasil, ao mesmo tempo em que a presença negra
é explicitamente inferior à presença de personagens
brancos nos livros didáticos.

1. Racismo em livros didáticos

Consideramos os livros didáticos formas simbólicas


que podem ser relacionadas a outras, tais como a lite-
ratura, mas não deixamos de lado suas particularida-
des. Entre elas damos destaque ao discurso de ciência/
verdade que acompanha esses livros; discurso esse
que também resulta da concepção dos livros didáticos
como manuais de ensino de disciplinas aos estudantes.
Como argumenta Apple (1995) o livro didático frequen-
temente define a cultura legítima4 a ser transmitida, es-
tabelecendo grande parte das condições de ensino e
aprendizagem em muitos países. Por essa razão ele
é objeto de estudo e reflexão de pesquisadores, movi-
mentos sociais e do próprio Estado no que se refere ao
combate a desigualdades socialmente construídas.
A permanência das desigualdades entre negros e bran-
cos no Brasil costuma ser justificada como consequência
direta da escravidão. Silva (2005) diz que tal argumen-
to desconsidera as oportunidades de ascensão social

4 A cultura que tende a ser considerada a legítima é aquela dos grupos dominantes. De
acordo com Apple (1995, p. 84): “[...] a escolha de conteúdos particulares e das formas
como devem ser abordados na escola está relacionada tanto com as relações de domina-
ção existentes quanto com as lutas para alterar essas relações”.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
229
após a abolição (ou mesmo antes, pois a maior parte
dos negros já era livre antes da Lei Áurea) e ao racis-
mo dirigido aos negros. Santos (1984) afirma que culpar
a escravidão pelo fracasso dos negros em competir na
sociedade moderna desvia a atenção do que mantém
as desigualdades atuais, apontando para um passado
que não pode ser alterado. Parte das desigualdades
existentes é consequência de práticas sociais que pri-
vilegiam o grupo branco, desprezando a existência do
negro (e do indígena) na sociedade brasileira.
O racismo no Brasil é interpretado, neste texto, como
baseado principalmente nos traços físicos das pes-
soas, como cor de pele, formato do nariz, textura do ca-
belo. Tal racismo pode ser considerado um racismo de
status, que privilegia os traços brancos em detrimento
dos traços negros (GUIMARÃES, 1997), ainda que em
determinadas esferas da sociedade negros e brancos
convivam em igualdade, o que indica que as relações
entre grupos raciais no Brasil podem ocorrer de ma-
neiras horizontais (sem hierarquias) ou verticais (com
hierarquias) (TELLES, 2003). As relações verticais ten-
dem a considerar os traços físicos como marcadores de
privilégios, e no racismo brasileiro, os traços físicos são
usados para competir por bens matérias e simbólicos,
ou seja, o racismo tende a se manifestar abertamente
em espaços de competição (SANTOS, 1984).
No discurso brasileiro, a tendência sócio-historicamen-
te construída a um tratamento desigual de negros e
negras estabelece espaços distintos de apresentação
desses personagens na mídia. Em revisão de literatu-
ra sobre racismo em livros didáticos e seu combate no
Brasil, nas cinco últimas décadas do século XX, Ro-

230 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
semberg, Bazilli e Silva (2003) constataram que os re-
sultados dos estudos com livros didáticos, que tiveram
como marco o estudo de Dante Moreira Leite nos anos
de 1950 (LEITE, 2008), já captavam a manifestação de
formas de preconceito racial não explicitadas, como a
não apresentação do negro na sociedade e/ou sua re-
presentação em situação socialmente inferior5.
Nos anos de 1970 e 1980, as pesquisas, no geral, in-
dicavam: a naturalização e universalização da condi-
ção de ser branco, pois sua condição racial geralmen-
te não era explicitada e aparecia com mais frequência
nas capas dos livros; a sub-representação de negros
(e indígenas) em textos e ilustrações; negros, adultos
e crianças, como coadjuvantes – associação à subal-
ternidade; sub-representação de alunos e professores
negros; e associação do negro à animalidade (ROSEM-
BERG; BAZILLI; SILVA, 2003).
As produções mais recentes (décadas de 1980 e 1990)
apontavam algumas mudanças, como maior humani-
zação da criança negra; ausência de associação entre
o negro e animais negros; destaque maior nas ilustra-
ções; e maior diversificação de contextos sociais, fami-
liares e profissionais na representação de negros, além
de valoração positiva de traços físicos (ROSEMBERG;
BAZILLI; SILVA, 2003). Os pesquisadores apontam a
presença de discursos igualitaristas nos livros que con-
viviam com representações discriminatórias de perso-
nagens. Ou seja, ao mesmo tempo em que o tratamento
igualitário é evocado pelos livros didáticos, apoiando-se

5 Leite (2008 [original 1950]) destacou que os/as negros/as apareciam somente em situa-
ções subalternas, como empregados. Ele afirmou que “[...] a maneira de ver a posição das
raças [inferiores e superiores] se traduz pelo lugar destinado aos negros no mundo social”
(LEITE, 2008 [1950], p. 220, destaque no original).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
231
na mestiçagem da população brasileira, personagens
negros continuam a ocupar menos posições de des-
taque, sendo, portanto, tratados de maneira desigual;
personagens brancos ainda tendem a ser usados como
referência de humanidade (o próprio público leitor su-
posto tende a ser branco); a Europa ainda é tomada
como referência de civilização e humanidade.
No caso dos livros didáticos de Geografia, de acordo
com Tonini (2001), precisamos atentar para o fato de
que eles assumem discursos de verdade, de ciência,
sobre etnias e continentes. De acordo com Carvalho
(2008), os estudantes negros sentem incomodo com a
constante presença de negros em fotografias nos livros
didáticos em situações de miséria, tais como morando
debaixo de viadutos e mendigando. Na sua pesquisa,
os estudantes também relataram que percebem quando
os professores valorizam a aparência de determinados
estudantes (via de regra com traços da raça branca) em
detrimento de outros; e quando alguns estudantes co-
meçam a fazer piadas de mau gosto durante as aulas,
no momento em que os professores começam a falar
da África (CARVALHO, 2008).
Discutindo o ensino de Geografia e as relações raciais
no Brasil, Anjos (2005) destaca dois pontos que contri-
buem para a inferiorização da população negra:

Primeiro, são os livros didáticos que igno-


ram o negro brasileiro e o povo africano
como agentes ativos da formação territorial
e histórica. Em seguida, a escola tem fun-
cionado como uma espécie de segregado-
ra informal. A ideologia subjacente a essa
prática de ocultação e distorção das comu-

232 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
nidades afrodescendentes e seus valores
tem como objetivo não oferecer modelos re-
levantes que ajudem a construir uma auto-
imagem positiva, nem dar referência a sua
verdadeira territorialidade e sua história,
aqui e sobretudo na África (ANJOS, 2005,
p. 175).

O silêncio acerca da participação histórica da popula-


ção negra brasileira e a segregação do negro na edu-
cação de que o autor fala pode ser relacionado ao mal-
-estar que foi relatado pelos estudantes na pesquisa
de Carvalho (2008): pouco era dito nos livros didáticos
quanto à participação de sujeitos de sua cor/raça na
construção do país, o que lhes deixava poucos mode-
los de identificação além dos que eram apresentados
em situações socialmente inferiores. Situações como
essa, denunciadas por pesquisadores e pelo movimen-
to negro, levaram o Estado a adotar avaliações mais
criteriosas no seu PNLD quanto à participação dos gru-
pos racializados (negros e indígenas) (SILVA, 2005).

2. Metodologia

Trabalhamos com uma população de 22 coleções


de livros didáticos de Geografia; as 22 aprovadas no
PNLD/2010. Selecionamos os livros de Geografia de
2º ano do ensino fundamental para compor a amostra.
Optamos por livros de 2º ano do ensino fundamental
por três razões: 1) são os primeiros livros da discipli-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
233
na de Geografia que os estudantes recebem no ensino
fundamental de nove anos, ou seja, é o primeiro con-
tato que os estudantes têm com as coleções; 2) nas
escolas que visitamos para compor a amostra de livros,
notamos que a maior parte dos livros enviados pelas
editoras como amostra das coleções aos professores
eram livros de 2º ano (as poucas exceções eram livros
de 3º e 4º ano); 3) o edital de 2010 para as coleções de
Geografia aponta que os livros de 2º ano são dedicados
à introdução dos conceitos básicos e elementares do
componente curricular. Ainda que as questões relativas
ao conteúdo dos livros não sejam objeto de análise de
nossa pesquisa, interessa saber que personagens são
utilizados para apresentar esse conteúdo.
Utilizamos procedimentos de análise de conteúdo (BAR-
DIN, 1985) para análise preliminar das ilustrações. Bar-
din (1985) apresenta três fases distintas da análise de
conteúdo. A primeira, a pré-análise, em nossa pesqui-
sa consistiu no momento em que entramos em contato
com os livros didáticos de Geografia de cada coleção,
fazendo uma leitura flutuante, iniciando a formulação
de hipóteses, objetivos e melhor maneira de preparar
o material para o tratamento. Na segunda fase, de ex-
ploração do material em codificação com regras prees-
tabelecidas, buscamos transformar os dados brutos em
unidades de análise. Criamos, com o auxílio do progra-
ma computacional Excel, para Windows XP, planilhas
de frequência. Na terceira fase, fizemos o tratamento
dos resultados obtidos com o auxílio do programa com-
putacional Statistical Package for Social Sciences 17
(S.P.S.S) para Windows 7.

234 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
3. Banalização da diferença

Contamos 3.217 personagens nas ilustrações dos li-


vros da amostra. A maioria deles (98,8%) foi classifi-
cada como personagens humanos. A participação de
personagens masculinos (57,9%) foi maior que a de
femininos (33,8%). Grandes grupos com ambos os se-
xos foram 4,8% do todo. Personagens brancos foram
60% do total (1929), pretos 16,1% (517), pardos 4,5%
(146), indígenas 5,2% (167), amarelos 2,8% (89), per-
sonagens grupo multiétnico 3,9% (127), personagens
de outras cores/etnias 2,3% (74), e como personagens
indeterminados (que não se encaixavam em nenhuma
das categorias utilizadas) 5,2% (168).
Considerando pretos e pardos como negros, então te-
mos um percentual de 20,6% de personagens negros na
amostra. Contamos em taxa de branquidade (divisão do
número de personagens brancos pelo número de per-
sonagens negros conforme proposta por SILVA, 2005)
2,9 personagens brancos para cada personagem negro.
Essa taxa de branquidade é menor que a encontrada
por Silva (2005) entre as ilustrações de personagens
de livros de Língua Portuguesa editados no período de
1994 a 2003, de 3,9 brancos para cada personagem ne-
gro, ainda que esteja distante de representar a partici-
pação de negros e brancos na população brasileira6.
Após leitura flutuante dos livros da amostra, decidimos
analisar contextos em que os personagens atuam de
6 Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010 a população
negra (declarados pretos e pardos) correspondia a 50,7% da população brasileira, en-
quanto a declarada branca correspondia a 47,7%. Foi a primeira vez na história dos Cen-
sos do IBGE que a população negra superou o percentual da população branca. (Fonte:
adaptado de IBGE, 2011. Dados disponíveis em: <http://www.ibge.gov.br/home/>. Acesso
em: 20 ago. 2011).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
235
modo a compor quadros de diversidade. Verificamos
que em determinados contextos dos livros (capítulos ou
seções), os textos e ilustrações buscavam apresentar
personagens em um quadro de diversidade humana. O
critério que utilizamos para selecionar os contextos de
diversidade foi semelhante ao critério que Beleli (2005)
usou para selecionar as peças publicitárias que evoca-
vam diferenças entre os corpos de brancos e negros e
de homens e mulheres em sua pesquisa. Seleciona-
mos os personagens presentes em ilustrações, inde-
pendentemente de sua cor-etnia, que estivessem em
contextos que evocavam a diferença – tais como textos
que solicitavam comparações entre os personagens,
ou que indicavam a importância da convivência entre
os diferentes. Não selecionamos contextos que evoca-
vam diferenças e que não apresentavam personagens
em ilustrações. Contamos 25 contextos de diversidade.
Apenas três livros da amostra não apresentaram um
contexto de diversidade segundo os critérios que utili-
zamos.
Faz parte do próprio critério de construção da cidada-
nia, dos editais do PNLD, a valorização da diversidade
entre as pessoas, seja de origem, gênero, etnia, idade,
religião e outras. O edital de 2010, já na sua introdu-
ção, apresenta preocupação com a promoção positiva
da imagem de afrodescendentes e indígenas, e da te-
mática de gênero, apontando para a promoção positiva
da imagem da mulher. Também há a preocupação na
abordagem da temática das relações étnico-raciais:
Quanto à construção de uma sociedade cidadã, os li-
vros deverão:

236 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
1. promover positivamente a imagem da
mulher, considerando sua participação em
diferentes trabalhos e profissões e espaços
de poder;
2. abordar a temática de gênero, da não vio-
lência contra a mulher, visando à constru-
ção de uma sociedade não sexista, justa e
igualitária;
3. promover a imagem da mulher através
do texto escrito, das ilustrações e das ativi-
dades dos livros didáticos, reforçando sua
visibilidade;
4. promover positivamente a imagem de
afrodescendentes e descendentes das et-
nias indígenas brasileiras, considerando
sua participação em diferentes trabalhos e
profissões e espaços de poder;
5. promover positivamente a cultura afro-
-brasileira e dos povos indígenas brasilei-
ros, dando visibilidade aos seus valores,
tradições, organizações e saberes socio-
científicos;
6. abordar a temática das relações étnico-
-raciais, do preconceito, da discriminação
racial e da violência correlata, visando à
construção de uma sociedade antirracista,
justa e igualitária (BRASIL, 2007, p. 31).

O edital de 2010 aborda preconceitos étnico-raciais e


de gênero nos critérios eliminatórios comuns a todas
as áreas:

Observância aos preceitos legais e jurí-


dicos no que diz respeito aos princípios
éticos e de cidadania

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
237
Em respeito à Constituição do Brasil e para
contribuir efetivamente para a construção
da ética necessária ao convívio social e à
cidadania, as obras não poderão:
(i) veicular preconceitos de condição econô-
mico-social, étnico-racial, gênero, linguagem
e qualquer outra forma de discriminação;
(ii) fazer doutrinação religiosa ou política,
desrespeitando o caráter laico e autônomo
do ensino público;
(iii) utilizar o material escolar como veículo
de publicidade e difusão de marcas, produ-
tos ou serviços comerciais (BRASIL, 2007,
p. 31, destaque no original).

A valorização da diversidade também faz parte do dis-


curso da democracia racial no Brasil, que afirma que
no país existe uma harmonia entre diferentes grupos
raciais, étnicos e religiosos (TELLES, 2003). O mito da
democracia racial se sustenta, entre outras coisas, por-
que existe uma mistura racial relevante no Brasil, em
comparação com países como Estados Unidos e África
do Sul (TELLES, 2003). O mito da democracia racial
se sustenta, também, porque existe uma mistura racial
relevante no Brasil, em comparação com países como
Estados Unidos e África do Sul (TELLES, 2003).
Entretanto, argumentamos que quando diferentes eixos
de desigualdade são tratados como equivalentes, sem
considerar as construções sócio-históricas específicas
entre sofrer discriminação por ser gordo e sofrer discri-
minação por ser negro, por exemplo, poderíamos estar
diante de uma possibilidade de banalização das dife-
renças. Aqui utilizamos a interpretação do modo geral

238 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
da ideologia que Guareschi (2000) chama de banaliza-
ção, pois consideramos que a banalização pode atuar
no discurso sem necessariamente estar ligada às estra-
tégias típicas de divertimento, fait-divers ou ironia. Con-
sideramos que ao apresentar variadas diferenças em
um mesmo contexto que se propõe a valorizá-las, pode
ocorrer uma banalização de temas que são relevantes
para os grupos dominados, o que pode induzir à con-
formação. Trata-se, portanto, da banalização do direito
à diferença. (Assim como outros modos de operação
da ideologia, consideramos que a banalização, como a
empregamos, apenas pode ser considerada ideológica,
isto é, a serviço de determinadas relações de domina-
ção, considerando o contexto sócio-histórico em que é
veiculada).
Poderíamos dizer que apresentar esses personagens
juntos é apresentar juntos aqueles que Goffman (1988)
chama de socialmente estigmatizados. Quando discu-
te uma das formas de interação entre estigmatizados
e pessoas “normais”, o autor aponta para uma forma
de discurso que tende a neutralizar as desigualda-
des existentes ao afirmar que tanto os estigmatizados
quando os normais têm problemas cotidianos, portanto
os estigmatizados não deveriam sentir autopiedade ou
ressentimento. Entendemos que o que ocorre nesses
casos é uma banalização das diferenças, ao colocar
estigmas de naturezas distintas em um mesmo plano.
Bento (2003) explica que mesmo no discurso dos enga-
jados na luta pela superação das desigualdades sociais
no Brasil, existe a tendência a relativizar (banalizar, em
nossos termos) o debate sobre desigualdades raciais
quando esse incomoda o status quo do branco e, por

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
239
sua vez, o branco passa a admitir, por exemplo, que
os negros sofrem discriminação mas argumenta que
outros grupos, como pessoas obesas, também sofrem.
Tal discurso é utilizado para evitar enfrentar o problema
e manter os privilégios (BENTO, 2003), o que signifi-
ca dizer que o discurso age, em casos como esse, de
maneira ideológica. De acordo com o estudo realizado
por Cavalleiro (2005), as reclamações de discriminação
racial dos estudantes, nas situações de sala de aula,
tendem a ser tratadas como de pouca importância pe-
los professores, que geralmente resolvem conflitos uti-
lizando o discurso da igualdade entre todos, mas sem
discutir com os estudantes as relações raciais.
Ao banalizar desse modo as diferenças, o discurso
pode diminuir a efetividade da luta dos grupos estig-
matizados, já que aponta que eles são de certo modo
iguais aos normais (afinal todo mundo tem problemas),
ao mesmo tempo em que são retirados das situações
em que desafiam o status quo dos normais – o que
Goffman (1988) chama de “bom ajustamento”. Um dos
discursos possíveis sobre os estigmatizados, então, é
o seguinte: aponta que todos são humanos, ao mesmo
tempo em que apresenta um padrão de normalidade.
A seguir apresentamos alguns dos contextos de diver-
sidade encontrados, que consideramos relevantes para
a discussão.
O livro A Escola é Nossa (MARTINEZ; VIDAL, 2008)
apresentou ilustrações que dialogavam com a diversi-
dade ao tratar da convivência entre as pessoas que os
estudantes encontram no ambiente escolar. Em uma
das ilustrações (Figura 1), uma menina branca pede
auxílio a um menino branco cadeirante em uma ativida-

240 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
de, enquanto um menino branco pede desculpas por ter
derrubado o caderno de um menino negro.

Figura 1. Personagens em contexto de diversidade no livro A escola é


nossa.

FONTE: A escola é nossa (MARTINEZ; VIDAL, 2008, p. 155).

A convivência com o diferente, com a diversidade, é


representada nessa sequência de ilustrações. Nesse
sentido, a diferença da deficiência parece ser tratada no
mesmo modo que a diferença entre os grupos raciais.
Por outro lado, o menino na cadeira de rodas é aquele
que presta ajuda a sua colega, o que nos parece uma
busca pela desconstrução do estereótipo do cadeiran-
te que sempre precisa de ajuda. Outro rompimento de
estereótipo parece ocorrer entre a menina negra e o
menino branco: quem possui o lápis é ela, o que pode
sugerir que ela tem mais posses materiais que ele.
O livro Aprendendo Sempre (VESENTINI; MARTINS;
PÉCORA) apresentou, entre seus contextos de valori-
zação da diversidade, a seguinte ilustração (Figura 2):

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
241
Figura 2. Personagens em contexto de diversidade no livro Aprendendo
sempre.

FONTE: Aprendendo sempre (VESENTINI; MARTINS; PÉCORA, 2009,


p. 19-20).

A ilustração vem acompanhada de um poema de Regi-


na Otero e Regina Rennó, chamado “Ninguém é igual a
Ninguém”. Antes, o texto do livro é assim apresentado:

242 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Alto ou baixo, gordinho ou magrinho. More-
no, loiro, negro, sardento, ruivo, corado. Ca-
belo crespo, encaracolado, liso, fino, grosso
ou espetado. Falante ou calado, baguncei-
ro ou comportado, tímido ou estabanado.
Quais dessas palavras você acha que ser-
vem para falar como você é? E quais delas
servem para o colega ao seu lado? (Apren-
dendo Sempre, 2009, p. 19).

Ao trabalhar as diferenças desse modo, interpretamos


que o livro desconsidera como as variadas diferenças
são construídas de modos distintos, o que considera-
mos uma banalização das diferenças, o que pode levar
a conformação (GUARESCHI, 2000), pois se todos são
em alguma medida diferentes, não se justifica a luta por
igualdade. Ainda, a única personagem que tem sua cor
marcada é a menina negra, que o poema indica que
não quer ter essa cor de pele. É como se a diversida-
de fosse trabalhada, mas sem abandonar o tipo ideal,
isto é, o branco, tomado como norma de humanidade
ao mesmo tempo em que todos os outros são toma-
dos como diferentes (GIROUX, 1999). O tipo branco é
encarado como representante da espécie humana e,
ser gordo, ruivo, alto, ou mesmo negro são variações
desse tipo humano ideal. O branco não é tratado como
uma possibilidade pelo discurso. Ele é, assim como as
pesquisas com livros didáticos têm apontado, sinônimo
de neutralidade racial (ROSEMBERG; BAZILLI; SILVA,
2003).
O livro Aprendendo Sempre também apresentou um
conjunto de ilustrações para retratar as marcas de
identidade de diferentes povos. O que nos chamou a

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
243
atenção com relação aos diferentes personagens apre-
sentados como exemplo é que nenhum deles é bran-
co (Figura 3). Interpretamos tal silêncio (SILVA, 2005)
acerca do corpo branco como uma estigmatização de
corpos não-brancos. Corpos não-brancos já são marca-
dos pela sua cor de pele (BELELI, 2005), e a ausência
desses corpos com marcas de identidade na referida
ilustração reforça o estereótipo da cor de pele branca
como aquela que representa a neutralidade de cor/raça
entre os grupos humanos.

Figura 3. Personagens marcados.

FONTE: Aprendendo sempre (VESENTINI; MARTINS; PÉCORA, 2009,


p. 28).

O livro Asas para Voar (SIMIELLI; CHARLIER, 2009)


também apresentou uma ilustração (Figura 4) em que 2
meninos negros, 1 menino amarelo, 3 meninas brancas e

244 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
3 meninos brancos ilustram um texto sobre diversidade.
Trata-se de um trecho de um poema: “Um é feio/ Outro é
bonito / Um é certinho / Outro, esquisito / Um é magrelo /
Outro é gordinho / Um é castanho / Outro ruivinho”.

Figura 4. Personagens em contextos de diversidade.

FONTE: Asas para voar (SIMIELLI; CHARLIER, 2009, p. 26).

Em nenhum momento esse excerto refere-se à cor dos


personagens. Entendemos que essa é uma forma de se
articular a diferença existente entre os personagens de
modo a igualar diferenças como cor de cabelo, ser magro
ou ser gordo e até mesmo julgamento de beleza dos per-
sonagens como se estivessem no mesmo plano de dis-
cussão de diferenças raciais. Em outras palavras, interpre-
tamos como uma banalização ideológica das diferenças.
Na amostra, consideramos que alguns casos de va-
lorização da diversidade atuaram de maneira positiva

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
245
quanto a personagens negros e brancos. O livro Viver
e Aprender (BRANCO; LUCCI, 2008) apresentou um
exemplo em que a diversidade foi trabalhada sem que o
personagem branco fosse tomado como o tipo humano
ideal. Na Figura 5 são apresentadas as fotografias de
rosto de uma menina negra, um menino amarelo, um
menino indígena e um menino branco. Todos os perso-
nagens apresentados têm nome e idade.

Figura 5. Valorização de quatro cores ou etnias brasileiras.

FONTE: Viver e aprender (BRANCO; LUCCI, 2008, p. 12).

