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I.
Num dos textos que dedicou ao maio de 68, a filósofa Olgária Matos identifica
algumas semelhanças entre essas mobilizações espalhadas pelo mundo: todas elas foram
marcadas por contestações culturais e por lutas antiautoritárias (MATOS, 1981).
Segundo a autora, os estudantes carregavam duas grandes bandeiras: “mudar a vida”,
inspirada na poesia de Rimbaud, e “mudar o mundo”, inspirada nos anseios
revolucionários de Marx (Ibidem, p. 26). Na mesma linha de interpretação, o urbanista
francês Gustave Massiah sustenta que as mobilizações fizeram emergir uma
“Internacional estudantil” (MASSIAH, 2018).
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Nos dois casos, a alternância nas estratégias de luta foi estimulada pela ausência
de respostas claras dos governos às demandas dos estudantes e pela efervescência
dos movimentos. No movimento francês, é digno de nota que uma das principais
lideranças dos secundaristas tenha sido entrevistada, num programa popular de televisão,
por Marguerite Duras, e a principal liderança dos universitários tenha sido entrevistada,
numa importante revista de notícias, por Jean-Paul Sartre. No movimento paulista,
inúmeros artistas, intelectuais e ativistas ofereceram apoio aos estudantes. O coletivo
“Mal Educado”, que registra, divulga e auxilia as manifestações estudantis através das
mídias sociais, contribuiu diretamente para a organização dos secundaristas. Os MC’s
Foice e Martelo, que chegaram a participar das ocupações, criaram, a partir da música
“Baile de Favela”, um clip chamado “Escolas de Luta”. Divulgado no Youtube, a letra
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II.
Com o início das ocupações, Castoriadis fez circular entre os estudantes cópias
de um pequeno texto, quase um manual, explicando as suas posições sobre o tema
(CASTORIADIS, 2018). Num dos panfletos elaborados pelos estudantes universitários
que ocuparam a Sorbonne, aparecem algumas das diretrizes sugeridas por Castoriadis
para o estabelecimento de uma autogestão democrática:
Para evitar a re-formação de uma burocracia que arriscaria ser ainda mais
nauseabunda do que a que estamos tentando destruir, três precauções
elementares parecem ser indispensáveis:
Num depoimento nas redes sociais, uma aluna ou aluno não identificado
descreve o impacto daquela experiência para sua formação:
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III.
Uma das principais linhas do debate sobre 68 surgiu a partir da entrevista com
Cohn-Bendit e Sartre em meio aos acontecimentos de maio daquele ano que não
terminou. Indagado pelo filósofo sobre o possível alcance do movimento, o jovem
estudante universitário responde que as manifestações apontaram para uma brecha
no sistema capitalista (COHN-BENDIT; SARTRE, 2018, p. 23). A aparente desordem
causada na sociedade pelo movimento, a mesma desordem que abriu espaço para tantas
e variadas vozes, até então, silenciadas, talvez, possa ajudar a promover novas
e diferentes aberturas (Ibidem, p, 20).
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Na primeira página do seu texto sobre o movimento estudantil de 68, que tem
como título “A nova desordem”, Lefort desenha uma cena caótica:
No dia seguinte à primeira noite das barricadas, parisienses e moradores
dos subúrbios afluem à rua Gay-Lussac, aos milhares, em família, vão e
veem, não param de olhar os carros carbonizados, os buracos na rua, as
vitrines estilhaçadas, os paralelepípedos empilhados. O que eles sabem fazer?
Aquilo que sempre fizeram: fotografam. (...) Nessa tarde, as pessoas
escrutam alguma coisa que lhes escapa. (...) Seu olhar também desliza sobre
as coisas. Pela primeira vez há muito tempo, surpreendem-se na errância.
(2018, p. 57).
Tudo está em desordem! Mas, pela primeira vez, aqueles que não participaram
das manifestações, nem ao lado da polícia, nem ao lado dos estudantes, podem se
surpreender na errância. A desordem embaralha as imagens, os papéis; ela embaralha
a própria função da rua enquanto meio de passagem de um lugar determinado para outro
lugar determinado, geralmente, do trabalho para casa. Num momento do seu texto sobre
a brecha de 68, Castoriadis aproxima a desordem da anarquia:
Com um senso tático profundo, o movimento obriga gradualmente o Estado a
desvelar sua natureza repressiva e policialesca e, mais do que isso: coloca em
evidência na ordem estabelecida uma imensa desordem estabelecida. Ele
mostra que a verdadeira substância da organização capitalista burocrática é a
anarquia total. (...) Faz cair a máscara dos governantes como os ‘únicos
capazes’, mostrando-os como os principais incapazes. (...) Com as mãos
nuas, os estudantes forçam o poder a mostrar, por detrás de suas solenidades,
de sua grandeza e de suas bravatas, o medo que o toma, medo que só tem e só
pode ter como recurso o cassetete e a granada. (2018, p. 116).
Para Rancière, essa seria uma comunidade pautada pela igualdade de qualquer
um com qualquer um e, nesse sentido, uma comunidade de iguais suportada pela
ausência de arkhé, uma comunidade, portanto, que não esconde a anarquia que está
no seu fundamento (2018, p. 30). Arrancadas de suas posições identitárias, as pessoas se
abrem para novas subjetividades. O princípio an-árquico dessa comunidade de iguais é,
segundo Rancière, uma condição para a emancipação (2010, p. 135).
Quanto tempo poderia durar uma tal comunidade? Quanto tempo poderiam durar
as ocupações? O Maio de 68 durou pouco mais de um mês, o mesmo que durou o
movimento secundarista paulista. Rancière sugere uma outra forma de medir esse tempo.
Justamente, por ele se infiltrar nas brechas da ordem estabelecida, de alguma maneira,
ele se mantém como um ser-por-vir (2014, p. 72). Respondendo a essa mesma questão,
Deleuze afirma:
Maio de 68 é a intrusão do devir. Quiseram atribuir este fato ao reino do
imaginário. Não é nada imaginário, é uma baforada de realidade em seu
estado mais puro. De repente, chega a realidade. E as pessoas não
entenderam e perguntavam: ‘O que é isso?’ Finalmente, gente real. As
pessoas em sua realidade. Foi prodigioso! O que eram as pessoas em sua
realidade? Era o devir. (...) Foi um devir revolucionário, sem futuro de
revolução. (Deleuze, O abecedário).
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REFERÊNCIAS: