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Revista Psicolog

Ano 2, Volume 2, Número 1


ISSN 1983-6872

Editor
Carlos Henrique da Costa Tucci

Ribeirão Preto - SP - Brasil 2009


Revista Psicolog 27

Terapia dos transtornos de controle do impulso: análise


funcional do comportamento de gastar e comprar compulsivo
e o processo de mudança.
Janaína de Oliveira 1,2 , Andreza Cristiana Ribeiro 1,3 , Priscila Bedore 1 ,
Juliana Setem 1,4
1
PSICOLOG – Instituto de Estudos do Comportamento
Rua Marechal Deodoro, 1844 Jardim Sumaré
CEP 14025 210 Ribeirão Preto SP (16) 39134047
2
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
3
Faculdades Integradas FAFIBE
4
Universidade Paulista - UNIP Ribeirão Preto
janaina_psico@yahoo.com.br

Resumo. O comportamento de comprar e jogar compulsivamente são carac-


terizados pelo controle insuficiente sobre a emissão das respostas de jogar e
comprar e pelos prejuízos advindos do excesso comportamental como prejuízos
ao orçamento do individuo, desperdício do bem adquirido, arrependimento e/ou
constrangimento devido à compra realizada e ao fato de ter jogado novamente.
A análise funcional é um instrumento eficaz de atendimento na abordagem com-
portamental, pois, a partir dela, é feito o levantamento dos dados necessários
ao processo terapêutico. O presente relato refere-se ao atendimento em terapia
comportamental de um paciente (M.) do sexo masculino, 46 anos, casado,
com queixa de comprar e jogar compulsivos. Apresentava auto-estimulação
aversiva na forma de culpa, principalmente por ter usado a poupança dos
filhos para pagamento de contas. Relatava ir ao bingo nos finais de semana e
comprar algo todos os dias após sair do trabalho. O atendimento psicológico
consistiu em realizar a análise funcional do comportamento de comprar e jogar
patológico, por meio da discriminação dos eventos privados, discussão das
consequências a médio e longo prazos dos comportamentos de gastar e jogar
compulsivos, identificação de outras fontes de reforçamento positivo, análise da
real necessidade de obter os bens materiais e discriminação dos antecedentes
dos desejos de comprar ou jogar patológicos. Com este trabalho, M. identificou
as consequências do seu ato e conseguiu controlar estes comportamentos
por meio dos reforços associados, como controle financeiro e diminuição da
auto-estimulação aversiva. Diante disto, a análise funcional revelou-se um
instrumento eficiente para o tratamento de comorbidade entre comprar e jogar
patológico.

Palavras-chave: jogo patológico, gastar compulsivo, análise funcional, abor-


dagem comportamental.

Introdução o jogo patológico, tricotilomania, comprar


compulsivo, cleptomania e parafilias. Estes
Na prática clínica comumente aparecem transtornos fazem parte do Transtorno do
clientes com transtornos de impulsos, como Espectro Obsessivo Compulsivo (TEOC)
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e sua característica central é a impossibili- são. Em longo prazo, tal comportamento é


dade do indivíduo resistir a um determinado acompanhado de possível ruína financeira e
impulso (TORRES, 2001). rompimento das relações sociais (BERNIK;
ARAÚJO; WIELENSKA, 1995; TORRES,
De acordo com Dickerson e Weeks 2001; DIXON; HOTON, 2009).
(1979 apud Bernik, Araújo; Wielenska,
1995) e Rankin (1982 apud Bernik, Araújo; Ainda de acordo com Bernik, Araújo
Wielenska, 1995), o transtorno de controle e Wielenska (1995), em termos comporta-
dos impulsos apresenta as seguintes carac- mentais, é possível afirmar que o transtorno
terísticas: do controle do impulso é mantido também
por reforçamento negativo, na medida em
1. O caráter intrusivo do impulso de que o individuo, acometido pelo impulso,
agir, sendo que este é vivido como passa a obter alívio imediato ao emitir a
sendo próprio do indivíduo, cuja resposta de jogar ou comprar sugerida pelo
ocorrência, no entanto, está fora do impulso. Trata-se, portanto, de uma con-
seu controle. tingência de reforçamento negativo de res-
2. Presença de certo grau de ansie- postas de fuga (na presença da tensão, os
dade, desconforto ou disforia asso- comportamentos de jogar, comprar, etc, re-
ciado ao impulso. sultam em alívio da tensão).
3. Perda do controle sobre o comporta-
A análise funcional das respostas cli-
mento, ou seja, o comportamento é
nicamente relevantes sinaliza as decisões
vivenciado como sendo de urgência
a serem tomadas pelo terapeuta e cliente,
irresistível.
com relação às técnicas e procedimentos
4. O alívio do impulso, mesmo que
adequados a serem adotados em cada in-
temporário, está relacionado à sua
tervenção. O principal objetivo da terapia
realização.
é promover mudanças comportamentais as
Segundo Bernik, Araújo e Wielenska quais permitem uma melhor adaptação do
(1995), o termo impulso precisa ser enten- cliente ao seu ambiente (NEMO, 2003).
dido como um estado que envolve mani- De acordo com Meyer (1997), proce-
festações públicas e privadas de ansiedade, der a uma análise funcional é identificar as
as quais estão vinculadas à necessidade de relações que existem entre os eventos am-
emissão de certos comportamentos. A ocor- bientais e as ações do organismo. Para se
rência abrupta do impulso gera tensão fí- estabelecer esta relação é necessário espe-
sica, agitação, o pensamento volta-se para cificar a ocasião em que a resposta ocorre, a
um único tema e fica praticamente impossí- própria resposta e suas consequências. As-
vel neste momento lidar com outros aspec- sim, quando as relações entre estes eventos
tos da situação. são de dependência, podemos afirmar que
O fato do impulso ser experienciado in- ocorrem relações de contingência entre as
ternamente como um estado de extremo respostas e suas consequências.
desconforto torna a chance de resistir a Para realizar uma análise funcional é ne-
ele muito pouco provável. Os comporta- cessário identificar o comportamento de in-
mentos sugeridos pelo impulso são refor- teresse ou o comportamento-queixa, o qual
çados na medida em que, a curto prazo, pode ser descrito em termos de ação (ex-
resultam em gratificações. No jogo patoló- cesso comportamental ou controle de es-
gico, por exemplo, há um eventual ganho tímulos inadequados) ou omissão de uma
financeiro, além do alívio imediato da ten-
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ação (falta de repertório ou controle de es- algum quadro clínico quando:


