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Alfagali CrislayneGlossMarao D
Alfagali CrislayneGlossMarao D
CAMPINAS
2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Essa é uma das partes mais difíceis da tese, não há espaço para agradecer a todos que
me ajudaram durante esses anos. A primeira pessoa a quem gostaria de expressar gratidão é
minha orientadora, Silvia Lara, pelo apoio irrestrito, pela leitura atenta, pela paciência em
corrigir de novo e de novo e por me instigar à reflexão com questões argutas. Por tudo isso e
muito mais, devo à professora Silvia os méritos deste estudo.
Em todas as instituições pelas quais passei contei com o auxílio generoso de
historiadores e arquivistas. Em Lisboa, agradeço a orientação atenciosa e gentil do professor
Luis Frederico Dias Antunes. No Instituto de Investigação Cientifica Tropical e no Arquivo
Histórico Ultramarino, estou em dívida com todos os investigadores e funcionários que me
ensinaram a ler os catálogos e com paciência buscavam as muitas caixas que eu solicitava.
Nas pessoas de Carlos Almeida, Carlos Teixeira, Branca, Rosinha e Mário agradeço muito a
solicitude com que me receberam. Na Biblioteca Nacional, em especial agradeço à gentileza
da senhora Natália e à simpatia de Mafalda e Conceição, que sempre tinham café quente para
aquecer e despertar em tardes longas e frias. O mesmo se passou em muitos outros arquivos e
bibliotecas portugueses, espanhóis, no Centro de Estudos Africanos, em Leiden, Holanda, e
na biblioteca do Royal Museum for Central Africa, em Tervuren, na Bélgica. Agradeço a cada
funcionário e bibliotecário, sem seu trabalho e dedicação, não haveria história para contar.
Em Angola, no Arquivo Histórico de Angola, sou imensamente grata à Alexandra
Aparício, diretora do arquivo, e aos demais investigadores da instituição, como o doutor
Honoré Mbunga. Especialmente, deixo meu agradecimento ao senhor Januário, com quem
dividi a sala de estudos e que prontamente buscava os documentos que pedia. Todas as
manhãs me encontrava com um grande sorriso e muita disposição para mais um dia de
trabalho.
Minha visita à Luanda teria sido completamente diferente sem a ajuda da professora
Maria Conceição Neto, não há como agradecê-la por tudo o que fez por mim. Assim como
não consigo expressar o que significou passar um fim de semana no Dondo, junto à família
Galho, a Andelson André, Mama Mic e todos os amigos que fiz ali. Gentilmente me levaram
para conhecer as ruínas de Nova Oeiras e as de outros sítios históricos da região. Não teria
como fazer essa viagem sem a generosidade dessas pessoas. “Descobri que Luanda é grande,
mama auê”, como canta Mathias Damásio. Na margem de lá deste rio chamado Atlântico, me
senti em tantos aspectos na de cá, agradeço a todos que me acolheram, como o meu senhorio,
senhor Anselmo e a colega de casa, a professora Linda.
Encontrei pessoas que se tornaram muitos importantes para o desenvolvimento deste
projeto em congressos e reuniões científicas. Agradeço à Mariana Candido pela generosidade
intelectual, tanto em disponibilizar fontes, bibliografia e participar da qualificação e defesa
desta tese, quanto em apoiar essa jovem e ansiosa pesquisadora. Sou grata também a Mariza
Soares e Flávia Carvalho pelos apontamentos sobre a pesquisa e incentivo.
No Rio de Janeiro, agradeço à professora Regina Wanderley que me ajudou na
pesquisa junto ao IHGB e ao professor Roberto Guedes.
Agradeço à arquiteta Katia Sartorelli Verissimo e sua equipe pela elaboração das
maquetes que compõem esta tese.
À Roquinaldo, Lucilene e Bob agradeço os apontamentos, sugestões e críticas quando
do exame de defesa.
Os amigos e professores do IFCH, na Unicamp, são incentivadores desde o mestrado e
os agradeço por esse apoio. Obrigada, Flávia, pela disponibilidade em ajudar. As queridas
Day, Raquel, Andréa, Leca e Dani tornaram esses anos muito mais leves e prazerosos,
obrigada! Também sou grata pelos muitos cafés, conversas e apoio de Manu, Alisson,
Rodrigo, Deivison e Tati.
