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Outras

Histórias

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Amor Animal

S
empre gostei de animais. A companhia de um gato ou de
um cachorrinho tem para o meu espírito um efeito
mágico, pois faz com que as preocupações corriqueiras
tornem-se insignificantes. Sou amigo inseparável também de
uma boa leitura e parece não haver coisa melhor no mundo
do que unir num só esses dois prazeres gratificantes. É uma
maçada incômoda ter que deixar o meu lar para ir à busca do
sustento material e, todos os dias ter que deixar para trás os
meus amigos. Mas não há outro recurso. Quanto aos livros,
ainda consigo uns rasgos oportunos em pleno trânsito durante
os breves segundos de um sinal fechado ou nos
engarrafamentos; aí ganho uma ou duas páginas por dia, às
vezes mais. Por outro lado, sinto a falta do afago em meus
bichinhos e do prazer que isto me proporciona.
Deixei em casa, aos cuidados de minha mulher, três gatos
siameses, um angorá e dois cachorros. O que mais me
preocupa no momento não é estar longe deles. A esta rotina já
estou acostumado. O fato é que Zora, a cadela policial, deu
cria esta semana, o que duplicou nossa trabalheira, mas
triplicou a minha felicidade. Toda noite, ao chegar a casa não
encontro a paciência mínima necessária para desfazer-me dos
trajes, tomar banho, jantar e tudo mais. Ao sair do carro, beijo
Laura, entrego-lhe minha pasta e não faço outra coisa até ver
os meus amores. Estou casado já há quase sete anos e ainda
não tivemos a felicidade, tão comum na maioria dos casais,
de ter um filho. Talvez seja este o motivo que me faz tão
apegado às criaturinhas do mundo animal. Perco-me na
contemplação delas – às vezes horas a fio. Quando estou em
casa, esqueço o tempo ao dar banho, alimentar e brincar com
esses inocentes seres. Contudo, não posso assegurar o que na
verdade me faz assim. Ao olhar um dos cachorrinhos, de pele
marrom e barriguinha branca; seu jeito heróico de disputar o
mamilo de Zora e aconchegar-se na mamada, de olhinhos

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semicerrados, mas atentos, minha memória é remexida e me
leva a um dos períodos mais agradáveis de minha existência.
Tinha eu então nove ou dez anos. Tirava da vida aquilo
que ela tem de melhor, pois o fantasma da preocupação não
rondava minha mente. Vivia satisfeito, aproveitando cada
momento. Possuía o que havia de melhor para o deleite das
minhas horas encantadas. Cercava-me das mais agradáveis
companhias; eram elas meninos felizes como eu, e todos os
tipos de brinquedos de que podem dispor a criançada. Como
filho único, conheci as vantagens e as desvantagens do mimo
exacerbado na vida de uma criança. Na minha concepção
pueril, já compreendia, ou ao menos tinha a noção, dos
efeitos negativos de ter diante dos meus amigos um gênio
distinto, um temperamento voluntarioso, irrepreensível.
Costumava questionar minha mãe: - Por que me sinto
diferente das outras crianças?
– Você não é diferente – dizia-me.
– Mas eu me sinto assim; isto me incomoda o tempo todo.
– Exatamente por isso, meu filho. Enquanto você se sentir
diferente dos outros meninos e meninas, isto vai te
incomodar. Você é como eles, apenas mais inteligente. Digo
que deveria estar orgulhoso e feliz; e não incomodado.

Parece que mamãe não me compreendia muito bem. De


fato, eu possuía uma inteligência e criatividade que
superavam a média das outras crianças da minha idade. Mas
o problema, o verdadeiro problema, é que eu percebia que
elas não gostavam de mim. Eu ganhava quase todos os jogos
que disputávamos, era mais perspicaz com os adultos e mais
ligeiro ao responder as perguntas deles. Limpava as bolinhas
de gude de quase todos os moleques; até nas apostas que
fazíamos eu tinha mais sorte. Aos poucos, uma transformação
que já vinha insidiosa por dentro de mim, apoderou-se de vez
do todo da minha personalidade. De extrovertido, passei a
circunspecto. De audacioso. Passei a exageradamente
medroso e tímido.
Já ia pelos treze anos quando, só então, minha mãe se deu
conta da seriedade da situação e decidiu fazer alguma coisa a

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respeito. Ver-me pelos cantos da casa, cabisbaixo e
pensativo, fê-la preocupar-se a ponto de buscar auxílio
médico. Mas, para a tranqüilidade dela (ou para o seu
desespero), os exames nada acusaram. Eu sabia que não tinha
nada, por isso tomei rédeas em assegurar-lhe tal fato. Então
mantínhamos conversas. Uma vez sugeriu:
– Que tal um passeio? Vamos até a fazenda nos divertir
um pouco! Aproveitaremos suas férias para uma mudança de
ares. – Exultei de felicidade, era tudo o que eu queria. Poderia
descobrir a causa do meu problema. Podia até não ter nada,
mas sentia que me faltava algo que, se o conseguisse, iria
preencher um pouco do vazio que carregava.
– Quando partimos, mamãe?
– Assim que seu pai consiga uma licença. Vejo que está
ansioso. Fico feliz por você, meu amor, vai se divertir muito.
– Mamãe tinha razão; foi um dos períodos mais excitantes
que já tive em minha vida e uma parte da minha infância que
mais me deixou saudades e que dificilmente vou esquecer.
Ter ido àquelas férias podia não significar mais do que um
simples período de descanso e relaxamento para meus pais e
algum divertimento para mim, já que fazíamos isto com certa
regularidade e tudo me era bastante familiar. Entretanto, desta
vez foi diferente. Eu, que vinha taciturno, mesmo ainda
durante a viagem e, já na fazenda pelos primeiros dois dias
após nossa chegada, transformei-me, num repente, dado um
fato que então me ocorreu.
Nossa propriedade em nada ficava a dever às suntuosas
chácaras das proximidades, famosas por pertencerem a
conhecidas personalidades do mundo político e empresarial.
Papai, durante anos, precisou ser renitente no sentido de não
ceder às inúmeras ofertas de compra feitas por muitos nomes
ilustres. Irresistíveis somas nos foram oferecidas para que
deixássemos nosso patrimônio para o usufruto daqueles que
procuravam a companhia dos seus iguais.
Mas valeu a pena a nossa relutância. Podemos hoje nos
orgulhar de possuir tão aconchegante lugarejo para o deleite
das nossas almas cansadas e oprimidas pelo alvoroço do
mundo moderno. Papai não mais vive e mamãe até hoje

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desfruta da paz e sossego do Rancho das Amoreiras. Mas
prossigamos com a minha aventura.
Teríamos todo um mês pela frente no contato com o nosso
paraíso particular. A casa era a mais elevada de todas, por
isso destacava-se na paisagem, além de proporcionar
exuberante vista. Da janela do meu quarto podia apreciar a
elegância da enorme vinha que circundava o perímetro de
entrada. Via os carros perfilando na estradinha lá embaixo e
podia saber quem entrava ou saia dos domínios do rancho.
Do portão principal para dentro, os caminhos, para um único
veículo por vez, ainda não eram asfaltados. Divergiam dos
seus destinos, cada um conduzindo à paz aqueles que, de uma
forma ou de outra, propunham-se a procurar por ela.
Descíamos em grupo, quase todo final de tarde – eu e mais
cinco garotos com os quais tinha afinidade – o caminho de
terra ladeado de coqueirais. Com freqüência, íamos montados
em nossas prestativas bicicletas. Mas, quando queríamos
gozar ao máximo as delícias dos nossos passeios,
empreendíamos caminhadas. Aí não faltavam travessuras.
Largávamos nossas camisas, deixávamos para trás os
chinelos e corríamos felizes, cevando-nos da liberdade que
era nossa, de corpo e alma. Os ventos alísios deixavam
rastros de frescor em nossos corpos franzinos, mas, vez por
outra, eram fortes o suficiente para fazer frangir no alto das
árvores galhos secos e folhas mortas. Ante minha
transformação, não havia felicidade maior para minha mãe,
tampouco inveja, afetação ou seja lá o que fosse para esta
minha outra turma de amigos; até me davam presentes. E um
deles foi especial. Tão especial que causou transformação,
não só no estado de espírito de uma criança inadaptada, mas
no caráter de um homem, em tudo o mais, igual a todo e
qualquer ser humano. E esta mudança foi para melhor (como
não podia deixar de ser) pois, vinda do reino dos irracionais,
chegou-me purificada de sentimentos outros, passíveis de
ambigüidade pela alma humana, frágil e imperfeita.
Um dos meninos da turma era Gabriel. Tinha mais ou
menos a minha idade e, acabei descobrindo com a
convivência, muitas das minhas aptidões e quase todos os

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mesmos interesses. Pelo fato de ser filho de pais separados,
parecia ter desenvolvido certo arrojo de personalidade, um
sentido de autossuficiência e domínio de certas emoções, que
perto dele sentia-me muito bem; era como se estivesse ao
lado de um adulto de quinze anos. Minha amizade com
Gabriel floresceu tão rápido que, em poucos dias, éramos
como dois irmãos. Os finais de semana eram os mais
propícios ao nosso relacionamento, pois a maioria dos outros
meninos saia com os pais e Gabriel aproveitava as sestas da
mãe para vir até minha casa, onde brincávamos muito e
conversávamos outro tanto; um domingo foi especial.
Estava eu na varanda principal, ajudando papai a fazer a
limpeza de nosso aquário. Saí, com um pequeno balde, até o
arroio bem próximo dali, atrás da casa. Ao retornar, fui
tomado de surpresa. Parei, perplexo. Diante de mim estava
Gabriel. Quase trombei com ele quando já ia chegando à
varanda. O que desviou minha atenção não foi propriamente
Gabriel, mas o que vinha depois dele. Era um ser matreiro,
despojado do fator humano, essencial à civilidade. Mas
dotado de inteligência suficiente para uma convivência
sobremaneira excelente; era um macaquinho.
 Gostou? – Foi a pergunta do meu amigo, antes mesmo
de me cumprimentar. Ele detectou instantaneamente a minha
expressão inusitada. Olhou por trás e estendeu a mão. O
animal, incontinenti, correspondeu ao sinal e pegou a mão
dele.
 Você nunca me disse que tinha um macaquinho! – falei,
pousando no chão o balde. Meu amigo sorriu no seu jeito
próprio.
 Você nunca me perguntou – respondeu, mantendo o
mesmo sorriso sardônico. Fez um pequeno gesto e o animal
pulou para o seu colo. Gabriel fez então umas cócegas em sua
barriga e o bicho desatou a dar grunhidos de prazer e mostrar
os dentes, abrindo e fechando os enormes beiços.
 Qual o nome dele?
 Dela, você quer dizer. Chamamos de Pisca, de tão miúda
que é. Não é uma gracinha?
 Como conseguiu, quem deu a vocês?

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 Ninguém deu, achamos.
 Acharam?! Não sabia que havia deles por aqui.
 É claro que há, mas não muitos. Mas não foi por aqui
que a encontramos; foi na fazenda de papai. A princípio não
queria que eu a trouxesse, receoso de que não fosse cuidar
bem dela. Na verdade, ele é muito apegado a animais.
Também pudera, vive sozinho numa fazenda tão grande! E,
além do mais, ele a viu primeiro do que eu. Ontem tive uma
surpresa. Veio visitar-me e deixou-me Pisca de presente. O
que você acha do nome que dei a ela?
“Até que não é descabido”, pensei cá comigo antes de dar-
lhe a resposta. Fiquei a observar o animal. Era jeitoso, muito
ágil e sabia fazer graças. Gostava de dar pulos nas pontas dos
pés quando menos esperávamos; ao mesmo tempo em que
passava alacremente a mão livre pela cabeça empoada de
suas travessuras pela terra. Quando fui cumprimentá-la,
agarrou minha mão e fez como se fosse beijá-la ou algo
assim. Logo, um repelão dei e me libertei. – Não precisa ter
medo – falou Gabriel. – Esta é somente a sua maneira de
demonstrar carinho; se lhe der a mão, vai acariciar a própria
cara com ela. Significa que gostou de você. Irá zangar-se se
recusar; vai achar que está sendo desprezada.
– E o que fará se eu negar mesmo meu carinho?
– Tente e saberá. – Achei melhor não seguir este conselho
de Gabriel. Pisca já me encarava um tanto desconfiada e eu
tive medo.
– Vou dar de novo minha mão a ela; não tem perigo?
– Absolutamente; é isto que está querendo. – Pisca beijou
o dorso de minha mão direita. A princípio senti repulsa; não
por causa do beijo exatamente, mas devido a um contato
estranhamente peculiar, o que me fez estremecer. Era como
se estivesse pondo a mão dentro de um torno aveludado. É
claro que, em realidade, isto não existe. Um profissional
mecânico nunca experimentou esta sensação no exercício de
suas funções e certamente se surpreenderia se um dia viesse a
não mais encontrar resistência em suas ferramentas.
Porém, aos poucos, fui me acostumando com ela e ela
comigo. Perdi o medo de ter meus carinhos retribuídos com

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beijos e pulos de satisfação e alegria. Logo, papai apareceu,
levado pela curiosidade, não menos que pelos apelos de Pisca
por carinho e atenção. Da varanda, acenou para cumprimentar
Gabriel, mas quando viu o garboso animal, seu rosto
iluminou-se com um sorriso. – Já ia chamá-lo para o lanche
mas vejo que temos mais um convidado, ou melhor, dois –
disse, apontando para Pisca.
No dia seguinte e nos outros, consegui uma total
identificação com nossa amiguinha. Quando Gabriel não
aparecia em nossa casa, eu o procurava. Pretextava qualquer
coisa para passar uma parte do dia, alguns minutos que fosse,
ao lado dela.
Todos os outros meninos, acostumados que estavam com a
minha presença constante nos arredores, pelas vinhas e
alamedas do lugar, iam e vinham a minha casa para saber de
mim. Apareciam em grupos de três ou cinco ou em par
procurando-me para brincar. No começo dizia papai que eu
havia retornado para o Rio de Janeiro. Depois, pela
insistência deles conseguiram saber do meu paradeiro. Um
era Adolfo, o mais levado da turma. Adolfo não gostava de
animais e vivia arrumando encrencas com a vizinhança por
maltratar gatos, coelhos, cachorros e outros bichos de
estimação. Eu nada tinha contra ele pessoalmente. Sabia de
suas aventuras deslustrosas mas, por mais que desaprovasse
sua conduta, tão oposta aos meus sentimentos, esforçava-me
para não permitir que isto maculasse o nosso relacionamento,
até ali sem problemas.
Contudo, apesar dos meus cuidados, Adolfo conseguiu
aborrecer-me. Numa manhã, chegou só à casa de Gabriel; eu,
como de costume, encontrava-me lá, distraindo-me com as
brincadeiras de Pisca.
- Você não faz outra coisa agora a não ser brincar com
esta macaca? – disse Adolfo em tom de escárnio; eu nada
respondi. Estava nesta hora descascando umas bananas que
arrancava de um cacho no chão entre minhas pernas. Era
muito engraçado quando Pisca, vez por outra, não me dava
tempo de descascar a banana. Tomava-a de minha mão e,
muito calmamente, desnudava a fruta e passava a comê-la,

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mostrando os dentes. – Todos perguntam por você durante as
peladas. Hoje é a decisão do torneio; você não vai? – Ele
mudava, aos poucos, o tom da voz para mais suave, pois deve
ter reconhecido o quanto fora rude ao dirigir-se a mim; então
falei:
– Posso levar minha amiguinha?
– Fique à vontade, mas não sei como poderá participar.
– Não se preocupe, ela não joga futebol.
– Você sabe ser engraçado quando quer – disse Adolfo,
aceitando de bom humor a minha troça.
Naquela tarde compareci ao futebol e, claro, Pisca estava
comigo. Mas, como não podia deixar de ser, Gabriel também
lá estava, protegendo sua mascote. A princípio fiquei
contente de ver todos os meus amiguinhos reunidos e pude
matar a saudade de alguns outros que não via desde as
minhas últimas férias; e lá se iam já quase dois anos. Mas
minha alegria durou pouco, infelizmente. Parece que meu
afastamento do grupo arrefeceu, de certa forma, o calor da
amizade que havia entre nós. Os meninos já não eram os
mesmos de antes, quando nos divertíamos alegremente; agora
havia mais competição. A maioria deles crescera um pouco
mais, já não eram tão carentes; e eu um quase adolescente.
Adolfo, que tinha a minha idade, devia comandá-los; e
com sucesso pois, quando chegou, conseguiu somente com
sua presença e uma bola melhor e mais bonita do que aquela
que seria utilizada, desviar totalmente a atenção de quatro
garotos que estavam no mesmo grupo onde Gabriel e eu
mostrávamos as peripécias de Pisca. Fingimos que nada
houve; continuamos agindo normalmente enquanto
aguardávamos o início do jogo. Vencemos. Adolfo, que era
do time adversário, não conformado com a derrota, propôs
uma revanche. – Pode formar a equipe que quiser. Minha
única condição é ter Palito e Nonô do nosso lado, vocês
aceitam? Troco por dois que são também muito bons. Chamei
Gabriel à parte.
– Muito bem, decidimos aceitar – falei. – Quando será o
jogo?

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Não tínhamos porque perder; e não perdemos. Mesmo
cedendo nossos melhores craques, conseguimos a vitória
graças ao trunfo de Gabriel. Reni era um menino humilde,
pouco conhecido de todos, menos do meu amigo; sabia tudo
de bola e deu um show. – Quando o vi jogar próximo à
chácara de papai, sabia que tinha a solução para o seu
problema – disse-me contente Gabriel no dia seguinte à
partida; e ele nem imagina o quanto lhe fiquei agradecido por
aquilo. Não propriamente por ter vencido aquele jogo mas
por ter tido a satisfação de ver no rosto de Adolfo o
desfalecimento do seu jeito piegas, do seu orgulho vulgar.
Com este episódio, ganhamos algumas inimizades. Mas
isto não me preocupou, muito menos ao Gabriel. Na verdade,
até achou melhor que assim fosse. Ao contrário de mim,
como morador que era do lugarejo, conhecia de verdade cada
um daqueles moleques; sabia que não perdíamos nada
afastados da turba de Adolfo.
Sendo assim, continuei fazendo o que me trazia mais
prazer e alegria no nosso rancho pelas últimas duas semanas
da minha estada ali. Para falar a verdade, desde que
reencontrei Gabriel e que, por seu intermédio, conheci Pisca,
notei em mim mesmo, uma mudança acentuada em meu
estado de espírito. Aqueles sintomas próximos à depressão –
embora fosse eu ainda uma criança – como que me tivessem
abandonado. Comecei a perceber sem esforço que as
alternativas que eu fora buscar no campo passavam longe do
que realmente necessitava. Estranho como os animais nos
preenchem em dados momentos de nossa vida. Como criança
eu não entendia isto e, talvez por essa razão, tenha
conseguido extrair naquele período grande e inesquecível
felicidade. Pisca passou a ser para mim a companhia, a
mudança de ares, o remédio, enfim, passou a resumir toda e
qualquer prescrição que o nosso médico havia recomendado.
As peladas continuaram, as brincadeiras também; tudo
como era antes. Porém sem mim e sem Gabriel. Tínhamos a
melhor companhia do mundo. Longe dos olhos que não viam
prazer no contato puro e desinteressado com outro ser. As

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manhãs eram nossas. Após o entrevero, as tardes passaram a
ser nossas também.
Logo, para meu desencanto, chegamos na manhã de
segunda-feira da última semana de nossas férias. Eu iria,
como de costume, aproveitar ao máximo o que ainda restava
de felicidade. Partiríamos no domingo à tarde. Então, sete
dias inteiros estariam ao meu dispor para o que eu quisesse
fazer. Eu deveria, como toda e qualquer criança feliz,
desfrutar cada momento; e foi o que fiz, ou pelo menos tentei
fazer. Mas o destino mudou o rumo dos fatos e as
conseqüências foram imprevisíveis.
Já na terça-feira comecei a perceber uma ligeira mas nítida
alteração no comportamento e nas atitudes de Pisca. Gabriel
já me havia prevenido quanto a isto. – Com certeza vai sentir
falta da mãe – me dizia. – Quando acontecer, não estranhe;
apenas dê-lhe mais carinho e atenção. Desse jeito não terá
problemas com ela. – Na quarta, pela primeira vez, levei-a
para minha casa por sugestão do próprio Gabriel. Uma
mudança de ambiente poderia favorecer esta fase de transição
para nossa amiguinha. Com efeito, tornou-se mais agressiva e
muito impaciente. Ninguém, a não ser eu, conseguia
aproximar-se dela sem ver-se expulso por seus gritos e
tentativas de ataques violentos e irrepreensíveis. Muito a
contra gosto tive que acorrentá-la ao pé de minha cama.
Mamãe, com toda razão, não gostou da idéia. Teve que
trabalhar dobrado no dia seguinte para eliminar a desordem e
a sujeira deixadas por Pisca. Gabriel havia ido passear na
casa do pai e ficou de retornar na quarta-feira à noite. Eu não
queria incomodar mamãe mantendo Pisca por mais um dia
em nossa casa. Portanto, no dia seguinte bem cedo, após uma
arrumação ligeira no quarto, que mais parecia uma arena em
final de espetáculo, levei Pisca ao seu dono. Meus pais ainda
dormiam quando fechei lentamente a porta atrás de mim, com
a macaca bem segura em minhas mãos por uma curta correia
de couro, ligada a uma coleira bem folgada em seu pescoço.
Atravessei com ela os pouco mais de dez metros entre
nossa varanda e a cerca da propriedade e ganhei a rua. O dia
estava amanhecendo. As últimas estrelas despediam-se do

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firmamento. Gabriel morava na outra extremidade do rancho,
a uns trinta metros de caminhada pela alameda principal.
Enquanto descia, encantado com o efeito bucólico da
paisagem que me cercava e extasiado com o aroma do verde
e o frescor da brisa matutina, descuidei de Pisca e deixei que
escapasse de minhas mãos. Arisca como ela só, e empuxada
por sua extrema necessidade e falta da mãe, Pisca distanciou-
se muito rapidamente de mim, numa velocidade fora do
comum. Fiquei totalmente aparvalhado ao vê-la desaparecer
no meio dos arbustos que margeavam aquele trecho da
alameda. Corri para alcançá-la mas tropecei no meio do
caminho, perdendo-a totalmente de vista. No auge do meu
desespero, apelei para os gritos, último recurso, em forma de
apelos lancinantes. Vi-me correndo sem rumo, bracejando e
chamando por seu nome. Foi inútil minha agonia. Quando dei
por mim, não sabia mais onde me encontrava nem quanto
tempo tinha corrido. O cansaço me dominou e eu deixei-me
cair sentado sobre a relva. Havia atravessado um enorme
trecho de floresta e estava agora há poucos metros da margem
de um rio; não conhecia aquele trecho e por momentos tive
medo de estar perdido. Mas isto me importava menos naquela
hora do que a tristeza do desaparecimento de Pisca e a
possibilidade de não vê-la nunca mais ainda me assombrava e
desanimava totalmente.
O contraste entre meu estado de espírito e tudo o mais em
derredor era realmente marcante. Meu ser, distante e
sorumbático, sucumbia à realidade, combalido de dor e
despojado de esperanças. A tranqüilidade das águas, em seu
curso calmoso, mas firme e decidido, inspirava a harmonia do
conjunto que formava aquele trecho de beleza e paz
inigualáveis. Aos meus ouvidos chegaram uníssonos a
chilreante procissão de pardais ao largo das perfumosas
heras, e o farfalhar de folhas e galhos das altas coníferas
doadoras de enormes e aconchegantes sombras. Vencido por
esta quietude inebriante a funcionar como um chá de ervas
calmantes e aromáticas, adormeci. Estendido na relva, deixei
de protagonizar uma cena na natureza e tornei-me ela própria.
Confundi-me com os elementos naturais que participam do

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espetáculo da vida, doando-se à mãe terra e sendo por ela
preenchido; alheio ao momento mas receptivo ao todo.
Muitas horas já haviam transcorrido desde o meu
afastamento de casa pela manhã. Com certeza todos estariam
para lá de apavorados com a minha longa ausência, fato
nunca antes ocorrido. Quando despertei, com o corpo
relaxado e a mente mais clara, o primeiro pensamento que me
veio à mente, transformado em imagens perturbadoras, foi o
estado inquietante de minha querida mãe a procurar por mim.
Pisca veio logo em seguida e, se o que sempre imaginei em
Gabriel se confirmasse, ele não estaria nada sossegado até
que tivesse notícias de sua preciosa companheira.
Logo, minha lucidez momentânea deu lugar ao mal estar
próprio de quem se vê horas privado de alimento. Minha
fome era tamanha que não queria em nada pensar além de
algum meio prático de saciá-la. Por instantes fiquei sem saber
o que fazer. Sentia-me um tanto fraco para empreender o
mesmo trajeto de volta para casa em busca de comida. Porém,
se caminhasse, poderia encontrar algo pelo caminho; e foi o
que fiz.
Antes porém, precisava mitigar minha sede e refrescar-me
a fim de suportar o enorme calor. Levantei-me e fui até à
beira do rio. Após lavar-me e beber água, senti voltar um
pouco minha energia. Então deparei com algo que poderia
chamar de compensador para quem se via só e desamparado
como eu. O que vi, a princípio deixou-me assustado. Depois
compreendi a imprecisão de qualquer temor ou cuidado. De
onde eu estava, até o que meus olhos testemunharam, iam
mais de trinta metros, incluindo a largura do rio, bastante
considerável. Uma gárrula e incessante procissão dos
macacos cinzentos passou a desfilar no alto das árvores, ante
meus olhos aterrados. Pareciam ser da mesma família de
Pisca, mas de uma espécie diferente e, com certeza, muito
mais feroz. Tinham o pelo de um marrom muito escuro e os
mais velhos apresentavam quase o dobro do tamanho. A mim
se mostravam assustadores; eram inquietos e faziam muita
algazarra. Pensei que a colônia fosse infinita, pois à medida
que iam passando, outros iam surgindo, numa sucessão sem

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fim. Mas logo percebi que estavam dando voltas nas árvores,
tanto nas partes baixas quanto nos galhos próximos às copas.
Gritavam e batiam palmas, dando a impressão de estarem se
divertindo com alguma brincadeira interessante.
Da posição em que me encontrava, podia observar, e
muito bem, cada movimento deles. Decerto, a distância e o
rio davam-me bastante segurança e proteção contra um
possível perigo. Mas, agachado na água, eu olhava lá para
cima e sentia arrepios ao ver os animais saltando de galho em
galho acima de minha cabeça. A água do rio era de um tom
suave e calmante e de coloração magenta, quase esverdeada.
Porém, pouco a pouco, sua estabilidade foi-se modificando e
a quase perene tranqüilidade fez-se invadida. Notei de
imediato a mudança e até abandonei por instantes a minha
visão para olhar o rio em toda a extensão que pude captar. As
águas agora meio revoltas tinham razão de ser. Ao longe vi
uma canoa que singrava em minha direção. Tive tempo
suficiente para sair de dentro do rio e colocar-me em
segurança e, evidentemente, em estado de alerta.
Apenas pus meus pés em terra firme e não mais que uns
três metros distanciavam-me da embarcação; vi então quem a
ocupava. Era Rodolfo e mais um menino (não sei se poderia
chamá-lo assim) que também havia participado da pelada,
jogando contra nosso time. Guto, como chamavam ao outro,
se era adolescente, não mostrava isso no porte físico, muito
menos no aspecto. A quantidade de sua força só se igualava a
de sua fealdade. Tinha porte de adulto mas não passava disto.
Quando abria a boca para falar, denunciava logo a
imaturidade e a pobreza do vocabulário que não tinha muitas
oportunidades para ser aperfeiçoado. Guto não freqüentava a
escola e passava dois terços do dia na companhia de outros
garotos iguais a ele e sempre abaixo dos seus dezesseis anos,
porque gostava de ser autoritário e mostrar-se superior. Os
cabelos ruivos, achatados e ressequidos pelo contato
constante com o sol direto e a pele quase sempre queimada e
escurecida, pareciam mais acentuar seu jeito imperioso.
Algo me dizia que o contato com aqueles dois seria
indício de mau agouro e um péssimo dia para o meu dia já

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péssimo. Assim sendo, tentei esconder o verdadeiro motivo
que me levara a estar ali tão longe do rancho.
– Olha quem está aqui! O nosso campeão de futebol –
Rodolfo soltou estas palavras assim que conseguiu
reconhecer-me e mesmo antes de encostar a canoa.
– Olá, Rodolfo! Oi, Guto! Como vão? – Procurava
mostrar-me natural mas o esforço era grande porque sentia
medo deles. Eles não me cumprimentaram. Desceram e
puxaram a canoa para terra; Guto veio em minha direção.
– Boa tarde! – disse, estendendo-me a mão. Seu tom era
sarcástico; eu correspondi sem dizer palavra. Ele prosseguiu:
- Não sabia que era tão bom de bola. Não gosto nada de
perder. Aliás, fico furioso quando isto acontece; não é
mesmo, Rodolfo? – Rodolfo nada respondeu. Tinha toda a
sua atenção voltada para o alto das árvores, onde os bichos
continuavam envoltos em seu espetáculo particular. – Olha! –
falou para o amigo, que não lhe deu muita atenção embora
tivesse ouvido perfeitamente – aqueles não são os macacos
cinzentos? Há dezenas deles lá em cima; ainda bem que estão
do lado de lá e deste lado estamos protegidos. Mas não sou
idiota de permanecer aqui por muito tempo. O rio não é largo
e as árvores são numerosas. Não podemos ficar muito tempo
aqui, Guto, vamos embora. O sarcasmo de Guto misturou-se
ao meu desespero. Comecei a pressentir algo de vingativo em
suas atitudes.
– Vocês jogaram muito bem; só ganhamos mesmo porque
tivemos muita sorte – falei, para ver se criava um clima um
pouco mais amistoso. Minha estratégia não deve ter
funcionado. Guto era desses moleques que sentiam prazer em
molestar os outros, colocando-os em desvantagem; por isso
sempre escolhia como companhia menores do que ele em
idade e no porte físico. Desse jeito conseguia manipulá-los
mais facilmente a seu bel prazer; e era isto exatamente o que
tentava fazer comigo agora.
– Você parece meio pálido e abatido! Será que tudo isto é
medo? – Embora o medo fosse indisfarçável, dei-lhe outra
razão para o meu estado não menos verossímil para a
interpretação de Guto.

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– É fome; não como nada há quase doze horas. – Notei na
expressão dele, a princípio, uma leve demonstração de
surpresa, que quase confundi com comiseração, mas logo vi o
quanto me equivocara, pois não demorou para que um sorriso
sardônico se estampasse em sua fisionomia. Ele virou-se para
o companheiro e disse, ainda mantendo a mesma expressão
debochada.
– Com que então o nosso amiguinho está faminto, você
não ouviu isto, Rodolfo? – sem esperar resposta de Rodolfo,
que não deixava de olhar para o alto, continuou – Então, pode
considerar-se um rapaz de sorte. Acabamos de fazer uma
deliciosa refeição. Mas não se preocupe; ainda sobrou muita
coisa e vamos ter o prazer de oferecer a você, não é, Rodolfo?
– Bem... Não precisam se preocupar comigo.
– Imagina! Não é preocupação nenhuma. – Já estava de
costas e dirigia-se à canoa quando disse estas palavras.
Agachou-se e olhou por debaixo de um dos bancos. Ficou
algum tempo nesta estranha posição, cômica e supostamente
bastante incômoda. Estava de cócoras na areia como alguém
que abaixou para fazer as suas necessidades. Uma das mãos
puxava a corda que prendia o barco e a outra vasculhava
algum paradeiro não muito conhecido. Até que, num dado
momento, a canoa estancou ao peso do que ele procurava. Vi
então o que era; um enorme cacho de bananas punha-se à
vista agora, seguro pelas mãos de Guto. Ele empreendeu um
esforço final e conseguiu pô-lo definitivamente para fora da
embarcação. Da areia, arrastou-o, não sem dificuldade, até
onde eu me encontrava.
Parece que o esforço que fez deixou-o irritado. Se antes já
não deviam ser louváveis as suas intenções, agora então tinha
motivos seus para descarregar de alguma forma sobre alguém
(este alguém seria eu, com certeza) o mau humor resultante
do esforço demasiado que teve de fazer para resgatar, de um
esconderijo sobrecomum, um simples cacho de bananas.
Largou o fardo incômodo e deixou-se cair sentado no capim
rasteiro, apoiando o corpo cansado sobre os braços esticados
para trás. Ante minha expressão estupefata, antevendo suas
intenções, falou, quando se viu refeito:

23
– Não precisa nem agradecer pelo banquete fausto que te
espera. Oito dúzias de bananas não deve ser muito para quem
se encontra há doze horas sem comer; deixe-me fazer as
contas... – Depois de alguns instantes remexendo os dedos,
prosseguiu: - São exatamente oito bananas a cada hora. Eu
consigo, com muita facilidade, devorar oito bananas em cada
hora, você não, Rodolfo?
– Sim, Guto, sem problemas, sem problemas; mas vê se
acaba logo com isto e vamos embora daqui.
– Guto, se eu fosse você, ouvia seu amiguinho. Pensando
bem, minha fome já passou; andei comendo uns negocinhos
por aqui não faz muito tempo.
– Acontece que você não é eu – gritou, voltando a
mostrar-se irritado; – além do mais, ninguém pediu a sua
opinião por enquanto; fui claro? Agora vamos, coma! –
completou, mais irritado ainda.
O enorme cacho encontrava-se aos meus pés. A mim só
restava abaixar e começar a comer as frutas; foi o que fiz.
Devo confessar que nunca me pareceram tão deliciosas. A
primeira dúzia quase que não senti descer para o meu
estômago. Meus gestos eram naturais e até tranqüilos pois, na
minha inocência, acreditava mesmo que ele (ou pelo menos o
outro, não tão impiedoso, mas não menos frio e indiferente)
fosse, a certa altura, dar-se por satisfeito. E poupar-me de
uma cruel indigestão, ou de até pior conseqüência. Eu
apanhava as frutas, uma a uma e, bem lentamente,
descascava-as. E, enquanto mastigava-as, atirava, por cima da
cabeça de Guto, de costas para o rio, as cascas sobre as águas.
Estas, alheias à cena, cumpriam o seu papel de conduzir
alhures o corpo estranho para um destino ignorado.
A certa altura do ato forçado pelo sadismo pueril daqueles
malvados pequerruchos, comecei a sentir mal estar. Então,
parei de súbito, levando uma das mãos ao estômago. Nessa
hora abaixei-me para melhor suportar a dor que ameaçava
abater-me. Quando olhei para Guto vi, ou imaginei ter visto,
um monstrinho encarnado em sua fisionomia. Imediatamente
veio-me à lembrança as ameaças de mamãe sobre esses seres
do outro mundo, em forma de duendes maus ou bichos

24
papões. Que surgiriam para mim caso, por exemplo, eu não
comesse até o final a minha refeição. Quando associei as duas
situações, meu mal estar aumentou e deixei-me cair sentado e
quase sem forças. Não tanto pelo excesso das bananas que
havia comido, que não chegavam a uma dúzia mas, pior
ainda, pela visão horripilante que acabava de ter.
Em meio a um momentâneo alívio, o rosto de Guto
voltou-me à realidade. O sorriso sarcástico e maquiavélico
pouco diferia da figura que se debelara. Ouvi bem claras as
palavras saídas de sua boca ao dar-me o ultimato cruel e
apavorante: – O que está esperando para terminar sua
refeição; está faltando alguma coisa? Pena não ter por aqui
alguns pedaços de pão para acompanhamento... Ah! Ah! Ah!
– Era só o que faltava. Minha sentença final fora promulgada
através destas últimas palavras de meu algoz; fim das minhas
esperanças. Comparável à perversidade de Guto só mesmo a
apreensão e ansiedade do pequeno Rodolfo.
Eu mesmo não compreendia a razão para tão estranho
comportamento. É certo que meus sentidos não
correspondiam a minha vontade. Na verdade estava a ponto
de desmaiar só em prever as próximas atrocidades de Guto
para comigo. Porém Rodolfo encontrava-se quase tão pálido
e assustado quanto eu. Será que a simples visão dos macacos
seria suficiente para deixá-lo assim?
Acuado, consegui, com muita dificuldade, ingerir mais
umas quatro ou cinco bananas. Até um ponto em que Guto
passou a não mais esperar que eu, na minha lentidão doentia,
descascasse as frutas e as levasse até minha boca, num gesto
tão normal quanto seria esperado de alguém no meu estado.
Levado por um impacto, não sei se de fúria ou de leviandade,
ele começou a arrancar do cacho as bananas, trazendo duas
ou mais em cada repelão que dava. Em cada seqüência do seu
ato tresloucado, enfiava em minha boca de tal forma
estouvada as frutas, que as inocentes esmagavam-se e eu não
conseguia fazer coisa outra que tentar cuspi-las e assim evitar
que fosse por elas sufocado.
Foi quando, no auge da minha agonia, comecei a gritar
desesperado para que parassem com aquilo. – Pelo amor de

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Deus, Guto, você vai acabar me matando desse jeito; estou
ficando sufocado. Pare, por favor! – De cima a baixo, eu era
só imundície, minhas roupas estavam imprestáveis. Cascas e
melado de banana por todos os lados, em cima e ao redor de
mim, desfiguravam por completo o meu aspecto. Guto
limpava as mãos em meus cabelos e corpo, enchendo-os de
nódoa, enquanto proferia expressões de delírio sádico e
mordaz.
– Tome! Farte-se do seu alimento predileto, você não
adora macaquinhos espertos? Então deve adorar também a
fruta predileta deles, não estou certo? Responda! – É claro
que não podia responder. Tinha nessa hora duas enormes
bananas entalando-me de tal forma que nem um único
gemido conseguia emitir.
Porém, não seria desta vez que iria sucumbir às torturas
destes dois desajustados. A salvação veio do céu em resposta
às minhas orações silenciosas. Quando já perdia todas as
forças, ouvi um troar de galhos secos que se partiam seguido
de lancinante grito. Guto arregalou os olhos para cima e fez
uma expressão de espanto sem precedentes para mim. Como
uma lebre, largou meus ombros e correu, tentando ganhar o
rio. Mas, prestes a alcançá-lo, foi violentamente jogado nas
águas, graças a um certeiro baque que recebeu nas costas,
tirando-lhe o equilíbrio. Rodolfo, não sei como, já se
encontrava dentro da canoa, empreendendo esforços para
livrar o amigo de uma ridícula situação.
Vi ainda o suficiente para compreender a razão daquele
desespero. As remadas de Rodolfo e agora as de Guto atrás
dele na embarcação, eram tão fortes e aceleradas que os
carregaram dali e fizeram com que, em questão de segundos,
desaparecessem como pó na primeira curva do rio. Não fui
capaz de contar, mas asseguro que mais de uma dúzia
daqueles macacos que brincavam e alardeavam no alto das
copas carregadas dos palmeirais, pulavam alvoroçados na
beira do rio, de ambos os lados. Já não mais sabia decifrar os
sentimentos que me dominavam; se medo, alívio ou fraqueza,
ou os três ao mesmo tempo. Só sei que sucumbi, talvez a este

26
último, quando o toque peludo de duas mãos negras
envolveram meus ombros. Depois disto, tudo era escuridão.
Voltei a mim, refeito de alguns males e grávido de outros
de natureza indescritível. Tão estranho quanto o meu estado
só mesmo o lugar onde agora me encontrava e, o que era pior
ainda, as criaturas que me rodeavam. Já era manhã do outro
dia; teria eu passado ali a noite? Teriam aqueles seres me
transportado? Aos poucos, à medida que recobrava a minha
lucidez, fui dando conta da minha situação, estranha e
inusitada situação. Quatro macacos rodeavam minha cama
improvisada à sombra de uma palmeira. Tentei levantar-me
para correr dali mas fui impedido. Deitaram meu corpo nu,
sem no entanto empreender qualquer violência. Estranhei
gestos tão delicados vindos de animais selvagens como
aqueles. No entanto, qual não foi minha surpresa quando
reconheci Pisca entre meus anfitriões! Eles deram passagem
para que ela se aproximasse, trazendo um coco em uma das
mãos e umas frutas estranhas na outra. Apesar de tudo,
consegui esboçar um sorriso de satisfação, mas não sei se
poderia também dizer segurança.
Não vou chegar ao extremo de afirmar que me sentia
protegido. Mas vivi uma experiência que sinto prazer em
narrar e, cada vez que o faço, torno a revivê-la em meu
espírito. Mas nunca encontrei nem encontrarei palavras para
descrevê-la. Nosso vocabulário não alcança o alto grau de
emoção vivido para poder expressá-lo. Por força maior da
contingência literária, excluo aqui detalhes dos meus quinze
dias passados na convivência dos macacos cinzentos e de
Pisca. E foi por intermédio dela e com sua ajuda que logrei
conquistar a minha, por assim dizer, liberdade.
A comunicação expressiva no mundo símio é fator
preponderante e ainda muito pouco pesquisado por nós,
humanos. Intuí esta verdade muito rapidamente e passei a
colocá-la em prática, tendo em Pisca grande colaboradora.
Suas compridas e negras mãos já me haviam salvado, de certa
forma, da morte; agora, dar-me-iam a chave da liberdade.
Apesar da minha pouca idade e do conhecimento ainda
primário de nossa língua, pude elaborar um sistema de

27
comunicação com pisca, através do uso de sinais. Aproveitei
os que ela já utilizava, coloquei-os para funcionar dentro de
um padrão favorável às nossas necessidades. E a esses juntei
outros, formando uma espécie de código manual de
emergência. Isto acabou por funcionar melhor do que eu
esperava.
Em pouco mais de uma semana no meio deles, a
admiração deixou de ser, em ambos os lados, um fator
predominante como era no princípio. Meus companheiros,
com exceção de Pisca, já não se importavam tanto com a
minha presença. Seguiam sua rotina selvagem, deixando-nos
a sós durante a maior parte do dia; senti nessas horas como
eram fortes os laços que nos uniam. Aplicando a nossa
simples mas eficaz forma de comunicação, passávamos horas
muito agradáveis, embora cheias de ansiedade e incerteza
para o meu coração. A falta de proteção materna é fator
comum entre todos os seres e, neste ponto, para minha sorte,
tinha-o em comum com minha amiguinha.
Em nossos diálogos, chegamos a um acordo. Prometi a
Pisca que de tudo faria ao meu alcance para levá-la de volta à
presença de sua mãe. Em troca, poderia, com a ajuda dela,
encontrar a minha. E foi isto o que aconteceu; conquistei sua
confiança e ganhei minha liberdade.
Caía a tarde quando entrei no rancho ao lado de Pisca. Se
quisesse comparar a atmosfera do meu lar, por ocasião de
minha chegada, a uma cerimônia fúnebre, acho que ainda
sairia perdendo ou precisasse ser de uma personalidade capaz
de consternar meio mundo. Outrossim vi, na tristeza de
minha mãe ao contemplá-la, o resumo da frustração advinda
de um sentimento de perda, duplamente confrangedor porque
não deixa escolha. Perde-se, nesses casos, o que nunca se
tentou ganhar por ser direito adquirido.
Quando adentrei a antessala vi mamãe através da porta
que estava entreaberta. Por alguns minutos, com Pisca ao
meu lado, segurando uma de minhas mãos, permaneci
imóvel, com certo receio de causar-lhe um choque com
minha chegada inesperada. Ela estava sentada na poltrona

28
menor, mostrando-se de perfil; sobre a mesinha de centro, um
vidro de remédio e um copo com água pela metade.
Deixei então que ela avistasse o animal e, por associação,
descobrisse a minha presença. Não precisei de muito tempo
para que isso acontecesse. Mamãe, numa fração de tempo
inacreditável, já me tinha em seus braços apertado,
compartilhando com ela um momento inesquecível de
felicidade e reencontro. Ela estava de tal forma exultante e
arrebatada com a minha presença inopinada que não sabia se
usava seus braços para envolver meu corpo ou se os erguia
para o alto e agradecia aos céus por saber-me são e salvo.
Não sabia se me enchia de beijos com seus lábios úmidos
pelas lágrimas incontidas de felicidade ou se murmurava
frases guardadas pela dúvida e agora impossíveis de segurar,
posto que a certeza tornou-as nossa confirmação de união
eterna e paz duradoura.
– Oh! Meu filho, onde você andou todo este tempo? Como
tenho sofrido!
– Estou aqui, mamãe, estou aqui!
– Sim, graças a Deus você voltou, estamos juntos
novamente; mas me deve uma explicação, temos muito que
conversar.
E foi assim que tudo aconteceu. Embora não tenha
obliterado um detalhe sequer do ocorrido comigo naquelas
duas semanas em que me afastei de casa, não posso afirmar
que consegui convencer as pessoas a quem relatei minha
experiência. Gabriel achou-me saudável demais para não
acreditar que eu estivesse fora do rancho – talvez na casa do
Rio de Janeiro – exibindo Pisca aos meus parentes e amigos,
causando inveja e admiração. Rodolfo, nas férias seguintes,
não o vi pelas proximidades e Guto, sempre que o
encontrava, mostrava-se totalmente desconcertante e receoso
de alguma espécie de retaliação por minha parte. Não
conseguia permanecer em minha presença por mais de cinco
minutos; sempre pretextava uma escusa e se ausentava.
Pisca viveu mais nove anos, durante os quais não houve
paradeiro mais ansiado e propício às minhas férias. Quando já
trabalhava e era maior e independente, discordava de mamãe
quanto à existência de outro refúgio mais adequado ao nosso

29
descanso anual e lá ia eu em direção a minha predileta
aventura. Até que, com a morte dela, morreu também meu
interesse pelo rancho, ou melhor, nunca haveria, então, lugar
tão impróprio para as minhas férias. A lembrança de Pisca
ficaria em meu coração somente ou, quem sabe, não
suportaria o contato com o que foi nosso e deixou de ser.
Nunca mais voltei àquele lugar. Tenho hoje uma bela
propriedade rural, onde os animais fazem parte do meu
espaço. Possuo várias espécies: cachorros, papagaios, cavalos
e até uma onça. Mas a espécie de Pisca não tem vez por aqui.
Só ela existe e continuará existindo e a razão é simples:
Embora o meu amor por animais continue em alta, o que fui
com Pisca e o amor que senti naquela época – pueril, quem
sabe? – não existe mais. Morreu com ela.

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LIBERDADE E PAIXÃO

E ra um menino. Negro, como muitos também o eram.


Tinha sonhos, como todos os meninos na sua idade. Sim,
a idade; contava ele onze anos na época em que se deu
este episódio. Poderia passar despercebido, não fosse por um
detalhe que chamou minha atenção e me fez, por pouco,
desviar o rumo. Trabalhava eu na fábrica de brinquedos a três
quarteirões dali e, ao contrário do que podiam denotar as
evidências, não estava folgado no horário. Em quinze
minutos as sirenas se fariam ouvir e eu precisava dar o
exemplo que o meu cargo requeria. Há não mais de uma
semana, gozava os louros e os privilégios de uma promoção a
gerente comercial, galgada à custa de muito trabalho, muitas
renúncias e, acima de tudo, uma invejável pontualidade
britânica.
O referido pequerrucho não me era estranho. Era Agneu,
filho da escrava do meu patrão. Carmelinda, alforriada em
virtude da gravidez que ganhou em meio às idas e vindas às
inúmeras fazendas de café do interior de Minas Gerais, veio
parar no Rio de Janeiro, sem rumo, sem tostão e com um
filho de seis meses entranhado no bucho. Os motivos do
envolvimento com os escravos, que resultaram na inesperada
gestação, não eram, em absoluto, desconhecidos, chegando a
ser óbvios. A escassez de mulheres era resultado do
radicalismo de alguns patrões que só permitiam braço forte
na lavoura. “Homem é para servir à terra e mulher é para
servir ao homem”, diziam estes imperiosos fazendeiros. E as
bonitas e viçosas como Carmelinda, tinham que servir a eles,
em todos os sentidos. As que, de bom grado, se sujeitassem
aos arroubos concupiscentes dos seus amos poderosos,
poderiam considerar-se as privilegiadas; pelo menos até que
suas volúpias se aplacassem. Do contrário, cairiam no pesado
como qualquer escravo forte; e o trato não seria diferente.
Se evidentes eram os motivos que a levaram a engravidar,
eram, na mesma proporção, obscuras as razões para a sua

31
inesperada alforria. A principal delas, diziam uns, seria uma
possível ameaça de morte, que progrediu para tentativa de
assassinato, na noite véspera de sua partida. Ciúmes; teriam
sido estes os responsáveis por tudo? A mais bela de todas,
Carmelinda, não poderia ficar impune às conseqüências de
sua própria beleza: Os assédios de companheiros, fechados
por seus encantos. Só que alguns, comprometidos, não
sabendo fazer bem feito, suscitaram suspeitas, que deram no
atentado. Salva por um triz da sanha vingativa de seus
algozes, que à noite incendiaram a cabana, Carmelinda
dirigiu-se ao casarão: - Patrão! Patrão! Quiseram matar-me à
noite, incendiaram a choupana.
- Isso são horas de vir acordar-me? – Este era Fagundes, o
amo. Chegou à janela e, de lá, proferiu estas palavras, juntas
ao seu acesso de fúria. Como estava no andar superior, onde
dormia, avistou as chamas que ardiam a duzentos metros dali.
O incêndio já estava no fim mas ainda havia chamas e muita
fumaça volatilizava-se por sobre a plantação de café e
desaparecia. – Com quem dormiu esta noite? – perguntou
com deboche. A destruição importava menos para ele do que
a intromissão da escrava; nada lhe era tão incômodo quanto
ser acordado antes das nove, seu horário habitual. Quanto à
cabana, que construíssem outra, se não quisessem dormir ao
relento.
- Estou grávida; onde vou dormir agora?
- Não me pergunte. Dispensou o conforto quando teve
acesso a ele. Não queira vir para mim agora; e neste estado.
- Não é isso o que peço. Posso dormir com Nandinha? -
Era a camareira, gorda e feia; única que tinha acesso a todos
os cômodos da casa. Como era das mais eficientes, ganhou
privilégio de um quarto do lado de fora, feito em alvenaria e
exclusivamente seu. Escrava antiga e de confiança,
conquistou, com trabalho e honestidade, o que muitas outras,
a exceção de Carmelinda, compravam com beleza física e
outros dotes carnais: a admiração e, não raro, a
condescendência do senhor da casa, como de outros amos da
propriedade.