tímulos insufucientes), bem como definir
suas classes de respostas, ou seja, os com- • houver indícios da ausência de con-
portamentos individuais podem ser mem- trole sobre o próprio ato;
bros de classes funcionais mais amplas • comprar frequentemente acarretar
(MEYER, 1997; MATOS, 1999; NEMO, prejuízos ao orçamento;
2003). Posteriormente, para identificar as • a aquisição gerar, posteriormente,
relações entre variáveis ambientais e o com- arrependimento ou constrangimento
portamento de interesse, é necessário des- ao comprador.
crever a situação antecedente e a subse- Com base nestes critérios, aliados à ava-
quente à emissão da resposta e, em seguida, liação global do cliente, procede-se ao diag-
verificar quais destes eventos estão exer- nóstico diferencial. Portadores de transtor-
cendo controle sobre a resposta que está nos do espectro obsessivo-compulsivo, in-
sendo analisada. divíduos em fase hipomaníaca ou maníaca
Com relação ao comportamento de jo- do transtorno bipolar do humor, entre ou-
gar patológico, o terapeuta precisa identi- tros pacientes, podem apresentar sintomas
ficar os aspectos positivos e negativos que como o comprar em excesso, consumir bens
o jogo tem sobre o estilo de vida do seu e serviços desorganizadamente e endividar-
cliente. Ao descobrir a função deste com- se além dos próprios limites (BERNIK;
portamento, e suas consequências a curto, ARAÚJO; WIELENSKA, 1995), mas neste
médio e longo prazos, o terapeuta irá ins- caso não se considera o excesso comporta-
trumentar seu cliente na aquisição de reper- mental como sinal do transtorno de controle
tório de enfrentamento, o qual será emitido do impulso.
pelo cliente, quando o impulso de jogar Por sua vez, o jogo patológico, segundo
se manifestar (BERNIK; ARAÚJO; WIE- o DSM –IV-TR (APA 2000) é descrito por
LENSKA, 1995). meio das seguintes características:
Segundo Wielenska (2002), no caso do
comportamento de comprar compulsivo, 1. Falha ao resistir a um impulso, ten-
uma análise funcional cuidadosa permite tação para emitir algum comporta-
ao clínico identificar os diferentes padrões mento que seja prejudicial a si pró-
de comportamento presentes no seu cliente prio ou a outra pessoa,
e as decisões terapêuticas irão depender da 2. Tensão ou excitação crescente antes
análise contextualizada do comportamento de emitir o comportamento,
3. Experiência de prazer, gratificação
de comprar, a partir da consideração do re-
ou alívio no momento da emissão
pertório geral do indivíduo, de suas pri-
do comportamento.
vações, eventos privados, história de vida,
disponibilidade de bens e serviços, além Bernik, Araújo e Wielenska (1995), in-
de variáveis sociais, econômicas e culturais dicam quatro possíveis explicações acerca
que o afetam, como a influência dos meios da instalação e manutenção do comporta-
de comunicação de massa enquanto facili- mento de jogar:
tadores ou inibidores do consumo.
1. Condicionamento clássico: parea-
Segundo Wielenska (2002) e Tavares et mento repetido entre CS (estímu-
al. (2008), o comportamento de comprar los ambientais) e os UCS (sensações
compulsivamente, na perspectiva psiquiá- prazerosas relacionadas ao ato im-
trica, é considerado sintoma ou sinal de pulsivo);
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2. Jogar sendo mantido pela intermi- • Compensar-se por algo ruim que te-
tência de reforçamento positivo. A nha ocorrido;
intermitência na liberação de refor- • Evitar a emissão de comportamen-
ços positivos produz como efeito tos inadequados;
a manutenção de uma taxa alta • Proporcionar-se prazer.
de respostas, aparentemente sub-
metidas a longos períodos de não- Otero (2002) considera que, como qual-
reforçamento; quer outro comportamento, comprar pode
3. Ser mantido por respostas de fuga colocar o indivíduo diante de reforçadores
de estados internos desconfortáveis; positivos ou de punições. Aprender a ser
4. O dinheiro enquanto um reforçador um comprador adequado ajuda a aprender
generalizado, que permite o acesso a controlar os impulsos e frustrações. Tam-
a muitos outros reforçadores. bém ajuda na aprendizagem de se proporci-
onar prazer, a identificar e lidar adequada-
Para se fazer uma análise funcional sobre mente com as emoções, com os significados
o comportamento de jogar compulsivo é im- dos acontecimentos da vida, pode evitar a
portante realizar uma avaliação da queixa. criação de armadilhas que produzem pu-
Bernik, Araújo e Wielenska (1995), apon- nições a médio e longo prazos, tal como
tam a necessidade de obter dados sobre: acontece nos comportamentos de jogar e
gastar compulsivos.
• O tipo do comportamento de jo-
gar (sozinho, social, em máquinas, Com isso, o presente trabalho tem o ob-
apostas em cavalos, bingo); jetivo de apresentar um estudo de caso na
• O padrão do comportamento de jo- abordagem comportamental, com um cli-
gar em termos de frequência, ho- ente que apresentava a queixa de jogar e
rário, locais, perdas e ganhos e gastar compulsivamente.
suas consequências na vida de quem Identificação do cliente
joga;
• Busca dos antecedentes (precipita- M. tem 46 anos, cursou o ensino médio,
dores); é casado e pai de um casal de adolescentes,
• Verificar as consequências a curto, trabalha no ramo comercial.
médio e longo prazo; Queixa inicial
• Habilidades (interpessoais, intelec-
tuais, profissionais e acadêmicas); Encaminhado para atendimento psicoló-
• Fontes de reforçamento positivo gico por um fisioterapeuta, o cliente com
disponíveis para comportamentos queixa de ser gastador e jogador compul-
concorrentes com o comportamento sivo, relatou na consulta inicial:
inadequado.
“(...) o dinheiro na conta, enquanto eu
Com relação ao comportamento de com- não acabava com tudo (...) eu não parava
prar compulsivo, Otero (2002) refere que o (...) me dava uma coisa que eu tinha que
mesmo pode adquirir muitos significados, gastar (...) eu também gostava de ir ao
como por exemplo: bingo nos finais de semana e quando eu
ia (...) eu não tinha limites. eu não fazia
• Sentir-se capaz de obter algo; contas (...) eu não dava valor para estas coi-
• Passaporte para sentir-se aceita em sas (...) eu não podia esperar e tinha que ser
um grupo; naquela hora (...)”.
• Moeda de troca entre um casal;
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“(...) eu perdi o controle total (...) depois intermitente.


