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Pastora evangélica provoca polêmica no

Canadá após declarar que não acredita


em Deus

Ernesto Neves
15 mai 2016 16h15
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Apesar de popular em sua congregação, pastora vai enfrentar processo que pode resultar
no fim de sua carreira religiosa
Foto: Rafael Chache / Divulgação

Numa manhã de frio típica do clima canadense, 90 moradores de Toronto vencem a


chuva e o vento cortante para assistir a mais um culto evangélico.

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Todos os domingos, o prédio de interior austero é palco de 1h30 de culto, durante o qual
o público ouve sermões sobre os dilemas da vida moderna, canta e promove ações
comunitárias.

Apesar da rotina comum a qualquer congregação, o local esconde uma improvável


rebelião, que pode alterar para sempre a forma como os canadenses lidam com a
espiritualidade.
Durante todo o culto, ouve-se a palavra amor 43 vezes. Mas não há qualquer menção a
Deus. Isso é assim desde que Gretta Vosper, pastora responsável pela comunidade,
assumiu ser ateia.

Todos os objetos religiosos foram removidos dali. A única cruz em seu interior foi
escondida por uma série de feixes de pano coloridos, que formam uma espécie de arco-
íris suspenso. Também não há mais orações ou citações bíblicas. Apenas uma conversa
em que Vosper faz perguntas e convoca seu público a dividir experiências.

"Não vejo qualquer evidência de que Deus exista, especialmente aquela figura
benevolente que tem tudo sob seu controle", diz ela à BBC Brasil.

Para ela, Deus é apenas uma metáfora sobre as relações que estabelecemos com o
mundo. "Com tantas coisas ruins à nossa volta, não posso aceitar o argumento de que
qualquer acontecimento é parte da vontade de Deus", afirma.

Não usarás o nome de Deus em vão

As afirmações de Gretta têm provocado polêmica no país. Isso porque, até o fim de
maio, ela deve enfrentar um processo que pode resultar no fim de sua carreira.

A conversão da pastora ao ateísmo começou há 15 anos, de forma gradativa. Primeiro,


removeu menções bíblicas de suas falas. Em seguida, deixou de citar todas as entidades
sobrenaturais, incluindo Jesus Cristo.

Igreja Unida do Canadá reúne quatro correntes protestantes, incluindo a presbiteriana e


a metodista
Foto: Rafael Chache / Divulgação
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Na sequência, removeu as orações que tradicionalmente iniciam e finalizam o culto


protestante. No lugar, uma conversa coletiva discute soluções para problemas que
afligem a comunidade.
Em 2013, veio a decisão mais radical. Ao saber que 84 blogueiros de Bangladesh
estavam sob ameaça de morte feitas por extremistas islâmicos, Vosper veio a público
declarar-se ateia.

Desde então, representantes da comunidade protestante acusam-na de distorcer a função


da religião. Também questionam sua legitimidade como líder da chamada Igreja Unida
do Canadá.

"Não esperava tamanho impacto, mas não me arrependo de nada do que disse. Tanto
Deus quanto a religião são hoje usados por grupos privilegiados, interessados apenas em
manter seu status opressor. Eu não quero fazer parte disso", diz.

A tolerância como mandamento

Nascida em 1925, a Igreja Unida do Canadá resulta da junção de quatro correntes


protestantes, incluindo a presbiteriana e a metodista. Conta com 2,5 milhões de
seguidores, cerca de 7% da população total do país, e perde apenas para o catolicismo
em número de fiéis.

Trata-se de uma doutrina reconhecida no país por suas posições progressistas. Admite,
por exemplo, pastores homens e mulheres. Na direção oposta às igrejas evangélicas
brasileiras, possui líderes declaradamente homossexuais e a união entre casais gays é
aceita desde os anos 80.

Mas, ao acreditar no ambiente de total tolerância de ideias da instituição, Gretta talvez


tenha ido longe demais.

Instaurado em 2015, o processo de avaliação vai decidir até o próximo mês se ela pode
permanecer como membro da entidade. Será uma batalha desgastante, em que 40
membros da Igreja Unida vão interrogá-la e julgar seus conceitos sobre Deus.

Trata-se de um procedimento raríssimo na instituição, que só acontece quando algum de


seus membros é alvo de graves acusações.