32
Dormiu com Nandinha. Já eram muito amigas. Ao saber
que teria a companhia de Carmelinda, o que fez a outra?
Tentou, e conseguiu, para livrá-la e ao bebê, do perigo
representado pelas constantes ameaças, uma troca. A alforria
da camareira que já era certa e confirmada para o mês
seguinte, veio naquela mesma semana em nome de
Carmelinda que, tornando-se livre, deixou a fazenda.
Nandinha foi transferida para São João Del Rei. Devia, de
certa forma, um favor ao senhor de lá. Mas em três meses
estaria livre, promessa que não foi cumprida. Nandinha
custou caro, dinheiro vivo nas mãos de Fagundes.
Carmelinda, grávida, pouco valeria em São João. Por fim, ao
cabo do quarto mês, Nandinha fugiu.
Foi também para o Rio de Janeiro, porque sabia que por lá
encontraria sua amiga. Carmelinda havia deixado um
endereço em segredo e confiança quando partiu para a nova
vida. Juntas, em casa de velha parente da escrava grávida
que, mais por dó do seu estado do que por consideração,
aceitou-a por uns tempos, viveram as duas, até que veio
novamente a separação; desta vez inevitável. Nandinha,
reconhecida por um desses aventureiros em busca da
liberdade financeira à custa da castração de outras liberdades,
foi capturada e reconduzida a São João, para sua velha e
antiga rotina, com seu novo patrão. As regalias a que estava
acostumada não fariam mais parte de sua vida e a alforria
garantida de um dia transformar-se-ia no sonho a perder de
vista no horizonte de suas agruras.
Agneu veio ao mundo ainda no casarão da velha tia de
Carmelinda. Eu acompanhei seu nascimento, auxiliando o
parto difícil. Fui hóspede ali por quatro meses; tempo que
durou a reforma da propriedade em que habito atualmente.
Foi nascer a criança e mal terminar o resguardo, e pronto. A
velha hospedeira não queria a sobrinha por ali nem mais um
dia sequer; isso ia significar problemas para ela. – Essa
história de alforria cambiada não me convence; para mim
você tá é fugida – dizia. Carmelinda tentava explicar; não
tinha jeito. – Um filho ainda passa; mesmo sem pai a gente

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cria, faz virar homem. Mas escrava fugida é um perigo; sorte
não acontece duas vezes.
Ela se referia a Nandinha, que foi pega na rua, sem
mencionar paradeiro e sem chances de defesa. Com a
sobrinha era diferente. De resguardo, em casa de hospedaria,
mesmo o dia todo no quarto era pouco para tranqüilizar a
velha. Tinha o choro da criança; tinha o entra e sai e, acima
de tudo, eu, que sabia da história. – Uma semana, nem mais
um dia – ficou assim decidido.
A menina era forte, escrava bonita na flor da idade. E com
carta de alforria não teria dificuldades em conseguir trabalho.
Assim pensando, recorri ao meu patrão. Ele, rico, dono de
fábrica e de fazenda, aceitou o meu pedido e empregou
Carmelinda. Quanto à criança, bem; ampliando o meu leque
de boas ações, dei, ou melhor, emprestei à nova mãe, um
pedaço do chão que acabava de ver renovado. Mandei erguer,
nos domínios da chácara, mas, bem afastada da casa principal
e à direita de quem atravessa o portão, uma modesta
construção. Resguardando minhas economias, um tanto
limitadas à época, compus a modesta vivenda, de não mais
que dois cômodos exíguos, porém, confortáveis, do mínimo
necessário para ela e para o recém-nascido. Tínhamos então
um trato: ficaria durante o tempo ideal ao desafogo de suas
condições, mas que este tempo não ultrapassasse o prazo de
um ano, suficiente a certa estabilidade que lhe permitisse ser
independente. Foi aí que começaram os meus problemas.
Jamais poderia supor que um simples ato de caridade fosse
resultar em uma transformação total em minha vida, positiva
em quase todos os sentidos. Quando digo transformação,
estou querendo dar a esta palavra mágica a plenitude de sua
conotação. Foi algo que mexeu comigo e despertou, no
âmago do meu ser, potencialidades adormecidas que jamais
imaginei possuir. Chamei de problemas as conseqüências da
minha boa ação para com Carmelinda porque, observada do
meu ponto de vista, superficial e egocêntrico daquela época,
não poderia ter outra designação. O que então via como
entraves ao meu progresso, hoje reconheço e agradeço, pois

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foram a alavanca que me impulsionou a ele. Eis como tudo se
deu.
Nandinha não suportou os maus tratos do amo nas
fazendas de São João Del Rei e fugiu mais uma vez. Para
onde? Nem é preciso dizer. Não tinha parentes, ninguém
conhecia a não ser Carmelinda e esta, é claro, devia-lhe
também um favor cuja paga ia além do incomensurável pois,
dar a liberdade a quem vivia em condições como a dela seria
o mesmo que salvar a vida de quem se afoga ou, talvez mais,
ressuscitar a alma de quem já morreu para uma nova vida.
Agneu contava dois anos nessa época. Eu andava para lá de
aborrecido com a mãe e ao mesmo tempo cheio de amores
para com Agneu. Na minha posição, gerente comercial de
sucesso e solteiro aos trinta e cinco anos, não eram de todo
infundadas as críticas da sociedade ao me saberem cuidador
de um filho de ex-escrava, enquanto esta, após deixar a
fábrica, perambulava por não se sabe onde, sem ter hora para
voltar. Foi quando outra escrava, arredia, veio ao meu
socorro.
Durante o dia o menino gozava os deleites da idade na
companhia do meu escravo Bernardino. Este era para mim
mais um companheiro do que propriamente um escravo.
Comigo há quinze anos, foi o substituto de papai na minha
criação. Conversávamos, não raro, até o cessar completo dos
sons que precedem a noite verdadeira e calam-na, fazendo-a
adormecer. Eu o ouvia atento quando, entremeadas de rifões
em forma de conselhos, surgiam de sua boca espontânea e de
sua fisionomia olhimanca, súbitas palavras que o nobilitavam
e faziam-no rejuvenescer aos sessenta e quatro anos bem
vividos.
- Nhô Nestor – era assim que me chamava. – Eu sempre
digo pro sinhô: quem dá aos pobres empresta pra Deus, mas
não esqueça também que quem a gente dá a mão, quer o pé;
por isso... – Daí, emitia suas opiniões, as quais eu ouvia, e
com respeito.
- O que posso fazer agora, velho Dino? – era assim que eu
o tratava. – Ofereci ajuda antes que me pedisse; talvez nunca
o fizesse. Agora é tarde, o que está feito, está feito.

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- Mas vocês não têm um trato? Nhô é bom demais; tudo
tem limite.
- Agora vai ser diferente; com a chegada da outra...
- Hum! Mais um problema pra cima de Nhô.
Velho Dino tinha toda razão. Se os problemas já eram
muitos com Carmelinda e seu filho, com mais a outra eles
ficaram indescritíveis. Contribuíram para aumentar o cabedal
de provérbios do meu escravo. “Olha que um é pouco, dois é
bom...”. Porém, o que mais me incomodava eram os acres
comentários da sociedade a meu respeito. Passei a ser alvo de
críticas dentro da fábrica, o que me levou a pedir demissão.
Eram seis anos de experiência no setor de produção. “Seria
uma perda lastimável para a empresa a sua saída”; palavras
do Sr. Mateus, meu patrão. Fizemos então um acordo que
achei justo, porém arriscado, mas aceitei. Isto representaria
tempo e dinheiro extra para por em andamento um projeto
que já vinha retardando há vários anos. Seis meses foi o prazo
dado pelo Sr. Mateus para resolver esse desajustamento em
minha vida; ele não poderia garantir a minha recolocação,
caso eu não cumprisse o prefinido.
Corriam os últimos meses do ano de 1887. Em seus
trâmites finais, a lei de abolição da escravatura, seria a
oportunidade pela qual eu vinha esperando para tocar o meu
projeto. Sendo assim, deixei passar alguns meses, durante os
quais me embrenhei em livros e cálculos, até que, em março
de 88, chamei as duas mulheres. Coloquei-as em frente a mim
na biblioteca; comecei falando:
- Resolvi dar um rumo definitivo à minha vida daqui para
frente e isto inclui vocês duas – disse resoluto, encarando-as
com certo ar de afetação e seriedade. Elas se olharam,
espantadas. Não era comum aquele meu tom assomado e
antinatural; logo em minha pessoa, de caráter
reconhecidamente equilibrado. Mas eu não estava nervoso,
senão decidido. Nandinha era a mais assustada. Mudando a
atitude no olhar que, de esguelha, passou a totalmente frontal,
disse:
- Com que então está nos mandando embora; o que
faremos de nossas vidas, patrão?

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- Pode considerar-se livre, Nandinha. Não percebe que não
há mais perseguições? A escravidão acabou.
-?
- Isso mesmo; a qualquer momento a lei será assinada; é
uma questão burocrática o que falta, nada mais.
- Bem, sendo assim. Mas, e quanto a minha sobrevivência;
como vou conseguir trabalho e moradia?
- Resolvamos tudo a seu tempo. Poderá ir ficando por aqui
até a confirmação da nova lei; o resto se fará ajustar. – Falava
com a convicção de quem já via o futuro em sua frente. O
problema de Nandinha seria solucionado graças as minhas
relações de amizade com fazendeiros em Salvador; era para
lá que pensava enviá-la. Portanto, deixei de me preocupar
com o caso.
Agora restava o outro lado do problema a ser solucionado.
Estava ali, a minha frente, em forma de uma ex-escrava.
Carmelinda debulhava-se em lágrimas, com o rosto entre as
mãos, como a querer esconder o pejo do momento inevitável.
Ela não sabia (será mesmo que não?) que aquilo não lhe dizia
respeito. Cabe aqui, num hiato bastante oportuno a esta altura
do meu relato, a abertura do meu coração a quem interessar
possa. Vai mais do que isso. Vai uma confissão despudorada
de um homem, ainda jovem homem, de tez branca mas de
alma incolor e cega. Cega pela paixão. Sim, eu amava
Carmelinda. Com toda força ou, se melhor couber, com toda
a cegueira de minh’alma. Sempre fui vítima dos efeitos
encantadores da figura oblonga do ventre de uma mulher
grávida. Esses efeitos são, em geral, direcionados a quem se
vê no direito exclusivo de apreciá-los ou elogiá-los, ou seja, o
marido da futura mamãe ou o pai do futuro nenê. Embora não
sendo nem uma coisa nem outra, roubei este direito ao seu
verdadeiro dono; desconhecido para mim e – quem pode
garantir? – também para ela. Poderia até ser a poliandria
própria da origem de Carmelinda. Nossa cultura passa ao
longe deste costume longínquo de muitos povos da África.
Mas, inconscientemente, eu queria dividir com meu rival
felizardo, senão o costume, pelo menos a apreciação e
desejei, por trás de todo o meu recato, estar no lugar dele.

37
Quando a conheci na pensão não dei pelo meu sentimento.
Vi-a chegar com a amiga. Soube que eram escravas
alforriadas pela boca de Nandinha que, pedindo-me depois
desculpas, revelou-me a verdade. Eu prometi sigilo; cumpri a
promessa. Quando se deu a captura fiquei bastante sentido;
até esqueci que se tratava de uma escrava fugida.
Acostumado que estava com seu estilo espontâneo e seu
temperamento calmo, tomei simpatia e, talvez
inconscientemente, empuxado pela paixão insidiosa que já
devia estar-me dominando, questionava de Carmelinda,
interessando-me por ela. Acompanhei sua tensão pré-natal em
conversas informais no dia a dia calmo da estalagem em
baixa temporada. Falávamos do meu presente e do seu
passado; comentávamos meus planos, lamentávamos seus
reveses. Era assim; uma rotina. Do café da manhã saía eu
apressado; esquecido que ficava por causa da prosa
agradável. Aí, eu corria para a fábrica; ela permanecia na
pensão. Eu, com muito que fazer, Carmelinda com muito que
pensar. Foi assim por semanas; tudo muito natural, até certo
ponto. Sem que eu percebesse, ia transportando em
pensamento para a continuidade do meu dia, aqueles
momentos tão deliciosos para mim quanto os petiscos da sua
velha tia que me prendiam àquela casa e que agora, sendo
saboreados a dois, faziam unir nossos corações.
Já não queria ver a hora de deixar sua companhia na mesa
do café; como não via o momento de soar a sirena ao término
do meu expediente. E correr para o que passaram a ser então
os dois maiores prazeres da minha vida: as guloseimas da tia
que me conquistavam pela boca e a doce companhia da
sobrinha que me arrebatava o coração. Dez dias mais tarde
ela daria à luz Agneu; um lindo menino a preencher o vazio
do meu ser como se meu fosse. Presenciar o seu nascimento,
amparar a mãe no momento máximo de uma mulher e
participar da intimidade que desvela ao mundo o segredo da
existência, foi demais para mim; foi o transbordar do meu
amor que, se já era forte, tornou-se incontrolável. Muito lutei
comigo mesmo para segurar a paixão; não sei se consegui.
Não sei se deixei evidente no esforço que fiz para abrigá-la,

38
levando-a para minha própria casa e só construindo sua
morada independente ao acatar os conselhos certeiros do
velho Dino que temia por mim a mofa inevitável da
sociedade. Mas o amor é cego, não mede diferenças, não
teme conseqüências. Se vê alguma coisa é no interior de si
mesmo, onde a vista de terceiros não alcança; daí a crítica, a
desconfiança e, não raro, a inveja.
Mas voltemos ao choro de Carmelinda; fiquei em situação
difícil ao ver seu pranto. Tinha para ela um plano. Na verdade
era um plano meu que a incluía e ao pequeno Agneu; fruto de
um amor qualquer que se tornou nosso, tanto um quanto o
outro. Queria declarar-me; sentia-me sufocado. Era a
primeira vez que a via naquele estado. Levantou uma vez a
cabeça para olhar-me entre as lágrimas, num refrigério
passageiro. Diante da minha impassividade forçada, pôs-se
outra vez a soluçar. Ficou, no entanto, em minha memória e
dificilmente vou esquecer, o brilho daquele olhar úmido a
perscrutar minha atitude. O soluço em seguida foi a resposta
a sua descrença ou a encenação de quem compreendeu tudo.
A tarde chegava ao final trazendo o crepúsculo. Um choro
de criança veio em meu socorro e quebrou a inquietude
daquele estado de coisas. Velho Dino surgiu à soleira da
porta, trazendo no colo o pequeno Agneu que acabara de
acordar. O pranto inaudito da mãe dando lugar ao choro de
uma criança. Agneu, logo a viu, desceu célere dos braços do
escravo e foi direto aos de Carmelinda que o beijou e abraçou
dizendo: - meu amor, não quer comidinha? Mamãe já fez! –
O menino fez que sim com a cabecinha e ela então pediu a
Nandinha que lhe fizesse esse favor. Alegou mal estar e que
não se demoraria. Momento abençoado aquele; Carmelinda
havia captado a minha intenção de ficar a sós com ela; por
certo também me amava. Este pensamento dava-me forças
para declarar-me; abrir meu coração e livrar meu espírito
daquela ansiedade.
Nandinha foi à casa levar o menino a comer; Bernardino
afastou-se para ir à cozinha. Fui até a porta e fechei a
biblioteca. Seria capaz de jurar ao que demais sagrado existe
que me sentia alheio às circunvoluções do meu próprio

39
pensamento quando, num ato inconsciente, corri a aldrava e
encerrei do mundo a minha história de amor. Voltei-me para
Carmelinda. Sentada no sofá, tinha a cabeça baixa olhando o
soalho; os cabelos espessos e brilhantes pendiam acima da
testa, ocultando a expressão fisionômica. Eu supunha uma
timidez em seu semblante, acentuada por sua postura semi-
ereta e as mãos sobre o colo. O que se passou em seguida
supera todas as formas de descrição que as palavras possam
dar a conhecer. Qualquer narrativa, por mais explicativa, não
forneceria o real da cena; mas vale a pena conhecer ao menos
os seus detalhes.
Aproximei-me e sentei ao seu lado. Antes mesmo que
pudesse acomodar minhas costas ao espaldar, vi-me
arrebatado pelos braços e pelo corpo de Carmelinda, ao laçar-
se sobre mim, quase sufocando-me com seus beijos
entremeados de sussurros e palavras amorosas em meus
ouvidos. Foi, de fato, tão inesperado o gesto de Carmelinda, e
ao mesmo tempo tão avassalador, que meus reflexos não
conseguiram acompanhá-lo. Minha mente não sabia o que
pensar; abriu caminho a meus lábios que souberam responder
à provocação e encher também de beijos os seus. Meus
braços acompanharam o movimento e o amplexo deixou
consumado o desejo do meu coração e deu-me a certeza da
reciprocidade. Não houve jeito; impossível foi evitar.
Fizemos amor ali mesmo sobre o canapé. A forma como tudo
aconteceu, deixou a mim, não sei se a ela, completamente
bobo e aparvalhado. Passado o clima de emoção,
descansávamos, refestelados, sobre o sofá meio estreito,
nossa testemunha. Eu, deitado e Carmelinda descansando
sobre meu peito a cabeça; assim ficamos por um bom quarto
de hora. Porém, o mais inusitado é que não houve palavras;
nenhum quebrou o silêncio que nos circundava. Nada além de
umas batidas meio que descontroladas, acompanhadas de
outras um pouco mais harmônicas, faziam a diferença
naquele recinto impregnado de amor; eram os nossos
corações. O meu e o dela respectivamente. Sentia a
respiração serena de Carmelinda; o ar cálido de suas narinas
eriçando os pelos do meu tórax e do meu abdômen. Uma das

40
razões do meu aparvalhamento era a tranqüilidade dela.
Mesmo na ação impetuosa que por completo me dominou e
até durante o auge da sua entrega, deixou transparecer
estranha naturalidade que, no entanto, estava longe de ser
frigidez; será mesmo que me amava? Eu já não tinha tanta
certeza agora.
Passado o devaneio ela se levantou. Recolheu as peças de
roupa que estavam espalhadas e, ainda sem dizer palavras,
vestiu-as, num silêncio mórbido que me incomodava
sobremaneira. Estive por quebrar o solilóquio mas não ousei
menoscabar a intenção de Carmelinda. Tudo o que fez ao
terminar foi beijar-me com um suave estalido sobre os lábios
e, lançando-me um sorriso, retirar-se. Tratei de vestir-me
também e fi-lo rapidamente, temendo a entrada de
Bernardino. Imagina surpreender-me no estado em que me
encontrava. Mal terminei, bateu à porta.
- Desculpe, Nnhô. Posso servir o jantar?
- Sim, Dino; quando quiser.
- Aqui mesmo ou vai descer?
- Prefiro descer; não me demoro.
Olhei pela janela envidraçada da biblioteca e ainda avistei
o meu amor afastando-se em leves saracoteios, feliz por
algum motivo. Podia ser a descontração que sucede ao ato ou
talvez comemorasse a conquista do desejo; de ser minha? De
mudar minhas ideias? Quem poderia saber?
Consegui solucionar o problema de Nandinha num prazo
de tempo até mais curto do que eu supunha. Graças ao meu
relacionamento dentro dos meios políticos, fiquei sabendo da
homologação oficial e decisiva da nova lei com vários dias de
antecedência. Pude assim assegurar um futuro tranqüilo para
ela; em fins de maio, partia definitivamente livre para as
fazendas de cacau em Salvador. A despedida deu-se em clima
de muita emoção para as duas amigas que eram inseparáveis
e muito se gostavam. Quanto a mim, misturei em meu
coração, doses expressivas de tristeza, pela ida definitiva de
Nandinha que, muito prestativa, foi-me de grande auxílio nos
momentos difíceis; e euforia, por ver mais longas e
proveitosas as horas que poderia estar ao lado de Carmelinda.

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E assim usufruir mais intimamente o meu amor. Percebi que
há entre as mulheres que dividem as alegrias e tristezas desta
vida através de uma grande amizade, algo bem maior e mais
profundo do que unicamente a amizade que, em si, já é um
grande sentimento. Falo de uma combinação; espécie de
conluio inofensivo, troca de segredos e confidências que
desempenham, no proscênio das relações femininas, o
invejável papel de catalisadores das emoções. Comparação
um tanto ordinária mas que deve, mesmo truncadamente,
transmitir a lógica do meu pensamento. Nandinha acabou
revelando o que eu já desconfiava mas não tinha ainda
certeza: era, além de amiga, a grande confidente de
Carmelinda; deixou isso claro no momento da despedida.
Findos os cumprimentos, dirigiu-se ao cabriolé e, antes
mesmo de embarcar, piscou para a outra e sorriu
sardonicamente. Isto poderia nada significar se, em seguida,
após sentar-se na carruagem, não tivesse ela dado novo
sorriso ainda mais maroto e olhado em seguida para mim, ao
que correspondeu Carmelinda olhando-me também e
devolvendo à amiga a piscadela. Fiquei meio sem jeito e,
apelando para o instinto que nos vem em auxílio em
momentos como este, abracei Carmelinda e carimbei-lhe um
beijo nos lábios. Desnudamos para a escrava livre o que já era
evidente. Acenamos para ela que afastava-se feliz e mais
felizes nos deixou. Eu, que até ali, sentia-me também escravo
dos meus próprios sentimentos, comecei a sentir também a
força da liberdade. Nandinha, sem querer, contribuiu para
isso; poderia considerar-se também uma libertadora. Perdi
meus medos, uma nova era começava; dentro e fora de mim.
O mês de maio foi decisivo para a solução de muitas
dúvidas que vinham atormentando minha cabeça. Pouco mais
de um mês tinha eu para retornar à fábrica. Naquela mesma
semana da partida de Nandinha, Carmelinda entrou em férias.
Em uma de minhas prosas com velho Dino, abri meu coração.
Ele, que já desconfiava, deixou claro, através de um jeito
lacônico, que não era o seu, que não aprovava este romance.
Mas o que podia eu fazer a esta altura? Dino não era mais
meu escravo, estava livre; mas isto para ele não fazia a menor

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diferença. “Se Nhô Nestor preferir, pode mandar embora esse
velho que já num deve servir mesmo pra muita coisa; num
sendo assim, vou morar nessa casa pra toda vida”. Isto prova
o quanto me amava e desejava a minha felicidade. Tinha-me
como um filho. Viu-me nascer, pegou-me no colo e agora é
evidente que não iria deixar-me; e num momento crucial de
minha vida. Não aprovava, mas tampouco criticava minha
conduta; deixava tudo tácito em seus sábios conselhos e
citações.
Carmelinda e Agneu continuaram na sua casinha à direita
da entrada da fazenda. De quando em quando ela vinha até à
casa principal para passar comigo a noite em meu quarto. Em
uma dessas visitas, dois dias antes de iniciar suas férias, deu-
me a notícia: - Vou viajar; quer ficar com Agne?
Controlando a surpresa, respondi, mas com outra pergunta:
- Vai a passeio?
- Mais ou menos; fica com o menino?
- Sim, por quantos dias?
Percebi aí que Carmelinda devia me estar escondendo
alguma coisa. O jeito que tinha de desviar o olhar quando
mentia era seu maior delator. Insisti mas não obtive a
verdade. Iria gastar três das semanas de férias para rever
parentes no sul. Indagada a razão de não levar o menino,
mentiu mais uma vez ao alegar que seria vexatório para ela
apresentar-se como mãe solteira, com um filho de pai
desconhecido. Agneu era mestiço. Isto, segundo ela,
aumentaria o desdouro, o que não fazia sentido para mim. No
auge do meu ciúme, já incapaz de controlar minha tristeza
antecipada, ofereci-me para acompanhá-la; eu seria o pai de
Agneu. Ela não aceitou, alegando outras razões – para mim
ou para meu espírito conturbado – dissimuladas e descabidas.
Não tive portanto outra alternativa; deixei-a partir.
Passaram-se dias sem notícias de Carmelinda; sequer uma
carta perguntando da criança. Ao cabo de duas semanas, nas
quais não saí da fazenda, resolvi, a conselho de Bernardino,
dar largas ao meu espírito e sair um pouco. Lia livros de
aventuras amorosas com o fito de esquecer o próprio clima
romanesco pelo qual vinha passando minha vida. Ou escrevia

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no papel coisas que minha boca não tinha coragem de
exprimir; isso, de alguma forma me dava alívio e afogava um
pouco o meu ciúme. Como há tempos não via meus
companheiros de trabalho, entrei a visitar alguns deles.
Juliano era o mais íntimo. Cinco anos mais velho e já há mais
tempo na fábrica, seguindo uma carreira de sucesso como
gerente de montagem e qualidade. Saí numa sexta feira; não
fazia bom tempo, tudo andava enfarruscado, eu inclusive.
Depus a esperança do ânimo no encontro com meus amigos.
Além de Luciano, que só tinha livres para receber as visitas –
ao menos aquelas mais chegadas – as tardes de domingo,
havia Ernesto que me recebeu já na sexta e Dr. Sergio
Barreto, com quem passei ótimos momentos no sábado. No
domingo fui ver Juliano.
- Como tem passado? Esta casa ainda recebe amigos.
Viajando? Vejo que está muito bem.
- Vou vivendo; ando em casa todo o tempo; Dona Ana,
como vai?
- Bem; foi visitar a mãe. Conte-me suas últimas.
Juliano pouco de si falava; eu não queria falar muito de
mim. Como desta forma ficaríamos sem assunto, para não
enfear mais ainda o tempo que tornava monótono o fim de
semana, falei de mim muito mais que o dobro do que ele de si
mesmo. Sem querer soltar as palavras, mas incapaz de
controlá-las, fui em busca do meu coração e encontrei
Carmelinda; senti seu apelo desesperado. Queria a todo custo
fazer parte de minha prosa com Juliano. Mas ela viria do
mesmo jeito, não obstante a minha relutância em mencionar
sequer sua existência. Se para mim era difícil trazer
Carmelinda ao diálogo, para meu amigo o impossível tornou-
se verossímil e daí para frente, cada vez mais angustiante ao
meu coração.
- Foi visitar o Sr. Mateus?
- Não sabia que estava enfermo.
- Então não leu as notícias?
- Como falei, ando recluso em minha casa, lendo e
pesquisando, tão absorto que me desliguei do mundo. Mas o
que tem a ver os jornais com a moléstia do nosso patrão? –

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falava dessa maneira com Juliano e, na minha inocência, não
atentei para o fato que vinha se dando com a entrega dos
meus jornais; há uns cinco dias não os recebia em casa como
era de costume. Bernardino alegava-me que o mensageiro
andava ausente e que portanto iria averiguar. Ao fazer tais
associações, fui presa de repentino rubor; Juliano respondeu:
- Uma amarga decepção quase fez parar o coração do
compreensivo Sr. Mateus. Só que desta vez, sua compreensão
não suportou o golpe da desilusão que foi mais forte.
- Desilusão amorosa?
- Exatamente.
- Como pode! Quase trinta anos de vida em comum com
dona Florinda. Nunca imaginei que um dia chegassem ao
desentendimento.
- Antes fosse, caro Nestor; antes fosse! A desilusão a qual
me refiro veio por conta do filho mais novo, Jerônimo; você
o conhece. Enrabixou-se por uma das funcionárias da fábrica;
o pai desconfiava há meses, mas não tinha certeza.
- E quem é a felizarda? – A resposta de Nestor foi um
tanto evasiva:
- Não sei ao certo; se alguém sabe, não me contou. Devia
fazer muito bem feito. Soube, no entanto, que teria sido uma
ex-escrava; havia muitas por lá, você sabe. Boa parte dos
empregados sempre foi de alforriados, com documento
comprobatório, fugidos nunca; Sr. Mateus pode ser generoso
mas não é nenhum tolo. Ultimamente vinha observando os
passos do filho. A mulher de quem desconfiava, muito jovem
e bonita, não possuía uma comprovação cem por cento eficaz
da sua alforria. Tudo está no noticiário; não sei como não leu.
No último fim de semana, pai e filho tiveram uma acirrada
discussão dentro de casa. Sr. Mateus forçou-o a confessar o
romance e dar um fim a ele caso tudo fosse verdade; do
contrário expulsá-lo-ia do seio da família e também da
fábrica. Deu-se o esperado de um caso de paixão como este,
férvido e intempestivo. Os dois a tudo renunciaram, menos
um ao outro. Fugiram; para onde, ninguém sabe. Como
conseqüência, um pai internado; o coração não resistiu ao
pejo da situação e baqueou. Passou pela fábrica? Estamos

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operando em jornada reduzida há quase uma semana em sinal
de respeito; por isso perguntei se havia ido visitá-lo. Estamos
fazendo escala de visitas ao hospital. A minha será na terça-
feira; se quiser, pode juntar-se ao meu grupo. O homem não
está nada bem.
Eu não sabia o que pensar; eram muitas informações ao
mesmo tempo. Fiquei por tanto tempo em silêncio que as
palavras de Juliano, despertando-me da divagação, soaram
como um chamado de alguém à beira de nossa cama,
tentando trazer-nos de um pesado sonho ou talvez de algum
pesadelo. Devia ser este o meu estado, pois a voz de meu
amigo surgia como de longe e aumentava gradativamente. –
Você está bem? – disse ao ver o meu despercebimento –
Então; vai ou não ao hospital? – Inventei uma desculpa; a
primeira que veio a minha mente aturdida.
- Desculpe-me mas não poderei acompanhá-lo amanhã;
tenho visitas. Podemos arranjar para outro dia? – Com a
anuência de Juliano, despedi-me; alegando um mal estar.
Voltei para casa. Nesta noite fiquei por conta dos
pensamentos sombrios que não me queriam abandonar. Lutei
contra eles até não ter mais forças; e sucumbi ao enredamento
como um forçado das galés, vencido pelo peso mortífero dos
seus grilhões. Juliano, modesto como de hábito, limitou-se
unicamente a transmitir-me a notícia vogante naquela semana
porquanto dizia-nos respeito de alguma forma. Quanto a
Carmelinda, não perguntou nem falou sobre ela em nenhum
momento da minha visita. Ele, como muitos, tinha
conhecimento do valor que Carmelinda representava em
minha vida. Não quero dizer que tinha conhecimento do
nosso romance, mas olha que andavam até bem sensatas as
suas conjecturas.
Os mesmos pensamentos que me roubavam o descanso e o
sono, ajudaram a clarear minhas intuições e dirimir minhas
dúvidas quanto à fidelidade de minha amada. De certa forma
senti-me aliviado. Mas a dor era maior, bem maior que o meu
alívio porque me vi derrotado. Os dias continuaram passando,
inexoráveis; uma semana e outra e mais outra. E nada de
Carmelinda. Já dois meses distanciavam-me de sua presença,

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do seu perfume, do seu amor. Expirou-se o prazo dado a mim
para voltar à fábrica mas já nem isso me importava. Soube da
morte do meu patrão por intermédio de Bernardino. Agora a
culpa juntou-se aos meus inimigos mortais para martirizar-
me; não via uma saída. Recorri à bebida, mas nem ela possuía
forças para eliminar minha fraqueza. Por fim, entrevi uma
solução, senão uma fuga, talvez momentânea, porém
resgatável. Se alguém tinha culpa por minha queda, por meu
estado atual, este alguém tinha um nome: Carmelinda. Linda
como mostra o nome, porém maquiavélica. Não foi digna do
meu amor, não seria de nenhum outro. Então, não merece
viver; para que? Vai macular o mundo. Vai trazer homens a
seus pés que serão depois metade homens, como eu quase o
fui. A morte já ronda o seu caminho e é só o começo, a não
ser que eu a impeça.
No meio de todas as aflições em que me via envolto e de
toda herança negativa deixada pela passagem de Carmelinda,
havia uma que, a princípio encarada com muita indiferença,
seguida mesmo de um estorvo ao meu futuro ou a minha
reputação, tornou-se o anódino para os meus momentos de
frustração e meus acessos de ódio. Falo de Agneu. Muito da
mãe havia neste menino, a começar pela candura. Toda
criança traz naturalmente esta dádiva. Às vezes acho que o
Criador, na sua sapiência, deixou aos pequeninos essa
sublime missão de, com sua graça espontânea, sacudir a nós,
adultos adormecidos, do torpor exacerbado que não faz outra
coisa a não ser nos oprimir o espírito. Devemos aprender com
as crianças; elas não sabem o que é tristeza. Vivem o presente
e não guardam rancores. Disse que havia muito da mãe em
Agneu; poderia ser o contrário. Carmelinda trazia em si uma
meiguice natural e deve ter sido isto o que me conquistou. Ao
tom melífluo da fala juntei aquela qualidade e não precisou
de mais nada. Assim pensei eu no começo; mas como estava
enganado!
Passava com Agneu boa parte do dia. Na outra, minha
rotina em nada se alterava. Porém, no escritório, uma
atividade a mais preenchia-me as horas do dia. Tinha o
auxílio do velho Dino que envelopava as cartas, lacrando uma

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a uma e depois as despachava, numa média de cinqüenta
correspondências ao dia. Era a tomada de iniciativa que me
faltava e em boa hora, pois desanuviava-me o espírito da
desdita recente que sobre mim se abatera, embora não me
libertasse da idéia de fazer o que achava que seria o melhor a
ser feito. Quanto às cartas, era o primeiro passo para a
tentativa de algo novo em minha vida.
Íamos pelo mês de outubro já em seus últimos dias; quase
seis meses separavam o Brasil do regime escravocrata do país
livre sonhado por todos, eu inclusive. O universo das
mentalidades envolvidas no longo e sofrido processo que
culminou na libertação dos escravos começava a mudar.
Havia uma ambigüidade nesta mudança que tornava ainda
mais ferrenha a oposição que já existia, mas que só agora
passava a se manifestar declaradamente. Esta que sempre se
mostrava contra qualquer movimento abolicionista, seria um
grande empecilho ao meu projeto com os negros. Mas eu
estava deveras entusiasmado e não dava terreno a que isso
obstasse os meus planos. Em muitos pontos do território
nacional houve confrontos, muitos deles cruentos, que
contrariavam um dos desejos da princesa Isabel ao assinar a
lei, que era promover a transição para a liberdade do negro
em clima de total paz e compreensão; os que se viram
prejudicados, fomentaram união de grupos afins, daí os
conflitos. Houve morte de negros, principalmente. Filhos
órfãos perdiam sua dignidade, escravizados à fome, à miséria
e ao abandono do mundo que os renegava. Suas chances de
adaptação a um Brasil que, por sua vez, buscava adaptar-se às
novas mudanças, eram escassas e vazios de esperanças eram
os seus corações.
O sonho do meu projeto nasceu de um exame aprofundado
que fiz das alterações que começaram a ocorrer no país a
partir da posse de D. Pedro II. Suas idéias e suas atitudes
modernistas induziram-me, e a muitos outros envolvidos em
assuntos políticos, a entrever um Brasil diferente ao
aproximar-se o final do conturbado século XIX e o
movimento que levou a consumação da Lei Áurea seria o
marco dessa transformação. Por carência, tanto de tempo

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quanto monetária, engavetei o projeto. Mas o destino já
reservara-me as condições, não tinha mais porque adiar.
Como uma preparação inevitável, os fatos sucederam-se
encadeados. Carmelinda, Agneu, o afastamento da empresa, o
dinheiro extra e, em forma de fatalidade, na morte do Sr.
Mateus, viria outro benefício inesperado. Quando digo
que o meu relacionamento com Carmelinda mudou a minha
maneira de ver as coisas e foi esta mudança que levou-me a
efetivar o meu projeto é porque fiz de um grande problema
inicial o ponto de partida da minha resolução. Teria que
trabalhar invariavelmente com crianças. Na verdade só
certifiquei-me do amor que havia em meu coração por elas a
partir do meu contato com Agneu. Nunca fui pai mas com ele
tive que ser tudo ao mesmo tempo e consegui sair-me muito
bem. “ORGANIZAÇÃO DE AMPARO AOS REJEITADOS
PELA SOCIEDADE ABOLICIONISTA”. Ficou sendo este o
nome da casa que seria na verdade uma associação. Escolhi
esse nome pois desejei dar à palavra “abolicionista” ambígua
conotação para ver se sensibilizava os donos do poder a não
abolir em demasia. Consegui a cooptação de mais dois
interessados. Algum patrocínio aumentou o nosso entusiasmo
e isto fez expandir o projeto inicial que fez aumentar a
procura, o que exigiu nova expansão. Seis meses mais tarde,
em abril de 1889, já éramos uma instituição com mais de
duzentas crianças órfãs mas com uma visão de futuro
totalmente renovada. O mas notável é que não era de negros
em sua totalidade; havia vinte por cento de brancos e outro
tanto de mestiços recolhidos do grande desequilíbrio por que
andou a sociedade.
Meu cargo de presidente da “OARSA” não apresentava,
sob nenhum aspecto, semelhança com o que era conhecido e
inerente a esta função em se tratando, não propriamente de
responsabilidades, que existiam, mas da vigilância, que não
tinha que ser contínua. Como não tinha fins lucrativos,
requeria não mais que uma boa manutenção e alguns
cuidados. Para isto, contava eu com cinco honestos e
eficientes funcionários e a colaboração dos meus dois
parceiros; não poderia haver para eles, melhor atividade.

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Retirados de suas funções, ambos sexagenários, precisavam
mesmo de algo assim. O contato com a esperança vicejante
desta nova geração, rebento de um sistema ainda recente e,
sob alguns aspectos, experimental, despertou ânimo em meus
amigos; curou de vez qualquer reminiscência de neofobia em
suas almas. Com esta explicação busco justificar minha
tentativa de reconciliação com a empresa que dispensou meus
serviços e que há bem pouco tempo classificava-me entre os
primeiros funcionários do seu quadro.
O tempo ajeita todas as coisas. Sempre procurei confiar na
atuação deste remédio singular. Juntava essa confiança àquela
que deposito em minha própria pessoa; esperei. Quase três
anos de afastamento. A família de meu ex-patrão não levou
por muito tempo o galardão do monopólio na fabricação de
brinquedos. Mais duas fábricas instalaram-se dentro de um
raio onde a concorrência apresentava os seus problemas. A
inexperiente diretoria, herdeira do Sr. Mateus, acabou por
sucumbir à superioridade dos adversários e entregou os
pontos. Para não falir, abriram suas ações ao mercado. Um
dos grupos da concorrência assumiu as dívidas e comprou a
maior parte. Com isto, as portas voltaram a abrir-se para
mim. Minha organização já era grande consumidora. A isso
juntei minha experiência de anos e voltei à antiga função.
Oito meses mais tarde tomava posse em uma confortável sala
da gerência comercial.
Contudo, faltava-me algo para fazer-se completa a minha
felicidade. A esta altura da vida, quase um quadragenário e
passados quatro anos da experiência que tive com
Carmelinda, não posso afirmar com convicção que conheci o
amor. Se é este o sentimento cantado em verso e prosa e
enaltecido em todos os cantos do mundo por todas as raças e
em todas as épocas, então devo concluir que há algo errado
comigo, posto que não conhecesse senão o lado amargo ou
não conheci lado algum para ao menos poder dizer que estão
certos os poetas, apologistas do amor. Como em tudo há
compensações ou pelo menos a busca da experiência, para
mim ficou isto e algo mais. Deve ser este o lado positivo de
uma experiência frustrante. Amo Agneu com toda sinceridade

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e pureza de minh’alma. Não sei do que seria capaz se ao
menos tentassem tirá-lo de mim. Já perto dos cinco anos,
possui, e disto faço questão, tudo que uma criança na sua
idade vive sonhando: Os melhores brinquedos isto não
constitui problema para quem passa horas no meio deles – a
companhia de muitos da sua idade; enfim, o conforto que um
pai quer para o seu filho. Sim, Agneu é meu filho, ninguém
ousaria dizer o contrário.
Uma espécie de sentimento de gratidão passou, muito
timidamente, a tomar conta do meu espírito, á medida que via
aumentar minha felicidade com Agneu. Meu desejo de
vingança contra a sua mãe ia, aos poucos, afastando-se, até
abandonar-me por completo. Meu dia a dia agora consistia
em procurar esquecer o que antes não suportava sequer
pensar a respeito. Carmelinda foi, a tempo reconheci, a
responsável por muitas transformações positivas em minha
vida. Seria absurdamente inconcebível de minha parte não
reconhecer esse fato. Antes de conhecê-la, amarguei a rotina
de uma existência simples, pobre, no sentido espiritual da
palavra. Se tinha dinheiro, pouco o gastava. Do trabalho,
usufruía o bem estar que não transige com a ociosidade. O
dinheiro ia para um canto, eu para o outro. Aquele para junto
da herança de meus pais; eu, para casa, produto também
dessa herança, encafuar-me entre paredes, no silêncio das
minhas lucubrações.
Não fui à procura de Carmelinda, mas tenho que confessar
o desânimo por trás das palavras que hão de exprimir o
desenlace desse romance; ela procurou-me primeiro. Por obra
da intuição que as circunstâncias despertaram em meu ser,
sabia que isto iria acontecer um dia. Ademais, amor de mãe é
sempre amor de mãe e acabou falando mais alto que as reles
promessas que redundaram no fiasco pesaroso que foi a sua
união com o ex-nababo. Havia sofrido profunda
transformação mas continuava bela. Perdera um pouco
daquele ar humilde, próprio dos que nasceram para servir.
Outrossim, adquiriu o seu oposto, na convivência de quem
tinha na servidão de terceiros o conforto do ego e da altivez.
Como havia mudado o meu sentimento em relação a

51
Carmelinda! O amor, que se tornou ódio, não passava agora
de irreprimível comiseração. Digo irreprimível porque senti
em seus olhos a percepção da minha mudança. Pouco
falamos; não foi preciso. Tudo estava tão explícito!
A reação de Agneu não foi menos indiferente, viu a mãe,
brincou com ela, como brincaria com qualquer outra mãe. Ela
poderia recorrer ao direito legal que lhe pertencia mas
preferiu que assim não fosse. Preferiu, sabiamente até, deixar
nas mãos do destino o que o destino havia deixado nas suas;
quem sabe ele não aceitaria? Sugeri que ficasse na cidade até
decidir o que faria em relação ao menino.
- Não é preciso; ele já tem um pai – respondeu-me
lacrimosa.
- Obrigado; ele será feliz.
- Já o é, com certeza. Tem mais que uma família feliz;
tudo o que eu nunca lhe poderia dar.
- Precisa de uma mãe.
- Terá uma, com certeza. Uma mãe verdadeira.
Carmelinda estava certa. Dei ao menino uma mãe,
diferente da sua; branca, olhos esverdeados e bem mais
jovem. Entrou a trabalhar na organização no mês seguinte
àquele em que revi Carmelinda. Quatro meses mais tarde,
estávamos casados. Não sei o que me levou a uma ação tão
rápida; será que para esquecê-la? Ainda eu a amava? Só o
tempo diria.
Tudo continuava normal em minha vida; exceto em meu
coração. Carmelinda não fora para o sul como me disse que o
faria a fim de recomeçar vida nova. Ficou pelo Rio de
Janeiro, mas de longe, a perscrutar minha vida. Fê-lo tão bem
que eu sequer desconfiava. Não casara, não tivera outro
alguém. Soube aguardar, em pacto consigo mesma e com o
tempo, como faz quem ama e acredita.
Oito meses de união bastaram ao inferno do desamor. O
ciúme de minha esposa desmoronou de vez a esperança de
tentar novamente. Rompi ao saber, por ela, que havia outro
alguém que eu amava. De tudo fiz para segurar o invisível
amor. Mas Carmelinda apareceu sem que eu soubesse. Daí o

52
ciúme, daí a separação. Ela estava certa. O menino precisava
de uma mãe; mãe verdadeira.

53
APARTADO

A
Luz solar, sendo fonte de toda a vida, não mede sua
temperatura quando se derrama, dadivosa, para
cumprir sua missão. A intensidade do calor que chega
até nós, só é medida e dosada pelos obstáculos à livre
propagação ou pelas proteções naturais que nos rodeiam e
cumprem a lei do equilíbrio. Assim é, por exemplo, o mar.
Ou então, fugimos do excesso quando nos abrigamos em
nossa própria invenção; assim são as casas. Penso no deserto.
O que pode haver de mais exposto a essa luz que, sem querer,
se excede, sem pedir licença? Acredito que o Supremo, ao
criar o sol, criou, logo em seguida, as areias do deserto.
Assim, o astro rei teria onde se expandir, relaxar-se sem ser
enjeitado.
Da mesma forma que o sol brinca no deserto, descansa
sobre o mar os seus raios e viaja sobranceiro ao longo das
milhas, das léguas e dos quilômetros de uma terra opaca em
busca de luz, assim também são os seres privilegiados que já
nasceram adaptados às distâncias solitárias que interligam
caminhos de areia a outros caminhos de areia, caminhos de
água a outros caminhos de água. Infelizmente, poderia dizer
felizmente, o homem não faz parte desses seres porque esta
não é a sua missão. Nasceu para dominar a terra e tudo que
nela existe, mas faz pelo mental o que não é capaz de
conseguir pela força física. Hibernar sobre o gelo, cobrir em
marcha distâncias arenosas, com o mínimo de suprimento,
transformado em reserva inexaurível, não são tarefas
humanas. Fazer do sol mais causticante um viajante aliado, e
das profundezas inatingíveis moradia perene, é privilégio de
poucos, outras espécies, outros reinos. Mas, será que isto faz
alguma diferença?
Houve no deserto um ser, humano pela constituição e pela
origem, mas que contraria, senão tudo, grande parte do que
acaba de ser aqui afirmado. O convívio com o meio

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transforma o ser, mas este também pode transformar o meio.
Este homem (era um homem, preciso é reconhecer) pautou
sua existência a mais estranha forma de relação homem meio
ambiente que se pode supor imaginável. Tinha a força de um
gigante nos braços, nas pernas e na aparência de um ser
comum. Em velocidade, não podia competir com uma lebre,
mas bem que, se o fizesse, seria um ferrenho oponente. Que
não me perguntem onde ou como conseguiu tais poderes. A
resposta seria tão incerta quanto a origem do ser. Querem uns
acreditar que veio ainda menino para o meio do deserto,
trazido por algumas dessas caravanas que caem nas mãos de
salteadores. Ele conseguiu fugir no meio do assalto que quase
sempre termina em tiroteio e muitas vezes em morte. Daí,
viveu entre oásis e beduínos que o viram crescer. Mas, não se
adaptando aos rigores dos seus criadores, mais que aos
desafios da vida reclusa, aos treze anos abandonou-os para
ampliar sua visão insatisfeita pelo horizonte único e
inamovível que vinha até então de deslumbrar.
Assim cresceu e tornou-se adulto. Como pode alguém
viver só? A solidão rouba o sonho do amor que é a doação.
Apartado - era este o seu nome - encontrou sua alma gêmea.
É bem verdade que os semelhantes se atraem. Apartado
conheceu Malina e não sossegou até roubá-la. A tribo deu por
falta de sua mais bela componente. E também a mais ousada
em tempos de guerra e a mais dedicada em dias de paz. Mas
no único combate onde o amor é comandante, sagrou-se
vitorioso o coração de Apartado. E não adiantou represálias.
Impossível desatar o elo da paixão que é invisível e já decidiu
o destino, impossível trazer Malina de volta. Ela bem tentou,
deu saudades de sua turma; fugiu dos braços de Apartado mas
quando voltou não a queriam mais. Agora, só o amor era o
seu dono e ele sabe esperar. Esperou até não mais deixar de
sê-lo. Passaram a viver um para o outro, morando aqui e
acolá, colhendo o máximo do mínimo que um deserto pode
proporcionar. Eram nômades, mais por opção do que por
necessidade. Gabavam dessa vida sem paradeiro. Queriam
sentir-se livres e guiarem-se pela luz do sol ou pela luz das
estrelas em vez de pela imprecisão de um relógio ou de uma

55
bússola humanos. Entretanto, como havia oásis em sua rota,
paravam aí e permaneciam por mais tempo. Numa dessas
estadas, envolveram-se com outros humanos até que deram
origem aos fatos que fizeram esta narrativa.
O deserto em questão é o de Nevada. Em uma de suas
rotas, caravanas passam em disparada, transportando
inúmeros passageiros e com eles muito, mas muito ouro, para
ser gasto nos suntuosos e flamejantes cassinos que pululam
em Las Vegas. Como se não bastasse, ainda outras
carruagens rasgam os caminhos, levantando tufos de areia na
ânsia de chegarem ao seu destino com a valiosa carga. O
metal era em grande quantidade, suficiente para invejar o
mais abastado sultão, além de notas tinindo de novas, jóias de
penhor e outras nababescas.
Aos vinte e quatro anos de idade, vivendo a liberdade
plena a céu aberto e sobrevivendo de suas caçadas
fenomenais, Apartado desconhecia o que era ter contato com
gentes das grandes cidades civilizadas. Quando isso ocorreu,
a forma traumática do acontecimento deixou em seu coração
uma impressão deturpada dos valores que compõe o todo de
nossa humanidade. A vida que teve anteriormente ao seu
desaparecimento no deserto perdeu-se por completo nos
escaninhos de sua memória estiolada. Dali em diante gastou o
resto dos anos de sua infância e o intróito de sua adolescência
na companhia de seres diferentes em quase tudo; do linguajar
aos costumes, das tradições à vanguarda de vidas.
Tanto isso era verdade que, em um período de oito anos
não lhe forneceram mais do que comida para que crescesse e
armas para que não perecesse na luta contra inimigos comuns
do seu ambiente natural: o deserto. Graças a esta incessante
batalha, desenvolveu as qualidades que fizeram de si um
modelo vivo e admirável de força, agilidade e elegância.
Apartado tornou-se resoluto no sentido de proteger os
indefesos viajantes dos abomináveis ataques a partir do dia
em que se tornou vítima de brutal covardia. Invadiram, para
saquear, uma de suas moradias de nômade, construída em
uma de suas passagens por muitos pontos do deserto. Nada
encontrando, fizeram de Malina vítima de suas crueldades.

56
Violentaram-na moral e fisicamente, deixando-a arrasada. Ela
teria escondido de seu herói a infeliz ocorrência mas as
marcas não a deixaram. Também a dor e o choque frustraram
o seu silêncio. Apartado, já forte de músculos, fez-se agora
forte de decisão, o que é o mesmo que dizer desejo de
vingança. A mulher ficou boa, mas ele piorava a cada dia; dor
moral, revolta. Chegou por vezes a brigar com a teimosia de
Malina.
- Não me diga que tudo passou; nada há como a dor da
alma. - Não queria ser egoísta, mas também não queria ser
um derrotado. A casa, que como as outras pelo caminho,
servia-lhes de morada por umas semanas apenas, abrigou-os,
desta feita, por um período não inferior a cinco meses. Mas,
para Apartado e sua ira, até que valeram a pena os dias de
grande apertura. Ele estava decidido a não abandonar o local
até que fosse feita justiça; a sua justiça. Sacrificou-se além do
habitual para conseguir a água e o alimento que já iam
escasseando. A vingança foi cruel. Foram quatro os
elementos responsáveis pela atrocidade com Malina; nenhum
foi poupado. O mesmo tipo de morte sofrido pelos animais
que tinham a má sorte de cruzar o ar ou a terra, pondo-se a
frente das armas certeiras de Apartado, foi imposto a cada um
deles. Nunca mais importunariam alguém. O mundo, ao
menos aquele circunscrito pelas andanças de um simplório,
com uma simples companhia, estaria agora liberto do mal
representado por aqueles marginais.
A vida do casal transformou-se verdadeiramente a
partir do dia em que Apartado integrou-se ao grupo de
proteção aos caravanistas do deserto. Deixaram de ser
andarilhos. Passaram a ter uma casa normal, como gente
normal. As condições de moradia e o local iam melhorando
na proporção em que se aperfeiçoava a experiência do grande
defensor, como também a confiança que nele era depositada.
Três foram as mudanças para melhor. Na terceira, viram-se
fazendo parte de um povoado, não mais de gente decente que
ia e vinha, tanto para as roletas de Las Vegas quanto a outros
locais, uns distantes, outros nem tanto; locais de realização

57
profissional a quem suportasse as constantes agruras do
tempo e da temperatura.
Apartado e Malina tiveram um filho: Aganon. Agora,
onde viviam, e com um fruto inocente a depender deles,
podiam tranqüilizar-se um pouco mais quanto ao futuro, uma
vez que o trabalho remunerado tirava de suas cabeças o
martírio da preocupação, fantasma imperdoável, corrosivo da
alma sem fé e sem apoio. Quando as caravanas desfilavam
uma a uma em frente à casa onde moravam, saindo da estação
a passos dali, em direção aos pontos de apoio espalhados pelo
deserto habitável, Malina, do patíbulo envidraçado e
iluminado pelos primeiros albores das manhãs do inverno que
marcaram os últimos meses da espera de Aganon, esperava a
hora do seu aceno a Apartado. Ele vinha, garboso e feliz, de
pé em um dos carros da frente, e mandava beijos a sua
querida. Ela, com uma das mãos, dava adeus, enquanto a
outra acariciava o próprio ventre volumoso. O feto ali dentro
devia estar sorrindo, feliz da vida, pois teria um pai vitorioso
e, mais que isso, alguém capaz de amá-lo e defendê-lo do
mundo ou talvez não, porquanto o mundo já não seria o
mesmo, transformado pela ação heróica desse pai especial à
época do crescimento de Aganon.
Um dos cassinos em Las Vegas enviava para o deserto
enorme contingente de caravanas. Esses jogadores podiam ser
esperados a qualquer hora do dia ou da noite; a maioria
homens afortunados que viam no jogo uma forma amena de
extravasar suas angústias e idiossincrasias. Mesmo sabendo
que o risco que corriam era grande, escolhiam esta forma
perigosa de viver, como se para eles a morte fizesse parte do
seu cabedal de apostas, ou o dinheiro, que não compra
felicidade, fosse capaz de assegurar-lhes a paz verdadeira.
Apartado tinha grandes amizades neste cassino. A principal
delas era o próprio dono do estabelecimento que era também
padrinho de Aganon. Sujeito rotundo, amigo verdadeiro dos
seus iguais, adulava-os porque gostava de fazer o bem para
recebê-lo em troca. Entenda-se aí o bem da adulação, da troca
de interesses, porque para Porfírio, era esse o único tipo de
boa ação que interessava. Contudo, o inesperado desejo de

58
ofertar-se para padrinho do menino surpreendeu Apartado.
Porfírio estava velho, possuía uma fortuna invejável.
Parentes, tinha-os muito poucos, mas nenhum merecedor de
seu legado fabuloso; coisas de família.
- Pretendo fazer de seu filho um cidadão invejável dizia
ele sempre a Apartado. Este fazia que sim com a cabeça,
sorria para agradar o velho, mas na verdade não acreditava
muito em suas palavras. “Quem sou eu para merecer tamanho
galardão?”, questionava a si mesmo.
- Muito respeitado tenho por suas atividades e reconheço
nelas a razão principal da projeção que o senhor desfruta
atualmente falou uma vez Apartado ao amigo. - Mas só que
continuou não quero este tipo de vida para o meu filho, tenho
outros planos para ele. Jamais desejaria vê-lo envolvido com
jogadores que poderiam pô-lo também no mau caminho. Em
se tratando deste tipo de profissão, muito poucos possuem,
como o senhor, a fibra de administrar um local para
inveterados sem se tornar um deles, e acima de tudo fazer
fortuna.
- Meu amigo respondeu Porfírio, na sua calma habitual,
entre baforadas do cachimbo inseparável, eu é quem jamais
aceitaria que um afilhado meu chegasse um dia a engrossar a
fileira dos viciados em cassinos. Você conhece minha
franqueza e sabe quando a uso, porque, melhor do que
ninguém, tem na franqueza e na sinceridade um lema de vida
correta em todos os sentidos. Não vou negar a você que
também já fui um jogador incorrigível até ver-me no fundo
do abismo. Não foram alguns dólares que perdi, mas
inestimáveis quantias que jamais consegui recuperar. O que
hoje possuo não chega a uma fração do que a vida ofertou-me
um dia e não soube dar valor. Viver neste tipo de ambiente e
ganhar dinheiro nele foi uma maneira de provar a mim
mesmo que o mal do mundo está nas práticas viciosas que
roubam da alma a verdadeira alegria da existência. Encaro
isso aqui como uma profissão séria e de responsabilidade;
jamais me deixo envolver pela falsa aparência que é isso
aqui.
- Como é que consegue isso?

