Você está na página 1de 17

Motrivivência v. 28, n. 48, p.

96-112, setembro/2016

http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2016v28n48p96

A Base Nacional Comum Curricular: uma


proposição necessária para a Educação Física?

Juliano Daniel Boscatto1


Fernanda Moreto Impolcetto2
Suraya Cristina Darido3

RESUMO

O objetivo desse estudo foi compreender os aspectos histórico-legais que repercutem


na elaboração da Base Nacional Comum Curricular; a aproximação dos documentos
oficiais do currículo escolar, e os aspectos universais e particulares da cultura; e as
possíveis relações com o contexto da Educação Física escolar. Dada a importância da
elaboração da BNCC, é fundamental entender quais são elementos teóricos que estão
no entorno de tal proposição. Buscou-se, nesse ensaio teórico, apresentar os elementos
precursores do “documento oficial”, situando-os histórico e legalmente. Os documentos
legais precursores da BNCC remetem à análise da construção do currículo escolar com
base em aspectos universais e particulares da cultura, apontando para uma discussão
com Forquin (1993) e Cuche (2002). Aproxima-se esse diálogo do contexto da EF
escolar no Brasil, no que tange à sistematização do currículo para a Educação Básica.

Palavras-chave: Currículo Formal; Cultura; Formação; Educação Física

1 Doutorando em Desenvolvimento Humano e Tecnologias. Professor de Educação Física do Instituto Federal


de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC). Florianópolis/Santa Catarina, Brasil.
E-mail: juliano.boscatto@ifsc.edu.br.
2 Doutora em Desenvolvimento Humano e Tecnologias. Professora Assistente do Departamento de Educação
Física da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Rio Claro/São Paulo, Brasil. E-mail: femoreto@rc.unesp.br.
3 Doutora em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano. Coordenadora do Laboratório de estudos e tra-
balhos pedagógicos em Educação Física da Universidade Estadual Paulista (LETPEF/UNESP). Rio Claro/São
Paulo, Brasil. E-mail: surayacd@rc.unesp.br.
V. 28, n° 48, setembro/2016 97

INTRODUÇÃO escolar. No entanto, entende-se que a edu-


cação, no sentido lato de sua expressão,
Para analisar o movimento históri- ultrapassa os “muros escolares” pois existem
co que o MEC (Ministério da Educação e fatos presentes na vida privada e na vida
Cultura) vem promovendo para a Educação social que contribuem para a formação da
Básica brasileira, ao proporcionar a elabora- identidade dos sujeitos. Diversos hábitos,
ção e a implantação de uma Base Nacional formas de agir e valores são aprendidos
Comum Curricular (BNCC), é fundamental no âmbito particular, mais precisamente
compreender quais elementos estão no no meio familiar e em outras situações
entorno de tal proposição. É evidente que socialmente vivenciadas, contribuindo para
toda a análise requer a delimitação de seu a formação humana. Para Forquin (1993,
“objeto” e, nesse caso, buscou-se organizar p. 12), “A educação é o conjunto de pro-
esse ensaio teórico em três partes: inicial- cessos e procedimentos que permitem à
mente, há a apresentação dos elementos criança humana chegar ao estado de cultura,
precursores do “documento oficial”, situan- a cultura sendo o que distingue o homem do
do, especificamente, os aspectos históricos animal”, ou seja, é por meio de processos
e legais que repercutem na elaboração educativos, que acontecem com interações
da BNCC. Na sequência, por meio dos sociais que, em princípio, são aceitas ética
documentos legais precursores à BNCC e moralmente em diferentes comunidades e
apresenta-se a análise da construção do cur- que a natureza humana desenvolve as suas
rículo escolar, com base em aspectos uni- potencialidades
versais e particulares da cultura, aponta-se Contudo, a escola com seus proces-
para uma discussão com Forquin (1993) e sos formais de ensinar exerce uma função
Cuche. Por fim, aproxima-se esse diálogo social e uma característica peculiar na
e o contexto da EF escolar no Brasil no formação dos sujeitos. A convivência em
que tange à sistematização do currículo da uma sociedade democrática de direito como
Educação Básica. o Brasil, de acordo com os pressupostos
Nesses termos, o objetivo desse constitucionais, requer uma educação que
estudo foi compreender os aspectos histó- possibilite aos indivíduos adquirir conhe-
rico-legais que repercutem na elaboração cimentos necessários para o exercício da
da Base Nacional Comum Curricular, as cidadania e a qualificação para o trabalho.
aproximações dos documentos oficiais com Essa missão é atribuída pelo Estado brasilei-
o currículo escolar, os aspectos universais e ro para as instituições de educação formal,
particulares da cultura, e as possíveis rela- as quais devem possibilitar processos de
ções com o contexto da EF escolar. ensinar e aprender que contribuam para o
bem comum dessa sociedade.
De maneira oficial e organizada, a
Aspectos históricos e legais que norteiam escola assume, então, a tarefa de “abrir as
a BNCC portas” da vida privada para a vida pública
e a convivência social para as crianças.
A BNCC está relacionada aos pro-
Tal condição deve acontecer por meio do
cessos formais que permeiam a educação
ensino de diferentes áreas do conhecimento
98

e de seus respectivos componentes curricu- superação das desigualdades sociais. Essa


lares. Para Arendt (2004, p. 280): “O Estado visão crítica é possível com a garantia ao
tem o direito incontestável de prescrever direito de aprender, o qual, perpassa pela
exigências mínimas para a futura cidadania sistematização dos conteúdos de ensino que
e, além disso, promover e apoiar o ensino compõem o currículo escolar.
de temas e profissões que são consideradas Nesses termos, a instituição escolar
desejáveis e necessárias para a nação como no conjunto dos componentes curriculares,
um todo”. deve assumir o dever de promover o acesso
A educação formal é um direito ao conhecimento e, com isso, contribuir
assegurado a todos os brasileiros4 e cabe ao para a efetivação do direito dos estudantes
Estado fornecer os meios necessários que à aprendizagem. Nessa direção, entende-se
garantam o cumprimento das proposições que a instrução e o conhecimento apresen-
prescritas pelas legislações vigentes. Embo- tam-se como possibilidades aos sujeitos de
ra, estudos na área da educação como os de agirem de forma autônoma em seu contexto
Sommer (2010), Aquino (2012), Machado sociocultural. Para Fensterseifer (2013),
e Lockmann (2014) demonstrarem que, na a liberdade dos cidadãos associa-se ao
contemporaneidade, a instituição escolar, conhecimento dado que, a ignorância e a
por muitas vezes, adquire um caráter “sal- desigualdade da instrução, estão na base
vacionista” ou “reparatório” das mazelas das tiranias.
sociais por meio do desenvolvimento de Com o objetivo de garantir o direito
projetos de cunho assistencialista geralmen- de adquirir os conhecimentos essenciais à
te patrocinados pela Estado, entende-se que, todos os estudantes da Educação Básica, o
dessa forma, a função social da escola acaba MEC vem propondo discutir, juntamente
sendo alargada e inadequada. Fensterseifer com as secretarias de educação estaduais e
(2013) entende que quando a escola assume municipais, especialistas e demais entidades
responsabilidades que extrapolam a sua vinculadas à área da educação, a produção
competência, corre-se o risco de prometer de uma Base Nacional Comum Curricular.
o que não se pode cumprir e, com isso, De acordo com Sacristán (2000, p. 24), o
desempenhar um papel ideológico. currículo escolar é “[...] um terreno político
É certo que a educação formal deve e não meramente pedagógico e cultural”,
problematizar temáticas que emerjam das com isso, existem elementos de cunho
necessidades socialmente construídas. No político e administrativo que interferem
entanto, sua função social maior deve ser a diretamente nas práticas de ensino desen-
de proporcionar aos estudantes condições volvidas nas escolas.
(conhecimentos) para que esses possam Entende-se que o sistema curricular
ter uma leitura crítica dos fenômenos é formado por um conjunto de elementos
culturalmente produzidos, com vistas à de cunho administrativo, didático e peda-