"O objetivo é investigar a situação, já que os conceitos defendidos por Vosper são alvo
de preocupação por parte de nossos membros", diz o reverendo David Allen, secretário-
executivo responsável pela região de Toronto.
"Passei por diversas religiões e sempre me senti desconfortável com aqueles
personagens todos e a representação de Deus. Conheci as ideias de Gretta há sete anos e
nunca mais perdi um culto seu. Ela tem uma linguagem moderna e entende nossos
problemas", diz a aposentada Joan Grace
Foto: Rafael Chache / Divulgação

"Após ouvi-la, a comissão vai decidir se ela é adequada para continuar a exercer o
cargo. Caso não seja, será afastada definitivamente", diz.

Até o momento, Gretta já gastou 60 mil dólares canadenses (R$ 180 mil) na batalha
para provar que sua definição de Deus merece ser considerada pelo júri religioso.

Gretta diz acreditar que a crescente polêmica em torno de sua personalidade se deve a
uma onda conservadora. Os ataques mais duros começaram somente em 2015, uma
década depois de suas primeiras declarações nada ortodoxas.

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Um apresentador de uma rádio popular de London, cidade próxima a Toronto, chegou a


defender que Gretta permaneça no cargo apenas para manter seu salário e o auxílio-
moradia, ambos pagos pela congregação.

Num país em que entidades religiosas exercem pouca influência na sociedade, membros
mais progressistas deixaram de frequentar a igreja, restando um público mais resistente
a mudanças.

Mas, se o suposto conservadorismo cresceu em outras congregações, a comunidade de


West Hill promete unir-se para salvar a pastora da crucificação.

Durante o culto, todos usam um broche em que se lê "minha igreja inclui Gretta
Vosper". E já organizam protestos para serem realizados durante o julgamento.

"Já passei pelas por todas as religiões, mas não havia me identificado com nada até
conhecer a pastora Gretta", diz Joan Grace, uma aposentada que se tornou fervorosa
defensora do ateísmo há sete anos.
"Não poderia mesmo acreditar que o filho de Deus nasceu na Terra e sua mãe era
virgem. É um absurdo que isso não possa ser contestado, o que estão fazendo é uma
inquisição", dispara.

O milagre de Gretta

Se a Idade Média é evocada como forma de protesto à tentativa de expulsão de Gretta, a


pastora defende que sua inclinação nada mais é do que uma tentativa de atualizar a
religião para a vida contemporânea.

"Quando se começa a estudar teologia, é normal acreditar naquela mitologia


sobrenatural, que é passada de geração para geração. Mas, ao se aprofundar no assunto,
é inevitável não questionar como aquilo, nos dias de hoje, ainda é encarado como
verdade absoluta", defende.

"O mais grave é que sequer nossa congregação foi ouvida. A hierarquia mais alta da
igreja quer impor seus conceitos sem nenhum diálogo. Vamos organizar protestos até
que nós sejamos ouvidos", diz o aposentado Steve Watson
Foto: Rafael Chache / Divulgação

Gretta acredita que as religiões permanecem estacionadas no passado. Por isso, a


tentativa de renovar o discurso é evidente em todos os cultos.

No mais recente, usou o Facebook e o Google para discutir intolerância. Ela explica
para a plateia que, ao selecionarmos notícias e atualizações que somente seguem nosso
posicionamento, estaríamos mais estridentes e avessos ao debate.

"É muito grave que nossa religião continue a ser usada mais como motivo de divisão do
que de união. Hoje, temos disponíveis armas com tecnologia do século 21, mas uma
mentalidade ainda presa à Idade Média. É uma mistura explosiva."

Mesmo com a iminente destituição do cargo, Gretta mantém a rotina de trabalhos


voluntários, palestras e cultos. A sabatina de entrevistas a que será submetida deve se
estender por cerca de um mês. E, se não acredita no poder das orações para salvá-la da
demissão, ainda tem fé na generosidade dos homens.
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"Não posso crer que uma entidade tão inclusiva, que sempre lutou pelas mulheres,
indígenas, homossexuais, pobres e oprimidos vá se tornar um espaço de intolerância",
afirma. "Minha vida se passou aqui dentro, não saberia exercer qualquer outra
profissão", completa.

Por enquanto, alterar a definição do que é Deus para a igreja se mostra tarefa tão
hercúlea quanto a abertura do Mar Vermelho.

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