59
- É muito simples. Administro cada minuto do meu tempo
de dentro desta sala e usando apenas este aparelho telefônico.
As pessoas de minha inteira confiança você já conhece. Não
preciso de nada além disso para manter tudo em ordem.
Minha esposa é a peça principal do meu negócio. Por
natureza, detesta o jogo e isso me deixa bastante tranqüilo. Só
vou mesmo ao salão principal no final de todo o movimento,
quando já não há mais nenhum freqüentador.
O tempo passou. As coisas foram se modernizando em
todos os sentidos e, como não podia deixar de ser, a evolução
veio também para as casas de jogos que refletiam o
crescimento dos locais onde se situavam. Novos e mais ágeis
meios de transportes deram lugar às caravanas; elas
representavam agora a graça da sofisticação e do bom gosto
de quem as utilizava. Faziam a diferença nas vias urbanas
apinhadas de motores barulhentos e complicados. Quem quer
que optasse por uma carruagem ou mesmo uma simples sege
para a sua locomoção, era visto por uma forma de respeito e
até admiração; porque destoava do lugar comum da época ao
preferir preservar o limpo e o belo a confiar no desconhecido
e no arriscado.
Tudo passou por uma inevitável descentralização. A
população pululava em Las Vegas e, onde há pessoas, seus
vícios e manias acompanham-nas. Cassinos havia agora em
grande número. O de Porfírio que já não mais vivia ostentava
o privilégio de ser um dos mais freqüentados pela alta elite.
E, como não podia deixar de ser, já que estava escrito, um
dos seus proprietários era também um dos homens mais ricos
e influentes de Las Vegas: Aganon. Porfírio cumprira a
promessa, e cumprira ao jeito de Apartado. A fama de
Aganon atravessava territórios. Se no tino para negócios
igualou-se ao padrinho e superou-o, a personalidade, por
outro lado, era diferente. Quando, em 1905, Las Vegas foi
fundada oficialmente, Aganon era possuidor de sessenta por
cento dos direitos da Union Pacific. Esta estrada de ferro
tinha como atividade mais lucrativa o transporte dos
endinheirados americanos que vinham da Califórnia para
adquirir lotes em Las Vegas. Ainda garoto, com pouco mais

60
de vinte anos, dirigia um departamento dentro da Union que o
punha em contato direto com doleiros e dirigentes da
principal bolsa de mercados de Nova York. Aos trinta, ainda
solteiro, estava entre os vinte e oito maiores acionistas de sua
empresa e aos trinta e seis tornava-se seu principal sócio.
Estamos em 1919. Nessa época, Reno era a maior cidade
de jogos em Nevada. Após a segunda guerra mundial o
grande movimento deslocar-se-ia para Las Vegas por estar
mais próxima de Los Angeles. Já nesta época, cada lote no
meio do deserto vendido a $1.500 por Aganon aos
milionários que ele transportara gratuitamente em suas
locomotivas, podia ser tranqüilamente negociado por cifras
nunca inferiores a $20.000. Seria o mais natural que aceitasse
este fato sem ressentimento, visto que, aos cinqüenta e um
anos, com tanto dinheiro que até aos cem não conseguiria
gastar, Aganon, vendendo saúde e um ar tranqüilo que o
colocava acima do seu tempo, o que mais desejava era uma
vida sem aqueles problemas tão comuns ao seu passado. Mas
problemas sempre existiram; Aganon sabia disso. Sabia que
fazem parte de nossas vidas da mesma forma que o ar que
respiramos e que sem eles nada somos.
Recentemente aposentado, fazia agora do seu tempo um
amigo inseparável; fizeram as pazes. Este amigo que antes o
perseguia sem trégua, exigindo-lhe atenção exclusiva, agora
era outro. Fez dele um milionário e largou-o para outra
amizade: com a vida. A vida pertencia a Aganon. Com
dinheiro, tempo em superavit e, ainda por cima, solteiro, o
que faria ele agora?
Apartado ainda vivia. Eram os anos derradeiros de
uma existência. Malina partiu em 1915, também feliz.
Aganon tinha consciência que o pai não tardaria a deixá-lo
também. Por isso, o mais das horas do seu dia, passava com
ele. Distraía-o, trazia-o das divagações que sempre lhe
assaltavam com conversas amenas, passeios de carruagem ao
ar livre e algumas viagens bastante interessantes.
Estas não podiam ser constantes, dado a saúde de
Apartado, mas quando aconteciam eram um banho de alegria
e de entusiasmo até perigoso para ele que nunca deixou

61
Nevada. A vida de Aganon começou a mudar num desses
passeios.
Ele conheceu alguém; uma mulher mexicana, uma
enfermeira. Durante uma das viagens, a saúde de Apartado
começou a dar sinais extremamente preocupantes. Não era
para menos. Um ataque do coração, de regular gravidade,
obrigou-o a ficar oito dias em Guadalajara. E era de Concita a
responsabilidade pelos cuidados do velho pai de Aganon.
Concita era jovem, muito mais jovem do que Aganon; vinte
anos, para ser mais exato. A casa que alugara, por temporada,
para abrigar o pai, não podia estar mais bem situada. Era em
local cuja atmosfera não deixava dúvidas quanto à eficiência
de um tratamento natural. Afastada da poluição e do
burburinho das metrópoles. Cercada do verde das montanhas
que a circundavam, das árvores que sombreavam todos os
caminhos de entrada e saída e, naturalmente, da conseqüência
disso tudo que é a paz verdadeira. Somam-se a isto a
companhia em tempo integral dos cuidados e da meiguice de
uma doce mexicana. Concita exalava juventude nos seus
trinta anos irreconhecíveis. Tinha o dinheiro que a tornava
ainda mais bela, como gratidão pela própria beleza que a fez
rica. Das enfermarias para o palco e deste de volta às
enfermarias, após uma carreira tão rápida quanto retumbante.
Uma frustração amorosa deu fim a dois sonhos de
Concita. O problema, assim encarado, denota fraqueza, senão
física, mas de caráter. Entretanto, no caso dela, não era nem
uma coisa nem outra. Quem antes a conhecia e a viu depois,
poderia perfeitamente entender o sentido de minhas palavras.
A ex-atriz, o que perdeu em amor fracassado, conquistou em
talento e experiência para merecer outro amor. O que perdeu
em interrompendo uma brilhante carreira, viria a ganhar mais
tarde em forma de maturidade para empregar muito bem as
suas riquezas. A beleza, conjugada a uma forma sutil de
inteligência, era uma delas; foi assim que conseguiu amarrar
o coração de Aganon.
Ele foi pessoalmente à agência quando precisou de
uma enfermeira para o pai. Como sempre fez com cada
candidato aos cargos que punha em oferta em seus tempos de

62
executivo, assim foi a escolha de Concita: demorada e repleta
de pormenores esclarecedores. Na entrevista Aganon
conheceu os dotes secretos de Concita. Fez questão de que
viesse consigo; queria conversar e conhecê-la melhor. Meteu-
a na carruagem que alugara e passou deliciosamente os
quarenta e cinco minutos seguintes em doce confabulação.
- A paixão pela enfermagem é assim tão grande para
merecer o abandono dos refletores? - Perguntou. Concita
sorriu ao lisonjeio. Seus dentes tão alvos e perfeitos, marca de
sua simpatia habitual, mostraram-se a Aganon. A passagem
de um pensamento forçou a mudança repentina no estado de
humor; então respondeu:
- Infelizmente, as circunstâncias da vida falam mais alto
que os nossos desejos pessoais. Mas o que há de errado com
seu pai? - Emendou, tentando mudar de assunto. Aganon
falou do velho e da doença, como se fosse agora um
problema a mais dentre os tantos em sua vida. Não dava
conta, ou se o fazia, não se importava do descuido em relação
à seriedade do caso. Via-se como repuxado por um
sentimento que há muito não sentia. Mas prosseguiu mesmo
assim. Concita bem próxima. Se o corpo dela não se
encostava ao seu, o perfume, por outro lado, inebriava-o; ia
fundo em suas narinas. A boca, que preferia deixar ao dono
do olfato o prazer que, para ela, pouco valia por ser
incompleto, falou:
- Não está nada bem, mas agora vai ter companhia de
verdade; a união do talento profissional com a beleza, mais
profissional ainda. - Concita deixou vir novo sorriso.
Trocaram novas idéias. A viagem foi curta. Porém, deixou no
ar a certeza do clima que brotou entre os dois; a mutualidade
da simpatia. Para Concita, o respeito, acima de tudo. Aganon
mostrou-se diferente de outros homens que insistem nos
assuntos pessoais que as mulheres lutam por deixar de fora
nas conversações, pelo simples prazer de vê-las encabuladas
e assim facilitarem a conquista. Aganon não fazia uso de tão
rasteira estratégica.
Ao ver Apartado não se abalou. Sabia o que tinha de fazer
e fez. O seu estado ainda não era animador mas estava bem

63
melhor que antes. Pai e filha retornaram a Las Vegas, Concita
ao hospital, mas por pouco tempo. Aganon descobriu, após o
afastamento, que algo diferente, um sentimento que conhecia,
mas que dormia em seu peito, dava sinais de querer viver
novamente. Desde que o escondera num canto do coração,
largara-o ali, encafuado e triste. Entretanto, não era
simplesmente um envolvimento a mais o que procurava.
Queria viver um romance, um caso de amor; com começo e
sem fim. E não se tratava aqui de uma troca de interesses.
Dinheiro, ambos possuíam. É certo que a fortuna de Concita
não chegava aos pés da de Aganon, mas ela parecia satisfeita
com o que tinha, sem ambicionar muito mais. Tinha no
trabalho uma forma de terapia a apagar de sua memória
lembranças indesejáveis. Se o amor entre os humanos, para
gerar felicidade, dependesse, única e exclusivamente da
afinidade entre os prognósticos de dois seres apaixonados,
tudo seria muito mais fácil; bastaria isso ao amor. A união
dos corpos seria mera coincidência, posto que completos já
estariam, com conhecimento de causa.
Aganon foi buscá-la uma semana depois de chegar com o
pai em Las Vegas. Não foi fácil convencê-la, muito menos a
agência para a qual trabalhava. Para Concita, era uma
mudança de costume, de adaptação ao clima, mais do que de
um estilo de vida. Visto como fuga amorosa ou mesmo como
um desafogo de mágoa, até que traria mais alívio do que
saudade para a libertação do ego sofrido, da tristimania
impiedosa. Precisou ficar alguns dias em Guadalajara, e não
sairia de lá enquanto ela não dissesse sim a sua proposta. Por
duas vezes jantaram juntos. A conversa durante o segundo
jantar foi decisiva.
-Não posso demorar-me mais por aqui; preciso voltar e
ficar perto de meu pai. Por outro lado, não queria causar ao
velho uma decepção. -Usando esta estratégia, Aganon
conseguiu mexer com o coração de Concita. A paixão dela
pela enfermagem não era sem motivos. Tinha prazer em
cuidar da alma humana. O sofrimento do corpo dava-lhe
compaixão, mas deste podia ela tratar e, quando tinha
sucesso, não havia alegria maior. Ver um doente recuperado

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pela magia do seu tratamento era para Concita paga maior e
mais duradoura do que a maior e mais rendosa de todas as
profissões. Porém, quando se tratava este doente de um
mortal apedeuto que, apesar da ignorância, deixaria o
exemplo do triunfo com simplicidade superar o lugar comum
dos pseudovencedores de colarinho branco, a compaixão de
Concita não era maior que o orgulho de amparar esta alma
que venceu o mundo a sua maneira. Apartado foi um desses
seres que passaram pela mão de Concita. Os dias, poucos por
sinal, que com ele conviveu, e as raras conversas, deixaram
nela estas impressões. Por essas razões, quem sabe – difícil é
avaliar um sentimento – mais forte que a vontade de esquecer
o passado ou conhecer Aganon, aceitaria o desafio de dar as
costas ao velho e conhecido em busca do inusitado.
Sendo assim, deu Aganon o primeiro passo para ter por
perto uma forte candidata a ocupar um espaço vazio em seu
coração. Ele podia não saber, mas a doença do velho
transformara-se em paradoxo a trabalhar em favor da sua
felicidade. O dinheiro não compra amor mas, neste caso
especial, o seu poder influenciou uma vontade e deu como
resultado uma viagem. A ambição, por sua vez, falou mais
alto do que uma amizade de anos entre Concita e sua patroa,
dona da agência de enfermagem. Ainda assim, três tentativas
fizeram-se necessárias, pois a ansiedade de Aganon em
conseguir seu intento não era menor do que a venalidade
irreprimível num caráter extremamente mercenário. Fechou-
se o acordo por uma soma bastante considerável. Um alegrão,
a princípio dissimulado, estampou-se no rosto da mulher. A
tentativa de encobri-lo mostrou-se frustrante, mas ela bem
que tentou.
-Vou sentir muito a falta dela; são anos de trabalho
dedicado. - Aganon fez que acreditou e, para equilibrar,
brincou o mesmo jogo. Afinal, não ia ser pouco educado com
quem lhe entregava Concita. Optou pela vantagem que o
amor lhe oferecia, mesmo que em detrimento aos escrúpulos
que sempre foram para ele uma prioridade. Mas em nome
desse mesmo amor já se via perdoado.

65
-Não imagina como me sinto grato. Prestou-me enorme
gentileza. - Estava, assim, aberto o caminho que, segundo as
aparências ou as probabilidades, iria dar no coração de
Aganon. Resta conhecer os caminhos ou tendências do
coração de Concita. Todas as razões que a razão desconhece
povoavam o coração daquela mulher enigmática.
No solar de Las Vegas, a rotina de alguns anos passados
não era a mesma para Apartado e possuía razões para não ser
a mesma para Aganon. Fez-se encontradiço com Concita no
quarto do pai que melhorava a olhos vistos. Bem mais do que
isso: em função do cuidado e de uma atenção constantes, o
doente de antes passou pela convalescença com a lepidez de
um animal de raça que desperta de um só salto ao primeiro
raio de sol. Ao fim do primeiro mês dispensou a cadeira de
rodas. As refeições, tomava-as em um dos quartos de baixo,
sempre servido, e muito bem, pela diligente mexicana que,
não raro, comia com ele. Para não aumentar aos arrufos que
pressentia em Aganon, concordava em fazerem as refeições
no salão principal. Após uns quinze dias o velho sentia-se
forte para subir as escadas; voltou ao seu quarto no segundo
andar. Ainda assim, com freqüência optava, ou a mulher, por
não descer às refeições. Uma tarde, Apartado dormia sua
cesta e Concita encontrava-se no jardim. Olhou as plantas,
cuidou da grama e entrou de novo para casa. Costumava ler a
estas horas mas, um fato raro desviou-lhe a atenção e o
alvitre. Aganon chegava pelas seis ou sete, jantava e às oito
retornava ao cassino; neste dia, porém, fez diferente.
Há poucos instantes soaram as badaladas no grande
relógio à parede da sala de estar onde se sentara Concita
também há poucos instantes. Foram quatro as badaladas do
relógio; foram três as batidas na porta. Ela fechou o livro que
pegara na estante, levantou-se e o recolocou no lugar; foi
atender a quem chamava. Na mente, a incógnita de saber ou
imaginar quem poderia ser a tal hora do dia. Quando viu
Aganon, não escondeu a surpresa.
– Sr. Aganon! houve alguma coisa?
– Boa tarde! – disse ele sorridente, ainda no limiar da
entrada – nada sério, só uma dor de cabeça. Aproveitei o

66
fraco movimento e vim atrás de um banho seguido de um
bom descanso – completou, com um gesto de fisionomia que
não convenceu Concita. Outrossim, era corado, sem
aparência de mal estar. Então subiu, mas daí quinze minutos
reaparecia na sala e, mais uma vez, interrompia-lhe a leitura.
– Bom livro? – perguntou, sentando-se na poltrona em
frente. Concita descansou o livro e as mãos sobre os joelhos.
– Sim, promete; estou ainda no começo e já me sinto
curiosa. O senhor parece ter bom gosto para a literatura.

– Como sabe?
– Vendo os títulos já dá para se ter uma idéia. Os assuntos
parecem ser interessantes. Demais, já li alguns deles.
– Fico feliz em saber que possuíamos mais este ponto em
comum.
– Não sabia que tínhamos pontos em comum – Concita
replicou. Aganon não encontrou tréplica à altura; então se
calou, sorrindo com simpatia. Ela, no seu jeito franco, sem
afetação, ergueu o livro e tornou à leitura. Ele aproveitou a
calma e a quietude do momento para apreciar de perto e
melhor a beleza da enfermeira. Seus cabelos eram negros e
compridos. Pendiam com freqüência incômoda sobre a
cabeça, impedindo-lhe a concentração.
– Como está papai?
– Dorme. Acredito que já esteja recuperado; agora é só se
cuidar, não ter aborrecimentos e, principalmente, distrair-se.
– Se depender de sua atenção e cuidados, não vejo maiores
problemas para a sua saúde.
– Parece confiante.
– Você não está? – perguntou Aganon com ligeira
insinuação de ciúme que Concita captou mas fingiu
indiferença.
– Sempre estou confiante, faz parte do meu ofício.
– Também faz parto do seu ofício conversar um pouco
mais com quem contratou você?
– Já estou fazendo isso – respondeu com um sorriso.
Aganon correspondeu.

67
– Refiro-me a algo informal, fora do nosso ambiente
profissional. Podemos jantar juntos, aceita?
– E por que não? Já fizemos isso, está lembrado?
– É claro, mas foi diferente.
A experiência de Concita fê-la manter-se à altura de
sua feminilidade durante todo o tempo em que esteve na
companhia de Aganon. Ele, por sua vez, soube respeitá-la
mas não procurou compreendê-la. Saíram no dia seguinte
após às nove quando já dormia Apartado. Jantaram em
ambiente de luxo, dançaram e muito conversaram. Júbilo para
Concita. Frustração para Aganon que não obteve sucesso em
sua conquista. Onde estaria o problema? Ela tentou esquivar-
se a sua maneira mas suas justificativas não o convenceram.
Saíram outras vezes. A lugares diferentes e variados. Mas
Concita era a mesma. Adorava Las Vegas. Vibrava no
glamour das noites iluminadas mas sua frieza o deixava
perplexo. Como entendendo ou supondo que deveria haver
compensação ou que era isso o que ele queria, aceitou
dormirem juntos uma noite.
Concita era uma mulher extremamente carinhosa; sabia
dar prazer a um homem. Porém, pelo modo como se
comportou com Aganon, ficou tácito que não o amava. O
papel de fêmea foi cumprido, muito bem até, mas não o
convenceu. O prazer carnal e as sensações físicas estão para o
ato sexual quanto um delicioso petisco está para o paladar.
Impossível evitar seus efeitos, mormente em corpos
saudáveis e ávidos de toques e carícias como os deles.
Aganon sentiu além do toque físico. Mesmo ciente da
indiferença dela, alimentou esperanças; queria ganhar, além
do corpo, o coração de Concita. Usaria o seu talento, sua
experiência e maturidade e, na esfera do interesse, o dinheiro,
se preciso fosse e quanto preciso fosse.
Assim decidido, mudou sua estratégia. Continuou
cortejando a bela mexicana, hora a sua maneira, hora à
maneira dela. Tratava-a com carinho; porém, cessaram os
convites para as saídas noturnas. Aganon pouco a via. Não
por não poder. Tempo tinha demais para isso, se quisesse,
mas, preferia passar a maior parte do tempo no escritório

68
onde amargava sua incompreendida frustração amorosa. Em
casa, tinha na biblioteca o refúgio predileto. Quando com ela
conversava, esforçava-se por parecer natural. Mas raramente
conseguia. E de tudo fazia para esconder a tristeza de não ter
sido compreendido. Concita, por sua vez, não parecia ter
dificuldades em lidar com este tipo de situação como se fosse
o mas natural e como se mais de uma vez já o tivesse
vivenciado. Queria de Aganon a sua amizade e chegou a
propor isto a ele.
Obviamente ele não aceitaria este tipo de acordo. Seria o
mesmo que se ver rejeitado pelo amor; e perder para o amor é
estar infeliz. Pior ainda é estar por perto de quem se ama
sendo obrigado a conviver com a derrota, sufocando o desejo.
Como era de se esperar, surgiu a decisão. Apartado era outro;
sem doença e forte outra vez. Seus setenta e quatro anos
como se houvessem reduzido aos setenta ou sessenta e oito.
Nunca vira o pai tão animado e cheio de vida. Quando
Aganon comunicou-lhe a decisão de dispensar Concita, o
velho levou um choque cujos efeitos custava a esconder.
– Nem pense nisto! – falou, buscando o autocontrole –,
exatamente agora que me acostumei com ela!
– Estou notando o senhor muito entusiasmado. Sabia que
já não está em idade para isso? – falou, em tom de carinhosa
brincadeira. A verdade é que, não passava pela cabeça de
Aganon a mínima hipótese de a recusa de Concita em
corresponder a sua conquista ter a ver com Apartado. Tinha
idade mais que suficiente para ser pai dela; mas isso ao
mesmo tempo poderia representar um detalhe bem
insignificante para ele. Sempre respeitou Malina mas pouco
custou para recuperar-se do choque que foi a sua perda.
Nunca a substituiu, mas nunca deixou de levar pretendentes à
presença do filho. Nada sério, talvez em respeito à memória
da morta ou por falta de confiança em si próprio, todos os
relacionamentos não foram além de breves passatempos,
onde namoriscar eram fugas à realidade ou tentativas de
retorno aos tempos inesquecíveis da juventude com Malina, a
única que realmente importância teve para ele.

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Aganon conhecia muito bem o seu velho. E por conhecê-
lo e não querer contrariá-lo ou machucá-lo ainda mais, achou
por bem adiar a decisão. Passaram semanas que se
transformaram em meses. Ele precisou suportar muita coisa
neste período; até que o ciúme foi mais forte que sua
tolerância. Há dois dias Aganon vinha tomando suas
refeições completamente só no salão principal. É certo que
evitava ver ou falar com a mexicana. Mas um ou dois dias
sem cruzar com ela, quer fosse pelos corredores da casa, na
cozinha ou ainda pelo jardim, era para ele tortura maior do
que a possibilidade de não mais tê-la para si.
Um dia aconteceu o que parecia inconcebível. Ou
inacreditável. Era madrugada e Aganon não conseguia
conciliar o sono. Levantou-se e foi até a varanda a fim de
espairar as idéias e aliviar a mente exausta de tanto pensar em
Concita e sofrer a sua rejeição. Ficou por lá pouco menos de
meia hora. Ao regressar ao quarto, observou que, no andar de
cima, a porta dos aposentos dela encontrava-se entreaberta;
nunca foi seu costume tal procedimento. Aganon não resistiu
ao desejo incontrolável de ir até lá, nem que fosse para olhar,
por momentos, simplesmente um pouco da intimidade
daquela a quem amava. Porém, qual não foi a sua surpresa ao
perceber que a cama estava vazia; melhor dizendo, não havia
sido, sequer, desarrumada. Estranhando tal estado de coisas,
pensou em ir até a cozinha; quem sabe a encontraria por lá.
Mas ao descer dois degraus da escada interna que o levaria de
volta ao andar de baixo, teve outra idéia. “Não quero
acreditar no que minha mente está me sugerindo”, pensou e
voltou atrás. Obedecendo a intuição dirigiu-se ao aposento de
Apartado. A porta estava fechada. A luz da lua penetrava pelo
outro lado através da janela envidraçada e dava um pouco de
claridade ao recinto. Aganon hesitou por alguns instantes.
Poderia, muito bem se quisesse, abrir a porta e entrar, mas,
seguindo ainda a intuição, não o fez; algo lhe dizia que não
iria gostar do que visse. Em todo caso, não foi capaz de
resistir a uma espiadela pelo buraco da fechadura. O que viu
deixou-o aterrado, quase a tremer. Concita dormia ao lado de
Apartado, na mesma cama que ele. Como fazia frio, estavam

70
enrolados na mesma colcha azulada de edredom; dormiam
profundamente.
Era impossível acreditar naquela cena. Mais parecia o
apogeu de uma noite excitante representado no gesto
contundente de satisfação a poucos metros da visão parcial de
Aganon. Ambos exibiam em suas fisionomias relaxadas a
cumplicidade de um momento, tanto inesperado, em suas
fisionomias relaxadas, quanto repentino. Em menos de duas
horas os raios curiosos do sol far-se-iam presentes a iluminar
o ambiente. Aganon saiu dali a passos trôpegos sem querer
acreditar na cena que acabava de testemunhar. Desceu a
escada e entrou em seu quarto. Em sua mente as idéias não
lhe chegavam sensatas; podia estar sonhando mas não estava.
“Então era esse o motivo”, pensou. Saber que o próprio pai
era a razão direta de toda a recusa de Concita, representava o
início do fim de uma esperança. Por momentos, sentado à
beira da cama e totalmente estático em seus pensamentos,
Aganon tinha o rosto entre as mãos, totalmente perdido e sem
ação. Não queria acreditar, mas não tinha escolha.
Esta noite foi das piores na vida de Aganon. Dizer que não
mais pregou os olhos para dormir é tão redundante quanto
desnecessário. Se tinha um coração, este já não mais lhe
pertencia, posto que, juntamente com a esperança, deixara-o
abandonado ao sabor do nada. Foram bater fora de seu peito;
era melhor que assim fosse. Desta forma não teria que
suportar o insuportável. Apagou-se dentro de si a luz da
razão. Era, e queria ser, uma massa física, não mais que isso.
A constatação da cena tocou em Aganon o alarme da dor.
Ainda procurou encontrar para si próprio justificativas que
pudessem apaziguar o choque que sentiu; mas era tudo tão
claro e evidente!
A decisão foi tomada. Uma semana após este
acontecimento, Concita já não mais andava por aquela casa;
nem por Las Vegas. Cioso do pai, Aganon tinha um plano,
mas este era tão falível quanto a decisão de executá-lo.
Amava o pai; não perdera, entretanto, o amor pela mexicana.
Deixou passar algum tempo que julgou necessário ao
reequilíbrio das tensões dentro de casa. – Não quero que

71
uma estranha venha atrapalhar o bom relacionamento que
sempre houve entre nós, meu pai; vou fazer de conta que
nada aconteceu. Meu respeito pelo senhor continuará sendo
exatamente o mesmo.

- Aganon, você fala como se seu pai tivesse cometido um


crime imperdoável! Aquela mulher me seduziu! É claro que
sua beleza e juventude são um atrativo quase que irresistível a
um homem; especialmente alguém na minha idade. Mas,
garanto a você, foi ele quem começou tudo. - Apartado ficou
a observar a fisionomia do filho enquanto soltava estas
palavras. Por certo, não esperava que fossem encontrar eco
ou crença por parte de Aganon. Todavia, este não tinha
intenção de criar constrangimento. Guardou para si a dor de
perder Concita. Trá-la-ia de volta, não fosse isso constranger
seu coração. Porém, para o bem de Apartado, providenciou
companhia que pudesse manter são o velho peito, sentido
com a separação de quem melhor dele soube cuidar, em todos
os sentidos.
Esta mulher caiu do céu na vida de Aganon. Na vida de
Aganon mas no coração do velho. Apartado não ficou
sabendo qual seria a razão tal que faria o filho afastar-se por
duas semanas de Las Vegas. Seria muito bem vinda a sua
decisão se esta não deixasse de fora o pai ainda carente, nem
tanto agora de bem estar, mas, de quem garantisse a ele o
desafogo das mágoas que ainda lhe eram companheiras.
Engraçado como nunca nos apercebemos do que vai
realmente no íntimo das criaturas, mesmo aquelas que nos
são mais próximas. Por lógica resultante de uma vida de
convivência, deveria Aganon estar ciente das necessidades do
velho pai. Porém, não seria assim tão fácil desfazer-se de seus
conceitos de infância para vê-lo de outra forma. Para Aganon,
o pai herói teria que ser eterno: as mesmas virtudes, as
mesmas preferências e as mesmas paixões. Quando vão estas
coisas e fica o coração, nem tudo é como antes. Neste caso de
Apartado, cujo próprio coração quase não fica também,
porque teriam que ficar aqueles valores, tão arraigados na

72
consciência do filho, mas sujeitos às mudanças inevitáveis da
roda de nossas vidas?
Tudo acabaria bem, o que não quer dizer que não houve
tragédias. Talvez, para Apartado, a perda daquela que foi, de
todas, a sua grande paixão, primeira e única, tenha sido a sua
tragédia; esta nunca seria superada. Malina foi o seu maior
bem; a perda de Malina, o seu maior mal. Este é o resumo de
sua vida. O que veio depois, ele passou a chamar, na sua
costumada ironia, de: o resto. E foi isto. As aventuras
posteriores, Concita – o marco dessas aventuras – e,
finalmente, Ava, não contam mais do que reles manchas de
tinta, pontos opacos de uma tela sabiamente iluminada; assim
foi sua vida.
O surgimento de Ava nesta narrativa não passaria de mera
coincidência, não fosse o fato deixar profundas lembranças
em Aganon. Ele precisou de alguém para cuidar do pai
enquanto transferia parte dos seus negócios para a cidade do
México, mais precisamente, Guadalajara. Sim, o que ele
queria mesmo era estar perto daquela que nunca conseguira
esquecer; apesar de tudo. Dois anos se passaram. Numa bela
tarde de sol de domingo, pai e filho, como sempre faziam,
tomavam o chá na varanda da grande casa. O cair das últimas
horas antes da noite que prometia ser das mais quentes de Las
Vegas, trazia consigo o garboso som de pássaros recolhendo-
se aos ninhos. Apartado sentia-se cansado. Suas frases eram
circunlóquios agravados pelo enfadamento da idade
avançada.
A presença de Ava já vinha de quase três meses, os quais,
apesar de tudo, já traziam para o velho um sentido de paz e
confiança que deixou muito bem feliz Aganon. Ava tinha
sessenta e dois anos; era descendente de índios. Perdera os
pais quando criança na Guerra de Secessão. Casara-se muito
jovem em Las Vegas, onde nasceu, indo com o marido para o
Canadá; aos trinta e sete enviuvou. Tinha um casal de filhos.
O menino, aos quinze anos, conheceu o peso da
responsabilidade ao ter que trabalhar para ajudar no
orçamento. Ava, como resultado da luta para a criação dos
filhos, desenvolveu um dom natural, tornando-se exímia

73
cozinheira. Passou pelos mais famosos e sofisticados hotéis e
restaurantes de Montreal. Foi em um desses que conheceu
Concita.
A habilidade de Ava em sua profissão e a amabilidade
como pessoa, conquistaram a mexicana. No auge dos poucos
anos em que conheceu a fama do mundo cinematográfico,
Concita passou por Montreal para cumprir uma etapa de
lançamento do que acabou sendo o seu último filme. Gostou
tanto de Ava naqueles oito dias em que ficou hospedada que
tornaram-se amigas a ponto de o diretor das filmagens não
resistir às insistências e dar à cozinheira uma pequena
participação na história; porém, o que importa é o que
aconteceu depois. Ava tornou-se para Concita parte
fundamental do seu sucesso; não na frente das câmeras ou por
trás dos bastidores, mas na vida real. O que deixaram
engrolado na arte cênica, souberam completar na verdadeira
arte do cotidiano. Como cozinheira particular de uma ex-
atriz, Ava realizou-se também como mãe, pois acabou
trazendo também os filhos.
Ava não conheceu o amor impossível que fez com que
Concita abandonasse prematuramente sua tão promissora
carreira. Mas testemunhou as aventuras que a jovem viveu,
não porque gostasse, mas por não ver, talvez, muito sentido
em sua vida. Nessas aventuras muito, às vezes, se
machucava, mas, por ter Ava, sempre se reerguia. Até que
veio, por sugestão da amiga, o curso de enfermagem, a
Agência e, em seguida, Aganon.
-Vou para Las Vegas disse, um dia, Concita, pegando Ava
de surpresa e fazendo, por momentos, sua mente viajar para
um passado tão distante do qual mal conseguia lembrar-se.
-Não precisou explicar mais. Ava sabia a quem Concita
estava se referindo. A fama de Aganon atravessava territórios
e fronteiras como um dos homens mais influentes de sua
época; contudo, desconhecia a origem daquele homem tão
ilustre.
No começo da separação eram constantes as cartas
trocadas entre as duas amigas. Porém, com o passar do
tempo, elas foram escasseando. Até que cessaram por

74
completo. Ao cabo do primeiro ano, Ava não hesitou e foi
procurá-la. Chegando a Las Vegas foi, primeiro, ao encontro
de Aganon. Teve com ele longa e proveitosa conversa na sala
reservada do cassino. Ao final, a decisão de Aganon de
dispensar os serviços de Concita sem deixar o pai de todo
desamparado acabou se consolidando. Quando soube tratar-se
de Apartado, os olhos de Ava adquiriram tão vivo e repentino
brilho que fizeram Aganon não conter a surpresa.
– Você conhece meu pai?
– Sim – confessou, após alguma hesitação, mas não deu
maiores detalhes. Foi marcado o encontro entre as duas
mulheres. Por dois dias ficaram na cidade matando suas
saudades e falando sobre o futuro. Qual seria o futuro para
Concita? O futuro que Ava pintou para si, ampliado pela
visão saudosista que, por anos, alimentou seu espírito, só
poderia ser de felicidade! Para a mexicana, a incerteza seria
ainda sua companheira por algum tempo, mas apenas o
suficiente para que, mais uma vez, se deixasse levar pelos
ditames incompreensíveis de sua personalidade
desequilibrada.
Apartado não usufruiu como quis, ou como merecia, a
companhia de Ava. Viveram próximos um do outro muito
mais como dois amigos do que qualquer outra coisa; para ele
foi o bastante. O romance prematuro no intróito de suas
juventudes e que não levou a nada, pois nada era além de
meras fantasias de adolescente, concluiu-se agora na mais
pura e sincera amizade. Bastaria isso ao amor; a união dos
corpos seria mera coincidência, posto que já se completavam,
com conhecimento de causa.
E Concita? Bem, parece que a aventura é o que sentido
fazia a sua existência já sem sentido. Envolveu-se com o filho
de Ava, numa relação de aparências, onde o interesse juntou-
se ao brilho e o glamour da cidade de Montreal. Deixou,
assim, para trás, os que a queriam de verdade, tirando dos
locais que escolheram, as vantagens e suas limitações;
impostas por uma amizade antiga e verdadeira e pela solidão
inevitável.

75
A MÁFIA

F
azer simplesmente o melhor, primar pela
excelência; esforço contínuo, denodado, que
leva certamente à satisfação final de
contemplar a obra concluída. O que para uns –
pequena minoria – é uma rotina tão simples e natural quanto
mudar de sobrecasaca, para o restante da humanidade exige
certa dose de concentração e esforço às vezes mal visto, mal
compreendido e, não sem freqüência, invejado. Parece que o
homem ainda se encontra longe de aceitar, sem lástima e
frustração, certos fatos da vida. Um amor não correspondido,
um estudo cuja finalidade deturpou-se em razão de outros
interesses, uma espera infrutífera são, por um lado, ameaças
ao bem estar da alma. Entretanto, se bem analisados e aceitos,
podem representar a liberdade de ação, a independência, a
vitória sobre a ilusão e a fatuidade.
Essas palavras, que na verdade não eram palavras e sim
idéias, dançavam e se remexiam na cabeça de um homem,
acendendo de entusiasmo e energia todo o seu processo
pensante. Ia ele pelo canto da rua, querendo aproveitar os
últimos centímetros da sombra que aos poucos se despedia da
calçada, enquanto ruminava esses conceitos filosóficos. Era
Ernesto, 56 anos, dirigindo-se para mais um dia de trabalho
na empresa que já acolhia seus préstimos pelos últimos 35
anos. Era um dia especial para ele; iria se aposentar. Acordou
já inspirado, entabulando pensamentos resultantes de
intermináveis projetos mentais que o acompanhavam há
vários meses. De mãos nos bolsos e cabeça baixa, ia tão
absorto que mal respondia aos cumprimentos de um ou outro
conhecido que com ele cruzava. Atravessou a rua e foi para o
ponto de ônibus; desta vez, os quase vinte minutos de espera

76
sequer lhe incomodaram. Até passaram depressa,
interrompendo seus devaneios futuristas. Entrou e refestelou-
se na última poltrona junto à janela. Enquanto olhasse as
paisagens mais do que conhecidas, colocaria em ordem os
pensamentos embaralhados. “Tem tudo para dar certo, tem
que dar certo”, pensava. “Tenho que manter o segredo na
companhia”.
Já estava cansado daquela rotina monótona e frugal. Não
fazia outra coisa nos últimos dias que não fosse rejeitar e
odiar a idéia que, não só ele, mas todos – e isto era o que
mais lhe doía na consciência – faziam de sua vida. Pobre
Ernesto naquela manhã; mais do que negativos eram os seus
pensamentos. Chegavam-lhe a ser repugnantes. “Sou um
inútil”, dizia em voz baixa para si mesmo, com receio de que
o passageiro ao lado ouvisse e com mais receio ainda de que
ele zangadamente confirmasse: "Tudo bem, amigo; concordo
que seja um inútil. Agora, me deixa dormir em paz, falou?”.
Mas isso não aconteceria. Seu companheiro de viagem
dormia feito rocha e ainda roncava. Então sua mente seguia a
lhe pregar peças. Planos arrojados, antes de serem
concluídos, davam lugar a lampejos de frustração que por
vezes desanimavam-no, trazendo a indecisão. Mas desta vez
ele não falharia. Iria mostrar ao mundo o seu talento. “Cansei
de ser um João Ninguém”.
A família de Ernesto não era grande, porém, maior do que
o seu parco salário podia sustentar. Na verdade poderia, não
fosse o maldito vício que o embebedava, que por sinal não
era o da bebida; embora tomasse alguns tragos com os
amigos de vez em quando. O que vinha consumindo as forças
e a felicidade de Ernesto era o jogo. Este sim era o
responsável por quase todas as desculpas que tinha que dar
com freqüência a quem devia; e isso era em quase todos os
lugares que freqüentava, exceto junto à corja que o acolhia
com prazer sádico porque ali não tinha escapatória; era pagar
ou morrer.
Porém, o maior desafio para Ernesto estava dentro da sua
própria casa, na figura da mulher, sua maior credora. Com
efeito, suportar os trauteios de Dalva era tarefa acima da

77
capacidade dele. Por isso não se afligia, mas refugiava-se, o
que era pior ainda. Por amá-la, sofria, mas, por amar também
o jogo, sofria ainda mais.
Mas a esperança era a grande arma de Ernesto. Por ela
suportava o dia a dia sufocante do banco que, quando
confirmou e aceitou o seu pedido de aposentadoria,
transformou-se numa espécie de pelourinho acolhedor de
mais um candidato à liberdade. Portanto aquele era um dia
mais do que especial para ele; é claro que iria aproveitar.
Prometeu a Dalva que seria em forma de comemoração.
Chegaria em casa cedo, lá pelas seis, e a levaria para jantar,
iriam a um cinema e terminariam a noite de forma especial,
dedicada aos dois e ninguém mais. Afinal, ele bem merecia.
E ela mais ainda. Pois já se perdera no tempo a última vez em
que saíram a sós para qualquer coisa, imagina para um
programa como este. Custou, mas ela acreditou e ficou
esperando. Na companhia, abraços de despedida, tapinhas nas
costas e dissimulações de saudades antecipadas eram vistos
por Ernesto com a mesma veleidade característica de sua vida
até ali. Houve de tudo na despedida: de bolo a aclamações em
sua homenagem repletas de verborragia.
Às cinco, ligou para Dalva. Chegaria um pouco atrasado
em função da necessidade de atender aos pedidos de outros
amigos – não mais da empresa – no sentido de lhe prestarem
outra homenagem. Ernesto sabia que não era para aceitar,
mas não teve como; seria uma tremenda desfeita. Entre eles
estavam Jabara – que Ernesto conhecia desde os tempos de
adolescência – e outros mais recentes. Não se podia afirmar
com convicção que era Jabara o melhor amigo de Ernesto,
mas sempre lhe fora fiel e com isso ganhou total confiança ao
longo do tempo. Mas a reputação de Jabara perante a
sociedade não era das melhores e até passava longe dos
simples débitos monetários do nosso personagem principal.
Muito bem, Ernesto entrou no carro e foram parar no
Taliatteli, um dos mais caros e requintados restaurantes da
Barra da Tijuca. Sem problemas e tudo por conta de Jabara.
No caminho conversaram animadamente. Ernesto ao lado do
companheiro que dirigia e mais três no banco de trás. Dentre

78
eles havia um totalmente estranho ao recém aposentado; os
outros chamavam-no Nico, na intimidade. Domenico, seu
verdadeiro nome, era um italiano radicado em nosso país há
menos de cinco anos. Era um homem vigoroso, apreciador
das massas óbvias de sua pátria, que veio ao Brasil em 89
para longas férias de três meses com a mulher e o filho de 28
anos. Queria, na verdade, fugir um pouco da pasmaceira
habitual que eram seus dias lá em Florença.
Gostou tanto do clima favorável a negócios escusos que
esqueceu seus escrúpulos de bom samaritano e acabou
envolvendo-se em rapinagem e contrabando, crime que por
aqui é visto por outros olhos e, a depender deles, até passável.
Mas Nico deu azar. Quis estender demais as mãos ávidas de
enriquecimento ilícito, portanto fácil, e acabou perdendo
tudo. Foi parar atrás das grades, de onde conseguiu safar-se
graças a certas influências e algum dinheiro que possuía. Mas
os poucos meses que passou enjaulado foram suficientes para
deixá-lo à beira da falência. Os companheiros de crime
fugiram do país levando o produto de suas trapaças. A mulher
o abandonou. O filho casou-se após formar-se em advocacia e
retornou à Itália, levando a mãe e o seu sofrimento. Nico
vivia agora de frustrações inquietantes e das lembranças que
lhe atormentavam. Queria reencontrar-se mas via
dificuldades e não achava apoio.
Nunca tanto se divertira Ernesto e nunca tanto bebera
naquela noite. Vez por outra, e enquanto lhe permitia a
lucidez, vinham-lhe à lembrança as zangas e desconfianças
de Dalva; não podia fazer isso com ela. Mas quando as doses
que se sucediam juntaram-se à eloqüência sem nexo de seus
companheiros sem juízo e sem família, ele tornou-se um
deles e, com eles, entregou-se à farra e as horas se passaram.
Aquela noite, já quase dia, quando chegou Ernesto em casa e
os dias e as semanas seguintes, foram para ele e, por
conseqüência, os de sua família, piores do que todo o tempo
que passaram juntos. Por isso, acabaram-se separando. Tudo
o que possuía resumia-se a umas poucas tralhas, um
automóvel meio surrado, meia dúzia de livros e seu minguado
salário. O resto, deixou para trás: boa casa, boa mobília e

79
muitas outras coisas de valor que conseguira ao longo de
tantos anos com a magia da economia e a sabedoria da
poupança.
Saiu finalmente a aposentadoria. Vivia num três cômodos
que alugara lá pelas bandas do Catete, fazendo do seu tempo
uma sombra que o perseguia. Cobrando-lhe atividade. Algo
mais do que investidas dominicais nos jóqueis clubes da vida
e prosas amenas misturadas a carteados e pedras de dama
pelas calçadas do bairro. Assim passaram-se as semanas e os
meses. Porém, a idéia, a grandiosa idéia que, segundo ele, era
infalível, não lhe abandonava, ou melhor, ele não deixava que
lhe fugisse dos sonhos. Cercava-a de todas as maneiras e
exigia sua presença constante nas grandes horas de ócio em
que não tinha muita coisa a fazer senão sonhar acordado.
Mas, se dependesse dela – da idéia – já estaria, há muito
tempo, longe daquela cabeça volúvel e inconstante de
Ernesto. Se pelo menos dinheiro tivesse para começar...
Mas qual era o plano? Este se resumia numa palavra
apenas: contrabando. Nico emprestou-lhe o dinheiro.
Tornaram-se amigos naquela noite e nunca deixavam de se
encontrar para trocarem idéias, camaradagens ou partilharem
a mesma garrafa de bebida. É claro que algum interesse
existia naquele relacionamento. O círculo de amizades de
Nico era outro, que o fizera reerguer-se, também à base de
troca. – Que tal dez mil, dá para começar? – ele perguntou
numa tarde de Sábado. Estavam em casa do italiano. Ernesto,
que bebia Whisky importado, o que adorava, mas, por razões
óbvias, raramente fazia, respondeu:
– É um bom começo. Passarei alguns dias em Buenos
Aires investigando as fontes; vou mantê-lo informado.
– Não é preciso. Faça tudo do seu jeito; sei que se sairá
bem, nos vemos daqui uma semana.
Quem conhecia o nosso amigo aposentado e o encontrasse
agora, por certo toparia de imediato com a diferença. Andava
alinhado; dentro dos melhores e mais bem acabados ternos.
Usava óculos escuros que lhe acentuavam a vaidade e trazia
os cabelos pintados; rejuvenescera boa dúzia de anos. Ernesto
era de baixa estatura e procurava compensar tal desvantagem

80
usando botas encorpadas de solado reforçado, só para ganhar
alguns centímetros. Parecia que prosperava. Sorriso fácil, mas
de poucas palavras, quando tinha de falar de si e de suas
atuais atividades, desconversava; tinha negócios no
estrangeiro e pronto. Aí, mudava de assunto, falava do
interlocutor, demonstrando algum interesse e simpatia, o que
geralmente agradava.
A convicção dava-lhe agora outros ares, ares de
empresário. Vivia em viagens, trazendo mercadorias. Com
dinheiro para investir, encontrou na capital Argentina as
pessoas que procurava. Melhor ainda, as indicações
valiosíssimas que conseguiu levaram-no até Córdoba, na
Espanha. Lá estava o paraíso.
Aqui convém ressaltar o tipo de negócio em que se foi
meter Ernesto, para ficar milionário. Haja vista que mercado
no Brasil é que não faltava para o que ele estava querendo.
Ao longo de décadas soube criar um círculo de amizades num
dos segmentos mais populares e explorados de nosso país: o
carnaval. Podia gabar-se de conhecer de A a Z dentro das
agremiações do Rio de Janeiro; era um carnavalesco de mão
cheia. Não se prendia a nenhuma escola. Gostava de todas,
comparecia a todas elas e procurava aproveitar de cada uma
as vantagens de cada época. Na verdade, preparava terreno
para o que pretendia fazer no futuro. Estava certo de que seria
o único a por em execução tal plano mirabolante; mas vamos
a ele.
Nada tão simples. Ernesto queria ser o fornecedor
exclusivo de todo o couro necessário para a confecção de
bumbos, pandeiros, tamborins, enfim cada item de percussão
que utilizasse aquela matéria prima. Os contatos que logrou
fazer em Córdoba, cidade do couro, deixaram-no
excitantemente entusiasmado, o lucro final atingindo cifras
inacreditáveis, tendo em conta o acordo vantajoso que
conseguira fechar na Europa. A oferta seria irrecusável. O seu
preço bateria qualquer concorrência, se houvesse alguma. O
cálculo que fez do que seria necessário para superar a
demanda de cada escola, multiplicado por todas a que
pudesse servir, o levaria à tranqüilidade da independência

81
financeira; em cinco anos estaria rico; o minguado salário?
Deixaria lá no banco que ajudou a enriquecer. Que sugou
dele trinta anos de um trabalho que detestava. Não tanto pela
rotina que o obrigava a manipular um dinheiro tão alto. Mas,
para seu desânimo, o contato era uma quimera; que o
desesperava. Porque sentia a realidade. Via tão próximo o
bem e sentia como ia longe o seu desfrute.
Montou escritório na avenida Venezuela. Nos fundos, três
cômodos espaçosos serviam de depósito. Passou a ter
reuniões semanais com Nico, que lhe apresentou outro sócio:
Arnaldo. Apresentar não é bem o termo, pois Ernesto já o
conhecia há algum tempo; apenas de vista, mas o conhecia. –
Arnaldo ser-nos-á bastante útil no empreendimento – disse
Nico –, e hoje vamos analisar uma estratégia que, a julgar
pela conversa que já tive com ele, tem tudo para dar certo.
Falo de expandirmos o negócio pra outros estados, o que
acha?
– Já tinha pensado nisso – respondeu Ernesto. Esforçava-
se por criar uma postura natural sem exagerar no entusiasmo.
– será ótimo para todos nós; vamos precisar de muito
conhecimento e de mais capital – completou.
– Por isso estou trazendo o Arnaldo. A experiência dele
está mais do que comprovada. – Arnaldo possuía uma
transportadora. Ele e Nico tinham muita história para contar;
Ernesto não fazia idéia. Porém, limitou-se Nico a esta
colocação e acrescentou: – Quanto ao capital, falaremos mais
tarde. Agora, que tal mostrarmos ao nosso sócio as nossas
mercadorias?
Era inicio de setembro. Ernesto andava às voltas com
outros implementos que Nico acrescentou ao negócio.
Conseguir mais vinte mil dólares não representou
dificuldades. Ernesto precisava de dez mil; ele foi generoso e
dobrou-lhe a quantia. Novas idas à Europa fizeram-se
necessárias a fim de aumentar o número de fornecedores.
Nico colocou dois dos seus caminhões a serviço das
transações. Foi aí que o nosso amigo começou a desconfiar
que havia algo de estranho no ar. Sua atuação limitou-se a
receber as mercadorias e estocá-las. Tinha nos serviços dois

82
funcionários manipuladores não só da matéria prima para os
instrumentos mas, muitos, muitos produtos acabados e outros
mais, onde o couro não entrava. Eram caixas de todos os
tamanhos, de papelão à madeira, porém, sem identificação de
sua origem; foi ter com o sócio em casa deste.
Chegou pela manhã de sábado; Nico dormia. Acordado
pelo caseiro, desceu para falar com Ernesto que já há
quarenta minutos aguardava-o na sala de estar. Notando o
italiano, ainda metido em ceroulas, que o outro não estava de
bem com o dia, tentou trazer bom clima com a oferta de um
drinque. Ernesto, que não perdia oportunidade de um fino
trago, aceitou, mas, nem por isso alterou os ares de afetação
que trazia. Nico sentou-se em um sofá de frente para ele;
esticou-se para uma mesinha a sua frente e acrescentou outra
pedra de gelo à bebida.
– Quantas pedras? – perguntou.
– Duas; obrigado – respondeu Ernesto. – Há três semanas
você não aparece; sabe o que vem acontecendo? – o italiano
já estava preparado para uma reação às mudanças que fizera e
respondeu:
– Com certeza você se refere aos produtos acabados que
estou adquirindo...
– Mas não é esse o negócio! – falou Ernesto, interferindo.
– É perder dinheiro, o país já exporta estes produtos.
– Não precisa se preocupar; esta parte pode deixar por
conta do Arnaldo, que ele sabe o que fazer.
– Não estou certo disso – falou, sem conseguir disfarçar a
falta de simpatia para com o outro. – E o couro? Não recebo
mais remessas de couro.
– Cancelei todas as remessas.
– ?!...
– Preste atenção – prosseguiu Nico –, não sei por que está
preocupado. Estamos no caminho certo; vamos ficar ricos.
Você só tem agora que seguir nossas recomendações. Se
continuar como está sem dar palpites desnecessários, vai
acabar tudo bem. Estamos combinados? – Ernesto não
respondeu. Ele prosseguiu. – Já fez a sua parte e muito bem;

83
está ganhando um bom dinheiro para isso e poderá ganhar
muito mais... se for inteligente.

