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Bordados, molduras e poesia: a arte à dor da existência –

Arthur Bispo do Rosario

Telma Borges
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

Resumo:
Artur Bispo do Rosario viveu quase cinqüenta anos internado e
sanatórios. Nesse espaço de reclusão começou a produzir trabalhos, a
catalogar objetos que, segundo ele, seriam apresentados a Deus no dia do
Juízo Final. Na década de 80 é descoberto como artista, cujos trabalhos se
comparam aos de profissionais como Marcel Duchamp e Armand. Sua
produção ganhou o mundo quando exposta numa das Bienais de Veneza.
Este trabalho tem por objetivo analisar em algumas produções do artista
a noção de transbordamento, experiência em tudo contrária à vida desse
sujeito que encontrou na arte uma forma de romper e contestar os
espaços de reclusão.

Abstract:
Artur Bispo do Rosario lived almost fifty years in a sanatorium. In this
place he began to work and catalogue thinks that, accord to him, were
presented to God at the Final Judge. In the 80s his talent as an artist
was discovered. His works were exhibited in Veneza´s Biennial. This
paper aims to analyze some Bispo’s works and to comprehend the notion
of overflow, a kind of experience so different from his life, but a way that
he found to be free.

Palavras-chave: Artur Bispo do Rosario, Reclusão, Transbordamento


Key words: Artur Bispo do Rosario, Seclusion, Overflow
Palabras clave: Artur Bispo do Rosario, Reclusión, Transborde
Mots clé: Artur Bispo do Rosario, Réclusion, Déborder

Revista Eutomia Ano I – Nº 01 (455-467)


Telma Borges

Eu tentei entender a costura da vida.


Me embolei, pois a linha era muito comprida.
Sérgio Tererê

A literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta.
Fernando Pessoa

O
vasto trabalho de Arthur Bispo do Rosario, produzido ao longo dos quase 50
anos em que foi interno da Colônia Juliano Moreira, ganhou o mundo a
partir dos anos 80 e hoje figura entre as produções mais arrojadas das artes
plásticas contemporâneas. Marcel Duchamp, Arman são alguns dos artistas de
renome a quem Bispo é comparado pela crítica especializada. Nem mesmo o
cineasta Peter Greenaway se furtou a ver no sergipano uma estreita relação com
sua obra.
Toda a imaginação taxonômica de Greenaway é também perceptível em
Bispo, com a diferença de que o primeiro a extrai da cultura à sua volta,
enquanto o segundo o faz a partir da sua existência cotidiana e encarcerada no
espaço da loucura. Alheio às correntes estéticas de seu tempo, Bispo a elas se
filiou de modo inconsciente. Entretanto, pode-se pressupor que a própria matéria-
prima de que sua arte é resultado é que exige uma proposta estética tão de seu
tempo. Maria Esther Maciel diz que Bispo
buscava sua matéria-prima (sic) no cotidiano mais imediato, nos redutos
marginalizados da pobreza, no agora de sua própria experiência:
sapatos, canecas, pentes, garrafas, latas, ferramentas, talheres,
embalagens de produtos descartáveis, papelão, cobertores puídos,
madeira arrancada das caixas de feira e dos cabos de vassouras, linha
desfiada dos uniformes dos internos, botões, estatuetas de santos,
brinquedos, enfim, tudo o que a sociedade jogou fora, tudo o que perdeu,
esqueceu ou desprezou.1

O próprio artista se encontrava em condição semelhante à dos objetos com


os quais fazia arte. Se tudo o que nos parece transpor as margens do sistema
social deve ocupar um espaço de isolamento ou ser descartado, podemos então
aproximar o próprio Bispo dos objetos que lhe serviam de ponto de partida. Seu
transbordamento mental, ocorrido às vésperas do natal de 1938, o levou para a