conversei com minha esposa e fomos pro- • As interações de M. eram analisadas
curar coisas na internet e tudo o que eu lia funcionalmente e era dado o nome
dizia que eu tinha que procurar ajuda (...) e a explicação de maneira simpli-
de um psicólogo e de um psiquiatra (...)”. ficada da contingência que prova-
velmente controlava seu comporta-
Durante o contato inicial com M.,
mento.
observou-se a presença de relato de auto-
falas aversivas relacionadas à solução dada
Segue-se a apresentação de falas de M.
pela esposa para quitar parte das dívidas
referentes a sua queixa e que ocorreram du-
adquiridas pelo cliente, ou seja, para saldar
rante as sessões:
grande parte das dívidas o casal utilizou o
dinheiro da poupança dos filhos: “ (...) O dinheiro na conta, enquanto eu
não acabava com tudo eu não parava (...)
“Como, por exemplo, nós usamos o di-
me dava uma coisa que eu tinha que gastar
nheiro da poupança dos filhos para pagar as
tudo (...)”.
contas e esse dinheiro era para custear as
despesas dos nossos filhos com a faculdade “ (...) No bingo eu via as pessoas ga-
(...) isso me amargura muito. Por isso que nhando e daí eu jogava mais (...), pois eu
to mal (...) me sinto culpado (...)”. achava que poderia ganhar também (...)”.
Cabe ressaltar que na ocasião do início “ (...) Sozinho em casa (...) eu pensei em
da terapia, M. já estava sem seus talões e ir ao bingo (...) eu pensei que não queria
cartões de crédito e as finanças foram assu- isso (...) fui preparar uma comida e a von-
midas pela esposa. tade passou (...)”.
TRATAMENTO Durante as sessões, observou-se que o
cliente parecia gostar de desafios e mesmo
Foram realizadas, no total, 35 sessões
sem a orientação da terapeuta se expôs a
com M., gravadas e posteriormente transcri-
uma situação de alta ativação, ou seja, de-
tas, com sua prévia autorização. Durante as
pois de um tempo do processo terapêutico,
sessões, o cliente narrava os episódios com-
o mesmo colocou um cartão de crédito em
portamentais envolvendo a queixa e outros
sua carteira e foi ao shopping center e não
temas acabavam sendo também tratados na
utilizou o cartão.
terapia. As principais estratégias adotadas
na terapia foram: Durante o proceso terapêutico, pode-se
observar que em algumas ocasiões, o cli-
• Levar M. a narrar dados referentes ente dizia que havia recaído e notou-se,
à queixa (por exemplo: "por que re- por meio das verbalizações de M., que o
solveu procurar ajuda?"); que ele chamava de recaída não era a volta
• Ensinar M. a discriminar eventos in- do comportamento compulsivo, mas sim o
ternos (por exemplo: "o que você comportamento encoberto de pensar no seu
sentiu ao se comportar de maneira passado, colocando-o em contato com auto-
assertiva?"); estimulações aversivas.
• Colocar M. em contato com alguns Intervenção terapêutica
conceitos comportamentais bási-
cos: reforçamento positivo, reforça- A terapeuta, sob controle do relato de
mento negativo, extinção, punição, M, e após realizar as análises funcionais,
assertividade, contingência, reforço passou a ensinar o cliente a lidar com seus
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excessos comportamentais. Para isso, a te- ao verificar a presença de dinheiro em sua


