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UERJ - UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

INSTITUTO DE LETRAS

CARLOS EDUARDO FERREIRA DE OLIVEIRA

ANTÍGONA, PELO DEVER.

RIO DE JANEIRO

2020
2

CARLOS EDUARDO FERREIRA DE OLIVEIRA

ANTÍGONA, PELO DEVER.

Trabalho de conclusão da disciplina Crítica


e História Literária, na especialidade Teoria
da Literatura e Literatura Comparada, no
tema Percurso de conceitos críticos sobre
arte e textos poéticos através dos tempos e
espaços; ministrado pelo Prof. Dr. Amós
Coelho da Silva na área de Estudos de
Literatura do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro.

RIO DE JANEIRO

2020
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RESUMO

O presente trabalho tem por finalidade pensar a construção do personagem


Antígona, de Sófocles, considerando as leituras e os fundamentos da tragédia
grega. O referido personagem, apresentado como ser de linguagem, explicitando
pedagogicamente as relações entre indivíduo e a Polis. As tensões estabelecidas
entre o direito natural e o direito positivo como eixo central nessa tragédia. Esta
escrita adotará como base conceitual a abordagem de Philippe Hamon, George
Steiner e Anatol Rosenfeld para estabelecer hipóteses acerca dos argumentos
propostos por Sófocles que entrecruzam no desenrolar da tragédia. A condição da
mulher, o dever da família e as obrigações com a Polis servirão de moldura para
analisar o personagem Antígona.

Palavras-chave: Antígona, personagem, Sófocles, direito natural, direito positivo.


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ABSTRACT

The present work aims to think about the construction of Sophocles' character

Antigone, considering the readings and the foundations of the Greek tragedy. Said

character, presented as a being of language, pedagogically explaining the

relationship between the individual and the Polis. The tensions established

between natural law and positive law as a central axis in this tragedy. This writing

will adopt as a conceptual basis the approach of Philippe Hamon, George Steiner

and Anatol Rosenfeld to establish hypotheses about the arguments proposed by

Sophocles that intertwine during the tragedy. The condition of the woman, the duty

of the family and the obligations to Polis will serve as a framework to analyze the

character Antigone.

Keywords: Antigone, character, Sophocles, natural law, positive law.


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SUMÁRIO

1- INTRODUÇÃO........................................................................................…06
2- QUEM É ANTÍGONA..................................................................................08
3- A PERSONAGEM.......................................................................................11
4- UM POUCO DE TEORIA.........................................................................…13
5- CONCLUSÃO..............................................................................................16
6- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS….........................................................17
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1. INTRODUÇÃO

“Comum no sangue, querida irmã, caríssima Ismene,

sabes de algum mal, dos que nos vêm de Édipo,

que Zeus não queira consumar em nossas vidas?”.

Antígona, Sófocles.

A Antígona, de Sófocles, é a terceira peça da chamada Trilogia Tebana,


composta por Édipo Rei, Édipo em Colono e por Antígona. Apesar de vir depois
das outras duas peças na ordem cronológica da história, Antígona foi a primeira
delas a ser escrita por Sófocles, tendo sido representada pela primeira vez em
441 a.c. em Atenas. Constituída por um prólogo, um párodo e cinco estásimos, a
peça apresenta a interpretação de Sófocles para o desfecho da descendência de
Édipo. A obra narra a saga da filha de Édipo, que retorna do exílio voluntário em
Colono para Tebas, onde permaneceu até o falecimento de Édipo. Após a morte
do pai, de volta a sua terra, Antígona se depara com um cenário de destruição
causado por seus dois irmãos em guerra, Etéocles e Polinice.

Após a morte de Édipo, os dois irmãos acordaram de alternarem-se no trono


de Tebas, cada um tendo direito a um ano de reinado, começando por Etéocles.
Contudo, transcorrido o primeiro ano, Etéocles se nega a deixar o trono,
causando, assim, a disputa. Polinice, em contrapartida, reuniu um forte exército
em Argos, cidade rival, com a qual se aliou, e atacou Tebas, a despeito de sua
origem. Nesta guerra morrem os dois irmãos, um pela mão do outro, e Tebas
acaba resistindo à invasão.