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linha de dentro da vida, espaço de confinamento de onde, paradoxalmente,


transbordou em arte e alcançou o mundo.
Concomitantemente à incursão analítica por sua obra, algumas inquietações
teóricas aparecerão como instrumento de diálogo: o espaço disciplinador como
lugar da criação artística; a dimensão criativa com caráter enciclopédico; o
imbricamento de lembranças provocado pela atitude colecionadora e a
ressignificação dos objetos.
Em Vigiar e punir, Michel Foucault discute o conceito de disciplina como um
efeito de poder, como a arte do bom adestramento. Alcançar o fim esperado
pressupõe a segregação de corpos, de desejos, de objetos. Foucault afirma que “a
disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que torna os
indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício.”2
Arthur Bispo do Rosario, ao ser subtraído da vastidão das ruas e submetido
ao espaço disciplinador da loucura, é enquadrado enquanto objeto dessa
disciplina, mas também como instrumento, uma vez que sua performance
pugilista3 colaborou com o adestramento de corpos indóceis que chegavam à
Colônia. Já familiarizado com o ambiente e consciente de seus freqüentes
transbordamentos, quando percebia uma transformação operando em si,
solicitava o confinamento. Nos longos períodos de reclusão em uma solitária,
extravasava todo seu potencial criativo; extraia dos objetos marginalizados,
tornados sem validade pela sociedade de consumo, uma essência ordenadora que
seria, posteriormente, apresentada a Deus como uma prestação de contas de sua
passagem pelo mundo. Sua produção expressa o rigor do colecionador que
imprime uma aparente disciplina aos objetos dispostos no espaço da tela. Além
disso, aproxima-se do caráter enciclopédico de algumas produções
contemporâneas.
De acordo com Roland Barthes,
a enciclopédia é um vasto balanço de propriedade. (...) Formalmente (...)
a propriedade depende essencialmente de um certo fracionamento das
coisas: apropriar-se é fragmentar o mundo, é dividi-lo em objetos
prontos, sujeitos ao homem na proporção mesma de seu descontínuo:
pois não se pode separar sem terminar designando e classificando, e daí
nasce o propriedade.4

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Se o efeito enciclopédico funda a posse familiar dos objetos, Bispo, por sua
vez, os recebe despidos de toda e qualquer posse precedente. Entretanto, seu
gesto estético e ordenador os faz renascer, não para uma nova posse doméstica,
dócil, mas para libertá-los da clausura da propriedade e da condição de lixo a que
foram relegados.
O objeto enciclopédico de Bispo, nesse aspecto, diferencia-se do conceito
arrolado por Barthes. Para o autor francês, o objeto enciclopédico das pranchas é
apresentado em três níveis: antológico: isolado de qualquer contexto; anedótico:
quando naturalizado em um contexto social e genético: quando se mostra o seu
trajeto de matéria bruta ao objeto pronto.5 Os objetos de Bispo fogem a essa
tríade barthesiana porque nela já foram inseridos e, enquanto coisas descartadas
de sua utilidade e relação com os sujeitos a quem pertenceram, são reinseridos
num contexto estético no qual a utilidade não é a questão colocada em discussão,
mesmo que eles apontem para essa dimensão utilitária. A reunião de objetos
semelhantes em um mesmo espaço talvez esteja mais próxima da concepção
enciclopédica discutida por Umberto Eco, cujo formato incontrolável e
desordenado projeta uma vertiginosa organicidade, que fere os princípios da
ordenação das coisas no cotidiano.
Walter Benjamin diz que o colecionador vive uma tensão dialética
constante: a ordem e a desordem. No rigor ordenador de Bispo do Rosario, essa
tensão é perceptível; os objetos estão quase sempre transgredindo suas linhas de
contenção, apontando para a impossibilidade de enclausuramento. Desse modo, a
ordenação das coisas que realiza reflete, ainda que de viés, sua própria condição:
tudo o que é aparentemente igual ocupa o mesmo espaço: o manicômio para os
loucos, a vastidão do mundo para os “normais”.
Entretanto, se há sempre um chapéu, uma caneca, um pente, um sapato
que foge das linhas de contenção é porque, na concepção do artista, esse desejo
obsessivo pela taxonomia como modo de organizar o mundo esbarra na nossa
incapacidade para adestrar as linhas de fuga e vontade de potência existentes em
cada ser, em cada objeto.