Mas mesmo a valorização da diversidade racial do brasi-


leiro não ocorreu sem ambiguidade. O livro Porta Aberta
apresentou um exemplo de valorização da diversidade
racial do brasileiro em uma mesma família. A ilustração
e o texto que a acompanha são um elogio à mestiça-
gem (mistura de grupos raciais diferentes) brasileira. De
acordo com Telles (2003), um dos pilares do mito da de-
mocracia racial brasileira é a existência real da mestiça-

246 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
gem, isto é, existe uma mistura entre brancos e negros
no Brasil maior que em países como os Estados Uni-
dos, mas essa mistura está concentrada nas camadas
mais baixas de renda e a pele branca tende a ser a mais
valorizada. Considerando as ilustrações e o texto, de
certo modo o mito da democracia racial está sendo evo-
cado: não há conflitos entre brancos e negros. O texto
valoriza a cor-etnia dos personagens da ilustração ao
descrever os traços de cada um deles. A história da fa-
mília começa a partir de um casal negro apaixonado. Há
certos momentos de estranhamento da diferença entre
as pessoas no texto: o homem negro puxa as tranças
da mulher negra; ao mesmo tempo, o texto compara o
cabelo negro ao pelo de carneiro (o que é uma com-
paração com um animal, deslocamento dos atributos
deste para o homem), e o sorriso do homem negro se
destaca em seu rosto. Também chama a atenção que os
olhos verdes são elogiados no texto. Interpretamos que
essa valorização da diversidade racial é ambígua, pois
ao mesmo tempo em que valoriza a mistura racial, a
sequência de ilustrações parece indicar um futuro cada
vez mais branco para a família. Além disso, esse elogio
à mistura racial coexiste com a sub-representação de
personagens negros nos livros didáticos.

Considerações finais

Neste texto apresentamos o resultado da análise de


personagens negros e brancos em ilustrações pre-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
247
sentes em livros didáticos de Geografia para o 2° ano
do ensino fundamental recomendados pelo Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2010 e o modo
como personagens negros são incluídos em contextos
de valorização da diversidade. A teoria que adotamos
para a análise das formas simbólicas, ideologia propos-
ta por Thompson (1995), foi explorada, tendo em vista
o contexto histórico e social em que os livros didáticos
analisados foram produzidos. Consideramos útil expan-
dir o conceito de banalização proposto ao quadro de
estratégias ideológicas por Guareschi (2000) para inter-
pretar as formas simbólicas que podem atuar de manei-
ra ideológica, apelando para o discurso da igualdade,
desconsiderando diferentes eixos de desigualdade que
existem em nossa sociedade. Não que diferenças de
altura, de idade, de cor/etnia e etc. não possam ser tra-
balhadas juntas. O problema reside quando tais grupos
excluídos são pouco apresentados fora de contextos
que destaquem o que os torna diferentes desviantes de
um padrão de normalidade, sendo apresentados com
ênfase em discursos de igualdade banalizada.
Tais discursos, em nossa interpretação, resultam da
busca dos produtores dos livros didáticos pela adequa-
ção às demandas dos editais do PNLD. Mas se atentar-
mos para o que o edital dos livros de 2010 diz e o que é
apresentado nos livros (2,9 brancos para cada negro),
constatamos que os livros ainda não se adéquam as
demandas dos editais; e na tentativa de evitarem pre-
conceitos acabam por perpetuarem a racialização do
negro. Os interesses das editoras pela adequação po-
dem ser entendidos, via de regra, como interesses de
mercado: manter a concentração do lucrativo mercado

248 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
de livros didáticos brasileiro. Como argumenta Cassia-
no (2007), isso também está relacionado a uma contra-
dição: apesar do Brasil não ser um país de leitores é
um excelente mercado para as editoras de livros didá-
ticos graças à compra governamental e as dimensões
da educação brasileira.
Sendo assim, a agenda antirracista, além de cobrar
maior inclusão de negros nos livros didáticos deve estar
atenta aos modos como essa inclusão vem sendo feita,
para que a racialização e a estigmatização do negro,
aliadas a neutralidade do branco, não permaneçam no
discurso dos livros didáticos.

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253
NEAB
Capítulo 8
OS DISCURSOS PRODUZIDOS SOBRE OS
DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
COM O USO DO LIVRO DIDÁTICO
Karina
Ra Falavinha
o, u o E u a o: t at a ol a
255
Capítulo 8

Os discursos produzidos sobre os direitos de


crianças e adolescentes com o uso do livro
didático

Karina Falavinha1

Mas, se as formas simbólicas assim pro-


duzidas servem para sustentar relações de
dominação ou para subvertê-las, se servem
para promover indivíduos e grupos podero-
sos ou para miná-los, é uma questão que só
pode ser resolvida examinando como essas
formas simbólicas operam em circunstân-
cias sócio-históricas particulares, como elas
são usadas e entendidas pelas pessoas que
as produzem e as recebem nos contextos
socialmente estruturados da vida cotidiana.
John B. Thompson (2009, p. 89)

Introdução

O debate sobre os direitos de crianças e adolescentes


emerge, a partir do século XX, nos países vinculados
à tradição ocidental de matriz europeia, muito embora
1 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR, 2013) Pedagoga
pela Faculdades Integradas do Brasil. Desenvolve pesquisas que abordam temáticas re-
lacionadas aos direitos humanos, em especial os direitos de crianças e adolescentes/
jovens, como também sobre construção social da infância e juventude, livros didáticos,
relações raciais. Atualmente é professora no curso de Pedagogia do Centro Universitário
do Brasil (UNIBRASIL).

256 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
o reconhecimento de tais direitos encontra-se atraves-
sado por tensões e contradições que se estendem aos
dias atuais. Ao falarmos sobre tais direitos, encontram-
-se intrínsecas a esse debate, representações da in-
fância que a elegem enquanto ator social, assumindo o
estatuto de sujeito de direitos e, portanto, tendo a ga-
rantia dos direitos de provisão, proteção e os de par-
ticipação, os quais foram preconizados pela Conven-
ção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989,
conforme apontado por Carmem Lúcia Sussel Mariano
(2010). Concomitante, a existência de tais contradições
integra a discussão sobre tais direitos, uma vez que, a
ideia de proteção explicitada tanto na Convenção como
pelo Estatuto da Criança e do/da2 Adolescente (1990)
se confronta com o referencial de autonomia à criança
proposto por ambos os marcos legais.
Com base nos aportes teóricos sustentados pelos Es-
tudos Sociais da Infância, consideramos que crianças
constroem cultura e história, de forma que participam
ativamente nas relações e nas práticas sociais (JENS
QVORTRUP, 2005). Sob esse prisma, portanto, apre-
sentamos no referido texto, uma síntese dos resultados
da pesquisa3 que se integra às investigações desenvol-
vidas pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Uni-
versidade Federal do Paraná (NEAB-UFPR).
O estudo teve como mote central compreender os dis-
cursos produzidos sobre a criança sob o estatuto de
sujeito de direitos, por meio do uso do Livro Didático
2 Estudos de gênero pós-estruturalistas preconizam a possibilidade de “desconstrução”
da linguagem predominantemente masculina por meio da utilização também do genérico
feminino. Dessa forma, no referido texto contemplaremos ambos os genéricos.
3 A pesquisa de mestrado foi realizada no período de 2011 a 2013, por meio do Programa
de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). O
trabalho de campo foi desenvolvido entre os meses de abril a dezembro de 2012.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
257
de Língua Portuguesa (LDLP) do 5º ano do Ensino
Fundamental (EF), buscando analisar se ocorrem rela-
ções de hierarquia etárias. O estudo também vai ao en-
contro com as investigações que se reportam a discutir
as relações que se consolidam no espaço escolar, den-
tre elas e, em particular, aos usos4 que têm sido feito do
LDLP por professores/as e alunos/as (Alain CHOPPIN,
2004). O Livro Didático é entendido enquanto um dos
elementos principais que constituem a cultura escolar
(Jean Claude FORQUIN, 1993) e, sobretudo, um meio
de comunicação que possui um grande poder de circu-
lação (Paulo Vinicius Baptista da SILVA, 2005) veicu-
lando um conjunto de textos, imagens, desenhos, fotos
e personagens que produzem sentidos para quem os
utiliza.
Para o desenvolvimento do corpo teórico e metodoló-
gico, a pesquisa se ancorou na teoria de ideologia de
John Brookshire Thompson (2009) e no método pro-
posto pelo mesmo autor, a Hermenêutica de Profun-
didade (HP), que se encontra acompanhada, neste
estudo, pelo Enfoque Tríplice, um enfoque específico
que propõe ao pesquisador/a examinar de forma mais
ampla a produção, difusão e recepção de formas sim-
bólicas (THOMPSON, 2009). Em associação, adentra-
mos na política educacional do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD) de forma a analisar o processo
de produção, difusão e recepção desse material, con-
comitante à produção de discursos sobre os direitos de
crianças e adolescentes; à difusão de tais discursos e

4 O termo “usos” está inscrito nas relações que professores/as e alunos/as (re) estabe-
lecem com os Livros Didáticos em seus cotidianos escolares, implicando tanto no uso
constante do LD para nortear as aulas, bem como no não uso (desuso) deste material
(FREITAG; MOTTA; COSTA, 1993).

258 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
a apropriação dos mesmos pelos atores envolvidos em
sala de aula, professora e crianças.
Para o trabalho empírico e exploratório, apropriamo-
-nos de entrevista semiestruturada com quatro profes-
soras do 5.º ano de duas Escolas Municipais da Região
Metropolitana de Curitiba – uma que utilizava o Livro
Didático (LD) e outra que não se apropriava do mes-
mo. Dessa forma, as observações e as gravações de
cinco aulas de Língua Portuguesa, ocorreu na escola
que fazia uso do LD em sala. Realizamos análise qua-
litativa dos dois Livros Didáticos (com uso e sem uso) e
também, examinamos o Guia de LD de 2010 de Língua
Portuguesa e o Edital de Convocação para Inscrição no
Processo de Avaliação e Seleção de Obras Didáticas
para o PNLD de 2010. Para a contemplação das vozes
das crianças, analisamos sete registros fotográficos re-
ferentes a uma atividade de um Livro Didático de Lín-
gua Portuguesa.
Partindo das colocações sobre o gênero enquanto
construção social, postuladas por Joan Scott, Rosem-
berg (1996) considera que a idade é categoria útil para
se analisar as desigualdades entre adultos e crianças.
Nessa configuração também se encaixa a categoria
adolescência entendida como construção social e, tal
qual a infância, grupo subordinado ao adulto.
Rosemberg (1985) destaca ainda que a infância ad-
quire valoração na interação com a sociedade adulta,
sendo configurada pela referência do sujeito adulto que
ainda não é. Portanto, a infância é categoria relacio-
nal, à medida que exprime o envolvimento com o outro
adulto, em que a relação social depende desse outro
para se corporificar. A infância possui uma dinâmica

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
259
específica num complexo sistema de imbricações com
as categorias de classe, gênero, raça e etnia (ROSEM-
BERG, 1985, 1996). Assim sendo, o trabalho caminhou
no sentido de compreender as hierarquizações de ida-
de estabelecidas nas quais produzem desigualdades
entre adultos e crianças, mas não deixando de apontar
formas outras de desigualdade.
A infância, por sua vez, é categoria estrutural, em que a
“idade” deve ser examinada em relação aos fatores so-
ciais que se encontra inserida (QVORTRUP, 2002). Re-
colocando o argumento para a metodologia thompso-
niana, consideramos profícuo dizer sobre a relevância
de considerar a infância como grupo etário que é situa-
da e significada por diversos fatores sociais implica-
dos em contextos específicos. De acordo com Thomp-
son (2009), os contextos se caracterizam de muitas
maneiras, ao mesmo tempo em que em cada um se
concentram especificidades. Mantenedores de formas
simbólicas (discursos e práticas), os contextos podem
ser perpassados ou não por relações de dominação.
Podemos dizer que nos contextos sócio-históricos en-
contramos vários significados sobre o fenômeno da in-
fância, maneiras distintas de vivenciá-la, como também
várias formas e fórmulas de dominá-la. Nesse sentido,
apreendemos os discursos (formas simbólicas) sobre
os direitos das crianças e adolescentes veiculados pelo
contexto particular do Livro Didático em uso na sala de
aula, a fim de analisarmos se tais discursos produzem
e sustentam relações de dominação de adultos sobre
crianças.
Na sequência a seguir, apresentamos os resultados
compilados que integram a análise formal ou discursiva

260 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
da referida pesquisa, iniciando a partir das considera-
ções sobre o Guia e o Edital de Língua Portuguesa do
PNLD de 2010.

1. O guia do livro didático de língua portuguesa


e o edital do PNLD de 2010

O Edital do PNLD de 2010, elaborado em 2007, com o


período de inscrição de obras didáticas entre o mês de
janeiro e o mês de maio de 2008, possui como objetivo
a convocação de titulares de direito autoral, para parti-
cipar do processo de avaliação e seleção de Manuais
Didáticos. Ou seja, um documento elaborado para o
acesso da editora servindo como um orientador à equi-
pe técnica para a produção dos Manuais.
O Guia de LDLP de 2010 é destinado aos professores e
professoras e traz orientações pedagógicas e metodo-
lógicas sobre o Livro Didático do/a aluno/a, bem como
sobre o Manual do/a Professor/a. Compõe-se de duas
partes, a de Letramento e Alfabetização e a de Língua
Portuguesa. A parte de Letramento possui 141 páginas e
traz em seu sumário tópicos sobre o Ensino Fundamen-
tal de nove anos e o ciclo de alfabetização inicial, bem
como critérios de avaliação para as coleções e resenhas
de 19 obras. Esta parte indica as resenhas de LD volta-
dos ao 1.º e 2.º ano do EF, séries que possuem como
princípio educativo, apontado no Guia, a alfabetização
matemática e a linguística. O Guia foi elaborado em 2009
para atender o ano de 2010. Ambos trazem orientações

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
261
pedagógicas, metodológicas e critérios de escolha para
o processo de avaliação dos Livros Didáticos.
Quanto às obras de LP destinadas aos três últimos anos
do primeiro segmento do EF, 43 foram inscritas, dentre
elas, 19 foram excluídas (44,18%) e 24 (55,81%) foram
aprovadas. De acordo com o Guia, no ano de 2010,
em comparação com anos anteriores, houve um menor
percentual de aprovação de obras didáticas. Também,
o Guia enfatiza que entre as 24 obras aprovadas, “me-
tade delas aparece no Guia pela primeira vez”, haven-
do um alto índice de renovação da produção editorial
(BRASIL, 2009, p. 176).
Considerando o “novo Ensino Fundamental5”, o Guia
indica que “os cinco anos iniciais” são um período deci-
sivo à criança, no que diz respeito à sua permanência
e sua progressão nos estudos, e sugere que a nova
estruturação do EF dá a possibilidade de ampliação e
diversificação de formas de se planejar o processo de
escolarização do/a aluno/a, que passa a ingressar na
escola com seis anos. Dessa maneira, o Guia aponta
que se manifesta,

[...] na escola, uma demanda de grande po-


tencial renovador: reorganizar a vida esco-
lar do aluno do ensino fundamental de for-
ma a acolhê-lo ainda como criança; mas
colaborar de forma significativa, ao longo de
nove anos, para a sua formação como jo-
vem cidadão (BRASIL, 2009, p. 165, grifos
nossos).

5 Em decorrência da Lei 11.274, de 06/02/2006, que estipula a ampliação do número de


alunos/as nas escolas e um tempo maior de permanência destes/as.

262 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Podemos observar que a ideia da condição da criança
considerada acima se refere à criança de seis anos e à
contribuição do processo de escolarização para a for-
mação do jovem cidadão, de modo que não aponta a
ideia da criança cidadã. O discurso acaba favorecendo
um olhar voltado à criança de que ela ainda não é, ela
virá a ser (ROSEMBERG, 1985). Entende-se que a for-
mação que terá durante os nove anos tem como meio
a criança aluno/a para se atingir futuramente o/a jovem
cidadão.
No Edital do PNLD 2010, aborda-se a necessidade
de uma readequação no ensino e na escola, por con-
ta da entrada da criança de seis anos no EF, nos se-
guintes elementos: na gestão, no projeto pedagógico6,
na avaliação, no currículo, na formação continuada de
professores, no tempo, no espaço, nos conteúdos e na
metodologia. No Edital também é mencionado como
relevante à readequação na escola os “conceitos de
infância e adolescência” (BRASIL, 2010, p. 27), embo-
ra não haja uma definição explícita desses conceitos.
Além disso, o Edital aponta que a mudança do EF “tem
por objetivo respeitar os ritmos dos alunos de seis e
sete anos” (BRASIL, 2010, p. 27), no que se refere ao
processo de alfabetização. Observamos que a explica-
ção é mais completa no Edital, pois tais informações
não aparecem no Guia.
A criança, no decorrer de todo o texto do Guia, é enten-
dida como aluno/a, de modo que a expressão “criança”
é citada pouquíssimas vezes. Criança e aluno/a se (con)
fundem em um só. O termo mais recorrente encontra-
do está no genérico masculino, “aluno”, de modo que

6 Não é mencionado o termo Projeto Político-Pedagógico no Edital.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
263
não foi encontrada nenhuma expressão que contemple
o genérico feminino. No Edital, a linguagem também é
exclusivamente masculina.
No Guia, a criança é mencionada como “sujeito” ape-
nas em âmbito escolar. Isso se apresenta inclusive em
um dos objetivos do EF mencionados no Guia, o de

[...] inserir a criança como sujeito pleno do


universo escolar e, portanto, levá-la a com-
preender as particularidades da escola, num
processo que não poderá desconhecer nem
a singularidade da infância, nem a lógica
que organiza o seu convívio social imediato
(BRASIL, 2009, p. 166).

Não há uma explicação mais detalhada sobre o que


seria o conhecimento da singularidade da infância, ex-
pressão que por si só compromete a ideia de uma plu-
ralidade da infância. No texto transcrito, a criança figura
como objeto, pois “é levada” a compreender, ou seja,
há uma contradição entre a afirmação da criança como
sujeito pleno e o papel social que o discurso lhe confe-
re.
Ainda como um dos objetivos do EF, o Guia aponta
“garantir seu acesso qualificado no mundo da escrita”
(BRASIL, 2009, p. 166). Observamos aqui que a ques-
tão da autonomia aparece diretamente ligada aos estu-
dos, de tal maneira que deve ser resultante, também,
da fase de consolidação do processo de alfabetização,
“desenvolver na criança a autonomia progressiva nos
estudos” (BRASIL, 2009, p. 166).
No Edital do PNLD 2010, por exemplo, é apontado a
relevância do brincar para o/a aluno/a de seis anos. “Os

264 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
alunos de seis anos ainda estão em um momento da
vida em que o brincar é parte inerente de seu desenvol-
vimento [...]” (BRASIL, 2007, p. 27), todavia não sugere
o brincar para idades posteriores, fomentando a ideia de
que é uma atividade necessária apenas a idades ante-
riores à destacada. No entanto, é pertinente frisar que
o brincar já é apontado no artigo 16 do ECA como um
dos aspectos de direito à liberdade da criança: “brincar,
praticar esportes e divertir-se” (ECA, 1990). Entretanto,
mesmo no ECA, o direito de brincar encontra-se ligado à
ideia de uma atividade de lazer e de diversão, de forma
que não é apontado também como atividade norteadora
da prática pedagógica. Consideramos que, nesse senti-
do, o discurso apresentado pelo Edital reforça a ideia de
que o brincar é voltado apenas para crianças pequenas,
e no ECA, o brincar configura-se como pertencente so-
mente à diversão e não como uma prática que pode es-
tar inserida também em âmbito escolar. No Guia, sobre
a relevância do brincar nada é mencionado.
Com relação aos critérios gerais de avaliação do LDLP,
critérios considerados comuns a todas as disciplinas, o
Guia aborda cinco como requisitos indispensáveis, na
seguinte sequência: coerência e adequação metodoló-
gica; respeito às especificidades do Manual do Profes-
sor; adequação da estrutura editorial e dos aspectos
gráfico-editoriais; correção dos conceitos e informa-
ções básicos; e observância de preceitos éticos, legais
e jurídicos.
Na entrevista com as professoras sobre os critérios para
escolha do LD, todas as respostas se remeteram a cri-
térios específicos do ensino de LP. As três professoras
argumentaram que o processo de escolha realizado em

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
265
2009 manteve aparentemente um caráter autônomo no
que se refere à escolha, entretanto, frisaram que alguns
livros foram indicados pela Secretaria de Educação do
Município, não havendo, portanto, muitas opções de
escolha pelas professoras. De início, destacaram que
o livro de Língua Portuguesa “escolhido” por elas, no
ano de 2009, não foi o que chegou à escola, mas res-
saltaram que o livro enviado estava entre “os indicados”
pela SEMED. As professoras acrescentaram ainda que,
em anos anteriores, a segunda opção de livro é a que
chegou à escola, e, portanto, poucas vezes a primeira
foi contemplada.
Também disseram que leram superficialmente o Guia
para apoiar o processo de escolha, salientando que,
no contato com ele, consideravam relevante a leitura
dos critérios trazidos pelo documento; entretanto, afir-
maram não conseguir ler todas as informações conti-
das por falta de tempo, devido ao acúmulo de ativida-
des dentro e fora da escola. Dessa forma, apontaram
como primeiro critério para avaliação do LD a relevân-
cia deste estar configurado de acordo com a proposta
curricular do Município. Por segundo, consideraram “a
proficuidade e a diversidade dos gêneros textuais”,
principalmente em relação à “interpretação e ortogra-
fia”, com preferência de textos que denotem certa difi-
culdade nas atividades. Em terceiro, comentaram como
relevante a necessidade de o livro não possuir imagens
muito infantilizadas. Para elas, imagens infantilizadas
se referem a “textos com desenhos infantis”. Escolhem
textos que não possuam essas imagens, preferindo
contos e poemas “que façam o aluno7 pensar nas en-

7 Por conta da fala da professora mantivemos o genérico masculino na frase.

266 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
trelinhas”, com outros tipos de imagens. “Contos clás-
sicos, por exemplo, não chamam mais a atenção dos
alunos”, disse uma delas. Outra frisou que no primeiro
semestre trabalhou com contos africanos a partir de
livros de literatura. Entre as três, apenas uma trabalhou
com este tipo de conto.
A questão destinada a saber sobre as percepções das
professoras sobre a infância teve respostas que se re-
meteram a questões ainda ligadas às imagens contidas
no LD, de modo que argumentaram sobre a importância
de o LD atrair a atenção dos/as alunos/as, contendo,
por exemplo, “imagens reais de crianças, em lugares
que são próprios à criança, como brincando no parque
ou estando na escola”.
Apesar de as professoras apontarem o brincar e o es-
tudar, que são direitos reconhecidos da criança, ao
mesmo tempo, em seus apontamentos, se fortalece o
discurso de que o lugar da criança é prioritariamente a
escola e o parque, de forma que não houve a referência
da atuação da criança em outros espaços sociais.
Com relação aos gostos e escolhas das crianças quanto
ao LD, as professoras responderam que, pelo contato
diário com as crianças, acabam percebendo o que lhe
agradavam ou não, como é o caso dos contos clássicos
acima citados. Mas, afirmaram que nunca perguntaram
diretamente às crianças sobre as suas vontades quanto
à escolha do livro, ou seja, o adulto acaba falando pela
criança.
Podemos destacar que no discurso das professoras
houve referência a critérios considerados específicos,
ou seja, critérios voltados aos objetivos da LP, todavia,
não houve a referência, por nenhum momento, à impor-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
267
tância de imagens e textos que privilegiem os direitos
da criança ou de textos e imagens que não veiculem
preconceito e discriminação de raça, gênero e classe.
No Guia, os direitos de provisão, proteção e, em es-
pecial, os de participação não são mencionados, nem
mesmo como princípios educativos. Não é referencia-
do o Estatuto como legislação vigente, no entanto, a
não presença dele no LD se consolida como um critério
eliminatório apresentado na questão 27 do Guia, per-
tencente ao anexo 2: “A obra em análise obedece aos
dispositivos legais pertinentes (Constituição Federal,
Estatuto da Criança e do Adolescente e outros)?” Con-
vém ressaltar que tal informação poderia ser privilegia-
da antes no texto do documento, mas é apresentada
apenas no anexo.
No Edital, é enfatizado que os Livros Didáticos devem
propiciar o diálogo, o respeito e a convivência e devem
contribuir “ao crescimento pessoal, intelectual e social
dos atores envolvidos no processo educativo, atuando
como propagador de conceitos e informações necessá-
rios à cidadania” (BRASIL, 2007, p. 29). Para a constru-
ção da cidadania o Edital aborda que os livros devem:

1. promover positivamente a imagem da


mulher, considerando sua participação
em diferentes trabalhos e profissões e
espaços de poder;
2. abordar a temática de gênero, da não vio-
lência contra a mulher, visando a constru-
ção de uma sociedade não sexista, justa
e igualitária;
3. promover a imagem da mulher através
do texto escrito, das ilustrações e das ati-

268 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
vidades dos livros didáticos, reforçando
sua visibilidade;
4. promover positivamente afrodescenden-
tes e descendentes de etnias indígenas
brasileiras, considerando sua participa-
ção em diferentes trabalhos e profissões
e espaços de poder;
5. promover positivamente a cultura afro-
-brasileira e dos povos indígenas brasilei-
ros, dando visibilidade aos seus valores,
tradições, organizações e saberes sócio-
-científicos;
6. abordar a temática das relações étnico-
-raciais, do preconceito, da discriminação
racial e da violência correlata, visando à
construção de uma sociedade antirracis-
ta, justa e igualitária (BRASIL, 2007, p.
29).