4 A Constituição Nacional Brasil (1988) assegura em seu Art. 205 que a educação é direito de todos e dever do
Estado e da família, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho.
V. 28, n° 48, setembro/2016 99

gógico, que contribuem para a organização departamentos governamentais (MEC,


sistematizada do processo educativo, o qual Secretarias de Educação Municipais e
é desenvolvido em um período de tempo e Estaduais), cuja repercussão ocasionou na
em uma modalidade de ensino, com a fina- produção de dispositivos legais para sua
lidade de possibilitar ações pedagógicas que elaboração e implementação. As discussões
possam ampliar o conhecimento da cultura realizadas em várias instituições sobre o
da qual os sujeitos fazem parte. Na condição tema e o percurso histórico e legal que vem
de um elemento administrativo, a BNCC sendo desenvolvido, demonstram que a
pode ser considerada como balizadora do BNCC pode ser considerada uma Política
currículo escolar, que exerce uma intencio- de Estado.
nalidade na formação dos brasileiros. Nessa condição, existem marcos
A proposição de uma base cur- legais importantes de se compreender, o
ricular comum no Brasil não é recente. quais, repercutem e levam à elaboração
Tal proposição é fruto de discussões em desse documento norteador do currículo
diferentes instâncias e setores da sociedade escolar. O quadro 01 apresenta os principais
civil (ONGs, especialistas na área edu- elementos legais que reforçam e instituem
cacional, fundações, associações, etc.) e a elaboração de uma BNCC:

Quadro 1: Documentos Legais que instituem a elaboração da BNCC. Fonte:


próprios autores.
Marco legal Síntese da proposição legal
Art. 210: faz referência aos conteúdos mínimos para o
Constituição Federal de 1988 (BRA-
Ensino Fundamental, assegurando uma formação básica
SIL,1988).
comum.
Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
Art. 26: menciona que os currículos de todos os níveis da
ção LDB. Lei nº 9.394/96. (BRASIL,
Educação Básica devem uma ter base nacional comum.
1996).
Afirmam a necessidade de o Estado elaborar parâmetros
Parâmetros Curriculares Nacionais
curriculares para orientar as ações educativas, adequan-
PCN, (BRASIL,1997).
do-se aos ideais democráticos (PCN, 1997, p. 14).
Resolução nº4 do CNE, de 13 de
Art. 14: destaca a constituição de uma base nacional
julho de 2010. Define Diretrizes
comum para a Educação Básica constitui-se de conheci-
Curriculares Nacionais Gerais para a
mentos, saberes e valores produzidos culturalmente.
Educação Básica (BRASIL, 2010).
Meta 2.2 e Meta 3.3: define a implantação dos direitos e
Plano Nacional de Educação (2014-
objetivos de aprendizagem que configurarão BNCC para
2024) Lei nº 13.005, (BRASIL 2014).
o Ensino Fundamental e Ensino Médio.
Diário Oficial da União. DOU. Institui a comissão de especialistas para a elaboração de
Portaria nº 592, de 17 de junho de proposta da base nacional comum curricular, iniciando-se
2015. (BRASIL, 2015). a discussão e elaboração da BNCC.
100

De acordo com os pressupostos “conteúdos mínimos” que devem ser


inicialmente citados na Constituição Fe- garantidos em todas as unidades de edu-
deral, é direito de todos que frequentam cação básica do país, os quais, têm como
a Educação Básica ter o acesso a finalidade fornecer conhecimentos para o
“conteúdos mínimos” que assegurem desenvolvimento pleno dos estudantes, a
uma “formação básica comum”. formação de atitudes, valores necessários
Tal pressuposto vem desencadear para o exercício da cidadania em uma
na elaboração de, pelo menos, três sociedade republicana e democrática e a
documentos legais que podem ser qualificação para o trabalho.
destacados: a Lei de Diretrizes e Bases da Como forma de dar continuidade
Educação Nacional nº 9.394/96 (BRASIL, e especificar melhor os princípios e as
1996); as Diretrizes Curriculares para a diretrizes gerais da educação contidos na
Educação Básica, DCN (BRASIL, 2013); o Constituição e na LDB (BRASIL, 1996), o
Plano Nacional de Educação, PNE 2014- Conselho Nacional de Educação5 elabora,
2024, (BRASIL, 2014). então, as Diretrizes Curriculares Gerais Na-
A LDB 9.394/96 (BRASIL, 1996), cionais para a Educação Básica (DCGNEB).
vem regulamentar os elementos que ca- De forma mais específica, o Art. 14 das
bem à educação previstos na Constituição DCGNEB (BRASIL, 2010) menciona que
Federal de 1988. Sobre a BNCC o Art. 26 devem fazer parte da base nacional comum:
da LDB destaca que,
[...] os conhecimentos, saberes e valo-
Os currículos da educação infantil, res produzidos culturalmente, expres-
do ensino fundamental e do ensino sos nas políticas públicas e que são
médio devem ter a base nacional co- gerados nas instituições produtoras do
mum, deve ser complementada, em conhecimento científico e tecnológico;
cada sistema de ensino e em cada es- no mundo do trabalho; no desenvolvi-
tabelecimento escolar, por uma parte mento das linguagens; nas atividades
diversificada, exigida pelas característi- desportivas e corporais; na produção
cas regionais e locais da sociedade, da artística; nas formas diversas e exercício
cultura, da economia e dos educandos da cidadania; nos movimentos sociais
(BRASIL, 1996). (BRASIL, 2010).