São muitas as situações da vida onde o dinheiro fala mais


alto; diria até que a maioria. Está aí o tipo de asserção que
podemos proferir sem o mínimo receio de incorrermos em
erro. Não deve haver mortal que, de algum modo, não tenha
chegado a tal encruzilhada: a honestidade da vida simples
mas consciente, ameaçada pela falácia de uma riqueza
duvidosa. Após 35 anos de uma vida funcional exemplar cujo
padrão sequer oscilava, pois nunca houve perspectiva fora de
sua rotina operária, via-se agora Ernesto obinubilado pelos
efeitos entorpecentes de um longo sonho. Somente os fatos
concretos, e com sua participação, despertaram-no para uma
realidade que sua inocência nunca teria sido capaz de avaliar;
em que a paz ameaçada não clamasse por cuidados.
Não é necessária muita imaginação para concluir que o
negócio era para lá de sujo e que, na verdade, era um meio
disfarçado de encobrir a real atividade deles. Ernesto seguiu
desempenhando suas funções, agora com mais cautela. Se
antes apenas desconfiava, a certeza veio com o que ocorreu
numa noite. Estava até mais tarde, cuidando de por em ordem
alguns papéis. Não era seu costume passar das dezoito horas
no escritório; já iam perto das vinte. Tendo verificado umas
pastas e outros papéis, viu que estavam em ordem. Levantou-
se para guardá-los no arquivo. Ao puxar uma das gavetas,
verificou que, por baixo, havia um pequeno bloco de
anotações; por curiosidade, pegou para ver o que continha.
Ao abri-lo e manuseá-lo encontrou dados como datas, várias
numerações e quantidades em gramas. Os números
representavam as notas correspondentes às mercadorias.
Voltou então ao arquivo, comparou os códigos com os
instrumentos adquiridos e foi verificá-los. No depósito havia,
num dos cantos da entrada, algumas pilhas de caixas de
pandeiros com vinte e quatro unidades em cada. Pegou uma
caixa e abriu, tirando um instrumento. Sacudiu e não sentiu
nada, mas viu que pesava um pouco mais do que o normal;
tirou do bolso um canivete e abriu, com um corte

84
longitudinal, o couro, próximo a um dos cantos do pandeiro;
encontrou o que procurava. Colada de forma bastante hábil
por baixo da camada de couro original, havia outra camada
de couro mais rústico e, entre elas, também presos por cola,
cinco papelotes – parecendo cocaína.
A surpresa de Ernesto poderia ter sido maior; foi aliviada
pela curiosidade que o fez bisbilhoteiro. No primeiro ato teve
a sorte, que não o acompanhou ali até o depósito. Com a ação
repentina que domina qualquer um em situação idêntica ele
enfiou o instrumento caixa adentro e virou-se para ir embora.
Mas não encontrou o interruptor para apagar a luz; melhor
dizendo, nem foi a ele. Sua visão tomou outro rumo. Da porta
espreitava-o o olhar de Nico. Ali estava como quem espera
paciente um desfecho já conhecido.
Ernesto já possuía, por natureza, uma tez embranquecida,
dessas que fazem um sol benevolente acabrunhar-se na dor da
rejeição. Se então a pele não evidenciou a lividez, os olhos
esbugalhados denunciaram o susto e a surpresa. Quase lhe
saltando das órbitas, eles iam de Nico a Arnaldo logo atrás e
do lado de fora; estavam tensos e ansiosos.
– Não deixa de ser uma agradável surpresa ver a
dedicação do nosso amigo ao trabalho. – disse o italiano.
Arnaldo acabara de subir um degrau e estava agora do lado
de dentro ao lado dele.
– Fica normalmente por aqui até tarde ou hoje é um dia
especial? – concluiu.
– Agora não tenho dúvidas, confirmei minhas suspeitas.
Vocês são... são...traficantes.
– Ernesto estava trêmulo, com dificuldades para articular
as palavras.
Foram dois choques seguidos que o pegaram de surpresa
em forma de duas descobertas que o desconcertavam. A
primeira de menor grau, embora perigosa, seria compreensiva
e dividiria com ele o segredo. Mas a outra era cruel, nada
podia fazer. Tampouco ele. Sentiu-se nu no centro de um
picadeiro abandonado cuja lona, traída na tempestade, expôs-
se à verdade do espetáculo a céu aberto. De dono do circo,
findou palhaço, triste e sem graça.

85
Nico, demonstrando toda a calma do mundo, agia como
se, em sua vida, um fato como este representasse não mais do
que simples rotina. Vivera até ali ligado ao crime e do crime
era cúmplice e aliado. Em seus cinqüenta e quatro anos mal
vividos soube sugar o quanto pode de quantos se deixaram
ludibriar. Era réprobo convicto de sua maldade como Ernesto
era ali convicto de sua asneira. Deu dois passos à frente,
alcançou uma cadeira e puxou-a para si, sentando-se. Então
falou: - já que não existe mais segredos, que tal falarmos de
nossas metas verdadeiras? – cruzou as pernas calmamente,
enquanto aguardava uma resposta. Ernesto precisava pensar
numa saída adequada. Os pensamentos embaralhados
tentavam impedir-lhe a lógica do raciocínio. Contudo, uma
nuvem de lucidez acenou-lhe com a precisão do bom senso.
Sentiu que tinha que jogar; se falhasse estaria perdido.
– O que quer de mim? – começou com esta pergunta
– Absolutamente nada.
– Não entendo; poderia ser mais claro?
– Com prazer. Você já é nosso sócio; só tem agora que
colaborar um pouco mais.
– Não sei se estarei disposto a colaborar com traficantes. –
as feições de Nico se avermelharam com esta frase de
Ernesto. Os olhos coruscavam e certa dose de ira tornou-se
indisfarçável. Ernesto chegou a arrepender-se de ter soltado
aquelas palavras que frustraram sua intenção primitiva de
conter seus reais sentimentos. Mas já era tarde. O italiano
seguiu frio nas palavras, contrariando o seu estado interior.
– Lembra quando lhe disse que tudo acabaria bem se
usasse de inteligência? Agora não tem escolha.
– O que tenho que fazer? – perguntou, como se
pressentisse as conseqüências de sua rebeldia.
– Você vai saber; mas quero prevenir: não comecei neste
negócio ontem, portanto já conheço todas as artimanhas.
Gosta da vida? Então é melhor colaborar; desse modo poderá
viver ainda muitos anos. – Dizendo isto, olhou de soslaio
para Arnaldo que não perdeu tempo em soltar seu sorriso
sardônico.

86
Daquele dia em diante passou a ter Ernesto os seus passos
vigiados. Entrara, com toda a força de sua ingenuidade, para
uma máfia onde a morte passou a ser possibilidade cada vez
menos remota e, em seus dias de medo e depressão, uma
opção válida e definitiva. A falta de dinheiro do passado deu
lugar à falta de tranqüilidade de agora, não sabia qual das
penas era a mais dura mas por medo ou por garantia pedia a
Deus em suas preces uma justa comutação. Pensava com
freqüência em fazer o que seria certo e natural em uma
situação como esta. Levando o caso à luz da investigação
policial, teria a seu favor uma lei, mas contra si o fantasma da
perseguição imposta pela força do crime; seria loucura, não
sairia desta com vida. O que fazer então? De uma coisa sabia;
precisava optar por uma de duas escolhas, ambas repletas de
risco e incerteza, mas tinha que optar.
Tomou uma decisão; não fê-lo sozinho. A falta de firmeza
e de vontade, parte integrante na sua formação de caráter,
nunca lhe permitiram tal discernimento. Procurou Jabara, em
quem confiava, menos por razões para isso do que por
imposição da longa amizade de mais de vinte anos. Como
não tinha motivos para não confiar – tampouco outras
amizades tão duradouras, por eliminação, escolheu aquela. O
primeiro conselho foi o mais radical, nem por isso deixou de
ser acatado. Urgia que largasse tudo e todos e fugisse por uns
tempos. Para o mais longe que pudesse. Que mudasse de
cidade, de estado e, se possível, deixasse o país. Reuniu todo
o dinheiro, quantia considerável, e partiu. Escolheu o Chile
para viver. Ali ficou por um ano e meio. Ficou no passado o
deslize que o tornara um exilado e desterrado. A saudade
apertara. Empuxado pela dor de não ver os filhos e a terra,
retornou; na bagagem o medo e a esperança.
Por aqui muita coisa havia mudado. Parece que, de alguma
forma desconhecia, a sorte favorecera mais uma vez o nosso
amigo. Nico acabou recebendo novo golpe em sua trajetória
de malfeitor. Semanas após o sumiço de Ernesto, o local foi
invadido por policiais federais, numa reação surpresa. Na
reação houve troca de tiros. Arnaldo tentou escapar ao
flagrante e reagiu mas foi morto ali mesmo. Nico, mais frio e

87
mais experiente, deixou-se algemar; foi preso com outros
dois comparsas. Ernesto, que preferiu ficar incomunicável em
sua fuga, a fim de evitar riscos, só soube mesmo do fato um
dia após o seu regresso. Procurou por Jabara que o notificou
quanto ao ocorrido.
– Meus contatos com o italiano sempre foram raros – disse
Jabara.
– Falando a verdade, após aquele dia em que saímos
juntos para comemorarmos a sua aposentadoria, não o vi mais
do que três vezes. Quando então fiquei sabendo do seu
envolvimento com o tráfico de drogas, não mais o procurei.
– Onde está preso?
– Na Itália.
– Na Itália?
– Isso! Você conhece a Lei por aqui. Como tinha dinheiro,
conseguiu trazer da Itália um bom advogado com uma
liminar pedindo sua extradição. Em todo caso duvido muito
que esteja atrás das grades. O que fez todo este tempo lá fora?
– perguntou Jabara –, imagino que esteja aliviado agora.
– De certa forma sim – respondeu Ernesto. – Se eu
soubesse antes do ocorrido teria retornado há mais tempo.
– Garanto que foi melhor assim. O homem só deixou o
país há quatro meses. O caso rolou um bom tempo na
imprensa, pois acabou envolvendo gente grande da Cosa
Nostra; houve muitas idas e vindas antes de ser solucionado.
Em todo caso, foi bom que estivesse longe. Quer um
conselho de verdade? Resolva sua vida por aqui e caia fora
para sempre; com a Máfia não se brinca. – Jabara mantinha
os olhos fixos em Ernesto como a estudar sua reação; ele
coçou a cabeça e falou com desânimo.
– Tudo o que fiz neste tempo lá fora foi gastar. Cada vez
que olhava para as notas e pensava em sua origem suja,
alimentava a minha indignação, só queria gastá-las. Em
pensar que tantos anos trabalhando para frutificar uma idéia
resultaram neste fiasco.
– O que fez quando se viu sem dinheiro?
– Desta vez, pelo menos, não fui tão idiota. Como tinha
que viver por lá, decidi arriscar tudo o que possuía num

88
empreendimento, modesto a princípio, mas que poderia
render-me um bom dinheiro e tirar-me do terrível ócio que já
durava um mês. Aluguei, por mil e quinhentos dólares
mensais, uma pensão em San Antonio, balneário turístico da
região de Santiago na costa do Pacífico. Como não tinha
experiência, arranjei um sócio, Hernandes. Tive sorte. Em um
ano e duas altas temporadas depois, consegui triplicar o
capital investido.
– Não parece que queria se desfazer do dinheiro.
– Aí é que está. Meu sócio foi o responsável por todo o
sucesso do negócio. Era um sonho que tinha e só precisava do
capital para começar. Quando conseguiu, se agarrou a ele
com tudo. Eu apenas me limitava a tomar conta por duas ou
três noites na semana, que era quando ele saía para as suas
imperdíveis pescarias. Conheci ali um homem que passou a
se hospedar com freqüência. Era muito rico e por causa dele
mudei de vida e de cidade.
“Com a baixa temporada, os negócios em San Antônio,
como sempre, decaíram. Queria conhecer outros lugares.
Aquele homem singular chamou-me a atenção. Em conversas
noturnas, pois sempre bebíamos juntos, fiquei conhecendo
boa parte de sua vida. Exalava firmeza e confiança em suas
maneiras e eu me sentia bem em sua presença. Possuía uma
cadeia de hotéis em Valparaíso; era influente também
politicamente. Não sei por que mas sua simpatia por mim
levou-o a convidar-me para uma de suas inaugurações.
Aceitei imediatamente”.
“Devo dizer que juntei aventura a negócios e devo aqui
confessar que, aceitando o convite para gerenciar o cassino
do seu novo hotel, fi-lo na intenção exclusiva de um ganho
fácil que, de forma insidiosa, já vinha me dominando há
algum tempo”.
– E deu certo? – quis saber Jabara, já curioso.
– Muito mais do que isso. A princípio, quero dizer que
não permaneci mais do que seis meses no tal cargo, mas o
resultado disso é inenarrável.
– Como assim?

89
– Já disse que consegui triplicar a renda que tinha antes.
Agora digo, sem constrangimento, usei parte desse dinheiro
para saciar meu antigo vício, o do jogo. O vício, que durante
décadas me manteve ao lado dos fracassados, desta vez faria
mais: limparia minha consciência e meu bolso de tê-lo ganho
ilicitamente. Foram incontáveis noites de jogo e orgia. Jogava
e ganhava, jogava e ganhava. Até que uma noite quis dar um
ponto final àquela vida.
– O que fez?
– Convidei, entre várias mulheres que, um pouco atrás dos
apostadores, sapeavam o jogo, a mais bonita e que tinha sido,
só por coincidência, minha na noite anterior, a vir comigo à
mesa de jogos e fazer um palpite. É bom que se diga, tinha eu
já adquirido uma passagem de retorno ao Brasil para o dia
seguinte. “Preto dezoito”, ela me balbuciou. Ainda me
lembro da expressão de cada uma daquelas testemunhas ao
verem o montante de fichas que posei no tabuleiro sobre o
número marcado, correspondente a tudo que eu possuía.
Quando a voz do Crupiê cantou o resultado, não pude conter
minha emoção.
– Perdeu toda a sua fortuna?
– Ganhei!
– O que?!
– Exatamente quatrocentos e oitenta mil, duzentos e vinte
dólares.
– Você está rico!
– Nunca tive tanta sorte – disse Jabara, admirado.
– Eu, tampouco. E o que mais me incomoda é que em
nenhum momento eu fiz sequer um mínimo esforço para
merecer este dinheiro. Agora faço uma pergunta: o que vai
ser da minha vida daqui para frente? – Jabara, com um sorriso
de satisfação estampado no rosto, como se desfrutasse o
prazer que não via no outro, de possuir tamanha quantia de
dinheiro, aproximou-se, colocando-lhe a palma da mão sobre
a testa, dizendo.
– Não vejo sintoma de doença física em você, mas acho
que devia consultar um bom psiquiatra. Você está louco?
Tem meio milhão nas mãos e diz que não sabe o que vai ser

90
da sua vida? Eu te digo – prosseguiu –, você está rico. Pegue
este dinheiro e vá viver na Europa. Não... na Europa não –
lembrou-se da Itália. – Vá para a América ou Ásia, sei lá, mas
aproveite a vida.
Mais um ano se passou. Vamos encontrar Ernesto numa
situação de vida verdadeiramente próspera. Parece que a sorte
o pegara mesmo em cheio. Já não mais amargava aquele
sentimento depressivo de não querer dinheiro. Pelo contrário,
queria vê-lo multiplicado e conseguia. Uma vez mais aceitou
o conselho de Jabara e definitivamente deixou o Brasil. A
sorte surgira em San Antônio e para lá ele voltou. E levou
Jabara consigo como paga pelas boas idéias. No mesmo
balneário e com o mesmo sócio, Hernandes, Ernesto, se rico
já era, virou milionário. Pelo menos era o que ele queria,
tornar-se um milionário. Derrubara a antiga pousada e
erguera ali o melhor e mais luxuoso hotel de San Antônio.
Valparaíso também ganhou sua marca; um verdadeiro Hotel
Cassino no centro turístico da cidade acabou por torná-lo
famoso e conhecido. Hernandes, na qualidade de sócio e
homem empreendedor que era, como não podia deixar de ser,
ganhou também riqueza e destaque.
E Jabara? Bem, este tinha também o seu quinhão, mas
precisava dar sua contribuição para merecê-lo. E para as
necessidades que iam surgindo não havia melhor contribuição
do que o trabalho. Jabara ganhou um posto de destaque e
respeito. Era diretor administrativo da empresa. Possuía
também dinheiro e posição. No decorrer do primeiro ano, foi
tudo sem problemas. Mas daí pra frente começou a se sentir
injustiçado. Ver os dois, principalmente Ernesto, em vida de
nababo, ganhando e gastando dinheiro à rodo com quase
nenhum trabalho e muito deleite, fez acender-lhe a inveja.
Com isso, negligenciava cada vez mais e, como resultado
óbvio, caiu a produção. Como conseqüência, demissão para
Jabara, perda do emprego e, como não podia deixar de ser, da
amizade.
Tudo muito natural se tivesse ficado nisso apenas, mas
não ficou. Ferido no orgulho, na confiança e, o que é pior, no
próprio bolso, ele se vingaria. Recordemo-nos do homem

91
pacato e influente que dera uma chance a Ernesto em seu
Cassino e era agora o seu maior concorrente. Pois este
mesmo homem fizera o mesmo com Jabara e tentou, por sua
vez, a mesma proeza que mudou a vida do outro. Mas a sorte
é caprichosa. Em vez de dar, tirou-lhe o que tinha. Ficou
desgraçado, não existe outro termo para designar o que foi a
sua transformação. Bebia, e com freqüência. O dinheiro e as
roupas perfumadas que atraíam antes as mulheres, deram
lugar aos circunlóquios misturados ao cheiro do álcool que
agora as repeliam.
As frases de Jabara, em seus momentos de delírio
alcoólico, acabaram por atrair um dos freqüentadores do
local. Este homem era um brasileiro, Rodrigo era o seu nome.
Há pouco mais de uma semana em férias no Chile, estava
tentando sua sorte na roleta pela terceira noite consecutiva
quando viu que Jabara pronunciara o nome de seu irmão,
largou tudo e foi até onde ele estava. Sentou-se à sua mesa no
fundo do salão e começou a lhe fazer perguntas sem, no
entanto, nada lhe arrancar devido a sua forte embriaguez. Já
altas horas, jogando, agora para passar o tempo, viu que o
bêbado dormia curvado sobre a mesa. Rodrigo devolveu suas
fichas, mandou chamar um táxi e levou Jabara para o mesmo
hotel em que estava hospedado. Nesta mesma manhã, à mesa
de amplo salão de café, viam-se dois senhores que
conversavam em voz baixa. Em sua frente, rico e enfeitado
café da manhã. Destoavam de tal maneira entre si nos trajes e
nos trejeitos que chamavam a atenção e isso constrangia
visivelmente Rodrigo. Jabara servia-se de um café duplo e
quase amargo e comia vorazmente um pedaço de bolo.
– O que quer de mim? Não vê que não passo de um
vagabundo? Não tenho nada que possa interessar a você –
falou. Enquanto comia uma fatia de melão, Rodrigo
respondeu: – Tenho certeza que sim. O nome de Arnaldo diz
alguma coisa a você? – Jabara titubeou, mas ao mesmo tempo
invadiu-o uma sensação de insustentável leveza. Quando
soube que eram os dois irmãos, parece que previu a
concretização de sua vingança; soltou a língua.

92
– O que ganhou com isso? – Se não levasse nada já se
daria por satisfeito em ver a ruína do seu inimigo. Mesmo
assim foi-lhe oferecido um bom dinheiro para acabar com a
vida de Ernesto e consumar a sua vingança. Não aceitou. Não
tinha coragem. Então, que fosse a Itália e trouxesse Nico. Isto
ele fez. Teve dinheiro e mordomia para tal. O italiano estava
atrás das grades. Contudo, gostou da idéia; estava arruinado e
tinha aí uma chance, no dinheiro de Ernesto. Eis aqui, da
trama, o desenlace.
Jabara ficou por lá, pela Itália. Pelo menos é o que se
presume, pois nunca mais foi visto. Mas isto é para nós o que
menos importa. Ernesto foi seqüestrado por dois comparsas
de Nico. O resgate? Custear, sem importar como, a libertação
do mafioso. Por lá também se compra a liberdade, porém,
bom é que se diga, à maneira italiana, e só assim. Isto quer
dizer que Ernesto, para ficar vivo, dessa vez sem escapatória,
quis fazer parte do mesmo time; não deu outra. Nico
enriqueceu novamente. Mais um negócio sujo entre os dois,
desta feita, com a conivência e participação de Ernesto, um
parceiro e tanto. Como num filme, a cena da invasão policial
se repetiu, só que agora em território italiano. O fim de
Arnaldo foi o fim de Nico: a morte. E o fim de Ernesto, o
mesmo fim do italiano antes da morte. Se a sorte continuar,
vai lhe restar toda uma vida de sonhos e de lamentações. Para
repetir o que fez e da forma que o fez, melhor que fique atrás
das grades. Antes ser um João Ninguém.

93
O Drama de Norma

N
um desses dias em que a alma vibra na sensação do bem
estar, vale a pena fazer qualquer coisa. Vale a pena
caminhar, respirar fundo, sentir-se vivo, enfim. Este bem
estar inundava o peito de Norma naquela tarde de sábado na
estação de trem.
Uma energia benéfica percorria-lhe o todo do seu ser. Sentia-
se de bem com vida, como nunca antes; voltava a sorrir.
Quando tal sensação invade, vão-se as tristezas, o horizonte
do futuro surge claro e promissor. A mente, ansiosa por vida,
pinta as imagens do sonho, prestes a sair da escuridão da
dúvida e mergulhar de cabeça no mar da esperança e do
amor. O coração, com seus dotes mil, seus arcanos
insondáveis e cheio de recusas passadas, ou rejeições, espera
de novo a chegada do seu salvador.
Inundada por tal onda benfazeja, não percebeu a
aproximação da máquina locomotiva senão quando esta
surgiu à sua frente, abrindo as portas. Ergueu-se do banco e,
apressada, embarcou. As pessoas quase que se espremiam
umas às outras e o murmúrio de vozes reinava absoluto no
ambiente limitado da composição.
– Permita que segure sua bolsa?
– Pois não – respondeu Norma ao rapaz, entregando-lhe,
aliviada, sua pequena sacola e mais outro volume que
portava. Durante os primeiros minutos daquela viagem um
frio paralisante percorreu-lhe todo o corpo, causando
incômodo nervosismo. Havia uma razão para isso: Ele não
afastava os olhos de Norma; fixava-a de uma forma anormal,

94
indiscreta até. Duas estações à frente vagou um assento;
Norma sentou-se ao lado do rapaz. – Muito obrigada –
agradeceu mais uma vez, recolhendo a bolsa e o volume.
Porém, antes mesmo de acomodar-se no banco, ouviu dele:
– Poxa! mas que surpresa agradável!
– Eu o conheço? – perguntou. Por ser bonita e atraente,
Norma via-se, não raro, assediada por quase todos que
cruzavam o seu caminho. Aquela poderia ser mais uma
situação idêntica às tantas que ela vivia diariamente; portanto
não deu maior atenção. Apenas sorriu com sua malícia
característica de mulher vaidosa. No entanto, deixando um
pouco de lado a vaidade e o orgulho de mulher bonita, fixou
melhor o rapaz e reconheceu naquela fisionomia um antigo
namorado da faculdade. Este rápido vislumbre trouxe-lhe à
memória deliciosos momentos que vivera tempos atrás, ainda
moça, freqüentadora assídua dos bancos escolares, mas,
muito mais das rodas vespertinas de troças e folguedos de sua
rica e confusa adolescência. E, acima de tudo, reacendeu-lhe
uma esperança.
Chamava-se Afonso; e a grande transformação que sofrera
no decorrer dos anos surpreendeu demais a moça, que
comentou: – Como você está diferente! – E assim reataram
um relacionamento já quase perdido no tempo; e aqui começa
essa história.
Vale dizer que Afonso, como namorado de Norma durante
bom número de meses, viveu o privilégio de povoar-lhe os
sonhos de menina moça, fazendo parte de sua vida afetiva.
Contudo, não a amava; Norma era para ele um passatempo,
nada mais. Mas o primeiro amor é para o coração feminino o
que o colírio é para a vista enferma: Alívio da opressão,
aumento da esperança de um futuro claro e sem manchas. As
transformações inerentes àquela fase eram acentuadas no
comportamento da jovem apaixonada. Mas o corpo, este
denunciava a felicidade interior que ela vivia. A fisionomia
não consegue esconder o estado d’alma. Da mais profunda
tristeza a mais contagiante das alegrias, somos surpreendidos
nos ínfimos meneios de cada músculo ou nervo de nossa face
externa. Porém, no corpo, como um todo, a mudança era

95
singular. Dos quatorze aos dezesseis anos tornou-se
irreconhecivelmente linda, um querubim de carne e osso.
A beleza de Norma, seus contornos físicos, seu sorriso
alvo e a tez morena, enriquecida pelos tratos que lhe davam,
menos os cosméticos do que a luz natural do sol benfeitor do
Rio de Janeiro sobre as praias mudas e disponíveis; esta
beleza chamava atenção, e como! Outras como ela até que
havia, e até mais bonitas. Mas Norma sabia unir suas
qualidades físicas ao charme de sua personalidade e à
inteligência de sua mente; aí tornava-se imbatível. Descartava
os mais disputados rapazes de sua roda, fazendo outras
meninas morderem-se de inveja e despeito.
Mas, o que via em Afonso? Talvez nada demais; talvez
simplesmente o encanto do primeiro amor. É certo que ele
mal percebia este encanto de Norma. Diz o poeta que isso é
próprio do amor: Um amando perdidamente e o outro,
negligentemente, deixando-se amar. A diferença de idade
podia ser a causa da indiferença de Afonso. Tinha vinte e
quatro anos quando Norma tinha apenas dezesseis. Conhecera
o sexo aos dezessete e já tivera várias experiências. A mais
marcante foi aos vinte e um quando engravidou uma moça.
Este fato desnorteou-o; foi a primeira grande frustração com
as mulheres. Achou que fora enganado, pois não haviam
combinado nada daquilo. Abandonou a mãe com o filho que
nem chegou a conhecer; não sem uma chama de remorso a
queimar-lhe o peito, mas abandonou-os. Depois, conheceu
Norma, com quem retomou suas atividades de namoro, mas
sem se arriscar.
O fato de Afonso não amá-la poderia estar ligado ao seu
primeiro fracasso amoroso. O espírito ainda não havia se
recuperado. Mas, prosseguindo sua união com ela poderia
superar o passado e ser feliz sem ressentimentos. Para isso
teria que se contentar com beijinhos e abraços para não
estragar tudo; ou casar-se de uma vez. Mas aí já seria outra
história. Ultimamente conversavam bastante sobre o futuro. –
Você me ama? – dizia Norma.
– É claro, meu amor; mas que jeito estranho de perguntar!
Você não acredita?

96
– Não é que eu não acredite; apenas sinto você um tanto
frio às vezes.
– E as outras vezes? – brincou Afonso.
– Não estou brincando. Já namoramos há vários meses e
você nunca avançou o sinal; sabia que todo namorado avança
o sinal de vez em quando?
Afonso ficou meio pálido nessa hora. Olhou para os seios
dela, os seus contornos e a firmeza do seu porte traduziram-
lhe francamente as últimas palavras. À vontade que tinha
naquele momento de incontido desejo, arrebatado pelo
oferecimento explícito da namorada, era tomá-la nos braços
ali mesmo e mostrar-lhe sua masculinidade. Por momentos,
congelou o olhar sobre ela, seduzido que estava; ficou sem
palavras. Norma usava um peitilho cor de rosa, sendo a única
peça que lhe cobria os seios. A barriga era nua e um
shortinho branco e sandálias também brancas completavam-
lhe o charme juvenil. Os olhos castanhos e muito expressivos
eram fixos nos dele, seguindo-lhes os movimentos. Quando,
como quem perscruta uma obra de arte, Afonso terminou sua
deliciosa viagem, ela perguntou:
– Você me acha bonita?
– Você é linda! – respondeu.
– Então, por que não me deseja? – outra pergunta que
deixou o rapaz novamente embasbacado. O que teria dado
naquela menina? O que vinha matutando ultimamente
naquela cabeça? Já vamos saber.
Afonso exercia a profissão de representante comercial e
possuía um pequeno escritório no centro do Rio. Tinha um
sócio, Osvaldo. Era casado, com uma família bem
constituída, filhos, sogra e tudo mais. Amava a esposa, mas
de uns tempos para cá vinha desconfiando de sua conduta; fez
de tudo pra ver se descobria. Seguiu ele mesmo os passos
dela, colocou detetive, nada. Como não tinha provas para a
sua desconfiança, desistiu por uns tempos. Chegou a pensar
que as mudanças em alguns pontos do comportamento da
mulher se devesse ao amor que já não sentia por ele;
conformou-se. Como as angústias retornassem após alguns

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meses, retomou as investigações. Mas onde entra Afonso
nesta história? Vejamos.
Entrara para a sociedade com Osvaldo quando este já,
mais uma vez, desistia de achar razões que justificassem a
frialdade do seu relacionamento com a mulher, antes tão rico
e amorável. Na condição de jovem bonitão e afortunado com
o sexo oposto, Afonso seria a salvação do seu casamento ou a
ruína total do mesmo. No dia a dia da rotina do escritório,
Osvaldo a debuxar sua falta de sorte, passava para o amigo e
sócio certa insegurança. Contudo este não descartava a
hipótese de ajudá-lo, embora achasse a idéia um tanto
arriscada.
– Ela não conhece você, não tem porque dar errado. –
Uma soma em dinheiro entrou no negócio, o que dissipou de
vez as dúvidas de Afonso.
– Está bem; marquemos então dia e local. E não deixe de
me passar todos os detalhes; quero fazer tudo certo – disse.
O plano era o seguinte: Afonso devia passar por amante de
Vilma, a mulher de Osvaldo, porém, sem consumar o ato. O
flagrante seria dado a tempo e todas as dúvidas do marido
traído seriam, de uma vez por todas, esclarecidas.
Mas saiu tudo errado. Por uma falha de sincronização,
Osvaldo não chegou no local aprazado. Ou melhor, chegou,
mas não viu o que precisava. A mulher era mais esperta do
que ele imaginava e conseguiu sair dali minutos antes do que
qualquer flagrante. Se ficou sabendo da trama, a incógnita
será eterna. O fato é que Afonso, levado pela dedução de
quem entende do assunto e já um tanto alto pelas doses
também sedutoras, foi arrastado do local a tira-colo para
longe dos olhos de qualquer mortal, até mesmo deste que
redige estas linhas. As provas continuaram inexistentes. O
rapaz jurou inocência. As dúvidas de Osvaldo persistiam,
agora ainda mais atrozes. Mas Afonso perdeu o emprego; e o
amigo. Este... bem, continuou com a mulher, com as
angústias de sempre mas sem coragem de fazer o que achava
certo.
Se houve ou não algo entre os dois, isto não vem ao caso
aqui nesta história, mas fica a lição de quanto o coração

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feminino é enigmático e insondável. A mulher sabe realmente
agir quando se trata de conseguir o que quer para a sua
felicidade; e na maioria das vezes acaba conseguindo. Mal
sabiam aqueles dois que Vilma fazia parte das inúmeras
amizades de Norma; não propriamente Vilma mas uma de
suas filhas, Valéria. Freqüentava os mesmos bancos escolares
que a adolescente. E as conversas entre meninas nesta fase
áurea pairam, na sua grande maioria, sobre temas masculinos.
Belos rapazes e suas aventuras amorosas habitam os
pensamentos da chusma estudantil que deixou de ser, há
muito, aquele sexo frágil e mantém esquecidas ou ignoradas
as inocentes bonecas num canto qualquer para cingir-se de
outros jogos, menos monótonos e muito mais excitantes.
Valéria sabia que Afonso e Norma eram namorados. E foi
através dela que Norma ficou sabendo onde trabalhava o
rapaz; isso foi no começo do relacionamento. Ele nunca
entrava em detalhes sobre sua vida particular, pois não
queria, ou não imaginava que o caso fosse alongar-se por
mais do que umas poucas semanas, que é como vinha se
dando com todas as garotas que conhecia desde o seu
malfadado romance responsável pela frustração amorosa que
vinha amargando desde então. Norma, julgando-se
apaixonada, passou a acompanhar furtivamente os passos do
namorado. Como estudava à noite, sempre que surgia uma
oportunidade, não hesitava em cabular uma ou mais aulas a
fim de conhecer-lhe o destino ao deixar o escritório.
Numa noite, por volta das dezenove horas, tomava sorvete
encostada ao balcão de uma lanchonete no bairro de
Botafogo; havia descido do metrô a uns cem metros dali.
Esperara por mais de meia hora a saída de Afonso do
escritório no centro e no mesmo local onde ele costumava
passar diariamente para pegar o ônibus que, ela sabia, o
levaria para o bairro de São Cristóvão onde morava.
Raramente se viam durante os dias úteis da semana. Ele
alegava cansaço do trabalho e a urgência em completar o
estudo que fazia, em casa mesmo, a fim de prestar exame
para o vestibular que se aproximava. Como ele não aparecia,
ela decidiu ir embora. Estava agora há meio caminho entre a

99
estação e o colégio onde estudava e, enquanto saboreava o
sorvete, pensava se ia ou não aos estudos.
Quando tirava da bolsa o dinheiro para pagar, avistou,
parado ao sinal luminoso, belo automóvel guiado por uma
mulher ainda mais bela. Tudo muito natural se não fosse
aquela mulher Vilma, a esposa de Osvaldo e, ainda para
desagradável surpresa de Norma, não estivesse ela
acompanhada de Afonso. A menina não se deixou avistar; os
dois sequer olhavam para os lados de tão entretidos que
estavam um com o outro. Norma não se abalou. Sentiu, sim,
grande tristeza interior. Saiu de onde estava e tomou o
caminho de casa, não sem antes perambular por algumas ruas
do bairro, cabisbaixa e de alma dorida. Ao dar por si já eram
perto de dez horas da noite. A desilusão que a invadia
igualava-se à espessidão da noite. Nesse estado, embarcou
novamente numa composição do metro e seguiu para o
Flamengo, onde morava.
Contudo, a despeito do ocorrido, no dia seguinte Norma já
era outra pessoa, ou melhor, a mesma que sempre fora. Era
tão cheia de vida que um fato como este não iria abalar seu
ser. Mas ficou pensativa. A intuição feminina parece ter-lhe
dado a visão do problema. Afonso, saindo com uma mulher
casada, só podia estar em busca daquilo que ela não podia lhe
dar: sexo. “Então, se é esse o caso, posso tentar resolvê-lo”.
A menina passou aquele dia, e os seguintes, pensando muito a
respeito do ocorrido, ruminando as possibilidades para uma
solução feliz. E se se entregasse ao rapaz? Será que o amava?
Não era apenas o orgulho que, ferido tentava sobressair-se?
Valeria a pena perder a virgindade para alguém de cujo amor
ela não tinha certeza? Norma refletiu muito mas não chegou a
uma solução definitiva. Com quem conversar? Com a mãe?
Tinha medo; achava que não entenderia ou que conseguiria
no máximo alguns conselhos baseados no amor de mãe,
conservador, protecionista, que é, de fato, o que pensam
quase todos os adolescentes; então se livrou da idéia. Quanto
ao pai, pior ainda; morria de medo só em comentar que
namorava e estava apaixonada por alguém com quase dez
anos a mais do que ela. Já conhecia de cor e salteado a

100
opinião dele, as quais gravitavam invariavelmente na direção
dos seus conceitos machistas e intransigentes. Imagina o que
um cérebro como o seu poderia inferir da situação da filha;
não, nem pensar.
Resolveu então nada fazer em relação a conselhos, pelo
menos de pessoas que os pudessem confundir com
sentimentos de afinidade ou experiências penosas e pessoais
que influíssem em suas opiniões. Limitou-se à publicações
que sempre gostava de ler e que tratavam desta área e
conversas com amigas de que gostava e tinha na conta de
sinceras e sabedoras do que queriam. Por fim, entregou
mesmo o caso à luz da intuição feminina que quase nunca
falha nessas horas.
Esperou chegar o fim de semana. Afonso costumava ligar
de quando em vez para um breve namoro ao telefone; ela
fazia o mesmo mas desta vez foi diferente, embora o tenha
tratado com naturalidade nas vezes em que ele telefonou. Ao
se encontrarem não tocou no assunto para não demonstrar
ciúmes nem ficar em desvantagem; pelo contrário. Recebeu-o
com carinho e um pouco mais de atenção. Norma o recebeu
na varanda como geralmente o fazia; ofereceu-lhe café e ele
aceitou. Desligou a iluminação principal, deixando o
ambiente à meia-luz e sentou-se ao seu lado. Entre beijos e
afagos, começaram a conversar sobre assuntos corriqueiros.
A mãe, nas tardes de sexta-feira, freqüentava uma igreja
evangélica. O pai nunca voltava do trabalho antes das vinte e
duas ou vinte e duas e trinta. Sendo Norma filha única, não
era difícil esconder o namoro. Dentro de casa a mãe mantinha
com ele esse segredo. O casal geralmente ficava na varanda
até por volta das dezenove horas, quando ela retornava,
preparava-lhes um lanche e, em seguida, os dois saiam a
passear, retornando sempre antes das vinte e duas horas.
Despediam-se a uns dois quarteirões dali. Aos sábados e
domingos viam-se na presença da mãe de Norma quando iam
à diversões como um shopping center ou um cinema.
Enquanto a mulher não aparecia, aproveitavam aquela
quase hora para matarem a saudade, conversando entre
carinhos. Norma estava ardente aquela noite. Para ela a

101
ocasião teria de ser especial; queria testar até onde ia a
susceptibilidade de Afonso. Além do mais, trajava-se de
maneira provocante com saia curta e blusa excitantemente
decotada. Com incontido transporte, no pescoço e nos lábios
beijava-o, roçagando entre as pernas dele as suas. Ele, à
princípio, tomado pelo arrebatamento de Norma, comprazía-
se na medida do possível, tendo em vista a impropriedade do
local e a promessa que fizera a si mesmo de conter seus
arroubos sexuais. O perfume da menina inebriava-o. A
respiração resfolegante de fêmea incontida que conhece os
pontos fracos de um homem impregnava o ambiente com
desejo e suspense. A vestal inocente e comedida dando lugar
à mulher dominante e audaz.
Afonso pouco a pouco se deixava conduzir por aquele
ímpeto tão ousado de Norma. Como reprimir aqueles beijos?
Como impedir o progresso de tais sensações mais do que
excitantes? Na medida do possível, porém, conseguia conter-
lhe os avanços com bem humoradas frases como: “Poxa!
você assim me sufoca!”, entremeadas de risinhos
condescendentes por parte dela que em seguida voltava aos
longos beijos e carícias. Súbito, a campainha. Viu-se aliviado
Afonso; finalmente um descanso para recompor-se. Trinta e
tantos minutos ininterruptos de excitação não é pouca coisa
para agüentar-se sem uma resposta à altura; ainda mais
vindos de alguém como Norma.
Enquanto ela ia até o portão, empenhando-se em assumir
de volta a sua postura natural de moça bem comportada, o
rapaz fazia o mesmo na varanda. Rapidamente penteou-se,
colocou para dentro das calças o blusão meio que amarrotado
e sentou-se, cruzando as pernas.
– Oi, Dona Luiza, como passou a semana? – era a mãe de
Norma; portava um embrulho em uma das mãos e, na
fisionomia, a mesma simpatia costumeira. Embora tenha
notado certa tensão em Afonso – só menor em intensidade do
que a naturalidade peculiar da filha – nada comentou,
guardando para si qualquer impressão. Após alguns segundos
de um silêncio perturbador, foi a primeira a quebrar o
silêncio.

102
– Adivinha o que trouxe para o lanche?
– Pelo cheiro, só pode ser pizza – arriscou a filha.
– Acertou! E é, de calabresa, a preferida de Afonso.
– A senhora é a melhor mãe do mundo, dona Luiza! –
brincou ele. – Mas não precisava se preocupar – acrescentou
sorrindo.
– Qual nada, é um prazer. Agora, que tal comermos e
conversarmos um pouquinho para relaxar?
– Mãe, a gente não vai demorar; queremos ver um filme
que começa às oito e, a senhora já sabe, temos horário para o
retorno; não é, bem? – acrescentou com uma olhadela marota
para o namorado. Ele ficou meio sem graça mas confirmou
com a cabeça.
Este episódio vem demonstrar como um fato, marcante e
repentino, veio contribuir para uma transformação bastante
acentuada no comportamento e nas atitudes de Norma. Aos
poucos, tornava-se mais sedutora; encontrava meios para
ficar cada vez mais à sós com o namorado a ponto de
descuidar das advertências da mãe. O namoro que já era
acalorado, tornou-se irresistivelmente quente e apaixonado,
até que um fato veio prorromper o inevitável.
Quando, em uma daquelas noites de sexta, entregavam-se
ardentemente a carícias avançadas, surgiu, inesperadamente,
o pai de Norma. Passavam poucos minutos das nove e meia e
eles estavam próximos à casa, embaixo da marquise de um
ponto comercial já fechado e semideserto. Ele não chegou a
vê-los no ato do namoro, mas cruzou com a filha quando
acabavam de se despedir com um beijo nos lábios. Ao virar-
se e ver o pai, Norma corou; não lhe era normal chegar em
casa àquela hora. O homem nada disse, porém. Esperou que
Afonso se afastasse. Após o tradicional até logo com as mãos
e o desaparecimento dele na curva da esquina, o pai dela
aproximou-se e empurrou-a para casa. Norma seguiu à frente,
mantendo certa distância. Entrou em casa quase correndo,
passou pela mãe que na sala assistia à TV e dirigiu-se direto
para o quarto onde dormia.
Ele entrou em casa feito uma fera. – Onde está aquela
vagabunda? – A mulher, já imaginando o que ocorrera,

103
tentou, sem sucesso, apaziguar a situação. – Não me venha
com conversa mole; chame-a aqui se não quiser que eu vá
buscá-la; aí será pior.
– Pense um pouco, ela estava apenas namorando.
– Namoro! O que eu vi foi muito mais do que isso; o jeito
como se agarravam... – exagerou. – E pensar que você sabia
da pouca vergonha dos dois; e não me disse nada! Vá chamá-
la... ande! Ela não sabe o que lhe espera.
– Você não vai bater em nossa filha, ela não é mais
nenhuma criança; não poderei perdoá-lo se fizer isso. Alberto
amava a esposa e por amá-la, respeitava-a. Não amava menos
a filha. Mas a influência da educação que teve, espartana em
quase todos os sentidos, refletia-se no modo de lidar com as
duas. O próprio pai de Alberto foi assim com as irmãs dele e
ele não seria diferente com Norma. Do quarto, ela ouvia em
silêncio a discussão. Como diminuíssem os apelos
angustiantes de Luiza e os impropérios ameaçadores do
marido, surgiu na sala e colocou-se à disposição.
A conseqüência de tudo isto foi que Norma teve o seu
castigo; pecou por estar amando; o sofrimento em forma de
provação veio com a proibição de ver e falar com o seu
amado. Poderia, se quisesse, com a ajuda e conivência da
mãe e um pouco de coragem, burlar a pena e ver Afonso; e
foi o que fez. Luiza sentiu a dor da filha e repartiu com ela a
perigosa maçã da cumplicidade. Como mulher que já viveu a
paixão com todas as perdas e lucros, sabia que isso era o mais
certo que tinha a fazer. Valeria o risco que iriam correr; toda
paixão tem sua dose de risco.
Contudo, por infeliz coincidência, o pai entrou em férias
de dez dias após a sentença que promulgara. Para Norma
foram os dez dias mais felizes que já vivera. Longe da
vigilância dele e próxima, bem próxima, dos carinhos de
Afonso. Fez exatamente o que queria; entregou-se a ele. Fê-lo
com toda alma e devoção de que foi capaz; ele não teve como
resistir àquela atitude da moça. Era como se ela soubesse o
que estava fazendo. Afonso apaixonou-se. Mas a alegria da
conquista juntara-se à decepção da perda. Norma não mais
poderia ser dele. Contou-lhe tudo apenas no último dia

104
quando se despediram; do respeito que tinha pelo pai e do
medo de sua reação se descobrisse a rebeldia.
Deu-se o desenlace sob clima de emoção para ambos. Não
mais se viram. E Afonso, ferido no coração, sentiu-se usado.
Não mais a procurou; sequer telefonou. Vinte dias se
passaram. O amor tem dessas coisas. Mexe com tudo e com
todos. Faz de quem ama uma incógnita; do ser amado um
espelho a refletir os nossos desejos insatisfeitos. É uma eterna
busca, um tesouro escondido, cujo mapa julgamos alhures
encontrar estampado nos sorrisos que nos cativam. Começa
com a paixão que une os desejos para terminar na floresta da
igualdade entre os sonhos e os objetivos maiores. Norma
começou a sentir os primeiros sinais deste amor ao bater-lhe a
saudade de Afonso. Sentiu o desespero e entristeceu-se.
Contava, no seu orgulho juvenil, ver satisfeito o ego feminino
através da procura por parte do ex-namorado. Agora, como
mulher, oferecia o prazer sem limites e sem barreiras. A
decepção foi, portanto, muito grande. O reflexo disso surgiu
generalizado na vida de Norma. Na escola, uniu-se a outros
grupos; as amizades de agora justificavam as mudanças que
vinham ocorrendo dentro de si.
Aproximava-se o início das férias escolares de meio de
ano. Os últimos dias do mês de junho daquele ano de 1988
foram dos mais frios que há décadas não se sentia no Rio de
Janeiro. Todo e qualquer comportamento denunciava uma
necessidade primordial sobre qualquer outra: procurar calor,
tirar proveito das mínimas fontes que estivessem ao alcance.
Assim, viam-se carros com todos os vidros cerrados,
protegendo os seus ocupantes. Os casais abraçados, tão
unidos feito pedras engastadas num colar, despreocupados
com tudo e ciciando amores. Sobretudo, quem passasse as
primeiras horas da noite por certa rua deserta do Humaitá,
poderia deparar com um grupo de animados jovens que se
divertiam confabulando ao som de suave música ambiente.
Uns, para combinar com o clima, tomavam vinho, pois ali era
uma espécie de bar com feitio de adega. A julgar pelo tipo de
decoração, seria um comércio de portugueses, com mesas
redondas e cepos de madeira usados como banco. Tinha uma

105
cobertura em lona mas, devido ao frio, todos estavam do lado
de dentro em mesas e cadeiras comuns.
Norma tivera Afonso em sua vida por um período
aproximado de oito meses, em que vivera um verdadeiro
conto de fadas. Transformada em mulher, só não soube como
administrar esta vantagem; onde falhara? Seria de Afonso ou
dela própria a culpa? Seria do destino? Não sabia dizer.
Talvez uma falha de educação – o que pode ser bem
provável. Parecia não se preocupar muito com isso. Sua
índole destemperada fez com que não aceitasse tudo
passivamente. Há dias já não comparecia ao colégio; devia
provas e matérias. Os colegas do barzinho onde Norma se
encontrava já estavam de férias e quites com os estudos, mas
ela não. Mas certa estava de que iria recuperar-se a tempo.
Ana, companheira de classe, confortou-a naqueles tempos
difíceis. – tem certeza de que está grávida, fez todos os
exames?
– Todos, não resta dúvidas.
– O que pretende fazer?
– Não sei; se não fosse você acho que estaria perdida. –
Soltou estas palavras quase a soluçar mas voltou a sorrir com
o gesto da amiga que a animou com frases alegres, passando-
lhe a mão sobre os cabelos desfrisados pela umidade da noite.
Uma reviravolta aconteceu na vida de nossa adolescente
em pouco menos de dois meses. Ao descobrir-se grávida,
juntou um pouco mais de coragem àquela que já possuía de
sobra e abriu o jogo em casa. Aproveitou a gota d’água para
rebelar-se contra as privações que vinha sofrendo e
conclamar o seu direito à felicidade. Saiu do lar e foi viver no
Humaitá em casa de Ana cuja tia não se negou ao apoio.
Procurou por Afonso; nada lhe disse sobre o problema que a
afligia. Escondeu a gravidez sob sua capa costumeira de
jovem feliz e aberta para as novidades da vida. Ele não
reatou, todavia, o namoro. Alegou, e falava a verdade, uma
viagem à Inglaterra. Conseguira uma bolsa para estágio na
faculdade de Oxford; levaria por lá algo em torno de um ano.
Era o fim da linha para Norma. Ainda assim, manteve o
segredo. Andou por pouco a contenção. Mas venceu o amor

106
verdadeiro na suposição de Norma, que era vê-lo feliz em sua
carreira, acima de tudo. Não queria ser a responsável por
mais esta complicação. Ele partiu, na esperança do
esquecimento e na atuação do tempo, imparcial e inexorável.
E o tempo passou, encarregando-se das mudanças que
ocorrem em cada uma de nossas vidas. Seis anos são
decorridos desde os tumultuosos acontecimentos na vida de
Norma. Os pais, Alberto principalmente, sentiram-se
extremamente culpados pela omissão de carinho e apoio
numa hora tão difícil. Ela contudo, não guardou mágoas.
Recuperada da grave intervenção cirúrgica que quase a levou
à morte, aceitou, entre pedidos de desculpas, retornar para a
convivência junto a eles; muito mais por Luiza que estava
sofrendo tanto.
Agora uma linda menina fazia parte da vida de Norma,
que aos vinte e três anos parecia estar novamente de bem com
o mundo. Os dias de gáudio, repartia-os com Larissa. Todos
os fins de tarde, de banho tomado, brincava no portão com
outras crianças, aguardando a doce mãe. Luiza, olhando-a,
agradecia aos céus a linda neta surgida em meio a tantas e
inusitadas voltas que o destino dá; amava-a do mesmo modo.
Afonso ficara na Europa, efetivado por renomada empresa
após alguns meses de estágio. Aos trinta e um anos, estava no
caminho seguro e longo da riqueza material. Porém ainda
solteiro. Vinha ao Brasil com freqüência. Além das férias
para descanso, trazia-o importantes negócios. As mulheres
européias não lhe despertavam grandes interesses. Andou
flertando umas e outras; mais como passatempo
indispensável a um homem de sua idade do que outra coisa.
Agora, um fato marcante ocorrido no passado, que foi, na
verdade, o que desencadeou esta trama. Durante uns dois ou
três anos, trabalhou Norma em uma loja de roupas femininas,
dessas que enxameiam nos Shopping Centers que começaram
a proliferar pela cidade no início da década de 90. Havia ali
uma mulher beirando os trinta anos que veio a ser, em
questão de meses, sua melhor amiga. Laura, falante e muito
enérgica, era quem gerenciava o pequeno negócio. Norma
conhecia-lhe o passado de trás para frente e isto as unia ainda

107
mais. Tinha uma filha que era a razão do seu viver, sua
paixão, única e verdadeira.
– Às vezes penso o que seria de sua vida se eu lhe faltasse
– falava de vez em quando. – Ela não possui ninguém além
de mim.
– Não diga bobagens! – respondia sempre Norma. – Mas,
esqueceu do quanto sou apaixonada por crianças?
– É verdade; e é incrível como adora você. Quando
passam sem se ver, não deixa de perguntar pela tia Norma.
Com efeito. Impossível decifrar certos mistérios. Um
trágico acidente de automóvel veio colher a vida de Laura no
auge do crescimento. Por uma ação na justiça, conseguiu
Norma a adoção da menina; não foi difícil para ela. Como
não havia parentes que reclamassem o direito à criança e não
faltassem testemunhas a favor de Norma – a mais forte delas
o próprio amor da menina – ganhou ela uma nova mãe. Esta,
ao quase perder a vida, tendo um filho que não sobreviveu às
complicações de um parto, foi brindada anos depois por linda
alma, preenchendo assim uma coluna irreversível, pois jamais
voltaria a ser mãe biológica.
Ao se cruzarem depois de tantos anos naquela composição
do metrô e comentarem as diferenças para melhor em beleza
e maturidade, Norma e Afonso despediram-se ao se
aproximar uma das estações. Porém, ficou no ar uma
pergunta que ela lhe fez.
– Não quer conhecer sua filha?
A resposta dele veio em forma de um cartão para contato,
seguido de uma súbita mudança em sua expressão
fisionômica. Ele ficou surpreso, beijou-a no rosto e
desembarcou.
Ao se encontrarem dias depois, Afonso conheceu Larissa.
É claro que a idade dela deixou evidente que não podia ser
filha de Norma mas a semelhança com ele era tamanha que o
deixou aparvalhado; ela contou toda a história. Foi um
momento emocionante que os fizeram chorar abraçados.
Selaram ali uma união marcada pelas sábias mãos do destino.
Afonso, fugindo de dois amores, acabou por reencontrá-los
reunidos no mesmo amor de Norma, esta mulher

108
extraordinária. A filha que não assumira com Laura,
assumiria agora de forma completa e verdadeira. Impossível
fugir desta vez.