Tanto no Edital, mas, preferencialmente, no Guia de


LDLP/2010, que norteia o processo de escolha do LD
pelos/as professores/as, essa questão é mantida na in-
visibilidade. Portanto, inferimos que em ambos os do-
cumentos a questão dos direitos das crianças é man-
tida em silêncio, e esse silêncio é perceptível também
nos critérios proferidos pelas professoras.
Nesse sentido, as considerações indicam mais distan-
ciamentos do que aproximações quanto ao reconheci-
mento da criança enquanto cidadã8. Desse modo, alça-
8 Cabe ressaltar que, a partir do edital do PNLD de 2011, a inserção da criança e adoles-
cente é colocada dessa forma: “promover a educação e cultura de direitos humanos, afir-
mando o direito de crianças e adolescentes” (BRASIL, 2008, p. 36). Todavia, a afirmação
recai numa compreensão muito genérica dos direitos humanos, de forma que a expressão
direito relacionada a tais sujeitos encontra-se no singular e não aponta especificidades e
particularidades dos direitos destinados a crianças e adolescentes. Nesse sentido, pode-
mos levantar a hipótese de uma continuidade do silêncio em editais posteriores a 2010.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
269
mos a alternativa de uma inserção mais completa das
categorias criança e adolescente em próximos Editais,
de forma a refletir sobre a possibilidade de tal questão
se consolidar como um critério de avaliação privilegiado
pelas editoras que produzem os Livros Didáticos, bem
como pelas professoras que escolhem tais livros. Sus-
citamos tal inserção da seguinte maneira:
7. promover positivamente a imagem da criança e ado-
lescente, considerando sua participação em diferentes
espaços de poder;
8. abordar a temática das relações de idade, da não
violência contra a criança, visando à construção de
uma sociedade não adultocêntrica, justa e igualitária;
9. promover a imagem da criança e adolescente atra-
vés do texto escrito, das ilustrações e das atividades
dos Livros Didáticos, reforçando a sua visibilidade;
10. promover positivamente a imagem da criança e ado-
lescente afrodescendente e descendente das etnias in-
dígenas brasileiras, considerando sua participação em
diferentes espaços de poder;
11. promover positivamente a cultura infantil afro-brasi-
leira e das crianças e adolescentes indígenas brasilei-
ros/as, dando visibilidade aos seus valores, tradições,
organizações e saberes sociocientíficos.

2. Análise dos livros didáticos

Apresentamos a descrição realizada de dois Livros Di-


dáticos: o Manual do/a aluno/a (Projeto Buriti) e o Ma-

270 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
nual do/a Professor/a (Projeto Conviver), apontando os
discursos sobre os direitos das crianças e adolescentes
veiculados por eles, bem como de temas associados.
O livro reproduz uma série de textos que foram original-
mente publicados em jornais e revistas. Identificamos
uma “midiação” dos textos didáticos que ocorre, via de
regra, com a simples transposição de textos em função
de sua finalidade didática, por exemplo, ao tratar de di-
ferentes gêneros textuais, mas sem se preocupar com
uma adaptação crítica de textos que foram originalmen-
te produzidos para adultos e com finalidade comercial
(para vender mais jornais ou mais revistas). Podemos
também dizer, que há preocupação no LD quanto ao
discurso sedutor da propaganda, no entanto, não há no
que se refere aos objetos comerciais dos discursos no-
ticiosos.
O tema dos direitos da criança e adolescentes é tra-
tado de forma indireta, por meio da discussão sobre o
trabalho infantil numa abordagem que enfatiza o direito
de adolescentes ao “não trabalho”. Nessa perspectiva,
Silva (2005) identificou em um conjunto de LDLP para
a mesma série/ano o tema “trabalho infantil” como tão
frequente que se utilizou da expressão “jornalismo de
cruzada”, ou seja, identificou no conjunto de livros uma
tendência à abordagem da infância de forma similar à
abordagem midiática, com a transposição dos mesmos
temas e vícios, nesse caso, em específico, com a ten-
dência à estigmatização da infância pobre (ANDRADE,
2001).
Nesse sentido, os Livros Didáticos analisados veiculam
imagens que remetem à estigmatização das crianças
ilustradas, por dois vieses: o da associação prioritária

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
271
do trabalho infantojuvenil com a condição de classe, se
apresentando como produto da pobreza, concomitante
à associação com a raça, em que a infância apresen-
tada é exclusivamente negra, reiterando resultados dos
estudos realizados por Silva (2005) e por Freitas (2004).
Nas imagens, textos e personagens analisados, identifi-
camos certas rupturas, em número menor, de discursos
voltados aos direitos das crianças, que se direcionaram
a apresentá-las na efetivação de alguns direitos, como
direitos de se manifestar, de participar, de se apaixonar
e de se expressar. No entanto, identificamos mais per-
manências de discursos, principalmente nos textos e
quadrinhos, que veiculam, de início, certa ideia de par-
ticipação dos/as personagens crianças, mas no decor-
rer dos textos constatamos que o direito de participa-
ção consiste em atos de resistência que se encontram
acompanhados por atos de desistência de princípios,
por consequência de ações de dominação dos/as per-
sonagens adultos/as. Também percebemos que unida-
des de leitura que apresentavam a participação ativa
das crianças, como o direito de se manifestar e o de se
apaixonar, apresentam permanências relacionadas a
outras desigualdades como as de raça e as de gênero.
As ações dos/as personagens infantis encontram-se
condicionadas à decisão e à vontade dos/as persona-
gens adultos de forma a coibir o direito de escolha das
crianças. A maioria dos textos apresenta personagens
crianças prioritariamente acompanhados de persona-
gens adultos, como mãe, pai e professora.
No que se refere ao uso do Livro Didático de Língua
Portuguesa, este norteou todo o desenvolvimento das
aulas observadas sobre os direitos das crianças, de

272 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
modo que identificamos certas práticas que interferiram
diretamente na interpretação dos discursos proferidos
pela professora.
Na relação entre professora e crianças, os discursos
da professora prevalecem em detrimento dos discur-
sos das crianças, de forma que o direito de participação
destas encontra-se regulado por meio da centralidade
do discurso da professora. Um exemplo, apresentamos
a seguir, em que as crianças tentam expressar sua in-
terpretação quanto ao comentário de uma reportagem
que a professora assistiu sobre trabalho infantil. A con-
versa foi direcionada a abordar as instituições que tra-
balham com “crianças desfavorecidas”. No entanto, a
discussão é contemplada pela fala da professora, que
acaba utilizando um ditado popular para explicitar a si-
tuação de tais crianças. As crianças questionaram para
obter respostas consistentes e, haja vista, não as ob-
tiveram. Podemos destacar certa hegemonia na inter-
pretação da discussão, bem como no discurso da pro-
fessora que, via de regra, se apresenta bem mais longo
e duradouro que o das crianças:

Cças: Como será que seria ajuda deles?


Cças: Dá comida...
Cça: Dá umas roupas pra eles.
P: Não é bem por aí. Nessas instituições bi-
xixxx... posso falar? Presta atenção. Nes-
sas instituições gente, não é só dá comida,
vai lá comer, mas nós temos que ensinar a
pescar, não só dá o peixe.
Cça: Pescar?!
P: É.
Cça: Pescar peixe?

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
273
P: Tem que ensinar a pescar o peixe e não
ir distribuindo o peixe. O que é ensinar a
pescar? Nessas instituições tem escolinha
de futebol né, natação, quadras de esporte.
Cça: ( )
P: Lá eles descobrem atores, autores é,
atletas... e jogadores de futebol, jogadores
de vôlei, e eles estão ali, ensinado, edu-
cando... dando a essas crianças... Tem uns
lugares que são de albergues. Lá sim as
pessoas vão lá pra receber comida, vai dor-
mir pra receber um apoio, mas aquilo ali é
pra sempre? É educativo? Não. É só um
socorro de imediato. Agora quando é uma
instituição, normalmente eles vão para pedir
o que? Para poder encaminhar essas pes-
soas, ajudar. Têm várias igrejas. Então, es-
sas reportagens, geralmente são para po-
der mobilizar esse tipo de coisa.

Também identificamos a predominância de um direcio-


namento interpretativo entre os discursos do livro e os
discursos das crianças em prejuízo de uma retórica me-
diadora, sobretudo por tal direcionamento carregar uma
prática de leitura contraditória sobre os direitos das
crianças advinda pela professora. Sob esse prisma,
a ideia predominante é que os direitos se encontram
intrínsecos ao dever, uma vez que, pela interpretação
da professora, são direitos a serem conquistados pe-
las crianças através de ações que remetem ao dever:
dever de estudar, de ser responsável, de não faltar às
aulas, de ser bom aluno/a, indo no sentido contrário à
ideia de que esses direitos são assegurados às crianças
constitucionalmente. Portanto, detectamos nos discur-

274 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
sos advindos da professora uma estratégia da ideologia
atuando na direção de deslocar os sentidos sobre direi-
tos considerados universais às crianças que passam a
ser compreendidos como resultantes das vontades e
quereres pessoais.

P: O que que é qualidade? Hã? Olha, nós


aqui do município estamos tentando passar
para o aluno uma educação de qualidade,
só que tem muitos que nem querem saber
de nada. Pensa que só é chegar aqui na
sala, por a poupança na cadeira, que já re-
solve a situação.
Cça: Professora, professora?
P: Se não tiver vontade, e não tiver interes-
se vai ter uma educação de qualidade?

A professora acaba reiterando que, para garantir uma


vida melhor no futuro, a criança necessita estudar mui-
to, de forma que o discurso tendeu para um viés norma-
tizador, se aproximando, por sua vez, da responsabili-
dade e do compromisso exclusivo de alunos/as e pais
quanto à garantia da condição de estudar:
P: ( ) o que é preciso ser feito, o que é pre-
ciso ser feito para que tenham uma vida me-
lhor no futuro?
Cça: Professora!
Cça: Eu sei. Estudar bastante.
P: Exatamente ser responsável. [como os
estudos das crianças e dos adolescentes
devem ser garantidos? Ôooo gente, os es-
tudos das crianças não é ( ) agora o aluno
começa a faltar muito a professora tem que
ir lá na secretaria, ligar pros pais e ameaçar.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
275
Cça: Ameaça?
Cça: Tipo bate?
AS: Ameaça
P: Se ele não vir pra aula eu vou ligar para o
conselho tutelar, aí o pai fica manda o filho
para escola por quê?
É o único respaldo que nós temos.

O discurso que recai na compreensão da responsabili-


zação dos pais quanto à educação de seus/suas filhos/
as, se encontra fortalecida em outro episódio de sua
história pessoal, que ela indica como exemplo, como
uma possibilidade de os pais acompanharem a vida es-
colar de seus/suas filhos/as:

P: É uma obrigação da mãe e do pai, prin-


cipalmente hoje em dia que as coisas estão
muito difíceis. É observar o filho diariamen-
te. Eu nunca fui de falar assim que eu não
confiava nos meus filhos. Eu confio muito
nos meus filhos. Confiava e confio. Só que,
às vezes, as más companhias são terríveis.
Cansei de chegar disfarçadamente pra que
meu filho não ficasse ofendido comigo, mas
que eu não podia fechar meus olhos pra
isso. Pega mochila, pegar e olhar os bolsos,
olhar a carteira...
Cça: Professora!
P: Olhar as coisas por quê? Porque eu não
queria meus filhos em má companhia.
Cça: Professora, você disse que chegava
meia-noite eles já estavam dormindo e ( )
pra você olhar.
P: Isso mesmo. Deixa a matéria todo em
cima da mesa pra mim olhar. Era um combi-

276 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
nado nosso. Chegava rapidinho, olhava os
cadernos, via as lições do dia, o que eles ti-
nham feito se eles tinham terminado. Se não
tinham terminado, deixava um bilhetinho
com um papelzinho dentro, olhava agenda,
assinava, via o bilhete da professora, isso
era sagrado sa- gra- do. Cinco minutos eu
perdia, pra não perder várias noites de sono
depois, não é verdade?

Outro discurso é reiterado pela professora no que diz


respeito aos estudos das crianças que devem ser ga-
rantidos pelos pais:

P: Como os estudos das crianças e dos


adolescentes devem ser garantidos? Os
pais têm que ser responsáveis por quê? O
município dá todo o material, o município dá
a aula, dá o professor, o município recebe o
espaço né?
AS: Professora?
P: Continuando. Não deixa terminar. Tá,
então, é nesse sentido que temos, temos
que... vocês têm a garantia do bom estudo
né? E os pais são obrigados a mandar os
filhos para a escola.

Sobre as questões citadas pelo LD e no que se refere


às respostas encontradas nas orientações e subsídios
ao/a professor/a, observamos a informação de que:

As mudanças necessárias são complexas e


profundas, por isso, não são fáceis nem rá-
pidas. A má distribuição de renda parece ser

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
277
um dos motivos mais sérios da exclusão so-
cial no mundo inteiro e do pouco atendimento
às crianças mais pobres. As políticas públicas
em nosso país, em processo de implantação,
visando sanar esse problema, precisam ser
aceleradas, assim como os programas de in-
clusão social para os pais, crianças e ado-
lescentes carentes e a geração de emprego
(PROJETO BURITI, 2008, p. 102).

Podemos observar que a informação trazida pelo LD


encontra-se fragmentada de forma que não sabemos
exatamente que tipo de “mudanças” o texto está abor-
dando no início. Também, se remete à referência exclu-
siva da exclusão social como produto da má distribui-
ção de renda. Aborda sobre a implantação de políticas
públicas e sobre a necessidade de uma rápida atuação
dessas e dos programas sociais, no entanto, é perti-
nente frisar que, mesmo com informações de apoio res-
tritas para auxiliar a professora, esta não apoiou sua
discussão por meio das orientações trazidas pelo livro.
Ainda com relação as questões, o Livro Didático apon-
ta como respostas indicadas: a “[...] má distribuição de
renda, a pobreza e a falta de um sistema de educação
de qualidade efetiva” (PROJETO BURITI, 2008, p. 101);
as crianças não podem estudar pelo cansaço do traba-
lho e porque não têm tempo para os estudos. Quando
adultas não poderão enfrentar o mercado de trabalho
por estarem sem escolarização, bem como não terão
a oportunidade de ampliar sua cultura; o texto aborda
a necessidade da garantia “[...] dos direitos de se ali-
mentar, de viver em ambiente acolhedor e afetuoso, de
estudar e brincar” (PROJETO BURITI, 2008, p. 102).

278 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Tais questões foram resolvidas pelas crianças como ati-
vidade para ser feita em casa, de forma que a discus-
são acima apresentada precedeu à atividade. No que
se refere às opiniões das crianças quanto ao trabalho
infantil, trazemos registros de duas delas. Para a crian-
ça A, para garantir uma vida melhor para crianças e
adolescentes, eles/as devem ser responsáveis e estu-
dar bastante. Quanto à garantia dos estudos, isso se
dá por meio de “escolas gratuitas e bons professores”.
Essa outra aluna considera que, através do trabalho in-
fantil, as crianças e adolescentes prejudicam a coluna
e a saúde. Para a garantia de uma vida melhor é ne-
cessário “estudar muito para ser alguém”, da mesma
forma que “as crianças têm que estudar” para garantir
os estudos, no entanto, para a aluna, as crianças que
moram longe não estudam.
A atenção direcionada das respostas dessas duas alu-
nas se concentra prioritariamente na garantia do direito
de estudar pelo próprio ato de estudar, mas não somen-
te por ele, também se efetiva por meio da existência de
bons professores. Não obstante, podemos dizer que,
de certa forma, os discursos proferidos pelas crianças
compactuam com os discursos da professora em sala
de aula.
Ainda, com relação aos discursos reguladores da pro-
fessora, que favorecem a questão sobre a responsabi-
lidade das crianças quanto ao direito de estudar, outra
situação é apontada, em que ela faz alusão à passagem
do 5.º para o 6.º ano, de forma que ressalta a existência
de um cenário diferenciado, em que as crianças serão
obrigadas a alcançar a responsabilidade.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
279
lá no sexto ano, lá, se eu não me engano,
são 11 matérias e um professor não quer sa-
ber se o outro deu trabalho ou deixou de dar.
[...] Não fez lição, não fez trabalho, tem que
se virar nos 30. Então agora é hora de se
virar nos 30 também... segundo semestre, e
agora eu vou dar trabalho de história, geo-
grafia, de língua portuguesa, e vocês vão ter
que correr atrás, vão ter que fazer, porque
vão perder nota. Porque vai funcionar assim
no ano que vem. Então, a professora de por-
tuguês, não quer saber se tem livro para ler,
não sei o que lá. E outra coisa, é só se orga-
nizar. É só se organizar, tem gente que ter-
mina a aula e ficam conversando, brincando,
enquanto você tem muita lição e a água bate
na bunda. Você pega um tempinho seu, na
hora que você tá aqui, tá conversando, você
ta aqui lendo o texto para você aproveitar
seu tempo / e em casa não é diferente (ruí-
dos). Porque depois de uma idade você tem
que trabalhar, tem que estudar e tem que
dar conta. Então, a partir de agora, eu não
quero desculpa, quem não fez o trabalho vai
ficar com vermelho, porque faz parte da edu-
cação, então vamos lá.//

Convém salientar, pela fala anterior, que a professora


acaba explorando o argumento da ideia de responsa-
bilidade máxima quanto à permanência nos estudos,
sobretudo da progressão neles pelas crianças. Além
disso, a professora também se refere, de forma amea-
çadora, sobre o fato de que, quem não fizer o trabalho
escolar, ficará com “nota vermelha”, pois faz parte da

280 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
“educação”. Atitude que, de certa forma, podemos con-
siderar indo em sentido contrário a uma efetiva educa-
ção que privilegie a participação significativa da crian-
ça na construção de sua autonomia. Nesse momento,
observei que as crianças ficaram quietas e receosas
quanto a esse possível cenário apontado pela profes-
sora.
Na sequência do Livro Didático, outras perguntas são
apresentadas com o título “Educação em valores: tra-
balho infantil”, que apresenta as seguintes questões,
que foram lidas coletivamente em sala, copiadas e res-
pondidas pelas crianças nos cadernos:

Qual dessas ações é mais importante para


você: comer, brincar, estudar, dormir? Em
que ordem você as colocaria? Qual delas
lhe dá mais prazer? Se você ajuda sua fa-
mília em algumas tarefas domésticas, isso
pode ser considerado trabalho infantil? Você
conhece alguma criança que trabalha e, por
isso, não pode frequentar a escola? O que
você pensa sobre isso? O que você acha
possível fazer para acabar com o trabalho
infantil? (PROJETO BURITI, 2008, p. 193).

Podemos destacar que, para as crianças, a ação con-


siderada mais relevante é a de estudar, seguida pela
ação de dormir e, posteriormente, com a de brincar.
Sobre a primeira ação apontada pelas crianças con-
sideramos haver certa compreensão pelas próprias
crianças do ofício de aluno, no sentido de que se esco-
larizar torna-se um processo imprescindível da infância
contemporânea, influenciando inclusive na maneira de

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
281
se relacionar com o mundo (SARMENTO, 2000). No
entanto, a experiência da condição de aluno/a apresen-
ta certas contrariedades, pois nem todos/as possuem
os mesmos acessos no processo de escolarização. Por
conta disso, a escola acaba também atuando na hie-
rarquização das crianças, contribuindo também para a
compreensão da infância enquanto uma etapa destina-
da à preparação (SARMENTO, 2000).
Com relação à questão seguinte, as crianças não consi-
deram que ajudar em casa seja trabalho infantil e, para
“acabar” com ele, as crianças consideram necessário
“chamar a atenção dos pais”, ter mais “trabalho” para
eles, como também “mais educação” e que “a lei preci-
sa ser cumprida”.
No geral, considerando todas as respostas das crian-
ças, apreendemos que elas apresentam mais seme-
lhanças do que diferenças em relação à discussão
incitada pela professora, no que diz respeito a impli-
cações que o TIJ acarretaria nas crianças. O discurso
da professora, bem como a menção ao TIJ pelo LD,
trazem exemplificações apenas de casos isolados de
exploração de mão de obra infantil e juvenil. No livro, as
imagens veiculadas figuram situação de crianças vol-
tadas à extrema pobreza, fortalecendo a compreensão
do TIJ como consequência única da miséria social, por-
tanto, se apresenta uma relação de exclusão entre TIJ
e escola que não se confirma na realidade (FREITAS,
2004).
A pobreza não é mencionada de forma direta nos dis-
cursos das crianças, mas ela foi considerada um fator
ligado à desigualdade econômica como, por exemplo,
a necessidade de “ter mais trabalho para os pais”. Po-

282 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
demos pensar, portanto, em uma reprodução e/ou per-
manência de discursos no que se refere a uma analo-
gia entre livro, discurso da professora e discurso das
crianças. Todavia podemos pensar, também, em uma
produção e/ou ruptura pelos discursos das crianças no
que diz respeito às suas opiniões que, de certa forma,
contraria o livro e o discurso da professora, uma vez
que uma das formas para acabar com o TIJ é “falar com
o governo para tirar essas pessoas” do TIJ, pois “as
crianças trabalham e ganham muito pouco” não pos-
suindo, portanto, condições “de pagar a escola para ter
bons estudos”. A criança faz menção à participação da
criança por meio do trabalho, como também sugere que
elas recebam um valor melhor para poderem custear os
seus estudos.
Em síntese, a relação geracional, entre a professora
adulta e as crianças, se consolida como uma relação
desigual em que o poder se encontra manifestado pela
imposição de discursos reguladores advindos da pro-
fessora, se constituindo como uma relação de domina-
ção de adultos sobre crianças e, portanto, na acepção
de Thompson (2009) tais discursos são considerados
ideológicos.
As estratégias ideológicas atuaram no sentido de silen-
ciar, por meio da ausência e/ou da pouca informação, o
tema contido no LD, como também no sentido da natu-
ralização, em que personagens infantis na relação com
personagens adultos se apresentam em condições de
subalternidade discursivamente construída como parte
integrante do desenvolvimento humano, coadunando,
nesse sentido, com os resultados de Freitas (2004), Sil-
va (2005) e Mariano (2010).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
283
Dessa maneira, identificamos discursos que silenciam a
contemplação efetiva da infância de direitos, e que atua
no sentido de ocultar relações desiguais. O silêncio é
proposto por Silva (2012) como estratégia de constru-
ção simbólica ideológica, acrescentado ao modo geral
de dissimulação preconizado por Thompson (2009). O
silêncio, na presente pesquisa, atuou para estabelecer
o sujeito adulto como norma e a ocultar as desigualda-
des entre adultos e crianças.
No que se referem a outras pesquisas, nossos resul-
tados apresentaram algumas compatibilidades. Aproxi-
mamo-nos dos resultados da investigação de Jacques
(2007), que considera que os discursos produzidos pe-
los Livros Didáticos instituem relações de poder; bem
como os de Hickmann (2008), que considera que a
proliferação de discursos em sala influencia a criança
na construção de sua subjetividade. As duas autoras
preconizam que tais discursos são normalizadores e
governam as crianças. Por outro lado, não utilizamos
como Hickmann do método etnográfico para captar as
impressões das crianças que poderiam revelar tal con-
sideração com mais amplitude. Esta pesquisa também
possui resultados que coadunam ainda com alguns
resultados de Freitas (2004), Silva (2005) e Mariano
(2010), uma vez que constatamos: a associação da dis-
cussão dos direitos da criança à infância pobre e negra;
o pouco espaço para a autonomia das crianças em sala
de aula; formas generalizantes de o Livro Didático abor-
dar a infância, o reforço de posturas adultocêntricas por
parte da professora, bem como discursos que acentuam
a vulnerabilidade estrutural da infância, principalmente
por conta do tema trabalho infantil, veiculado pelo Livro

284 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Didático. Nossos resultados não compactuaram com
os da pesquisa de Bordalo (2006), que evoca, em sua
análise, que os Livros Didáticos contemplam a criança
como cidadã. Ao contrário, apreendemos que os Livros
Didáticos veiculam uma sub-representação da infância
de direitos, bem como uma relação de dominação de
adultos sobre crianças.