De maneira mais precisa, a Lei de Nesses termos, entende-se que


Diretrizes e Bases da Educação Nacional existem conhecimentos produzidos cultu-
vem demonstrar que todo o currículo ralmente e oriundos de várias instâncias
escolar deve, necessariamente, conter que devem fazer parte da BNCC, os quais
conhecimentos essenciais e que sejam são considerados essenciais e aos quais
comuns a todos os estudantes brasileiros. todos os sujeitos devem ter acesso durante
Esse pressuposto demonstra que existem a Educação Básica. Tais conhecimentos

5 O Conselho Nacional de Educação-CNE é um órgão colegiado integrante do MEC, o qual tem a finalidade de
colaborar na formulação da política nacional de educação e exercer atribuições normativas, deliberativas e de
assessoramento ao ministro da Educação.
V. 28, n° 48, setembro/2016 101

curriculares devem ser complementados por são os “conhecimentos universais” que


uma parte diversificada no currículo escolar. devem fazer parte da BNCC. Tal proposição
De acordo com o Art. 15 das DCGNEB, foi posta em discussão de maneira mais
objetiva no Plano Nacional de Educação
A parte diversificada enriquece e com- correspondente aos anos de 2014 a 2024.
plementa a base nacional comum, O PNE (2014), que é um documento que
prevendo o estudo das características
representa os anseios da sociedade brasilei-
regionais e locais da sociedade, da cul-
tura, da economia e da comunidade ra, elaborado em forma de Lei e que trata de
escolar, perpassando todos os tempos estabelecer as orientações e planejamentos
e espaços curriculares constituintes do sobre as políticas públicas educacionais
Ensino Fundamental e do Ensino Médio
[...]” (BRASIL, 2010). no Brasil.
Além das Metas números 2.2 e 3.3
citadas no quadro 01, a Meta número 7
Considerando-se que o Brasil possui
do PNE (BRASIL, 2014) busca fomentar a
geograficamente uma dimensão continen-
qualidade da Educação Básica em todas as
tal, certamente existem elementos pecu-
etapas e modalidades, com melhoria do flu-
liares que estão presentes em diferentes
xo escolar e da aprendizagem dos estudan-
contextos regionais, os quais, de acordo
tes, de modo a elevar as médias nacionais
com as pressuposições descritas acima, não
podem deixar de ser problematizados pelo do IDEB (Índice de Desenvolvimento da
currículo escolar. Educação Básica) nos próximos anos. Entre
Diante dos pressupostos previstos as estratégias para atingir tal proposição, a
pela LDB (BRASIL,1996) e pelas DCGNEB BNCC é citada no item número 7.1 do PNE:
(BRASIL, 2010), entende-se que os con-
Estabelecer e implantar, mediante pac-
teúdos de ensino que compõem o currí-
tuação interfederativa, diretrizes pe-
culo escolar advêm de contextos culturais dagógicas para a educação básica e a
“universais e particulares6” presentes em base nacional comum dos currículos,
diferentes instâncias. Os elementos culturais com direitos e objetivos de apren-
dizagem e desenvolvimento dos(as)
universais (valores éticos e morais, aspectos
alunos(as) para cada ano do ensino
presentes nas linguagens, nas ciências, entre fundamental e médio, respeitada a
outros) e particulares (elementos artísticos diversidade regional, estadual e local
regionais, hábitos e tradições locais, etc.) (BRASIL, 2014, p. 61).
necessitam de uma sistematização e
organização didática de acordo com os De forma mais específica, o PNE
respectivos componentes curriculares da (BRASIL, 2014) estabelece que o Estado
educação básica. brasileiro deve, de maneira colaborativa
Cabe, então, ao Estado, juntamente com entidades ligadas a Educação, estabe-
com os atores sociais que atuam diretamen- lecer e implantar a BNCC. Esse documento
te com a Educação Básica, elaborar quais norteador e regulamentador do currículo

6 Na sequência do texto será analisada de maneira mais detalhada, a relação entre os conhecimentos universais
(em comum) e particulares (diversificados) que fazem parte do currículo escolar.
102

escolar deve conter quais são os direitos e os [...] o docente parte de plataformas
objetivos de aprendizagem em cada ano da pré-elaboradas para poder realizar as
complexas missões que lhes são atribuí-
Educação Básica. Ou seja, de maneira mais
das com grupos numerosos de alunos e
precisa, o PNE (BRASIL, 2014) se propõe a em condições nem sempre favoráveis.
implementar os pressupostos da Constitui- Para o professor não é fácil passar de
ção Nacional de 1988 para a educação for- princípios ideais para a prática coeren-
mal, no que tange aos “conteúdos mínimos” te com os mesmos, a não ser à medida
que possa planejar uma estrutura de ta-
necessários à “formação básica comum” refas adequadas na qual se conjuguem
a todos os estudantes brasileiros. Tal em- conteúdos curriculares e princípios
preitada foi iniciada a partir da nomeação pedagógicos. Essa é a importância dos
da comissão de especialistas de diferentes meios estruturadores do currículo.
áreas do conhecimento publicada no DOU
(Diário Oficial da União) em junho de 2015. Embora possa se reconhecer a
Nesse contexto, cabe à comissão importância dos meios estruturantes do
de especialistas, por meio de consulta currículo, torna-se importante analisar
pública7 junto às secretárias de educação, como os professores podem se apropriar
universidades e demais organizações liga- da BNCC no contexto específico em que
das à educação, organizar e encaminhar ao atuam. Compreender quais são os limites e
Conselho Nacional de Educação a BNCC as possibilidades da adequação dos pressu-
para, então, iniciar o seu processo de im- postos presentes na BNCC é uma das formas
plantação em todas as escolas de Educação de verificar como podem ser implementadas
Básica do Brasil. A construção coletiva desse as diretrizes previstas nesse documento.
documento certamente não é tarefa simples A elaboração de uma BNCC po-
de ser elaborada, no entanto, vem contribuir derá contribuir para a aprendizagem de
com a melhoria da qualidade e, sobretudo, conhecimentos necessários para a atuação
legitima a necessidade de se identificar cidadã e de forma emancipada. Acredita-se,
coletivamente quais são os objetivos de com tal afirmação, que o conhecimento
aprendizagem dos estudantes em um Estado crítico sobre a natureza, a sociedade e o
Republicano e Democrático de direito. mundo pode possibilitar aos estudantes a
Entende-se que a educação formal compreensão de aspectos culturalmente
apresenta, cotidianamente, entraves que construídos e levá-los a agir com autonomia
dificultam o processo de ensinar e aprender. no contexto social do qual fazem parte. A
A elaboração de uma base curricular poderá identificação e sistematização dos conhe-
auxiliar os docentes a superar problemáticas cimentos essenciais em cada componente
pedagógicas. Sacristán (2000, p.149) enten- curricular poderá, nas palavras de Young
de que os professores que atuam nas escolas (2007, p. 1294), “[...] fornecer explicações
necessitam de elementos balizadores do confiáveis ou novas formas de se pensar
currículo. Nas suas palavras, a respeito do mundo”. Tal oportunidade