HISTÓRIA DE UMA
PROSTITUTA

E
sta é a história de uma prostituta. Que me perdoem o
início drástico mas ele é fruto de uma constatação
arbitrária, porém realista. Juliana (uso aqui um
pseudônimo), nunca aceitou calada as críticas da sociedade,
mormente dos que viviam distanciados do seu mundo
particular e que só faziam, segundo ela, seguir a moda dos
preconceitos e taxar de imoral toda e qualquer conduta de
vida inadequada a certos princípios. Não procuravam
conhecer as razões que a conduziram a esta opção de vida,
simplesmente execravam-na. Opiniões pessoais à parte,
Juliana tinha o seu mundo. Era, ou parecia ser, feliz dentro
dele. Fez da prostituição um negócio. Teve uma vida tão ou
mais atribulada do que muitos empresários de multinacionais
e ganhou tanto dinheiro que desbancou esta casta e chegou a
levantar muitos deles. Reuniu as vantagens do poder que dá o
dinheiro ao poder magnético de sua beleza física e
inteligência para conquistar o mundo e conseguiu, mas à sua
maneira.

Estamos em Copacabana, o fascínio do turista estrangeiro.


A inveja e a vontade do brasileiro pobre que sonha com uma
cobertura na Avenida Atlântica de frente para a praia mais
cobiçada do mundo, mas, também do morador angustiado
que nunca irá acostumar-se com os vícios incorrigíveis do
bairro: a poluição, a violência, o barulho infernal e, triste
realidade, a prostituição que hoje pragueja livre e
impunemente.

109
Mas voltemos no tempo, ao ano de 1965. Ali existiu, na
rua Duvivier quase esquina com Barata Ribeiro, um imenso
casarão explorado por portugueses como armazém e pensão.
Barões do café, importantes personalidades do mundo
político, social e militar freqüentavam a casa do Cerqueira,
como era conhecido o dono do negócio. Uma mescla sem fim
de anônimos e notoriedades cruzava-se no local diariamente.
Já na calçada, o chamariz era o cheiro que vinha da cozinha.
O vaivém incessante era atraído na passagem e o tempero do
macarrão, a gordura impregnada do bife acebolado ou o
aroma do café especial e dos pães feitos ali mesmo, jogavam
para dentro a freguesia indecisa que, uma vez satisfeita,
retornava sempre e o negócio ia crescendo.

Cerqueira precisou ampliar, pois, agora já hospedava. A


fachada de armazém continuou intacta. Quatro portas de
enrolar escondiam logo cedo suas treliças de aço, deixando
expostas as pencas de alho e de belos salames, os cachos de
bananas e, atrás do balcão, o sorriso do Cerqueira. Sua
fisionomia agradável, os braços cabeludos e o corpo roliço,
carente de sol na pele, atendia todos com a mesma simpatia.
Em pé, no comando da caixa registradora, fazia subir e descer
por cima dos olhos os enormes óculos de fundo de garrafa à
medida que recebia e passava o troco. Ao redor, os
funcionários, dois rapazes e uma moça, atendiam as
solicitações que vinham das mesas. Subindo-se dois lances de
escada com degraus em madeira de ébano, delicadamente
cuidada e polida, chegava-se aos aposentos. Cada pavimento
possuía dezoito dormitórios e, entre estes, duas suítes. O bom
gosto era a marca registrada de Cerqueira; cobrava bem por
seus serviços mas não negava o conforto. Podia o hóspede,
por trás do abandono e da paz de sua porta fechada, a exibir
na maçaneta a plaquetinha de quem não aceita ser
incomodado, desfrutar de um gozo inquestionável. Os quartos
eram amplos; todos com banheiro e telefone, um luxo para a
época. Os corredores, não muito compridos, eram largos o
suficiente para uma perfeita privacidade e expunham tapetes

110
longos e coloridos com adornos orientais. Vasos com plantas
ornamentavam a passagem e quadros, as paredes.

O bom gosto de tudo isso tinha um toque especial e aqui


voltamos a falar de Juliana. Há um ano e meio com o
português nesta altura da narrativa, era quem chefiava mais
duas outras arrumadeiras no controle da governança. Vejam
que tremenda responsabilidade para uma menina de dezoito
anos, apenas. Viera de São Paulo aos treze com a mãe, viúva.
Fixaram-se na casa da cunhada Almerinda, a esposa de
Cerqueira. Almerinda recém abrira uma confecção no centro
do Rio financiada por ele. Perdendo o irmão, pedira a vinda
da outra, exímia profissional de costura, para que, juntas,
unissem ao trabalho a dor recente. Já Juliana, ao contrário das
mulheres, o que gostava era de ver pessoas e trabalhar no
meio delas; assim foi aceita na pensão de Copacabana.

Trazendo o alvor das manhãs iam as horas de sono de


Juliana que já se deitava tarde ao retornar às dez e meia da
escola onde se esforçava por conseguir destacar-se na vida
realizando o seu sonho que era tornar-se uma atriz de
sucesso. Vestida na saia azul-marinho de pregas, sapatos
pretos, blusas e meias brancas, Juliana penetrava, cansada, o
interior do comércio que passou a ter também como morada
logo após a ampliação. Cerqueira, bem de vida, foi morar
com a esposa na Barra da Tijuca em nova e bela propriedade.
Juliana e a mãe também foram. Só que a menina, por força
das responsabilidades e para ganhar tempo, precisou residir
no estabelecimento de segunda à sexta-feira; aos sábados ia
ela ao merecido descanso.

Era comum ainda encontrar-se, a essas horas, um ou outro


freguês pelas mesas, principalmente às sextas, um dia difícil
para a menina. Exausta de sono e de cansaço, passava
indiferente ante os olhares dos que não a conheciam. Já
chamava atenção pelas formas promissoras da futura mulher
que despontava. Desfilando os seus dotes, os braços morenos
das praias domingueiras envolvendo o caderno, junto aos

111
seios torneados, passava rente ao balcão, cumprimentava
algumas pessoas e ganhava os degraus de ébano, subindo
para o quarto. Ali, tomava o banho, metia-se no robe cor de
rosa que adorava e caía na cama. Para dormir mais rápido,
quando não ligava a TV, pegava um romance, alguma revista
de moda ou reportagens com seus artistas favoritos e sonhava
acordada, antes de sonhar dormindo.

No meio desta rotina, às vezes monótona, outras vezes,


feliz, Juliana ia plantando suas esperanças, as quais regava
com economias muito sabiamente resguardadas. Os
momentos de lazer eram raros; os namoros quase inexistiam.
Conhecia rapazes interessantes nas areias que freqüentava,
mas não passava disso. Ela não tinha o tempo necessário para
lhes dar a atenção que mereciam. Por outro lado, o que eles
queriam sem merecer – por que não precisava de tempo nem
de atenção – ela não lhes daria.

E assim foi vivendo até completar dezenove anos. A


prosperidade de Cerqueira devia-se, em alto grau, à mão
mágica de Juliana. A parte da hotelaria ficou a seu cargo. Os
hóspedes entravam e o sorriso que traziam ao sair denunciava
a satisfação e o primoroso atendimento. O português, se rico
já era, mais rico ia ficando, pagando à sua mão direita um
salário de administradora executiva. Ela, porém, pouco
gastava; muito menos que o essencial que, de bom grado, era-
lhe oferecido. Porém um fato, simples e corriqueiro na vida
de qualquer um, alterou o bom humor desta jovem e pesou o
suficiente para desviar o rumo de sua vida; impossível
ignorar as conseqüências que defluiram de tais alterações.

Cerqueira adoeceu. O excesso de trabalho e obrigações


trouxera-lhe uma úlcera que o obrigou a internar-se para
tratamento; a mulher teve que substituí-lo na direção da casa
por um mês e alguns dias, suficientes para desestruturar um
relacionamento. Este, se era bom no geral, entre ela e Juliana
apresentava farpas que cada vez mais se afinavam; tudo pela
inveja e ciúme. Almerinda não era uma mulher feia mas,

112
ciosa do marido, causava alguma intranqüilidade, que chegou
ao ápice com a ida da jovem para a pensão. Inúmeras foram
às vezes em que Cerqueira estacionou o seu Alfa Romeo cor
de vinho na garagem do prédio em Ipanema onde moravam,
trazendo Juliana para casa, após mais um fatigante dia de
trabalho. Almerinda nunca se conformou, sequer procurava
entender as explicações que ele lhe dava. O curto tempo na
pensão foi suficiente para infernizar a vida de Juliana; tudo à
custa do ciúme doentio e equivocado. Loira, alta, chegando
aos cinqüenta mas mantendo ainda os dotes matreiros da
mulher portuguesa, só fazia invejar desnecessariamente a
beleza jovial da outra e os suspiros da freguesia que pendiam
sobre ela.

Nesta época, entrou a freqüentar a pensão o Dr. Nonato


Flores, conhecido magistrado da Comarca Judicial de Angra
dos Reis, por quem Juliana passou a nutrir certa admiração e
respeito que foi transformando-se em repúdio e aversão com
o passar do tempo. O homem era rico e influente e usou de
sagacidade para envolver a moça. Aparecia sempre de terno,
no princípio às segundas-feiras pela manhã, aumentando
depois esta freqüência para duas e até três vezes por semana.
Tinha trinta e oito anos, o rosto arredondado, quase gordo e
uma calva que brilhava intensamente, identificando-o, de
imediato, ao por-se para fora do Cadillac marrom que o
conduzia. Gastava bem, não raro trazia amigos e quase
sempre pagava a conta dos chopes, dos queijos, galetos ou da
feijoada regada aos vinhos que consumiam. Ao ver e
conhecer Juliana, encheu-se de amores e, sejamos claros, de
desejos por ela. Sua reputação, entretanto, era um bem que ao
menos aparentemente, por temor ou capricho, fazia questão
de preservar.

Então criou estratégias para aproximar-se; alugou, no


mesmo andar de apartamentos e bem próximo ao dela, uma
suíte onde ficava, geralmente às segundas-feiras, até um
pouco depois do almoço. Chegava sempre aos domingos, por
volta das sete da noite, entregava as chaves a um funcionário

113
da casa que conduzia até a garagem o luxuoso automóvel e
subia, carregando uma maleta de couro marrom com
fechadura. Dentro, segundo ele, laudos e petições que urgiam
concentração e exame. Juliana era a primeira que o atendia
pela manhã. Por volta das oito, ao ver a maçaneta livre da
plaquetinha, pedia licença, cumprimentava-o e penetrava no
quarto para a habitual arrumação. Invariavelmente sentado a
uma mesa, ainda de pijama, tinha a atenção no estudo do seu
pesado código ou no despacho de documentos. Era todo
sorriso e gentileza para com a jovem. Dava espaço na mesa
para que ela depositasse a bandeja aluminada; gostava de ser
servido e cortejar em troca.

– Leite?

– Por favor.

Juliana, inclinando-se um pouco para pegar no carrinho o


bule, deixava pender algumas mechas do seu comprido
cabelo castanho.

– Importa-se se perguntar que perfume está usando? –


ousava ele.

– É claro que não; uso água de Jasmim, costumo colocar


após o banho.

– Aposto que não é o mesmo da semana passada.

– Ah! Sim, tem razão. Passei leite de rosas por uns dias.
Mas prefiro este; acho que combina mais comigo.

– Tem a minha opinião, é simplesmente delicioso!


Continue usando.

Juliana agradecia, expondo ao Juiz, conquistador, a alvura


do seu sorriso simpático, porém, não mais inocente a altura
dos admiráveis dezenove anos de idade. Em seu traje

114
uniforme, vestido amarelo, avental e gorro branco enfeitado
com flores, passava a arrumação. Trocava o lençol, as fronhas
e aspirava o pó do tapete.

Ao contrário do que fazia Cerqueira que deixava o cargo


de sua confiança de patrão inteligente que era a conduta de
seus funcionários – que por isso se tornavam eficientes e
prestativos – Almerinda causava-lhes constrangimento e
apatia. Rondava com freqüência as dependências da casa
como a querer flagrar o que nunca existiu. Demais, dirigia-se
com imponência, não só aos trabalhadores como aos
hóspedes e fregueses. Não possuía, em definitivo, talento
para a lida popular.

No caso de Juliana, multiplica-se esta fama de Almerinda


pelo ciúme que tinha dela e chegar-se-á ao produto infeliz e
traumático. Já ao cabo da primeira semana de permanência na
pensão dava, a megera, apocalípticos sinais de que sua
intenção para com a outra era das piores e, com efeito, o pior
aconteceu.

O Juiz Nonato Flores, que não perdia uma oportunidade


para exercitar os predicados de bom sedutor, acabou por
envolver e conquistar Almerinda. Por conta de um domingo
em que ela trabalhou até mais tarde, os dois se conheceram e
se engraçaram. Dr. Nonato, então, só voltava para o hotel
bem depois das dez. É evidente, pois levava a portuguesa até
em casa ou bem próximo; mas nunca sem antes passear por
outros lugares primeiro. O coitado do Cerqueira,
convalescente e costurado, não podia imaginar as travessuras
da esposa. Numa dessas comentaram da menina e o Juiz; sem
pudor nem receio, confessou sua tara. A mulher, experiente,
que só queria o que conseguiu: uma aventura, viu nisso uma
chance bem vinda de livrar-se da sobrinha; então armou o
conluio.

O homem agora acordava tarde às segundas-feiras. Pedia


por telefone o café, o arranjo e a limpeza. Sempre cortês e

115
agora mais galanteador do que antes, recebia no quarto
Juliana que, por ordens restritas de Almerinda, tinha que
largar outros afazeres e atender, somente ela, ao doutor.
Então ocorreu o seguinte: Dr. Flores convidou-a a assistirem
juntos uma peça no teatro Vila Lobos; no elenco, entre
outros, Raul Cortês, seu grande ídolo. A despeito da oferta e
da insistência, ela não aceitou. Um acompanhante abastado,
um almoço fino, em restaurante de classe, seguido da visão
mágica da representação teatral, seu sonho maior, ela disse
não, tendo vários motivos. Um destes e, obviamente, não
revelado, foi a feminina percepção das verdadeiras intenções
do Juiz. Porém, Juliana, inteligente que era, acabou
compreendendo que nada do que fugisse a sua vontade e
desejo poderia acontecer; entendeu que ele, na qualidade de
homem culto, saberia respeitá-la. Sendo assim e, impondo
uma condição, decidiu finalmente aceitar o convite. Certa
manhã, após o costumeiro desfilar de elogios do magistrado
para com ela, que acabara de servir-lhe o café, este lhe
perguntou.

– E então, quer dizer que vai dispensar a apresentação do


seu ídolo? A peça encerra-se esta semana. Eles vão para São
Paulo e em seguida, correm o país. Se fosse você não
perderia esta última chance de vê-los. – Ele se voltava para
ela da mesa onde escrevia. Com os óculos numa das mãos e
uma caneta dourada na outra, enquanto não obtinha uma
resposta, apreciava os belos contornos das pernas morenas de
Juliana que se mostravam, dos joelhos, onde batia o vestido
amarelo, para baixo.

Ela terminara de arrumar a cama e trocava agora uma


fronha. – vou aceitar o seu convite se me prometer que vamos
e voltamos apenas como bons amigos e nada mais do que isso
– recolocou no lugar o travesseiro e abaixou-se para pegar o
aspirador. O homem emitiu um sorriso brejeiro que acentuou
o brilho de sua careca.

116
– Prometo honrá-la e respeitá-la para todo o sempre,
madame – brincou, ironizando e beijando os dedos em cruz.

Juliana saiu, deixando a porta aberta e, quando


retornou para buscar o carrinho, ainda encontrou-o sorrindo
consigo mesmo, abobalhado.

Saíram no domingo à tarde. Juliana deixou a residência da


Barra por volta das cinco para passear como costumava fazer;
tomou um ônibus e foi encontrar o Juiz em um ponto pré-
combinado da Avenida das Américas. De calça jeans e um
tênis azul da moda, deixava de fora o umbigo por causa da
frente única lilás presa, às costas, por uma enlaçada.
Chegando ao local, o homem já esperava, todo prosa dentro
do seu elegante conjunto de seda esporte e sapatos mocassim;
um rapagão. Passaram pelo La Violetera onde comeram
frutos do mar; Ele vinho, ela coca-cola, ele chocolate, ela
sorvete e foram para o Vila Lobos. Assistiram à peça e se
encantaram. Juliana muito mais. Agradeceu-lhe pelo convite
e, principalmente, por seu comportamento exemplar.

Com a confiança em alta, Dr. Nonato conseguiu várias


outras saídas e com início de namoro. A menina já não saía
sozinha e os rapazes das praias, inexperientes, foram ficando
de lado. Só que o homem, nas noites de domingo, não
dispensava o sexo, e este, praticava-o nos encontros furtivos,
cheios de amor da fogosa Almerinda. Esta, quando soube da
queda que ele tinha pela carne fresca e salutar de Juliana, não
sossegou enquanto não viu o circo caído e pegando fogo. Os
dois pombinhos já se cumprimentavam com amassos e beijos
prolongados, mas cheios da cautela e do medo da jovem de
que alguém os flagrassem. Pois, foi exatamente o que se deu.
Almerinda, em busca de um momento como este, chegou
numa segunda-feira, mais cedo que o normal, e procurou por
Juliana – Deve estar na copa – disse um funcionário. Ela,
imediatamente deixou o balcão, passou rente às mesas onde
fregueses bebericavam em xícaras e outros fumavam
conversando ou liam jornal e desapareceu por uma porta atrás

117
da escada. Procurou na cozinha e na copa mas não a viu. Foi
direto onde queria encontrá-la.

Retornou e subiu os degraus de ébano. Quando sumiu da


vista dos que estavam embaixo, livrou-se da sandália branca
de tiras e ganhou o segundo lance. Um casal de velhos que
vinha descendo olhou meio que estranho para ela que
disfarçou no seu sotaque galego.

– Ora pois, que me doem tanto os pés – disse sorrindo sem


graça. Daí, continuou, recolocou o calçado ao chegar no
corredor e andou sorrateiramente sobre o tapete. A suíte do
magistrado ficava logo à frente, ao final de um grande e belo
quadro retratando o mar e antigas caravelas de Portugal. A
mulher aproximou-se, já tendo em uma das mãos um molho
de chaves mestras. Se estivessem trancados, teria que ser
rápida em sua ação. Girou com energia a maçaneta. A porta,
apenas encostada, abriu fácil e totalmente.

Os dois trocavam beijos e carícias. Ele abraçava Juliana,


envolvendo-a por baixo dos seus cabelos compridos,
enquanto uma das mãos, a esquerda, acariciava-lhe a face
contraída pelo beijo na boca, quente e apaixonado. O
sobressalto de Juliana vai além do que podem descrever
meras palavras, mas vamos tentar. Enquanto beijada,
conservava em uma das mãos uma xícara branca de fina
porcelana que havia recolhido vazia de cima da mesa para por
no carrinho. Terminava a aspiração do aposento e o juiz
tomava lentamente os últimos goles do café e remexia as
páginas de um livro. Entre trocas de afeto e palavras
elogiosas, ele levantou-se, envolvendo-a no beijo, sem dar-
lhe tempo de guardar a xícara que, por isso, ficou pendurada
e presa em seu dedo às costas do sedutor. Com o surgimento
estrepitoso e inesperado da outra, a mão, sem se dar conta do
que tinha, arrojou-se impetuosa, levando à parede a louça que
voou em pedaços. Um dos cacos foi bater na porta ao lado da
mulher que irrompia, por pouco não a acertando. Juliana
enrubesceu-se envergonhada. A loira, juntou a confirmação

118
de suas suspeitas à constatação do prejuízo material que
acabara de presenciar e cresceu em ódio e irritação.

O resultado de tudo isso não poderia ter sido outro, a


julgar pela cavilosa urdidura. Dr. Nonato, ciente da armação,
ainda tentou ajeitar as coisas pois não queria perder suas
presas amorosas; além do que, considerava-se amado por
Juliana e muito próximo do que queria. Levá-la para cama era
uma questão de dias. Frustrado e aborrecido com a decisão
radical da mulher, não quis mais dela saber, da mesma forma
que a moça, magoada, deixou-o também.

Juliana perdeu o emprego. Cerqueira, entre indispor-se


com a mulher e despedir sua gerente, escolheu esta segunda
opção. A mãe, com a expulsão da menina, não quis continuar,
nem na casa, nem na confecção e retornou para São Paulo. A
filha ficou por lá umas semanas mas não se adaptou. Os
conhecimentos que deixara na cidade maravilhosa facilitar-
lhe-iam outro emprego. Era começar vida nova.

As horas em que passou nos bancos e nos guichês da


rodoviária de Santos, ora pensativa, ora amofinada com o
incessante movimento da estação, serviram-lhe de preparo
mental para uma nova realidade. Ainda não decidira de todo
o que fazer, em que bairro morar, em que guarda-roupas
arrumar os vestidos, as calças, as blusas, os sapatos, enfim
todas as peças do vestuário que mal cabiam nas duas malas
pesadas que portava. Chegando ao rio, ainda no terminal,
almoçou e entrou em um táxi; foi para Ipanema, conhecia
várias pessoas naquele bairro. Em uma das ruas que
desembocam na praia, alugou um quarto de hotel e gastou a
tarde em bancos e ao anoitecer foi distrair-se em um cinema.
Retornando ao hotel, sentou-se ao telefone.

Dos amigos que possuía e das pessoas que conhecia


limitou-se a contatar apenas aqueles que lhe trouxessem a
certeza de uma nova colocação profissional. Dispensou
antigos namorados. Precisava agora, mais do que nunca,

119
preservar sua virgindade de investidas infrutíferas e
aventureiras. Após dias de contatos com vários segmentos
dentro e fora de sua área de atuação, vários currículos
preenchidos e esquecidos, entrevistas fracassadas, ela
encontrou uma amiga a quem chefiara na pensão.
Conversaram rapidamente, matando as saudades e marcaram
um encontro para o domingo pela manhã. Carla, a amiga, foi
buscá-la no hotel com o namorado. Como o dia estava
ensolarado e fazia muito calor, os dois surpreenderam-na
chegando em trajes de banho, praticamente tirando-a da cama
antes das oito. Enquanto o rapaz estacionava o Dodge
vermelho e conversível, Carla comunicava-se da portaria com
a outra.

– Estamos esperando, quero que conheça o Augusto. A


propósito, traga roupa de banho, o dia está lindo. – Passados
quinze minutos, desce Juliana em saída de praia por cima do
maiô de duas cores, preto nas costas e alaranjado na parte da
frente. O namorado de Carla, já no hall, foi-lhe apresentado,
beijou-a no rosto e tirou as chaves do bolso de sua bermuda
branca, conduzindo-as para o automóvel. Pegaram a Vieira
Souto e, vinte minutos depois, conversavam na areia sobre os
mais diversos assuntos. Carla, em seu traje de banho cinza e
óculos de sol na cabeça, sentia-se contente com a companhia
da amiga de quem muito gostava e dava sinais, pelo
entusiasmo da prosa, de que dirigia sua atenção mais para ela
que ao próprio namorado. Ele até que era simpático. Ao fim
de um tempo, pediu licença as duas e cumprimentou uns
companheiros que passavam, chamando-o para uma partida
de vôlei. Augusto desfez-se da bermuda e da camiseta,
expondo um corpo atlético e bronzeado, e afastou-se.

As duas aproveitaram a deixa para encetar uma


conversação mais adequada às mulheres quando se vêem a
sós. Carla sinalizou para um vendedor ambulante que, ao
aproximar-se, tirou de sua caixa azulada de isopor dois
picolés, mas teve que recolher um deles. – Obrigada, vou

120
preferir um refrigerante ou água para matar a sede – disse
Juliana. A outra pagou, dispensando o rapaz.

– Sabe das últimas? – perguntou, desenrolando o papel do


picolé.

– Não, enquanto você não me contar; estou curiosa. –


Juliana tirou de sua sacola jeans uma toalha de banho e
estendeu-a na areia, deitando-se com os joelhos dobrados e as
mãos sobre o colo.

– A mulher do galego anda traindo-o às escondidas e o


homem está uma fera; desconfia de tudo e de todos. – Juliana
ouvia calada e pensativa enquanto a amiga falava de algumas
mudanças ocorridas no hotel com a sua saída. – Afora os
diretamente envolvidos, ninguém mais ficou sabendo dos
reais motivos da demissão. – Carla prosseguia falando, até
que mencionou o Juiz.

– Ele ainda vai lá? – Juliana perguntou curiosa. Então, não


tendo nada a perder e até como desabafo, contou o que
aconteceu naquela manhã e o que levou àquele final. Em
contrapartida, Carla também contou o que sabia.

– Pois vou dizer a você. – falou, esticando o braço para


alcançar uma lixeira amarela onde jogou o palito. – O amante
da madame portuguesa não é outro senão o tal Juiz. Já andava
desconfiada quando peguei os dois se beijando à entrada da
suíte. Por sorte não me viram; caso contrário seria hoje mais
uma desempregada. Como você foi cair numa dessas, meu
amor? É certo que o homem é rico e bonitão, mas para falar a
verdade, eu nunca fui com a cara dele – completou, lavando
as mãos meladas do sorvete com a água de um recipiente de
vidro. Um senhor escuro, todo de branco e com um boné
amarelo, passou oferecendo água gelada. Juliana sentou-se,
comprou uma garrafa, abriu-a e bebeu, quase que de uma só
vez, o líquido até a metade. Satisfeita, falou:

121
– Quanto ao romance dos dois, não estou admirada. A sua
revelação só me trouxe a certeza que eu não tinha. Mas ele
sempre me tratou muito bem, talvez por me saber virgem.
Contudo, acho que escapei por pouco.

Foi um domingo alegre e descontraído aquele, que passou


tão rápido quanto os últimos acontecimentos na vida de
Juliana. No dia seguinte, a realidade; precisava arranjar
trabalho o quanto antes. Tentou os classificados, novos
currículos e novas entrevistas. Uma noite, no hotel, ao sair do
banho, toca o telefone. A operadora, ao ser autorizada,
transferiu a ligação.

– O homem perguntou por você – disse Carla do outro


lado da linha. – Juliana, segurando a toalha enrolada ao corpo
molhado com uma das mãos respondeu: – Diga que o mandei
para o inferno se perguntar de novo. – dizendo isso, sentou-se
à beira da cama.

– Falei que estava desempregada; deixou-me um cartão.

– Não quero mais nada com este homem, ele prejudicou


minha carreira.
– Parece que gosta de você, está caidinho.

– Eu sei muito bem o que ele quer.

– Ouça, querida – disse Carla com firmeza na voz – você


já não é nenhuma criança. Use a cabeça e reverta a situação.
Tire dele o que precisa e pronto.

Despediram-se. A menina pôs-se a pensar ainda sentada,


com o fone sobre as pernas. Tinha a chance de um novo
emprego nas mãos. Começar de onde parou ou, quem sabe,
iniciar nova carreira. Sentiu as dificuldades das três semanas
ali no Rio, onde só saía dinheiro e nenhum entrava. Não
podia continuar desse jeito. Pensou nos riscos, analisou as
perdas. Estas falaram mais alto. Levantou-se e desfez-se da

122
toalha; abriu a porta do guarda-roupas, olhando-se no
espelho. Era linda. Orgulhava-se de sua beleza física ao
mirar-se de frente e de lado. Algumas gotas da água do
banho, relutantes em se evaporar, ainda ponteavam-lhe os
seios, enquanto outras, desfeitas pelo ar frio do ventilador
girando no teto, escorriam-lhe corpo abaixo e, tristes,
desfaziam-se. Virou o rosto e olhou, pendurado em um
cabide, o seu uniforme colegial; quase dois meses que o não
vestia. Precisava retomar às aulas para não perder o ano e
mostrar a todos como está agora ainda mais bela naquela saia
azul marinho e naquela blusa e meias brancas.

Resolveu aceitar a oferta. Ligou para Carla ao fim de três


dias de indecisão e tormento. Convidou a amiga para jantar
no restaurante do hotel e pegou, finalmente, o cartão. Ligou.
O Juiz tinha um parceiro em outra atividade, totalmente
diferente daquela que exercia. Conseguira, para o cidadão,
um ganho de causa julgada como perdida e ele, como
agradecimento, ofereceu ao magistrado uma sociedade em
uma das três casas de show que possuía em Angra dos Reis.
Dr. Nonato mencionara isso bastante vagamente a Juliana que
associou a lembrança ao conteúdo do cartão. Sendo assim, ela
viajou e foi entrevistar-se com Romualdo, o sócio, que,
respeitando a indicação, empregou-a imediatamente.
Decorridos dois meses, já em nova vida, trabalhando e
estudando, Juliana sentia-se bem e até surpresa com a
ausência do outro. Então surgiu nova proposta: de garçonete
faria um teste para se apresentar cantando à noite em outra
casa, a que eles possuíam em comum, com o dobro do
salário.

Vieram os ensaios, o teste final e, em seguida, a


aprovação. Já em nova atividade, uma visita, que passou a ser
constante, aproximava-se cada vez mais de lá. Reatou o
namoro. Um processo no Fórum de Angra, envolvendo o Juiz
em escandaloso caso de assédio sexual, roubou-lhe a
magistratura e pôs fim a sua carreira. Agora a casa de shows
passa a ser sua ocupação primordial. Juliana tornou-se sua

123
mulher. Já aos vinte e um anos, morava com ele,
satisfazendo-lhe a paixão e enchendo-lhe os bolsos como a
principal atração das noites, repletas de outros apaixonados e
endeusados por sua voz e pelo seu carisma. Já não faltavam,
agora, propostas; muitas de virar a cabeça, que a deixavam na
corda bamba em virtude do tipo de convivência que, após o
segundo ano de vida em comum, passou a ter com o ex-Juiz.

Embora apresentando um padrão de vida equivalente ao


que desfrutava à época de sua desditosa carreira, devia sofrer
de frustração, posto que não demonstrava muito gosto em
administrar um comércio, ainda que com tato e eficiência.
Mudara a rotina de horários, dormia pouco e, com a desculpa
de ter que trabalhar, colocava a mulher em um táxi e a
mandava para casa. Fazia isso todas as noites em que ela não
cantava, a fim de ficar com outras mulheres. Bebia mais do
que o normal e, para completar a infelicidade de Juliana,
passou também a espancá-la. Muitas vezes percebia-se na
jovem cantora, juntas a sua tristeza e desapontamento, marcas
de violência. Ela suportou o quanto pode até ser vencida por
uma das pressões que vinham de fora.

No comprido palco, de frente para um bonito salão onde


cabiam umas quarenta mesas com cadeiras em torno de uma
pista de dança, apresentava-se Juliana. Com freqüência,
embalada pela emoção da melodia que interpretava e para,
principalmente, furtar-se às lágrimas que ameaçavam cair,
descia os degraus, juntando-se aos ouvintes que adoravam
estes momentos. Nonato (agora já não é mais doutor),
raramente no salão durante os espetáculos, ocupava-se do
controle geral e do caixa. Com freqüência, terminava ela, por
ali, entre a platéia, um número e passava o microfone ao
apresentador da noite. Este anunciava um intervalo ou outra
atração que, surgindo de trás das cortinas azuis, arrancava
novos aplausos. Juliana então escolhia uma mesa entre as que
lhe eram oferecidas e juntava-se aos ocupantes. Em uma
dessas noites, sua dor parecia em dobro. Não conseguira
segurar as lágrimas que, ainda no início da canção

124
surpreenderam-na. Já na mesa, um hematoma na região do
queixo, abaixo do lábio no lado esquerdo, estarreceu os
companheiros; um deles comentou: – Se eu fosse você,
largava esse sujeito agora mesmo.

– Como? Não tenho para onde ir nem tenho mais um


tostão. Dependo totalmente dele.

Exatamente. Juliana estava sendo explorada pelo homem


que lhe prometera o mundo em troca de uma conquista.
Conquistara-lhe o corpo esquecendo o coração. Na verdade
poderia largar tudo e voltar para São Paulo e para a mãe. Mas
o Rio de Janeiro envolveu-a de igual forma. Não tinha mais
nada de seu, nem o amor dos homens. Em todas as cantadas
que recebia, e eram muitas, só ficava o interesse no que ela
possuía de mais valioso: o corpo. Ao menos é o que se lhe
via, pois impossível era penetrar-lhe os pensamentos, tão
conturbados de então, e as intenções, nem se fala. Começou a
ponderar as propostas que lhe faziam, pois as roupas e as
jóias que sempre gostou de usar, os lugares que sempre
admirou ao lado do Nonato de antes, enfim, a liberdade que
tanto amava e preservava, tudo ficara para trás, num passado
do qual ainda sentia o cheiro mas que rapidamente lhe fugia
das mãos. Passou a traí-lo; mais pelas recompensas materiais
que vinham de todas as formas. Presentes que ela vendia por
não poder usá-los e carinhos que aceitava mas não conseguia
retribuir. Tinha nojo dos homens.

Dali em diante via-se uma Juliana um pouco mais senhora


de si, reagindo a seu modo à dominação do outro. Os efeitos
especiais da enorme bola de luzes que, do alto teto do salão,
espargia as suas cores sobre as mesas e sobre a pista de
dança, enquanto escondiam alguns rostos, traziam outros à
claridade. E, nesse vaivém de luz e escuridão, destacavam-se
os amantes de Juliana daqueles que não a queriam ou que, ao
menos até ali, nunca a haviam possuído. Nonato, de frustrado
e violento, passou a crápula e sem escrúpulos. A princípio,
fingiu que nada sabia. Como isso se tornou impossível, tirou-

125
a de casa e voltou a dar-lhe um salário menor para cantar,
posto que era a prata da casa; tudo com uma condição.
Deveria morar no emprego e tratar muitíssimo bem a
clientela. Pronto, estava armado o seu plano.

A clientela, que já era requintada, passou a ser escolhida.


Juliana, quando simpatizava com um tipo interessante, saía
com ele. Gostou de um e namorou por algumas semanas.
Quando se sentiu apaixonada, perdeu-o; sumiu para nunca
mais aparecer. Depois gostou de outro, e de outro. Mas o
resultado era o mesmo, desapareciam de sua vista. A
insegurança tomou conta de si. Tinha que se libertar daquele
homem diabólico. Começou a juntar o pouco dinheiro que
ganhava. O cabedal de propostas prosseguia e ela passou a ter
no sexo a fuga que não era capaz de empreender. Aquele
mundo tornou-se irresistível. Já não vivia sem o glamour das
noites em que era rainha, no palco, nas mesas e, de quando
em quando, em seu quarto particular. Ao precisar de dinheiro
para a liberdade definitiva com a qual ainda sonhava, passou
a aceitá-lo também, em troca de suas noites de amor e (por
que não?) dividi-lo com Nonato que já o recebia integral dos
clientes que, sem ela saber, lhe arranjava.

Assim viveu por mais de dez anos. A menina inocente de


Copacabana ficara no passado. A cada ano o contato com a
dura opção de vida forjava-lhe uma nova têmpera que, por
sua vez, adaptava-a ao ambiente em que passou a conviver.
Seu mundo transformou-se por completo. As companhias
femininas eram loiras, morenas e mulatas que dividiam as
atenções dos convidados; tudo em alto estilo. Tudo muito
discreto. O ambiente em nada se alterou. As mesmas mesas, o
mesmo salão iluminado pelos mesmos efeitos especiais e o
mesmo palco. Porches, Alfas Romeo, Mercedes, Bugres e
Limusines enchiam as calçadas e o porteiro, forte e
engravatado, recebia na entrada, embaixo do luminoso neon,
os doutores, os políticos, os militares, os empresários e outras
castas em busca de conforto e diversão. Muitos levavam as

126
esposas, cientes ou não de onde entravam, tanto uns quanto
outros, porquanto boa música e boa comida não faltavam e o
proibido era feito fora dali.

A influência de Juliana era o respeito a que se impunha e


passava para as outras garotas que, como ela, sonhavam
algum dia não ter que vender o próprio corpo. Ela era a chefe;
dizia com quem poderiam sair e sob que condições.
Enfrentou desafios, superou-os um a um. Dominou homens
dos quais conheceu as fraquezas. Um deles, o próprio Nonato
Flores, que chorou a seus pés por uma reconciliação que
sabia impossível; ele não podia mais com ela.

A Juliana que vamos encontrar no final da década de


oitenta, à porta de completar quarenta anos de idade, é uma
mulher de influência, com dinheiro e toda a beleza que trazia
aos vinte. Aos vinte e sete, livrara-se de Nonato Flores mas
não da casa de shows, que agora lhe pertencia. Comprando a
parte dele, transformou tudo e, com força de vontade, deixou
de prostituir-se, pois não mais disso necessitava. Conhecera
um novo amor que soube compreendê-la e apoiar. Juntos,
fizeram do local uma requintada churrascaria que, além da
boa comida, ofereciam aos amantes da boa música o encanto
da voz de uma Juliana feliz e bem acompanhada.

– Agora, senhores – falou a cantora, tendo sobre si a


atenção e o olhar dos presentes e a luz de um refletor
destacando no palco sua presença confiante dentro de lindo
vestido azul de noite – quero apresentar uma estreante; espero
que apreciem sua voz e o seu talento aos quatorze anos.

Surge de trás das cortinas Julia Lobato. O conjunto dá a


introdução de yesterday e ela entra com perfeição na melodia,
dando uma piscadela para a mãe Juliana que acabara de
descer os degraus e sentar-se a uma mesa para ver e aplaudir
a futura artista. Filho de peixe…

127
Solidão

A
solidão continua sendo um mistério indecifrável para a
nossa compreensão. Não saberíamos explicar, ao certo,
os efeitos deste sentimento para a alma humana, pois sua
interpretação é e sempre será dúbia. Chega a ser uma questão
de tendência que, a determinada altura, torna-se irreprimível e
incontrolável. Sua satisfação pode trazer alegria ou tédio,
dependendo de quem a experimenta.
Devo dizer que no meu caso não foi nem uma coisa nem
outra, mas uma necessidade, a qual fui forçado e que me fez
conviver melhor comigo e com minhas fraquezas. Vivi uma
experiência inenarrável por simples meios literários. Mas
como são os únicos de que disponho no momento, não me
resta outra alternativa senão utilizar-me deles. Tentarei
exprimir os fatos tais como me ocorreram, deixando para os
meus leitores a liberdade da interpretação. Quanto a provas,
não as tenho pela simples razão da impossibilidade e da
inconveniência, pois ter intactos os meus sentidos e minha
mão para mover esta pena já me traz todo um prazer e bem
estar só comparáveis àqueles anos inesquecíveis. E, o mais
importante, estou vivo para contar a aventura de que tomei
parte. Vamos a ela.
Vivia eu confortavelmente em bela herdade à beira de
imenso lago que mandara construir ao natural após o décimo
ano da minha permanência ali. A mansão custara-me uma
fortuna, mas, que para o padrão de vida que possuía na época,
muito pouco afetara minhas abastadas finanças. A construção
do lago viera de uma decisão repentina, levando-me outra
dinheirama. Contudo, encheu-me de felicidade. Escrever fora
sempre um de meus passatempos prediletos, o qual
transformou-se em profissão rendosa e gratificante após a
prematura aposentadoria que passei a ter direito aos quarenta
e três anos. Optei por ficar solteiro e, todas as manhãs, sem o
burburinho de crianças ou as interrupções interpelantes de
uma esposa, já estava eu em meu recôndito espaço,
desfrutando o prazer de minha atividade literária na varanda

128
em frente ao lago. A paisagem era-me graciosa e
aconchegante. Tal estado de relaxamento facilitava
sobremaneira a chegada de idéias de que precisava para as
minhas histórias e crônicas. A fim de não me afastar desta
onda benfazeja, cercava-me de todos os indispensáveis
acessórios. Sobre a mesa grande e quadrada de tampo de
vidro, trazia o telefone, cujo fio preto, já quase esticado,
vinha da sala passando pela janela aberta ao meu lado.
Alguns dicionários, o inseparável cachimbo dourado, a caixa
de fósforos, o pacote de fumo, o cinzeiro, eram meus
companheiros de todos os dias. Até mesmo um pequeno sino
vermelho estava ali para os casos em que quisesse um suco
de laranja com gelo ou, nos dias frios, um chá bem quente a
expelir fumaça. Era só balançá-lo e Thomas, o criado, num
rufo, aparecia em seu traje branco de cozinha e avental.
As samambaias enfolhadas que pendiam dos vasos
ensombrecidos quase acima de minha cabeça protegiam-me
do sol muito forte que às vezes incidia no local. Por baixo
delas minha visão se estendia para longe e eu apreciava o
lago. As águas calmas eram um convite à inspiração. Da
varanda até ele eram não mais que vinte metros num plano
levemente inclinado. Descia-se três degraus de mármore para
o chão de grama que avançava até um jardim de espécies
variadas e baixas para não encobrir a visão de fundo.
Contornando-se este jardim tinha-se o lago em todo o seu
esplendor. Não poupei recursos para aproximar minha obra o
mais possível do natural, fauna e flora. Plantei caniços que
ornamentavam a orla de um tom especial. As Sagitárias, com
enormes flores brancas e róseas, apontavam para o céu
exóticas folhas aéreas com a imponência de um guerreiro a
exibir sua lança. Íris vivazes e vigorosas davam um
complemento perfeito ao todo. Em uma zona mais profunda
fiz conviver espécies enraizadas de folhas flutuantes que,
quando floresciam, surgiam fora d’água, belas e copiosas.
Quanto à fauna, apresentava uma diversidade que lhe era
característica, predominando várias espécies de média
profundidade e temperatura.

129
Sentia-me assim em meu próprio paraíso particular. Os
diálogos reais que me faltavam fazia-os com os personagens
das ficções que escrevia. Envolvia-me com eles de tal forma
que me pegava inúmeras vezes falando comigo mesmo. Ao
dormir, com um provável desfecho para determinada história
não poucas foram às vezes em que, ao despertar pela manhã,
tinha-a acabada, na ponta da língua e na memória, restando-
me não mais do que sentar e transcrevê-la para o papel,
impregnando-a do meu estilo próprio. Não é demais ressaltar
o prazer que isso me causava, pois, ao retornar para a cama à
noite e já livre daquele texto e dos personagens, não raro
recebia-os em meus sonhos. Via-os sorrindo alacremente,
heróis e vilões, unidos e confraternizando-se. Na ponta desse
sonho eu aparecia e recebia os seus agradecimentos. Dias se
passavam nos quais todos os meus sentidos, como que
aprisionados a este estado de graça, a este gozo íntimo e
extemporâneo, já me impedia a concentração para uma nova
narrativa. Foi quando, em certa noite, um fato me
surpreendeu.
Era inverno e a temperatura muito baixa que vinha
fazendo nos últimos dias trouxera-me para dentro de casa,
distanciando-me do hábito salutar de unir minha literatura à
apreciação do paraíso particular que grandes inspirações me
proporcionava. Munido dos meus instrumentos habituais,
instalei-me na biblioteca contígua à sala de estar. Minha
posição dava agora de costas para uma janela que costumava
deixar entreaberta e que por hora vinha fechada por causa do
frio. Estive propenso, mais de uma vez, a alterar a posição
dos móveis, que não eram muitos, a fim de poder ficar de
frente para ela, mas confesso que a preguiça e a indecisão
foram mais fortes. Outrossim, não via nisso tanta
necessidade. Utilizava aquele canto mais para a leitura e à
noite; geralmente fazia-o sentado a uma pequena poltrona
encostada à parede atrás de mim. A visão de um céu estrelado
já me era suficiente e benéfica. Quando não lia, passava para
o computador os textos manuscritos e procedia a revisão.
Pois bem, num desses dias em que a inspiração não me
vinha, devido às razões já mencionadas, estive vagueando ao

130
redor do lago, contemplando a natureza. Minhas espécies
flutuantes estavam no auge da sua floração e transmitiam-me
inefável bem estar. O conjunto dessas plantas formava
estranha figura geométrica. Uma espécie de paralelogramo
cruzado, o qual, influenciado por um incomum movimento
das águas, partia-se em duas metades que por sua vez
resultavam em dois triângulos eqüiláteros que, após alguns
instantes, voltavam a unir-se, dando forma à figura primitiva.
Olhei ao redor da vegetação e vi formarem-se bolhas como se
alguém houvesse ali atirado uma pedra ou coisa parecida. O
mais estranho – e aí não houve de minha parte qualquer
ilusão de ótica, pois estava inteiramente concentrado – é que
a direção das ondas que se seguiram não correspondia ao que
é comum numa situação idêntica, ou seja, em vez de se
expandirem concentricamente elas permaneciam paradas num
mesmo ponto em torno das bolhas. Intrigado, atirei naquele
ponto uma pedrinha e o fenômeno desapareceu por completo.
Continuei meu passeio dando uma volta inteira em torno do
lago; satisfeito, retornei para dentro de casa.
O ar da manhã fizera-me muito bem. Senti que pegando a
caneta e concentrando-me, surgiria uma boa idéia para um
conto; foi o que fiz. Já na biblioteca, desfiz-me do casaco
azul marinho de veludo de algodão, pois sentia calor, e
ajeitei-o sobre o encosto da cadeira. Sentei-me animado e
comecei a trabalhar. Abri um caderno grosso de espirais de
arame com capa marrom dura e passei a esboçar as primeiras
linhas de uma história que me acabara de ocorrer. À minha
frente, ao lado do computador, outro caderno igual aquele,
porém mais fino, enchia-me de orgulho. Ali estava, inteiro, o
romance que havia terminado dias antes. Escrevera-o em
menos de três meses tal fora a ânsia que tinha de vê-lo
concluído. Sequer o havia ainda registrado em meu micro,
pois pouco tempo e energia me sobravam após horas intensas
de emoção debruçado sobre aquela história arrebatadora.
Sendo assim, findo o primeiro parágrafo da obra recém
concebida, o telefone tocou a minha frente.
Confesso que detesto tal espécie de interrupção quando
me encontro aplicado em fazer brotar as minhas idéias. Mas

131
como pessoa agora de sucesso e admirada na sociedade,
precisava exercitar a polidez e a atenção que merecia, não só
a mídia, como também, e muito mais, o meu público em
geral. Minhas conjecturas duraram o suficiente para fazer
com que o aparelho me alertasse por quatro vezes da presença
insistente de alguém do outro lado da linha. Da quinta vez,
entretanto, estiquei meu braço e peguei, com desdém, o fone
preto à minha frente. Não reconheci em absoluto a voz, o que
me reforçou a convicção de que seria um admirador que
havia, de alguma forma, conseguido o número e estivesse
querendo alguns minutos de prosa para falar, talvez, de algum
livro meu que lera ou algo assim. Ao responder ao primeiro
cumprimento, preparava-me gentilmente para desligar
quando uma frase sua prendeu-me a atenção. – Se fosse você
não seria tão duro com Cesário – disse num tom sério e
amargo.
– Deve estar equivocado – falei, com certa impaciência,
porém, mantendo a calma, e despedi-me novamente,
esperando a compreensão do meu interlocutor, já que dei a
entender que estava ocupado, – não conheço ninguém com
esse nome – completei. Realmente não conhecia. O único
Cesário com quem andara envolvido nas últimas semanas
fora o personagem fictício da aventura que já estava pronta.
Permaneci à espera de sua aquiescência para que eu pudesse,
definitivamente, abaixar o fone e dar por encerrado o diálogo.
A voz, porém, no mesmo tom angustioso e seco, retrucou:
– Você está falando com ele, muito prazer. – confesso que
não me sentia bem com aquele tratamento íntimo,
especialmente vindo de um fã, o que não costumava ocorrer.
Tive a certeza de que o era no momento em que finalmente se
apresentou. Satisfeito respondi:
– Muito bem, Cesário. – Ainda com sua primeira frase na
memória, continuei: – Fico contente por ser um de meus
leitores. Espero que aprecie o meu trabalho. Será um prazer
conversar com você, mas em outra hora. Agora estou… –
nesse momento a voz interrompeu-me.
– Sou um de seus personagens. – Demorei-me um pouco
para voltar a falar, tal foi a minha surpresa. Seria uma

132
tremenda coincidência alguém cujo nome era o mesmo
daquele que figurava em minha mais recente criação, neste
caso o próprio protagonista, ter esse desejo sem saber que já
fora atendido. Apressei-me em dar-lhe essa boa notícia.
– Parabéns! Acabei de escrever um romance em que há
um Cesário; seu nome já consta em um dos meus livros.
– Eu sei disso, é por isso que estou telefonando.
– Impossível; os originais sequer saíram de minhas mãos.
– Achei que já estava desperdiçando o meu tempo e estive a
ponto de ser descortês, quando o sujeito veio-me com uma
proposta tão irracional quanto inconseqüente.
– Para começar – disse agora num tom quase autoritário –
O Cesário é o personagem principal desta sua história. Se não
estiver satisfeito, o que posso garantir, estou pronto a narrar,
se preciso for, toda a trama de ponta a ponta, com algumas
modificações que, por certo irão ocorrer. – E, sem esperar
minha aprovação, pôs-se a destrinçar cada cena diante de
minha audição atenta e perplexa. Nem seria preciso dizer que
aquilo me deixou embasbacado. Todas as preocupações e
impressões rotineiras que vinham me atordoando nos últimos
dias desvaneceram-se para darem lugar a uma atenção
assombrosa e exclusiva. Enquanto ouvia-o pasmado, algumas
imagens vieram-me à lembrança como, por exemplo, os
sonhos das últimas noites, em que as imagens confusas
denotavam a presença de alguém no fundo que acenava em
desespero como se pedisse ajuda, e quando eu tentava acudi-
lo, suas mãos se soltavam das minhas e ele caia como que
numa queda infinita. No meio desta queda, eu acordava.
A história procurava mostrar o lado negro da alma
humana, vencida pelas fraquezas e ilusões deste mundo.
Cesário, homem arguto por natureza, vivera este drama em
sua vida. Não tinha do que se queixar, possuía dinheiro, bens
e pessoas que o amavam. Casou e não teve filhos. A desculpa
de amar tanto a esposa a ponto de não querer dividir com
outros o amor que sentia por ela, fê-lo amargar uma decepção
que o marcaria indefinidamente. Achava que o vigor de suas
trinta e duas primaveras, o tipo saudável e atlético e o
dinheiro, seriam o suficiente para prender o coração de uma

133
mulher tão jovem e fogosa como Fernanda. Morena índia, de
olhos grandes e expressivos e treze anos mais nova. Viveram
uma paixão até mais longa do que seria de se esperar. Todos
os gozos que da carne se pode auferir mantiveram vivo o elo
que, todavia, não sendo imune, rompeu-se.
Fernanda arranjou um amante após quinze anos de
convivência com Cesário, e o que sonhava acabou
conseguindo: engravidou. A separação foi inevitável. Ele
sumiu por uns tempos e nem mesmo aos amigos mais íntimos
deu notícia. Ao retornar, tentou nova vida mas já aí seus
sentimentos eram outros e os valores estavam transformados.
O baque da perda afetara-o sem piedade. As mulheres
representavam não mais que um símbolo, o do prazer sexual.
O dinheiro, o poder da compra e as amizades de agora eram
depositários de suas frustrações e catalisadoras de sua
derrota. Daí para o fundo do poço não faltou senão a força do
empurrão de um dedo, e este veio na perda do pai, o último
merecedor de suas mais sinceras confissões e transmissor de
apoio e confiança. Fica notório o cunho trágico e negativo
dado à história, embora tenha eu permeado o seu conteúdo de
verdades e ensinamentos úteis a uma conduta de vida.
Terminado aquele relato, a voz emudeceu por instantes;
queria o desconhecido, por certo, sentir minha reação. Como
me demorava a pronunciar qualquer palavra, pois nenhuma
encontrava, tal o meu estado indescritível, ele então
prosseguiu:
– Creio que agora entende porque não deveria ser tão
severo com o seu personagem – frisou bem estas últimas
palavras; “O seu personagem”.
– Isto é alguma espécie de brincadeira? – indaguei com
seriedade.
– Há muito que não estou para brincadeiras, se é que você
está bem lembrado da história. Não se joga um ser em
sombrio estado de solidão. Só mesmo quem passa por igual
tormento pode avaliar a dor. Por isso para que compreenda o
meu sofrimento vou fazê-lo sentir o que é estar só no mundo.
Verá a vida como eu a vi, da forma que escolheu para mim. A