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288 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
NEAB
Capítulo 9
SOBRE TEORIAS DE RAÇA NO PENSAMENTO
SOCIAL BRASILEIRO: ACERCA DA IDEOLOGIA E
DA RUPTURA DO LEGADO EPISTEMOLÓGICO
Sergio
Ra Luis do
u oNascimento
o, E u a o: t at a ol a
289
Capítulo 9

Sobre teorias de raça no pensamento social


brasileiro: acerca da ideologia e da ruptura do
legado epistemológico

Sergio Luis do Nascimento1

Introdução

Os atores sociais negros2, organizados em movimen-


tos, constituíram-se, ao longo das décadas do século
XX, analistas e operadores de políticas públicas, princi-
palmente porque coube à boa parte dessas lideranças
negras a luta pelo movimento antirracista. Lideranças
que compreenderam que se tratando do Estado a sua
intervenção constitui-se na ação ou na omissão. As in-
tersecções e as correlações de forças se dão nesse
campo. Cabe aos atores sociais negros reler e reinter-
pretar a sua própria história perceberem na anteriori-
dade histórica dos africanos e dos negros da diáspora
o reconhecimento dos seus valores e da contribuição
histórica que esses proporcionaram à humanidade. A
extensão desse texto relaciona-se com a necessidade
1 Doutor em Educação pela UFPR na linha de Políticas Educacionais. Atualmente é pro-
fessor - Secretaria Estadual de Educação do Paraná e professor de Filosofia na Pontifícia
Universidade Católica do Paraná.
2 Os atores sociais que dialogam com o mundo atual são chamados a interagir e a pensar
localmente, sem olvidar, contudo, que necessitam de ferramentas globais, entre elas a
suspeita do discurso oficial. Essa ferramenta pode conferir sentido aos atos humanos e
possibilitar novo significado à história e seus momentos de evolução e retrocesso.

290 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
de traçar um quadro sócio-histórico aprofundado acer-
ca das teorias raciais na modernidade, bem como a
descrição sobre o constructo do racismo epistemológi-
co. Ali se opera a desconstrução do imaginário brasilei-
ro de valores e ideias que subjugam os afro-brasileiros
como herdeiros de uma cultura “incivilizada”, “selva-
gem” e impregnada de fetichismo.
As práticas e as atitudes dos atores sociais negros, ao
longo de nossa história sócio-racial, desafiam-nos a
tensionar as estruturas sociais e a identificar se as as-
simetrias e as diferenças são sistemáticas ou estáveis.
Principalmente quando os sujeitos envolvidos nesse
tema deixam de ser objeto de estudo e passam a sujei-
tos da sua própria história, provocam reflexões como a
de Guerreiro Ramos (1965) que, ao escrever a obra de
maior visibilidade de toda a sua produção sociológica,
A redução sociológica, traça uma perspectiva argumen-
tativa do que pretendemos desenvolver nesse tópico.
Para o pesquisador, “quanto mais uma população as-
simila hábitos de consumo não vegetativo, tanto mais
cresce a sua consciência política e maior se torna a
sua pressão no sentido de obter recursos que lhe asse-
gurem níveis superiores de existência” (RAMOS, 1965,
p.78).
Na sua proposição de análise do contexto sócio-históri-
co do objeto de estudo, Thompson (1995) ajuda-nos a
problematizar sobre o estudo das assimetrias. Ao utili-
zarmos o seu método de análise, permitimo-nos com-
preender a estrutura social e principalmente identificar
quais “manifestações não são apenas de diferenças in-
dividuais, mas diferenças coletivas e duráveis em termo
de distribuição e acesso a recursos, poder, oportunida-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
291
des e possibilidade de realização” (THOMPSON, 1995,
p. 367). As estratégias ideológicas do autor3 irão ajudar
no exame da construção simbólica que políticos e in-
telectuais lançaram sobre a marcha civilizatória tendo
como referencial a Europa frente ao continente africano
e aos seus descendentes “incivilizados sem história”.
Como ferramenta de apoio na construção desse texto,
utilizaremos o conceito de legado sobre como a nos-
sa elite de intelectuais e de políticos substanciou uma
ideia de nação e uma construção da identidade nacio-
nal que negava a contribuição e a herança dos africa-
nos e de seus descendentes da diáspora. E o conceito
de ruptura da continuidade aborda em que medida e
circunstancias o signo desse imaginário permanece no
constructo social que atribui aos descendentes do con-
tinente africano não possuírem anterioridade histórica.
Tal conceito tem como desafio romper com essas ca-
tegorias que subjugam os personagens herdeiros das
tradições culturais do continente africano.

3 Essas estratégias se apresentam sob a orientação de construir e desconstruir referi-


dos discursos nos três modos gerais de operação da ideologia de análise de Thompson
(1995), quais sejam: Dissimulação; Unificação; e, Legitimação. A categoria da Dissimu-
lação é observada quando formas simbólicas são representadas de modo que desviam
a atenção, ocultando, negando ou obscurecendo as relações de dominação e processos
existentes. Este fenômeno ocorre por meio de transferência de sentidos, conotações –
positivas ou negativas – de pessoas ou objeto a outros (as). A categoria da Unificação,
por sua vez, consiste no processo pelo qual se cria uma identidade coletiva, independen-
temente das diferenças individuais e sociais, difundindo-se a unidade como simboliza-
ção da identidade. Por fim, entende-se por Legitimação a apresentação das relações de
dominação como justas e dignas de apoio, isto é, legítimas, baseadas em “fundamentos
racionais (que fazem apelo à legalidade de regras dadas), fundamentos tradicionais (que
fazem apelo à sacralidade de tradições imemoriais), e fundamentos carismáticos (que
fazem apelo ao caráter excepcional de uma pessoa individual que exerça autoridade)”
(THOMPSON, 1995, p. 83).

292 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
1. A construção do legado e suas matrizes
ideológicas

A onipresença do “racismo europeu” considerava que


os africanos e os africanos da diáspora não seriam de-
tentores de discurso político legítimo, como se vê na
obra de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1989 [1830]),
por exemplo. Para esse autor alemão, a África não é
um continente e sim “é um país criança” e está em en-
volta de uma “negrura da noite, fora da luz da história
consciente” (1989 [1830] p.180)4. Para Hegel, não há
na África “nenhuma subjetividade e sim somente uma
série de sujeitos que se destroem”5 sem história e a sua
população “está em estado bruto; configura nesse con-
tinente a selvageria e a Barbárie de homens feiticeiros
(HEGEL, 1989[1830], p. 182; 184)6. Hegel e outros não
pouparam suas críticas à população do continente afri-
cano e, diante delas, podemos inferir que suas interpre-
tações direcionadas àquele continente se estenderam
a todos os descendentes da diáspora africana. Não é
surpresa que boa parte da elite pensante e letrada em
meados do século XIX e início do século XX celebraram
o pensamento hegemônico pautado no racialismo euro-
peu. É na Europa que surgem as primeiras publicações

4 Segundo Hegel (1989[1830], p. 180): El África propiamente dicha no tiene interés his-
tórico propio, sino el de que los hombres viven allí en la barbarie y el salvajismo, sin su-
ministrar ningún ingrediente a la civilización. Por mucho que retrocedamos en la historia,
hallaremos que África está siempre cerrada al contacto con el resto del mundo; es Eldo-
rado recogido en sí mismo, es el país niño, envuelto en la negrura de la noche, allende la
luz de la historia consciente.
5 Para Hegel (1989 [1830], p. 182): En esta parte principal de África, no puede haber en
realidad historia. No hay más que casualidades, sorpresas, que se suceden unas a otras.
No hay ningún fin, ningún Estado, que puede perseguirse; no hay ninguna subjetividad,
sino solo una serie de sujetos que se destruyen.
6 Hegel (1989 [1830], p. 184) afirma: En África todos son hechiceros.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
293
com as bases teóricas do movimento, que defendia a
existência de raças humanas e uma hierarquia “natural”
entre elas. Tais teorias acarretaram um legado histórico
do branco europeu como “grupo étnico-racial dominante
e civilizado” em detrimento aos Outros grupos étnicos.
Como declara Van Dijk (2008, p.13):

Do Norte ao Sul, no México, na Venezuela,


na Colômbia, no Peru e, especialmente, no
Caribe e no Brasil, as pessoas de origem
africana foram sistematicamente inferiori-
zadas em todos os domínios da sociedade.
Preconceitos contra os negros aliados a
uma vasta rede de práticas discriminatórias
reproduziram, por conseguinte, a pobreza,
o baixo status e outras formas de desigual-
dade social no que concerne ao branco do-
minante e às elites mestiças.

Posteriormente, dentro da perspectiva de ressignificar e


de permitir que os novos atores sociais negros releiam
e interpretem a sua própria história, encontramos nos
autores pós-colonialistas7 não apenas uma redefinição

7 De acordo com (GIROUX, 1999, p. 49) e com os estudos que estamos realizando, a lite-
ratura sobre o anticolonialismo e o pós-colonialismo, é vasta e inclui nomes com suas res-
pectivas obras: Frantz Fanon, The Wretched of the Earth; Black skin, White Masks (Nova
York: Grove Press, 1976), Kwame Nkrumah, Consciencism (Nova York: Monthly Review
Press, 1964); Albert Memmi, The Colonizer and Colonized (Boston: Beacon Press, 1965);
Ngugi Wa Thiong’O, Decolonizing the Mind; Jan Carew, Fulcrums of change (Trenton,
N.J: Africa World Press, 1988); Edwar W. Said, Orientalism (Nova York: Vintage Books,
1979); Rinajit Guha e Gayatri C. Spivak, Eds., Selected Subaltern Studies (Nova York:
Oxford University Press, 1988); Número especial de Inscriptions sobre ‘Feminism and the
Critique of Colonial discourse”, Nºs. 3/4 (1988); James Clifford, The Predicament of Cultu-
re (Cambridge: Harvard University Press, 1988); Marcien Towa, Léopold Sedar Senghor:
negritude ou servitude? (Yaoundé, Ed. Clé, 1971); Kabengele Munanga, Negritude: usos e
sentidos (Belo Horizonte: Autêntica, 2009); Cheikh Anta Diop, Civilisation ou barbárie (Pa-
ris: Présence Africaine, 1981); Nkolo Foé, África em diálogo, Àfrica autoquestionamento:
Universalismo ou provincialismo? “Acomodação de Atlanta” ou iniciativa histórica, Educar
em Revista, Curitiba, Brasil: Editora UFPR, n. 47, p. 175-228, jan./mar. 2013.

294 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
da nova política cultural da diferença, mas o tensiona-
mento e a ruptura desse velho legado que subjugava
os africanos e seus descendentes da diáspora africana
à categoria de raça inferior. O que se verifica nas últi-
mas décadas é a construção de uma consciência de
resistência e de luta pelo respeito da diversidade, por
meio de práticas institucionais e epistemológicas que
vão além das já constituídas historicamente pelo lega-
do colonialista. É importante ressaltar o comentário de
Cornel West (1990) a esse respeito:

Distinctive features of the new cultural poli-


tics of difference are to trash the monolithic
and homogeneous in the name of diversity,
multiplicity, and heterogeneity; to reject the
abstract, general, and universal in light of
the concrete, specific, and particular; and to
historicize, contextualize, and pluralize by
highlighting the contingent, provisional, va-
riable, tentative, shifting, and changing. Ne-
edless to say, these gestures are not new in
the history of criticism or art, yet what makes
them novel – along with the cultural politics
they produce – is how and what constitutes
difference, the weight and gravity it is given
in representation, and the way in which hi-
ghlighting issues like exterminism empire,
class, race, gender, sexual orientation, age,
nation, nature, and region at this historical
moment acknowledges some discontinuity
and disruption from previous forms of cul-
tural critique. To put it bluntly, the new cultu-
ral politics of difference consists of creative
responses to the precise circumstances of
our present moment – especially those of

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
295
marginalized First World agents who shun
degraded self – representations, articulating
instead their sense of the flow of history in
light of the contemporary terrors, anxieties,
and fears of highly commercialized North
Atlantic capitalist cultures (with their esca-
lating xenophobias against people of color,
Jews, women, gays, lesbians, and the elder-
ly) (WEST, 1990, p. 93)8.

O deslocamento e o tensionamento epistemológico im-


pulsionam os atores sociais negros a requererem novas
propostas epistemológicas que tenham como princípio
básico a contextualização, a pluralização e a historiciza-
ção como estratégia de ruptura do discurso monolítico.
Necessariamente, para que isso ocorra, o rompimen-
to com o antigo legado é imprescindível. São esses os
desafios que os atores sociais negros assumem ao re-
conhecer nos discursos pós-coloniais a perspectiva de
reler a sua própria história; agora não mais como objeto
dela e sim como seus sujeitos. Encontra-se nos autores
pós-colonialistas a revisão crítica do que representa-
ram os discursos e as ideias dos pensadores e filósofos
modernos sobre a humanidade ou não do negro. Inclu-
sive, tal revisão passa pela discussão da importância
das ideias colonialistas na formação do pensamento
e da cosmovisão das elites pensantes (branca e, mui-
8 Tradução encontrada em Giroux (1999, p. 32): “Podar o monolítico e homogêneo em
nome da diversidade, da multiplicidade e da heterogeneidade; rejeitar o abstrato, o geral
e o universal à luz do concreto, do específico e do particular; e historiar, contextualizar e
pluralizar, destacando o contingente, provisional, variável, tentativo, alterado e móvel ... o
que torna essas ideias novas - juntamente com a política cultural que produzem - é o como
e o que constitui a diferença, o peso e a gravidade que ela recebe na representação, e a
maneira em que, neste momento histórico, a ênfase em questões como extermínio, impé-
rio, classe, gênero, orientação sexual, idade, nação, natureza e região reconhece parte da
descontinuidade e do rompimento com as formas anteriores da crítica cultural”.

296 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
tas vezes, mestiça). A relevância dessa discussão tem
em vista o grau de importância que adquiram alguns
cânones9, tanto colonialistas, quanto pós-colonialistas,
na história, na construção e na formação de muitos os
quais partiam das suas colônias ou ex-colônias, para
se formarem a partir do viés eurocêntrico. Por mais que
estejamos cientes de que os textos clássicos devam
ser avaliados unicamente em termos históricos, tam-
bém temos de estar cientes de que os pensadores Ilu-
ministas gozaram e gozam de um status privilegiado.
Como define Jeffrey Alexander (1999, p. 24):

Um clássico é resultado do primitivo esforço


da exploração humana que goza de status
privilegiado em face da exploração contem-
porânea no mesmo campo. O conceito de
status privilegiado significa que os moder-
nos cultores da disciplina em questão acre-
ditam poder aprender tanto com o estudo
dessa obra antiga quanto com o estudo da
obra de seus contemporâneos. Além disso,
tal privilégio implica que, no trabalho diário
do cientista médio, essa deferência se faz
sem prévia demonstração: é tacitamente
aceita porque, como clássica, a obra esta-
belece critérios básicos em seu campo de
especialidade.

9 Alexander, em A importância dos Clássicos, discute o seguinte: “Para os autores do po-


sitivismo, a própria questão da relação entre ciência social e os clássicos conduz imedia-
tamente a outra: existirá mesmo uma relação dessas? Por que as disciplinas que se dizem
orientadas para o mundo empírico e para o acúmulo de conhecimento objetivo sobre ele
precisam recorrer a textos escritos por autores que já morreram e se foram há muito tem-
po? Segundo os cânones do empirismo, afinal de contas, o que quer que fosse relevante
em tais textos já deveria ter sido, de longa data, verificado e incorporado à teoria contem-
porânea ou refutado e lançado à lata de lixo da história” (ALEXANDER, 1999, p. 23).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
297
Thompson (1995) propõe como método da Hermenêu-
tica de Profundidade a superação daquilo que Alexan-
der (1999, p.24) mostra ser “tacitamente aceito porque,
como clássica, a obra estabelece critérios básicos em
seu campo de especialidade”. O processo de interpreta-
ção ou reinterpretação como método da análise sócio-
-histórica e da análise formal ou discursiva “transcen-
de a contextualização das formas simbólicas tratadas
como produtos socialmente situados, e o fechamento
das formas simbólicas tratadas como construções que
apresentam uma estrutura articulada” (THOMPSON,
1995, p. 376). Para o autor, as formas simbólicas ou dis-
cursivas “representam algo, referem-se a algo e dizem
alguma coisa sobre algo” (THOMPSON, 1995, p.376).
Pode-se perceber a atuação dessas formas simbólicas
tratadas discursivamente na maneira com a qual certos
filósofos Iluministas pensavam o papel do negro. Au-
tores como Immanuel Kant (1724-1804), David Hume
(1711-1776), Alexis de Tocqueville (1805-1859), Au-
guste Comte (1798-1857), Montesquieu (1689-1755),
Voltaire (1694-1778) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel
(1770-1831), que detinham e detêm um status privile-
giado no pensamento moderno contemporâneo, esta-
vam “convencidos da inferioridade congênita dos ne-
gros” (FOE, 2013, p. 184).
Aporia, em que tudo aquilo que no cotidiano da vida
prática se manifesta como sendo senso comum, ou-
trora foi senso. Ao tratarmos de legado e das matrizes
ideológicas não há como não reportamos aos grandes
autores do pensamento europeu que se tornaram gran-
des influenciadores da ordem pensante no ocidente. O
processo de ruptura terá que perpassar pelos matizes

298 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
conceituais que conotaram durante séculos a dicoto-
mia entre os indivíduos e com isso estabeleceram re-
lações assimétricas de poder e valorização hierárquica
de ideias. Autores como Théophile Obenga (1990), Ed-
ward Said (1995), Nkolo Foè (2008), Cheich Anta Diop
(1981), Marcien Towa (1979), Frantz Fanon (2008) e
Aimé Césaire (2010) se dispuseram a reinterpretar e
retomar a iniciativa histórica a partir de uma narrativa
emancipatória que exaltava “no protagonismo negro a
única via possível para a descolonização política e men-
tal das sociedades negras sob dominação ocidental”
(CÉSAIRE, 2010, p.17). Acerca da ruptura do legado
epistemológico eurocêntrico acadêmico da América La-
tina e dos Estados Unidos, alguns estudos propuseram
vieses epistemológicos confrontando a hegemonia eu-
ropeia, entre eles os de: Enrique Dussel (1986), Aníbal
Quijano (2000), Walter Mignolo (2003), Ramón Grosfo-
guel (2006), Nelson Maldonado–Torres (2008) e Abdias
do Nascimento (1968, 1980). Estes autores assumiram
uma perspectiva interpretativa e reinterpretativa basea-
dos no discurso crítico da Filosofia da Libertação; do
Multiculturalismo; do Quilombismo; das Epistemologias
Descoloniais; da Diversidade; das Identidades Plurais;
do combate ao racismo; da crítica ao Racismo Epistê-
mico; da crítica à colonialidade; da crítica à coloniali-
dade do ser. Tal perspectiva teve como direcionamento
o encorajamento de fomentar intelectuais que rompam
com o colonialismo presente nos manuais de aprendi-
zagem, nos livros didáticos, nos critérios de seleção de
trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na
estereotipização das manifestações, sejam elas religio-
sas, linguísticas, artísticas, comportamentais dos povos

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
299
não brancos. Nas palavras e argumentação de Ramón
Grosfoguel (2006), que analisa o racismo epistêmico, a
produção de conhecimento pelos privilegiados pensa-
dores europeus é pautada no etnocentrismo e no euro-
centrismo e sustenta uma lógica que invadiu todos os
campos imaginários da formação humana, estabelecen-
do a exclusividade da verdade sobre as diferentes for-
mas simbólicas que as sociedades representam como
legítimas; arraigadas à filosofia, à ciência, inclusive à
religião. Desse modo, Grosfoguel (2006) prossegue:

O racismo epistêmico é um dos racismos


mais invisibilizados no “sistema-mundo ca-
pitalista/patriarcal/moderno/colonial”. O ra-
cismo em nível social, político e econômico
é muito mais reconhecido e visível que o
racismo epistemológico. Este último opera
privilegiando as políticas identitárias (identi-
ty politics) dos brancos ocidentais, ou seja,
a tradição de pensamento e pensadores
dos homens ocidentais (que quase nunca
inclui as mulheres) é considerada como a
única legítima para a produção de conhe-
cimentos e como a única com capacidade
de acesso à “universidade” e à “verdade”.
O racismo epistêmico considera os conheci-
mentos não ocidentais como inferiores aos
conhecimentos ocidentais. Se observarmos
o conjunto de pensadores que se valem das
disciplinas acadêmicas, vemos que todas
as disciplinas, sem exceção, privilegiam os
pensadores e teorias ocidentais, sobretudo
aquelas dos homens europeus e/ou euro-
-norte-americanos [...] O mito que, entretan-
to, subjaz à academia é o discurso cientifi-

300 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
cista da “objetividade” e “neutralidade” que
esconde o “lócus de enunciação”, ou seja,
quem fala a partir de qual corpo e espaço
epistêmico nas relações de poder se fala.
Sob o mito da “ego-política do conhecimen-
to” (que na realidade sempre fala a partir de
um corpo masculino branco e uma geopolí-
tica do conhecimento eurocentrada) se de-
sautorizam as vozes críticas provenientes
dos pensadores de grupos subalternos infe-
riorizados pelo racismo epistêmico hegemô-
nico (GROSFOGUEL, 2006, p. 17).

A citação revela e ressalta como o racismo epistemoló-


gico se constituiu e as consequências desse fenôme-
no podem ser verificadas quando observarmos que os
conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos
cursos de graduações nas universidades brasileiras
pautam e reverenciam matriz europeia. Isso fica evi-
dente ao ponderarmos que um estudante ao fim de seu
curso de 4 ou 5 anos na graduação, poderá concluí-lo
sem nunca ouvir ou estudar Abdias Nascimento (1980)
e o Teatro Experimental do Negro (TEN) e intelectuais
como Lélia Gonzáles (1983) e Conceição Evaristo
(2011). Segundo Walter Praxedes (2008), esse cenário
ajuda-nos a problematizar e tensionar o eurocentrismo
e o discurso racista presente nas obras dos mais reno-
mados pensadores europeus. Esses, ao abordarem os
grupos humanos em seus trabalhos, classificavam-nos
como “pertencentes a raças e etnias misteriosas, donas
de comportamentos selvagens, ideias atrasadas, cos-
tumes e religiões primitivas e bizarras, aparências hor-
ripilantes e ideias irracionais” (PRAXEDES, 2008, p. 1).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
301
Nesse caso, o não reconhecimento de humanidade aos
povos não europeus transpõe aos estudantes defron-
tarem com um problema crucial de ordem ontológica,
pois estabelece a negação da anterioridade histórica a
que as populações africanas e africanas da diáspora
estão submetidas. É uma questão ontológica por que
essas populações foram tratadas como não-ser.
Os pensadores iluministas dominaram o discurso pú-
blico do século XVII ao XIX e, com o advento do Ilumi-
nismo e a criação de uma ciência geral do ser humano,
esperava-se que esse movimento filosófico corrigisse
“a imagem negativa que se tinha do negro” (MUNAN-
GA, 2009, p.29). Ocorreu o oposto disso e pensado-
res importantes como Voltaire (1963 apud FOÈ, 2013,
p.187) consolidaram a noção depreciativa herdada de
pensadores anteriores ao detalhar a inferioridade dos
negros em questões de traços físicos e intelectuais e
afirmaram ainda que a inferioridade da inteligência dos
negros em relação a outras espécies de homens é es-
pantosa. Como ressalta Foè sobre a suposta inferiori-
dade dos negros:

Mas o pior é que Voltaire insiste sobre a in-


ferioridade dos Negros para legitimar sua
servidão. A prova para ele é a existência da
diferença e da permanência das caracterís-
ticas das nações que mudam raramente.
Isto explica o fato de que “os negros são os
escravos dos outros homens. Nós os com-
pramos nas costas da África como animais”.
Voltaire detalha os motivos dessa inferiori-
dade que é, antes de tudo, física: os Negros
têm os olhos arredondados, o nariz acha-

302 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
tado, os lábios sempre grossos, as orelhas
diferentemente desenhadas, a lã sobre a
cabeça etc. A inferioridade é também inte-
lectual. Segundo Voltaire, a medida de sua
inteligência mostra as diferenças prodigio-
sas entre os negros e outras espécies de
homens. Ele reconhece que a inteligência
dos Negros não é de uma natureza dife-
rente em relação ao entendimento do bran-
co, mas ele sublinha sua inferioridade. Por
exemplo, os negros não são capazes de
uma grande atenção, eles calculam pouco e
não parecem feitos nem para as vantagens,
nem para os abusos de nossa filosofia. Eles
são originários dessa parte da África como
os elefantes e os macacos; eles acreditam
que nasceram em Guiné para serem ven-
didos aos Brancos e para servi-los (FOÈ,
2013, p. 187).