Creonte, irmão de Jocasta, a mãe de ambos, diante da morte dos


sobrinhos, assume a sucessão do trono, que passa a ser seu por direito. Como
parte das obrigações irrefutáveis para com os mortos, realiza funerais dignos para
Eteócles, tratando-o como herói, e impõe um decreto negando que seja dada
sepultura ao corpo de Polinice como castigo por haver se insurgido contra a sua
cidade, portanto, como um traidor. Porém, era crença entre os gregos que o morto
que não fosse sepultado ficaria com a alma a errar pela terra e a obrigação de
prover o sepultamento era obrigação inalienável de seus familiares. Antígona não
aceita o decreto e resolve, contra a decisão de Creonte, sepultar o corpo do
irmão.

Durante a ação, Antígona é flagrada por um guarda ao atirar um punhado de


terra sobre o corpo; aquele, o guarda, a denúncia para Creonte, que a condena à
morte. A atitude do soberano é confrontada por seu filho Hêmon, pelo sábio
Tirésias, e pela própria Antígona. Creonte não cede. Ao final, a inflexibilidade de
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Creonte acaba causando a morte de Antígona, de Hêmon, e de sua esposa,


Eurídice.

O conflito entre Antígona e o tirano se constitui como a essência do gênero


trágico: duas forças legítimas e moralmente justificadas que se enfrentam, cerne
da estrutura dramática grega. Na peça de Sófocles, Antígona representa as leis
naturais, regida pelos deuses baixos, enquanto Creonte representa a lei da
comunidade humana, cuja referência seriam os deuses olímpicos, e seria esta
última que regeria a vida pública assegurando o bem estar de todos; mas nesta
tragédia esta oposição clássica será um dos conflitos fundamentais para
compreender Antígona.

Antígona emerge da tragédia de Édipo para consumar o seu destino diante


de Tebas e Creonte, desafortunadamente, como foi reservado a toda a
descendência de Édipo. Sófocles concentra em uma figura feminina toda a
disposição para a desobediência à ordem pública. Ordem fixada e simbolizada
pelo decreto publicado pelo tirano. A figura feminina, alijada da vida pública,
evocará a lei natural, a lei da parentalidade, para contrapor ao decreto de Creonte
e, assim, estabelecer o enfrentamento incontornável entre a lei natural e a lei da
comunidade que tinha por finalidade estabelecer a paz na Polis e assegurar os
fundamentos do poder.
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2 – QUEM É ANTÍGONA?

A questão que abre este segmento aponta para a necessidade de


caracterizar a personagem como tentativa de justificar as suas inclinações.
Antígona é filha de Édipo e Jocasta, irmã de Etéocles, Polinice e Ismene, todos
frutos da união incestuosa dos pais, Édipo filho e marido de Jocasta; assim
constituindo uma descendência de filhos-irmãos que subverte as noções de
parentesco tal como a ordem comunitária reconhecia.

Paira sobre Tebas a maldição que tem início na ascensão de Édipo, que se
inicia com um parricídio e no matrimônio incestuoso com a própria mãe, Jocasta;
cujo desfecho, além das mortes e exílios, ganha contornos numa praga que
assola a cidade. Seguindo a cronologia dos fatos a sucessão de Édipo culmina
numa guerra civil quando os dois irmãos se enfrentam e se aniquilam,
mutuamente, disputando o direito de governar Tebas. A morte de Édipo em
Colono determina o fim do exílio voluntário de Antígona e decreta o seu retorno a
Tebas logo após os serviços fúnebres em honra a Etéocles e na sequência do
decreto que recusava e proibia igual tratamento a Polinice.

Para construir hipóteses acerca da proposição “quem é Antígona?” torna-se


necessário desvendar a sua natureza, a sua materialidade enquanto produto de
criação artística para, depois de convertida em signo, decifrar suas possíveis
significações. Um caminho possível é buscar na etimologia do nome da
personagem, uma evidencia significativa para a atitude altiva que ela adota diante
de Creonte na recusa do cumprimento do decreto do tirano.