134
ficção vai tornar-se realidade. Ah! Ah! Ah! Ah! – nesse
ponto, desliguei o aparelho.
Enquanto durou aquele dia não mais firmei meu espírito.
Fiquei sem iniciativa, deixando-me levar pelo resto das horas
que trar-me-iam a noite e, com ela, o sono e o esquecimento.
Este, poderia encontrá-lo na leitura de um livro, desde que
não fosse um dos meus; foi inútil. Não suportei os Cesários
que insurgiam dos parágrafos, cobrando-me decisão. Pousei o
volume e levantei-me, recolhendo o casaco. Fiz dois passos
até a porta e dei com o Thomas: – O patrão não ordenou o
almoço? Já passam das duas.
– Já almoçou?
– Não, senhor.
– Então faça-me companhia.
Terminada a refeição, passei à varanda. Chuviscava.
Recostei-me à cadeira de balanço, acendi e me dispus a
saborear o cachimbo. Os gestos quase cerimoniosos que às
vezes impunha a mim mesmo em certas situações que me
eram prazerosas, iam, aos poucos, serenando minhas
emoções. Foi bom enquanto duraram o fumo e minha
disposição. Tentei um cochilo, mas ele não veio. Os pingos,
que já se faziam grossos, ao invés de trazerem o sono,
levaram-me a paciência e eu entrei novamente. De tudo fiz
para afastar de minha lembrança o intruso indesejável que por
todos os lados perscrutava-me sem trégua. De tudo fiz para
esquivar-me. Liguei a televisão, peguei o jornal, fui à janela e
olhei o tempo. Retornei à varanda; pus os pés para o lado de
fora e estive a ponto de entrar na chuva. Quis dar ao corpo,
quem sabe à alma, um banho inédito. Voltei à biblioteca.
Procurei nos livros um conforto. Tinha que fazer alguma
coisa. Consegui. Por quase uma hora. Ao cair da noite o
telefone tocou.
Sem tirar os olhos do texto, que já me cativava, estendi
minha mão e trouxe o fone preto ao ouvido. Por pouco não
quebro o arco da luminária acesa, tal a minha displicência. –
Pronto para seguir minhas instruções? – disse a voz a qual
reconheci imediatamente. Larguei o livro aberto em cima da
mesa. O vento da janela fez correr todas as folhas, levando as

135
páginas que eu lera, junto com as outras, para um lado e
minha atenção para outro. A voz continuou:
– Não adianta todo o esforço que fizer; não vai livrar-se de
mim. Entre outras conseqüências de que mais tarde ficará
sabendo, há uma da qual já tem sentido os efeitos. Falo de sua
verve, de que tanto se orgulha e muito o tem auxiliado. É isso
mesmo. E não conseguirá escrever mais um capítulo sequer
de suas histórias tão afamadas. Portanto, se pretende
continuar escritor, é só fazer o que eu vou indicar, caso
contrário, o seu fim será o meu fim.
Como já disse, o caráter trágico que dei à história
perdurou até o último capítulo e para acentuar o castigo do
personagem, culminei-o com a morte. Inútil descrever o meu
estado naquele momento. Senti-me como o criador às voltas
com o ódio e o sofrimento de sua criatura. Pensei em dar um
ponto final àquela situação que, de ridícula, havia passado
para o terreno do absurdo, sendo agora real e temível. Uni
todos os esforços mentais no sentido de encontrar explicação
e não encontrei uma que fizesse jus à racionalidade de minha
análise. Sendo assim, num ímpeto de coragem e, por que não
dizer, de curiosidade, indaguei:
– O que quer de mim, o que preciso fazer? – não nego que
um sentimento qualquer de hostilidade tenha-me impelido a
fazer esta pergunta. Outrossim, a tensão e o desejo de voltar a
escrever já eram tais que sufocavam qualquer possibilidade
ou tentativa de minha parte. A insistência do vento frio
penetrando pela janela fazia voar o cortinado branco e úmido,
roçando-o em minhas costas. Quis erguer-me para cerrá-la
mas desisti; apenas fechei o livro, guardando as páginas que
ainda vacilavam para ambos os lados. A voz respondeu:
– É melhor desse jeito. Sabia que lidava com uma pessoa
inteligente. Terá o privilégio, acho que posso chamar assim,
que nunca foi de outro autor, de conhecer pessoalmente o
protagonista de seu romance. Tudo o que tem a fazer, acredite
ou não, é mergulhar naquele lago e ir até o fundo dele; é lá
que eu vivo. Explicando melhor, ao alcançar o fundo do seu
adorado lago, vai encontrar a passagem que dá acesso ao meu
mundo. Lá ficará sabedor dos passos que terá que seguir a

136
fim de adaptar-se àquele meio. Acredito que não terá
dificuldades, por tratar-se das condições e situações que você
próprio escolheu para Cesário. Porém afirmo: nem tudo será
previsível. Entretanto, perceberá, como bom observador que
presumo que seja, as nuanças salvadoras do cenário
imaginoso o qual soube muito bem criar. Devo acrescentar
que admiro deveras o seu estilo, por isso dou-lhe esta chance
de arrepender-se e repensar suas tramas. Não se esqueça:
nada tenho a perder, pois sou apenas ficção. Ah! Ah! Ah! Ah!
Abri a boca para falar quando ouvi soar em meus ouvidos
o eco da ligação desfeita. As forças físicas e mentais que
ainda me restavam após tão inesperada e chocante
experiência ergueram-me da cadeira e lançaram-me prostrado
sobre a pequena poltrona. Thomas, ao penetrar no recinto,
julgou, por meu estado lânguido e indiferente, que tivesse
adormecido. A chuva que vinha mais forte, fazendo sacudir o
vento as janelas, trouxera ali o meu criado. Ele fechou-as,
desligou a luminária e saiu deixando-me só com minha
aflição.
Amanheci na cama. Tomei banho e fui para o desjejum.
Enquanto comia ia refletindo no acontecimento do dia
anterior. Sequer tentaria, ao sair dali, o mínimo esforço para
desempenhar minhas atividades rotineiras; já tinha a
convicção de que seria totalmente inútil. Passei a ponderar as
palavras e, digo incrédulo e vexado, as orientações que me
foram transmitidas. Neste estado, saí para o meu costumeiro
passeio matinal, o qual me levaria inevitavelmente à beira do
lago. Desci os três degraus da varanda e caminhei sobre a
grama. Pensava na incrível necessidade de atirar-me naquelas
águas geladas e impróprias, quando me vi bem próximo
delas. De onde estava já conseguia avistar aquele conjunto
flutuante e impressionei-me, pois estava bem próximo à
margem. Aproximei-me mais e, qual não foi a minha
surpresa. As formas geométricas estavam ali e o vão que
deixavam, agora, ao separarem-se os dois triângulos, era
grande, bem junto a mim e de águas azuis e convidativas.
Associei aquela aparição e aquele movimento ao mesmo das
páginas do livro que insistentemente bailavam à minha frente

137
durante o sinistro telefonema. Concluí que seria este o ponto
exato do mergulho.
Olhei disfarçadamente para os lados e, como esperava,
não encontrei viva alma. Gaivotas rapineiras descansavam
sobre os caniços ao longo da costa e algumas poucas aves
adejavam à distância. Vestia uma roupa apropriada à
temperatura reinante ao amanhecer, algo em torno dos vinte e
cinco graus centígrados: uma camisa de malha sem colarinho,
de mangas curtas e uma calça bege de tecido cotelê; calçava
chinelos de couro com solado de borracha.
Desfiz-me do calçado e respirei profundamente. Fixei
mais uma vez o centro do lago, aguardando nova separação.
Quando esta ocorreu, deixando-me a abertura, mergulhei para
dentro dela. A princípio desci, de olhos fechados, sentindo o
roçagar de plantas e raízes. Foi um longo mergulho. Jamais
poderia imaginar-me capaz de descer a tal profundidade,
tampouco me lembrava de tê-la concebido em meus projetos
de construção. Enfim, retomei a visão. Outras espécies
submersas, insinuavam-se em meu caminho e tive que me
desviar de algumas para obter passagem. Cansado e sem
fôlego, estive a ponto de retornar à superfície no momento
em que pressenti outro vão próximo do meu alcance. Além
dele, as águas eram azuladas atingindo as gradações de cores
comuns à água de uma piscina. Ato contínuo, aproximei-me e
entrei pela passagem, mesmo consciente da falta de nexo de
sua presença ali.
Já do outro lado, a primeira sensação foi a súbita mudança
na temperatura da água; agora me gelava da cabeça aos pés.
Dei um impulso e subi rapidamente. Emergi. Estava
realmente dentro de uma piscina; de enormes proporções,
digamos, quase o dobro das piscinas convencionais. Dei
algumas braçadas e apoiei-me na borda para descansar;
vislumbrei ao redor. Estava nos domínios de uma propriedade
refinada, diria mesmo aristocrática. Comecei a relacionar o
seu aspecto com as descrições que punha nas páginas que
escrevera e as semelhanças faziam-me estremecer. Por outro
lado, detalhes inusitados confundiam-me os pensamentos.
Pouca coisa havia em derredor além de três cadeiras deitadas

138
e uma pequena mesa redonda de vime com porta revistas.
Havia, de fato, alguns exemplares. Alguns passos mais ao
fundo, um chuveiro atarraxado no alto de um cano sobre um
piso arredondado de madeira, tudo muito seco. Uma borracha
vermelha, com um chuveirinho amarelo na extremidade,
mantinha-se presa ao seu lugar de apoio. No mais, um piso de
grama, enfeitado com imagens de gesso e algumas outras de
bronze sobre pedestais de mármore. Observei que, entre as
figuras de aves e animais estranhos, havia um busto em uma
das laterais da entrada da mansão.
Saí da água tiritante de frio e fiz alguns movimentos para
me aquecer e secar meu corpo encharcado. Fui até à mesinha
e olhei os periódicos. Por estranho que pareça, aliás, já nada
mais poderia achar estranho, não reconheci nenhum daqueles
exemplares pelos títulos, tampouco ao folhear as páginas que
expunham não mais que residências, ricas e belas por sinal,
por dentro e por fora, além de entrevistas com arquitetos
falando de suas obras e fotos de seus prédios, igrejas, pontes,
jardins, etc. … Ao menos havia relação com Cesário que
exercia esta profissão e aparecia em uma das reportagens. Ao
ler o texto não encontrei nada que pudesse indicar o meu
paradeiro ou orientar-me de alguma forma.
Andei então na direção da casa. Era com inúmeras janelas,
jardim frontal e caramanchão coberto de flores da estação
com certo excesso de trepadeiras. Tinha um só pavimento,
mas parecia ampla e muito confortável. Parei à entrada do
alpendre para examinar o busto. Intuí, somente pelo título de
barão, que poderia ser um dos avós de Cesário que muito
vagamente mencionei na história. Como não havia nome nem
subtítulo, ignorei-o. adiantei-me para bater à porta. Balancei a
argola de ferro e fiquei aguardando. Bati novamente, chamei
pela terceira vez sem obter resposta. Dei uma volta pelo lado
cujo muro, alto, não me permitiu ver o terreno vizinho.
Contornei. Daquele lado as janelas estavam fechadas. Os
fundos davam para uma via cheia de casas que me pareceram
desertas. De fato, nem um movimento. Na rua, com sinal
luminoso e faixas, sequer um automóvel vi passar.

139
Quando olhei para trás notei que não percebera uma porta
em esquadria de metal com caixilhos envidraçados. Quando
me aproximei e bati, ela se abriu, mas somente com a força
de minhas batidas. Esperei um pouco e adentrei; estava em
uma copa. O silêncio era absoluto, o que me deu quase a
certeza de não haver ninguém em casa. Atravessei a cozinha
muito espaçosa, passei por outra porta, fechada, que supus ser
um banheiro e mais duas expondo-me quartos em perfeito
estado de ordem e arrumação; cheguei à sala. – Há alguém
aí? – falei por falar, já convencido de ser a única presença
naquele lugar.
Pensamentos confusos, advindos de sensações variadas e
incontroláveis, soçobravam em minha mente. No estado em
que me achava, inútil era tentar qualquer ação. Joguei meu
corpo sobre o sofá de couro branco, trouxe para perto de mim
uma almofada que pus sobre o colo e nesta posição procurei
refletir. O silêncio era tal que contribuía bastante para a
reflexão. Busquei na memória as palavras de Cesário vamos
chamar então o louco do telefone pelo nome que diz possuir
e, (por que não?) já que não resta outra saída, encará-lo como
o meu personagem. Agindo assim, quem sabe, um caminho
mais fácil ou menos doloroso não se abriria para mim?
Deixou claro que a solidão a qual lhe imputei fora a
causadora de sua ruína e de sua morte; morte por suicídio e
que, portanto, o mesmo far-me-ia suceder por vingança ou o
que seja.
Surge que, para meu alívio, alterações seriam feitas.
Dentre elas, a sorte de Cesário. Tendo em mente esta
esperança, criei um pouco de ânimo. Se era eu o personagem,
aquele era o meu cenário, logo, só tinha que agir em
conformidade com o enredo, avaliando cada episódio, suas
tramas e seus desfechos. Então, saí à rua, comparando o que
via às minhas descrições anteriores. Já aí um problema.
Como me situava agora dentro do livro, não tinha somente a
visão do autor que remete sua imaginação descritiva ao
essencial da cena e não mais que isso. Como figurante da
história podia ver, e via, o que quisesse. Uma casa era uma

140
casa e uma rua, uma rua; com tudo o que possuem e mais o
que a obra assinalou.
Como falei, as ruas estavam desertas. Andei por elas como
Adão deve ter andado no paraíso: só e carente de uma
companhia. Lojas e comércios expunham, ao seu único e
desolado freguês, suas mercadorias. Bancos ofereciam-me
seus cofres abarrotados de valores. Restaurantes e padarias,
de pratos e guloseimas. Tudo o que precisava fazer era
aproveitar a festa. Encher de dinheiro os bolsos e de alimento
o estômago. Esta última oferta, confesso que não recusei;
descobri a fome que já quase desistia, tantas foram as horas
em que clamou por satisfação dentro de mim. Mas na
primeira, não via vantagem, o que precisasse estava ali. Só
tinha que desejar e obter. Continuei minha peregrinação,
vagabundeando horas a fio. Não me lembro em quantas casas
penetrei, quantos aparelhos tentei fazer funcionar; telefones,
computadores, rádios, televisões, tudo em vão. Abri gavetas
procurando pistas, chutei portas procurando almas. Inútil.
Tristemente reconheci que estava só.
Perseguido por este fantasma insustentável e na mente
uma idéia que era fuga e solução, corri por outras ruas,
buscando um caminho de volta. Sem olhar para trás, com
medo de ser agarrado pela companhia malquista, cheguei ao
ponto de partida. Entrei na casa e, já tonto e esbaforido,
ganhei a piscina. Joguei-me sobre uma das cadeiras.
Resfolegava. Ao ver voltar as forças, fui até onde estava o
chuveiro e o abri. Puxei com raiva a pequenina borracha que
esguichou um líquido salobro mas, cuja frescura, saciou
minha sede. Dali mesmo dei dois passos e mergulhei. Que me
importavam as ameaças de um louco? Enfrentá-las seria nada
comparado às sombrias perspectivas delineadas por aquelas
primeiras horas gastas ali. Contudo, e estremeço só de sentir
as lembranças do meu estado emocional de então, não
encontrei a tal passagem do fundo, mas ladrilhos cujas figuras
riam seus risos molhados e cheios de ironia. Enchi-as de
golpes desferidos com punhos cerrados de ódio e revolta.
Muita água engoli ao esboçar inutilmente gritos e
impropérios. Vencido, voltei à superfície e pulei para fora.

141
Com o pé, chutei a pequena mesa, o que fez voar as revistas.
Uma delas caiu à minha frente e a foto dele, meu algoz,
olhava-me e comprazia-se com o espetáculo. Erguendo as
mãos, levei-as à frente da boca e gritei: – Cesário! Onde está
você? Apareça!
De tão alto e rancoroso, meu grito ecoou pelos ares e
atravessou as muralhas da mansão pelo outro lado e
desapareceu no meio das árvores de um bosque próximo.
Nesse momento e, que me perdoem os meus sentidos
descontrolados, vi (ou achei que vi) ou revi, ao voltar o olhar
para baixo, a sua imagem na fotografia, mantendo o
sarcasmo, responder:
– Por que me chama? Já não pode falar comigo. Eu e você
somos a mesma pessoa. O mesmo Cesário, a mesma ficção.
Ah! Ah! Ah! Ah!
Sem forças para nada mais, caí sobre a grama e ali fiquei,
prostrado. Não sei por quanto tempo. Quando o vento frio da
noite lançou sobre o meu corpo impiedosa refrega, levantei-
me e fui cair dentro da casa no primeiro leito que encontrei.
Despertado pelos primeiros raios de sol da minha primeira
manhã de total solidão, impus-me, como primeiro objetivo,
maduro e racional, controlar meu estado de espírito sob
qualquer circunstância. Saí mais uma vez às ruas. Quis nutrir
o organismo do melhor que encontrasse. Precisava estar bem
alimentado para enfrentar um dia totalmente insólito em
minha vida.
Sentei-me à mesa de uma lanchonete, tendo à frente um
café da manhã recheado dos meus sabores prediletos.
Preparei, ao meu gosto e maneira, o suco de morangos, o
café, os ovos e comi-os com os pães, os biscoitos e a geléia
que tirei de cima de uma prateleira. O dia começava bem para
quem possuía, como eu, todo o tempo e, que ironia, todo o
dinheiro do mundo. Senti que algo estava me faltando, olhei
em derredor sobre as mesas vazias a procura de um jornal.
Como imaginei, não encontrei nenhum. Tomei mais um gole
de café ainda quente e saí; precisava localizar uma livraria. -
“Será que já estaria aberta tão cedo?” - Pensei, para ver se
mantinha o bom humor. Tendo cruzado o segundo quarteirão,

142
atravessei para a outra calçada e vi ao longe, após cruzar um
sinal luminoso, uma galeria quase no começo da rua.
Caminhei um pouco mais e entrei por ela. No meio de várias
lojinhas enfileiradas, lá estava uma, repleta de prateleiras
abarrotadas com livros. Senti-me em meu elemento ao pisar
no recinto. Podia, se quisesse, gastar o dia debruçado sobre
eles, os amigos e suas mensagens. Poderia escrever, exercitar
minha rotina; acabei ficando por um bom rasgo de horas.
Rabisquei linhas cujo teor e o objetivo não podiam ser outro
senão passar à posteridade os registros da minha experiência.
Todavia, ao ler o que redigira, senti a redundância nas
palavras, peguei-me reescrevendo a mesma história, o mesmo
texto, impregnado da solidão de Cesário, da minha solidão.
Para não acicatar ainda mais a turbação do meu espírito,
larguei papel e caneta. Com sonoro movimento, esta caiu por
cima daquele e a mesa, ambos caíram sobre o chão de
cerâmica avermelhado. Levantei-me, procurando na leitura
outra forma de distração. Havia de tudo, de fato conheci um
período de paz que há muito não desfrutava. A fome fez nova
ronda. Empreendi um passeio calmo e vagaroso até encontrar
um restaurante. Avistei o que me pareceu ser um dos
especialistas nas massas que nos empanturravam sem dó nem
piedade. Enfiei-me. Ao sair, pesado e satisfeito, comecei a
descobrir um dom que não sabia ser possuidor. A necessidade
fez-me cozinheiro, dos tais que, pelo menos até ali, adora os
próprios pratos. Por enquanto, neste pormenor, não sentia a
falta de Thomas.
Não tive outra opção, naquele resto de tarde, senão
caminhar. Caminhei muito. Voltar aos livros já não me
apetecia; minha concentração não resistiria muito tempo.
Tinha necessidade do ar puro, do céu e do sol. De tanto
vaguear, já não sabia onde estava, aliás, nunca soube do
próprio paradeiro. Sentei-me no banco de uma praça. Senti
que por perto havia o mar. Enquanto, olhando em derredor,
via os prédios, as ruas desertas, as lojas abertas, comparava a
minha situação à daquela cidade. Estávamos sós, vivos e
esquecidos. Duas garças-azuis pousaram no alto de um cedro
de flores brancas e tronco avermelhado. Meu olhar viajou por

143
cima das travessas de um playground construído no centro da
pracinha e instalaram-se sobre as aves. Elas logo alçaram
vôo, tomando uma direção que acompanhei atentamente. Saí
andando e peguei o sentido de uma alameda sombreada e
aconchegante. Bares, restaurantes, cinemas e casas noturnas
ladeavam-na. Segui por uma das calçadas, como se algum
perigo houvesse em andar no meio da rua e, olhando ao
fundo, vi o que já contava ver: o mar, com toda a sua
imponência ali surgia, ágil e dominante. Não fiz mais do que
contemplá-lo até entrar a noite.
Senti que não era o mesmo do dia anterior quando
despertei com o sol em meu rosto sobre a areia quente da
praia. A depressão atacara-me novamente. Levantei, lavei
meu rosto e pés na água salgada e fui procurar um café. Não
tinha fome, por isso, nada comi. Comecei a sentir os sintomas
avassaladores do tédio repugnante. Não carece narrar o que
fiz naquele dia e nos outros que se seguiram. Tudo não
passou de vazias repetições, da mesma habitual pasmaceira.
Uma tarde, lá pelo quinto ou sexto dia da minha montanha de
sensações diversas e já quase incontroláveis, peguei-me
sentado na areia de frente para o mar, o qual estava calmo e
receptivo; na mente as lembranças de um mundo real em que
eu era feliz. Pensei na agonia de Cesário, protagonista do meu
romance. Um incontido sentimento de medo invadiu-me ao
repassar as cenas de sua morte. Suicidara-se no mar,
afogando-se. Então seria este também o meu fim? Não me
restava outra sorte, já que devo ter fracassado no que ele
queria.
Ato contínuo, como aceitando resignado o desenlace, pus-
me de pé e, do jeito que estava, calção branco e sem camisa,
andei ao mar. Continuei conformado a caminhada para a
morte, com a água pela cintura. Mas, estranho como todo o
resto, a morte não acontecia. As águas já não me alcançavam
e, por mais que me afastasse da praia, elas mantinham-se à
mesma altura, negando-se a encobrir-me o corpo. Fui muito
longe, sem resultado. O mar não me aceitava; não para a
morte talvez. Então pensei, já de volta à areia, que em suas
ondas poderia encontrar outras terras, ter uma chance. Quem

144
sabe ver pessoas, viver enfim, uma vida de liberdade que não
transige com a solidão.
Foi o que fiz. Levei semanas a preparar minha nau.
Recorri às ferramentas, aos bosques e às matas, aos tecidos e
às lonas, enfim, a tudo que precisei e não tive dificuldades de
encontrar. Supri-me ao máximo permitido pela embarcação.
Não esquecendo de algo agora importante, o dinheiro. Fui ao
banco e aceitei sua oferta. Satisfeito, fiz-me à vela. Relutei
com as vagas e os enjôos e ao fim de três dias alcancei, de
madrugada, uma ilha. Não era bem o que queria mas sua
beleza e exuberância acolheram-me e eu fui ficando. Ao fim
da manhã andei por ela, mas, de vida humana, nem um sinal.
Porém, nos aproximados oito quilômetros quadrados de sua
área, poderia existir alguém, animais, que fossem. Pensando
neles, retornei e preparei minha cabana e, antes de dormir,
acendi uma fogueira. No dia seguinte concluí, ao vasculhar
de ponta a ponta a ilha, que estava sozinho ali também. Ao
retornar, constatei, desolado, que uma tempestade deixara
destroçado o meu barco. Ao ver seus restos espalhados na
areia e na água não resisti: chorei pela primeira vez.
Tudo o que contei até agora teve como objetivo colocar
diante do leitor os fatos que me ocorreram, os quais
funcionaram não mais do que como preparadores da minha
alma para fazê-la conviver com a solidão. E aprendi, exercitei
e saí-me melhor do que eu próprio esperava. Aquela ilha foi o
meu lar por dois anos e cinco meses. A necessidade de
adaptação foi de tal maneira satisfeita que só fazia, a cada
dia, aumentar a minha felicidade. Quando consegui deixar o
local, criei obras literárias cuja repercussão deixou-me
milionário. Nos últimos dias na ilha, comecei a sentir que
tudo poderia voltar à normalidade; que Cesário dera-se por
satisfeito e resolveria recompensar-me. Eis como aconteceu.
Uma manhã acordei e ao sair da cabana para um banho de
mar, um susto quase me fez cair para trás. À minha frente, a
não mais de cem metros além da praia, pairava um cargueiro
que pareceu-me encalhado. Desceram pelo tombadilho e
entraram em uma canoa um senhor alto, barbudo, com
uniforme de capitão e um marinheiro. Remaram até a praia e

145
vieram ter comigo. Cumprimentaram-me e disseram precisar
de água potável para a tripulação. Confesso que quase choro
de alegria ao ver e falar com pessoas. Cheguei a beijá-los.
Agradecido, levei-os até um arroio próximo. Enquanto
enchiam suas caçambas, contei-lhes minha história. Não sei
se acreditaram ou se tiveram-me como louco; nem isso me
importou naquele momento. O fato é que não conheciam a tal
cidade mas aceitaram, depois que levantassem âncora, levar-
me até ela. No dia seguinte, ao raiar do sol, aportava eu na
mesma praia que deixara há tanto tempo. Pouca coisa havia
mudado, mas, o que mais me impressionou e me alegrou o
espírito foi a enorme quantidade de gente; pessoas comuns
como eu, a compartilhar com outras os seus momentos e
veículos engarrafando o trânsito. Imediatamente corri e, não
ligando aos olhares, cheguei a tal casa. Como imaginei, não
havia ninguém. À beira da piscina, troquei de roupa, vestindo
apressado as peças, as mesmas que vieram comigo do outro
lado, e me lancei à água. Como esperava, a passagem ali
estava. Enfiei-me por ela e subi. Ao emergir, saí do lago e
calcei os chinelos. Em dado momento, levantei-me e, ao olhar
para trás, Thomas vinha chegando.
– Que tal o passeio Sr. Gerônimo? Telefone para o senhor.
Já ia respondê-lo, mas logo fechei a boca. Para que entrar
em detalhes? Apenas agradeci e acrescentei: – Estou pronto
para minhas novas obras, Thomas. Diferente de todas até
aqui. - Deixando para trás seu sorriso simpático, entrei e fui
até o aparelho. Na linha, um de meus editores, com o pedido
de um novo trabalho. Após o acordo, desliguei e, satisfeito,
peguei na caneta que, agora, corria fluentemente.

146
Amor e Preconceito

E
ste fato se deu na famosa e prestigiada Universidade de
Vanderbilt, em Nashville e envolveu as pessoas que
gozavam, na época, de afamado respeito e admiração.
Charles Thompson, o reitor, administrava com competência o
local mas não conseguia evitar as constantes desavenças entre
turmas rivais. Há muito rondava a desconfiança de que o
preconceito seria a causa principal dos conflitos. Nas aulas de
história era Greg o centro das atenções. Não por ser ele o
professor, mas por ser negro, o que gerava um mal estar ainda
maior. Se ficasse apenas no dissimulado preconceito a causa
desse mal estar, isto seria compreensível, embora nada
justificável. Porém, vinha da jovem e atraente Clarice os
indisfarçáveis suspiros em favor de Greg. Levando-se em
conta ser ele casado e aparentemente feliz, imagine-se as
conseqüências de um caso como esse.
Por força da posição e não menos de seu caráter discreto e
reservado, Greg pouco falava e com quase ninguém
conversava nas horas do dia em que se dedicava ao trabalho.
Ao entrar ou sair das dependências da escola, procedia à
rotina de sempre. Estacionava seu belo Jaguar sempre na
mesma vaga do amplo pátio, após passar pelo portão
principal e contornar o caminho sombreado pela exótica
vegetação de porte médio que guarnecia e enfeitava a frente
do prédio. Abria o porta-malas, pegava o folder prateado que
continha não mais do que o material referente às matérias que
iria lecionar naquele dia e entrava. O primeiro a receber o seu
cumprimento era Trump, o inspetor de turmas que, do
corredor principal, distribuía suas informações a todos que a
ele se dirigiam. Laconicamente, ia saudando os que
encontrava pelo caminho até chegar à sala dos mestres. Abria
o armário, de onde tirava o avental azul, e o vestia. O fato de

147
chegar para o trabalho e não encontrar outro professor já era
proposital, visto que chegava bem mais cedo que todos a fim
de evitar a obrigação de ter que encetar uma conversa.
Este comportamento incomum de Greg, se não era
esperado, passou a ser mais do que compreensível. Ele era o
único homem de cor dentro do corpo docente e criou, por isso
mesmo, em sua mente, a invisível couraça de amparo contra
uma rejeição, origem de todo preconceito. Havia na faculdade
um número considerável de negros entre os alunos de ambos
os sexos, tal a sábia providência da reitoria com o objetivo de
evitar as desavenças. Mas nas turmas de Greg isto não trouxe
o efeito esperado, podendo-se afirmar, sem muita margem de
erro, que se deu inevitavelmente o contrário. E Clarice
destoava completamente de quase todos de sua turma. Não
era negra. Tinha, antes, a pele morena clara, quase branca, e
os cabelos ruivos. Outras havia, a contar nos dedos de uma só
mão, que não traziam a marca de uma pele negra, tampouco a
beleza descomunal de Clarice. Se por um lado, e para muitos,
ser negro representava rancor ou revolta, ser linda – para
Clarice – era sofrer, no coração e na alma, a inveja e a
injustiça. Quando sorria, fazia-o com a naturalidade que Deus
lhe deu e não chegava a perceber, por trás de uns poucos
sorrisos correspondidos, o verdadeiro sentimento; não
distinguia entre a cobiça e a sedução.
Foi justamente o vislumbre de um sentimento inocente e
desnudado que a fez sentir-se atraída ao professor logo no
início das aulas. Os grandes olhos castanhos e amendoados de
Clarice não sem freqüência descontrolavam os gestos e as
palavras de Greg. Precisava o jovem mestre submeter-se a um
esforço, a princípio circunspecto, mas não por muito tempo.
Quando a jovem, já insinuante sem aparatos, passou a
temperar de volúpia algumas atitudes em forma de trajes e até
de palavras, o que era disfarçado passou a ficar notório e
desconfortável. Tudo remediável, enquanto Clarice
permanecia quieta em seu canto, natural e sem ostentação. Ao
mudar-se porém para a primeira fileira, bem em baixo dos
olhos do mestre, e fazer deste o seu lugar definitivo em todas
as aulas de história e somente nestas, iniciou um conflito que

148
mudou a vida pacata e rotineira de Greg. Seu desempenho
dava sinais de declínio, e a admoestação passou a ser lugar
comum nas conversas com Charles Thompson, além de seu
superior, grande amigo e companheiro de longa data.

Corria o mês de junho, já nos seus últimos dias, tendo a


situação se agravado a tal ponto que tornou-se insuportável
para Greg. Pensou em se afastar de tudo e de todos sem nada
avisar, mas pensou também em Linda, sua esposa. Tanto a
omissão quanto a apresentação da verdade tal como vinha
ocorrendo depunham contra ele. Sendo assim, tentou
solucionar sozinho o problema. No último dia de aula,
anterior às férias de julho, tomou coragem e decidiu falar
com Clarice, mas longe dali, onde as vistas de curiosos e mal
intencionados não os alcançassem. Não esperou que ela
saísse. Saiu primeiro, ganhando o benefício da sorte e da
destreza da última turma do dia, que concluiu com rapidez
oportuna o teste que ele havia aplicado. Despediu-se como
sempre, entrou no carro, após certificar-se, na sua peculiar
discrição, que a moça ainda não saíra e, lentamente, foi
deixando o local. Como não sabia a rua que ela costumava
tomar após deixar o prédio, Greg precisou ficar de longe,
dentro do automóvel, com os olhos pregados em todos que
passavam do portão para fora, até que a viu sair. Vinha com
ela outra moça, também sua aluna. Tomaram a direção
contrária àquela em que ele se encontrava e começaram a
subir a rua, afastando-se. Ligou o motor, esperou que elas
desaparecessem na primeira esquina e deu a partida. Como
não pretendia passar de novo em frente à universidade,
contornou pela rua de trás e parou ao vê-las conversando em
um ponto de ônibus. Não precisou esperar mais que alguns
minutos, pois, a sorte o ajudou. A amiga embarcou em uma
condução e Clarice ficou só, como ele queria. Sem perder
tempo, aproximou-se.

- Aceita uma carona de um negro mal educado e sem


jeito? - disse sorrindo, colocando a cabeça para o lado de
fora. Na verdade, quem ficou totalmente sem jeito e sem ação

149
foi Clarice, que certamente não esperava tal surpresa. Sua
resposta foi o belo sorriso que mostrou e que foi realçado
pela luminosidade que vinha do alto do poste e incidia sobre
eles. Greg, ao fim de suas palavras, já tinha a porta do carro
aberta. Ato contínuo, ela entrou e ele, sem dizer palavras, deu
partida no veículo. A velocidade, um pouco acima do normal,
fez com que, em poucos segundos, já estivessem longe dali,
seguindo pela avenida principal. Clarice foi quem primeiro
quebrou o incômodo silêncio ao perceber no professor o seu
nervosismo característico.

- Será mesmo uma carona que quer me dar? Nesse caso,


precisa mudar o itinerário. - Greg, como que balsamizado por
estas palavras da moça, ditas em tom suave e muito pausado,
acalmou-se rapidamente e disse num sorriso.

- Espero que me perdoe a falta de cavalheirismo. Na


verdade o que estou querendo é conversar um pouco com
você, se pudermos dispor de alguns minutos. Aceita beber
alguma coisa?

Dali para um restaurante foi conseqüência esperada pelo


comportamento de Clarice e pela atração que já vinha algum
tempo demonstrando abertamente em relação a ele. Não
gastaram minutos apenas. Quase duas horas foi o tempo em
que o magnetismo da jovem, feito uma teia sutil e
intransponível, conseguiu aniquilar o último reduto de
resistência que ainda pudesse pairar no interior de Greg. Tal
foi o efeito que não o deixou dormir normalmente aquela
noite. E nas outras, bem, nas outras precisou o mestre de
muito auto controle para resistir ao ímpeto de pegar no
telefone e marcar novo encontro. Mas, o que fazer nas férias?
Longos trinta dias a lhe infundir na alma o doloroso teste do
amor e da saudade. Mas os dotes de Clarice falaram mais
alto. O telefone foi a maior testemunha. Os encontros se
sucederam e era uma vez um casamento entre dois negros.
Sim, porque linda, a mulher de Greg também o era. E juntos
se esforçavam por manter uma união que, ao menos na

150
aparência, parecia feliz, a cara de uma sociedade a beira da
decadência.

Passaram-se as férias, terminou aquele ano letivo. Antes


do retorno para a temporada seguinte, Greg já era um homem
separado e Linda uma ex-esposa. O namoro entre os novos
apaixonados seguia às escondidas. Contudo, a ira e a
insatisfação de quem perdeu para o amor fizeram-se mostrar
na pessoa de Linda. Inconformada, tentou a reconciliação. A
atitude de Greg, cego pela paixão, balançou o resto de sua
esperança. A insistência dela só fez piorar a situação e o
rechaço desmoronou de vez qualquer chance e rematou a
separação. Porém, a felicidade de um recresceu o
inconformismo da outra. Decidiu não se entregar e com a
decisão reacendeu um desejo há muito acalentado e reprimido
pelo ciúme. Voltaria a estudar. Retomaria o curso de direito
interrompido com o casamento. Ao fazê-lo, teria nas mãos a
oportunidade da reconquista ou a constatação da derrota.

Matriculou-se naquele mesmo ano. O contato com a nova


vida encheu Linda de entusiasmo e abriu-lhe o espírito a
novas perspectivas. Fez novos amigos e até tentou um início
de namoro. Não se surpreendeu ao ficar sabendo que o seu ex
já não mais pertencia àquela faculdade. Demais, angariou em
pouco tempo, de todos que testemunharam o ocorrido, o
oposto dos sentimentos provocados por ele. O bem estar
diminuiu-lhe o rancor. Ao saber que haviam se casado já não
sofreu tanto.
Os meses transcorriam e os estudos faziam sua cabeça,
dando-lhe certa paz. Charles Thompson, o reitor, acumulava
algumas outras funções, dentre elas, também, a de lecionar.
Exímio professor de literatura francesa, era benquisto por
seus alunos e conquistou, ao longo do tempo em que vinha à
frente daquela casa, um respeito assaz merecido. Tinha por
Greg especial estima. Compartilhavam preferências, idéias e
muitas outras coisas, embora uma diferença entre eles, uma
grande diferença evidenciava-se: a raça. Charles era louro, de
olhos verdes, exemplo típico do ariano legítimo. Destoavam

151
de tal forma, em gestos como em timbre de voz, que seria
desconchavo crer-se que dali pudesse surgir alguma forma de
afinidade. Porém, a estima de Charles por Greg não era
desprovida de interesse. Havia, por trás daquela amizade,
outro sentimento que, embora puro, no caso em questão não o
era. Falo do amor enlouquecido, do amor desnorteado que
Charles sentia por Linda. Por conta dele deixou para trás uma
carreira de empresário, cujo êxito já o situava entre os
principais milionários do Tennessee. Linda foi, durante quase
uma década, a alavanca que o projetou e, como mentor e
amiga, manteve-o no topo da fama; foi cúmplice do seu
enriquecimento e bastião de sua glória. Charles passou a amá-
la ao sentir necessidade de uma segurança que não conseguia
encontrar no dinheiro. Os prazeres da carne já não o
satisfaziam. A sucessão dos encontros amorosos não
diminuíam-lhe a ansiedade. Aumentavam-lhe, por outro lado,
o amor por linda.

Ela, por sua vez, não o amava. Greg já entrara em sua vida
e a conquistara pela simplicidade de caráter e pela grande
afeição, natural e despojada. Três meses de namoro bastaram
para solidificar o amor de Linda. Não foi difícil para Greg
convencê-la a mudar de vida. Abandonou a carreira, a
posição e o próprio Charles que, desesperado, entregou-se à
bebida. Sem Linda, na forma do apoio profissional que o
mantinha no auge, ele sobreviveria. Mas sem a esperança do
amor que passou a vislumbrar e que, de uma hora para outra,
tornou-se-lhe grau e desígnio, foi-se a fortaleza, ruiu-se o
centro. Onze meses, foi o tempo que conseguiu resistir longe
dela. Depois disso, o que fez foi vender a empresa e deixar
sua cidade. Gastou um pouco da fortuna em viagens pelo
mundo com o intento de esquecê-la. Ao saber do seu
paradeiro em Nashville, dirigiu-se para lá. Não foi difícil para
Charles entrar na faculdade como professor. Já havia
exercido este cargo antes de se tornar empresário de sucesso.
A experiência trouxera-lhe novamente a esperança. Ao
aproximar-se de Greg e cultivar sua amizade já tinha Charles
todo o plano em sua mente.

152
Linda afastara-se dos estudos, dando como desculpa a
Greg, já seu esposo, a total dispensabilidade da sua formação
a fim de melhor poder dedicar-se a ele como esposa exemplar
e aos futuros filhos como mãe sempre presente. Manifesto
está que Greg, apaixonado e confiante, aceitou de bom grado
o alvitre e dobrou de felicidade os seus dias.

De volta aos estudos, suas conversas com Charles


Thompson eram agora muito mais freqüentes e
despreocupadas. Elas ocorriam, todavia, fora do
estabelecimento. Assim, à vontade, não furtar-se-iam às
verdadeiras intenções de suas almas.
- Será que tenho alguma chance nesse coração solitário? -
perguntou uma vez Charles, demonstrando felicidade ao
desfrutar ao lado dela de um jantar finalmente aceito após
vários convites e várias frustrações.

- Você sabe o quanto amo Greg. E já me conhece para


saber que não me entrego facilmente. Hei de conquistá-lo
outra vez. Ele está enfeitiçado; estou certa de que me ama
também. - Apenas o olhar de Charles era o bastante para dar a
entender o seu coração. Ele sabia que Linda falava a verdade
e sabia do que ela era capaz.

- Não duvido de você. Mas acredito no meu amor, provas


não são mais suficientes. Acha que existe ainda algo que eu
possa fazer para conquistar o seu coração?

- Certamente que há respondeu Linda, fazendo saltar aos


olhos o broto de esperança na fisionomia e no sorriso de
Charles.

- Então me diga. Sou um escravo do seu amor.

- Faria mesmo qualquer coisa, tudo?

- Tudo respondeu, entre surpreso e desconfiado.

153
- Então, mate-a. - Ele emudeceu à princípio. Ao refazer-se,
falou:

- Tem certeza do que está falando? Está no seu juízo


normal?

- Perfeitamente disse, sem manifestar alteração. - É o que


tem a fazer. Mate-a. É o preço da minha conquista; se
realmente me ama, não vejo problema. Não é o que mais
quer, o meu amor?

- O preço é alto demais. Além disso, como diz que será


minha, se o maior obstáculo ao seu objetivo deixaria de
existir? Não acha que sou grande demais para acreditar em
histórias da carochinha?

- Se acha que é assim, então não faça nada. E me esqueça


como alvo do seu amor. Por outro lado, disse, aproximando
os lábios no ouvido esquerdo de Charles poderá, hoje mesmo,
receber antecipadamente uma prova da minha gratidão. - Isto
arrepiou-o dos pés à cabeça e fez revirar, dentro de sua
mente, todos aqueles pensamentos que já sentira em relação a
Linda, mescla de desejos e intenções.

Certas atitudes de Linda, caracterizadas pelo tom da voz,


melífluo e envolvente, ou pelo olhar sensual, provocante,
conseguiam mexer com Charles, levando-o ao Desvario. Ela
era bonita, de uma beleza incomum que atraía, muito menos
pela estética, donairosa e fecunda, do que pela malícia de
mulher, que sabia, como ninguém, conferir a sua prosa, a fim
de conseguir o que queria. Vestia-se nesta noite de forma
refinada. O longo vestido branco um charme a mais, audaz e
provocante, cúmplice de uma atitude premeditada. Deixou
evidente com sua proposta que pertencia a Greg o seu
coração. Mas poria em jogo a astúcia e, muito mais que isso,
a intimidade, o corpo à disposição de Charles para, com isso,
garantir o sucesso do seu intento. Saíram naquela noite. E em

154
outras mais. A paixão de Charles por Linda tornava-se a cada
dia mais forte e ofuscante. O apego, o ciúme incontrolável e
outras demonstrações faziam dele um vassalo em suas mãos.
Encontros e saídas regadas à peso de ouro tornaram-se a
marca registrada do amor comprado. Território do despudor.
Ele, amando perdidamente. Ela, deixando-se amar.
Aproveitando o momento. No usufruto e no deleite de um
sentimento cego e deslumbrado.

Greg e Clarice viviam um verdadeiro conto de fadas,


amando-se perdidamente. Ela formara-se em arquitetura e
encontrava-se estagiando em uma empresa construtora no
bairro de Clarksville a poucos quilômetros da faculdade onde
ele lecionava. À noite, após o expediente, ao sair do elevador
e encaminhar-se para a rua, Clarice avistava o automóvel
estacionado na calçada em frente ao prédio e, dentro dele,
Greg, esperando-a e sempre com um sorriso de satisfação nos
lábios. Saíam para jantar em algum restaurante das
proximidades, conversavam sobre os seus dias e falavam do
futuro. Vez ou outra iam ao cinema. Em casa, amavam-se
com paixão, sentindo que haviam nascido um para o outro.
Uma noite, recostados sobre o sofá, assistiam a um programa
de televisão quando o telefone tocou. Greg, que tinha as
pernas relaxadas sobre uma mesinha a sua frente, acariciava o
rosto de Clarice, deitada sobre suas coxas. Encolheu as
pernas e ajeitou-se enquanto esticava uma das mãos para o
aparelho. Do outro lado reconheceu a voz de Charles
Thompson.

- Não imaginei que fosse ficar tanto tempo sem ver o


amigo. Por que não aparece? - Desde que se casara com
Clarice, Greg não mais aparecera em Nashville. Já passavam
de três meses.
- Você sabe, trabalha-se muito por aqui respondeu. - Além
do mais, considere que ainda me encontro em lua de mel. È
Charles disse, colocando a mão no fone e virando-se para a
esposa. - Ela sorriu sem muita surpresa e ele prosseguiu. -

155
Não deixei um bom conceito ao sair deste lugar; receio voltar
e ter que encarar as pessoas.
- Você não fez nada, não matou nem roubou ninguém.
- Sei disso. Mas eles não vêem desta forma. Isto agora é
passado. Quero esquecer tudo e concentrar-me em minha
nova vida. Sou feliz onde estou e ao lado de quem amo. -
Clarice sorriu novamente, desta vez com muito entusiasmo.
- Ok. Como preferir. Farei então uma visita assim que
tiver um tempo. - Conversaram mais algum tempo sobre
assuntos de trabalho e despediram-se.

Dias depois, Charles aparece de surpresa no trabalho de


Clarice. Almoça com ela e tem a seguinte conversa:

- Estou feliz por ter feito aquilo que combinamos, mas não
esperava que levasse a coisa assim tão longe. Não era este o
plano. Devia seduzi-lo e fazer com que se apaixonasse mas
estou vendo que o contrário aconteceu.

- Tem razão, amo Greg como nunca amei outro homem.


Mas não aconteceu o contrário como diz. Fui correspondida,
ele me adora. Por isso nos casamos. Não deve queixar-se, ela
agora está livre e o caminho está aberto para você. Cumpri
minha parte no trato.

- Sei disso. Também cumpri a minha parte, o dinheiro já


está em sua conta; considere-se uma mulher rica de hoje em
diante. Apenas previno para que tenha cuidado a fim de não
criar desconfiança. Linda está inconformada e eu paguei
muito caro para realizar o meu sonho. - Charles não
mencionou a conversa que tivera com a outra. Quanto ao fato
de eliminar Clarice, é claro que ele não o faria. Seria facilitar
demais para Linda e não garantir o que ele queria. Charles a
amava e ela teria que ser dele apenas. Possuir o seu corpo não
era o suficiente. - O que vai fazer com o dinheiro? -
perguntou, amenizando o tom de voz.

156
- Para falar sério, ainda não pensei nisso Clarice
respondeu sem vacilar. - Sou uma mulher feliz ao lado do
homem que amo. O dinheiro está em segundo plano, mas é
sempre bem vindo. Sei lá, vou inventar uma história; posso
falar de uma herança inesperada ou coisa desse tipo. Lidar
com o dinheiro não deve ser coisa difícil. O problema é a
falta dele concluiu satisfeita.

A conversa com Charles deixou Clarice assaz preocupada.


Mas ela soube usar de tato e inteligência para não dar
perceber a Greg a sua situação. Ao mesmo tempo em que
aumentava o seu amor por ele, crescia também o medo de
perdê-lo. Ele acreditou na origem da inesperada fortuna sem
muita dificuldade e alegrou-se de poder compartilhar com ela
de tamanha sorte ao mesmo tempo em que agradecia à alma
do benfeitor inexistente. Mudaram de vida. Ele antecipou por
trinta dias as férias e gastaram os dois meses seguintes em
passeios e viagens pela Europa, um sonho antigo de Clarice.
Ao retornarem, instalaram-se em uma suntuosa chácara nos
arredores de Wynstone e passaram a viver ali dias de gáudio
e felicidade. Greg, como a maioria das pessoas, teve sua vida
transformada pela força do dinheiro. No lugar de voltar ao
trabalho naquele ano que já iniciara, decidiu fazer diferente.
Propôs um acordo pelo tempo de serviço prestado à causa, no
que foi aceito. Mesmo recebendo abaixo do que teria direito
se continuasse ativo na profissão, achou vantajosa a contra
proposta e a agarrou. Com o próprio capital que não era
muito, somado ao capital da esposa que pouco não era,
compraram e melhoraram a referida chácara, a qual passou a
ser, além de moradia para os dois pombinhos, repouso e
distração aos numerosos viajantes que por ali passavam
diariamente.

Charles e Linda perdera-os de vista por um bom tempo.


Clarice, apaixonada, não resistiu e abriu a verdade ao marido.
Este, bem que tentou ignorar o fato, mas tornou-se-lhe
impossível acreditar que Linda, a mulher a quem um dia
amara verdadeiramente, tenha sido vítima de um conluio para

157
perdê-lo. Se não fosse o amor, que a esta altura sentia por
Clarice, tentaria aproximar-se e pedir perdão. Ao pensar em
Charles, não conteve a ira. Era ele o responsável por toda
essa reviravolta. Por outro lado, o coração de Greg
encontrava-se dividido. Entre o ódio e a gratidão. A
felicidade presente e o amor por Clarice eram mais fortes,
porém. Mas não esqueceria o embuste. Foi ter com Linda em
casa desta, a fim de comunicar-lhe o ocorrido. Ele não quis
entrar, apesar da insistência. Conversaram na varanda,
envoltos pela brisa tímida e refrescante, anunciadora do
inverno que se aproximava. Ela pareceu-lhe ainda mais bela
do que antes. Havia saído do banho onde lavara a cabeça.
Recebeu-o dentro de um chambre azulado e com uma toalha
branca em forma de touca embrulhando-lhe os bastos cabelos
ainda umedecidos. Quando abriu a porta e o viu, não conteve
a alegria. Os dentes muito brancos de Greg sorriam para ela,
como que acendendo em seu coração uma esperança
sofredora e combalida.

- Meu amor, você voltou para mim? - disse, tomada pelo


entusiasmo e pela surpresa feliz e inesperada. Greg sentiu-se
meio sem jeito ante a efusão repentina de Linda e guardou o
sorriso. - Entre emendou, sem dar a ele chance para uma
resposta.

- Não, Linda. Podemos conversar aqui mesmo na varanda.


Você tem alguns minutos? Preciso lhe falar. - Sentaram-se à
varanda. Ela ofereceu café mas ele não aceitou.

Situava-se a residência do ex-casal numa parte não muito


movimentada de Village West. Dali para o centro fazia-se em
vinte e cinco a trinta minutos de automóvel, dependendo da
hora e do tráfego que para lá fluía. Um ou outro veículo era
avistado passando em frente à casa para depois juntar-se na
estrada vicinal a uns quinhentos metros dali. Um Cadilac azul
turquesa, vindo em marcha muito lenta, fez menção de parar
à vista de Greg, que se encontrava de frente para a rua. Pela
distância e por estar concentrado no que pretendia dizer a

158
Linda, não deu muita importância a este fato. O carro
prosseguiu sua marcha e Greg o seu intento.

O relacionamento entre Linda e Charles caiu no


esfriamento a partir do dia em que este a viu conversando
com Greg na varanda, pois era de Charles o automóvel que
ele avistara, embora não o tivesse reconhecido. Após o
ocorrido, Charles passou a exigir dela uma explicação, mas
que não o convenceu. Incendiadas pelo ciúme, mais do que
conversas, as discussões entre os dois beiravam ameaças por
Charles, traído, e por Linda, vilipendiada e abatida. Ela parou
de procurá-lo, o que fez-lhe aumentar a revolta. O estado do
homem era indescritível. Gastara uma fortuna, modificara
radicalmente o estilo de vida em prol de um sentimento que
não fora correspondido. Linda, malograda pelo descarte
efetivo do homem que amou e que ainda amava, teria se
conformado com o destino infeliz e desistido de acabar com a
vida de Clarice, como dava a entender pelo seu
comportamento. Já há semanas não dava o ar da graça aos
bancos escolares e não se soube de seu paradeiro. Apareceu
morta dias depois ao também abandono por parte de Charles
de suas funções na universidade. A suspeita inicial de
suicídio não convenceu às autoridades que, por isso, abriu
averiguação e saíram à cata do autor do provável homicídio.