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Não podemos nos furtar, contudo, de perceber em cada uma dessas coisas
uma memória. Na medida em que objetos de mesma espécie e função são
colocados em convivência, lembranças e histórias desconhecidas são atreladas e
transformadas em algo passível de reinvenção, o que permite criar uma
enciclopédia mágica ou mesmo babélica, em que verbetes estabelecem, em forma
de rizoma, inúmeros e intermináveis pontos de contato e de fuga.
Se, como diz Maria Esther Maciel, “Bispo extrai do delírio o rigor”, o leitor
de sua obra é reenviado ao delírio, à vertigem, não do artista, mas de uma
sociedade que, disciplinadora, acredita na igualdade como condição para ordenar
o mundo. Para compreender esse rigor vertiginoso é imprescindível enveredar
pelos labirintos que a obra de Bispo nos convida a trilhar.

Objetos para o Senhor

Segundo Luciana Hidalgo, Bispo se anunciava como “um enviado de Deus,


um Cristo (sic), quem sabe, mas antes de tudo um maestro empenhado em dirigir
a reconstrução do mundo.”6 Dessa missão nasce uma obra plena de arranjos nos
quais objetos, linhas, tecidos, sucatas não respondem mais por um significado
socialmente construído, são projetados em um torvelinho de significações que os
liberta de seu sentido hodierno. Para respaldar tal argumentação, passaremos a
uma análise de algumas vitrines do artista e do Manto da Apresentação.

Vitrine: Chapéus – Arthur Bispo do Rosario

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Culturalmente, o uso de um chapéu é a evidência simbólica do poder. Pode,


em algumas circunstâncias, corresponder ao uso de uma coroa. É também
símbolo do pensamento e identifica aquele a quem pertence. Na perspectiva
jungiana, mudar de chapéu significa mudar de idéias. Destituídos de sua função
social, utilitária e cultural, os nove chapéus, quando dispostos nessa vitrine, são
empossados por uma dimensão estética; deixam de ter uma função para
adquirirem uma virtude. Enquanto matéria-prima de uma composição artística,
os chapéus não sofreram nenhuma intervenção, mas o exercício da posse e da
ordenação racionalizada no espaço de uma vitrine os transforma em objeto de
coleção. Longe da sua dimensão funcional no cotidiano, não só esses objetos em
convivência sobrevivem, mas também instauram uma existência que independe
do sujeito que deles se desfez e também daquele que os ressignificou, pois
ultrapassam a existência real – são sublimados – para fluírem na dimensão da
arte.
Maria Esther Maciel diz que a disposição simétrica dessa vitrine é
surpreendida por um chapéu impar, que transborda dos limites de seu suporte e
fustiga a ordem.7 Além do chapéu que desvia a vitrine de sua ordem, há aqueles
cujas abas amassadas, sobrepostas ou espremidas, lhes confere certa afetividade
e intimidade. A aproximação de objetos anônimos, de origem desconhecida, passa
a funcionar de acordo com a subjetividade do artista colecionador. No conjunto,
esses chapéus expressam, por seus diferentes proprietários, cores, tamanhos e
texturas, uma multiplicidade de saberes e histórias que se engendram, como a
própria matéria de que foram fabricados. Mesmo que perca terreno para o ato
colecionador, de forma difusa e embaralhada, esses objetos são portadores de
histórias que se somam num único espaço e passam a contar a trajetória do
homem na terra, o que justifica o projeto de Bispo de organizar esses objetos para
apresentá-los no dia do Juízo Final.