7 O portal oficial da Base Nacional Comum Curricular é um ambiente de interatividade virtual em que se busca
esclarecer e construir junto as pessoas ligadas a educação o processo de construção da BNCC. Tal canal pode
ser acessado em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio.
V. 28, n° 48, setembro/2016 103

poderá contribuir com a legitimidade da “Educere” significa literalmente “conduzir


proposição posta pelos documentos legais (a força) para fora” (SAMPAIO; SANTOS;
apresentados nesse texto. MESQUITA, 2002). Esses termos, resumi-
damente, representam que a ação educar
significa alimentar, nutrir e conduzir os
O Currículo Escolar: Tensão entre o âm- sujeitos ao contexto sociocultural que o
bito cultural universal e particular para o cerca. O ato de educar, então, pode ser
currículo escolar
considerado como um importante elemento
que faz a “mediação” entre os sujeitos e o
Entende-se que há uma relação mui-
mundo. Dessa forma, a educação conduz
to próxima entre a educação, a cultura e a
a criança ao estado da cultura produzida
formação dos sujeitos, tornando-se, então,
historicamente e, com isso, desenvolve-se
importante entender melhor como esses
a formação dos sujeitos.
termos se correlacionam e podem interferir De maneira mais específica, a edu-
na constituição da BNCC. Para Chauí (1994, cação formal (a escola) segundo a LDB,
p. 295) a “[...] cultura é a maneira pela (BRASIL, 1996), inspirada nos princípios de
qual os humanos se humanizam por meio liberdade e solidariedade humana, assume a
de práticas que criam a existência social, finalidade de contribuir com o pleno desen-
econômica, política, religiosa, intelectual e volvimento dos educandos para o exercício
artística”. Por sua vez, Forquin (1993, p.10) da cidadania8 e a sua qualificação para o
complementa que “[...] este conteúdo que trabalho. Nesses termos, existem princí-
se transmite na educação é sempre alguma pios e finalidades que são comuns à todas
coisa que nos procede, nos ultrapassa e nos as instituições de educação de um Estado
institui enquanto sujeitos humanos, pode-se Democrático de Direito, e que devem estar
perfeitamente dar-lhe o nome de cultura” presentes nos cursos ofertados em diferentes
(GRIFO NOSSO). É nessa mediação entre a níveis de ensino. Tal empreitada deve se
cultura já produzida e a cultura que será (re) materializar no âmbito prático-pedagógico
produzida – relação passado/futuro – que (SACRISTÁN, 2000), ou seja, nas práticas de
as situações de aprendizagem e o currículo ensino desenvolvidas pelos pedagogos9, os
escolar se materializam. quais, na especificidade dos componentes
A palavra “Educação”, segundo curriculares em que atuam, têm a licença
seu significado etimológico, é oriunda para “conduzir/educar” os estudantes.
do latim e advém dos verbos “Educare” Para tanto, é necessário organizar de
e “Educere”. O termo “Educare” significa forma metódica quais são os conhecimentos
amamentar, criar, alimentar, e a palavra culturalmente produzidos que devem fazer

8 O termo “cidadania” está muito presente nos discursos e debates de uma sociedade Republicana e Democrática.
Para Bedin (2005) é possível definir cidadania como o status concedido àqueles que são membros de uma
comunidade política e, em consequência disso, possuem o “direito” a terem “direitos”. Nesses termos, a
educação formal é a instituição autorizada pelo Estado a auxiliar os estudantes a conhecerem e a exercerem
seus “direitos” na sociedade brasileira.
9 Na antiga Grécia, a “paidagogía” era atividade exercida pelo “paidagogós”, (pedagogo). Tal atividade realizada
pelo escravo consistia em conduzir as crianças em direção ao saber, ou seja, a escola da época (SAMPAIO;
SANTOS; MESQUITA, 2002).
104

parte do currículo escolar. Tal tarefa é con- (conhecimento) da realidade, e esta


cedida às diferentes áreas do conhecimento envolve continuamente um movimento
de adaptação. A educação seria impo-
(ciências, filosofia, linguagens, artes, entre tente e ideológica se ignorasse o obje-
outras) que constituem os componentes tivo de adaptação e não preparasse os
curriculares, os quais, selecionam e sis- homens para se orientarem no mundo
tematizam os aspectos culturais que são (GRIFO NOSSO).
transpostos para o currículo escolar em for-
ma de conteúdos de ensino. Esse contexto A (re)produção cultural e a atuação
configura uma relação muito próxima entre dos sujeitos na sociedade acontece em
a cultura e a educação, pois, para Forquin um processo pelo qual é necessário obter
(1993, p.14): conhecimentos sobre o mundo, os fatos
socialmente construídos, os fenômenos
[...] toda a educação e em particular naturais, os conceitos desenvolvidos pelas
toda a educação do tipo escolar, supõe ciências, etc., os quais, em certa medida,
sempre na verdade uma seleção no
são disponibilizados didaticamente pelos
interior da cultura e uma reelaboração
dos conteúdos da cultura destinados a componentes curriculares para, então,
serem transmitidos as novas gerações. os sujeitos poderem exercer a cidadania
de forma esclarecida. Para Fensterseifer
O currículo escolar é influenciado (2013, p. 126) “[...] o exercício do poder
por uma complexidade de instâncias de que denominamos de ‘cidadania’ tornou-se
caráter pedagógico (aspectos didático- inseparável, embora não suficiente, da ins-
-metodológicos), político (intencionalidade trução patrocinada pelos estabelecimentos
e finalidade das instituições de ensino), de ensino, chamada ‘educação escolar’”.
administrativo (gestão e organização bu- Nesse sentido, cabe à educação for-
rocrática) e as repercussões que estas têm mal possibilitar aos estudantes um currículo
sobre a práxis educativa. No entanto, o escolar que garanta o acesso aos conheci-
“alimento/conteúdo” que nutre o processo mentos essenciais para a atuação cidadã. A
de formação dos sujeitos provém dos conhe- LDB (BRASIL, 1996), em seu Art. 26, prevê
cimentos oriundos de um recorte da história uma Base Nacional Comum para todos os
e da cultura. A transposição didática desses níveis da Educação Básica e o PNE (BRA-
conhecimentos culturais em “conteúdos de SIL, 2014) trata dessa base como uma das
ensino” para as práticas educativas poderá formas de garantir o direito à aprendizagem
proporcionar aos estudantes experiências dos conteúdos curriculares. Tal proposição
e aprendizagens significativas, que possam poderá contribuir com a equidade relativa
auxiliá-los na atuação e inserção no mundo sobre “o que” será ensinado e os objetivos
de forma esclarecida e emancipada. Para de aprendizagem das escolas de Educação
Adorno (2003, p. 143), Básica da rede pública e privada em todo
o território nacional.
De um certo modo, emancipação sig- Além dos brasileiros terem o direito
nifica o mesmo que conscientização, à Educação Básica, a BNCC busca garantir
racionalidade. Mas a realidade sempre que os estudantes tenham acesso a conhe-
é simultaneamente uma comprovação
cimento essenciais que são oriundos da
V. 28, n° 48, setembro/2016 105