Charles encontrou-se mais uma vez com Clarice, desta


feita em um café ao lado do mercado onde ela tinha por
hábito realizar as compras para a sua pousada. Mostrando-se
consternado, queixava-se de sua sorte. Mas nem por isso
deixou de parecer suspeito aos olhos da jovem.
- Não possuía, em absoluto, motivos para assassiná-la.
Porque o faria se estava apaixonado? Ela é tudo que eu
sempre quis dizia, procurando convencê-la.

– Não sei, Charles. Não estou querendo incrimina-lo,


mas ...

159
- Está querendo dizer que a matei? - disse, elevando o tom
da voz, despertando a atenção dos que ali se encontravam.

- Não, Charles... não é bem assim. Mas há suspeitas, você


sabe. Enquanto houver indícios, todos...

- Cale-se! - gritou Charles, indignado. - Foi suicídio, vão


acabar descobrindo. - Clarice virou o último gole do
chocolate que estava bebendo, colocou sobre a mesa de
mármore a xícara e disse, envergonhada pela atitude grosseira
de Charles:

- Espero que sim. Boa sorte. Por favor, não me procure


mais. Nem ao Greg. Não queremos problemas com a polícia.
Não estrague a nossa felicidade, Charles - e virou-se,
deixando o recinto. Ele permaneceu imóvel, contemplando-a
ao sair e ingressar em belo automóvel estacionado sobre a
calçada, adquirido pelo toque de sua generosidade.

Ao tomar conhecimento da morte da ex-esposa, Greg


sentiu-se arrasado, o mais infeliz dos mortais. As lembranças
de um passado verdadeiramente feliz como que retornavam,
uma a uma a sua memória e não conseguia esconder de
Clarice os seus sentimentos, por mais que o tentasse. Era
freqüente vê-lo cabisbaixo e triste. Os olhos vermelhos e
inchados denunciavam o choro e a saudade. Este estado de
coisas continuou por dias, precedendo discussões acaloradas
entre o casal.
– É este o amor que diz sentir por mim? Vejo como está
mudado depois que ela morreu.
– Uma dor alheia merece respeito. Foram anos de uma
convivência harmoniosa. Será que você não entende como eu
a amava? – ao dizer estas palavras, levou ao rosto ambas as
mãos, num frenesi incontido dor e frustração. Encobrindo o
pejo do choro e o banho de lágrimas. Não se falaram por
quatro dias seguidos. No quinto, ao despertar, Clarice olhou
ao redor do quarto. O vazio da cama ao seu lado não lhe
causou estranheza, já que o sofá da sala de visitas é que

160
servia de repouso para Greg nos últimos dias. Porém, ao não
ver sobre o guarda-roupa a grande mala de couro
avermelhada, suspirou, imaginando o pior. Num ímpeto,
levantou-se. Amarrou o laço da camisola branca de seda,
presente dele no último aniversário, calçou os chinelos e,
apressada, ganhou a sala. Como previa, Greg lá também não
se encontrava.

Pensamentos conturbados, olhar perdido, retorna ao


quarto. Contempla, sobre o criado-mudo, envolta pela
moldura escarlate de belo porta-retrato, uma das cenas mais
felizes que já vivenciara ao lado dele. Juntos em Veneza,
cercados pela magia da praça São Pedro, num click
inesquecível, abraçados e tendo ao fundo a catedral,
projetando sobre a imagem sua enorme e agradável sombra.
Vencidos pelo sono incontrolável, fecham-se os lindos olhos
de Clarice.
Em casa de Charles Thompson, Greg desabafa sua tristeza
e consegue, após evidentes conclusões, acreditar na inocência
do amigo. Difícil foi perdoar-lhe a trama, mas o fez ao ficar
sabedor de quão antigo era o relacionamento entre ele e Linda
e como Charles sempre a amara. Juntos, colaboraram com a
polícia para desvendar o homicídio. E não demorou muito.
Em nova vistoria na residência do ex-casal, local do crime,
esclareceu-se o caso, graças à percepção e a boa visão de
Greg. Linda morrera por estrangulamento. A arma: um
cordão de pérolas que havia sido da vítima, mas que retornara
para as mãos de Greg entre outras jóias que ela fez questão de
devolver após a inevitável separação e ele, sem outra
alternativa, aceitou; deu-as a Clarice sem, no entanto,
mencionar-lhe a origem. Esta, soube-a por Charles. Guardou
a inveja e a humilhação para uma ocasião oportuna. Ao
utilizar o colar para eliminar Linda do seu caminho, uma das
pérolas desprendeu-se sem que ela desse por isso e foi o seu
brilho, quase imperceptível, por vir de baixo de um dos
móveis da sala, para onde rolou, que chamou a atenção de
Greg, pondo fim ao mistério.

161
Uma ordem foi emitida e uma busca iniciada; não
precisaram de muito esforço. Chegaram para prender Clarice.
Greg e Charles os acompanhavam. Bateram à porta, sem
resultado. Usando a chave de Greg e com a autorização deste,
entraram. Nenhum som, nenhum sinal de vida. Vindo do
quarto do casal, um grito reúne ali todos os homens. De pé,
ao lado da cama, olhos esbugalhados e estático, está Greg. A
penumbra do ambiente impede a visão perfeita dos objetos do
quarto. O delegado dirige-se até a janela e afasta o cortinado,
trazendo para o interior da peça uma nesga de luz de um débil
sol matinal. Sobre a cama, ainda na mesma camisola branca e
enlaçada, pálido e sem vida, o corpo de Clarice. Dorme o
sono eterno. Irreconhecível, dada a posição natural de quem
se deita para uma rotina normal e noturna. Causadoras da
reação de Greg, sobre o mesmo criado-mudo, pílulas se
esparramam, algumas dentre tantas que compunham o vidro
aberto e caído ao lado do porta-retrato, testemunha inútil e
indiferente.

162
O Escravo de Ramsés

T
odas a formas e todas as cores, que possam atrair a
atenção e despertar, não só a curiosidade, mas os
paladares mais exigentes, ali estavam expostas.
Completamente apinhados de barracas simples, cobertas de
uma lona branca e bastante forte, que as protegiam das fortes
chuvas que ali se faziam freqüentes, e guarnecidas nas
laterais por tecidos avermelhados, encontravam-se os dois
lados da rua. A multidão se espremia e disputava espaços
raros em busca daquelas que ofereciam os melhores preços e
as melhores mercadorias. A vista das enormes e apetitosas
ameixas, do vermelho das maçãs, realçado pelo brilho das
gotículas que resvalavam do alto de uma pequena abertura,
enchia de desejo os olhinhos de Ahamed e de água a sua
boca, que desde a noite anterior, até aquele já quase final de
tarde, ainda não provara alimento.
Valeria a pena se arriscar e pagar o preço da fome
implacável? Por culpa do próprio regime em rigor naquela
terra distante, a pobreza excessiva destruira a dignidade e a
esperança da maioria. Ahamed era o exemplo vivo desta
desumanidade. Seu corpinho raquítico destoava da idade de
14 anos vividos em meio à fome e à miséria. Os olhinhos
fundos nas faces encovadas acompanhavam com agilidade o
movimento da turba. Ao contrário daquela sua aparência,
desfilava a sua frente a nata privilegiada, mostrando sem
pudor ou constrangimento o produto do ganho fácil, fruto da
discriminação.
Ainda não caíra com força a chuva. Restara, do temporal
da véspera, o barro em alguns pontos da estreita rua de terra.
As mulheres pisavam com cuidado e desviavam-se das poças
protegendo as belas e coloridas sandálias, enquanto os
homens que trajavam túnicas preferiam erguê-las até a
cintura, não se importando em chafurdar os pés no negro
lamaçal recém formado.

163
Ahamed não despregava os olhos de uma das barracas a
sua frente. Era repleta de frutas; nozes, pêssegos, enormes
cachos de uva pendurados a balouçar ante a sua visão
maravilhada. Encostara-se no muro branco de uma residência
a uns dez metros do portão e ali ficara, esperando a
oportunidade de se aproximar sem ser notado. Talvez não
tenha percebido a chegada de um morador descendo as
escadas do terraço, trazendo nas mãos algumas sacolas
contendo lixo. Ele abriu o portão, olhou para o menino, mas
não esboçou nenhum tipo de reação. Caminhou alguns passos
para o lado oposto, ergueu a tampa de uma enorme caçamba,
atirou lá dentro as sacolas e retornou, subindo as escadas.
As ofertas tentadoras atraiam a todos que passavam. Os
preços estavam expostos em tinta preta sobre plaquetinhas
amarelas espetadas nas mercadorias. A multidão aglomerava-
se ao redor, cobrindo com freqüência a visão de Ahamed.
Súbito, uma idéia pairou em sua mente. Porque não se
infiltrar no meio dos grandalhões para roubar algumas frutas?
Era tão miúdo que talvez não dessem por sua presença.
Esperou a passagem de um burro, montado por um sujeito
muito magro e sem camisa que transportava uma menininha
em sua garupa. Atravessou e meteu-se no meio dos outros.
Uma gorda, vestida num avental branco e encardido, atendia
aos pedidos, pesando em uma balança quadrada as
mercadorias e ensacando as moedas no enorme bolso da
frente. O moleque, sem que ninguém notasse, passou para
debaixo de uma das bancas das barracas e ali ficou, na espera
de uma oportunidade.
– Aproveitem! As melhores frutas da estação pelos
melhores preços estão aqui – gritava a mulher e depois sorria,
exibindo os dentes amarelados, com algumas falhas no lado
esquerdo da boca. Ahamed, encolhido por trás de alguns
balaios de vime, esticava de vez em quando a mão e puxava
um pêssego ou uma ameixa, saciando, aos poucos, a fome.
Eis que surgem, entre a freguesia, vestidos em seus
uniformes – saiote de linho alaranjado, jaqueta com cinturão
de fibra de algodão e alpercatas de pano reforçadas com tiras
de couro – os guardas do palácio imperial, fazendo a

164
costumeira ronda. Ahamed os viu. De onde estava,
acompanhou os passos de um deles que, súbito, retornou e
veio em sua direção. Percorreu-lhe um calafrio e pressentiu
algo ruim, quando duas enormes pernas pararam diante dele.
Tentou sair dali e correr, mas já era tarde. Ao erguer-se pelo
outro lado da barraca sentiu duas mãos pesadas que o
agarraram pelo pescoço. O homem que vira minutos antes
saindo da casa esperou o momento certo de tirar mais um
desfavorecido de circulação.
O flagrante da prisão levou-o diretamente ao departamento
de polícia onde permaneceu por duas semanas encerrado em
um cubículo de oito metros quadrados junto com mais três
menores que, como ele, se condenados, e certamente o
seriam, receberiam o mesmo castigo. No Egito daquele tempo
não havia apelação, idade e, tampouco, fiança para os crimes
de roubo. Perder a mão, decepada ao golpe da cimitarra era o
que aguardava Ahamed. Triste penalidade para o triste
suplício da fome que pede apenas que seja saciada.
Julgado e condenado chegou o dia da execução. Foi levado
a campo aberto na entrada do deserto e amarrado a duas
traves fincadas na areia úmida e branca, na posição de pé,
braços e pernas abertos e com os pulsos e mãos esticados e
atados em grossas cordas. A mão direita pendia, inerte,
aguardando o fim trágico. Ali se encontravam os homens da
lei, representantes do faraó, testemunhas e outros interessados
e curiosos. Foram lidos os termos da pena. Em seguida, um
trecho do Alcorão completou a cerimônia. O carrasco
apresentou-se; os braços nus, musculosos e queimados pelo
sol. As mãos peludas seguravam com firmeza a arma que
brilhava e causava medo.
A aproximação de uma carruagem de forma repentina e
barulhenta desviou a atenção do evento e, mais ainda, uma
mulher bela, tanto em trajes quanto em beleza física.
– Quem ousa interromper a cerimônia de execução? – quis
saber o juiz presente.
– Sou Demétria, secretária de paz da princesa Bartira, do
reino de Abdul.
– Que deseja a nossa adorada Bartira?

165
– O rei Abdul está doente. Os afazeres do castelo se fazem
urgentes e acumulados e necessitamos de escravos. Poupe da
morte este pobre coitado que vou levá-lo agora mesmo à
presença de Bartira.
– Embora não aceite fiança o nosso faraó, o condenado
pode ser negociado como escravo e livrar-se assim da morte e
a responsabilidade recai sobre o adquirente. Sabe, no entanto,
que os valores da negociação são altos. Não sei se valerá à
pena ao nosso rei.
– Não importa a Abdul o valor e ele está ciente de todos os
riscos. Liberte-o agora mesmo.
Livrou-se assim Ahamed de perder a vida e seu peito
encheu-se de gratidão e alegria. Aquele infeliz menino,
vagabundo e sem família, atirado na rudeza e na solidão das
ruas, viu transformar-se a vida de um momento para o outro
como conseqüência afortunada de um fato corriqueiro nas
ruas do Cairo nos tempos de Ramses. A fama de Bartira
como favorita do rei Abdul era inquestionável. À bela
princesa não faltavam o conforto e as riquezas do castelo
onde vivia. Alta, olhos azuis brilhantes e expressivos e tez
morena acentuada pelos raios abundantes do sol que
invadiam os amplos espaços dos seus aposentos. As escravas
cercavam-na de préstimos e atenção. Foi este ambiente de
riquezas e maravilhas que acolheu Ahamed e o viu
transformar-se de um raquítico e débil guri num forte e
garboso mancebo. A princesa, acompanhando de perto esta
mudança, mudava de igual forma o jeito de ser para com ele.
Os músculos, desenvolvidos no exercício diário das pesadas
obrigações como escravo, eram agora o colírio calmante que
a enchiam de admiração e desejos por ele.
Tornaram-se amantes. A princípio, às escondidas, tendo
como testemunhas de seus momentos proibidos não mais que
as paredes e pilastras daquela morada.
– Meu coração não vê a hora de unir-se ao seu sem que
precisemos ocultar ao mundo os nossos sentimentos, meu
grande amor. Amo-o como nunca amei outro homem. Não foi
à toa que rejeitei as investidas aventureiras de muitos que
aqui estiveram trazidos pelo faraó. É porque sabia, do fundo

166
da alma, que um dia seria sua. O fim de Abdul está próximo
e, como rainha, não precisaremos fingir nossa paixão.
Ahamed deixava-se levar pelas declarações de Bartira,
correspondendo integralmente. As mãos macias que
penetravam os bastos cabelos macios do moço, como as
unhas pontiagudas da futura rainha, deslizavam com afeto
sobre o couro cabeludo, eriçando-lhe os pelos.
– Que mais poderia eu desejar da vida? Tanto sofri que já
perdia as esperanças de haver alguma felicidade neste mundo.
Até que, por desígnio dos deuses, surgiu você, salvando-me a
existência. Mais do que isto, mostrou-me o doce encanto do
amor. Quero viver a seu lado eternamente; este é o meu lar e
você é tudo que quero e que preciso.
A morte de Abdul trouxe mudanças. Bartira, no trono, não
cumpria, à altura do pai, as árduas tarefas de um monarca. O
temperamento calmo e parcimonioso que a todos agradava e
havia conquistado desapareceu com o tempo. Mudou leis,
criou estatutos e afastou amigos e colaboradores. Tornou-se
uma rainha má, na opinião de seus próprios conselheiros. As
penas de morte, assim como as execuções, triplicaram,
colocando em pânico a sociedade do seu tempo. Ahamed, por
mais que a alertasse, não obtinha sucesso em abrir-lhe a visão
ao que vinha ocorrendo. A paixão já não era a mesma. O fogo
do amor diminuía ao transcorrer dos anos, os mesmos anos
implacáveis que empanavam também a frescura da pele e o
cativante brilho da fisionomia da rainha.
Alguns anos se passaram. A herança de Ramses II
permanecia gloriosa, exposta nos templos e palácios da
capital Tebas e, nas suas vizinhanças, Luxor e Karnac eram o
habitat de Deus sobre a terra. De uma maneira inteiramente
excepcional, Ramses III permite-nos lançar uma olhadela
sobre a vida íntima do harém e suas diversões. Nos
apartamentos das torres da “Grande Porta”, situada hoje na
margem ocidental do Nilo, fez-se representar em suas
relações familiares com suas favoritas. As mulheres, e ele
próprio têm por únicas vestes uma coifa, um colar e
sandálias. As esbeltas e graciosas criaturas cercam seu
senhor, que traz à cabeça a coroa azul dos faraós, jogam com

167
ele o xadrez e apresentam-lhes às narinas buquês de flores
cheirosas. A gente o vê pegar pelo queixo sua encantadora
companheira e não se pode contemplar este gosto de terna
intimidade sem que ocorra a lembrança de que aquele mesmo
soberano haveria de morrer, vítima de uma intriga do harém,
na qual estiveram imiscuídos seus familiares mais imediatos.
Além das moças nativas, o harém compreendia
representantes de regiões longínquas. Mais de uma princesa
oriental foi enviada com grande pompa e ricamente escoltada
para o vale do Nilo a fim de ali se tornar esposa oficial do
folho do sol e contribuir para a melhoria das relações
políticas entre os dois países. Depois de alguns dias de festa,
em que a recém-chegada era coberta de presentes e honrarias,
esta desaparecia atrás das grades do harém e os documentos
históricos fazem o silencio mais completo a respeito delas.
Sabemos somente que uma tumba lhes era reservada a oeste
de Tebas e o que conhecemos da psicologia daquele tempo
nos permite crer que a estranheza dos ritos fúnebres egípcios
devia encher de inquietação e de angustia mística o coração
daquelas belas exiladas.
Evidentemente, a escolha das concubinas era determinada,
em primeiro lugar, pelos encantos femininos, sem que a
nobreza de sua origem fosse tomada de maneira alguma em
consideração. O faraó tinha por costume manifestar a
particular estima que mereciam certos personagens da corte,
oferecendo-lhes esta ou aquela beldade do seu harém pessoal.
Não sabemos quanto tempo as pensionistas do harém viviam
a cargo do soberano. É, entretanto certo que várias dentre
elas, cujos nomes conhecemos, passaram, após a morte do
seu senhor, para o harém de seu sucessor e ali ocuparam um
cargo de destaque.
Ruana viera da Pérsia para encher de beleza e magia o
castelo de Ramses III e ele, tendo na conta de um dos mais
fiéis conselheiros o garboso Ahamed, fez questão de ambos
aproximar. Agora, com 25 anos bem distribuídos, em beleza
física e inteligência, Ahamed exercia no palácio as funções de
escriba e gozava de grande respeito e admiração perante a
nobreza. O passado de miséria ficara no esquecimento. O felá

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esfomeado e vagabundo, o ladrão de feiras emagrecido era
apenas um a mais dentro da maioria esmagadora que era a
população do Egito, a classe dos dominados. Mas quis o
destino que uma sentença de morte fosse interrompida e lhe
trouxesse uma grande oportunidade. Amou-o Bartira pela
constatação dos fatos que só fizeram comprovar a grande fé
que nele depositava. Amou-o por vê-lo escravo durante o dia
e seu servo favorito em todas as outras horas, estudante
fervoroso, amante das letras; tanto ou mais que as curvas do
seu belo corpo. Devia a ela, sem dúvida alguma, a sorte que
conquistara, devia-lhe, mais que isto, a vida.
Passou a valorizá-la ainda mais, depois da morte de
Abdul. Temia então pela amada. A posteridade dos soberanos
do vale do Nilo foi geralmente numerosa, o que tornava
particularmente espinhosos os problemas que a sucessão
deles suscitava. Inúmeros papiros fazem alusões a
interrogatórios, a julgamentos secretos, a execuções sumárias
e outros ajustes de conta, em ligação com a morte de um
príncipe reinante. Desde os tempos mais antigos, certos
domínios da coroa eram destinados à manutenção dos
numerosos príncipes de sangue. Mas estes últimos eram
obrigados, ao mesmo tempo, a assumir funções muitas vezes
pesadas na administração, nos cultos e no exército.
Foi o que sucedeu com Bartira. Com a morte de Abdul,
ela, passando para o harém de Ramses III, ocupou ali várias
posições de destaque, mas não se sentia satisfeita. O poder da
soberania anterior era-lhe muito maior e cheio de liberdade, o
que agora não ocorria. Achava que Ahamed a traía com as
demais concubinas. Com a morte de Ramses III por
envenenamento, Bartira perdeu parte de suas regalias, que já
não eram muitas. Foi a julgamento, conseguindo se livrar de
uma condenação. Mas teve que abandonar o palácio e ir para
os cultos como serva de Amon Rá.
Os dotes de Ruana juntaram-se aos de Ahamed e a paixão
não se fez esperar. A ela não faltavam o luxo nem o conforto.
Poderia sentir-se satisfeita com o estilo material de vida que a
preenchia por fora, mas o vazio da solidão permanecia.
Sentia-se usada, vivia num mundo que não era o seu. Nobres,

169
guerreiros e sacerdotes faziam parte do seu dia a dia. O amor
de Ahamed era notório. Sentia-o nos olhos do escriba ao
cruzar com ele nos corredores do palácio, quando não o
captava disfarçado num sorriso que ele fingia não ser para
ela, mas para Ramses ou outra concubina nas festas coletivas.
Usara da influência do faraó, soubera como nenhuma outra
tirar vantagem dos momentos de orgia em que o soberano era
mais seu do que de outras concorrentes. Foi fácil, num
momento de fraqueza, incutir nele a idéia de lhe facilitar
Ahamed.
A princípio, todos os que estiveram no palácio, ou que por
lá passaram, eram culpados pelo assassinato do rei. A
influência de Ahamed conseguiu tirar Ruana de uma possível
condenação. Salvou-a. O amor fê-lo por si. O amor que já não
sentia por Bartira. A mesma que um dia livrara-o da morte
certa, perdera-o para uma escrava; quão revoltoso não devia
estar o seu coração. Só mesmo os deuses para consolá-lo e ela
vivia no meio deles, agora. Tanto a eles se dedicou que
conquistou os sacerdotes do templo.
Passaram-se meses, a sucessão efetivou-se e, quando isto
acontece, só não mudam de lugar as paredes do templo. Um
papiro em forma de mensagem destitui de suas funções
Ahamed que, rebaixado, não suporta a humilhação e decide
abandonar tudo.
– Não sofra por mim, eu te peço. Preciso aceitar meu
destino. Você é linda e inteligente, não posso aceitar que se
arrisque ao meu lado. Não fuja. Permaneça aqui e enfrente
tudo; no final estaremos unidos e nos amaremos para sempre.
Confie em mim, meu amor.
– Por favor, não me peça tal coisa – disse soluçando
Ruana. As lágrimas de dor e angústia banharam os contornos
rosados de suas faces. Os olhos verdes e expressivos fitavam
Ahamed, como a lhe suplicar que a não deixasse. – Prefiro a
morte. Não suportaria continuar nesta vida sabendo que não
mais o teria a meu lado. Vivi e tenho vivido envolta no
paraíso. Quase esqueço que sou uma concubina que divide
com outras as horas de alegria e descanso de um Ramses. Sou

170
diferente delas porque tenho a ti, meu amor, meu guardião,
minha fortaleza.
Mas, por maiores que fossem as promessas e por mais
torturante a decisão que precisava tomar, Ahamed não
titubeou. Ao dar o beijo de despedida em sua amada, foram
de seus olhos as lágrimas que desta vez rolaram. O abraço
apertado, o rosto oculto no choro e o vestido branco de linho
umedecido irão se perpetuar na mente de Ahamed com a
mesma força que já se perpetuara o amor de Ruana em seu
coração. Naquela manhã calorosa partiu ele a cavalo para sua
nova vida.
Bartira, a grande causadora do renascimento de Ahamed,
como de sua queda, de promoção em promoção dentro do
templo, tornou-se sacerdote, conquistando em todo o Egito
respeito, admiração e, inevitavelmente, medo, posto ter sido
ela no passado alvo de iguais sentimentos. E, agora, depois
do faraó, a mais rica e influente personalidade tinha muito em
suas mãos. Ahamed enfrentou anos de penúria vagueando no
deserto, sacando de sua grande sabedoria a força e a coragem,
sustentado pelo amor de Ruana. Os ricos e abençoados oásis
foram seu lar e sua oficina; e a experiência, a convivência
entre beduínos transformaram-no mais uma vez. Tornou-se
próspero na compra, venda e criação de camelos. À sua
tenda, bela e confortável, vinham mercadores dos quatro
cantos da África. Com exceção de Ruana, Tebas, o palácio do
faraó, as pirâmides, em fim, o Egito, passaram a ser, não só
para ele, mas para todos da longínqua região onde agora
vivia, não mais que uma referência comercial e bastante
lucrativa. E foi graças a isso e a sua fama, e não menos à
sábia mão do destino, que Ruana passou a ser sua novamente,
trazida a camelo e com muita pompa.
Pelo poder da riqueza e da grande influência sobre a
sociedade daquela época, eram os sacerdotes temidos e
respeitados. Nem mesmo a força de um faraó era capaz, em
certos casos, de sobrepujá-los. Tinham em mãos a fé cega de
um povo submisso e ignorante. Sob o reinado de Ramses III,
e mesmo depois, a riqueza do clero de Amon aumentou em
grandes proporções. Os celeiros clericais regurgitavam de

171
trigo. Um exército de 107.000 escravos servia os padres de
Amon. E, admitindo que a cifra da população tenha sido de
cinco a seis milhões, um homem dentre cinqüenta e sessenta
egípcios era escravo do clero. E mais, a sétima parte das
terras aráveis pertencia a Amon e a seu clero. Este era
proprietário de 169 cidades do Egito e da Síria, de uma frota
de 88 navios, de 53 estaleiros navais e de 500.000 cabeças de
gado.
De fato, eram os faraós rebaixados ao lugar de criados dos
servidores dos deuses. O poder e o prestígio reais decresciam
à medida que aumentava o poder do clero. Sendo assim,
Ramses III sobreviveu por pouco tempo à conspiração urdida
contra ele e morreu em 1167 a.C. Sintomas alarmantes:
domínio clerical, conspiração e invasão do país por
estrangeiros eram os sinais precursores da ruína do Egito.
Dentro deste clima de insatisfação e revolta vivia a
população do Egito. No palácio, Ruana amargava os maus
tratos que sofria, instigados pelos sentimentos de perda e
frustração de Bartira. A vida sem graça e sem sentido longe
do amor de Ahamed tornava-se-lhe agora insuportável.
Descuidou-se da saúde e da beleza física. Tornou-se, nos dois
anos que agora os separavam, gorda e envelhecida. O período
da transição que sobreveio à morte de Ramses III foi o pior
de sua vida palaciana. As mordomias que ostentava deram
lugar à tortura e a perseguição.
Bartira não se esqueceu da promessa de Ahamed de ser
somente e para sempre seu, por isso não perdeu a esperança
de reviver o seu amor. A influência que agora exercia no
Egito atravessava fronteiras, afetando todas as transações
comerciais que fossem do seu interesse. De maneira hábil e
premeditada boicotou todas as relações de negócio com a
Síria, reduto de Ahamed e sua principal fonte de riqueza. Isto
o prejudicou imensamente. Dono de magnífico império viu,
em pouco tempo, cinco das oito cidades em que prosperava
passar para as mãos do clero egípcio. Perdeu com isto dois
estaleiros, quatro navios, centenas de cabeças de gado, entre
outras riquezas. Ele sabia, no entanto, que no fundo do
coração de Bartira ardia, por trás de toda sua pompa e

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ostentação, um tremendo vazio, o vazio do amor. Portanto,
foi até ela. Quem sabe não chegariam a um acordo?
A exuberante entrada de Luxor é o retrato da prosperidade
do novo império Egípcio. Ramses II dedicou sua longa vida a
estes exageros arquitetônicos; suas esfinges, como a querer
eternizá-lo, nos recepcionam de forma imponente, para não
dizer assustadora. Ahamed estacionou ali numa manhã de
domingo em duas carruagens, trazendo consigo seis pessoas
entre escravos e conselheiros. Como parte da condição de
recebê-lo e ouvir o que tinha a dizer estava a aceitação dele
em não ver nem perguntar de Ruana.
– Vejo que está muito mais bonita. Parece que Amon tem
derramado sobre você as suas graças – disse Ahamed,
sozinho com ela numa das salas do templo.
– Você sabe que minha felicidade só seria completa se o
tivesse ao meu lado. Não sei o que viu em Ruana, uma
simples escrava. Mostre que é realmente aquele sábio
Ahamed que eu ajudei a ser, ficando comigo. Já provou isto
ao deixar o palácio e tornar-se o homem mais rico de toda a
Síria. Pode ter tudo em suas mãos. A mulher mais poderosa
de todo o império egípcio, a deusa de Amon Ra, que tem a
seus pés reis e rainhas. Mas tudo isso não passa de quimera se
não tiver o que mais anseio na vida: o seu amor. Ahamed,
case-se comigo e terá de volta tudo o que lhe pertencia; será
rico novamente. Muito mais que isso, será o número um de
toda a terra do Egito.
Ahamed a ouvia em silêncio. No fundo, o que sentia por
Bartira não passava agora de mágoa e compaixão. Estava de
todo transformada; só o poder agora a ela interessava. A
transformação que ele já pressentia de longa data, somente
agora, ante seu olhar surpreso, se evidenciava. Já contava, na
verdade, com esta mudança. Mas a expressão e o tom de voz
de Bartira não deixavam dúvidas do que o poder que o poder
causou em sua alma de sórdido e repelente. Não quis,
todavia, demonstrar o que estava sentindo. Afinal, a sua
felicidade também dependia dela. Começou dizendo.
– Querida Bartira, meu peito não cabe de gratidão a tudo
quanto por mim fizeste. Não é então uma vida tesouro maior

173
do que todas as riquezas reunidas? Por mais que eu viva e por
mais poderoso que venha a me tornar, nunca me morrerão no
peito os momentos por que passei ao ver de perto o meu fim.
Levarei para a eternidade a alegria de ter sido salvo por ti.
Mas, pelo poder de Amon, não me peças o impossível. Não
posso negar que um dia te amei mais do que tudo neste
mundo. Porém, quem resiste às flechas da paixão
inexplicável, do amor gêmeo, correspondido e compatível de
sentimento, de carne e de espírito? Ruana é o grande amor da
minha vida. Por ela cheguei onde estou superando todos os
percalços deste mundo e resistindo à falta do amor causada
pela distância agonizante, mas não carente de esperanças. Por
Deus, permita que a veja e fale com ela.
Diante destas palavras de Ahamed, viu Bartira cair por terra
todas as esperanças que ainda restavam em seu coração.
Sentiu, como mulher inteligente que era, que nada o traria
para junto de si. Que, mesmo que dele arrancasse até o último
do seu gado, não teria o seu coração, posto que à outra de
uma vez pertencia. Mas, apelou, mesmo assim, para uma
última tentativa.
– Então, é mesmo o que quer? – disse, não conseguindo
esconder a frustração. – Alegre-se, pois; terá Ruana de volta.
– Operou-se na fisionomia de Ahamed a mudança
característica dos apaixonados. – Mas, é meu dever preveni-
lo. Ruana não é mais aquela menina linda e cheia de vida que
você deixou há mais de cinco anos.
– O que ela tem, está doente? – perguntou assustado.
– Não, pode ficar tranqüilo. Pelo menos, não fisicamente.
Mas está deprimida. Não demonstra muito amor pela vida e
come exageradamente. Não sei se irá reconhecê-lo de tão
gorda que está; quer mesmo vê-la ainda assim?
– Certamente que sim. Meu amor por Ruana é maior do
que a perda de sua beleza física; se é como diz.
– Verá com seus próprios olhos. Mas, não é só isso. Existe
mais um problema.
– Pelos céus! Não me torture. O que fizeram com a minha
Ruana?

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– Acalme-se. Não é sobre ela que vou falar agora, mas
sobre os seus bens que ficaram na Síria. Entra em vigor ainda
este ano a lei de execução penal de todos os envolvidos na
more de Ramses III. Tanto você quanto sua amada não
poderão viver no Egito e nem retornar a Síria. Seus bens
serão confiscados até que sejam descobertos e punidos os
verdadeiros culpados. Caso isto não ocorra, eles passarão ao
poder do clero de Amon Ra. Contudo, Ahamed, pense bem.
Eu tenho o poder de mudar toda esta história. Apenas peço
que fique comigo e tudo será como antes.
– Não, Bartira. Perdoa-me, mas não posso. Que seja então
cumprida a lei e eu fique sem os meus bens. Conseguirei
provar a minha inocência. Enquanto isso seguirei trabalhando
como tenho feito nos últimos anos, agora com muito mais
alegria, pois terei a meu lado a mulher que amo. – Dizendo
estas palavras, virou as costas e saiu, deixando Bartira
envolta em lágrimas de perda e de fracasso.
E assim termina a historia de Ahamed. Ele e Ruana
encontraram-se naquela mesma noite e pernoitaram no
palácio, partindo sob escolta para a Turquia, onde viveram
exilados por sete anos. Tiveram três filhos neste período.
Unidos pelo amor, trabalharam e, pacientemente, esperaram.
A mudança de governo da Síria favoreceu o seu caso.
Reconhecido o grande serviço prestado àquela nação, foi
aceito de volta e, ali, com Ruana e as crianças, estabeleceu-se
definitivamente e reconquistou quase a totalidade de sua
enorme riqueza.

175
A Fuga

O refeitório amanheceu exibindo a balbúrdia de


sempre. A única diferença é que, neste dia, além dos
cinzeiros carregados de guimbas em meio a copos, pratos e
talheres sobre as mesas de mármore branco, há Bruce,
estendido em um dos bancos. A boca escancarada só não é
mais horripilante do que o seu ronco. Como consegue dormir
sobre aquele banco estreito de madeira, e ainda roncar, deve
ser segredo seu, apenas. O ar que expele com violência eriça
os pelos brancos do bigode e, fazendo dos braços
travesseiros, é Bruce alheio a tudo que o cerca. As seis
badaladas do relógio na parede, atrás do pequeno balcão, não
fizeram efeito maior do que o zumbido das moscas que
rodeiam os pratos de comida da última refeição da véspera.
Foi seu aniversário e ele bebera além da conta. Trinta e cinco
anos de idade e há cinco naquele presidio de segurança
máxima, com dezenove ainda por cumprir. Prometera Bruce,
porém, aos companheiros de cela, que ali dentro não
comemoraria seu próximo aniversário. Tida como
impossível, uma fuga, já pensada e arquitetada dentro da sua
cabeça, não seria para ele obstáculo, da forma que a si mesmo
prometera executar.
Estranho não estar na cela como todos os outros. Vendo sua
alegria e descontração, e como um prêmio pela data, permitiu
o diretor que o deixassem ali, curtindo a carraspana, já
apagado e inofensivo. Mas, amanhecera o dia; mal deram as
batidas e a porta se abre com violência e seu estrondo contra
a parede põe fim ao sono e aos possíveis sonhos de Bruce.
Coloca-se sentado com um movimento brusco, tomado pelo
susto que o despertara. Esfregando os olhos, identifica o
policial, também com cara de sono e de poucos amigos. O
uniforme preto e amarrotado, tendo na mão uma caneca
branca, expelindo fumaça, deve mesmo estar mal humorado,
pelo jeito com que se dirigiu ao outro.

176
̶ Vamos! O que está esperando? Para a cela, como todos os
outros! A noite de mordomias e parabéns para você já acabou
há muito tempo. Bruce nada responde, porém. Pega da mesa,
o boné e o maço de cigarros, ajeita o cinto de couro da calça
jeans que está usando e levanta-se.
A ilha em que se situa o presidio não é habitada. Antes, uma
enorme mata, não passa agora de vasto terreno inóspito,
carregado de armadilhas e infestado de minas. Caminhar ou
correr por ali é arriscar-se a ir pelos ares ou perder, de uma
hora para outra, todos os movimentos. Se algum verde ainda
existe são arbustos enfezados, entremeados por trilhas de
gramíneas, de extensões enormes, levando à praia. Capinzais
alquebrados perfazem outras áreas de grandes rochas
alcantiladas. Em baixo, é bela a visão do mar, mas
assustadora ao mesmo tempo. As ondas vêm em fúria,
atingindo os píncaros, lançando, em golfadas impetuosas,
enormes volumes de água para todos os lados. Não há outra
área construída a não ser aquela que abriga os presos. É, no
entanto, uma obra imponente e de estilo arrojado. Não houve
economia para que seu objetivo principal, evitar fugas, fosse
cumprido. E, de fato, em seus vinte e sete anos de existência,
um prisioneiro, sequer, conseguiu escapar de seus domínios.
Tentativas houve, mas não passaram disto, sendo rechaçadas
a tempo de não causarem danos e dores de cabeça. Wilson
Trump é o diretor, o único que tivera Blue Mount desde sua
inauguração. Sessenta e quatro anos de idade, aceitou, após a
aposentadoria, continuar no cargo que adora e que tão bem
ocupa. Os cabelos brancos impõem respeito e a forma de agir,
admiração. Passa grande parte do dia debruçado sobre sua
máquina de escrever, elaborando relatórios sobre tudo que
ocorre em Blue Mount. Não é tarefa fácil porque não há um
dia de calmaria naquela instituição. Somente a sua
experiência, aliada a um salário magnifico, e único dentro de
sua profissão, foram capazes de fazer com que ele retornasse
àquele trabalho dificílimo e estressante; o governo de Kansas
City orgulha-se de Wilson e ele muito mais das medalhas que
já conquistara ao longo dos anos de dedicação incessante.

177
Poder-se-ia afirmar que, se em Blue Mount nunca houve
fugas isto se dá ao modo de trabalho de Wilson Grant.
Sempre impôs respeito a todos os condenados, mas, na
mesma medida, nunca se relacionou com um preso sem que
deixasse nele o sentimento de medo. Todos conhecem o seu
poder e, desafiá-lo é desafiar a própria morte. Faz questão de
visitar pessoalmente todas as celas, somente após o que
ingressa em seu escritório para iniciar os trabalhos do dia.
Não vai ainda para a máquina, mas senta-se em sua poltrona
em um dos cantos da sala e dali contempla o rosto de cada
um dos homens que já o aguardam. Há, neste dia, cinco à sua
frente. Dois continuam de pé, enquanto Wilson se mantém
sentado embora haja cadeiras disponíveis para que, também,
se sentem. É difícil, quando não impossível, saber o estado de
humor de Wilson, pois está acostumado, ou treinado, a
manter uma fisionomia fria e inexpressiva em todo e qualquer
tipo de situação, mas, a julgar pelo comentário que fez ao se
sentir, talvez, diminuído ou aviltado pelos dois que
permanecem de pé a sua frente, deve estar mal humorado.
̶ O que estão esperando para se sentarem? Acaso desejam
crescer mais um pouco ou será que estão apressados porque
terão um dia cheio pela frente?
Um deles é Bruce e, com esta frase, é certo que sentiu
aumentar a sua antipatia por Wilson. Sentaram-se,
finalmente. Wilson começa a falar e todos já sabem que, em
seu discurso não faltarão autoelogios, repassamento de todas
as diretrizes do presidio e, sobretudo, ameaças. Não ameaças
no sentido pessoal, mas de que fará valer, sempre que
possível, a sua autoridade para coibir mau comportamento e
desrespeito dentro de sua instituição. Todos que ali estão já
cometeram delitos graves. De assaltos a roubos a bancos e
assassinatos; são, portanto, variáveis as penas. Bruce é
condenado por assaltos a postos de gasolina e sequestros. É,
portanto, considerado de alta periculosidade e cumpre vinte e
quatro anos de prisão. Há, entre eles, Jordan, cumprindo
prisão perpétua por homicídio. Há doze anos preso,
participou das duas últimas rebeliões; é, portanto, um dos
mais visados por Wilson. Ser chamado à sala de Wilson pela

178
manhã é decair no seu conceito. Significa que, em termos de
comportamento, a nota fora a pior possível e isto quer dizer
ter os movimentos vigiados as vinte e quatro horas do dia.
Para Bruce, que tem em Jordan seu companheiro de cela, um
grande aliado para a fuga que tenciona realizar, isto não foi
nada produtivo. Terão, talvez, que abortar, por hora, a ideia,
visto já não mais dormirem juntos na mesma cela. É esta a
razão principal do seu ódio por Wilson. Para o diretor, pouca
diferença isto faz, porque lidar com prisioneiros difíceis é sua
especialidade. Bruce olha-o com desdém. Sabia que o fato de
deixá-lo passar a noite no refeitório porque era o seu
aniversário não passara de um blefe. A noite inteira não
desgrudaram os olhos de Bruce. De propósito encheu a cara e
deixou-se encher pelo sono mais do que pela bebedeira. Que
ficassem lá os guardas, muito despertos e atentos. Ele nãos
lhes daria esse gosto de tentar algo diferente; entende a
psicologia de Wilson, por isso o mau humor desse dia
culminando com o chamamento a sua presença. Bruce já se
encontra sentado e encara Wilson dentro dos olhos fazendo
aumentar ainda mais a sua irritação. O café da manhã de
Wilson costuma ser tomado ali em seu gabinete e ele
geralmente o faz antes da visita aos presos, bem cedo pela
manhã. Mas, como acordara virado e sem apetite, decidira
inverter a ordem nesse dia. Portanto, ali está a mesa posta e, a
lembrança do estômago vazio, aliada à visão das guloseimas
que, intactas, o esperam, só faz piorar o seu estado. Todavia,
a fome e a irritação não o impedem de manifestar sua frieza
característica, em que prevalece a superioridade sobre aqueles
homens privados de liberdade. Levanta-se, indo até a mesa
posta e, tomando nas mãos um bule prateado de porcelana e
uma xícara de vidro transparente, serve-se de um café no qual
pinga algumas gotas de adoçante e retorna para sua poltrona;
novamente senta-se, cruzando as pernas.
̶ Não vou tolerar manifestações de liderança nesta casa.
Conheço cada um dos condenados que aqui se encontram
muito mais do que podem supor. A festinha de ontem à noite
transcorreu em clima bom e pacífico o que, confesso, me
deixou surpreso em virtude do que ocorrera na véspera; e não

179
pensem que esqueci e muito menos que deixarei passar em
branco e os responsáveis sem a devida punição. Se
procuraram se comportar exemplarmente na noite passada
com o intuito de me fazerem mudar de ideia, então precisam
me conhecer melhor.
Todos encaram Wilson com muita atenção em suas palavras,
mas sem alterar suas posições. São, com exceção de Bruce,
como subordinados militares sob uma chuva de sermões.
Bruce, ao contrário, já não fixa Wilson enquanto este fala.
Seus olhos, como se movidos por um propósito à contra
gosto, procuram se distrair, passeando sobre os objetos da
sala. Vão, do armário de alumínio ao lado de Wilson, para a
mesa do café e, desta, para a fisionomia de cada um dos
rapazes. Examina, como que pasmado, o rosto de cada um
deles, o que deve, talvez, enchê-lo também de uma sensação
de superioridade. Daí, divisa, entre a cortina e uma das
janelas, entreaberta, uma parte do enorme pátio ainda vazio
àquela hora. Volta a olhar para o armário e suas enormes
gavetas, repletas, por certo, de arquivos dos incansáveis e
reveladores relatórios de Wilson. Este se esforça para não
demonstrar, no teor das palavras, nem no tom de voz, a real
sensação que lhe causa aquela indiferença e aquele sarcasmo
de Bruce. Na sua visão de líder, sabe e fará o possível para
que o outro venha a ter o que merece por seu jeito arrogante
diante de uma autoridade. De propósito, não se dirige a ele
pessoalmente, embora, em suas palavras, deixe claro a sua
mensagem e sua desconfiança em relação às intenções de
Bruce.
̶ Qualquer menção ou intenção que seja de uma tentativa de
fuga deste presídio não tardarão a ser do meu conhecimento.
Logo, estejam precavidos, pois poderão estar trazendo a mim
as informações que julgavam confidenciais; pensem nisto
antes de conversarem sobre fugas. Não só aqueles que
julgarem de bom comportamento poderão estar do meu lado.
Portanto, cuidem-se ao transmitirem um segredo, pois podem
ser surpreendidos na última hora. Da mesma forma, antes de
entrarem numa briga, pensem nas consequências; estas farão
sua permanência aqui bem mais dolorosa do que poderia ser

180
na realidade. Para começar e saberem que não estou
brincando, estão cortados, para este grupo, o carteado
noturno, bem como os cigarros e os livros, até segunda
ordem. E, alegrem-se, pois vou manter o banho de sol, mas
previno: uma reincidência na quebra das normas e irão se
arrepender de terem vindo parar neste presidio sob o meu
comando.
O relacionamento com a pessoa do diretor Wilson é para
Bruce muito mais recente do que para os quatro restantes
envolvidos na confusão da antevéspera. Embora já tenha
testemunhado as aplicações dos seus castigos a outros
detentos, não passou ainda por eles. Dos quatro anos que ali
se encontra, somente seis meses, ou pouco mais, vêm sendo
sob o comando de Wilson. Parte do descontentamento de
Bruce deve-se, sem dúvida, à saída do anterior e ao retorno
de Wilson, de cuja fama já cansa de estar inteirado. Com
Scott, o outro, Bruce conseguia impor uma forma de
comportamento que o mantinha confiante e convicto de que
levaria a bom termo suas intenções de fuga. Não apenas
Jordan, mas dois outros já haviam formado com ele um
quarteto entrosado para a execução perfeita dos planos de
fuga. Não fosse a tuberculose ter tirado a vida de um deles e a
repentina transferência de outro, talvez já não mais ali
estivessem. Resta agora o plano e o segredo ̶ ao que indicam
as evidencias ̶ muito bem guardado entre Bruce e Jordan.
Mas, até quando? A separação de celas tem trazido a Bruce
dias de incerteza.
Dias de agonia têm sucedido à última reunião com Wilson.
Privado de suas leituras e, principalmente, dos cigarros,
Bruce sente sobre si o peso do estresse e da solidão. Ocupa
agora uma cela menor, individual; com nada além de uma
cama estreita e um vaso sanitário. As duas saídas diárias para
o pátio não são longas o suficiente para lhe trazerem
recuperação. O que são dois turnos de quarenta minutos em
vinte e quatro horas de sofrimento, posto que não venha
dormindo à noite? Mas, representam alguma coisa: um pouco
de conversa, alguns cigarros que precisa fumar às escondidas
e revistas pouco interessantes conseguem preencher um

181
pouco o vazio das horas alucinantes. Há dias não cruza com
Jordan. Por arranjo de Wilson saem de suas celas em horários
diversos, tanto para as refeições quanto para os banhos de sol
e também de chuveiro; os grupos são distintos e onde está um
o outro não se encontra.
Na cela com Jordan há mais dois detentos que, não
facilmente, cairão em sua simpatia. Não por haver qualquer
motivo aparente, mas, por ser o caráter de Jordan não muito
sociável e talhado para amizades, especialmente para
amizades dentro de uma cela de prisioneiros. Há poucos dias
fora Jordan parar ali e sabia diferenciar um relacionamento
casual de pátio, de uma mesa de baralho, de um caso real de
convivência íntima. Os outros parecem compreender esta
característica de Jordan e pouco a ele se achegam. É ele um
negro alto e musculoso, mas esforça-se para não permitir que
esta vantagem lhe tire a cortesia e a simplicidade. Por ser
cuidadoso nos relacionamentos e de poucas falas desperta
uma forma diferenciada de simpatia. No entanto, dias
seguidos de um recinto fechado, limitado por três paredes e
uma grade; parco de luz e de esperança é capaz de desfazer
todo e qualquer paradigma no que diga respeito a
relacionamento humano. Se os doze anos de claustro
serviram de algo a Jordan, isto se deu, certamente, na sua
personalidade. A falta de perspectiva para o futuro que
deixara de existir para ela tornara-o insensível. A união com
Bruce e a possibilidade da fuga trouxeram-lhe um novo
ânimo, da mesma forma que a separação um banho de água
fria. De pouco falante tornara-se mudo e cabisbaixo. Apenas
semanas mais tarde e dado a um fato particular, mostrar-se-ia
novamente entusiasmado, mas com reservas.
O tempo de reclusão, a depressão continuada e outros fatores
coligados a um apenado perpétuo acabaram por afetar a saúde
de Jordan e ele precisou de internação. A enfermaria do
hospital para onde o levaram abriga detentos de outros
presídios em condições semelhantes. Há ali Curtis, com quem
Jordan se afeiçoa e que fora prisioneiro em Blue Mount.
̶ Conheço aquilo ali como a palma de minha mão. Perdi
amigos nas rebeliões de que tomei parte, mas, hoje não mais

182
me arriscaria; não tenho mais idade para tal espécie de
aventura.
Curtis também cumpre prisão perpétua por assassinato em
presidio especial devido a sua idade e condição física.
̶ Você é jovem e ainda pode se arriscar. É certo que lá nunca
houve fugas, mas não creio que isto seja impossível. ̶ Fala
com dificuldade devido a sua doença. Por sua aparência e
gravidade não deve ter pela frente muitos anos de vida. A
mão esquerda treme incessantemente por causa do Mal de
Parkinson. A direita, já não a possui, pois perdera parte do
braço ao ficar preso na cerca eletrocutada quando tentara a
fuga em Blue Mount.
Jordan ouve-o em silêncio. Uma ponta de esperança parece
brilhar em seu íntimo vinda das palavras daquele velho.
Conseguirá, ao deixar o hospital, transmitir a Bruce o
conteúdo de sua conversa. Não o fará pessoalmente, mas terá
o auxílio de um de seus companheiros de cela.
Bruce aparenta uma palidez mais acentuada do que nos
últimos dias e, tem nos banhos de sol um bálsamo para o seu
castigo. Não está muito a fim de conversa e dá o seu jeito de
isolar-se no pátio. Mas, a percepção de um olhar insistente o
desconcerta; e o homem fuma, o que faz aumentar a
ansiedade de Bruce.
̶ Aceita um cigarro? ̶ diz o outro, se aproximando. O sujeito
sabe da proibição, pois é um dos companheiros de Jordan.
Todavia, prefere manter o suspense, obviamente. Wilson não
é nenhum idiota e sabe ser impossível proibir alguém de
fumar e, os próprios guardas, responsáveis pela vigia de
Bruce, não veem ou fingem não ver as tragadas furtivas em
ocasiões especiais, já que, nas outras, Bruce se faz valer das
generosas doações. Pega de um maço que lhe é estendido.
̶ Aí não tem apenas cigarros – diz o que se aproximou. ̶
Cuidado! Vem vindo um dos guardas. ̶ Enfia, rapidamente,
as mãos em um dos bolsos de Bruce.
̶ O que tem aí? ̶ pergunta o carcereiro, num tom quase rude e
ameaçador.
̶ São apenas cigarros, chefia. Nosso amiguinho tem vontade
fumar e não custa fazer uma caridade, correto?

