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OS POEMAS DESTE COMPÊNDIO SÃO DE AUTORIA DE:

ADÉLIA PRADO
DORA RIBEIRO
ANA MARTINS MARQUES
JOSÉ PAULO PAES
ONDJAKI
MARCELO MONTENEGRO

POEMAS DE ADÉLIA PRADO

Artefato nipônico

A borboleta pousada
ou é Deus
ou é nada.

Ex-voto

Na tarde clara de um domingo quente, surpreendi-me


Intestinos urgentes, ânsia de vômito, choro
Desejo de raspar a cabeça e me por nua no centro da minha vida
E uivar até me secarem os ossos
Que queres que eu faça Deus?

Quando parei de chorar, o homem que me aguardava disse-me:


Você é muito sensível, por isso tem falta de ar!
Chorei de novo porque era verdade e era também mentira, sendo só meio consolo

Respira fundo, insistiu!


Joga água fria no rosto, vamos dar uma volta, é psicológico

Que ex-voto levo à Aparecida se não tenho doença e só lhe peço a cura?
Minha amiga devota se tornou budista. Torço para que se desiluda e volte a rezar comigo as
orações católicas.

Eu nunca ia ser budista!


Por medo de não sofrer, por medo de ficar zen
Existe santo alegre ou são os biógrafos que os põem assim felizes como bobos?

Minas tem coisas terríveis.


A serra da piedade me transtorna.
Em meio a tanta rocha de tão imediata beleza, edificações geridas pelo inferno, pelo
descriador do mundo.
O menino não consegue mais, vai morrer, sem força para sugar a corda de carne preta do que
seria um seio, agora às moscas.

Meu coração é bom mas não aceita que o seja.


O homem me presenteia.
Porque tanto recebo quando seria justo mandarem-me à solitária?

Palavras não, eu disse. Eu só aceito chorar!


Porque então limpei os olhos quando avistei roseiras e mais o que não queria, de jeito nenhum
queria aquela hora, o poema, meu ex-voto.
Não a forma do que é doente, mas do que é são em mim.
E rejeito e rejeito premida pela mesma força do que trabalha contra a beleza das rochas.

Me imploram amor Deus e o mundo.


Sou pois mais rica que os dois.
Só eu posso dizer a pedra: És bela até a aflição!
O mesmo que dizer a ele: Sois belo, belo, sois belo.

Quase entendo a razão da minha falta de ar


Ao escolher palavras com que narrar minha angústia, eu já respiro melhor.

A uns, Deus os quer doentes, a outros quer escrevendo.

POEMAS DE DORA RIBEIRO

igreja de mulheres
No altar
Nada
No vaticano
Nada
Na cama uma reza miudinha
Embaraçada em lençóis
De pura carne e belos homens

t. s. eliot e Hawking

o passado do universo
para nós é o presente
sobre o qual nada sabemos

POEMAS DE ANA MARTINS MARQUES


Um jardim para Orides

Quem tem um jardim


tem um relógio

hora da cigarra
hora da rosa

hora do lagarto
hora da hera

e acima
as estrelas
pedras
atrasadas
acesas
à noite
à distância
__

Brilha no jardim
o silêncio das plantas

brilham as pedras
redondas

BARCOS DE PAPEL

Os poemas em geral são feitos de palavras


no papel
seria melhor se fossem de pano
porque poderiam tomar chuva
ou de madeira
porque sustentariam uma casa
mas em geral são feitos de palavras
no papel
e por isso servem para poucas coisas
entre as quais não se encontra
tomar chuva
ou sustentar uma casa.
Dobrados sobre si mesmos,
lançam-se no mundo
com a coragem suicida
dos barcos de papel.

POEMAS DE ONDJAKI
chão

palavras para manoel de barros

apetece-me des-ser-me;
reatribuir-me a átomo.
cuspir castanhos grãos
mas gargantadentro;
isto seja: engolir-me para mim
poucochinho a cada vez.
um por mais um: areios.
assim esculpir-me a barro
e resser chão. muito chão.
apetece-me chãonhe-ser-me.

Que sabes tu do eco do silêncio?


resposta para paula tavares

um só olhar
pode ser uma voz não dita.
para acumular dores
o mais das vezes
bastou um desamor.
sei: a solidão
ecoa de modo muito silencioso.
sei: muita silenciosidade
pode reciprocar
verdadeiros corpos num amor.
um só silêncio
pode ser nossa voz não dita
ainda nunca dita.
para ecoar um silêncio
bastou gritarmo-nos para cá dentro
num gritar aprofundo.
já silenciar um eco
é missão para uma toda vida:
exige repensação da própria existência.
POEMAS DE JOSÉ PAULO PAES

O Aluno

São meus todos os versos já cantados:


A flor, a rua, as músicas da infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.

Intacto me revejo nos mil lados


De um só poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.

São meus também os líricos sapatos


De Rimbaud, e no fundo dos meus atos.
Canta a doçura triste de Bandeira.

Drummond me empresta sempre o seu bigode.


Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.

Falso diálogo entre Pessoa e Caeiro

- a chuva me deixa triste


- a mim me deixa molhado...

POEMAS DE MARCELO MONTENEGRO

Mulher com chapéu

Consta que no Salão


de Outono de 1905,
uma assistente da
exposição apontou
indignada para o quadro
Mulher com chapéu,
no qual Matisse
havia retratado sua esposa:
“Não existe uma
mulher com nariz
amarelo!”. Ao que
o pintor respondeu:
“Não é uma mulher,
senhora. É um quadro”.

Literatura comparada

Quando o MUNDO é um cruzamento


movimentado cujo semáforo pifou.
FUTURO é um cartaz de filme antigo
num cinema que já fechou.
ANGÚSTIA é esse instante
durando meses. AFETO
é uma conversa entre velhos amigos
no bar mais próximo ao velório de um deles.
MARCOS REY
foi meu Chuck Berry da literatura.
CARNE MOÍDA é o leite
condensado das misturas.
PAZ é sorrir por dentro. POSTAIS
são imagens pingando
das goteiras do tempo.
ENTRAR é o começo
de sair. “SER ORIGINAL
é tentar ser como os outros
e não conseguir”.
ACADEMIA é a repartição pública
do corpo. SIMPLICIDADE
é a superfície do topo.
FRACASSO é o abajur da sorte.
CANTAR é roubar
uns minutos da morte.

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