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Vitrine: Canecas – Arthur Bispo do Rosario

Apesar da disposição rigorosa das 32 canecas, o transbordamento é sentido


pelo menos em três dimensões. A primeira se relaciona ao volume que os copos
dispostos nessa vitrine produzem. Sua projeção para fora da tela não é uma
ilusão de ótica, mas uma realidade. A segunda diz do transbordamento dos
objetos da sua linha de contenção: a moldura. Nove das peças saem ligeiramente
dessa moldura. Mas o ordenamento é quase impossível devido à rebeldia dessas
canecas. É como se cada uma apontasse para a história enciclopédica que
comportam: como matéria-prima; seu processo de industrialização; a
intencionalidade de transformá-la em canecas. Seu uso pelos detentos. Quantas
bocas, quantas histórias, quantos cafés, água, chá, leite, remédios não foram ali
depositados para suster a vida dos internos? As canecas, por si só, não expressam
essa intencionalidade, mas, na medida em que o artista nelas projeta uma
significação estética, passam a ser portadoras de um saber enciclopédico que se
embaralha com a história das coisas, seu vir a ser, sua relação com uma cultura,
com a história de cada sujeito e com sua quase nulidade, quando perdem seu
caráter utilitário. Bispo, entretanto, ao resgatá-las e nelas imprimir sua rigorosa
e delirante estética, transforma-as em arte e, ao mesmo tempo, denuncia a
história do homem na terra e sua relação com as coisas. A terceira dimensão diz
da multiplicidade agregada a essa vitrine, uma vez que cada caneca comporta
uma ou inúmeras histórias. Quando se cruzam, criam linhas de força que lhes
confere uma unidade transbordante.

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Vitrine: Sapatos – Arthur Bispo do Rosario

A vitrine “Sapatos” talvez possa contar da história da moda dos calçados:


chinelos, tênis, congas, tamancos, sandálias; cores; formatos; tamanhos e
materiais diferentes. Seus usuários: homens, mulheres, crianças. O
leitor/espectador, num exercício lúdico, pode questionar a história de cada um:
desde a fabricação aos últimos passos que deram pelo mundo. Como na vitrine
“Canecas”, ele é enviado para o universo da multiplicidade que cada item do
conjunto carrega. Na primeira fila, ao alto, à direita, um pé de sapato feminino
figura sozinho. Ao seu lado, a marca do lugar ocupado pelo par supostamente
desaparecido e que, em outros espaços, talvez venha a reconfigurar novas e
inusitadas significações. Aqui também é perceptível o transbordamento, não só
pelo relevo que expressam, mas também por alguns pés de conga que parecem se
movimentar para fora da tela. Ligeiro sinal de uma ordem perturbada. Sutis
sobreposições entre um calçado e outro, como a conga sobre o tamanco verde e o
par de congas sobre os chinelos verdes expressam, como na vitrine “Chapéus”,
uma relação afetiva. É como se esses calçados, ainda que no silêncio da moldura,
pudessem dizer dos afectos que perpassam os objetos que povoam a vida do
homem e, paradoxalmente, apontar para a efemeridade desses afectos, facilmente
corrompidos num mundo em que o consumo dita as regras do tempo de uso de
cada coisa e do afeto que a ela dispensamos.

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Engrenagens – Bispo do Rosario

À semelhança da vitrine “Canecas”, essa vitrine que remete para um


mundo de engrenagens, também transborda. O mesmo rigor ordenador pode ser
visto através da distribuição dos objetos pela tela. O modo como estão dispostas –
menores dentro das maiores – transmite a sensação de contenção, interrompida,
entretanto, pelas borrachas sobrepostas cujas pontas também burlam a moldura.
Partidas, essas borrachas interrompem uma ordem cíclica, repetitiva e geram o
inusitado, este que está sempre fora dos espaços de segregação.