A etimologia de seu nome: Anti-gone significa: anti-, no lugar da (ou


contra) gone, a progenitura. Em outras palavras, a heroína marca sua
presença como aquela que substitui (a falta de) descendentes de Édipo.
(ROSENFIELD, 2002, p. 16-17)

Trata-se, portanto, do questionamento sobre quem, de direito, deve exercer


o poder. Ainda que Creonte o exerça, as duas filhas de Édipo não podem ser
ignoradas como raízes naturais do antigo rei. Cabe, então, deste ponto,
caracterizar os dois modelos de mulher que diferenciam as duas filhas de Édipo.
Ismene, quando da derrocada de Édipo, permaneceu em Tebas vivendo no
palácio conforme a posição da mulher na sociedade tebana “Esta representa o
que é a mulher na pólis clássica (um ser frágil, suspeito, insignificante, cujo valor
consiste em ser bonita e submissa)” (ROSENFIELD, 2002, p. 17). Antígona
acompanhou ao pai em seu exílio e em sua agonia, voluntariamente, desde a
revelação do parricídio, do casamento incestuoso até a sua morte em Colono.
Quando de seu retorno, diante do decreto que proibiu os funerais de Polinice,
Antígona adotou a mesma postura altiva, truculenta e insubmissa de seu pai-
irmão, aqui tomada como virtude, em consonância com o temperamento
semelhante, de índole marcadamente masculina.
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Há no prólogo uma fala de Antígona que posiciona os três personagens,


Creonte, Ismene e Antígona, e, que, ao seu juízo, aponta ironicamente uma
inferioridade sutil ao tirano e inaceitável submissão de sua irmã:

As ordens – propalam – do nobre Creonte, que ferem a ti

e a mim, a mim, repito, são estas, que vêm para cá com o propósito de
[anunciar as ordens aos que ainda não as conhecem explicitamente.

O assunto lhe é tão sério que, se alguém transgredir o decreto,

receberá sentença de apedrejamento dentro da cidade.

É o que eu tinha a te dizer; mostrarás agora se és nobre ou se, embora


filha de nobres, és vilã.

(Antígona, v. 31- 38)

Há no trecho destacado um conjunto de evidências acerca da composição


da personagem que vale destacar; ao referir-se a Creonte como “nobre” Antígona
está demarcando ironicamente um caráter distintivo entre ela e o tirano, nos dois
últimos versos deste trecho fica clara a nobreza que Antígona atribui a si, e que
questiona a irmã e que no tocante a Creonte, falta-lhe descendência. Ainda no
mesmo fragmento, há a reprovação ao endereçamento do decreto “ferem a ti e a
mim, a mim, repito”; a força da repetição e a intensificação pela flexão do verbo
“repetir” estabelece o enfrentamento direto entre Creonte e Antígona. Assim,
podemos inferir o caráter combativo de Antígona, muito mais alinhado com a
conduta masculina e a altivez com que se refere as suas origens confrontando-a,
sub-repticiamente, com a linhagem de Creonte.

Qual seria, então, a origem dos temores que determinariam as decisões de


Creonte?

Com efeito, o que Antígona representaria na Atenas histórica? Na época


de Sófocles, existia uma instituição jurídica que assegurava um estatuto
particular à filha de um chefe defunto. Este instrumento — o epiclerado
— garante à filha o direito de parir um sucessor para o seu pai morto,
assegurando assim a continuidade da linhagem e do poder. Fosse
Antígona uma princesa do século quinto, Creonte teria obrigação de
casá-la, no regime do epiclerado, com seu mais próximo parente —
Hemon, filho de Creonte. Ela permaneceria no lar de seu pai morto (num
casamento normal, seria ela quem se mudaria para o lar do esposo) e
seu marido engendraria (no lar da esposa) um sucessor para Édipo, não
um filho para sua própria linhagem. Como Creonte não tem outro filho
(ele sacrificou Megareu na noite anterior para salvar Tebas da
destruição), sua linhagem se extinguiria. Este “detalhe” fornece um
excelente motivo para a repentina antipatia que ele mostra com relação a
Antígona e Ismene. (ROSENFIELD, 2002, p. 21-22)