183
̶ Errado! Este prisioneiro está proibido de receber cigarros;
devia saber disso.
̶ Desculpe, chefia! Eu não sabia da tal lei.
̶ Pois, agora o senhor já sabe; onde está o maço?
̶ Aqui está, gente boa; voltando para o meu bolsinho ̶ dizendo
isto, se afasta.
O carcereiro, após um olhar de desdém e superioridade em
direção a Bruce, também faz o mesmo, sem desconfiar que
fora, sutilmente, enganado. Vendo-o já pelas costas e com um
leve toque no próprio bolso, confirma Bruce a esperteza do
outro. O pateta caíra no truque da mão mágica de um
assaltante. Já em sua cela e certo de não estar sendo
observado, desvenda Bruce o real conteúdo do maço. Contém
cigarros, sem dúvida, que é o que, há muito, vem
necessitando ultimamente. Mas, o que realmente importa é o
papel em forma de envoltório que ali está. Bruce retira-o,
sacode alguns resquícios de cinza e o desdobra. É um bilhete
escrito à mão, cuja caligrafia ele não reconhece mas tem a
assinatura de Jordan ou, antes, o seu nome, ao final da
mensagem.
“Acho que podemos recolocar em prática nossas ideias
anteriores. Sei que me arrisco, mas Max parece de
confiança. Conheci um ex-detento de Blue Mount que aceitou
ajudar-nos, mas, as condições, saberemos mais tarde.
Porém, não me importo; faço de tudo em nome da minha
liberdade. Aguarde domingo, teremos visita; não posso
entrar em maiores detalhes, por hora”,
Jordan
A manhã seguinte vai encontrar, à frente de Wilson, após sua
visita de praxe a todas as celas, quatro condenados para outro
sermão e novas advertências. Só que, desta vez, a situação
muda um pouco. Na noite anterior Max recebera a
comunicação de comparecer pela manhã à sala da diretoria, o
que deixara Jordan ciente de que não passaria de uma simples
advertência pelo fato de entregar cigarros a Bruce. Segundo
Max tudo correra bem e o guardinha estúpido sequer
suspeitara da estratégia. Mas, a confiança de Jordan fora por

184
água abaixo com a visita matinal de Wilson enquanto os
outros o aguardavam.
̶ Eu o preveni, Jordan, que tomasse muito cuidado. Você
está em maus lençóis se pretende levar avante este planinho
de fuga. ̶ Dizendo isto, tira do bolso um papel e o ergue à
frente dos olhos de Jordan. Ali está, com sua própria
caligrafia, o bilhete que escrevera à Bruce. A artimanha de
Max fora muito maior do que ele, Jordan, imaginara.
̶ Insistem em tentar desafiar a minha inteligência. Já disse e
vou repetir: este presídio não comporta fugas. Pode começar
a desconsiderar tudo aquilo que ouviu de Curtis no hospital.
Todas as entradas e saídas de túneis estão definitivamente
fechadas; e esta planta (mostra o esboço feito atrás do bilhete)
já não é mais a mesma. Onde está a sua inteligência? Acha
que manteríamos a mesma estrutura de terrenos depois das
tentativas frustradas, mas que, por pouco, não arruinaram a
minha reputação? A era Curtis não volta mais. São quase
vinte anos passados e beneficiados pela tecnologia. Posso
levá-lo agora mesmo a cada ponto esboçado neste papel, se
duvida das minhas palavras; verá então por si mesmo. Não
existe a mínima possibilidade; todo o solo, cada centímetro
dele, encontra-se revestido de material anti furo. Podem
tentar o que for que não terão sucesso; inventem outro meio
se se acham capazes.
Wilson solta estas palavras, empregando nelas um tom de
superioridade e ironia, balançando, bem próximo ao rosto de
Jordan, o papel com sua mensagem desmascarada como a
querer esfregá-lo na cara. O outro, ainda pálido e atônito pelo
inesperado da descoberta, o que faz, e não pode fazer
diferente, é ouvi-lo e engolir à seco a arrogância.
̶ E quanto às visitas desse domingo, teremos alguém em
especial? ̶ pergunta Wilson, quebrando um prolongado
silêncio.
̶ Não sei do que está falando.
̶ Você sabe perfeitamente! Mas, não é demais repetir: tome
cuidado com o que fizer ou disser daqui para frente, pois anda
bastante visado.

185
De fato, se as precauções contra Jordan e Bruce já eram
muitas e constantes, passaram a ser uma prioridade dentro de
Blue Mount. Uma medida imediata é a transferência de Max
dali para outro presídio a fim de evitar retaliação e esta, em se
tratando de Jordan, seria por certo violenta e fatal a julgar
pelo ódio de que se vê dominado. Jamais perdoou uma
traição e é este o motivo de estar cumprindo uma pena severa.
É agora, o próximo passo, uma aproximação a fim de que
novas estratégias sejam elaboradas e, a depender das
circunstâncias, postas em prática. Blue Mount divide-se em
galerias. A área de 4.500 metros quadrados abriga 1422
detentos dos mais variados graus de criminalidade. As áreas
externas são admiravelmente grandes e muito bem
construídas. São três os pátios, de grandes proporções,
dispostos estrategicamente, atendendo às galerias de presos
de condições semelhantes. Há um campo de futebol de
tamanho médio, uma piscina e duas quadras de esporte.
Possui dois refeitórios, grandes e espaçosos. As cozinhas
fervilham de funcionários e de atividade a fim de atender à
enorme demanda. A fachada do presídio compreende uma
construção à parte, cuja modernidade destoa por completo do
restante da obra. É, o edifício principal, de quatro
pavimentos. Abrigam escritórios, uma enorme biblioteca,
aposentos para funcionários, enfermaria e um almoxarifado.
Ao lado do prédio, a igreja, cujas missas podem ser assistidas
pelos presos que assim desejarem, devidamente escoltados, é
óbvio.
As deliberações de Wilson com relação a direitos dos
presidiários têm a ver, não raro, muito menos com o
comportamento do que com algumas questões de preferências
pessoais nutridas por ele. E isto, Mais de uma vez, causou
rebuliço dentro da instituição. Há, como rotina mensal, a
visita da fiscalização como do atendimento psicológico a
todos os internos e é, este dia, invariavelmente, marcado por
queixas e reinvindicações.
̶ Não queremos mais saber do Sr. Wilson como diretor. Ele
nos tem prejudicado a todos ̶ desabafa Bruce à psicóloga que
o atende em sua cela.

186
̶ Infelizmente, pouco podemos fazer ̶ é a resposta da moça,
depois de ouvir dele as razões de sua insatisfação.
̶ Falo em nome dos meus companheiros. Pode perfeitamente
comprovar o que estou afirmando conversando com eles.
̶ Já o tenho feito; é exatamente como o senhor diz. Pode
ficar tranquilo então, vou levar o caso ao governo de Kansas
City.
Isto é feito realmente; e Wilson é chamado à presença do
governo do estado. Mandá-lo embora está, porém, fora de
cogitação, pois substitui-lo não seria fácil. Contudo, é
orgulho do estado a eficiência do seu sistema prisional e, se
forem as queixas e os comentários levados ao conhecimento
da imprensa, isto será péssimo para a reputação de Blue
Mount. Se já era grande a antipatia de Bruce pelo diretor
Wilson, a exteriorização desse sentimento não tarda agora a
se manifestar e vem em forma de ódio, pois que arde de
forma incontrolável no peito do prisioneiro. Bruce aproveita
um breve momento em que Wilson atravessa o pátio e parte
para cima dele. Está sem a sua costumeira segurança nessa
hora. Não é intenção de Bruce empreender qualquer tipo de
agressão física; quer apenas uma satisfação de seus atos
tiranos, que vêm prejudicando grande número de presos.
̶ Quem está pensando que é, o imperador de Roma? Acha
que tem o direito de ser cruel e injusto só porque tem um
poder nas mãos?
Wilson nada responde. Da mesma posição em que havia
interrompido os passos, encara fundo nos olhos de Bruce; é
um olhar altaneiro, de superioridade. Isto enche Bruce de um
ódio incontrolável. O grupo de detentos com quem
conversava assiste a cena com certa indiferença e
impassividade. Há outros grupos espalhados pelo pátio. É
uma tarde de sol, mas de temperatura agradável.
̶ Então, o que diz? Vai ficar aí me olhando feito um
paspalhão covarde?
Isto foi a gota d’água para a paciência de Wilson; o sangue
sobe-lhe de repente à cabeça. De olhos arregalados,
rubicundo e irado, desfere violento soco, de baixo para cima,
atingindo Bruce no queixo, de forma precisa, jogando-o para

187
trás na direção dos outros companheiros. Três ou quatro
agarram-no, evitando assim sua queda. Ele quer desvencilhar-
se e partir para cima do agressor, mas não lhe permitem que
assim faça.
̶ Calma! Esfrie a cabeça; não revide, seria a sua morte. ̶
Bruce olha para o que dissera esta frase; reconhece-o. É um
dos mais antigos prisioneiros de Blue Mount. Deve ter
entendido o que dissera o outro; tem tempo de refletir e
desistir do contra ataque. Apenas acompanha com o olhar
enquanto Wilson se afasta, massageando a mão que lhe
acertara.
O homem que desmotivou Bruce de reagir contra a
provocação de Wilson é Norman. Condenado a prisão
perpétua por assassinato, já se encontra ali há vinte e dois
anos. Participara de uma das mais violentas rebeliões que já
houvera em Blue Mount. Tem, portanto, experiência e
conhece os pontos fracos ̶ que são poucos, porém
importantes ̶ da instituição. Por causa deste evento, Bruce,
que ainda não tivera chance de travar contato com Norman,
torna-se seu amigo, embora não seja este termo muito
apropriado para ser aplicado dentro de um presídio. Os
contatos são rápidos, porém de grande significado para o que
trazem em mente. Jordan e Norman pertencem a mesma
galeria. Por serem os três muito visados aproveitam bastante
bem as chances de estarem juntos; isto acontece nos locais de
esporte, durante as refeições ou nos banhos de sol.
̶ Segure isto ̶ diz Norman, enquanto passa a Bruce, por
baixo da mesa, durante o jantar, um bilhete. Ressabiado pelo
que já ocorrera em situações como esta, ele pega o papel e,
rapidamente, o guarda no bolso. Não é molestado desta vez
por nenhum guarda; logo compreende a esperteza de
Norman. Os dois seguranças que estão no recinto naquele
momento veem-se envolvidos em apaziguar um início de
confusão na outra extremidade do refeitório. Esta estratégia
fora previamente planejada por Norman e os envolvidos são
companheiros de confiança. Assim, não houve percepção
nem interferência na passagem do bilhete por debaixo da
mesa.

188
̶ Aí você tem a data e o horário em que faremos a fuga ̶ diz
Norman disfarçadamente. ̶ Não deixe que ninguém leia, por
enquanto; nem mesmo seus companheiros de cela.
̶ Está convicto de que dará certo?
̶ Nunca tive tanta certeza. O fracasso anterior deu-se por
uma estratégia mal planejada. Precipitamo-nos na hora da
ação principal; leia com atenção o que escrevi que vai
entender.
̶ Quantos estarão envolvidos na ação?
̶ Mais companheiros do que você possa ter ideia. Cuidado!
Eles estão retornando.
Já em sua cela, enquanto dormem os outros dois
companheiros, Bruce se põe a ler o conteúdo do bilhete. É na
verdade uma carta ou uma explicação detalhada de como
empreender uma desordem interna a ponto de envolverem
uma galeria inteira de presos e tirarem, dos guardas, dos
carcereiros e, principalmente, da direção interna, toda e
qualquer chance de defesa, pedido de socorro ou reforços. As
comunicações seriam cortadas, Wilson seria tomado como
refém. Isto seria feito à noite, no mais completo silêncio e
sem que as outras galerias tomassem conhecimento, o que
poderia desencadear um caos, o que seria contraproducente e
incontrolável. Embora conheça cada palmo da casa que já o
abriga por tanto tempo, tem Norman perfeita ciência das
dificuldades, mas passara os últimos anos estudando o
comportamento dos guardas, do próprio Wilson e da rotina de
segurança do prédio.
Jordan seria o encarregado, por sua força e inteligência, de
atrair para si um dos quatro carcereiros da galeria em questão.
Aí seria o ponto de partida e o início da fuga. Ocorre que
muitas das estratégias estipuladas por Norman não chegarão a
ser utilizadas, por contingência da própria situação que
envolve um plano deste quilate.
̶ Carcereiro ̶ diz Jordan, bem no horário em que acaba de
ser servida a refeição noturna. Jordan não mexera no seu
prato. Por volta das 22 h:

189
̶ Não vou comer esse grude; poderia me servir coisa
melhor? ̶ É claro que o carcereiro não lhe dá a mínima
atenção e ele repete a pergunta:
̶ Amigo, que tal mudar de opinião, isto por acaso não te
interessa? Tem nas mãos, tinindo, uma nota de cem dólares; o
carcereiro já muda de fisionomia.
̶ Vou pensar no seu caso ̶ diz isto e se afasta, mas Jordan
pressente que seu plano terá sucesso. Por volta das 11h da
noite surge o carcereiro portando uma refeição. ̶ Veja se está
melhor; e cuide que não se acostume!
No momento em que enfia pela grade o prato com a comida,
tendo o olho arregalado sobre a nota de cem dólares, tem o
homem o braço agarrado e de tal forma violenta por Jordan
que chega a soltar um grito de dor abafado a tempo por outro
prisioneiro da cela. Fica, o guarda, bem junto à grade e pode
ter saqueados todos os bolsos. Vasculhando-os, encontra
Jordan o que queria: as chaves. Passa-as para outro
prisioneiro; logo se veem fora da cela. E o carcereiro,
algemado, devidamente amordaçado e preso à própria grade
de ferro. Conforme previamente combinado, tudo precisa ser
executado no mais completo silêncio; uma única falha pode
ser fatal, visto que seria dado o alarme e, neste caso, mais
uma tentativa de fuga redundaria em fracasso. Uma vez
libertos os presos da primeira cela, os demais não devem
representar problemas, contanto que ajam corretamente.
Norman, com sua experiência vinha usando, durante meses, a
tática da boa camaradagem com um dos carcereiros de sua
ala. Conseguiu reunir, em celas estratégicas, os detentos que
participariam da fuga. Será agora mais fácil resgatá-los por
estarem mais próximos uns dos outros. São eles seis
elementos, companheiros de Norman; devem seguir com o
grupo. É esta a condição para que o plano seja executado, e
sob sua coordenação.
Fazem, com os dois carcereiros que guardam a área em cujas
celas estão Norman e os seus amigos, o mesmo que haviam
feito com o primeiro, ou seja, deixam-nos amordaçados e
amarrados às grades, de forma que nenhuma espécie de som
possam produzir. São Bruce, Jordan, Norman e os outros seis.

190
Nove homens no total; soltos e, com exceção de três,
portando armas.
̶ O que faremos em seguida? ̶ pergunta Bruce. ̶ Norman,
conhecedor de cada centímetro do local, parece calmo e
confiante, ao contrário de Bruce que se mostra tenso.
̶ Em primeiro lugar, manter a calma e o sangue frio;
precisamos disto mais do que tudo. Há duas guaritas no
telhado, são seis guardas lá em cima.
̶ Não está pensando em enfrentá-los ̶ diz Jordan.
̶ Claro que não. Seria arriscado ̶ responde Norman. ̶ Por
outro lado, temos que tirá-los de ação, de alguma forma; pelo
menos dois deles.
̶ O que tem esses dois de especial? ̶ pergunta Jordan.
̶ Estão na guarita que protege a parte de trás do presídio, por
onde vamos escapar; e você será o responsável. ̶ Norman
mira Jordan de cima a baixo, dando a entender que se refere
ao privilegiado porte físico do outro.
̶ Muito bem, já entendi. Só preciso de cobertura.
̶ Luke, esta será a sua função ̶ diz Norman, dirigindo-se a
um dos companheiros. ̶ Aplique um dos seus golpes, se for
preciso. Mas, cuidado para não exagerar; mortes só iriam nos
complicar ainda mais, caso falhemos. Muito importante: não
podemos nos dispersar a não ser que haja alarme; e é quase
certo que encontremos obstáculos pelo caminho. Sigam-me!
Seguem com toda cautela. Pegam um comprido corredor,
com vários outros que o atravessam; são galerias de celas
guarnecidas por dois carcereiros de cada lado. A tensão é
contínua, especialmente nos momentos em que têm de passar
de uma para outro. Norman sempre na frente, hora com
Bruce, hora com Jordan, verifica a situação. Na grande
maioria das vezes reina a quietude total e os que deveriam
zelar pela segurança, quando não dormem, estão mais
sonolentos do que despertos. Somente a um sinal positivo de
Norman o grupo passa para o corredor seguinte. Chegam de
frente para um dos salões internos, com portas e janelas de
vidro. Este salão separa as galerias de um dos pátios. A
entrada se faz pela lateral com portas corrediças, mas, de cuja
aproximação será impossível, pois há lá dentro dois guardas;

191
e não estão dormindo. Fazem, por assim dizer, a segurança de
quem chega de fora, como de todo movimento externo. Estão
de costas para o grupo de fugitivos e são alvos fáceis, embora
não seja e nem pode ser esta a intenção. Um, distrai-se ao
computador e o outro na leitura de um livro. Neste momento
ouvem, os prisioneiros, uma orientação de Norman e três
põem-se em movimento.
Agachados e, muito sorrateiramente, dirigem-se para a lateral
do salão; a baixa luminosidade facilita-lhes o movimento. A
distância entre esses três e os dois guardas lá dentro não passa
de três metros. A um sinal de Norman eles se levantam de
uma só vez e apontam suas armas. Os guardas, ao vê-los, se
assustam, mas nada podem fazer, pois foram surpreendidos.
Norman bate levemente no vidro de onde está e, ao serem
todos vistos e a um sinal, tiveram que abrir as portas.
̶ Mãos para trás e não tentem nenhum truque ̶ diz Bruce, já
do lado de dentro com todos.
Um dos guardas, porém, não se intimida e tenta uma reação.
É imediatamente atingido por uma coronhada da arma de
Jordan e seguro ao cair para evitar o som da queda. A um
sinal de Norman para um dos homens, que está atrás do
segundo guarda, é feito o mesmo com este que também
desacorda, devidamente apoiado. Com cuidado, abrem a
porta da frente e já se encontram do lado de fora seguindo
outra orientação de Norman.
̶ Vamos nos separar apenas enquanto não alcançamos a
parte traseira do prédio. Não há guardas nas laterais; apenas
tomem cuidado ao caminharem. Jordan, você e Luke subam
esta escada; ao fim dela vão avistar a tal guarita. Após
imobilizarem os guardas, voltem e unam-se novamente a nós.
Então, juntos, escalamos o muro para a liberdade.
Sobem os dois e executam muito bem o trabalho da forma
que foram orientados; os dois guardas estão também
imobilizados e fora de ação. Começam lentamente a volta
pelo mesmo caminho, mas não contam com um detalhe que
iria fazer a diferença. Norman não deve ter escolhido o
homem certo para desferir a coronhada no guarda no interior
do salão. Não foi suficientemente forte para desacordá-lo por

192
um tempo necessário à fuga e, quando acabam de descer a
escada vê, Jordan, o homem acabando de se levantar e
também é visto por ele. Entre correrem e impedi-lo de
disparar o alarme, o que certamente não daria tempo e seria
arriscado, escolhem disparar pela lateral e juntar-se aos
outros.
̶ O alarme! Vai ser disparado o alarme! Não temos tempo a
perder!
̶ Corram para este canto! ̶ gritou Norman, sinalizando uma
espécie de abrigo atrás de dois postes de iluminação. Neste
momento, soa o alarme. Tiros começam a ser disparados,
vindos do alto. Um dos prisioneiros é imediatamente atingido
e cai, sem vida. O revide é à altura, pois todos têm agora
armas. Acertam um dos guardas que despenha do telhado,
caindo sobre a trave do campo de futebol, fazendo-a partir-se
no meio com enorme estrondo. Em seguida, mais um é
alvejado ficando mesmo lá por cima.
̶ Mostre os pontos de subida com segurança! ̶ grita Jordan
para Norman.
̶ Não há pontos com segurança; temos que correr o risco:
sermos pegos pelos tiros ou pela rede elétrica. Como prefere
morrer, furado pelas balas dos guardas ou torrado?
Jordan não responde. Procura, no momento, defender-se dos
tiros que não cessam de vir sobre eles. Outro prisioneiro corre
na tentativa de alcançar o muro, mas cai no meio do caminho
com um tiro certeiro.
̶ Ele fez certo ̶ diz Norman ̶ aquele é um ponto de onde se
pode atingir o topo do muro porque há postes, mas podem
estar eletrocutados.
Neste momento, começa Bruce a se esgueirar pelo canto de
um dos muros e, agachado, consegue penetrar no salão,
surpreendendo o guarda que fizera soar o alarme. Com uma
arma em suas costas, ordena Bruce:
̶ Mostre o controle do portão; ande! ̶ o homem sinalizou
com a cabeça.
̶ Agora tome isto! Desta vez foi bem aplicado ̶ diz,
desacordando-o de verdade com um violento golpe.

193
Mexe no controle e vê, de longe, mover-se o enorme portão.
Para, porém, ao deixar brecha suficiente para a sua passagem
e de forma que não seja percebida a abertura; volta agachado
pelo canto do mesmo muro.
̶ Não façam isto! Venham comigo! ̶ grita para Jordan e
Norman que começam a escalar o muro do outro lado. Os
tiros, no entanto, não cessam e Norman é fatalmente atingido
por um deles, caindo sem vida sobre a grama úmida. Jordan,
pressentindo que poderia ser o próximo, pula imediatamente,
colocando as mãos sobre a cabeça, oferecendo sua rendição.
Fecham novamente o portão, mas Bruce o já havia
ultrapassado e se encontra do lado de fora com mais dois
fugitivos.
Os tiros continuam, mas Bruce, esgueirando-se deles, corre
em ziguezague. A intuição lhe diz que evite o caminho entre
as árvores; e ele não está errado. Ao longe, para onde havia
corrido, afoitamente, um dos homens de Norman, ouve um
estrondo seguido de um clarão medonho; era por ali que
haviam espalhado as minas. Bruce continua correndo, perto
dele os outros dois. Súbito, um cai alvejado; Bruce para a fim
de tentar socorrê-lo.
̶ Não faça isso, fuja! Não consegui desta vez, quem sabe da
próxima... ̶ fora baleado e fala entre dores e sangramento.
Continuam correndo; agora ele e o outro. Já muito longe,
param finalmente. Cessam os tiros. Bruce olha para o
companheiro.
̶ Não sei se vamos conseguir, mas vamos em frente.
À frente, o enorme despenhadeiro e, abaixo, o fragor das
ondas e a imensidão do mar. Para uma das laterais, a floresta
a se perder de vista. Descem por um escarpado, equilibrando-
se sobre rochas e nunca mais foram vistos. Desse dia em
diante, já não se hão de afirmar que Blue Mount não
comporta fugas.

194
Uma Travessia na África

N o coração da África, sob um sol inclemente, as

barracas começaram a ser desmontadas. Clancy demorava em


sua varanda improvisada; sobre o tamborete descansava as
pernas esticadas e o espaldar da cadeira acomodava as costas
ainda suadas do esforço a que acabara de se submeter. Descer
do caminhão a enorme e pesada arca exigira o esforço de
cinco homens nativos mais o de Clancy. Ali estava a sua
preciosa carga. Era necessário, para um transporte rápido e
seguro, a contratação de uma equipe eficiente e numerosa.
Clancy tinha noção do perigo e dos riscos que iria enfrentar.
Entretanto, não era homem que levava em conta a
possibilidade de um fracasso ou de morte e, no caso em
questão, menos ainda se for considerada a soma envolvida e
as outras vantagens que o êxito da missão lhe trará.
Dali para frente valia a coragem e a determinação. Ao erguer
a tampa do caminhão e visualizar o arsenal Clancy se
surpreendeu; era mais do que ele esperava. Oitenta e quatro
homens formavam a equipe para a missão, dos quais sessenta
e dois nativos que não precisariam de armas; pelo menos não
as receberiam. Para que então todo aquele arsenal bélico? Os
rifles estavam em caixas, novos em folha; a dinamite,
empacotada, dividia espaço com outras caixas menores que
continham pólvora, munição para as armas, rolos de corda e,
mais ao fundo, empilhados em pé, espingardas de caça, arcos
e uma montoeira de flechas de diversos tamanhos e formatos.
Quanto à quantidade e à qualidade das armas Clancy não teria
do que se queixar e a empresa fornecedora muito menos, pois
que o acordo valera a pena.
− Buana! Buana! Tem fogo lá atrás – Clancy se deliciava
com um cachimbo quando surgiu a sua frente, na varanda,
este nativo com a notícia inesperada. Clancy já vinha

195
sentindo, há minutos, um odor de queimado, mas sem dar
importância por ser esse fato corriqueiro em função de certas
atividades comuns em fazendas. Mas em função do espanto
do africano que não parava de sacudir os braços e apontar
para um ponto determinado, levantou-se mais do que
depressa e foi verificar o que tinha acontecido. Ao virar a
varanda e ir para trás da casa divisou a fumaça; subia negra e
compacta, já ultrapassando algumas árvores.
− Não pode ser o que eu estou pensando! Não é possível – e
correu desesperado a checar o que apenas suspeitava.
Não deu outra. Infelizmente, para ele. Confirmou-se o seu
pensamento. Já em fase impossível de ser controlado, o
incêndio fazia arder em chamas o caminhão. A carroceria,
que abrigava o arsenal que surpreendeu Clancy por sua
incrível quantidade, queimava, sem dar chances a um grupo
de nativos que assistiam de certa distância, de tentarem algo
para amenizar o incêndio. O fogo começara ali mesmo e
espalhava-se em direção à cabine. Havia uma parte ainda
intacta, mas como penetrar ali para resgatar o que ainda não
tinha sido atingido? Três dos nativos, num ato de loucura ou
de coragem, aproximaram-se além do aceitável, portando
mangueiras. Clancy, ao presenciar aquilo, gritou, mas já era
tare demais.
− Não!
O que se viu em seguida assemelhou-se a uma cena de filme
repleto de efeitos especiais. O veículo explodiu. Um barulho
infernal tomou o ambiente e os pobres coitados foram
lançados para o alto de forma terrível e violenta. Caíram
carbonizados a metros dali. Tudo foi para os ares. Uma
chama medonha e crepitante ainda pervagou por instantes. O
incidente deixou o local, uma área antes rica e verdejante,
mais parecido a uma arena de guerra e destruição.
Clancy apressou-se em se dirigir para o interior de sua
cabana, certificando-se de que ninguém o havia seguido.
Abaixou-se ao lado da cama e puxou uma caixa de papelão,
de tamanho médio, reforçado. Abriu e verificou o seu
conteúdo. Se não tivesse passado por sua cabeça separar e
guardar aquela parte do material poderia dar como cancelada

196
a missão até que novo suprimento fosse conseguido. Abriu e
conferiu o interior da caixa. Pegou nos rifles e nos revólveres,
verificou cada um; checou a munição, contou as facas e
guardou tudo novamente com cuidado. Pensou em manter
segredo por enquanto quanto àquela preciosa carga até que
uma investigação a respeito das causas do incêndio estivesse
concluída. Não queria pensar em um ato criminoso, mas
também não descartava essa possibilidade. Foi para o outro
cômodo e olhou a arca. Lá estava ela, totalmente intacta e
devidamente lacrada. Um frio correu-lhe na espinha ao
imaginá-la perdida também no incêndio.
A preocupação agora passou a ser procurar o que fazer ou o
que não fazer, visto que, sem armas e equipamento de
proteção seria inviável uma excursão selva adentro. Sendo
assim, todas as atividades haviam sido interrompidas até que
uma ordem de Clancy designasse o próximo passo. Ao sair da
cabana deparou com os nativos sentados na grama, de braços
cruzados. Eles eram assim, enquanto uma ordem não fosse
proferida não fariam nada e nem iriam a lugar algum.
Aquelas fileiras de homens magros, trajando uma espécie de
canga, sandálias de tiras de bambu e sem camisa tomaram
quase toda a área frontal da cabana principal que era a de
Clancy, entre esta e a estreita ruazinha de terra. Suas cabeças
pequenas e semi raspadas pareciam não diferenciá-los uns
dos outros; tinham todos a mesma expressão do nativo que
não se deixa abalar em momentos de crise. Clancy fez um
sinal de mão para os quatro que permaneciam de pé e eram os
representantes das equipes. Fechou-se com eles por um
tempo relativamente longo e os liberou em seguida.
A missão teria continuidade. Era primordial que a arca
chegasse ao seu destino dentro do prazo estipulado. A equipe
de Clancy e todo o restante do material, conforme o que fora
combinado chegaria dali a dois dias nas primeiras horas da
manhã e os aguardaria no Delta do rio Mucamba, na saída da
vila de Potozil. A não ser que um apressamento se fizesse o
quanto antes Clancy não conseguiria cumprir o horário
marcado para esse encontro e, por conhecer a natureza do
capitão Dirk, sabia que não escutaria pouco. A marcha seria

197
íngreme; o trecho a seguir era em declive e os nativos não se
mostravam muito animados em virtude da perda dos
companheiros. Ainda assim não podia haver perda de tempo e
ele ordenou a marcha.
Sem dúvida que o obstáculo maior constituía exatamente o
transporte da arca. Não menos do que seis homens para
carregá-la tal o seu peso e tamanho e a troca deles tinha que
ser frequente, por isso, também, a grande quantidade de
nativos para essa viagem. Outro motivo era a enorme
quantidade de arcas menores, dezenas delas; menores, mas
igualmente pesadas. Sendo assim, todos tinham o que fazer.
Como eram muito sagazes e organizados não se deixavam
enganar por uma possível esperteza quanto à ordem e à vez
de cada grupo na tarefa árdua de carregar a pesada arca.
Clancy ordenou a entrada dos seis da vez em sua cabana
seguidos de um dos chefes. De lá saíram e tomaram a
dianteira. Na frente destes apenas uma pequena equipe de não
mais do que quatro ou cinco homens que tinham por missão
verificar as condições do solo, como possíveis obstáculos ao
bom andamento da marcha. Eram de todos os nativos, os
únicos a utilizarem armas e treinados para este tipo de
missão.
O grande segredo envolvendo esta longa e inusitada travessia
estava no conteúdo das arcas; não só na principal como em
todas as outras. O próprio Clancy não tinha total noção do
que aquela missão representava. Sua única e exclusiva função
era proteger o material de que fora incumbido fazer chegar a
Nairóbi. Cada dois nativos transportariam uma arca. Outros,
objetos menores, porém valiosos. Olhando-se para trás
avistava-se a longa fileira de homens. Alguns, curvados pelo
peso de algo volumoso em suas costas. Outros, fazendo dupla
com um companheiro, iam agarrados às alças de uma bela e
doirada arca, lacrada com cadeado de prata, a poucos
centímetros do chão, ora de terra fofa e escorregadia, ora de
uma mata recém-aberta pelos facões dos que iam à frente.
Clancy, quando não apressava os passos para conferir a
segurança de sua arca mãe, demorava-se ou retrocedia um

198
pouco na intenção de verificar a organização e o desempenho
de todo o grupo.
O grupo de seis homens já não se aguentava de tanto cansaço
quando teve que parar em função de um alerta vindo da
equipe que vistoriava o terreno à frente. Os pés daqueles seis
nativos já se afundavam no solo que, àquela altura era úmido
e fofo e isto requeria deles esforço em dobro. Mas não se
importaram muito quando isto começou porque dentro de
poucos minutos seriam substituídos; estavam, portanto, mais
contentes do que insatisfeitos. Todavia, um acidente,
totalmente inesperado, porque quase todos os acidentes são
inesperados, fê-los sofrer sem conta. Uma manada de búfalos
estava prestes a cruzar o caminho por onde eles deveriam
passar. Não poderiam seguir em frente. Também não
poderiam afrouxar tampouco deitar a arca devido às
condições do terreno ali não serem nada propícias. O que
fariam? Absolutamente nada a não ser esperar. Mas por
saberem que a paciência daquele tipo de animal era muito
maior do que a deles naquelas circunstâncias prepararam-se
para o pior dos sofrimentos.
Alguém que presenciasse aquela cena achá-la-ia, no mínimo,
cômica, embora fosse fruto de uma situação insustentável.
Tudo o que mais queriam era poderem descansar, posto que
já se encontrassem no limite se suas forças. Clancy percebeu
isso na expressão fisionômica de alguns deles. Sendo assim
agiu para que uma providência fosse tomada. Enquanto isto
não acontecia o que se viu foi um princípio de desequilíbrio
na ação de carregarem a enorme arca. Na verdade foi um
desequilíbrio e tanto. Fruto da falta de coordenação; davam
agora passos trôpegos e perigosos. Uns a puxavam para frente
enquanto outros não conseguiam acompanhar e davam para
trás ou andavam para os lados. O resultado desta falta de
sintonia foi uma dança que estava prestes a levar ao chão,
totalmente impróprio, o precioso material, a menina dos
olhos de Clancy.
A única dúvida de Clancy era se aquele espetáculo grotesco e
inesperado provinha do cansaço dos homens imbuídos no
transporte da arca ou do medo deles por já saberem que

199
búfalos se aproximavam. Só que ele não esperou para
confirmar isto; era o que menos lhe importava diante das
circunstâncias. Assim, destacou imediatamente um dos chefes
de equipe para lhe conseguir seis novos carregadores,
estivessem ou não na vez; o caso era emergencial. Neste
momento ouve-se o ruído agudo e estridente de algo se
aproximando; eram os búfalos. Vinham em desembalada
correria. Somente ao se mostrarem visíveis é que deram a
noção de quão perigosa seria a sua aproximação. O barulho
era ensurdecedor; os mais pesados vinham na frente em
enorme algazarra. Os carregadores da arca já haviam sido
substituídos a essa altura e, assim que se viram livres de
tamanho fardo estatelaram-se no chão, não se importando
com o que poderia acontecer com eles. Os animais passaram,
entretanto, sem maiores contratempos, deixando não mais do
que um grande susto.
Iniciaram agora uma ligeira descida, ao fim da qual era o
local do encontro. Um longo e sinuoso rio já podia ser
avistado, com suas margens meio que escondidas por uma
vegetação compacta, formada de arbustos e pequenas árvores
que desfilavam montanha abaixo; era o rio Mucamba.
Contornando esse bosque ele novamente aparecia com grande
impetuosidade, carregando restos de vegetação, pedaços de
barrancos e outros detritos para novamente sumir na curva
seguinte. Em pouco mais de vinte minutos de caminhada
estariam entrando na vila de Potozil.
A visão da vila era no alto. Dirk ergueu o par de binóculos e
olhou, curioso, os primeiros sinais da aproximação. Ele
estava acompanhado de um pequeno grupo, quatro homens e
duas mulheres, todos a serviço do governo de Nairóbi na
incumbência de proteger a carga até o seu destino. Até ali
havia Clancy executado a sua parte com desenvoltura e
autoridade. Com exceção do acidente ocorrido com o
caminhão, que resultou na perda de quase todo o arsenal, tudo
ocorrera dentro do previsto. Foram mais de vinte e quatro
horas de árdua caminhada e superação de uma série de
obstáculos. Dali em diante a missão de Clancy perderia um
pouco do seu brilho, mas ele não se importava com isto.

200
Ficaria um tanto na retaguarda, deixando a cargo do grupo a
tarefa principal. Embora conhecesse, até melhor do que
qualquer um ali, cada pedaço do caminho que iriam enfrentar,
não tinha intenção de se intrometer nas decisões que fossem
tomadas.
Dirk sinalizou para o motorista do jipe que os trouxera até ali,
ordenando que retornasse. O homem deu meia volta e
acelerou e o carro desapareceu da vista de todos ao fazer a
primeira curva ao fim da estradinha de terra. Acabara o
conforto; Dirk sabia que dali para frente teria que suar a
camisa. Cada um, homens e mulheres, pegou do chão sua
mochila, lançou-a às costas e seguiu o chefe enquanto este
descia o talude para apertar as mãos de Clancy que já o
aguardava lá embaixo. A primeira coisa que chamou a
atenção de Dirk no momento em que cumprimentava o outro
foi a maneira com que os nativos baixavam no chão a
preciosa arca. Na opinião de Dirk o movimento fora
atabalhoado e ele não ligou às explicações de Clancy de que
os homens já estavam a quase oito horas com aquele fardo às
costas e que, a pedido dele, consentiram prolongar um pouco
mais a fim de fazerem a troca naquele momento e local do
encontro com o grupo; Clancy prometera uma boa
recompensa e os homens concordaram.
− Umas boas chicotadas é o que merecem! Não me importam
as razões que está me dando. São pagos para trabalhar. Se eu
encontrar um só defeito naquela arca todos me pagarão por
isto.
Dizendo isto, saiu de onde estava, indo em direção ao grupo
que baixara a arca. Já chegou empurrando alguns deles. Um,
de tão cansado, e dado à violência do empurrão, caiu sentado
no chão, metendo as mãos num lodaçal que se formara pela
chuva recente. O nativo, sem ação, pois não entendera nada
do ocorrido, encarava Dirk, cheio de pasmo e assustado. Um
dos chefes de equipe tudo testemunhara de longe; saiu feito
fera de onde estava. Dirk o reconhecera ao se aproximar, pois
o servira durante alguns meses em Nairóbi. Houve discussão.
Dirk sabia que estava errado em sua atitude; isto não era
forma de recepcionar a equipe que havia se esforçado tanto

201
até ali. O chefe de equipe estava furioso e não se conteve para
repreender Dirk pela forma como agira. Dirk o respeitava.
Não por hierarquia porque era também seu subordinado, mas
por ter sido, durante anos, seu braço direito na direção das
fazendas que possuía em Nairóbi e o pioneiro na ascensão e
na adaptação de Dirk àquele país da África. Não fosse por
Manuti, o chefe em questão, Dirk jamais teria chegado aonde
chegou.
Dirk fez ver a Manuti que aquela não era uma forma correta
de trabalhar; que estava admirado por, sendo Manuti um dos
responsáveis pelo transporte, permitir que agissem daquele
jeito, já que, conhecendo tão bem o patrão e sabendo que
estavam perto de encontrá-lo, não deveriam ser tão
negligentes e com um objeto tão importante e valioso. Manuti
replicava dizendo que não era competência dos nativos
levarem em conta que tipo de objeto estavam transportando;
que a função deles era não mais do que simplesmente
transportá-lo da melhor forma possível. E a melhor forma
possível, segundo as condições do terreno, do próprio peso do
objeto e o pedido de Clancy para que fizessem além do pré-
combinado era aquela que ele, Dirk, acabara de presenciar. E
não adiantavam as réplicas de Dirk. Quanto mais rebatia as
justificativas de Manuti, mais este lhe repreendia com
explicações que pareciam mesmo plausíveis e aceitáveis. Mas
o gênio de Dirk não permitia que ele cedesse, admitindo sua
forma grosseira de se comportar. A discussão prolongar-se-ia
indefinidamente se Clancy não houvesse se aproximado para
tentar apaziguar os ânimos de ambos, tão exaltados.
Diferentemente de Manuti, Clancy não tinha razões para
considerar Dirk e nem ser por esse considerado. Pelo
contrário, as informações que dele obtivera ao se informar
sobre os líderes da travessia não eram as melhores. E, depois
da cena que veio de testemunhar, acabou confirmando o que
alguns falaram sobre ele, sobre sua arrogância e frieza. Mas
Clancy não deixou transparecer nenhum outro sentimento
além de simpatia e camaradagem. Como não era conhecido
cumpriu bem o seu papel de apaziguador e fez com que tudo
fosse esclarecido usando sua tática de liderança. O incidente

202
foi esquecido. A partir dali, após serem apresentados uns aos
outros, foram formadas as lideranças. Todo o grupo foi
dividido em duas partes, ficando, Dirk e Clancy, cada um
com uma mulher e dois homens para auxiliarem-nos. A
grande arca passou para o grupo da frente, chefiado por Dirk
e seus auxiliares.
Descendo por um caminho íngreme, porém mais aberto e de
melhores trilhas, o grupo de Dirk avançava um pouco mais.
Mesmo transportando a grande arca a impressão que se tinha
era a de que, sob o rígido controle de Dirk os nativos eram
menos negligentes e por isso rendiam mais, talvez por medo
ou um forçado respeito. O incidente acabou servindo para
precavê-los da figura draconiana do chefe. Outra razão era a
presença de mais olhos vigilantes nas figuras de novos
homens brancos e parece que ter uma mulher na liderança era
um fator relevante para os nativos. Neste pedaço de terreno
em que segue o grupo de Clancy o avanço parece bem mais
difícil, mas, por conhecer aquela área ele, fingindo
amabilidade, deixou que Dirk seguisse pelo caminho que,
aparentemente, seria o melhor. Mas Clancy sabia que não.
Preferiu seguir pelo alto, próximo à ribanceira e desviando-se
de precipícios e de rochedos íngremes a ter que pegar a
planície, onde tudo parecia calmo e convidativo. Com
exceção da arca principal, que ficara a cargo do outro grupo,
o de Clancy carregava quase que a totalidade da carga. Para
piorar, o grupo ficou menor e por isso os homens davam mais
de si ao transportar o material; Clancy obrigou-se a contornar
a insatisfação de muitos deles. Mas, contudo isso sabia que
estaria em vantagem ao utilizar aquele trecho e não a trilha
por onde seguia o grupo de Dirk.
A visão que tinha lá de cima era privilegiada no sentido de
poder acompanhar quase todos os passos de Dirk e seu grupo.
Este contornava por baixo uma planície vasta e verdejante.
Cada homem de Clancy necessitava de um cuidado redobrado
em cada pedaço de terreno sobre o qual caminhavam. Havia
trechos que, além de íngremes, eram extremamente perigosos
por apresentarem terreno estreito e mesmo escorregadio em
parte dele. Fazia-se de tudo para evitar esses trechos e quando

203
isto era impraticável era preciso fazer passar homem a
homem de mãos vazias. Lá embaixo, o fragor horripilante das
ondas ao beijarem com violência as rochas; a simples visão
causava medo e apreensão. Era preciso contornar a grande
montanha. Clancy conhecia como ninguém a região e sabia
que, à frente, ao fim de mais algumas horas de caminhada,
havia a ponte de cordas que ligava as duas montanhas. Sabia
também que aquilo exigiria esforço em dobro de sua equipe,
portanto fazia o possível para não cansá-los agora.
A visão ao longe era magnífica e encantava o apreciador. O
horizonte espraiava-se por sobre a ponta do oceano. Os raios
amarelados dos últimos momentos da luz do sol refletiam-se
por grande faixa de água. Para o lado esquerdo do céu,
nuvens enegrecidas davam conta de um temporal que não
custaria a se precipitar. Clancy levou à cara o binóculo e
confirmou os sinais. Considerou uma parada em breve antes
da noite definitiva. Isto fugia a sua programação. Caso
fossem surpreendidos pela chuva ainda no trecho arriscado
que procuravam superar certamente teriam problemas. Essas
ponderações de Clancy foram interrompidas por uma
repentina e forte trovoada. Pouco mais da metade dos homens
havia ultrapassado o ponto crítico da montanha; aquele em
que rochas e árvores tombadas por tempestades interpunham-
se no caminho já estreito para uma passagem. O chão ali era
sedimentoso e escorregadio. As arcas, embora de tamanho
aceitável, eram surpreendentemente pesadas e era preciso
pisar com todo o cuidado; qualquer descuido seria fatal. Das
vinte e duas arcas quinze já haviam sido transportadas para a
estradinha ao final da curva perigosa e já se viam
enfileiradas, aguardando suas companheiras. Alguns dos
nativos, mais experientes, voltaram a fim de auxiliarem os
outros.
Quando já estavam na arca de número vinte, faltando apenas
duas para completarem a difícil tarefa, desaba impiedoso, o
temporal. E o pior, uma, a penúltima, estava no meio do
processo, desafiando a coragem e o cansaço dos bravos
carregadores. Um deles escorregou no solo já encharcado e
rolou no barro do acostamento. Tendo largado a arca que

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trazia com o outro, esta desceria com tudo e iriam os três para
o fundo do precipício caso a previsão inteligente de Clancy
não os viesse amarrados a grossa corda pelas suas cinturas e
pela alça da arca, presa à outra ponta a possante árvore de um
nível superior do barranco. A morte, ludibriada e vingativa,
não poupou, todavia a intensa e cansativa trabalheira para
removerem de sua situação, agora ridícula e lamentável, os
dois homens cheios de dor e desgosto e a arca, indolor, mas
provavelmente danificada. Isto é o que veriam no momento
oportuno, se houver essa permissão e se houver esse
momento.
A chuva ainda demorou a cessar. Embora fosse esse um sério
problema, não afetava tanto a Clancy quando o
desaparecimento de Dirk de sua visão. O atraso provocado
pelo contratempo da chuva com o acidente contribuiu para
isto. Clany sabia ser isto inevitável devido às diferenças de
terreno que enfrentavam, mas não esperava que se desse tão
rapidamente; deixou-o deveras contrariado. A razão dessa
contrariedade dava-se mais pelo bem de Dirk do que por
concorrência ou rivalidade. Se a missão era em comum
teriam que se ajudarem uns aos outros, mas Clancy
desconfiava que Dirk não pensasse desta maneira. Na
verdade, disto ele tinha certeza. O de que ele desconfiava e
buscava certeza é o que saberemos mais à frente.
Restava agora não mais do que um leve e inofensivo
chuvisco. Ali mesmo, no começo da estradinha que levaria à
ponte de corda, montou-se o acampamento. Era na verdade
uma trilha aberta no meio da mata e utilizada em um passado
recente para o transporte às costas de sacas de café até os
centros comerciais de Nairóbi. Era um transporte alternativo
visto que já havia a maioria das vias seguras que existem
hoje, mas empresários menores e outros insaciáveis preferiam
esse trajeto mais difícil e perigoso por força da isenção dos
pesados impostos que a exportação requeria. Acidentes com
mortes, doenças, e todo tipo de imprevistos não os
desestimulavam e pareciam compensar a grande economia e
miséria que pagavam aos nativos facilmente conquistáveis.

205
A razão do descontentamento de Clancy ao perder de vista o
grupo de Dirk fica por conta do ataque de tribos sanguinárias
bastante comuns lá embaixo. Clancy denominava de trilha da
morte aquela região. Dependendo do número de inimigos a
sua frente essas tribos enfrentavam ou não armas de fogo;
sempre atacavam em grande número e não era fácil intimidá-
las. Todavia, mesmo à distância, ao verem o grupo de Clancy,
bastante inferior, não o atacariam, pois temeriam o confronto.
Algo dizia, e a intuição deles dificilmente falhava, que teriam
que enfrentar armas de fogo em boa quantidade. Ainda
quanto ao trajeto de Dirk, o trecho era perigosíssimo e
traiçoeiro, pois era preciso atravessar rios e lagos onde pontos
arenosos confundiam-se com areias movediças, nunca se
sabendo quando se estava sobre um ou sobre outro.
Fora da visão de Clancy, Dirk comandava o grupo de não
menos do que sessenta e cinco nativos. Sempre oito com a
grande arca e o restante portando objetos menores. O sol
incidia agora com toda a força de seus raios sobre as costas
nuas e suadas dos carregadores. A arca principal ia à frente.
Dirk não largava mão de vigiá-los. Contornavam agora um
pequeno lago e estavam a poucos metros de mergulharem em
uma mata serrada cheia de trilhas escuras e íngremes. O
grupo da frente, composto por cinco homens, abria espaço
para a passagem da grande arca. Viam dificuldades, posto
que pequenos arbustos tivessem que ser abatidos para dar
acesso; isso tomava tempo e fazia cansar sobremaneira
aqueles oito homens. Dirk não permitia que eles descessem a
arca para esperarem a manobra dos desbravadores e isto os
estressava além de um limite suportável. Em dado momento
deste trabalho ouviu-se um alarido que foi crescendo até
horrorizar todos sem exceção. Dirk ordenou silêncio e todo o
grupo se abaixou dentro da mata. A arca foi ao chão com
cuidado, o que foi um alívio para aqueles homens que já não
mais se aguentavam. Dirk rastejou até uma ponta de trilha e
afastou alguns galhos para identificar a origem dos gritos.
Ele não conseguiu contar, mas viu dezenas de selvagens
descendo uma das colinas que iam dar no lago e que
compunham uma tribo que lhe pareceu, pela aparência, das

206
mais perigosas. Eram de uma cor escura intensa semelhante
ao carvão e estavam pintados no rosto e em parte do corpo.
Carregavam lanças muito compridas. É certo que partiam
preparados para a guerra contra outra tribo. Dirk estremeceu
ao verificar que eles certamente contornariam o lago como
ele havia feito e aí teriam duas opções. Mergulhariam
também na mata onde a carnificina seria certa, pois o grupo
pouco avançara e ainda estava exposto. Ou virariam à direita
e desapareceriam entre as árvores compactas de um bosque.
O aceno silencioso e preocupante de Dirk indicou o que
certamente fariam; iriam mergulhar mata adentro. Todos, sem
exceção, obedecendo ao comando, deitaram-se; o mínimo
sinal de respiração precipitaria o ataque. O estraçalhar de
galhos secos sob pisadelas impetuosas, o arfar do capim
molhado pela recente chuva, abrindo e fechando passagens
no meio da mata e não muito distante deles era o que de mais
temível se podia ouvir; era o medo da morte, de ser espetado
por uma lança envenenada ou esmagado pelas patas
selvagens dos guerreiros anti-humanos.
O alarido tomou proporções indescritíveis à medida que mais
próximo eles iam chegando. Passaram como um exército
fustigado pelo fogo inimigo. Por sorte de todo o grupo isto se
deu a alguns metros de distância, o que deu a Dirk a certeza
de que um combate estava para acontecer; não eram eles o
alvo. Desta vez sairiam ilesos, mas até quando? Este
pensamento cruzou a mente de Dirk e fê-lo odiar Clancy por
ocultar dele aqueles perigos. Dirk sabia que o outro era
experiente neste tipo de aventura; podia tê-lo prevenido.
Esperou que cessassem os gritos, mas isto não aconteceu,
pelo contrário. Eles aumentaram em intensidade e só a
distância fez com que se fizessem menos perceptíveis. Dirk
engatinhou até uma árvore do lado oposto ao seu e confirmou
o que ele pressentira há instantes. Um confronto estava
prestes a ocorrer. E bem ali. Há metros de distância de onde
se encontravam. Pela visão do binóculo detectou negros
fortes, dezenas deles, carregados de arco e flechas. Como
característica, uma faixa de tinta branca no meio da cara,

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descendo até à barriga e um cinturão de fibras encimado por
um porta flechas amarrado ao peito.
Já a esta altura puderam, os homens de Dirk, efetuar
movimentos e até porem-se de pé, pois não havia o perigo de
serem agora avistados, menos pela distância e pela mata
cerrada que os abrigava do que pelo confronto de morte
prestes a se iniciar. Atacaram-se para valer. Não era um
espetáculo para se apreciar tranquilo e sem náuseas. As
flechas voavam até encontrar seus alvos. Muitos ficaram pelo
caminho, cravados e envenenados até que foi inevitável o
choque; dir-se-ia uma carnificina tamanha era a violência do
confronto. Dirk só ficou o suficiente para constatar que os
homens com flechas levaram a melhor talvez por serem mais
fortes e bem treinados. Após dizimarem mais da metade da
outra tribo, perseguiam agora o restante que, apavorado,
corria em direção ao bosque distante.
Foi um momento de grande susto para todos. Não mais havia
sinal dos selvagens; mesmo assim teriam que se precaver.
Dirk começou a achar, enquanto caminhava, beirando agora o
leito de um rio, acompanhando com o olhar fiscalizador a
condução da arca, que precisava agir o quanto antes, pois já
não estava tão distante agora o destino do séquito. Teriam
que atravessar uma grande área deserta e arenosa onde,
possivelmente, fariam acampamento. Montaram lá as
barracas de uma forma tal que deixasse a sua e de seus
auxiliares diretos, que na verdade eram os seus comparsas,
quase à beira da estradinha, local de encontro com o
caminhão para o recolhimento da arca que ele pretendia
roubar do Instituto de Arqueologia de Nairóbi. Ela continha o
esquife do faraó Artistone da XXVII dinastia de Xás
Aquemênida que estava sendo levado, sob a inspeção dele e
de Clancy, de volta ao instituto após pesquisa científica em
Massachussetts. Manuti, a única testemunha capaz de
atrapalhar a investida dos criminosos, fora amarrado à noite,
impedido de qualquer reação. Com a chegada do veículo ao
raiar do dia, todos os nativos foram dispensados por Dirk e
pagos por ele o que ficara estabelecido. Seguiram contentes e
sem qualquer tipo de contestação e desapareceram na

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primeira curva do rio deixando para trás suas cargas
incômodas. O que ele não previra e acabou acontecendo foi o
seu reencontro com Clancy e o fim de seus planos e o
desmascaro de sua quadrilha. Superados todos os obstáculos
no alto dos montes que, por sua escolha teve que enfrentar,
Clancy, conhecedor de cada metro de toda aquela região,
galgou com destreza e bem auxiliado a descida que o levaria
exato ao ponto de interceptação das intenções de Dirk.
− Esperava que fosse assim tão fácil? – disse Dirk a um dos
comparsas.
− Mas não foi tão fácil assim; esqueceu-se dos perigos que
enfrentamos no caminho? – respondeu o outro.
− É; você tem razão. Mas não quero pensar mais nisto. Agora
é descermos até a pista e partirmos para o aeroporto. Collin já
aterrissou segundo me disse no rádio.
Depois de carregar o veículo com tudo que achou necessário
além da preciosa carga, Dirk e seu grupo desceu lenta e
confiantemente, em direção à via principal para a sua fuga.
Só que não contavam com uma articulação militar fechando a
principal via de acesso; tudo pré-combinado entre Clancy e o
exército de Nairóbi. Não houve resistência e nem poderia
haver; acabaram se entregando e também os demais da
quadrilha. Terminou dessa forma a travessia do famoso
ataúde do faraó. Felizmente ele chegou intacto ao seu destino
o que, para o futuro da ciência da história e da arqueologia
representou um grande acontecimento.

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