rapeuta: conta. Apesar disso, a médio e longo pra-
zos, M. vivenciava as consequências dos
Buscou na história de vida de M. situações
comportamentos impulsivos (pela perda do
que poderiam ter efeito reforçador seme- dinheiro), com isso, M. apresentava com-
lhante ao prazer imediato obtido por meio portamentos de fuga, tais como: contrai
do comprar compulsivo. As situações en-
novos empréstimos para quitar as dívidas e
contradas por M. deveriam produzir refor-
não abria correspondências relacionadas a
ços positivos com tal frequência e magni-
cobranças bancárias.
tude que pudessem competir com os refor-
ços advindos dos comportamentos compul- O comportamento de gastar compulsi-
sivos; vamente provavelmente foi selecionado no
passado como uma forma de obtenção de
Discutiu as consequências a médio e longo prazer imediato.
prazos dos comportamentos de gastar e jo-
gar compulsivos; Na tabela 2 está exposta uma das análi-
ses funcionais realizadas sobre o compor-
Utilizou reforçamento positivo de maneira
tamento de jogar compulsivo do cliente M.
a fortalecer um amplo repertório dos com-
durante a terapia.
portamentos adequados de M., alternativos
e incompatíveis com os indesejados, pro- Com relação ao comportamento de jo-
duzindo, deste modo, um enfraquecimento gar compulsivo, pode-se dizer que, diante
desta última classe de comportamentos; da história pessoal de M., o mesmo estava
sendo mantido a curto prazo pelo desafio,
Modelou comportamentos de planejamento ou seja, pela possibilidade de ganhar (re-
e controle de gastos (por exemplo, confec-
forço intermitente). Esse comportamento
ção de lista de produtos para ir ao super-
representa uma história de reforçamento
mercado; comparar preços dos produtos;
intermitente, já que via pessoas ganhando
comprar só o necessário; sair com dinheiro (regra), porém não levava em consideração
necessário para as compras; comprar e tra- as reais probabilidades de ganhar.
zer o troco);
Na presente análise, pode-se se supor
Os procedimentos adotados pela tera- que o fato do cliente estar privado de di-
peuta foram propostos com o objetivo de nheiro para pagar contas advindas do gas-
ensinar o cliente a identificar as variáveis
tar compulsivo aumentaria a frequência do
das quais seu comportamento de gastar e
comportamento de frequentar bingos, ou
jogar compulsivos eram função e descobrir seja, poderia aumentar o valor reforçador
novas maneiras de se comportar, as quais, da consequência do jogar, o que caracteriza
por sua vez, deveriam produzir consequên- o endividamento como uma operação esta-
cias semelhantes a curto prazo.
belecedora do ir ao bingo e jogar .
Segue-se a apresentação de uma das A tabela 3 apresenta outra análise funci-
análises funcionais dos comportamentos-
onal do jogar compulsivo, tal como formu-
queixa realizada durante as sessões tera-
lada pelo cliente .
pêuticas apresentados na tabela 1.
Foi importante notar que o excesso com-
O comportamento de gastar compulsivo
portamental se relacionava aos momentos
de M., a curto prazo, era mantido tanto por nos quais o cliente se sentia privado de
reforço positivo quanto negativo, ao ali- contato social, pois a privação poderia au-
viar o desconforto e a agitação vivenciados
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Tabela 1. Análise funcional do comportamento de gastar compulsivo.


ANTECEDENTES COMPORTAMENTO CONSEQUENCIAS
Dinheiro na conta ban- Gastar todo o dinheiro. Prazer imediato. (Fun-
cária ou na carteira: ção reforçadora posi-
presença de compor- tiva a curto prazo). Alí-
tamentos de agitação, vio da agitação e des-
desconforto conforto (Função refor-
çadora negativa).