O que estudiosos como Munanga (2006) e Foè (2013)


salientam acerca desse período histórico é o espírito
da época, em que pensadores e movimentos importan-
tes concebiam o negro como selvagem, sem humani-
dade. À época, segundo Foè (2013, p. 188), o pêndulo
da contradição da filosofia e do movimento que estava
por detrás via a liberdade como movimento em si “em
detrimento da igualdade e da fraternidade”. A obra O
espírito das leis e a ambiguidade que cercava seu autor
Montesquieu, se ele era “racista ou não, antiescravista
ou não” (FOÈ, 2013, p. 188), não o impediu de reprodu-
zir os mesmos preconceitos da época. Consideremos
os argumentos do filósofo no seguinte trecho:

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
303
Se eu tivesse que defender o direito que ti-
vemos de escravizar os negros, eis o que di-
ria: tendo os povos da Europa exterminado
os da América, tiveram que escravizar os da
África a fim de utilizá-los no desbravamento
de tantas terras. O açúcar seria muito caro,
se não se cultivasse a planta que o produz
pelos escravos. Aqueles a que nos referimos
são negros da cabeça aos pés e têm o nariz
tão achatado que é quase impossível lamen-
tá-los. Não podemos aceitar a ideia de que
Deus, que é um ser muito sábio, tenha colo-
cado uma alma, sobretudo uma boa, em um
corpo negro. É tão natural pensar que é a
cor que constitui a essência da humanidade
que os povos da Ásia que fazem eunucos
privam sempre os negros da relação que
eles têm conosco de uma maneira mais
acentuada. Pode-se julgar a cor da pele,
dos cabelos, que entre os Egípcios, os
melhores filósofos do mundo, eram de uma
tão grande importância que eles matavam
todos os homens ruivos que lhes caíam nas
mãos. Uma prova de que os negros não têm
o senso comum é que eles dão mais atenção
a um colar de vidro do que de ouro, fato
que, entre as nações civilizadas, é de uma
tão grande consequência. É impossível que
nós suponhamos que essas gentes sejam
homens, porque, se nós os supusermos
homens, começaríamos a acreditar que nós
próprios não somos nem mesmo cristãos.
Os espíritos mesquinhos exageram muito
a injustiça que se faz aos africanos. Pois,
se ela fosse tal como eles dizem, não
teria ocorrido aos príncipes da Europa,

304 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
que fazem entre eles tantas convenções
inúteis, de fazer uma convenção geral
em favor da misericórdia e da piedade?
(MONTESQUIEU, 2005, p. 296).

Não se pode omitir a importância desses autores. Por


outro lado, a sua presença obrigatória nos currículos
dos diversos cursos de formação e por muitas vezes
a não contraposição de suas ideias permite um sen-
so léxico que se configura em elementos simbólicos do
cotidiano. Como esboçada por Kant (1993 [1764]) na
sua obra Observações sobre o sentimento do belo e do
sublime, há uma noção muito presente nos cursos de
filosofia em que caracteriza assim os negros africanos:

Os negros da África não possuem, por na-


tureza, nenhum sentimento que se eleve
acima do ridículo. O senhor Hume desafia
qualquer um a citar um único exemplo em
que um Negro tenha mostrado talentos, afir-
ma: dentre os milhões de pretos que foram
deportados de seus países, não obstante
muitos deles terem sido postos em liberda-
de, não se encontrou um único sequer que
apresentasse algo grandioso na arte ou na
ciência, ou em qualquer outra aptidão; já
que entre brancos, constantemente arrojam-
-se aqueles que, saídos da plebe mais bai-
xa, adquirem no mundo certo prestígio, por
força de dons excelentes. Tão essencial é a
diferença entre essas duas raças humanas,
que parece ser tão grande em relação às
capacidades mentais quanto à diferença de
cores. A religião do fetiche, tão difundida en-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
305
tre ele, talvez seja uma espécie de idolatria,
que se aprofunda tanto no ridículo quanto
parece possível à natureza humana. A pluma
de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma
concha, ou qualquer outra coisa ordinária,
tão logo seja consagrada por algumas pala-
vras, tornam-se objeto de adoração e invo-
cação nos esconjuros. Os negros são muito
vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão
matraqueadores, que se deve dispersá-los a
pauladas (KANT, 1993 [1764], p. 78).

Para Kant (1993 [1764], p. 65) o sublime e o belo como


traços que exprimem sentimentos estavam no conti-
nente europeu e o autor elenca a características dos
italianos, franceses, espanhóis, ingleses e alemães
realçando os aspectos que conotam a esses povos os
caracteres do sublime e do belo; ao passo que os ne-
gros do continente africano não possuíam, por nature-
za, nenhum sentimento que se elevasse acima do ridí-
culo, ao contrário dos europeus têm como característica
o “sentimento refinado”. Importante salientar que, do
ponto vista político, sabemos que o filósofo Immanuel
Kant foi, segundo Hilton Japiassú e Danilo Marcondes
(1991), um dos iluministas que mais profundamente in-
fluenciou a formação da filosofia contemporânea.
Encontramos perspectiva hierarquizante também nos
escritos do sociólogo Auguste Comte, criador do posi-
tivismo e considerado por Raymond Aron (1999, p. 98)
“um reformador social”. Comte entendia a sociedade e
a caracterizava pela etapa de desenvolvimento espiri-
tual que ela teria alcançado. Este teve grande influência
no Brasil e na formação do pensamento social brasileiro

306 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
na transição da segunda metade do século XIX e teve
muitas das suas ideias incorporadas à Constituição de
1891, primeira da República brasileira. No Curso de Fi-
losofia Positiva, publicado originalmente em 1830, so-
bre a análise das conquistas coloniais do século XIX
estabeleceu “a preponderância material dos povos
mais evoluídos sobre os menos evoluídos” (1894, p.
3)10. Na visão do autor existe incontestável superiorida-
de da raça branca como instinto característico da socia-
bilidade moderna (COMTE, 1894, p. 3). E ressaltava no
início da lição 52 da obra a seguinte indagação sobre
a superioridade da raça branca em relação aos negros:
“Por que a raça branca possui de modo tão pronun-
ciado, o privilégio efetivo do principal desenvolvimento
social e porque a Europa tem sido o lugar essencial
dessa civilização preponderante?” (1894, p. 17-18)11. O
próprio autor responde a essa indagação apoiando-se
numa sociologia concreta e das leis fundamentais do
desenvolvimento social sobre a “superioridade” da po-
pulação branca em relação à população negra. Sobre
isso, o filósofo aponta:

10 Segundo Augusto Comte (1894, p. 3) “Notre exploration historique devra donc être
presque uniquement réduite à elite ou l’avant-garde de l’humanité, comprenant partie
de La race blanche ou les nations européennes. Em nous bornant même, pour plus de
précision, surtout dans lês temps modernes, aux peuples de l’Europe occidentale. A une
époque quelconque, notre appréciation rationnelle devra être principalement relative aux
véritables ancêtres politiques de cette population privilégiée, quelle que soit d’ailleurs leur
patrie. Em um mot, nous ne devons comprendre, parmi lês matériaux historiques de cette
première coordination philosophique Du passe humain, que dês phénomènes sociaux
ayant évidemment exerce une influence réelle, au moins indirecte ou lointaine, sur l’en-
chaînement graduel dês phases successivres qui ont effectivemente amené l’état présent
dês nations lês plus avancées”.
11 Segundo Augusto Comte (1894, p.17-18) “Je choisis, à CET effet, attendu sa haute
importance, l’explication special de l’agent et du theater de l’évolution sociale la plus com-
plete, de celle qui, d’après les motifs précédemment indiqués, doit être le sujet presque
exclusif de notre opèration historique. Pourquoi La rece blanche possède-t-elle, d’une ma-
nière si prononcée, Le privilège effectif Du principal développement social, ET pourquoi
l’Europe a-t-elle été le lieu essentiel de cette civilisation preponderante?”.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
307
[...] a organização característica da raça
branca, e sobretudo quanto ao aparelho
cerebral, alguns germes positivos de sua
superioridade real; embora os naturalistas
estejam, hoje, muito longe de chegar a um
acordo a esse respeito. Igualmente, sob o
segundo ponto de vista, podem-se entrever,
de um modo pouco mais satisfatório, diver-
sas condições físicas, químicas e mesmo
biológicas que certamente tiveram alguma
influência sobre a eminente propriedade das
regiões europeias de servir até hoje de tea-
tro essencial desta evolução preponderante
da humanidade (COMTE, 1894, p. 18)12.

De acordo com Dante Moreira Leite (2007) também no


Brasil se esteve muito próximo de teorias desenvolvi-
das a partir das questões climáticas sobre o desenvol-
vimento e a evolução da espécie humana, marcantes
em autores como Silvio Romero (1888). O cientificismo
do século XIX também se baseou nessas referências
para fundamentar suas teses (LEITE, 2007, p. 237). A
concepção explicitada na citação revela o que foi a po-
lítica racial brasileira do embranquecimento, levada a
cabo principalmente entre 1872 a 1940 no Brasil. Tal-
vez possamos vislumbrar os fundamentos e a legitima-
ção (THOMPSON,1995) dos argumentos para tal polí-
tica racializada.
12 Segundo Augusto Comte (1894 p. 18): “Sans doute, on aperçoit déjà, sous le premier
aspect, dans l’organisation caractéristique de la race blanche, et surtout, quant à l’appareil
cerebral, quelques germs positives de as supériorité réelle; encore tous lês naturalistes
sont-ils aujourd’hui fort éloignés de s’accorder convenableblemente à cet égard. De même,
sous le second point de vue, on peut entrevoir, d’une manière un peu plus satisfaisante,
diverses conditions physiques, chimiques et meme biologiques, qui ont dû certainement
influer, à un degree quelconque, sur l’èminente propriété dês contrées européennes de
servir jusqu’ici de théâtre essentiel à cette évolution preponderante de l’humanité”.

308 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Outro autor, Alexis Tocqueville (2005 [1835]), foi consi-
derado por Aron (1999) um dos mais importantes pen-
sadores políticos do século XIX, comparável a Montes-
quieu. Tocqueville (2005 [1835]) discutiu a democracia
e a igualdade de condição, definindo-a como a situa-
ção em que todos os indivíduos que compõem cole-
tivamente o ambiente democrático sejam socialmente
iguais. Isso explicou e implicou a ideia da democracia
da igualdade social. Esta concepção de democracia foi
inspirada na experiência que o autor teve em 1831 nos
Estados Unidos. Mesmo com toda a destreza em rea-
lizar uma análise dos fenômenos das instituições polí-
ticas estadunidense, Tocqueville (2005 [1835]) não se
livrou da perspectiva de hierarquizar negros e brancos,
afirmando o autor expressar sobre os grupos humanos
que compunham a população nos Estados Unidos que
“entre esses homens diferentes, o primeiro a atrair os
olhares, o primeiro em luz, em força, em felicidade é o
homem branco, o europeu, por excelência; abaixo dele
aparecem o negro e o índio” (TOCQUEVILLE, 2005
[1835], p. 374). O autor ressaltou ainda que a opres-
são que as populações indígenas sofreram juntamente
com a população negra nos Estados Unidos foram ma-
les irremediáveis ao processo de “civilização” pelo que
esses povos estavam submetidos aos homens (euro-
peus) mais civilizados (TOCQUEVILLE, 2005 [1835], p.
392-393). Essas declarações sobre a população negra
estadunidense são impactantes e devem ser contextua-
lizadas ao momento histórico, mas não podemos negar
que esses intelectuais influenciaram a ciência política
contemporânea e que tais declarações exemplificam
como o senso unificou grandes autores clássicos des-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
309
se período quando o assunto era tratar da população
negra.
O argumento que trazemos para esse texto é tais ar-
quétipos hegemônicos presentes nestes discursos dos
filósofos iluministas e de outros pensadores europeus
ajustaram e modelaram o status quo da relação entre
negros e brancos, seja no continente africano, seja com
os africanos da diáspora. O projeto civilizador tem um
forte traço iluminista, sendo a razão a sua glorificação
(BARRETO, 1995). Nesse projeto, o evolucionismo e o
etnocentrismo foram correntes de pensamento impac-
tantes no processo de não aceitação perante os povos
não europeus. Segundo Munanga (2009), a Sociedade
Etnológica foi uma associação cientifica fundada em
Paris, em 1839, e não fugiu ao seu tempo, sendo uma
das instituições que fundamentou o “racismo científi-
co”. Diferenças culturais suscetíveis de serem lidas por
meio de diferenças expressas no corpo – como a cor de
pele, o tipo de cabelo, a estatura – eram reconhecidas
como etapas rumo ao progresso das sociedades mais
avançadas: nesse caso, as sociedades europeias (SA-
LAINI, 2013).
A outra teoria que respondeu ao seu tempo e explica-
va as diferentes culturas, baseando-se no predomínio
exercido pelo meio ambiente, foi, segundo Munanga, o
evolucionismo (2009, p.32). Esse pensamento influen-
ciou fortemente o debate racial e colocou o “branco”
como represente natural do topo da escala hierárquica
das raças. O racismo doutrinal, presentes nessas cor-
rentes de pensamento, legitimou e justificou, num pri-
meiro momento histórico, a escravidão e a colonização.
Tanto como fizeram os teóricos da antropologia física,

310 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
que ligaram os traços da população negra à inferiori-
dade devido à cor da pele escura e ao cabelo crespo e
atribuíram à superioridade da população branca a pele
clara, o cabelo liso e o rosto ortognato.
Ideologicamente, a antropologia física e a etnologia no
século XIX constituíram as ciências auxiliares e ajuda-
ram a esconder os objetivos socioeconômicos das em-
presas imperialistas e colonialistas (MUNANGA, 2006;
FOÈ, 2013). Importante salientar que a desumanização
da população negra africana e da população negra da
diáspora não se limitou apenas a esse racismo doutri-
nal. Munanga (2009, p. 37) ressalta que há um legado
epistemológico que transcenderá em formas explicitas
e implícitas de racismo; há todo um conjunto de indiví-
duos que concebem como valorização a branquidade
e todas as subsequentes formas de dominação social,
econômica e cultural vindas desse modelo. Nesse sen-
tido, independentemente da origem étnica do indivíduo,
o que conta é a sua assimilação ideológica e epistemo-
lógica. O que se vê nos não-europeus (Outros) é o ser
inferior, a desvalorização.

Conclusão

A ruptura da continuidade consiste em desvelar as gran-


des narrativas da época moderna13 que estabeleceram

13 Foè (2013, p. 218) considera que “o pós-modernismo e o pós-colonialismo têm um


mérito incontestável, o de colocar no centro das suas preocupações a questão essencial
das condições políticas do diálogo das culturas através da crítica das grandes narrativas
da época moderna: a Razão, o Estado, o pregresso, a emancipação, etc.”.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
311
doutrinas, métodos, ideias, tecnologias e ciências que
acarretaram o controle do comportamento humano14,
legitimando discursos e práticas que fundamentaram
um legado epistemológico e material que abrange rela-
ções de poder desiguais no acesso ao trabalho, à edu-
cação, à saúde e à habitação, aos seus direitos civis e
políticos. A ruptura da continuidade tem como desafio,
diante do legado que ligou o preconceito racial com o
religioso, desconstruir do imaginário brasileiro valores
e ideias que subjugam os afro-brasileiros como herdei-
ros de uma cultura “incivilizada”, “selvagem” e impreg-
nada de fetichismo. A perspectiva que sustentamos na
análise desse artigo parte de uma linha de raciocínio
que compreende a importância de conhecer as origens
dos aportes da teoria do racismo científico para melhor
compreendê-lo e com isso confrontá-lo. O desenvolvi-
mento da análise do contexto de produção permitiu e
desafiou-nos a investigar a gênese e as matrizes epis-
temológicas e ideológicas do racialismo. Nesse caso,
as leituras e reflexões conduziram a elencar pensado-
res que foram influenciados pelo iluminismo, mas não
conseguiram superar a visão racialista da época em
relação aos africanos e africanos da diáspora. A aná-
lise aponta como tais perspectivas permanecem como
legado de uma ciência marcada pelo eurocentrismo e
legitimado por cânones, mantendo uma tradição de hie-
rarquia étnico-racial que inferioriza os negros. Por outro
14 Leite (2007, p. 237) salienta que “fundamentalmente, o prestígio das ciências naturais
e a tentativa de cientificizar o conhecimento do homem decorreram não do progresso
científico, mas da tecnologia científica. Vale dizer, quando as aplicações tecnológicas
permitiram a transformação mais eficiente da natureza - seja pela utilização da energia
seja pelo controle físico dos organismos -, a ciência tinha demonstrado sua eficiência e
sua utilidade. E o seu prestígio, fora dos círculos de especialistas e curiosos, decorreu
dessas aplicações e, especialmente, da ideia de chegar ao controle do comportamento
humano”.

312 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
lado, mais do que evidenciar o contexto e o legado des-
sas formas de hierarquizar os seres humanos, o artigo
possibilitou a descoberta de autores que fizeram frente
a essas concepções teóricas. Autores que possibilita-
ram e instigaram ao pesquisador a fazer do seu corpo
negro “um homem que interroga” (FANON, 2002, p. 21).
Sem dúvida, um dos principais resultados que a pesqui-
sa e as leituras proporcionaram e podem proporcionar
ao indivíduo e a quem pesquisa, são as descobertas.
Principalmente quando essas descobertas mexem e al-
teram a consciência de forma imanente, possibilitando
elaborar um conjunto de ideias voltadas a romper com
estruturas normativas que acomoda e harmoniza o ra-
cismo estrutural brasileiro. A partir da percepção da ini-
ciativa histórica de Aimé Césaire (2010); Marcien Towa
(1979); Theóphile Obenga (1990); Nkolo Foé (2013), foi
possível visar uma trajetória do pensamento sócio-ra-
cial.

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Ra o, u o E u a o: t at a ol a
317
NEAB
Capítulo 10
RACISMO, PODER E LEGITIMAÇÃO: OS
DISCURSOS SOBRE DIVERSIDADE NA GESTÃO
DO PROGRAMA NACIONAL BIBLIOTECA DA
ESCOLA (PNBE)
Débora Oyayomi
u o EAraujo
Ra o, u a o: t at a ol a
319
Capítulo 10

Racismo, poder e legitimação: os discursos


sobre diversidade na gestão do Programa
Nacional Biblioteca da Escola (PNBE)

Débora Oyayomi Araujo1

Introdução

O discurso como manifestação do poder é o objeto


deste artigo. Mais do que mera expressão do pensa-
mento, o discurso pode revelar uma maior ou menor
capacidade de acesso e de manipulação de recursos
para o benefício de um grupo sobre outro; por isso sua
direta relação com o poder. Este texto reúne parte dos
dados de uma pesquisa que investigou estratégias de
racialização operando no Programa Nacional Bibliote-
ca da Escola (PNBE). Tal Programa é responsável pela
distribuição de obras literárias e de referência para as
bibliotecas das escolas públicas brasileiras da educa-
ção básica. Mas na referida pesquisa o interesse foi
de desenvolver análise sobre PNBE que incluísse um
olhar específico sobre nuances pouco investigadas até
então em pesquisas acadêmicas: a maneira como a
diversidade étnico-racial tem sido ou não considerada.
1 Doutora em Educação pela UFPR, graduada em Letras – Português/Inglês, com es-
pecialização em Língua Portuguesa e Literatura. Professora do Centro de Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo, atuando na disciplina de Educação das Relações
Étnico-Raciais.

320 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
E é com a mesma proposta que este artigo pretende
analisar como os discursos produzidos por sujeitos que
representam segmentos de poder (no caso específico,
que selecionam os livros para o PNBE) podem expres-
sar pensamentos e atitudes racistas, escamoteados em
estratégias discursivas diversas.
E, para tanto, dois importantes referenciais fundamen-
tarão as análises: a Hermenêutica de Profundidade,
desenvolvida por John Brookshire Thompson (2002) e
a Análise Crítica de Discurso (ACD), a partir do enfo-
que teórico de Teun A. van Dijk (2008). O texto será
dividido em três partes: apresentação de elementos da
ACD, análise de trechos da entrevista concedida por
representante da avaliação pedagógica do PNBE e as
considerações finais.

1. A Análise Crítica de Discurso (ACD)

Embora Thompson (2002) reitere que em uma pesqui-


sa com a metodologia da HP todas as fases devam ser
desenvolvidas (sob pena de uma interpretação limitada
ou tendente a uma ou outra fase), em função dos limites
sobre a extensão do artigo, neste texto será enfatizada
apenas a segunda fase: análise formal ou discursiva,
por meio da Análise Crítica de Discurso.
Considerando que as relações de dominação se ex-
pressam por diversas formas, dentre elas o discurso, é
importante atribuí-lo uma dimensão devida, pois suas
propriedades típicas (acesso a publicações de maior
circulação ou controle e predomínio dos turnos de fala,

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
321
por exemplo) são sempre ligadas ao maior ou menor
acesso ao poder.
Há, portanto, na Análise Crítica de Discurso (ACD),
uma intrínseca relação entre poder e discurso mas com
uma especificidade: poder é relativo a controle, isto
é, “controle de um grupo sobre outros grupos e seus
membros” (VAN DIJK, 2008, p. 17). Se o controle, por
sua vez, ocorre para favorecer os interesses de quem
exerce o poder e de modo a desfavorecer os que são
controlados, estamos diante de um “abuso de poder”
(VAN DIJK, 2008, p. 17, grifo do autor). Analogamente
é possível propor que abuso de poder se associa, por
definição, ao tipo particular de ideologia proposto por
Thompson (2002) já que ideologia para ele é a maneira
“como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas,
serve para estabelecer e sustentar relações de domi-
nação” (THOMPSON, 2002, p. 78, grifos do autor). É
importante reiterar, no entanto, mas sem condições de
aprofundamento neste texto, que ambos os autores
não comungam de um mesmo conceito de ideologia: ao
passo que para Thompson ideologia é sempre um con-
ceito negativo e crítico e refere-se à expressão de uma
relação assimétrica de poder (portanto só há ideologia
por parte do grupo dominante), para van Dijk o principal
âmbito do seu conceito de ideologia é o sociocognitivo:

[...] uma ideologia é uma estrutura cognitiva


complexa que controla a formação, transfor-
mação e aplicação de outros tipos de cog-
nição social, tais como o conhecimento, as
opiniões e as posturas, e de representações
sociais, como os preconceitos sociais (VAN
DIJK, 2008, p. 48).