Para avançar no signo Antígona resta ainda tratar da oposição entre os


deuses olímpicos e os deuses inferiores, que se manifestam no corpus jurídico,
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sendo os olímpicos, aéreos, protetores das leis da polis e os deuses de baixo,


telúricos, ligados à natureza, observando os costumes e deveres inalienáveis,
colocando-os acima da transitoriedade da lei humana, que estrutura a política, e
está associada aos olímpicos.

Posicionar Antígona como mulher de linhagem nobre, de raiz labdácida,


implica em pensar as questões políticas que regem os direitos de sucessão que
envolve essa tragédia. Tal operação dá a ver, de modo oblíquo, as possíveis
motivações de Creonte que se desdobram nas reações de Antígona.

O Dicionário Mítico-Etimológico do professor Junito de Souza Brandão anota


as origens de Édipo desde Lábdaco e é esclarecedor para compreender altivez
cultivada por Antígona e a condição subalterna de Creonte no desenlace da
tragédia:

Lábdaco, filho de Polidoro e neto de Cadmo, fundador de Tebas, era,


através de sua mãe Nicteis, neto de Ctônio, um dos Spartoi.

Como Lábdaco tivesse apenas um ano, quando lhe faleceu o pai, o trono
de Tebas foi ocupado interinamente por seu avô Nicteu. Tendo este se
matado, seu irmão Lico assumiu o poder, até a maioridade do filho de
Nicteis. Este subiu ao trono ainda muito jovem e reinou em Tebas por
longos anos. Foi pai de Laio, que, por sua vez, o foi de Édipo.
(BRANDÃO, 1991, p.369).

A anotação permite inferir sobre o destino trágico da linhagem de Antígona


e, ainda, verificar a manutenção da cadeia sucessória em torno dos filhos de
Édipo. No entanto, Creonte, como governante legítimo, porém fora da linhagem
fundadora, tem no evento das mortes de Eteócles e Polinice a possibilidade de
realizar duas ações importantes para a manutenção do poder: estabelecer a sua
própria linhagem como responsável pelos destinos de Tebas e purificar a cidade
dos miasmas que envolvem a linhagem dos labdácidas.

Portanto, Antígona deve ser lida como signo da resistência das raízes dos
labdácidas, que percebe e confronta a intenção astuciosa de Creonte que se
mostra concreta em duas passagens sutis: “nem esta nem a mana dela
escaparão da morte mais infame.” (SÓFOCLES, 2013, v.486-490) quando
envolve Ismene nas ações de Antígona e, adiante, “não permitirei que uma
mulher governe.” quando deixa evidente a sua intenção objetiva (SÓFOCLES,
2013, v. 524-525).

.
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3 – A PERSONAGEM.

Antígona é um personagem que existe no universo mitológico, literário,


cênico e, portanto, ficcional. Ao concebê-la Sófocles a impregna de todos os
miasmas que perturbam a existência de Tebas e da linhagem a que pertence
Antígona, os labdácidas. As questões que envolvem a hamartia, o geno, o
parentesco, a hereditariedade juntamente com o dever de governar serão as
motivações constitutivas da ação.

Logo, Antígona deve ser considerada um personagem encarnado na matéria


discursiva para figurar questões que, num determinado contexto político-jurídico,
devem estabelecer uma noção de medida para o cidadão da polis. Desse modo, a
tragédia de Antígona tem por finalidade apresentar um modelo de conduta, a
prudência; criticar e advertir sobre a condição dos homens diante da vontade dos
deuses. O que situa Antígona em posição elevada é o embate entre a ordem dos
deuses olímpicos, de caráter irrefutável e a ordem dos deuses de baixo,
primordial, igualmente restritiva e irrevogável para a condição humana.