“cultura universal” e sistematizados pelos Brasil (2010) destacam que a BNCC, integra
componentes curriculares. Para Forquin um conjunto de conhecimentos, saberes
(1993, p. 133), existem saberes comuns e valores produzidos culturalmente e que
que não podem ser ignorados durante a es- devem ser didaticamente organizados
colarização dos sujeitos, sendo necessário: considerando-se:

Transmitir a todas as crianças de um a) a Língua Portuguesa; b) a Matemática;


mesmo país um mínimo de saberes c) o conhecimento do mundo físico,
comuns, de referências e de valores natural, da realidade social e política,
comuns pode parecer politicamen- especialmente do Brasil, incluindo-
te indispensável, inclusive (e talvez se o estudo da História e das Culturas
sobretudo) numa democracia liberal. Afro-Brasileira e Indígena, d) a Arte, em
Mesmo se ela não constitui a principal suas diferentes formas de expressão,
justificação de um sistema de ensino incluindo-se a música; e) a Educação
público, esta preocupação de unidade Física; f) o Ensino Religioso. (ART. 14,
é inseparável do princípio da educa- DCN/BRASIL, 2013).
ção escolar e da idéia mesma de uma
responsabilidade do Estado em matéria
educativa. Essa responsabilidade supõe Existem elementos universalmente
uma repartição equitativa, não discri- produzidos que fazem parte de um patri-
minatória, dos recursos postos a serviço monio cultural que precisa ser estudado
da educação (GRIFO NOSSO).
e compreendido, com vistas não apenas à
sua reprodução. Esses saberes, transpostos
Nesses termos, entende-se que para o currículo escolar, podem fornecer
existem conhecimentos universalmente aprendizagens significativas para que os su-
legitimados e produzidos culturalmente,
jeitos possam desenvolver atitudes e valores
que os estudantes têm direito de aprender. A
condizentes com os ideais de liberdade e
natureza desses saberes comuns não se limi-
solidariedade humana.
ta a contextos particulares, mas, sobretudo,
Nessa perspectiva, Cuche (2002),
trata de aspectos culturais universalmente
constituídos que fornecem “bases para a com base em Durkheim, destaca que exis-
compreensão e atuação no mundo”. Young tem aspectos socialmente construídos que
(2007, p. 1296) acrescenta que esse tipo de superam as especificidades particulares
conhecimento (subjetivas), as quais fornecem bases para
uma “consciência coletiva”. Chuche (2002,
É desenvolvido para fornecer genera- p. 57) salienta que essa “[...] ‘consciência co-
lizações e busca a universalidade. Ele letiva’ é feita das representações coletivas,
fornece uma base para se fazer julga- dos ideais, dos valores e dos sentimentos
mentos e é geralmente, mas não unica- comuns a todos os seus indivíduos [...] É a
mente, relacionado às ciências. É esse
consciência coletiva que realiza a unidade e
conhecimento independente de contex-
to que é, pelo menos potencialmente, coesão de uma sociedade”. Existem elemen-
adquirido na escola e é a ele que me tos éticos e morais que são universalmente
refiro como conhecimento poderoso. considerados de fundamental importância
para a boa convivência em sociedade, os
As Diretrizes Curriculares Nacionais quais devem ser desenvolvidos pelos com-
Gerais para a Educação Básica (DCNGEB) ponentes curriculares da Educação Básica.
106

É de responsabilidade da educação Existem aspectos culturais muito


formal conduzir os sujeitos/estudantes à particulares e peculiares em diferentes
compreensão dos conhecimentos produzi- regiões do Brasil que devem ser didatica-
dos culturalmente e universalmente neces- mente desenvolvidos nas práticas de ensino.
sários para a construção de uma sociedade Esses elementos remetem a uma concepção
mais justa e humana. Esse pressuposto vem “particularista de cultura”. Para Cuche
corroborar com a “noção universal de cul- (2002), a concepção particularista, também
tura humana”, vindo da ideia de que “[...] o denominada de relativista, privilegia “as
essencial daquilo que a educação transmite culturas”, separadas entre si e particulares,
(ou deveria transmitir) sempre, e por toda a sendo que cada uma é única e original, e
parte, transcende necessariamente as fron- um costume somente pode ser explicado a
teiras entre os grupos humanos e os particu- partir da análise de seu contexto cultural –
larismos mentais e advém de uma memória língua, crenças, costumes –, influenciando
comum a toda a humanidade”(FORQUIN, no comportamento dos indivíduos, no seu
1993, p. 12). estilo próprio e único de ser homem.
Além de orientar e estabelecer Entende-se que os elementos ine-
quais são os conhecimentos essenciais e os rentes à pluralidade cultural não estão
direitos de aprendizagem aos estudantes, “desconectados” do mundo ou da cultura
de acordo com o portal do MEC (BRASIL, universal, mas fazem parte e devem ser
2015), a BNCC oferece subsídios para a transpostos para o currículo de acordo
formulação e a reformulação das propostas com as especificidades em cada compo-
curriculares dos diferentes sistemas de ensi- nente curricular. Dito de outra forma, nada
no, em diálogo com as diferenças presentes impede que os aspectos relacionados às
na escola e com as especificidades que diversidades regionais, de etnias, de classes
caracterizam o contexto educacional brasi- sociais, de gênero, de pessoas com neces-
leiro. Ou seja, a BNCC contém os conheci- sidades especiais, etc. e seus respectivos
mentos essenciais necessários ao currículo significados socialmente construídos façam
da Educação Básica que, necessariamente, parte do currículo escolar. Nesses termos,
deverão “dialogar” com as especificidades Forquin (1993, p. 133) acrescenta que “[...]
e as pluralidades regionais. o currículo comum não exclui as diferenças
Nessa perspectiva, as DCGNEB no interior da sociedade, mas é justamente
Brasil (2010) no Art.15 esclarecem que “A aquilo a partir do qual se torna possível di-
parte diversificada enriquece e comple- mensionar estas diferenças, aquilo que per-
menta a base nacional comum, prevendo o mite ao mesmo tempo o reconhecimento de
estudo das características regionais e locais diferenças e o exercício de solidariedades”.
da sociedade, da cultura, da economia e Além da BNCC fazer relações com
da comunidade escolar [...]”. Com isso, as diferentes especificidades culturais,
entende-se que não há uma oposição entre entende-se que a “parte diversificada” desse
os “conhecimentos universais” elaborados documento dá espaço para as particularida-
pela BNCC e os demais aspectos culturais e des de cada modalidade de ensino e, com
particulares que estão presentes nos diver- isso, obtém-se, por exemplo, “brechas” para
sos contextos em que se situam as escolas. a discussão do Ensino Médio Integrado à
V. 28, n° 48, setembro/2016 107