322 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
No entanto, não se pode negar que a contribuição de
ambos os autores para o campo dos estudos sobre dis-
curso extrapola as suas diferentes perspectivas sobre
o conceito de ideologia. E, concordando com van Dijk
(2008) sobre o fato de a “análise crítica de problemas
sociais, empiricamente adequada, é normalmente mul-
tidisciplinar” (VAN DIJK, 2008, p. 114, grifo do autor),
este artigo intenta uni-los em suas características co-
muns, sobretudo a de que o combate às relações assi-
métricas de poder pode ser por meio do desvelamento
de discursos hegemônicos.
Retomando a discussão sobre o conceito de poder para
a ACD, a adoção de uma análise crítica exige um olhar
mais apurado sobre a atuação desse poder e sua in-
cidência: “nossa principal perspectiva encontra-se nas
formas como esse poder é exercido, manifestado, des-
crito, disfarçado ou legitimado por textos e declarações
orais dentro de um contexto social” (VAN DIJK, 2008,
p. 39).
A partir de três maneiras pelas quais o discurso relacio-
na-se com o poder, o autor delimita algumas caracterís-
ticas necessárias a uma análise efetivamente crítica do
discurso. A primeira delas são os gêneros de discurso e
de poder, em que a predomina a via persuasiva. Nesse
âmbito, o autor destaca tipologias ou caminhos “pelos
quais o poder é exercido através do discurso como for-
ma de interação social” (VAN DIJK, 2008, p. 52). Podem
ser: a) por meio de um controle direto, com atitudes di-
retivas e pragmáticas, “tais como comandos, ameaças,
leis, regulamentos, instruções” ou indiretas, “por meio
de recomendações e conselhos” (VAN DIJK, 2008, p.
52); b) por meio de mecanismos retóricos, como a per-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
323
suasão ou repetição em que, segundo o autor, essa ti-
pologia é bastante comum nos anúncios publicitários
e propagandas que a utilizam “com o apoio dos me-
canismos tradicionais de controle do mercado” (VAN
DIJK, 2008, p. 52); c) através da previsão de ações fu-
turas, ou seja, “previsões, planos, cenários, programas
ou alertas, algumas vezes combinados com diferentes
formas de conselho”, sendo os membros desse con-
selho experts no assunto “e sua base de poder assen-
tar-se muitas vezes sobre o controle do conhecimento
e da tecnologia” (VAN DIJK, 2008, p. 52); d) por meio
de várias modalidades narrativas com alta carga de in-
fluência sobre os modos de ser e viver. São exemplos
romances, filmes ou reportagens jornalísticas que “po-
dem descrever a carga (in)desejável de ações futuras
e podem ocorrer a uma retórica com apelos dramáticos
ou emocionais, ou a várias formas de originalidade es-
tilística ou temática” (VAN DIJK, 2008, p. 53). O autor
considera que por meio desse recurso “fabrica-se a
base conceitual do poder e que o público em geral fica
sabendo quem possui poder e o que desejam os pode-
rosos” (VAN DIJK, 2008, p. 53).
A segunda maneira são os níveis de discurso e de po-
der em que o primeiro pode “favorecer, manifestar, ex-
pressar, descrever, sinalizar, esconder ou legitimar as
relações de poder entre os participantes do discurso
ou entre os grupos aos quais pertencem” (VAN DIJK,
2008, p. 54). O primeiro nível é o pragmático: acesso
limitado ou controlado dos atos de discurso. O segundo
relaciona-se à interação conversacional, em que “um
dos participantes pode controlar ou dominar a troca
de turnos, as estratégias de auto-representações e o

324 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
controle sobre quaisquer outros níveis de fala espon-
tânea ou de diálogo formal” (VAN DIJK, 2008, p. 54).
O terceiro refere-se ao tipo ou gênero de discurso, que
é definido pelos falantes “mais poderosos” como, por
exemplo, a abertura para narrativas pessoais que logo
são censuradas “em favor de gêneros de discurso con-
trolados” (VAN DIJK, 2008, p. 54). O quarto e último as-
semelha-se aos anteriores, pois “os temas deixam-se
controlar, geralmente, pelas regras da situação comuni-
cativa, mas sua iniciação, mudanças ou variações são
controladas ou avaliadas na maior parte das vezes pe-
los falantes mais poderosos” (VAN DIJK, 2008, p. 54).
A terceira maneira é diretamente relacionada às dimen-
sões de poder. Assim, o autor destaca: a) as institui-
ções de poder, como os governos, os meios de comu-
nicação, os sindicatos, as igrejas e as instituições de
ensino, entre outras; b) os postos hierárquicos que as
pessoas ocupam dentro dessas instituições que de-
mandam “diferentes atos de fala, gêneros ou estilos,
por exemplo, os que sinalizam autoridade ou comando”
(VAN DIJK, 2008, p. 55); c) as relações de poder entre
grupos – que pode ocorrer paralela ou combinadamen-
te com as instituições de poder – como, por exemplo,
entre “ricos e pobres, homens e mulheres, adultos e
crianças, brancos e negros, nacionais e estrangeiros,
os que possuem formação superior e os que não a pos-
suem, os heterossexuais e os homossexuais, os reli-
giosos e os não-religiosos [...]”(VAN DIJK, 2008, p. 55).
O autor argumenta que nessas relações o efeito sobre
o discurso incidirá no controle desigual do diálogo, por
exemplo; d) o exercício do poder quanto à sua influên-
cia e abrangência, já que algumas instituições ou seus

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
325
integrantes “podem realizar atos discursivos que afe-
tam, por inteiro, países, estados, cidades ou grandes
organizações, ou podem determinar a vida e morte, a
saúde, a liberdade pessoal, o trabalho, a educação ou a
vida particular de outras pessoas [...]” (VAN DIJK, 2008,
p. 55); e) diferenças de poder, em que uns “têm um con-
trole total imposto ou mantido pela força” e outros “que
exercem um controle parcial, sancionado ou por uma
elite, uma maioria, ou por um consenso mais ou menos
geral” (VAN DIJK, 2008, p. 55).
Munida dessas características teórico-metodológicas
da Análise Crítica de Discurso e da metodologia da Her-
menêutica de Profundidade, a proposta a seguir é de
analisar os discursos produzidos acerca do PNBE.

2. Os discursos da avaliação pedagógica do PNBE

O Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) é o


maior programa na história da educação brasileira em
distribuição de livros a bibliotecas de escolas públicas.
Desde 1997 ele modificou a “identidade” das bibliote-
cas das escolas públicas no Brasil ao fornecer obras li-
terárias com qualidade tanto física (em características e
formatos similares ou idênticos aos livros comercializá-
veis) quanto estéticas, atuando efetivamente como um
Programa preocupado com a formação de leitores/as.
Mas vários estudos2 que investigaram a estrutura e a
composição da distribuição dos livros identificaram al-
gumas desigualdades simbólicas no que se refere à
2 Várias dessas pesquisas foram compiladas no estudo de Araujo e Silva (2012).

326 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
diversidade humana: predominam obras clássicas (ou
canônicas) com sub-representação de personagens
não brancas e/ou com tais personagens em contextos
de estereotipia. E esses estudos constataram que tal-
vez o grande problema incidisse no processo de ava-
liação e seleção das obras dos acervos do PNBE. Por
meio desses resultados, a pesquisa de onde provêm
os dados que aqui serão apresentados buscou inves-
tigar mais profundamente como se constrói a política
do PNBE para comprovar se havia marcas do racismo
institucionalizado atuando de modo a interpor na aqui-
sição de obras com contextos culturais e étnico-raciais
diversos (tal como é a expressão da sociedade brasi-
leira) ou se não eram tais marcas, quais seriam os im-
peditivos que levariam a tal sub-representação (seria a
baixa qualidade das obras, por exemplo?).
Para atender às dimensões e limites do artigo, apenas
parte da entrevista que foi realizada com a representan-
te pela avaliação pedagógica dos livros do PNBE será
apresentada. A entrevista ocorreu em 10/07/20013 na
sede da instituição responsável pela avaliação pedagó-
gica do PNBE pelo período de 2006 a 20153: o Centro
de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), localizado
na Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Fe-
deral de Minas Gerais (UFMG). Diferentemente das ex-
pectativas de que a entrevista teria alto grau de forma-
lidade e com respostas breves em função do tema4, a

3 Em função da conjuntura política atual em que tanto o cronograma do PNBE quanto do


Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) estão atrasados, não é possível atualmente
afirmar se tal instituição será a responsável pela avaliação das demais edições, caso elas
ocorram.
4 Acrescenta-se a isso a ressalva de van Dijk (2008, p. 22): “Na prática do trabalho de
campo, a regra geral é que quanto mais altos e influentes os discursos menos eles se
mostram públicos e acessíveis para um exame crítico [...]”.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
327
maneira descontraída e a forma de recepção por parte
da pessoa entrevistada levou a um processo que durou
mais de duas horas. No entanto, nas fases posteriores
à entrevista (devolutiva da transcrição à pessoa entre-
vistada e aprovação ou não do texto), foram se estabe-
lecendo algumas dificuldades: a entrevistada solicitou
alterações de ordem de linguagem (de nível informal
para mais formal) pois, segundo ela, sua postura foi ex-
cessivamente “solta” e sem censuras. E mesmo con-
cordando com van Dijk (2008) sobre a ideia de que “es-
pecialmente os autores profissionais e as organizações
devem ter um entendimento acerca de quais são as
possíveis ou prováveis consequências de seus discur-
sos sobre as representações sociais de seus recepto-
res” (VAN DIJK 2008, p. 33), foi estabelecido um maior
cuidado com a análise de sua entrevista, considerando
que muitas das suas declarações foram realizadas em
alto nível de informalidade, reiterando: nível estabeleci-
do pela própria entrevistada.
Os registros foram realizados com dois gravadores,
sendo um MP3 Player LSC_91N171V_A1 9.1.52, e um
aparelho de celular Samsung Duos GT – S5303B. Para
fins de facilitação da leitura, os registros de fala da pes-
soa entrevistada utilizarão o código: REPRESENTAN-
TE DA AVALIAÇÃO PEDAGÓGICA DO PNBE por meio
da sigla RAP-PNBE. E da pesquisadora será utilizado
o código: PQ. As perguntas propostas para a entrevista
analisada foram organizadas em um formato de ques-
tionário semiestruturado. Uma ressalva feita pela entre-
vistada é relevante ser destacada:

RAP-PNBE: Eu só acho que se você con-


seguir produzir um trabalho falando mais do

328 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
esforço das temáticas se fazerem presentes
no acervo nos acervos do PNBE com uma
literatura de qualidade, isso é melhor do que
episódios que provocaram tensões.

Tal ressalva foi constantemente considerada antes e


durante a produção das análises a seguir. No entanto,
para os interesses deste texto, omitir ou ignorar impor-
tantes declarações sobre a relação literatura infantoju-
venil, diversidade étnico-racial, racismo e movimentos
sociais seria um prejuízo, além de não convergir com
a posição demarcada nesse estudo que é de reconhe-
cer e refletir “sobre seus próprios compromissos com a
pesquisa e sobre sua posição na sociedade”, além “de
assumir a perspectiva dos grupos dominados [...] [na
tentativa de] tentar influenciar e cooperar com ‘agentes
de mudança’ ou ‘dissidentes’ cruciais dos grupos domi-
nantes” (VAN DIJK, 2008, p. 16).
Perguntada sobre o perfil dos/as avaliadores/as, ficou
evidente a exigência de relação profissional e/ou aca-
dêmica com a área de Letras ou Educação, mas crité-
rios subjetivos também se faziam presentes:

RAP-PNBE: [...] Hoje, depois que esse pro-


cesso está consolidado, recebemos alguns
e-mails do tipo: ‘Como eu faço para ser
avaliador do PNBE?’. Então hoje a deman-
da já surge assim. E aí nós já perguntamos
à pessoa sobre suas qualificações e teve
gente que já entrou assim.

No entanto, se tal subjetividade por um lado ocorre em


função da qualificação comprovada como pré-requisito,

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
329
ao ser indagada sobre outras possibilidades de ingres-
so de pareceristas com perfis acadêmicos adequados e
também vinculação com instituições e movimentos so-
ciais, a autora não reconhece como legítima:

RAP-PNBE: Não, nunca me ocorreu isso


não. O que tentamos é absorver indivi-
dualmente as pessoas. Por exemplo, tem
um grupo forte aqui de ações afirmativas.
Tem pessoas que são
PQ: Mas com o foco especificamente, por
exemplo, uma seleção específica para a
composição de membros que tenham essa
vinculação, essa trajetória?
RAP-PNBE: Não, eu acho que nem o edital
permite.

Ao não permitir esse tipo de ingresso, mas havendo


certa flexibilidade na seleção dos/as avaliadores/as,
que é explicitamente subjetiva, a equipe responsável
pela avaliação pedagógica dos livros também inviabili-
za ações afirmativas no sentido de inserir membros de
outros grupos que não aqueles já conhecidos ou “esta-
belecidos”, utilizando como justificativa o cumprimento
dos preceitos do “edital”. Embora se trate de argumento
factível e legal, ao se observar os discursos apresenta-
dos no decorrer deste texto é possível interpretar esse
contexto também sob outra perspectiva: de fabricação
de consensos com vistas ao atendimento de interesses
de um grupo sobre outro.

Por meio de investimentos seletivos, [...]


contratação (e demissão) de pessoal, e al-
gumas vezes por meio da influência edito-

330 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
rial direta ou diretrizes, eles podem contro-
lar parcialmente o conteúdo ou ao menos a
dimensão do consenso e dissenso da maior
parte das formas de discurso público (VAN
DIJK, 2008, p. 45).

Do ponto de vista discursivo, essa estratégia de per-


suasão atua no sentido de aumentar as chances de for-
mar representações mentais desejadas nos receptores:
“Uma estratégia crucial quando se trata de disfarçar o
poder é convencer as pessoas sem poder de que elas
praticaram as ações desejadas em nome de seus inte-
resses” (VAN DIJK, 2008, p. 84). Além disso, com tal
procedimento informado pela entrevistada, a política
assume um caráter altamente personalista pois esta-
belece a escolha dos membros sob critérios bastante
subjetivos.
Uma das perguntas versava sobre a proporcionalidade
de obras literárias com diversidade humana. A entrevis-
tada rebate essa ideia ao informar que:

RAP-PNBE: Não tem ninguém é interditan-


do livro de literatura desta ou daquela cono-
tação.
[...]
PQ: Tem uma pesquisa que analisou 20085
[...], ela verificou uma questão de proporcio-
nalidade. Ela diz na pesquisa que num acer-
vo de vinte livros [...] a orientação [...] (ela
diz que estava no edital) que um livro seria
ou de temática afro-brasileira ou africana ou
de temática indígena. Isso procede?
RAP-PNBE: De jeito nenhum. Não. Nunca.
5 A referida pesquisa é de Venâncio (2009).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
331
[...]
RAP-PNBE: Não. Nós tentamos desespe-
radamente colocar. Desesperadamente.
Mas por exemplo, se temos quatro acervos
de anos iniciais para montar não podemos
posso forçar, se não tiver quatro livros de
temática racial bacana para inserir. Como
não podemos forçar quadrinho, [...] livro de
imagem,
[...]
RAP-PNBE: [...] mas temos que cuidar de
diversidade de gênero, de diversidade de
autores, diversidade de temática, diversida-
de de editoras.
[...]
PQ: Mas de qualquer maneira vocês conse-
guem perceber um aumento na quantidade
de produção de livros que tratam da diversi-
dade africana,
RAP-PNBE: Racial?
PQ: Indígena,
RAP-PNBE: Bastante. Bastante.
PQ: E você tem um motivo para isso? Ima-
gina alguma coisa que fez com que
RAP-PNBE: Olha, eu acho que é o contex-
to, é a valorização, é a consciência de que
isso precisa estar presente. Muitas vezes o
livro é bacana mas tem ainda aquele resquí-
cio da militância, aquele resquício da pre-
leção, aquele ressentimento e aí isso não
cabe em literatura. E então não podemos
selecionar o livro. Mas tem crescido muito.
Agora, como bons guardiões da literatura,
nós não colocamos qualquer coisa só para
contemplar a temática, não. Ele tem que ser
bom literariamente. Ele tem que possibili-

332 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
tar uma experiência estética. Por isso que
é difícil você combinar literatura – livro di-
dático eu acho que tem mais é que fazer
isso; é obrigação, tem que escancarar, tem
que abrir o jogo, porque está num proces-
so de educação regular, fazendo com que
esse país encare as coisas do jeito que elas
precisam ser encaradas. – Agora, na litera-
tura nós temos que achar um caminho. [...]
Mas eu acho que a tendência do grupo é,
dos autores, pelo menos, tanto na indíge-
na quanto no racial é perceber que precisa
ser literatura. Porque senão fica meio (sic):
vira tema transversal, vira paradidático e aí
o edital é claro: isso aqui é para escolher
livro de literatura. Não é paradidático, en-
tendeu? Aí tem aqueles que se inscrevem
como literatura mas você vê que a estrutura
narrativa, que aquele enredo ali é um mero
pretexto para divulgar uma causa, para dis-
cutir panfletariamente uma temática e aí
nós que somos da literatura não aceitamos.
Não aceitamos porque você não pode pas-
sar para a criança, para o adolescente, nós
temos o compromisso de não fazer isso, de
que aquilo é literatura.

Essa perspectiva aproxima-se da argumentação de Ril-


do Mota (2012) sobre a não recusa, por parte do pro-
cesso de avaliação pedagógica do PNBE, de obras “ex-
plícita ou implicitamente engajadas, mas sim aquelas
obras em que o caráter engajado se sobrepõe ao lite-
rário, transformando o texto em propaganda” (MOTA,
2012, p. 316). As considerações de ambos os argumen-

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
333
tos se assemelham a resultados encontrados na pes-
quisa de Araujo e Silva (2012, p. 216):

Outro elemento a discutir é que não é o fato


de uma pessoa ser negra e ter vivenciado
o racismo que necessariamente sua obra
será de qualidade ou com potencial para
promoção de igualdade racial. Foram identi-
ficados, ao invés de promoção de igualdade,
títulos que reforçaram estereótipos de diver-
sas maneiras: seja por meio de representa-
ções tipificadas (personagem negra do sexo
masculino como menino de rua [...]), ou
quando se pretende problematizar o tema
do racismo, mas se acaba ‘engessando’ o
enredo. Em outras palavras, algumas obras
preocupadas em propor a superação do ra-
cismo, trazendo tramas com tal tema, nem
sempre obtêm êxito em seu objetivo, além
de deixar de lado o caráter literário que toda
obra infantil e infantojuvenil, sobretudo, pre-
cisam ter, sob pena de vivenciarem seus es-
tigmas historicamente imputados e que as
relegaram a práticas didatizantes e desvin-
culadas de qualidade estética.

Fica evidente, portanto, a complexidade que envolve a


produção literária oriunda de grupos discriminados ou
com temática que aborde grupos discriminados. Mas
para concordar totalmente com todas essas críticas é
necessário ponderar sobre o caráter militante das obras
que também se faz presente em autores/as canônicos/
as. Lima Barreto, por exemplo, como aponta Manoel
Freire (2008, p. 4), “teria encontrado o termo ‘literatura

334 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
militante’ em Eça de Queiroz”; Nathalia de Aguiar Fer-
reira Campos (2013) destacou em sua pesquisa como
escritores das décadas de 1930 a 1950, em especial
Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade,
apresentavam um alto nível de engajamento em suas
produções; Enio Passiani (2002) enfatiza o quanto a
militância fez parte da obra e vida de Lobato e na defe-
sa de seu plano de nação:

A literatura militante de Lobato procurava


conquistar um público cada vez mais amplo,
apontar para seus leitores os problemas do
país e convidá-los para a ação. [...] E é fácil
notarmos tal característica ao longo de toda
sua obra. Já no seu primeiro livro de con-
tos, Urupês, Lobato incorpora dois artigos
que publicara n’O Estado de S. Paulo: Ve-
lha Praga e Urupês. Neles, o escritor pau-
lista denuncia as queimadas comuns nas
regiões interioranas do Estado e cria um
dos seus principais personagens, o Jeca
Tatu, avesso da imagem romântica do ca-
boclo, para revelar, segundo ele, a ‘verda-
deira’ face do homem do campo: indolente
e doente. [...] O livro O problema vital alerta
quanto ao problema do saneamento do país
e é inteiramente dedicado à campanha da
vacinação. A lista poderia continuar e seria
extensa. O que é preciso frisar é o enga-
jamento do escritor em praticamente todas
as questões sociais do país: queimadas,
saneamento, petróleo, eleições, etc. – pro-
blemas que faziam parte do cotidiano do
povo brasileiro, sempre questões da ordem
do dia. E foi este o material sobre o qual

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
335
Monteiro Lobato se debruçou para elaborar
o enredo de seus livros (PASSIANI, 2002, p.
250, grifos do autor).

Com uma lista extensa, como afirma Passiani, é impor-


tante destacar ainda o engajamento em obras como “O
presidente negro” (no plano da eugenia) e “Emília no
país da gramática” (no universo da Língua Portugue-
sa), ambos de Lobato. Sendo assim, a mera crítica à
militância ou engajamento não poderia proceder, a não
ser que, como afirma a entrevistada, a obra não possi-
bilite uma “experiência estética”. Por isso a importância
de um olhar menos taxativo que previamente pode es-
tar categorizando obras com temáticas para além das
convencionais como inferiores. Tratando da literatura
negra e seu suposto caráter de militância como carac-
terística inata, Florentina Souza (2010) lança um alerta
sobre o tema:

Não podemos deixar de falar de literatura


negra como essencialização, nem podemos
atribuir a uma produção que resulta de expe-
riências vivenciadas diferenciadas nenhum
traço de homogeneidade. Se existem aque-
les que veem a literatura como um espaço
para a denúncia das desigualdades sociais
e suas vinculações étnicas, ou como uma
arma de combate contra o racismo e a exclu-
são, existem outros que com lirismo e sen-
sibilidade combatem de outra forma e a res-
gatam uma memória quase esquecida dos
cantos religiosos, dos cânticos míticos, das
festas e outras tradições que se reconfigura-
ram na diáspora e que hoje resistem nos tex-

336 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
tos inscritos nas memórias dos velhos, nas
recordações, às vezes, imprecisas dos mais
jovens, nos antigos casarios e nas ruinas
das pequenas cidades e vilas que guardam
segredos imemoriais (SOUZA, 2010, p. 125).

Regina Dalcastagnè (2012) argumenta sobre uma pers-


pectiva que sintetiza essa análise: “Assim, a literatura,
amparada em seus códigos, sua tradição e seus guar-
diões, querendo ou não, pode servir para [...] exclui[r],
marginaliza[r]. Perdendo, com isso, uma pluralidade
de perspectivas que a enriqueceria” (DALCASTAGNÈ,
2012, p. 21).
Outro aspecto de destaque nesse último excerto apre-
sentado da entrevista é a ausência de correlação, por
parte da entrevistada, da ampliação do número de li-
vros com temáticas africanas e afro-brasileiras com as
alterações no artigo 26A da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB), sugerindo o raso conhe-
cimento sobre o tema. Além disso, ressalta-se o pouco
trato com as temáticas da diversidade étnico-racial por
meio dos usos de modo não convencional dos vocábu-
los “temática indígena” x “temática racial” (p. ex. “tanto
na indígena quanto no racial”), como se o primeiro cor-
respondesse a temas relacionados à cultura indígena e
o segundo relacionados à cultura africana/afro-brasilei-
ra, sugerindo um terceiro grupo que não seria racializa-
do: o branco.
Outra parte da entrevista aqui analisada foi em relação
à polêmica sobre Monteiro Lobato no PNBE.

RAP-PNBE: [...] Eu sou contra qualquer tipo


de censura. [...] e muito menos a censura

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
337
a autor fundador infantojuvenil brasileira.
[...] Ou nós aprendemos a contextualizar
as obras e a formar mediadores de leitura
capazes de propor a leitura da obra naquele
contexto tendo sido ela produzida lá atrás
ou então será o fim! A literatura vai passar
por uma censura xiita, militante, da pior
qualidade. Será um desserviço à literatura.
Fazer bula, nota explicativa em texto literário
para mim [...] é inconcebível, não se ter o
compromisso com a literatura produzida no
tempo que ela foi produzida e saber fazer
as leituras posteriores dessa obra. Se nós
reverenciamos clássicos, por que faríamos
isso com uma figura da literatura infantil-
juvenil como Monteiro Lobato? [...] a rea-
ção [...] foi: agora a gente escolhe Montei-
ro Lobato. [...] Porque a resposta tem que
ser: ‘Aqui não existe, não cabe esse tipo de
censura feita à literatura por movimentos’. É
compreensível, é extremamente compreen-
sível, mas nós temos que lutar pela media-
ção adequada disso.
PQ: A nota explicativa não ajudaria nisso,
nessa mediação?
[...]
RAP-PNBE: [...] quem faria essas notas ex-
plicativas? Gente da literatura que não con-
corda com isso? Quem produziria uma nota
explicativa que não desvirtuasse, que não
que não pusesse uma venda no texto?