Tabela 2. Análise funcional do comportamento de jogar compulsivo.


ANTECEDENTES COMPORTAMENTO CONSEQUÊNCIAS
Estar no bingo e obser- Jogar: comportamento M. ganhava intermiten-
var ganhadores. sob controle da auto temente o que tornava
fala “se ele ganhou, eu o comportamento de jo-
também posso ganhar e gar resistente à extin-
isso será ótimo”(regra) ção.

mentar a probabilidade do cliente voltar ao quanto privados; reforçamento diferencial


bingo ou comprar compulsivamente. Di- de outras respostas; reforçamento positivo
ante de tal constatação foi possível cons- de respostas adequadas; treino em asser-
truir junto com o cliente alguns repertórios tividade; discriminação de estados inter-
de enfrentamento de tais situações potenci- nos desagradáveis e generalização. Seguem
almente aversivas para ele. exemplos de como tais procedimentos fo-
ram utilizados diretamente com M.:
Assim, a intervenção neste caso envol-
veu exposição tanto a estímulos públicos

• Utilizar reforçamento diferencial das verbalizações a respeito de temas da queixa


ou de auto-falas aversivas, ou seja, relativos à solução dada pela esposa para saldar
parte das dívidas. A terapeuta, sob controle dos relatos verbais de M, selecionava
alguns episódios comportamentais sobre os quais falaram, como por exemplo: “
Conte-me, com que frequência você ia aos bingos?”;
– Verbalizações relacionadas às auto-estimulações aversivas inicialmente
eram acolhidas e posteriormente ignoradas pela terapeuta (procedimento
de extinção);
– Modelagem de verbalizações por meio do uso de consequências sociais: a
terapeuta consequenciava determinadas verbalizações de M com sorrisos,
perguntas e elogios relacionados aos seus comportamentos. Observou-se
que M. apresentava um déficit comportamental relacionado à expressão de
sentimentos, sobretudo receber e fazer elogios e críticas;
– Instrução para emissão de comportamentos relacionados à expressão de
sentimentos. Por exemplo, para ensinar M. a expressar sentimentos, dis-
cordar de opiniões e dizer não para os filhos, o cliente foi instruído a:
1. Observar seu próprio comportamento nas diversas situações, ou
seja, interagindo com os filhos, com os funcionários, com a esposa,
amigos, parentes e clientes;
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Tabela 3. Análise funcional do jogar compulsivo.


ANTECEDENTES COMPORTAMENTO CONSEQUÊNCIAS
em casa, sozinho."Era Pensei em ir ao bingo A vontade de ir ao
seis e meia da tarde... um pouquinho... Eu bingo passou. (função
Minha esposa havia ido pensei que eu não que- reforçadora positiva a
viajar"(sic). ria isso... (respostas en- curto prazo para res-
cobertas). fui fazer uma posta concorrente). Es-
comida, tomei uma cer- quiva de ir ao bingo, e
veja e fiquei com a ca- ser reprovado por filhos
chorra... e esposa (Função re-
forçadora negativa para
a classe de respostas
“entreter-se”).