A oposição proposta por Sófocles entre o tirano e a filha de Édipo apresenta


a posição da mulher em relação aos direitos políticos, opõe ainda, a lei positiva,
isto é, emanada daquele que detém o poder e governa, à lei natural, que se
reporta aos costumes e atende as noções primordiais de origem, pertença,
sagrado e identidade. Portanto, Antígona situa os limites do poder: o que pode e o
que não pode o tirano. O coro como representação do povo e o corifeu, como sua
voz, agem evitando confrontos com o tirano, assim contribuindo com o infortúnio
que se acerca de Tebas. Nem mesmo diante da figura de Tirésias, o adivinho,
apresentando seus presságios e advertências é capaz de, em tempo hábil,
constranger a soberba de Creonte.

O que se depreende das escolhas de Creonte é o modo como ele se


desvincula das obrigações sagradas com a família e vilipendia o cadáver do
familiar, pois Polinice é também seu sobrinho, e se investe de autoridade para
editar um decreto que situa a sua vontade em oposição a vontade dos deuses,
cristalizada na lei natural. Antígona, portanto, funciona como a reserva ética,
como a resistência moral que tem por finalidade recompor o arranjo que une
deuses e humanos. Contudo, Antígona é uma mulher, um ser que detém uma
posição secundária e submissa em relação aos homens, que, igualmente, por
dever, está obrigada aos compromissos conduzidos pela vontade dos homens. O
desfecho trágico de Antígona serve também como forma de recordar a posição da
mulher diante das leis naturais.

Diante da morte dos irmãos Antígona assume a posição que já assumira


quando do exílio de Édipo, se investe da responsabilidade instituída pelas leis do
parentesco e, sob riscos e ameaças, tenta evitar o vilipendio do cadáver de seu
familiar, Polinice. Sua voz se ergue altiva e solitária contra o decreto de Creonte,
e, mesmo partindo de uma posição inferior e fragilizada, alcança o objetivo de
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expor o tirano na intersecção entre o dever e o costume dando a ver a


imprudência do tirano ao recusar os serviços fúnebres ao sobrinho.

Antígona representa, portanto, a resistência da lei natural, arcaica e sagrada,


diante da força implacável da lei do Estado, soberba e violenta, que ao influenciar
no destino dos homens costuma ofender a vontade dos deuses.
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4 – UM POUCO DE TEORIA

Desde o nome Antígona se mostra mais que um personagem, se apresenta


como uma circunstância narrativa que concentra significado e ação. Assim,
Antígona existe como signo, topos fundamental, que concentra e evolui
permitindo a progressão da narrativa.

Conforme Philippe Hamon (1976), a semiologia propriamente dita distingue


três tipos de signos: referenciais, dêiticos e anafóricos, que a Semiologia da
personagem, num primeiro momento, retoma definindo:

a) uma categoria de personagens referenciais: remetem para um


sentido pleno e fixo, imobilizado pela cultura, que deve ser conhecida pelo leitor.
Todo personagem para exercer uma determinada função necessita estar
amparado na contingência da ação, isto é, justificado pelo quanto lhe cabe na
ação. A justificativa se dá por acúmulo das definições que apoiam a presença da
personagem; assim, tomando como exemplo o guarda que vigia o cadáver de
Polinice; entra e sai de cena atualizando a situação que envolve o objeto de sua
vigília enquanto, transversalmente, auxilia na fixação dos contornos da
personagem Creonte.

b) uma categoria de personagens embreadores: são as marcas, no texto, da


presença do autor, do leitor ou de seus delegados. São personagens "porta-voz",
coros de tragédias antigas, narradores e autores intervenientes. “Pode se
reconhecer um personagem embreador, na marca conosco”, (HAMON, 1976, p.
70). Esta categoria/função melhor se define como “intervenientes”, que amparam
a progressão estabelecendo base descritiva para mudanças de cenário, tom ou
ritmo. Em Antígona, no párodo, nas duas estrofes e nas duas antístrofes, o coro e
o corifeu progridem com a narrativa de modo descritivo preparando o episódio em
que aparecerá pela primeira vez Creonte.

c) uma categoria de personagens anáforas: é a única categoria


indispensável. Tais personagens tecem, no enunciado, uma série de apelos e
lembranças a segmentos de enunciados disjuntos e de comprimento variável (de
um sintagma a um capítulo). Tendo função organizadora e coesiva, são as
personagens que mais despertam o interesse, visto que seus traços possibilitam
não somente a economia da narrativa como também a sua tautologia, através da
substituição e da coesão.

