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Entrevista concedida pelo Prof.

Alexander Moreira-Almeida (NUPES-UFJF) ao repórter Diogo


Sponchiato para a Revista Galileu. A matéria relativa a esta entrevista foi publicada como
matéria de capa (“Por que você acredita em...”) na edição da Galileu de outubro de 2012, no
255.

1.O psicólogo e historiador da ciência Michael Shermer, que estuda os mecanismos


biológicos por trás das crenças, diz que nosso cérebro é uma máquina projetora de crenças
(morais, supersticiosas, religiosas, políticas...). Quais seriam as razões biológicas que
justificam nossa capacidade e necessidade de estabelecer e reforçar crenças, sobretudo
aquelas voltadas para elementos que não podemos compreender 100% (como Deus,
eventos paranormais ou vida extraterrestre)?
Inicialmente, é importante destacar que é algo cientifica e filosoficamente complicado e
controverso dizer que nosso cérebro é “uma máquina de crenças”, que o cérebro “busca
e encontra padrões e então dá significado a estes padrões” (p.5, prólogo do livro “The
believing brain”). Atribuir ao cérebro estas características humanas (crer, dar
significado etc) é algo com graves problemas epistemológicos, filosóficos e científicos.
Vários filósofos e neurocientistas de alto nível têm advertido contra este tipo de
problema que tem se tornado comum quando se escreve sobre o cérebro:
Neurocientista Eccles (Popper, K.R.; Eccles, J. The self and its brain. Berlin:
Springer Verlag, 1977, p. 225):

“There is a general tendency to overplay the scientific knowledge of the brain,


which, regretfully, also is done by many scientists and scientific writers. For
example, we are told that the brain ‘sees’ lines, angles (…) and that therefore we
will soon be able to explain how a whole picture is ‘seen’ (…). But this statement is
misleading. All that is known to happen in the brain is that neurons of the visual
cortex are caused to fire trains of impulse in response to some specific visual
input.”
Uma outra dupla de filósofo e neurocientista fazem uma afirmação similar:
“the ascription of psychological – in particular, cognitive and cogitative – attributes to
the brain is (…) a source of much (…) confusion. (…) the great discoveries of
neuroscience do not require this misconceived form of explanation” (Bennett and
Hacker, Philosophical Foundations of Neuroscience. Blackwell Publishing 2003, p.3-4).
Um pesquisador brasileiro de história e filosofia da psicologia, professor da UFJF,
Saulo Araújo, realizou um mestrado nesta área e atualmente lidera um grupo de
pesquisas que também envolve estes temas (NUHFIP - Núcleo de Pesquisa em História
e Filosofia da Psicologia
http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=08047071BIS3DK ).
Ele publicou um livro sobre este tema: Psicologia e Neurociência: Uma Avaliação da
Perspectiva Materialista no Estudo dos Fenômenos Mentais. 2. ed. Juiz de Fora: Editora UFJF,
2011. Em capítulo de um livro que editei e que foi publicado este ano (Moreira-Almeida, A.;
Santos, F. S.. (Org.). Exploring Frontiers of the Mind-Brain Relationship. Exploring Frontiers of
the Mind-Brain Relationship. New York: Springer, 2012), ele adverte:
“We then discover, not without astonishment, that the pinnacle of our scientific progress
consists in replacing the notion of subject with the cerebral hemisphere. Who now ‘knows’,
‘makes assessments’, ‘interprets’, ‘creates’, ‘seeks explanation’, etc., is no longer a person but
a piece of matter (part of the brain). It turns out that the use of such enchanted metaphors,
taken as real explanations of phenomena, produces the opposite result of what was promised,
namely, a scientific explanation.” (p.9).

A busca do estabelecimento de crenças e encontrar padrões no mundo é um tema de


grande importância que tem sido profundamente estudado de modo interdisciplinar. A
própria ciência só é possível devido à crença (metafísica) de que há algum tipo de
ordem no universo, o que nos permite buscar por leis científicas, leis naturais. Deve-se
levar em conta não apenas os fatores neurobiológicos (sem dúvida, importantes), mas
sociais, culturais, históricos e psicológicos. Em sua pergunta, você fala sobre coisas que
“não podemos compreender 100%”. Se formos rigorosos, não compreendemos nada
100%. Sempre há importantes limitações em nosso conhecimento.