A preocupação da entrevistada refere-se ao caráter de


censura que ameaça a manutenção da arte literária,
produzida em contextos em que marcas das interações

338 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
sociais (como o racismo) fazem parte. No entanto, dife-
rentemente das propostas desenvolvidas pelos estudos
críticos de relações étnico-raciais que buscam destruir
ou ao menos desestabilizar tais bases, a interpretação
da entrevistada caminha para a ideia de naturalização.
Thompson (2002) categorizou a naturalização como
uma estratégia de operação da ideologia:

Um estado de coisas que é uma criação so-


cial e histórica pode ser tratado como um
acontecimento natural ou como resultado
inevitável de características naturais, do
mesmo modo como, por exemplo, a divisão
socialmente instituída do trabalho entre ho-
mens e mulheres [...] (THOMPSON, 2002,
p. 88).

A naturalização também se opera na continuidade da


entrevista:

RAP-PNBE: Tem lugar que Monteiro Lobato


está banido, está proscrito, não entra mais.
As pessoas se ‘arrepiam’, é ‘pecado mortal’
trabalhar com Monteiro Lobato, mas eu sou
uma pessoa da literatura! E eu estou con-
vencida de que não é esse o caminho. Não
é assim que se ganha uma causa, sabe?
Eu sei que tem muitos anos de opressão,
eu não sou capaz de dimensionar a gravi-
dade disso historicamente. Mas eu tenho a
convicção de gente da literatura que acre-
dita que não é pela censura, sabe? São
tempos marcados e vividos, demarcados
por uma história que pode criar um viés que

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
339
não conseguiremos sair dele depois. Daqui
a cinquenta anos as pessoas olharão para
esse momento e eu não sei o que irá acon-
tecer. Eu não faço ideia. Eu acho que tudo
poderia ser amenizado se tivéssemos uma
formação de docentes – eu não falo nem de
mediadores de leitura, porque isso já é uma
coisa bem específica – mas do profissional
da educação e da aproximação dele com
a literatura, porque se ele é um bom leitor
de literatura e se ele entende o texto lite-
rário, se ele contextualiza o texto literário,
não será uma macaca na árvore, algo que
o Monteiro Lobato falou lá atrás, sabe, uma
nega beiçuda, então, não pode nada? Nós
vamos ter que pegar todo o Aloisio de Aze-
vedo com o ‘Cortiço’, entre outros [...].

A entrevistada encadeia o discurso buscando ameni-


zar passagens racistas que são abundantes na obra do
consagrado autor. A agressão racial é discursivamen-
te destituída de importância e legitimidade. O ponto de
vista daqueles que são ofendidos e discriminados não é
assumido como forma de identificação com o oprimido;
ao contrário é negado, mesmo em um contexto con-
temporâneo no qual as formas de racismo explícito têm
sido relativamente divulgadas pela mídia (nem sem-
pre com adequadas análises, é bem verdade), em que
pessoas negras em posição de destaque – sobretudo
jogadores de futebol (SANTOS, 2014; VENANCIO; TA-
KATA, 2014) – têm sido vítimas de racismo por meio do
xingamento de “macaco”.
Considerando que não temos ainda, como a própria
entrevistada constata, uma formação de docentes ade-

340 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
quada para trabalhar de modo crítico e coerente temas
relacionados ao racismo, será que “algo que Montei-
ro Lobato falou lá atrás” não exerce impacto hoje em
seus leitores e leitoras, já que grande parte deles/as
estão em processo de formação tanto de leitura quan-
to identitária? Lembremos que as obras do PNBE pos-
suem também um “endereçamento escolar”, ou seja,
“particularidades do uso das obras no ambiente esco-
lar” (MOTA, 2012, p. 315). De outro lado, essa reflexão
também aciona outros eventos recentes relacionados à
censura de obras literárias ou biografias, demonstran-
do a complexidade em que se insere a arte. Essa últi-
ma discussão rapidamente estimula a pergunta: deve
haver limites para a produção artística?, que também
rapidamente desloca a reflexão inicial de que na ponta
de um dos lados alguém está sendo agredido.
Van Dijk (2008) mostra que é comum para produtores
de discursos em espaços de poder argumentarem “que
não têm controle sobre o modo como as pessoas leem,
compreendem ou interpretam seus discursos” (VAN
DIJK, 2008, p. 33) o que, para o autor, não é uma ideia
completamente infundada, já que “não há uma relação
causal entre o discurso e sua intepretação” (VAN DIJK,
2008, p. 33). No entanto, o autor contrapõe apontando
a capacidade de influência dos discursos com contex-
tos de poder:

Mesmo assim, apesar de tal variação indi-


vidual e contextual, isso não significa que
os discursos em si são irrelevantes nos pro-
cessos de influência social. Há uma com-
preensão geral das maneiras como o co-
nhecimento, o preconceito e as ideologias

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
341
são adquiridos também através do discurso
(VAN DIJK, 2008, p. 33).

Portanto, na medida em que uma obra discursiva, lite-


rária ou não, reitera agressões destinadas a um grupo
humano, estamos diante de um impasse entre os limi-
tes da censura e da coerência que se adere a práti-
cas de respeito aos direitos humanos. Mas, para além
disso, retoma-se a discussão sobre os investimentos
públicos envolvidos e a força discursiva presente em
“agora a gente escolhe Monteiro Lobato”, com a justifi-
cativa de que “a resposta tem que ser: ‘Aqui não exis-
te, não cabe esse tipo de censura feita à literatura por
movimentos’”. Como já ressaltado, a crítica à polêmica
incidiu na possibilidade de uma censura a esse autor,
considerado maior representante da literatura infanto-
juvenil brasileira, e na inadequada alternativa que essa
censura sugeria: o recolhimento das obras ou a ado-
ção de notas explicativas. Diante disso, uma das saí-
das adequadas seria, de acordo com a entrevistada,
o investimento maciço na formação para bibliotecários/
as e docentes sobre um trabalho apropriado com obras
com tais características.
Tal perspectiva também é defendida na argumentação
deste texto: é muito mais vantajosa para uma socieda-
de democrática a ampla discussão das obras canônicas
e não canônicas em todas as suas potencialidades de
análise. No entanto, coloca-se outra reflexão: a inser-
ção de Monteiro Lobato como resposta aos “movimen-
tos” pode ser considerada uma das alternativas ade-
quadas? Nesse caso, é possível verificar o poder sendo
exercido a serviço da manutenção de interesses de um

342 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
grupo. Ou, ainda, na perspectiva de van Dijk (2008, p.
15), trata-se de “abuso de poder social por um outro
grupo social” por estabelecer um discurso (e posterior-
mente uma prática) que poderá exercer influência nos
segmentos atendidos pelo PNBE.

Obtém-se um controle direto sobre a ação


por meio de discursos que possuem funções
pragmáticas diretivas (força ilocutória), tais
como comandos, ameaças, leis, regulamen-
tos, instruções e, mais indiretamente por
meio de recomendações e conselhos. Os
falantes costumam ter um papel institucional
e seus discursos apoiam-se com frequência
no poder institucional. Nesse caso, conse-
gue-se a aquiescência muitas vezes através
de sanções legais ou de outros tipos de san-
ção institucional (VAN DIJK, 2008, p. 52).

Tal contexto, observado pelo viés dos modos de opera-


ção da ideologia de Thompson, também indica a ação
da legitimação6, de fundamento carismático, devido ao
fato de Monteiro Lobato ser um consagrado escritor da
literatura infantojuvenil. Além da legitimação como ca-
tegoria, uma estratégia classificada por Thompson com
as mesmas características também se enquadra nes-
se contexto: a universalização, que se apresenta como
“acordos institucionais que servem aos interesses de
alguns indivíduos [e que] são apresentados como ser-
vindo aos interesses de todos [...]” (THOMPSON, 2002,
p. 83). É inegável e incontestável a importância e quali-
6 “Relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas, como observou Max
Weber, pelo fato de serem representadas como legítima, isto é, como justas e dignas de
apoio” (THOMPSON, 2002, p. 82).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
343
dade estético-literária da produção lobatiana tanto para
o público infantojuvenil quanto para o público adulto.
Mas a decisão de adquirir sua produção sob um su-
posto risco de perder espaço para a censura reitera a
gravidade com o que os discursos de poder, fortale-
cidos pela tradição do cânone, podem atuar de modo
ideológico na execução do PNBE. E isso ratifica, como
consequência, o quanto essa política ainda se constrói
em campos de tensão, mas não num sentido de ten-
são convencional à natureza política, e sim numa lógica
de fragilidade por se revelar um Programa altamente
vulnerável e submetido aos interesses de grupos. E a
constante tentativa de fabricação do consenso como
sendo a alternativa correta e adequada para todos é
que dá o caráter de abuso de poder fundamentado
numa “base de poder que permita um acesso privilegia-
do a recursos sociais escassos, tais como a força, o di-
nheiro, o status, a fama, o conhecimento, a informação,
a ‘cultura’ ou, na verdade, as várias formas públicas de
comunicação e discurso” (VAN DIJK, 2008, p. 117).
Sobre a outra parte do último excerto aqui apresentado
em que a entrevistada reconhece a gravidade do racis-
mo operando na sociedade brasileira, é possível inter-
pretá-lo sobre duas perspectivas. A primeira relaciona-se
ao fato de que por mais que sejam válidas as reivindica-
ções, há, por parte da entrevistada, impossibilidade de
adesão a uma perspectiva mais engajada de literatura
ou de concordar com censuras, sob pena de contrariar
seus princípios de comprometimento com a arte literária.
A segunda pode ser interpretada a partir do que Maria
Aparecida Silva Bento (2002, p. 29) identificou como di-
ficuldade de adesão em função da baixa “ligação emo-

344 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
cional” com o grupo reivindicador. Nesse aspecto, Bento
analisa que os “agentes da exclusão moral compartilham
de características fundamentais, como a ausência de
compromisso moral e distanciamento psicológico em re-
lação aos excluídos” (BENTO, 2002, p. 29).
Igualmente problemáticas, essas perspectivas de in-
tepretação apontam o quanto as tensões explicitadas
por conta de uma polêmica parecem estar com solução
distante. A preocupação de que o racismo institucional
continue produzindo discursos e ações fundamentadas
em abusos de poder por parte de grupos que controlam
a seleção das obras e cujas vozes direta ou indireta-
mente influenciam “outros discursos que sejam com-
patíveis com o interesse daqueles que detêm o poder”
(VAN DIJK, 2008, p. 18). E esse poder, ainda que não
total, é simbólico, “isto é, em termos do acesso prefe-
rencial a – ou controle sobre – o discurso público” (VAN
DIJK, 2008, p. 18). “Crucial no exercício do poder, en-
tão, é o controle da formação das cognições sociais
por meio da manipulação sutil do conhecimento e das
crenças, a pré-formulação das crenças ou a censura a
contraideologias” (VAN DIJK, 2008, p. 84).

3. O racismo escamoteado na legitimação

Para interromper, e não encerrar essa análise, já que


neste texto apenas uma parte da análise dos discursos
captados na pesquisa foram apresentados, Cuti (2010)
apresenta uma importante reflexão:

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
345
A literatura, em suas inúmeras tentativas de
definição e conceituação, constitui uma das
instâncias discursivas mais importantes,
pois atua na configuração do imaginário de
milhões de pessoas. Textos literários [...]
chegam a ser impostos como leitura obriga-
tória em vários momentos de nossas vidas.
Em outros são colocados à nossa disposi-
ção para que possamos escolher, nas vitri-
nes e prateleiras das livrarias, em bancas de
jornais ou nas bibliotecas. Essa disponibili-
dade de um livro [...] também é resultado de
um ou de vários outros filtros. Filtrar signifi-
ca reter algo e permitir que algo passe. [...]
Assim como existe a tal ‘linha’ orientando
o crivo (a escolha) entre os títulos a serem
publicados ou não, também, posteriormen-
te, haverá a seleção do que, estando dispo-
nível no mercado, deve receber o aval da
publicidade ou da cumplicidade dos meios
de comunicação e do Estado para redundar
em leitura (CUTI, 2010, p. 47).

Concordando com Cuti (2010), reflete-se que se por-


ventura não há, como afirmou a entrevistada, nenhuma
interdição de livro literário de uma ou outra conotação,
há pelo menos a manutenção de cânones baseados
não só no “carisma” (conceito weberiano) e na qualida-
de literária, mas também no estabelecimento de barrei-
ras frente a supostas tentativas de destruição da tradi-
ção pois, como lembra Cuti (2010, p. 47), “[f]alar e ser
ouvido é um ato de poder. Escrever e ser lido, também”.
Não se pode negar, no entanto, que em outras partes
não exploradas neste artigo ficou evidente no discurso

346 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
da entrevistada o compromisso e o engajamento com
o sucesso do PNBE como um Programa de formação
de leitores/as. Mas predominaram, como aqui demons-
trado, estratégias discursivas que reforçam a tese de
racialização atuando nessa política educacional. E en-
quanto discursos e práticas legitimadoras em nome de
uma “essencialização” e cristalização da arte literária
restrita a determinados grupos de autores/as ou con-
cepções continuarem sobrepondo-se à democratização
das vozes na literatura (posicionadas não mais como
exóticas, apartadas ou menos qualificadas), estaremos
diante da também continuidade do PNBE fundamenta-
do em bases racializantes.

Referências

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Ra o, u o E u a o: t at a ol a
349
NEAB
Capítulo 11
ESTRATÉGIAS IDEOLÓGICAS NOS
ESTUDOS DO NEAB-UFPR
Thaís Regina de Carvalho
Paulo
Ra Vinicius Baptista
E u a o: da Silva
o, u o t at a ol a
351
Capítulo 11

Estratégias ideológicas nos


estudos do NEAB-UFPR

Thaís Regina de Carvalho1,


Paulo Vinicius Baptista da Silva2

Neste capítulo, organizamos uma síntese de resultados


das pesquisas desenvolvidas no NEAB-UFPR que fi-
zeram uso do conceito de ideologia bem como da Her-
menêutica de Profundidade, ambos desenvolvidos por
Thompson (2002), em estudos no campo da Educação
e da Psicologia Social. As pesquisas selecionadas refe-
rem-se aos resultados das teses de Silva (2008), Araujo
(2015) e Nascimento (2015) e das dissertações de Nas-
cimento (2009), Araujo (2010), Pacifico (2011), Olivei-
ra (2011), Oliveira (2012), Santos (2012) e Falavinha.
Com exceção da pesquisa de Silva (2008), todos os
trabalhos foram defendidos no Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da UFPR e são integrantes do
NEAB desta instituição.
Optamos por categorizar os estudos a partir das se-
guintes temáticas abordadas: debates que envolvem
o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) e a
utilização de obras de literatura infantojuvenil no am-
1 Doutora e Mestre em Educação pela UFPR, graduada em Pedagogia pela Universidade
do Estado de Santa Catarina (UDESC). Pesquisadora do NEAB-UFPR e professora da
rede municipal de educação de Curitiba/PR.
2 Pesquisador do CNPq, Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB-UFPR) e do Progra-
ma de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFPR) da Universidade Federal do Paraná
(PPGE-UFPR).

352 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
biente escolar; análises de livros didáticos do Progra-
ma Nacional do Livro Didático (PNLD), bem como de
produções didáticas locais (do estado do Paraná). Além
disso, também houve dois trabalhos que se dedicaram
à verificação de conteúdos de documentos legais e ma-
teriais que subsidiam o trabalho docente, em especial
diretrizes curriculares.
Considerando os diferentes contextos em que as for-
mas simbólicas estão inseridas, as pesquisas analisa-
ram relações assimétricas de poder, ou seja, relações
de dominação, conforme propõe Thompson (1995).
Vale ressaltar que o foco desta síntese final são estu-
dos que focam os Modos de operação da ideologia.
Em sua dissertação de mestrado, Araujo (2010) discu-
tiu sobre as potencialidades de tal referencial:

Por meio da Hermenêutica da Profundidade


foi possível construir uma estrutura de aná-
lise para além dos episódios discursivos,
propiciando condições mais amplificadas
de interpretação da ideologia que se mos-
trou presente em todos os níveis, desde a
análise sócio histórica, passando pela análi-
se formal ou discursiva e sendo identificada
de modo mais evidente na (re)interpretação
das formas simbólicas. Paralelamente, o
Enfoque Tríplice atuou por toda a exten-
são da pesquisa (produção e transmissão,
construção das mensagens comunicativas
e posterior recepção/interpretação), o que
contribuiu para fundamentar os resultados
encontrados por meio do referencial meto-
dológico da HP. (ARAUJO, 2010, p. 170).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
353
Categorizando os Modos de operação da ideologia uti-
lizados para analisar o PNBE, foram identificadas as
pesquisas de Araujo (2010; 2015) e Oliveira (2011).
Embora com enfoques diferentes, tratam-se de estudos
que investigaram o PNBE: a primeira pesquisa de Arau-
jo enfatizou os discursos sobre os grupos raciais bran-
cos e negros a partir de obras de literatura infantojuve-
nil presentes em acervo do PNBE; já a segunda, ainda
que tangencialmente no uso da teoria de Thompson,
desenvolveu análise do contexto de elaboração dos
editais e da seleção dos livros que compõem o PNBE;
e Oliveira (2011) analisou o acervo literário do PNBE de
2008, destinado à educação infantil. O quadro a seguir
ilustra como a Hermenêutica de Profundidade (HP) se
apresentou nos estudos citados.

354 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Quadro 1. Pesquisas sobre PNBE e detalhamento da HP.
FASES HP

Análise Sócio- Análise Formal ou Interpretação/


Histórica Discursiva Reinterpretação3
AUTOR/A
ANO
• Teoria literária • Análise de discurso: • Legitimação;
sobre a literatura estudo exploratório
infantojuvenil e observação parti- • Dissimulação;
(LIJ); cipante de aulas de
• Unificação;
leitura em turmas de
• Ideologia e rela-
4ª série. • Fragmentação;
ções raciais rela-
ARAUJO (2010)
cionadas à LIJ;
• Reificação.
• Relações raciais
na escola;

• Documentos rela-
tivos ao PNBE.
OLIVEIRA • Levantamento • Análise de conteú- • Legitimação;
(2011) das pesquisas so- do: textos e ima-
bre LIJ e relações gens de obras de • Dissimulação;
raciais; literatura infantil do
• Fragmentação;
acervo do PNBE
• Relações raciais 2008 de educação • Reificação.
na escola brasi- infantil
leira;

• PNBE.
• Estudos críticos • Análises de discur- • Legitimação;
sobre relações ét- sos, editais e docu-
nico-raciais, LIJ e mentos oficiais do • Dissimulação;
ERER; MEC, SECADI e
• Fragmentação;
ARAUJO (2015) Instituição de Ensi-
• Documentos rela- no Superior respon- • Reificação.
tivos ao PNBE. sável pela avalia-
ção pedagógica do
PNBE.
FONTE: A autora e o autor.3

A segunda categoria de estudos focou as políticas do


PNLD: Silva (2008), por meio dos livros didáticos de

3 Devido à extensão das informações nos quadros, optamos por apresentar apenas os
Modos de operação da ideologia, sem focar nas estratégias. Para maiores detalhamentos
das pesquisas, acessar: <http://www.ppge.ufpr.br/teses.htm>.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
355
Língua Portuguesa, Santos (2012), através de análises
dos livros de Geografia, e Falavinha (2013), que tam-
bém estudou os livros de Língua Portuguesa. As pes-
quisas foram organizadas da seguinte forma:

Quadro 2. Pesquisas sobre PNLD e detalhamento da HP.


FASES HP

Análise Sócio- Análise Formal ou Interpretação/


Histórica Discursiva Reinterpretação
AUTOR/A
ANO
• Racismo no con- • Análise de conteú- • Legitimação;
texto brasileiro;
do: características
das unidades de • Dissimulação;
• Produção de li- leitura em livros di-
vros didáticos no • Fragmentação;
dáticos de Língua
SILVA (2008) Brasil. Portuguesa para • Reificação.
4ª série do ensino
fundamental (publi-
cados entre os anos
de 1975 a 2003)
• Racismo à brasi- • Análise de conteú- • Legitimação;
leira; do: imagens de li-
vros de Geografia • Dissimulação;
• Pesquisas sobre
do 2º ano de ensino
discursos racistas • Fragmentação;
fundamental.
SANTOS (2012) em várias mídias
e principalmente • Reificação;
nos livros didáti-
• Banalização.
cos;
• Papel do PNLD.
• Revisão biblio- • Análise de discurso: • Dissimulação;
gráfica sobre o entrevistas com as
livro didático e o professoras, dire- • Fragmentação;
PNLD; ção e pedagogas;
• Reificação.
• Infância e direito • Acompanhamento
FALAVINHA das crianças. de aulas de Língua
(2013) Portuguesa no 5º
ano;
• Análise de conteú-
do: dois livros de
Língua Portuguesa
do 5º ano.
FONTE: A autora e o autor.

356 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
O Quadro 3 também apresenta elementos essenciais
para a discussão, pois retrata diferentes estratégias de
análise das formas simbólicas, considerando contextos
específicos. Além disso, Silva (2008) abordou de manei-
ra detalhada a contextualização do PNLD, bem como o
debate sobre relações raciais no Brasil, problematizan-
do o impacto da ideologia racista nos livros didáticos:
“Em termos de políticas educacionais, podemos afirmar
que os alunos recebem uma produção homogeneizada,
que veicula discurso racista normalizando a condição
de branco e desvalorizando a condição de negro”. (SIL-
VA, 2008, p. 204).
E a pesquisa de Santos (2012), ao apontar que os dis-
cursos dos editais do PNLD são ideológicos, também
abrange elementos relevantes no que diz respeito à ba-
nalização como um dos modos de operação da ideolo-
gia. O autor observou que tal modo se explicitou através
do discurso de igualdade em detrimento do reconheci-
mento das desigualdades existentes. Sobre esse as-
sunto, Silva (2008, p. 76) explanou que “[...] a negação
da existência de discriminação e desigualdades raciais
serviu como forma de ocultar a dominação racial”.
Outro elemento relevante na pesquisa de Santos (2012)
refere-se ao fato de que os editais do PNLD analisados
em seu estudo focam nas formas de discriminação ex-
plícitas, porém, diante do racismo à brasileira, a discri-
minação continua operando de modo implícito e acaba
não sendo observada a contento pelos/as avaliadores/
as dos livros didáticos. Sendo assim, o autor concluiu
que ainda que avanços foram observados, o estabe-
lecimento de prescrições no próprio Programa não foi
suficiente para totais mudanças nos livros.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
357
Em perspectiva semelhante, Silva (2008) já analisava
como as relações raciais no Brasil se configuram:

Os discursos, no geral, negam a existência


de discriminação racial e procuram disfarçá-
-la, buscam reiterar os ideários da democra-
cia racial e das três raças, reafirmando es-
tereótipos racistas, grande parte das vezes
de forma indireta. Em geral o tratamento
discriminatório não é direto, mas implícito.
(SILVA, 2008, p. 95).

Já o estudo de Falavinha (2013), ao buscar apreen-


der sobre os direitos das crianças e adolescentes em
LD, deparou-se com hierarquias nas relações etárias
e além uma pertinente reflexão sobre as diversas rela-
ções de dominação.
Também com foco nos livros didáticos, porém com re-
corte para os livros públicos do estado do Paraná, Paci-
fico (2011) e Oliveira (2012) constataram que a ideolo-
gia também vem operando nesses contextos.
O quadro a seguir sintetiza tais estudos.

358 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Quadro 3. Pesquisas sobre LD públicos do PARANÁ e detalhamento
da HP.