Pela recorrência, pela perpétua remissão a uma informação já dita, pela rede
de oposições e de semelhanças que as liga, todas as personagens têm uma
função anafórica (econômica, substitutiva, coesiva, mnemotécnica) (HAMON,
1976, p. 88). Esta categoria melhor se ajusta como função móvel, de modo que
todos os personagens, de algum modo, participam da construção da tessitura
narrativa seja no quesito da ordenação, da articulação ou na reiteração que fixa
os objetivos e impedimentos que delimitam a ação. Exemplar é a aparição precisa
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de Tirésias e todo esclarecimento que sua intervenção acrescenta. As


informações terminam por justificar os desdobramentos da ação nos destinos de
Creonte, Antígona Hêmon e Eurídice. A ação acelera, intensifica revelando as
faltas que serão purgadas nas mortes que encerram a tragédia. Tirésias como
este ponto móvel, partícipe, funciona para restabelecer a linha entre deuses e
homens.

Resta, contudo, um mínimo escorço do personagem-signo, enquanto


unidade de um sistema. A personagem define-se como uma espécie de morfema
duplamente articulado, manifestado por um significante descontínuo, remetendo
para um significado descontínuo e fazendo parte de um paradigma, estruturando-
se na progressão narrativa, construído pela mensagem, pensando em termos
formalistas (HAMON, 1976, p. 89).

Seu significante descontínuo é representado, no texto, pelos constituintes


que farão parte de um paradigma gramaticalmente homogêneo ou heterogêneo.
O significante da protagonista é veiculado de modo múltiplo, plural, estabelecendo
em cada nominação um acúmulo de dados que preenche o vazio inicial deste
morfema que se estrutura em um paradigma gramaticalmente heterogêneo, pois
ele a nomina, recorrendo a substituições e recorrências que reforçam e
asseguram a permanência das marcas. Portanto, o significante da personagem-
signo é o seu nome, o(s) apelido(s), e todos os processos de substituição que
servem para identificá-lo.

O significado da personagem aparece na cena do texto progressivamente.


Os morfemas da língua são imediatamente reconhecidos, ao passo que o nome
próprio e seus substitutos vão surgindo gradativamente. Morfema “vazio” no
início, a personagem só adquire sentido definitivo pouco a pouco. Entretanto, a
significação de uma personagem não se constitui por repetição ou acumulação,
mas sim por diferenças perante signos do mesmo nível, do mesmo sistema e pela
sua inserção no sistema global da obra. É, pois, diferencialmente, diante das
outras personagens do enunciado que, antes de tudo, se definirá uma
personagem (HAMON, 1976, p. 90).

Anatol Rosenfeld, no volume A personagem de ficção (1970), estabelece um


paradigma essencial para tratar da obra literária:

Na acepção lata, literatura é tudo o que aparece fixado por meio de


letras — obras científicas, reportagens, notícias, textos de ‘propaganda,
livros didáticos, receitas de cozinha etc. Dentro deste vasto campo das
letras, as belas letras representam um setor restrito. Seu traço distintivo
parece ser menos a beleza das letras do que seu caráter fictício ou
imaginário. A delimitação do campo da beletrística pelo caráter ficcional
ou imaginário tem a vantagem de basear-se em momentos de “lógica
literária” que, na maioria dos casos, podem ser verificados com certo
rigor, sem que seja necessário recorrer a valorizações estéticas.
(CANDIDO et alii, 1970, p.9).
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O Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem, organizado por


Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov (1972, p. 286) anota o seguinte apontamento:
“o problema da personagem é antes de tudo linguístico, que não existe fora das
palavras, que a personagem é um ser de papel.” (Apud BRAIT, 2000, p. 10).
Assim, as personagens representam pessoas, conforme as categorias e
modalizações que regem o texto ficcional. A rigor, tudo o que remete a existência
do personagem está anotado no texto, a única circunstância possível de examinar
as minúcias que envolvem a gênese de tal criatura se dá pelo enfrentamento
direto com a matéria textual. Assim, o mundo empírico, o real só pode ser tomado
como referência e representação no que tange a criação de um ser dentro de
algum propósito narrativo-ficcional.

George Steiner publicou em 1995 um volume intitulado Antígonas. Este


estudo realizou a coleta de toda a repercussão relevante da tragédia de Sófocles
retroagindo até onde foi possível estabelecer conexões produtivas para explorar a
permanência e as múltiplas significações extraídas da obra. Passando por
comentários que vão de Hegel a Goethe, passando por Kant, Shelley, Hölderlin,
Nietzsche e Schlegel; de tudo o que se anotou sobre Antígona o mais evidente é
a propriedade da tragédia em atualizar-se mediante as leituras promovidas pelos
diversos horizontes leitores e procedimentos críticos que continuam a animar
aspectos que ganham matiz conforme a mudança do paradigma contemporâneo.

Mais que uma personagem, a coleta de George Steiner revela a importância


da atividade de narrar e compreender a própria história. Através de Antígona o
mundo se mostra em opacidade e transparência colocando em sobreposição
valores e limites que aparentavam polarização. O prefácio traz a seguinte
anotação:

A Antígona de Sófocles não é um “texto qualquer. É um dos atos


duradouros e canônicos no interior da história da nossa consciência
filosófica, literária e política. Há no núcleo deste livro uma tentativa ainda
incipiente de resposta à questão de sabermos como é possível que um
punhado de mitos gregos antigos continue a dominar, a dar forma vital
ao nosso sentido de nós próprios e do mundo. Porque são as
“Antígonas” tão verdadeiramente eternas e imediatas em relação ao
presente? (STEINER,1995, p. 13).

Portanto, mais que um personagem Antígona se apresenta como uma


marca, uma referência da representação do mundo que remonta da fonte grega e
segue pelo itinerário dos comentários e anotações atualizando e animando os
múltiplos elementos latentes que vão ganhando evidencia conforme o leitor.
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5 – CONCLUSÃO

As inúmeras categorias que estruturam e organizam a literatura têm na


personagem valor fundamental. Pois, é neste “topos”, a personagem, que se
fixará o ponto de referência para entrelaçar tramas e ações que constituirão a
verossimilhança necessária para sustentar a narrativa. Pensar Antígona a partir
da fundamentação teórica sobre a personagem equivale a perceber o morfema
vazio de Hamon sendo gradualmente preenchido das questões que ainda atraem
e assombram os homens.

O sofrimento de Antígona possibilita a projeção de um mundo criado a partir


da experiência do mundo real. Os seres criados preenchidos das angústias e
inquietações reais apresentam para o sujeito empírico a força de suas verdades,
dando a ver no papel o teatro implacável do destino e o trágico da desesperança.

Portanto, este ser criado com o propósito de questionar o real, deve ser
definido dentro do estatuto que lhe cabe como ser da ficção, uma síntese
enunciativa, um instrumento da linguagem se resolvendo no texto, aberto ou
fechado, verossimilhança em todas as suas implicações.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

BRAIT, B. A personagem. São Paulo: Ática, 2000.

HAMON, P. Por um estatuto semiológico da narrativa. In: Hamon et al. Masculino,


Feminino, Neutro. Porto Alegre: Editora Globo, 1976.

ROSENFELD, ANATOL. Literatura e personagem. In: CANDIDO et al. A


personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1970.

ROSENFIELD, Kathrin H., Sófocles & Antígona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2002;

SÓFOCLES. Antígona. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2013.

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