Educação Profissional e Tecnológica (EPT). uma organização curricular que possa apon-
De forma mais específica, a EPT apresenta tar quais os elementos da cultura corporal
peculiariedades relacionadas ao âmbito da que devem ser tratados na Educação Básica
atuação profissional dos estudantes (futuros em sua “complexidade” e “criticidade”
trabalhadores), apresentando-se, então, uma (FENSTERSEIFER; GONZÁLEZ, 2013). Essa
forma peculiar na formação. Para Sacristán demanda é proveniente da necessidade em
(2000), existem finalidades específicas de compreender dois aspectos imbricados: o
acordo com a função social dos diferentes primeiro refere-se à mudança da finalidade
estabelecimentos de ensino pois, pedagógica da EF, diante de um processo
em que essa era considerada como “ativida-
O currículo do ensino obrigatório não de” regular na escola, com a finalidade de
tem a mesma função que o de uma es- aprimorar a aptidão física, a aptidão esporti-
pecialização universitária, ou de uma
va e a saúde, com as origens no período dos
modalidade de ensino profissional, e
isso se traduz em conteúdos, formas e governos Militares, a partir da instituição
esquemas de racionalização internas do Decreto nº 69.450/71 (BRASIL, 1971).
diferentes, porque é diferente a função Por consequência, o desenvolvi-
social de cada nível e peculiar a reali-
mento acadêmico e científico no campo da
dade social e pedagógica que se criou
historicamente em torno dos mesmos EF, como o denominado “Movimento Reno-
(SACRISTÁN, 2000, p. 15). vador” (SOARES, et al, 2012) e a própria Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
Entende-se que uma base nacional – LDB 9394/96, (BRASIL, 1996), que vêm
comum pode se relacionar com as diferen- demonstrar que, na contemporaneidade, a
tes especificidades educacionais e com as EF escolar adquire uma responsabilidade
pluralidades culturais. Cabe, então, à co- que supera a atribuição de uma “atividade”
munidade escolar (corpo pedagógico e ad- escolar restrita e passa a um fazer de exer-
ministrativo) exercer autonomia na organi- cícios corporais. Sobretudo, a EF adquire o
zação do currículo escolar, preservando-se caráter de um componente que compõe o
os componentes culturais universais apre- currículo da escola e, nesse caso, é respon-
sentados nessa diretriz, articulando-os com sável por um conjunto de conhecimentos
o contexto particular, garantindo, dessa que são oriundos do universo da “cultura”
forma, a equidade de direito à aprendi-
corporal de movimento.
zagem aos estudantes. Nessa relação, é
Nesse contexto, há autores que
imprescindível considerar o que há de “hu-
apontam para a necessidade de se organi-
mano”, pautado nos princípios de liberdade
zar uma base curricular para a EF escolar.
e solidariedade, presentes no âmbito da
cultura universal e particular. Kunz (1994) entende que a organização de
um “programa mínimo” para a EF poderia
pôr fim à “bagunça interna” da disciplina,
A Base Nacional Comum Curricular: apro- que ocorre pela falta de um programa de
ximações com a EF escolar conteúdos definidos numa hierarquia de
complexidade e objetivos específicos para
Historicamente, estudiosos no cam- cada série de ensino. Para esse autor, na
po da EF vêm discutindo a necessidade de EF um professor pode optar por conteúdos
108

exatamente iguais para o 6º ano do Ensino xiliarão o professor na tarefa de pensar


Fundamental e para o 2º ano do Ensino seus próprios projetos e desenvolver suas
Médio, inclusive em relação ao grau de propostas curriculares (GONZÁLEZ, 2006).
complexidade do conteúdo. Situação que A inexistência de elementos balizadores do
não acontece, por exemplo, numa aula de currículo da EF, de acordo com Impolcetto
matemática ou geografia, nem tampouco, e Darido (2011), faz com que os docentes
o fato de que algum estudante possa per- elaborarem por si próprios a organização
guntar: “o que vamos ter hoje, professor?”. curricular, utilizando suas experiências ou
Paes (2002) indica que essa repeti- aquelas que são compartilhadas com outros
ção de conteúdos, especialmente ao longo colegas da área.
dos anos finais do Ensino Fundamental e Diante desse cenário, é possível ve-
Médio, é um dos motivos da evasão dos rificar que a visão dos autores citados sobre
alunos das aulas de EF na escola. Kunz a questão da sistematização curricular na
(1994) e Paes (2002) chamam a atenção EF escolar tem pontos comuns: a necessi-
para o que Rangel (2010) define como o dade de definição de conteúdos ou blocos
princípio de aumento da complexidade, de conteúdos a serem ensinados por esse
ou seja, a necessidade de que os conteúdos componente curricular; a organização des-
sejam desenvolvidos de modo diferente no ses conteúdos por anos ou ciclos escolares,
decorrer dos anos escolares e os níveis de considerando o princípio da complexidade;
complexidade e aprofundamento aumen- o desenvolvimento de propostas que auxi-
tem progressivamente, dos anos iniciais liem os professores a elaborar seus próprios
para os finais. currículos às necessidades e aos interesses
Para Freire e Scaglia (2003), se a EF de seus estudantes e ao projeto político
pretende ter um status semelhante aos das pedagógico da escola. Nesses termos, se
outras disciplinas curriculares precisa definir reconhece que existem elementos presentes
seu objetivo e objeto de ensino. Um dos na “cultura” corporal de movimento que
problemas mais graves que se perpetuam necessitam de uma sistematização para,
na área é a definição insuficiente dos co- então, tornarem-se conteúdos de ensino
nhecimentos que devem ser desenvolvidos que precisam ser ensinados aos estudantes
na escola. da Educação Básica.
González (2006) indica que a Edu- De forma geral, os autores citados
cação Física é o componente responsável entendem que existem conhecimentos
por determinado campo de conhecimento curriculares em comum, os quais podem
e que os professores da área devem se es- constituir uma base mínima de conteúdos
forçar para explicitar o conjunto de saberes de ensino e de objetivos de aprendizagem,
sob a responsabilidade dessa disciplina. que auxiliem os professores da área na ela-
Além disso, é necessário explicar como boração de seus próprios planejamentos,
eles se organizam a fim de potencializar de acordo com as suas particularidades. Tal
a assimilação dos mesmos por parte dos perspectiva, a priori, aproxima-se da con-
estudantes. Afirma ainda que é possível, cepção universalista de cultura (FORQUIN,
pelo menos, identificar um conjunto de 1993; CUCHE, 2002), a qual considera que
princípios orientadores gerais, que au- há elementos culturalmente desenvolvidos
V. 28, n° 48, setembro/2016 109