À minha irmã Débora e ao amado Guga, obrigada pela alegria e amor “mineirinhos”
com que preenchem a minha vida. Também agradeço a Rogéria e Mari pela amizade e
incentivo.
Ao quarteto que mesmo de longe continuo integrando, Gi, Tati e Kelly, obrigada pela
amizade. Agradeço também ao apoio de outros amigos de tempos de Ufop, professor Carlão,
Fabiano, Fabrício, Dani e Denise.
À minha família, agradeço a paciência, a compreensão, o amor e a companhia perene.
Minha mãe, Teresa, meu pai, Edemar, e meu irmão, Marão.
Agradeço à FAPESP pela bolsa de doutorado (processo nº 2013/12458-1) e pela bolsa
de estágio e pesquisa no exterior (processo nº 2014/19445-5), sem a estrutura fornecida pela
fundação não seria possível desenvolver esse projeto.
Dedico esta tese a todos que de alguma forma colaboram para o seu desenvolvimento
e conclusão.
Resumo
Esta tese analisa a instalação de uma fábrica de ferro na região da Ilamba, no interior
de Angola, na segunda metade do século XVIII, e seus desdobramentos a partir do ponto de
vista das sociedades africanas. As mudanças nas relações de trabalho foram as mais
impactantes e acabaram por deslindar modos de exploração do trabalho dos Ambundos, para
além da escravidão, impostos desde a conquista. O estudo das faces normativa e prática
dessas transformações trazem para o centro da narrativa os representantes da elite política
africana, que constantemente reivindicaram seu estatuto de vassalos para denunciar os abusos
que eles e seus súditos sofriam. Outros aspectos das relações coloniais manifestos durante a
construção da fundição de Nova Oeiras foram os conflitos em torno de minas e terras e o
controle da fabricação e comercialização de objetos de ferro. Esses eram recursos naturais e
utensílios que para os africanos detinham significados para além do econômico. Os ferreiros e
fundidores da Ilamba produziam um ferro de alta qualidade em fornos baixos, com seus
instrumentos rústicos. Sua trajetória, enquanto grupo de artesãos, foi o fio condutor da
pesquisa, pois permitiu compreender as disputas, conflitos, costumes e tradições envolvendo
tanto as estratégias do domínio colonial português, quanto as formas de resistência, a
invenção de novas práticas, a elaboração de discursos articulados pelos africanos. Na redução
da escala de análise, nota-se que as determinações locais tiveram peso tão ou mais
significativo nas decisões tomadas na sede do Império que as ideias Ilustradas que marcaram
o período. Os embates entre as personagens do sertão de Angola - moradores, sobas, os
“filhos”, capitães-mores, ilamba, imbari, negociantes, pumbeiros, ferreiros e fundidores –
guiaram as diretrizes governativas em Luanda e enfatizam as complexas redes hierárquicas
das relações de domínio, no auge do trato de escravos. Por fim, baseada em uma leitura das
fontes que privilegia o ponto de vista africano, a tese propõe uma nova interpretação sobre as
narrativas dos fracassos de Nova Oeiras, considerando que os Ambundos elaboraram
estratégias bem-sucedidas para manter em seu poder os conhecimentos e os benefícios que a
metalurgia conferia.
Palavras-chave: Real Fábrica de Nova Oeiras – Angola – História – Séc. XVIII; Ferro;
Metalurgia; Trabalho; Artesãos.