Manto da Apresentação – Arthur Bispo do Rosario

Por longos anos, Bispo borda um manto que, segundo ele, seria utilizado no
seu encontro com Deus. Esse manto ganha significação mais expressiva do que
tem se levarmos em conta que, nos rituais religiosos, o cobrir-se com um manto
simboliza a retirada para dentro de si e para junto de Deus e, conseqüentemente,

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do mundo e de suas tentações. Arthur Bispo do Rosario não saiu do mundo dos
ditos “normais” por livre e espontânea vontade. Porém, soube muito bem fazer
uso desses longos anos de reclusão. Se Bispo, ao atravessar a ligeira membrana
que separa a normalidade da loucura, teve que se submeter a um espaço de
reclusão, na Colônia Juliano Moreira, lá ele deu vazão a todo seu potencial
artístico e transbordou. Uma pergunta, mesmo que cruel, aparece como
incômodo: será que se ele não tivesse num manicômio teria conseguido extravasar
toda sua potência criadora como o fez ao longo de quase 50 anos?
Retornando ao manto, Bispo dizia ser uma indumentária especial para o
dia em que encontrasse com Deus. Entretanto, o objeto tem mais valor pelo
cuidadoso trabalho nele realizado ao longo de vários anos do que por sua
finalidade que, diga-se de passagem, jamais foi alcançada. Esse manto também
pode ser visto a partir de uma perspectiva enciclopédica. Para Umberto Eco,
O conhecimento enciclopédico seria de natureza desordenada, de
formato incontrolável, e praticamente deveria fazer parte do conteúdo
enciclopédico de cão tudo o que sabemos e poderemos saber sobre os
cães, até particularmente por que minha irmã possui uma cadela
chamada Best – em suma, um saber incontrolável até para Funes, o
Memorioso.8

Além de vislumbrarmos toda a matéria de que se reveste o manto, podemos


ainda conjeturar a respeito de suas histórias e a significação que adquire naquele
espaço em que bordados, cerzidos, coloridos, nomes gravados na parte interna,
adereços que o tornam majestoso se reúnem para a composição de uma unidade
que expressa também a multiplicidade de que é feito. Se tomarmos o manto como
metáfora da narrativa contemporânea que, para Italo Calvino figura como
enciclopédia, porque engendra uma “rede de conexões entre os fatos, entre as
pessoas, entre as coisas e o mundo”9, é como se cada detalhe que o compõe fosse
um sistema particular. Uma vez reunida, a multiplicidade desses sistemas, todos
acabam mutuamente condicionados. Sendo assim, ainda segundo Calvino,
cada objeto mínimo é visto como o centro de uma rede de relações de que
o escritor não consegue se esquivar, multiplicando os detalhes a ponto de
suas descrições e divagações se tornarem infinitas. De qualquer ponto
que parta, seu discurso se alarga de modo a compreender horizontes
sempre mais vastos, e se pudesse desenvolver-se em todas as direções
acabaria por abraçar o universo inteiro.10

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Mesmo não sendo escritor, a composição artística de Bispo expressa com


rigor essa multiplicidade que Calvino observa nos romances contemporâneos. O
manto da apresentação, especificamente, se sobre ele dispuséssemos uma lupa,
nos aperceberíamos das engrenagens que o compõem e as relações inusitadas que
entre elas se estabelece. Esse olhar permite uma visão dilatada das coisas que
compõem o mundo e as torna inapreensíveis se não se acredita que toda
superfície estriada pode comportar um corpo liso ou rizomático.
A organicidade da obra de Bispo se assemelha à de Borges: essa ordem só
pode ser contemplada na superfície. Os transbordamentos entrevistos nas
vitrines e no próprio manto permitem múltiplas entradas, o que modifica a
história da leitura de cada trabalho. Os inúmeros pontos de contato entre
bordados, molduras e expressões poéticas criam uma espécie de campo minado,
com o diferencial de que, ao pisar no ponto fulcral, de onde a bomba explodiria, o
leitor/espectador é levado para um outro platô e dali a outros e mais outros e, se o
quiser, infinitamente.
Ainda que inconscientemente, Bispo parece nos deixar microfendas por
onde entramos e estabelecemos um espaço de comunicação de sua obra com o
mundo. Essas microfendas, além de ser o próprio transbordamento de que sua
obra está repleta, podem também se relacionar ao que Deleuze diz das
comunicações transversais. Ao embaralhar a origem das coisas, suas histórias e
trajetórias em um único espaço, Bispo permite-lhes o diálogo com outras histórias
e, no espaço uno em que se reconfiguram, não se fundem como um amálgama,
mas permitem que sua potência criadora tangencie a de outras coisas. Assim,
haverá sempre uma brecha por onde entrar e ali criar novas instâncias de
comunicação.
A transmissão radiofônica de Antonin Artaud, analisada por Deleuze em
Mil platôs, volume 3, pode corroborar a leitura proposta para a obra de Arthur
Bispo do Rosario. O desejo de Artaud de criar para si um corpo sem órgãos não é
de se manifestar contra os órgãos, mas contra a organicidade do organismo: o
juízo de Deus, dos homens, do sistema. Na verdade, o que Artaud pretende é uma

