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Registros dos Encontros

Conversa 3: O Espelho (27/08/2020)

- Tese de existência das duas almas: a interior e a exterior. Conflito essência e


aparência. O que o ser humano é de fato?

- Algumas observações comparativas foram realizadas: o conto de Machado no


século XIX mapeia questões que vão ganhar maior profundidade com a filosofia
existencialista do século XX (Sartre) e com as expressões dos selfies (máscaras
sociais) na contemporaneidade, como observadas pelo sociólogo Erving
Goffman na segunda metade do século XX. É claro que a menção comparativa
respeitou as especificidades dos tempos em que a teorias foram desenvolvidas,
os contextos e a profundidade que cada tempo delegou à discussão.

- Na mesma esteira comparativa, o estudante Gabriel apontou em suas


colocações possíveis diálogos com o escritor irlandês Oscar Wilde,
contemporâneo de Machado de Assis. Não se tem o conhecimento de algum
possível encontro entre os autores, mas sabe-se que Machado lia com bastante
frequência os escritores britânicos. Não à toa, o próprio conto O espelho faz
referência ao judeu Shylock, personagem de William Shakespeare na peça O
mercador de Veneza, além de outras referências aos ingleses também presentes
na obra e em suas obras.

- Sobre os possíveis diálogos entre Machado de Assis e Oscar Wilde, os estudos


contemporâneos podem dar conta. O professor citou dois:
1. O artigo “O Mito de Narciso em: Oscar Wilde e Machado de Assis” no blog
de Literatura Comparada, podendo ser acessado pelo link:
http://praelitteras.blogspot.com/2012/05/o-mito-de-narciso-em-oscar-
wilde-e.html
2. O artigo (trabalho acadêmico) de Vagner Leite Rangel: “Do triângulo
literário à república das letras: os prefácios rumorejantes”, publicado na
revista Nau Literária, podendo ser acessado pelo link:
https://www.seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/viewFile/54647/34256

- Gabriel também indaga sobre possíveis aproximações com Freud que, no fim
do século XIX e início do XX, propõe o campo de estudos da psicanálise. A
observação é curiosa porque há sim relações, haja vista que uma das bases
para a teoria de Freud também é proveniente de fonte literária: a saber os
estudos que ele desenvolve sobre a obra de diversos escritores, dentre eles o
escritor alemão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (procurar o estudo de Freud
intitulado “O estranho” [Das Unheimliche] em que as contribuições do campo
literário são mais evidentes para a psicanálise).

- Michaelle observa que personagem Jacobina, no conto O espelho, parece se


importar mais com a alma exterior. Sim, e isso é o ponto conflitante da narrativa,
pois a teoria defendida pelo Jacobina (mais velho) é a de que as duas almas
existentes têm relações de dependência: sem uma, a outra não existe. Porém,
há um desequilíbrio na vida do Jacobina mais novo por perceber que a alma
exterior “está sendo perdida”, por não haver mais ninguém para alimentá-la.
Neste ponto, a “alma interior”, a que prevalece, revela um sujeito melancólico e
vaidoso.

- Gabriel pergunta se essa teoria também se aplica “aos sujeitos sem alma”
percebidos não só no processo de colonização, mas também no florescer de
uma sociedade científica-positivista do século XIX da qual participou Machado.
É certo avaliar que “alma” é uma noção cristã imposta pela Europa durante o
processo de colonização e “a ausência de uma alma” serviu como argumento às
práticas de extermínio de populações indígenas e escravização de negros
africanos. O questionamento seria, então, o de se perceber “o que é uma alma”
e “como essa alma é entendida em diferentes culturas”, principalmente as não
letradas. Valendo-se não somente do argumento europeu que justifica os
massacres históricos.
Também, no caso das diversas crianças “criadas” por animais que foram
descobertas no fim do século XIX e do século XX, seria o caso de “sujeito sem
alma”? Talvez fosse isso o que a Europa do período acreditasse; porém, a “teoria
do Jacobina”, personagem de Machado, nos permitiria ler tais fatos como
sujeitos com almas, pois o que assegura a existência delas é a convivência com
pares que as sustentam. Dessa forma, em cada tribo, sociedade, comunidade
existe um “outro” que assegura quem nós somos.

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