2. A ciência já sabe dizer por que algumas pessoas são mais supersticiosas ou religiosas do
que outras? Há uma base genética e orgânica que se soma ao desenvolvimento do
indivíduo dentro de determinado ambiente ou cultura?
3. Há pessoas que se dizem céticas, mas sentem uma necessidade de olhar o horóscopo ou
rezar de vez em quando. Como nosso cérebro "trabalha" para conciliar uma visão de
mundo mais racional e cética com uma visão mais supersticiosa ou religiosa?
Primeiramente, é preciso tomar dois cuidados, primeiro é o de considerar religiosidade
como quase sinônimo de superstição e em necessária oposição com o pensamento
racional e científico. Este é um erro que tem sido corrigido por diversos historiadores
recentes das relações entre ciência e religião. Por exemplo:

Mitos e verdades em ciência e religião: uma perspectiva histórica


Ronald L. Numbers
Revista de Psiquiatria Clínica 36(6):246-51, 2009

Mitos históricos sobre a relação entre ciência e religião (resenha)


Alexander Moreira-Almeida
Revista de Psiquiatria Clínica 36(6):252-3, 2009

Sobre este tema, vale à pena tb ver:


Dixon, T. 2008. Science and Religion: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford
University Press.
Pannenberg, W. 2005. “Notes on the alleged conflict between religion and science.”
Zygon: Journal of Religion & Science 40 (3): 585-588.
Tirosh-Samuelson, Hava. 2005. “Rethinking the Past and Anticipating the Future of
Religion and Science.” Zygon: Journal of Religion and Science 40: 33–41.
O segundo cuidado é sobre o que chamamos de superstição. A história da ciência muitas
vezes tem nos mostrado que este termo tem sido usado para evitar analisar e rejeitar
propostas divergentes dos paradigmas vigentes. Dois exemplos são as oposições à teoria
de gravitação de Newton ou à teoria dos germes proposta por Semmelweis e John
Snow:
“It is also important not to reject an explanatory hypothesis because it is not
fashionable or because it has been associated to superstition. Isaac Newton’s
formulation of gravity faced strong opposition because he was not able at that time (and
we still are not able too) to explain how an object could influence another object at
distance, with no material contact. This was even a more important problem since it was
then prevalent two paradigms, mechanism and corpuscularianism, where the different
properties of matter should be fully explained by the mechanical interactions of
corpuscules (Blackburn 2008). Like Newton, Semmelweis and John Snow faced strong
resistance and accusations of superstition and unscientific thinking by their
contemporary scientists when proposing the contagion and germ theory, since these
concepts were popular among superstitious and poorly educated people, while well
educated people usually “knew” that miasma’s theory was the truth (Lilienfeld 2000;
Smith 2002; Vandenbroucke 2000).” (Moreira-Almeida. Preface. In: Moreira-Almeida,
A.; Santos, F. S.. (Org.). Exploring Frontiers of the Mind-Brain Relationship. Exploring
Frontiers of the Mind-Brain Relationship. New York: Springer, 2012, p. xvi).
Importante lembrar que dogmatismo, infelizmente, é uma característica humana e
não apenas de religiosos. O dogmatismo, infelizmente, é também muito comum em
ciências, como foi exemplificado nas citações acima. Isto foi muito bem colocado por
Thomas Kuhn, quando discute a resistência dos pesquisadores mais antigos e bem
estabelecidos às inovações radicais, mesmo que bem embasadas.
Uma outra questão que também precisa ser analisada com cuidado é a confusão
entre ceticismo e racionalidade. Sem dúvida, um ceticismo saudável é um componente
essencial de uma abordagem racional e científica adequada. O que não é o caso do
“ceticismo dogmático”, que já nega a priori e já “sabe” que muitos relatos são falsos
antes de analisá-los com cuidado. Isto se torna especialmente sensível em questões
ligadas à relação mente-cérebro e aos “fenômenos anômalos” como a espiritualidade.
Publicamos dois artigos com diretrizes para uma abordagem legitimamente científica
(com rigor e humildade intelectual) destes temas:

Investigando o desconhecido: filosofia da ciência e investigação de fenômenos


“anômalos” na psiquiatria
Silvio Seno Chibeni, Alexander Moreira-Almeida
Revista de Psiquiatria Clínica 2007, vol.34, suppl.1, p.8-16

Diretrizes metodológicas para investigar estados alterados de consciência e experiências


anômalas
Alexander Moreira de Almeida e Francisco Lotufo Neto
Revista de Psiquiatria Clínica 30 (1):21-28, 2003
Sobre a questão mente-cérebro, muitas pessoas já assumem como um fato
inquestionável, que já teria sido provado cientificamente, que a mente humana é apenas
o produto da atividade cerebral. Que é o cérebro que pensa, escolhe, deseja, dá sentido
etc. Embora seja uma hipótese científica que mereça ser investigada, esta crença é
reforçada de modo dogmático através de retórica e acusa-se de superstição todo
questionamento a esta hipótese. O mais interessante neste tipo de postura irracional é
que ela é apresentada como o ápice da racionalidade e do pensamento científico. Isto foi
muito bem tratado pelo Prof. Saulo Araujo (Materialism s eternal return: recurrent
patterns of materialistic explanations of mental phenomena. In: Moreira-Almeida, A.;
Santos, F. S. (Org.). Exploring Frontiers of the Mind-Brain Relationship. Exploring
Frontiers of the Mind-Brain Relationship. New York: Springer, 2012, p. 3-15).