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fuga para fora dessa organicidade social que tanto o incomodava. Bispo, por sua
vez, expulso dessa organicidade, pois não se comportava de acordo com ela, no
espaço de reclusão, dá ao mundo uma resposta: a sociedade é um corpo tão vazio,
que todo corpo – social ou individual – “é um conjunto de válvulas, de represas,
comportas”11; não consegue utilizar sua potência criadora, senão para rotular.
Exatamente no espaço de reclusão para onde foi mandado, Bispo, com o
rigor estético que o aproxima de conhecidos artistas contemporâneos, preenche o
vazio das coisas que perderam sua função. Para entender a costura de sua
própria vida, o sergipano, a partir das coisas rejeitadas pelo mundo, a um só
tempo, registra e sublima sua própria rejeição. Na condição de esquizofrênico-
paranóide, compreendeu com tanta argúcia os emaranhados fios não só de sua
existência, mas também os de muitos que se encontravam na mesma condição
que ele. Enquanto realizou os registros de sua passagem pela terra, também fez o
de um mundo marcado pelo fracasso das relações humanas, pelo repúdio à
diferença. Na multiplicidade das coisas colecionadas e reinventadas, assim como
Fernando Pessoa, Bispo encontra no fazer artístico uma saída, porque a vida,
somente, não basta.

Referências Bibliográficas:

BARTHES, Roland. As pranchas da enciclopédia. In: Novos ensaios críticos. São


Paulo: Cultrix, 1974.
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Trad.: Zulmira Ribeiro Tavares.
São Paulo: Perspectiva, 1989.
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única – obras escolhidas II. Trad.: Rubens
Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BURROWES, Patrícia. O universo segundo Arthur Bispo do Rosario. Rio de
Janeiro: FGV, 1998.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad.: Ivo Barroso. São
Paulo: Cia das Letras, 2000.

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CHEVALLIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos – Mitos,


sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad.: Vera da Costa e
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DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia.
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ECO, Umberto. Kant e o ornitorrinco. Trad.: Ana Theresa Vieira. Rio de Janeiro:
Record, 1997.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – História da violência nas prisões. Trad.:
Raquel Ramalhete. 14. ed. Petrópolis: vozes, 1977.
HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosario – o senhor do labirinto. Rio de
Janeiro: Rocco, 1996.
MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas – Ensaios de literatura, cinema e
artes plásticas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Notas:

1 MACIEL, 2004, p. 17.


2FOUCAULT, 1987, p. 52.
3Quando novos internos chegavam à Colônia e reagiam às normas do sistema, Bispo era
convocado a fazer uso de sua força descomunal para disciplinar os rebeldes.
4 BARTHES, 1974, p. 30.
5 BARTHES, 1974, p. 28.
6 HIDALGO, 1996, p. 26.

7 MACIEL, 2004, p. 18.


8 ECO, 1997, p. 92.
9 CALVINO, 2000, p. 121.
10 CALVINO, 2000, p. 122.
11 DELEUZE, 1996, p. 13.

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