que necessitam ser transpostos para as pressupostos que a discussão cultural da


práticas educativas. Nessa perspectiva, é EF defende. O autor concorda com o uso
possível selecionar da cultura corporal de dos planejamentos apenas quando tomados
movimento os conteúdos considerados como referência, atualizados constantemen-
universais, ou seja, aqueles que são fun- te, construídos e debatidos com os próprios
damentais no currículo de EF escolar das alunos, de acordo com o projeto escolar,
diferentes partes do país, de acordo com considerando os contextos nos quais serão
a estruturação que a BNCC prevê para a aplicados.
EF escolar. Do mesmo modo, Neira e Nunes
No entanto, existem divergências (2006) se posicionam com certa restrição
a respeito da elaboração de uma base cur- às propostas curriculares que não são
ricular para EF escolar. Daólio (2002), por desenvolvidas pelo próprio professor. Os
exemplo, assume que a EF deve trabalhar autores defendem a proposta de currículo
com os blocos de conteúdo, resumidos multicultural e indicam que é preciso con-
no jogo, ginástica, dança, luta e esporte, siderar as experiências dos estudantes como
em todas as séries e escolas, levando-se conteúdos a serem explorados e incorpo-
em conta, porém, as características e os rados nas aulas de EF escolar. A escolha
significados inerentes às manifestações de dos conteúdos deve ser diferente em cada
cada bloco de conteúdo nos variados locais escola, partindo do projeto político peda-
e contextos nos quais será trabalhado. As- gógico e considerando as características da
sim, o mecanismo de desenvolvimento, a comunidade local.
situação de implementação e o sentido de
Os entendimentos de Daólio (2002)
cada bloco serão variados, o que transfor-
e Neira e Nunes (2006) se aproximam em
mará o professor, de mero executor de uma
muito de uma da concepção particularista
proposta muitas vezes elaborada por outro,
de cultura (CUCHE, 2002). Nessa perspec-
para um mediador de conhecimentos. Nas
tiva, prioriza-se como princípio para o currí-
palavras do próprio autor:
culo escolar a problematização do contexto
sociocultural em que os estudantes vivem,
Um programa de aulas que imponha
que o basquetebol deva ser ensinado com a finalidade de promover a formação
a partir da quinta série, no segundo bi- crítica das minorias desprivilegiadas que são
mestre do ano, seguindo a mesma es- representadas por classe social, gênero, et-
trutura pedagógica tida como universal, nias, pessoas com deficiência, entre outras.
estará, no mínimo, desconsiderando as
especificidades locais. Não estará res- Nesse caso, as diversas “culturas” devem
peitando a tradição histórica e a dinâmi- ser consideradas, a partir de seu próprio
ca cultural do grupo (DAÓLIO, 2002, contexto na elaboração de uma organização
p.18-19). curricular para a EF.
Entende-se que as finalidades da
Daólio (2002) afirma que os grandes educação formal e, com isso da EF, em
planejamentos, além de não contemplarem uma sociedade republicana e democrática
todas as realidades, podem ser utilizados situam-se em contribuir com a formação
como modelos estanques para o desenvol- de cidadãos que atuem de forma autôno-
vimento das aulas, situação que nega os ma para o bem comum dessa sociedade.
110

Nesses termos, nada impede que a BNCC De forma especial, para a EF escolar,
apresente conhecimentos que deem ênfase a BNCC poderá vir a contribuir com a práxis
às minorias ou às pluralidades culturais. Ou educativa cotidiana dos professores, consi-
seja, os aspectos multiculturais podem ser derando a falta de tradição na área quanto
ressaltados e discutidos criticamente em à organização curricular de seus conteúdos.
práticas educativas, pois podem estar pre- Mas isso vai depender das políticas públicas
sentes nesse documento oficial. Para citar de incentivo e mobilização à implemen-
somente um exemplo de como as caracte- tação da mesma. Parece, portanto, que a
rísticas multiculturais podem serem tratadas promulgação da BNCC é apenas o primeiro
pedagogicamente, a 2ª Versão Revista da passo de um longo caminho que deverá ser
BNCC apresenta como um dos objetivos percorrido na área.
de aprendizagem para EF no Ensino Médio:
“Reconhecer as práticas corporais como ele-
mentos constitutivos da identidade cultural REFERÊNCIAS
dos grupos e povos, identificando nelas os
marcadores sociais de classe social, gêne- ADORNO, Theodor. Educação e
ro, geração, padrões corporais, raça/etnia, Emancipação. 3. ed. São Paulo: Paz e
religião” (BRASIL, 2016, p. 526). Terra, 1995.
AQUINO, Julio. Da “crise” da educação
Nesses termos, podem-se adequar
formal ao fulgor dos processos de
os conhecimentos universais de acordo
governamentalização educacional. In:
com as especificidades do contexto esco-
Anais do XVI ENDIPE – Encontro
lar, das diferentes modalidades de ensino e
Nacional de Didática e Prática de
dos demais aspectos particulares. Ressalta-
Ensino, Campinas: UNICAMP, 2012.
-se, então, a necessidade de a comunidade ARENDT, Hannah. Responsabilidade e
escolar , sobretudo, os professores, assumir Julgamento. São Paulo, Companhia das
o protagonismo, organizar o próprio pla- Letras, 2004.
nejamento e a implementação das práticas CUCHE, Denys. A Noção de Cultura nas
de ensino a partir das problemáticas ine- Ciêncais Sociais. 2ª Ed. Bauru, EDUSC,
rentes ao contexto sociocultural do qual 2002.
fazem parte. BRASIL, Decreto nº 69.450, de 1 de
Considera-se, diante do exposto novembro de 1971. Presidência da
nesse ensaio teórico, que a BNCC é de República - Casa Civil - Subchefia de
fato uma proposição necessária, tanto para Assuntos Jurídicos, Brasília, DF, 1971.
a EF, quanto para os outros componentes Disponível em: http://www.planalto.
curriculares, pois está prevista em vários gov.br/ccivil_03/decreto/d69450.htm.
documentos e leis, como indicado ao longo Acesso em: 03 mar 2016.
do texto. Diante de tal fato, cabem ainda di- _____. Constituição Federal. Brasília, DF,
versos questionamentos quanto ao processo 1988.
de acesso, compreensão e implementação _____. Lei de Diretrizes e Bases da
dos pressupostos que esse documento apre- Educação. Brasília, DF, 1996.
senta para as disciplinas curriculares, temas _____. Parâmetros Curriculares para
Educação Básica. Brasília, DF, 1997.
para outros estudos.
V. 28, n° 48, setembro/2016 111