2. Analisar, na sessão, as contingências controladoras dos compor-


tamentos observados em diversos contextos e identificar maneiras
alternativas de lidar com as situações (fornecimento de pistas para
a construção de novos repertórios);
3. Observar um modelo eficaz de expressão de carinho. O cliente
elegeu sua filha para tal;
4. Imaginar –se colocando em prática os comportamentos de expres-
são de sentimentos e opiniões. Por exemplo, durante o processo
terapêutico o cliente escreveu uma carta para entregar ao sogro,
porém sentia vergonha de entregá-la e diante de tal constatação fo-
ram avaliadas as consequências de entregar ou não a carta;
5. Colocar em prática e analisar as consequências de tais comporta-
mentos;
6. Obter feedback;
7. Solicitar a M. descrever as interações sociais com a esposa, filhos,
amigos, parentes, funcionários. Durante o relato a terapeuta in-
terrompia o cliente e fazia perguntas que destacavam os compor-
tamentos emitidos pelo cliente e suas consequências, ou seja, a
reação dos outros em relação ao que M. havia dito ou feito. Para
cada episódio relatado a terapeuta perguntava de maneira direta:
“O que você fez?”, “O que você disse?”, “Como a pessoa reagiu?”.
O objetivo era colocar as verbalizações de M. na sessão sob con-
trole dos comportamentos que emitiu e das consequências sociais
que foram assim produzidas.
– Discriminação: identificar a presença de auto-falas depreciativas evocadas
pelo fracasso do jogar, as quais poderiam funcionar como eliciadoras de
respondentes de ansiedade e sinalizavam a ocasião para emitir outras res-
postas de fuga e esquiva, como confessar para a esposa, pedir empréstimo,
jogar novamente. Esses comportamentos seriam uma classe de respostas
que produzem alívio da estimulação aversiva gerada pelo perder o jogo.
Ensinar o cliente a identificar as auto-estimulações aversivas poderia evi-
tar a emissão de comportamentos de gastar e ou jogar compulsivamente;
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– Generalização: o cliente, no início do processo terapêutico, verbalizava


que era muito fechado e com o passar do tempo começou a relatar para a
terapeuta sobre os mais diversos assuntos e tal habilidade passou a ocorrer
em outros contextos fora da sessão terapêutica. Por exemplo, em casa
conversava sobre vários assuntos com os filhos;
– Reforçamento de atividades incompatíveis com o gastar e o jogar com-
pulsivos: foi possível ensinar ao cliente novas relações, ou seja, planejar
atividades prazerosas mantidas por novos reforçadores. Por exemplo, o
preparo de um churrasco foi a maneira de ensinar o cliente a não mais
focar no passado e poder esquivar-se das consequências das auto-falas
negativas e, ao mesmo tempo, ter a companhia de amigos, filhos, esposa.

Resultados do processo terapêutico zem necessárias à compreensão do mesmo


(BANACO; SILVARES, 2000).
M. passou a ir ao supermercado com
lista, comprava apenas o necessário e trazia Guilhardi (1988) defende o estudo de
o troco. Quando reunia amigos em sua casa caso clínico como forma de pesquisa e de
para o churrasco, além de prepará-lo, pas- divulgação dos ganhos obtidos por meio das
sou a ratear as despesas e enxugar gastos, estratégias clínicas, sobretudo pela análise
como assinatura de TV a cabo e do jornal, funcional. De acordo com Bolgar (1965
serviços de jardineiro e tratador da piscina. apud BANACO; SILVARES, 2000), o es-
tudo de caso pode ser a ponte essencial para
O cliente passou a abrir as correspondên- se ligar a prática e a pesquisa em psicologia
cias bancárias, e certa vez viu que tratava-se clínica.
de um cartão de crédito. Colocou-o na car-
teira, segundo ele, para fazer um teste. Foi É importante salientar que, sobre o es-
ao shopping center com o cartão na carteira. tudo de caso apresentado, não foi encon-
Refere ter tido vontade de comprar mas não trada na literatura brasileira uma descrição
comprou nada. de um cliente com queixa de comprar e jo-
gar compulsivos conjuntamente. Deve-se
Idas ao bingo, que antes eram desafia- considerar que, ambos os comportamen-
doras, tornaram-se, segundo ele, “mais es- tos estão enquadrados no chamado Trans-
tresse do que prazer (...). Tem coisas mais
torno do Espectro Obsessivo Compulsivo
saudáveis e com custo menor, como, por
(TEOC), nos quais as manifestações com-
exemplo, sair com meu filho e sobrinhos.
portamentais têm como característica cen-
Gastei cem reais e nos divertimos muito. tral a impossibilidade do indivíduo resis-
Cem reais no bingo não dá para jogar nem tir a um impulso (BANACO, 1999; WIE-
dez minutos e me deu um prazer de três ho-
LENSKA, 2002).
ras com custo menor”.
No caso apresentado observou-se a di-
Discussão
ficuldade do cliente em controlar o com-
O estudo de caso é considerado um re- portamento de comprar e gastar compulsi-
lato individual e sistemático do que foi rea- vamente. Além disto, ele referia um alívio
lizado com o cliente durante o seu processo imediato de sintomas de ansiedade, o que
terapêutico, bem como a apresentação de confirma os dados encontrados por vários
dados que estejam relacionados à sua histó- autores, ou seja, de que estes comporta-
ria de vida e outras informações que se fa- mentos são mantidos também por reforça-
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mento negativo (BERNIK; ARAÚJO; WI- Quanto ao aspecto motivacional,