Abstract
This thesis analyzes the installation of an iron foundry in the region of Ilamba, in
Angola hinterland, in the second half of the 18th century, and how it unfolded, from the point
of view of African societies. The changes in labor relations were the most striking and ended
up revealing exploitation modes of the work of the Ambundos, beyond slavery, imposed since
the conquest. The study of the normative and practical sides of these transformations brings to
the center of the narrative the representatives of the African political elite who constantly
claimed their status as vassals to denounce the abuses they and their subjects suffered. Other
aspects of the colonial relationships manifested during the construction of the Nova Oeiras
foundry were the conflicts around mines and lands and the control of the manufacture and sale
of iron objects. For the Africans, these natural resources and tools were meaningful beyond
their economic value. The blacksmiths and smelters of Ilamba produced a high-quality iron, in
the low furnaces, with their rustic implements. Their trajectory, as a group of artisans, was the
guiding thread of the research, since it allowed to understand the disputes, conflicts, customs
and traditions involving both the strategies of the Portuguese colonial dominion, as well as the
forms of resistance, the invention of new practices, and the elaboration of discourses
articulated by the Africans. By reducing the scale of the analysis, it is noticed that the local
determinations had as much or more significant weight in the decisions taken at the seat of the
Empire than the Illustrated ideas that marked the period. The clashes between the people of
the sertão of Angola – residents, sobas, the “sons”, capitães-mores (“captain-major”), ilamba,
imbari, traders, pumbeiros, smiths and smelters – oriented the governmental guidelines in
Luanda and emphasized the complex hierarchical networks of dominance relationships at the
height of the slave trade. Finally, based on a reading of the sources that privileges the African
point of view, the thesis proposes a new interpretation of the narratives of the failures of Nova
Oeiras, considering that the Ambundos have devised successful strategies to maintain in their
power the knowledge and the benefits metallurgy conferred.
Keywords: Real Fábrica de Nova Oeiras – Angola – History – 18th century; Iron; Metallurgy;
Work; Artisans.
Lista de figuras e mapas
Mapa 1 – Carta dos Reinos de Loango, Kongo, Angola e Benguela, 1764. .............................33
Mapa 2 - Detalhe do interior do Reino de Angola, 1791 ..........................................................50
Mapa 3 – A região da Ilamba, 1790 ..........................................................................................83
Mapa 4 – Carta topográfica da província em que se localizava Nova Oeiras, 1769 c.a. ........121
Lista de tabelas e gráfico
Introdução................................................................................................................................15
7. Fontes e bibliografia..........................................................................................................316
8. Glossário ............................................................................................................................338
9. Anexos ................................................................................................................................341
13
Nota preliminar
Nesta tese, os vocábulos das línguas bantu que aparecem aportuguesados nas
fontes setecentistas são grafados de acordo com a documentação, salvo títulos nobiliárquicos,
rios e outros topônimos, que seguem a grafia em kimbundu e o kikongo. Procuro seguir a
grafia angolana oficial e a ortografia oficialmente padronizada destas línguas, para os termos
que encontramos os equivalentes1.
Não foi possível transcrever com rigor vários títulos políticos, cargos, funções do
século XVIII que utilizam palavras em kimbundu (essa é uma limitação da autora que não fala
kimbundu). Quando foi possível reconhecer títulos políticos já traduzidos em outras obras
historiográficas, transcrevo o nome tal como o documento cita e indico entre colchetes qual
seria a tradução mais aproximada. Exemplo: chefado Cabanga Cambango (provavelmente
Kabanga kya Mbangu, identificado como soba da Ilamba no Livro dos Baculamentos2).
Todas as palavras em outra língua que não a portuguesa e que não forem
topônimos, etnônimos e títulos nobiliárquicos, são grafadas em itálico. Algumas palavras,
cujo significado é importante para a análise, são melhor explicadas no glossário anexo. A
indicação no texto é um asterisco. Por exemplo: kimbari*.
Infelizmente não é possível saber com certeza como os centro-africanos da região,
que ficou conhecida como Reino de Angola, chamavam a si mesmos no século XVIII. A
identidade Ambundo é uma construção colonial e poderia reunir pessoas de diferentes origens
e filiações políticas. Com certeza, esse vocábulo não dá conta dessa diversidade. Para Virgílio
Coelho, o melhor vocábulo seria Tumundongo, que designa as populações originárias do
antigo reino do Ndongo. O autor prefere usar este termo a Mbundu, largamente utilizado na
historiografia, porque o segundo etnônimo, apesar de usado desde o século XVI na forma
aportuguesada Ambundo, não “é o que corresponde em nenhum dos contextos àquele que é
sugerido pela autoconsciência destas populações”. Ambundu (plural de Mbundu) significa
1
A grafia atual da língua kimbundu baseia-se no seu alfabeto e respectivas regras de transcrição constantes na
Resolução n. 3/87 de 23 de maio de 1987 do Conselho de Ministros da República de Angola. O alfabeto
kimbundu é composto pelos seguintes caracteres: a, b, c, d, e, f, h, i, j, k, l, m, n, o, p, s, t, u, v, w, x, y, z. As
regras de transcrição aplicam os seguintes fonemas: mb, mp, mv, mf, nd, ng, nj, nz, ny. “Segundo Lepsus, tanto
o C como o Q correspondem a K; o GE e o GI correspondem a um som gutural (gue, gui); O átono do final das
palavras deve ser representado por U; o S equivale foneticamente a ce/ci/ç e nunca Z”. José Delgado In: Antonio
de Oliveira Cadornega, História das Guerras Angolanas (1680). Anotado e corrigido por José Matias Delgado.