_____. Diretrizes Curriculares Para a Ricardo (org). O fenômeno esportivo:


Educação Básica. Brasíla, DF, 2013. ensaios críticos-reflexivos. Chapecó:
_____. Plano Nacional de Educação. Argos, p. 69-109, 2006.
Brasíla, DF, 2014 IMPOLCETTO, Fernanda, Moretto;
_____. Base Nacional Comum. DARIDO, Suraya, Cristina.
2015. Disponível em http:// Possibilidades para a sistematização do
basenacionalcomum.mec.gov.br/, voleibol na Educação Física escolar. R.
acesso em 20/02/2016. bras. Ci. e Mov 19(2), p. 90-100, 2011.
_____. Diário Oficial [da] República KUNZ, Elenor. Transformação Didático-
Federativa do Brasil, Poder Executivo, Pedagógica do Esporte. Ijuí: Unijuí,
Brasília Disponível em http://www. 1994.
jusbrasil.com.br/diarios/94124972/ MACHADO, Roseli, Belmonte; LOCKMANN,
dou-secao-1-18-06-2015-pg-16, acesso Kamila. Base Nacional Comum, Escola,
em 22/02/2016. Professor. Revista e-Curriculum, São
BEDIN, Gilmar, Antônio. Cidadania. Paulo, v. 12, n. 03. 2014.
In: GONZÁLEZ, Fernando; NEIRA, Marcio, Garcia; NUNES, Mario,
FENSTERSEIFER, Paulo Luiz, Ferrari. Pedagogia da cultura
DAÓLIO, Jocimar. A cultura da/na Educação corporal – Crítica e Alternativas. São
Física. Tese (livre docência) – Faculdade Paulo: Phorte Editora, 2006.
de Educação Física, Universidade PAES, Roberto, Rodrigues. A pedagogia
Estadual de Campinas, Campinas, 2002. do Esporte e os Jogos Coletivos. In: DE
Evaldo. Dicionário crítico da Educação ROSE JÚNIOR, D. Esporte e Atividade
Física. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2005. Física na Infância e na Adolescência:
FENSTERSEIFER, Paulo, Evaldo. Função uma abordagem multidisciplinar. Porto
da escola pública. In. FEIL, I.T.S; Alegre: Artmed, 2002.
ALBRANDT, L.I. O curso de pedagogia RANGEL, Irene, Conceição, Andrade.
da Unijuí: 55 anos. Ijuí, Unijuí, v.1 Educação Física na Infância. Rio de
2013. Janeiro: Guanabara Koogan, 2010.
FENSTERSEIFER, Paulo. Evaldo.; SACRISTAN, Gimeno, José. O currículo:
GONZÁLEZ, Fernando. Jaime. Desafios uma reflexão sobre a prática. Tradução
da legitimação da Educação Física Ernani Da Rosa. 3 ed. Porto Alegre: Art
na escola republicana. Horizontes – Med, 2000.
Revista de Educação, Dourados, MS, SAMPAIO, Carlos, Magno, Augusto;
n.2, v1, 2013. SANTOS, Maria, Socorro; MESQUIDA,
FORQUIN, Jean-Claude. Escola e Cultura: Peri. Do Conceito de Educação à
As bases sociais e epistemológicas Educação. Revista Diálogo Educacional,
do conhecimento escolar. Tradução Curitiba, v. 3, n.7, 2002.
Guacira Lopes Louro. – Porto Alegre: SOARES, Carmem, Lucia; TAFFAREL, Celi.
Artes Médicas, 1993. Zulke; VARJAL, E; CASTELLANI FILHO,
FREIRE, João. Batista; SCAGLIA, Alcides. Lino; ESCOBAR, Michele. E; BRACHT,
Educação como prática corporal. São Valter. Metodologia do Ensino da
Paulo: Ed. Scipione, 2003. Educação Física. 2ª Ed. Cortez; São
GONZÁLEZ, Fernando, Jaime. Projeto Paulo, 2012.
curricular e educação física: o esporte SOMMER, Luis, Henrique. Práticas de
como conteúdo escolar. In: REZER, produção da docência: uma análise
112

sobre literatura de formação de YOUNG, Michael. Para que servem as


professores. In: Anais do XV ENDIPE escolas. Revista Educação e Sociedade,
- Encontro Nacional de Didática e Campinas, vol. 28, n. 101, p. 1287-
Prática de Ensino. Belo Horizonte, 1302. 2007.
Minas Gerais, 2010.

Common National Base Curriculum: Is a proposal for Physical


Education needed?

ABSTRACT

The aim of this study is to understand the historical and legal aspects that impact on
the development of the Common National Base Curriculum; the proximity of official
documents and school curriculum, universal and particular aspects of the culture; and the
possible links with the context of Physical Education. Given the importance of preparing
the BNCC, it is critical to understand what are theoretical elements that surround this
proposition. We sought to test this theory, present the precursors elements to the “official
document”, locating the historical and legal aspects that impact on the development of
BNCC. The precursors documents to BNCC refer to the analysis of construction of the
curriculum based on universal and particular aspects of culture, pointing to discussion
with Forquin (1993) and Cuche (2002). The dialogue approaches the context of school
PE in Brazil, regarding the systematization of the curriculum for basic education.

Keywords: Formal Curriculum; Culture; Formation; Physical Education

Currículo Básico Nacional Común: Una propuesta requerida para la


Educación Física?

RESUMEN

Tuvo como objetivo el estudio, comprender los aspectos históricos y jurídicos que
inciden en el desarrollo del Plan de Estudios Nacional Base Común, los planteamientos
de los documentos oficiales con el plan de estudios y los aspectos universales y
particulares de la cultura y los posibles vínculos con el contexto de la Educación
Física. Dada la importancia en la preparación del BNCC es fundamental para entender
cuáles son los elementos teóricos que son los alrededores de esta proposición. Hemos
tratado de probar esta teoría, presentar los elementos precursores de la “documento
oficial”, de pie en los aspectos históricos y jurídicos que inciden en el desarrollo de
BNCC precursores legales documentos BNCC, se refiere al análisis de la construcción
del plan de estudios basado en los aspectos universales y particulares de la cultura, que
apunta a la discusión con Forquin (1993) y Cuche (2002). El diálogo se acerca como
el contexto de la educación física escolar en Brasil, en cuanto a la sistematización del
plan de estudios para la educación básica.

Palabras clave: Currículo Formal; La Cultura; Formación; Educación Física

Recebido em: junho/2016


Aprovado em: agosto/2016

Você também pode gostar