FASES HP

Análise Sócio- Análise Formal ou Interpretação/


Histórica Discursiva Reinterpretação
AUTOR/A
ANO
• Políticas de pro- • Análise de conteú- • Legitimação;
moção da igual- do: textos, imagens
dade racial e re- e contextos de pro- • Dissimulação;
lações raciais no dução do livro pú-
• Fragmentação;
Brasil; blico “Folhas” (Lín-
• Políticas edu- gua Portuguesa e • Reificação.
cacionais sobre Educação Física)
a produção de
PACIFICO
livros didáticos
(2011)
para o ensino
médio na rede
estadual de edu-
cação do Paraná;
• Atualização das
pesquisas sobre
relações raciais
e livros didáticos.
• Processo de in- • Análises de conteú- • Legitimação;
viabilização da do e documental:
população negra Textos e imagens • Dissimulação;
na história do Pa- do livro público Fo-
• Unificação;
raná e as particu- lhas (Arte);
laridades dessa • Fragmentação;
população na • Diretrizes Curri-
produção e ensi- culares de Artes e • Reificação.
no de Arte; Arte para a Educa-
OLIVEIRA ção Básica do Es-
(2012) • Contradições en- tado do Paraná
tre as normativas
de ERER e as
políticas efetiva-
das;
• Pesquisas sobre
livros didáticos
e desigualdades
raciais.

FONTE: A autora e o autor.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
359
Os dois estudos assinalam a ausência de diálogo de
duas produções didáticas do estado do Paraná e as po-
líticas públicas de promoção da igualdade racial. Tais
políticas foram identificadas nos livros analisados de
maneira pontual. Nessa direção, Pacifico (2011) cha-
mou atenção para o fato da “guetização das políticas
públicas”, em que a efetivação se deu de forma isolada,
ou seja, sem a incorporação em políticas mais amplas.
Oliveira (2012) também analisou que a ausência de
preocupação com a diversidade étnico-racial não se
deu apenas nos livros, mas também nas Diretrizes
Curriculares de Artes e Arte para a Educação Básica
do Estado do Paraná, já que nesse documento a arte
europeia era representada como padrão. Tal contexto
evidenciou a branquidade normativa em detrimento da
valorização e reconhecimento das demais culturas.
Tanto a pesquisa de Pacifico (2011) quanto a de Olivei-
ra (2012) acionaram elementos relevantes na investiga-
ção da HP em políticas educacionais, em especial na
gestão das políticas de promoção da igualdade racial.
A análise de diretrizes curriculares também foi desen-
volvida por Nascimento (2015). Salientando a disciplina
de Ensino Religioso, o autor investiu análise em livros
didáticos (NASCIMENTO, 2009) e em documentos re-
ferenciais dessa disciplina na educação básica (NAS-
CIMENTO, 2015).

360 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Quadro 4. Pesquisas sobre LD e documentos no ensino religioso e
detalhamento da HP.
FASES HP

Análise Sócio- Análise Formal ou Interpretação/


Histórica Discursiva Reinterpretação
AUTOR/A
ANO
• Racismo e rela- • Análise de conteú- • Dissimulação;
ções raciais no do: livros didáticos
Brasil; de Ensino Religioso • Fragmentação;
direcionados à 5ª a
• Estudos sobre • Reificação.
8ª série do ensino
desigualdades ra- fundamental (publi-
ciais nos livros di- cados entre 1977 e
dáticos e em espe- 2007).
cial nos de Ensino
NASCIMENTO
Religioso;
(2009)
• Revisão da his-
tória do ensino
religioso no Bra-
sil, considerando
as concepções
confessional, in-
terconfessional e
fenomenológica.
• Discussão sobre • Análise documental: • Legitimação;
raça; atos normativos que
regulamentam o en- • Dissimulação;
• História do ensino sino religioso nos
religioso; • Fragmentação;
estados da Região
Sul; Diretrizes Cur- • Reificação.
• Religião de matriz
riculares da Edu-
afro brasileira e o
cação Básica de
pensamento so-
Ensino Religioso;
cial.
NASCIMENTO Caderno pedagógi-
(2015) co de Ensino Reli-
gioso da Secretaria
de Estado da Edu-
cação do Paraná;
boletins e apostilas
de formação da As-
sociação Inter-reli-
giosa de Educação;
relatórios de confe-
rências nacionais.
FONTE: A autora e o autor.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
361
A partir desses dados é possível observar que, no que se
refere às relações entre brancos e negros, tanto nos li-
vros didáticos como nos documentos, a ideologia esteve
presente nas ações e materiais que envolvem o ensino
religioso no Brasil. O autor refletiu sobre tal contexto res-
saltando que “[...] programas e muitas iniciativas foram
normatizadas em textos de lei, mas, no campo da apli-
cação e normativas que orientam essas práticas ficaram,
segundo a análise empreendida na tese, muito no cam-
po da superficialidade”. (NASCIMENTO, 2015, p. 9).
Com esta breve síntese, foi possível demonstrar como o
conceito de ideologia e a metodologia da Hermenêutica
de Profundidade, ambas de Thompson (1995), contri-
buíram para a interpretação das formas simbólicas em
contextos específicos, além de contribuir na análise das
relações assimétricas de poder, ou seja, as relações de
dominação. E considerando cada contexto e todas as
fases da HP foi possível verificar permanências e avan-
ços nas discussões. Entre os avanços destacam-se:

Quadro 5. Alguns avanços elencados nas pesquisas.


AUTOR/A
AVANÇOS
ANO
Tendência de modificações positivas no terceiro período
Silva (2008) (1994/2003), principalmente na representação das famí-
lias dos personagens negros.
Importância do papel do Movimento Negro, pois as edito-
Nascimento (2009) ras buscaram responder às reivindicações de tais movi-
mentos e de pesquisadores/as da área.
Alterações na atuação pedagógica de professoras bran-
Araujo (2010) cas na promoção de rupturas de modelos depreciativos
de representação da cultura africana.
Atendimento parcial das políticas de promoção da igual-
Pacifico (2011)
dade racial nos livros públicos de Educação Física.
Melhoras nas qualidades dos desenhos e da imagem
Oliveira (2011)
do/a negro/a.
Presença de personagens negros/as em contextos fami-
Santos (2012)
liares e em atributos de valorização.
FONTE: A autora e o autor.

362 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Como é possível observar, as pesquisas aqui elencadas
apontam limitações e avanços no que se refere à dis-
cussão sobre políticas educacionais e relações raciais,
demonstrando, em diversos contextos como a ideologia
opera por meio de estratégias e modos típicos.

Referências

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Educação) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba,
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2008. (Coleção Cultura Negra e Identidade)

364 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
NEAB
SOBRE OS AUTORES
Sobre os autores

Paulo Vinicius Baptista da Silva


Minhas escolhas em pesquisar re-
lações raciais no Brasil têm focos
bastante precisos em minha trajetó-
ria. Da infância em Belo Horizonte,
cidade onde nasci e cresci, trago
duas vozes que considero vitais para
constituir meu discurso. Minha avó,
Dona Quininha, transmitia pela fala
e pelas ações o orgulho de ser ne-
gra/o, a altivez e a crença em nossa
inteligência como forma de suplantar
barreiras. Minha mãe, Dona Eugênia,
exemplo de persistência e superação
regada com doçura e humanidade,
que me transmitiu também o amor
intenso pela leitura e pelos livros. Na
escola e no bairro, cresci em um ambiente com muitas hostilida-
des, especialmente raciais. Cotidianamente me lembravam, co-
nhecidos, “amigos”, de minha condição de “preto” e que por isso
seria menor. Notadamente durante o período da pré-adolescência
convivi com um conhecido, dois anos mais velho, que era pródi-
go nas ofensas raciais. Anos mais tarde, por conta do trabalho,
mudei para Curitiba e em 1987 ingressei no curso de psicologia
da UFPR. O primeiro trabalho de pesquisa que realizei foi sobre
“efeitos do discurso da negritude”, tema que posteriormente ficou
latente por não encontrar nem na psicologia, nem no mestrado
em educação, interlocução ou possibilidade de orientação. Em
1996, terminado o mestrado, ingressei como docente na UFPR.
Foi somente no doutorado, iniciado em 2001, que o racismo se
tornou foco de minhas pesquisas. Desde então o racismo e a
educação antirracista passaram a ser os temas principais a que
me dedico no trabalho em ensino-pesquisa-extensão e, como ex-
presso neste livro, na orientação.

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Débora Oyayomi Araujo
Nasci como Débora Cristina de Araujo
e renasci como Oyayomi. E nas duas
vezes renasci em Curitiba. Com quase
cinco anos de idade do primeiro nasci-
mento, eu, meu pai, minha mãe e meu
irmão Fábio, na época um bebê de
quinze dias de vida, nos mudamos para
o noroeste do Paraná, em Santa Isabel
do Ivaí. Lá vivi toda a minha infância,
adolescência e parte da vida adulta.
Por isso me considero, e meu sotaque
me entrega, mais isabelense do que
curitibana. As minhas experiências escolares foram determinantes
para as minhas escolhas profissionais, já que eu me inspirei em pro-
fessoras que transgrediam os modelos tradicionais de relação pro-
fessora-aluna/o. Mas foram também as experiências escolares que
definiram meu modo de ser e de agir no mundo diante do racismo.
À parte a violência simbólica e física do ambiente escolar, lá des-
cobri algo que gostava desde muito pequena: estudar. Foi nessa
pista que segui meu objetivo/sonho de infância: ser professora.
Atuando inicialmente com crianças pequenas, depois adolescen-
tes e agora adultas/os, vejo que não errei na escolha. E com o
contato com os estudos sobre relações raciais, meu olhar sobre a
educação foi se ampliando. Já de volta a Curitiba em 2006, ao par-
ticipar do III Encontro de Educadores/as Negros/as do Paraná, tive
acesso a nomes referenciais do Movimento Negro paranaense. E
a partir desses nomes fui conhecendo outros tantos no âmbito da
militância social e sindical até chegar à UFPR. Primeiro como alu-
na de disciplina isolada e depois ingressante no mestrado, foi no
NEAB-UFPR que cresci como pesquisadora e militante. A atuação
nos cursos de formação docente, no desenvolvimento de pesqui-
sas e no contato direto e indireto com autores/as que antes só
conhecia pelos textos, foram preponderantes para o fortalecimen-
to da autoestima intelectual. Unido a isso, o processo iniciático
no Candomblé me ajudou a lidar com todos os conflitos de uma
trajetória marcada pelo racismo. E a literatura infantil e juvenil foi o
grande motor de todo o processo que me trouxe até aqui.
Hoje atuo como professora da Universidade Federal do Espírito
Santo na área da Educação das Relações Étnico-Raciais, mas
gosto mesmo é de me apresentar como professora da educação
básica pois, já sabem o ditado: a gente sai da escola mas a esco-
la não sai da gente!
Ra o, u o E u a o: t at a ol a
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Wellington Oliveira dos Santos
Linguagem é uma manifestação
de poder.
Na minha família aprendemos
isso antes de aprender a falar. A
palavra falada para nós tem car-
ga especial, capaz de determinar
destinos; como outros negros da
diáspora, esse é um traço cultu-
ral africano que mantemos.
As crianças crescem ouvindo que terão melhor oportunidade que
seus pais, e para isso precisam estudar. Mas também aprendem
em casa que o mundo lá fora (incluindo a escola) usa a linguagem
falada, escrita, impressa, televisionada, downloadeada, etc., para
impor padrões estéticos diferentes dos que enxergam no espelho.
É por isso que cada vez que um de nós vence um desafio nesse
mundo, todos vencem. Quando um dos filhos da empregada saiu
do barraco de madeira no território conhecido como favela para
ingressar no espaço universidade, nós vencemos. Quando foi co-
tista racial graduado, nós vencemos. Quando entrou no mestrado
(fez a pesquisa que deu origem ao capítulo aqui apresentado) e
no doutorado, nós vencemos. Seu corpo negro, assim como os
corpos de outras negras e negros que tiveram a mesma oportuni-
dade, foi símbolo, foi linguagem.
Linguagem que será contada por gerações.

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Verediane Cíntia de Souza de Oliveira
Chamo-me Verediane Cintia de Souza
Oliveira, nasci no dia 11/03/1984 em
Curitiba. Aos sete anos de idade en-
frentei juntamente com meus irmãos
a morte de nosso pai, sendo cuidados
apenas por nossa mãe (diarista) que
nos colocou na creche para poder tra-
balhar. Passávamos o dia todo nessa
creche (A Mão Cooperadora), na qual
fiquei dos cinco aos quatorze anos em
regime de contra turno. Aos dezessete
anos voltei para essa creche para trabalhar como professora, já havia
concluído o ensino médio. Um ano depois comecei a fazer o magistério
a distância e no ano posterior estava trabalhando em período integral,
fazendo cursinho à noite e magistério aos sábados. No ano de 2004 ia
tentar pela terceira vez o vestibular da Universidade Federal do Paraná,
mas tinha desistido por falta de condições de pagar a taxa de inscrição.
Então, o Pastor da minha igreja (Sérgio) pagou minha inscrição e eu pude
tentar o vestibular. Entrei por cotas na UFPR no curso de Pedagogia e
durante a graduação morei com uma família da igreja (Magda e Cornélio),
pois no horário que acabavam as aulas já não tinha mais ônibus para vol-
tar para minha casa em São José dos Pinhais. No dia da matrícula passei
por uma banca e fiquei muito feliz ao ver mestres e doutores negros me
olhando com olhar de satisfação, como se comemorassem comigo minha
conquista. Durante a faculdade fui convidada pelo professor Paulo Vini-
cius para fazer pesquisa e trabalhei com o professor Hilton Costa com
bolsa pela Fundação Araucária. A partir desse momento me integrei ao
NEAB, e durante o mestrado participei da banca de avaliação dos co-
tistas e também os encaminhei aos cursos de língua estrangeira numa
parceria Neab-Celin. Pela empresa A Mão Cooperadora na qual estava
trabalhando, tive a oportunidade de ir para a Alemanha por três vezes
para fazer uma tournée de música. Na última viagem no ano de 2008 eu
estava me preparando para realizar a prova do mestrado, estudei durante
a viagem, voltei, fiz a prova e fui aprovada no mestrado. Em março de
2009 eu me formei e dei sequencia às aulas do mestrado, defendi minha
dissertação em março de 2011. Em 2009 também me tornei pedagoga na
Mão Cooperadora, me afastei para a conclusão do mestrado e hoje atuo
como diretora nessa mesma entidade na unidade do Campo Comprido
e atuo também como formadora pelo projeto “A Cor da cultura”. Casada
com Alexandre Oliveira, mãe da Luanna (5) e da Lorenna(1).

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
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Megg Rayara Gomes de Oliveira
Meu nome é Megg Rayara Gomes
de Oliveira. Tenho quatro irmãos e
duas irmãs. Meu nome é uma ho-
menagem e um pedido desculpas
a outra travesti preta, que como eu
nasceu e cresceu em Cianorte, no-
roeste do Paraná. Nunca trocamos
palavra, mas em muitos momentos
ela foi a coragem materializada. A
coragem que me fez acreditar em
possibilidades de existir, apesar do racismo e da transfobia. Mi-
nha existência também é acadêmica e me fez migrar para Curiti-
ba em busca de formação e TRANS-formação. Na cidade fria de
tons acinzentados consegui me reinventar. Transformei meu cor-
po. Realizei sonhos. Essa TRANS-formação inclui uma gradua-
ção em Licenciatura em Desenho e uma especialização em His-
tória da Arte na Escola de Música e Belas Artes do Paraná; uma
especialização em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira na
Universidade Tuiuti do Paraná; um mestrado e um doutorado em
educação na Universidade Federal do Paraná. Esse trajeto aca-
dêmico me colocou em contato com pessoas que eram referên-
cias bibliográficas. Uma dessas referências, o Dr. Paulo Vinícius
Baptista da Silva me abriu as portas da Universidade Federal do
Paraná e me aceitou como orientanda de mestrado, e me ajudou
a entender o silêncio em torno da estética e da cultura africana
e afro-brasileira no ensino da arte no Paraná. No doutorado me
propus a discutir racismo e homofobia na educação de maneira
interseccional e outra referência bibliográfica me acolheu. Dessa
vez a Dra. Maria Rita de Assis César que além de me colocar em
contato com os estudos de gênero de maneira mais aprofundada,
me convenceu a tentar uma vaga como professora substituta de
didática na UFPR. A tentativa deu certo e me tornei a primeira
travesti professora na Universidade Federal do Paraná.
Dedico esse texto a Megg, uma travesti preta como eu que ousou
sonhar, ousou existir. Ousou resistir.

370 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Tânia Mara Pacifico
Nasci em Curitiba (1965) em uma família de
origem mineira e carioca. Desde muito cedo
ouvia com meu pai o disco de vinil – Aquare-
la do Brasil. Também com ele, Almir Pacifico,
chorava ao ver os filmes norte-americanos
que tinham como enredo a temática racial. Ao
ir para uma escola particular de freiras, uma
amiga “revelou-me” que minha pele preta era
fruto de um pecado; pois Deus havia dado
três talentos para três homens e o único que
não conseguiu multiplica-lo foi condenado a
ter a pele preta e morar nos países africanos,
condenando assim toda a sua descendência. Minha resposta des-
de então foi sempre estudar muito, para superar a discriminação
com competência intelectual. Sou formada em pedagogia pela
Universidade Estadual de Maringá (1989). Em 1999 ingressei no
mestrado na UFPR e não consegui concluir. Hoje, olhando para
trás, acredito que o racismo institucional esteve presente. Tenho
uma filha - Audrey - e um filho - José Carlos- que são a razão da
minha vida e, juntamente com dois novos amores, Fábio e An-
dré, tornam meus dias mais felizes. Trabalhei no Grupo de Traba-
lho Clóvis Moura com Glauco Souza Lobo e equipe maravilhosa
(Dudu, Carlinhos, Nará, Tosca, Claudemira, Agnaldo e Eunice),
GT que mapeou as comunidades quilombolas do Paraná; na Se-
cretaria de Educação do Paraná num período na CERDE com
Adir Simão de Souza e em outro momento sob a coordenação de
Edna Coqueiro, amigo e amiga que me acompanham na defesa
da educação das relações étnico-raciais e na vida. Atualmente in-
tegro a diretoria do Núcleo Sindical da Área Sul, como secretaria
de combate ao racismo e promoção da igualdade racial. Sou do
Candomblé e reverencio minha Iyá Gunan (Dalzira Aparecida) e a
proteção de minha mãe Oxúm. Com elas sou mais forte. Fiz duas
especializações e conclui o mestrado na UFPR em 2011 na Linha
de Políticas Públicas Educacionais, sob a orientação do Profes-
sor Dr. Paulo Vinícius Baptista da Silva, que junto com minha mãe
(in memorian) Vilma da Silva Pacifico, minha irmã Telma, meus
irmãos Tony e Tedy, minha sobrinha Laís, meu primo Flávio Paci-
fico e minha amiga Rozana Teixeira, me fazem acreditar em mim!

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
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Sergio Luis do Nascimento
Toda a minha ancestralidade
localiza-se no estado de Minas
Gerais, mais especificamente na
cidade de Belo Horizonte; cida-
de que nasci na década de 1970
aos sons do Clube da Esquina
de Milton Nascimento, Lô Bor-
ges e dos contos de Guimarães
Rosa narrados no radio que mar-
caram a minha tenra idade. Boa
parte da minha adolescência foi
na cidade histórica de Santa Lu-
zia, região metropolitana de Belo Horizonte onde minha mãe Ire-
ne e meu irmão Sidney ajudaram moldar o meu caráter e a minha
personalidade nos anos difíceis da década de 1980, no bairro São
Benedito. Cursei nesse bairro o ensino básico e participei das
primeiras Comunidades eclesiais de Base conhecendo a Teologia
da Libertação e a vocação missionária, ingressando no seminá-
rio católico e atuando junto as essas comunidades no interior do
estado de São Paulo e depois na cidade de Pinhais; cidade que
fica na região metropolitana de Curitiba, no estado do Paraná.
Neste estado conheci uma outra vocação a da docência; como
professor fui despertado à pesquisa realizando o mestrado, con-
cluído em 2009 e o doutorado em 2015 na Universidade Federal
do Paraná. Pesquisas que fortaleceram a minha ancestralidade e
confirmaram o que Neusa Souza Santos descreveu com maestria
“Não se nasce negro, tornar-se negro”. Desde então atuo como
professor na Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-
-PR como professor de Filosofia e ensinando e aprendendo que
os legados do racismo epistemológico podem ser rompidos sem-
pre que recordarmos que a memória dos ancestrais é crucial na
epistemologia.

372 Ra o, u o E u a o: t at a ol a
Karina Falavinha
Nasci em um verão, na Cidade de Curi-
tiba. Capricorniana com ascendente
em Capricórnio. Às vezes, teimosa,
irreverente, paciente e rude. Sou uma
pessoa que age em prol das justiças
sociais. Por isso, a vida torna-se uma
luta constante em que se briga de vá-
rias formas e em muitos lugares. Dentre
alguns, a educação é um lugar no qual
transito e pelo qual, brigo muito, pois é
um dos espaços acometidos pelas in-
justiças. Lembro de minha vida escolar,
em que eu e outras crianças não po-
díamos muito falar, tínhamos que abai-
xar a cabeça e ficar em silêncio quando
nos fitavam. Também fiquei em silêncio na infância, ao presenciar
situações de violência contra a mulher. Com vontade de falar,
eu cresci. Escolhi estudar o Magistério, e aos 16 anos me tor-
nei professora da educação infantil. Aos 20, professora de Ciên-
cias dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Mais tarde, cursei
Pedagogia e me deparei com algumas feministas especiais que
alavancaram minha luta e minha vida acadêmica. Tive a oportu-
nidade de estudar sobre Gênero e Sexualidade, Raça, Infância e
Classe. Entrei no Mestrado em 2011, e tive o interesse em estu-
dar sobre os direitos de crianças e adolescentes vinculados nos
livros didáticos em uso na sala de aula. De lá para cá, aumenta
meu interesse em estudar os direitos de participação social e po-
lítica, mas, visibilizando também, os jovens. É este o tema que
venho me debruçando no doutorado. É, em especial, na escola,
na universidade e em casa, que venho construindo espaços de
resistência na defesa dos direitos sociais e da justiça, sobretudo
com estudantes, com colegas e com minha filha.

Ra o, u o E u a o: t at a ol a
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Thaís Regina de Carvalho
Sou Thaís Carvalho, nascida em Floripa/
SC, filha de Sônia Carvalho e João Donato
de Carvalho, irmã da Laís e da Carol, neta
da Geninha, Ada, Zena e Iris. Destaco a mi-
nha família, pois essas pessoas fazem toda
a diferença na minha trajetória, ensinando-
-me que “meus passos vêm de longe”. O pa-
pel fundamental dos estudos, bem como da
construção de uma autoestima e identidade
negra valorizada sempre foram muito enfati-
zadas em âmbito familiar. Tal fato, impulsio-
nou-me a constantemente buscar a amplia-
ção dos conhecimentos a partir de múltiplas
experiências. Cursei a maior parte da educação básica em es-
colas de porte pequeno e no último ano do ensino médio prestei
vestibular para o curso de Pedagogia na Universidade do Estado
de Santa Catarina (UDESC). Fui aprovada e iniciei os estudos no
ano de 2007. Logo, ingressei como bolsista no Núcleo de Estudos
Afro Brasileiros (NEAB/UDESC), no qual tive a oportunidade de
conhecer e vivenciar os espaços acadêmicos através de ações
de pesquisa, ensino e extensão. No final do ano de 2010 partici-
pei do processo de seleção de mestrado na Universidade Federal
do Paraná (UFPR). Fui aprovada e junto a isso emergiram desa-
fios, como por exemplo, a mudança de cidade, adaptação a uni-
versidade, novas pesquisas e leituras. Iniciei os estudos no ano
de 2011 e finalizei no ano de 2013 tendo como tema de pesquisa
as políticas de promoção da igualdade racial na educação infantil.
No mesmo ano comecei a atuar como professora da educação
básica na rede municipal de Curitiba/PR e participei da seleção
para o doutorado na UFPR. Em março de 2014 ingressei no dou-
torado e dei continuidade aos estudos sobre a referida temática.
Em 2018 conclui o doutorado e sigo como pesquisadora e profes-
sora da educação básica realizando estudos na área de políticas
para a educação infantil, diversidade étnico-racial e relações ra-
ciais no Brasil.

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