Lisboa: Agência-geral do Ultramar, 1972, v. III, p. 611 apud Aida Freudenthal, Selma Pantoja (ed.). Livro dos
Baculamentos: que os sobas deste Reino de Angola pagam a Sua Majestade (1630). Luanda: Ministério da
Cultura e Arquivo Nacional de Angola, 2013, p. 27.
2
Aida Freudenthal, Selma Pantoja (ed.). Livro dos Baculamentos, p. 50.
14
“negros” e seria uma elaboração de grupo étnico ou de povo “forjada pelos portugueses para
designar um vasto conjunto de populações que falam a mesma língua, o Kimbundu”. O autor
também considera que Kamundongo (singular de Tumundongo), por motivos desconhecidos,
passou a ter uma conotação pejorativa em Angola. Coelho utiliza Kimbundu como
substitutivo de Mbundu e usa o vocábulo para indicar comunidade, cultura, língua,
gemealidade no espaço cultural, povos, sistema. Isso porque para a “designação da noção de
povo ou comunidade é comum estas populações utilizarem o termo akwa”. No caso,
Akwakimbundu, os Kimbundu, “populações – ou comunidade – que falam a língua
kimbundu”3.
Assumo que Ambundos não é o melhor termo para fazer referência aos centro-
africanos do antigo Reino de Angola pois, sem dúvida, ele traz a perspectiva colonial.
Portanto, ele carrega todas as consequências do olhar europeu sobre os africanos na época, é
um termo preconceituoso, com objetivo de depreciar essas populações. Por outro lado, fazer
uso de um etnônimo atual, seria incorrer no anacronismo, pois não podemos presumir que
uma identidade étnico-linguística atual tenha sido a mesma reclamada pelos centro-africanos
há séculos atrás. Portanto, ciente de que as identidades são construções históricas que se
transformam ao logo do tempo, prefiro me ater ao nome Ambundo porque é o que os registros
históricos utilizam. Nas línguas bantu o plural das palavras é na maioria das vezes formado
pelo acréscimo de um prefixo (ex: kilamba, plural ilamba). No caso de Ambundo, por ser uma
forma aportuguesada de Mbundu e porque quero enfatizar que se trata de uma construção
colonial, seguirei o padrão português de pluralização ou inflexão de gênero (Ambundos,
Ambunda).
Ainda assim, reconheço que este assunto não é consensual e pode trazer muitos
problemas. Peço ao leitor que, ao ler o vocábulo Ambundos nesta tese, não o relacione ao
Mbundu e à sua tradução “pretos” ou “escravos”, porque de forma nenhuma esta é a minha
leitura. Ao ler Ambundo, leitor, compreenda que nosso conhecimento histórico sobre os
centro-africanos ainda é limitado e, especialmente, que desconhecemos como chamavam a si
próprios, no século XVIII. Feitas essas ressalvas, espero que, no decorrer do texto, possa
evidenciar o ponto de vista dos centro-africanos a respeito da história que quero contar, ainda
que recorra a um etnônimo criado por agentes coloniais.
3
Virgílio Coelho, Em busca de Kàbàsà. Uma tentativa de explicação da estrutura político-administrativa do
reino de Ndòngò. Luanda, Kilombelombe, 2010, p. 203 e 204, nota 1, p. 364.
15
INTRODUÇÃO
1
Certidão de José Francisco Pacheco, inspetor das obras da fábrica, sobre o estado da fábrica de ferro. São Paulo
de Assunção de Luanda Luanda, 13 de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 28.