Um fato interessante é que os proponentes desta hipótese reducionista materialista


geralmente reconhecem que ainda não podem explicar como o cérebro gera a mente,
mas que a ciência fará isso em breve. Esta é uma estratégia que o filósofo Karl Popper e
o neurocientista Eccles chamaram de “materialismo promissório” (The self and its
brain. Berlin: Springer Verlag, 1977). Através de uma cuidadosa pesquisa histórica o
Prof. Saulo mostra que esta promessa de em breve explicar como o cérebro gera a
mente, data de pelo menos o século 18.

Justamente para ampliar e arejar a discussão acadêmica da relação mente-cérebro


editamos o livro Exploring Frontiers of the Mind-Brain Relationship. Exploring
Frontiers of the Mind-Brain Relationship (New York: Springer, 2012). Escrito por
quinze pesquisadores mundialmente reconhecidos, de seis países, aborda aspectos de
filosofia, história, física, neurociência e experiências humanas consideradas anômalas.
Inclusive, ele debate pesquisas rigorosas sobre experiências espirituais que têm sido
publicadas em periódicos científicos de alto nível. Percebe-se que certos tipos de relatos
muitas vezes tidos como superstição têm sido investigados rigorosamente e
proporcionado evidências instigantes.
Sobre este livro, uma resenha acaba de ser publicada na Revista Brasileira de Psiquiatria
(http://www.rbppsychiatry.org.br/audiencia_pdf.asp?aid2=105&nomeArquivo=en_v34n
3a20.pdf), além de apresentado mês passado no congresso da Associação Americana de
Psicologia (http://forms.apa.org/convention/participant.cfm?session=816). Resenha dele
segue em anexo.

Concluindo, pessoas “racionais” podem também aceitar “superstições” por duas razões
principais:
- a racionalidade que usam em um aspecto da vida (pesquisa científica), não é utilizada
em outro aspecto da vida (ex.: relacionamentos afetivos, uso do dinheiro, política,
crenças sobre si e o universo)
- pode haver boas razões racionais e baseadas em evidências que embasam um dado
fenômeno muitas vezes considerado como superstição.
4. Há estudos que sugerem que a crença ou fé em determinado princípio ou religião pode
ajudar pacientes a se recuperar mais facilmente de uma doença. Qual o impacto da
crença/fé no nosso bem-estar psicológico e físico? Ter uma crença faria bem à saúde?
Há atualmente um grande corpo de evidências neste sentido.

Da metade do século 19 até o final do século 20, a tendência bastante forte nos meios
intelectuais e científicos era considerar a religiosidade como um aspecto negativo da cultura
humana. Imaginava-se que a fé religiosa seria um resquício de primitivismo, um instrumento
de negação da realidade, de fuga psicológica, que estaria associado com a neurose. Embora,
sem dúvida tais situações ocorram, generalizá-las e transformá-las na explicação padrão, se
deveu muito mais a razões ideológicas do que científicas.

Cerca de 20 a 25 anos atrás, pesquisadores, começaram a fazer estudos rigorosos para avaliar
a relação entre religiosidade e saúde na população em geral. Houve, inicialmente, muita
resistência a este tipo de investigação, mas, com o tempo, esses estudos começaram a
apresentar resultados bastante robustos, que iam na contramão daquilo que se pensava. De
um modo geral, o envolvimento religioso estava associado a maiores índices de bem estar e de
saúde física e mental. Centenas de estudos indicam de modo consistente que um maior
envolvimento religioso tende a estar relacionado a indicadores de saúde como menor
mortalidade, menores níveis de depressão e de uso de drogas, maior tempo de sobrevida em
caso de doença grave, melhor qualidade de vida de indivíduos com uma doença física.

Naturalmente, há também o lado negativo, embora seja menos frequente. A religião, como
tudo o mais na vida, pode ser mal utilizada. Pode ser usada como instrumento de
manipulação, abuso de poder, busca de prestígio, fuga de um auto-enfrentamento ou das
adversidades da vida. Também é negativo quando se associa com intolerância e preconceitos,
quanto afasta, mais que une as pessoas.

Em 2006, publicamos um artigo revisando as evidências disponíveis sobre as relações entre


religiosidade e saúde mental. Este artigo teve uma excelente receptividade, os autores
receberão o prêmio “Top Cited RBP” a ser entregue no Congresso Brasileiro de Psiquiatria de
2012 por ser o artigo mais citado no Web of Science (73 vezes) da história da Revista Brasileira
de Psiquiatria: Rev Bras Psiquiatr. 2006 Sep;28(3):242-50

Para se ter uma visão geral das pesquisas na área também recomendo o suplemento especial
em “Espiritualidade e Saúde” da Revista de Psiquiatria Clínica (Rev Psiq Clin 2007, 34; supl.1),
que já foi baixado mais de 223 mil vezes no Scielo, sendo o fascículo mais acessado da Revista
entre os publicados desde 2006.

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