ELENSKA, 1995; TORRES, 2001). observou-se que a privação de contato so-
cial era a principal operação estabelecedora
Vários autores apresentam proposta de para comportamentos compulsivos. Após
possíveis relações funcionais envolvidas no esta avaliação, o cliente pôde perceber a
problema, como, por exemplo: condicio- necessidade de encontrar respostas alterna-
namento clássico, intermitência de reforça- tivas quando o impulso ocorresse, para que
mento positivo, respostas de fuga de esta- controlasse tanto o comportamento de jogar
dos internos desconfortáveis e o papel que o quanto o de gastar compulsivamente.
dinheiro pode assumir enquanto um refor-
çador generalizado (BERNIK; ARAÚJO; É importante salientar neste caso que a
WIELENSKA, 1995; GREEN et al., 1997; presença de dois sintomas importantes dos
BANACO, 1999; BICKEL et al., 1999; transtornos de controle de impulsos (com-
OTERO, 2002, GIORDANO et al., 2002). prar e jogar) ampliava o contato com situ-
ações aversivas, em comparação com cli-
As análises funcionais demonstraram fa- entes que têm somente um dos sintomas.
vorecer as decisões clínicas, em termos da Além disso, o repertório a ser desenvol-
escolha de técnicas e procedimentos ade- vido pelo cliente também deveria ser signi-
quados a serem adotados em cada inter- ficativo para que ele não tivesse mais uma
venção, com objetivo de promover mudan- operação estabelecedora que aumentasse a
ças comportamentais facilitadoras da me- probabilidade de seu comportamento ocor-
lhor adaptação do cliente ao seu ambiente rer.
(STURMEY, 1996; MEYER, 1997; SIL-
VARES; MEYER, 1998). Como foi o único caso encontrado no
Brasil com presença conjunta dos sintomas
Ainda de acordo com Bernik, Araújo e de comprar e jogar compulsivos, salienta-
Wielenska (1995) e Banaco (1999), o cli- se a importância de novos estudos nesta
ente precisará aprender a discriminar de área para confirmar os dados apresentados
maneira precisa possíveis alterações sutis quanto às melhores formas de realizar in-
em seu estado interno ou no meio ambi- tervenções em clientes com os sintomas
ente e que possuam alguma correlação com apresentados neste estudo de caso.
o comportamento de jogar e ou comprar
compulsivos. Após esta discriminação, o Conclui-se que o caso apresentado au-
cliente precisará desenvolver um repertó- xilia na compreensão da forma de realizar
rio alternativo para enfrentar tais situações, uma análise funcional com um cliente que
como, por exemplo, engajar-se em ativida- apresenta sintomas tanto de comprar como
des prazerosas alternativas de forma que as de jogar compulsivamente. Mostra-se tam-
mesmas possam competir com os compor- bém a importância dos estudos de caso para
tamentos de jogar e gastar, diminuindo-se, a melhor descrição dos problemas apresen-
assim, a sua probabilidade de ocorrência e tados por clientes com esta sintomatologia.
frequência. No caso citado, o cliente con- Com isso, é possível utilizar essas descri-
seguiu enfrentar tais situações e desenvol- ções para que sejam realizadas intervenções
veu os repertórios alternativos de cozinhar mais pontuais e que diminuam o sofrimento
e sair mais vezes em companhia da família, relatado pelos clientes e seus familiares.
sendo mantido por reforço positivo e tam-
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