16
2
O rio Lukala é o maior afluente do rio Kwanza, atravessa as províncias do Uíge, Malanje e Kwanza Norte. O
rio Luinha liga os municípios de Cazengo e Golungo Alto. Decidimos manter o vocábulo “fábrica” porque é o
que encontramos na documentação setecentista, seu significado se restringe a esse período histórico, se
aproximando ao vocábulo de Bluteau cuja definição é “a casa ou a oficina em que se fabricam alguns gêneros”.
Portanto, não deve ser associado às grandes indústrias do Sistema Fabril. Raphael Bluteau, Vocabulário
portuguez e latino, 10 v. Lisboa/ Coimbra: Colégio da Cia. de Jesus, 1712-1728, verbete “fábrica”.
17
“rasgar a terra”, em 1768, o governador mandou que as fábricas fossem unidas em Nova
Oeiras, enviando todo o ferro ali produzido e todos os trabalhadores de Novo Belém para
aquele local3.
Os trabalhos acadêmicos sobre Angola no século XVIII, em algum momento se
detêm na história da imponente fábrica de ferro cujas ruínas permanecem grandiosas até os
nossos dias. Sobretudo aqueles que pesquisam a administração do governo de Francisco de
Sousa Coutinho, conhecido como o “administrador filósofo”, analisam a fábrica como o
símbolo dos projetos da conquista portuguesa de Angola e seu hinterland. Gastão de Sousa
Dias, Ralph Delgado, Jofre Amaral e Antonio da Silva Rego são autores de obras que
enaltecem a figura de Sousa Coutinho e para quem a fábrica de ferro era um exemplo da
genialidade de seu governo e das potencialidades do colonialismo português. Escritas durante
o Estado Novo, essas obras revelam seu comprometimento com a perspectiva colonial,
justificando as ações dos agentes coloniais4.
A historiografia tem renovado as interpretações sobre o governo de Sousa
Coutinho e da fábrica de ferro, criticando a abordagem dos autores citados. Nas dissertações
de Ana Madalena Trigo e Sousa, de Mônica Tovo Machado e na tese de Flávia de Carvalho
encontramos referências documentais e estudos que se voltam para o ponto de vista africano
dessa história5. A leitura desses trabalhos foi muito importante para compor a presente
análise, embora eles tenham abordado tangencialmente a história de Nova Oeiras.
3
Gastão de Sousa Dias. D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho. Administração Pombalina em Angola.
Lisboa: Editorial Cosmos, 1936, p. 39.
4
Gastão de Sousa Dias, D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, Administração Pombalina em Angola; Jofre
Amaral Nogueira, Angola na época pombalina. O governo de Sousa Coutinho. Lisboa: [s. n.], 1960; Antonio da
Silva Rego, “A Academia Portuguesa da História e o II centenário da fábrica de Ferro em Nova Oeiras, Angola”,
In: Coletânea de Estudos em honra do prof. Dr. Damião Peres. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1974,
p. 385-398; Ralph Delgado, “O Governo de Sousa Coutinho em Angola”. In: Stvdia, nº 6, 1960, p. 19-56, nº 7,
1961, p. 49-86, nº1 0, 1962. Ver também: Maria Teresa Amado Neves, “D. Francisco Inocêncio de Sousa
Coutinho: Aspecto moral da sua acção em Angola”. In: I Congresso de História da Expansão Portuguesa no
Mundo. Lisboa: Sociedade Nacional de Tipografia, 1938, p.120-150; A. Fuentes, “Dom Francisco Inocêncio de
Souza Coutinho. Esboço de uma obra que se perdeu”, Boletim do Instituto de Angola, nº 4, 1954, p. 35-40;
Marques do Funchal, O Conde Linhares. Lisboa: s/l, 1950.
5
Ana Madalena Trigo de Sousa, D. Francisco de Sousa Coutinho em Angola: Reinterpretação de um Governo
1764-1772. Dissertação (Mestrado em História). Funchal / Lisboa: Universidade de Nova Lisboa, 1996. É um
trabalho de densa análise de fontes que não tem sido revisitado como merecia pela historiografia; Mônica Tovo
Soares Machado, Angola No Período Pombalino: O Governo De Dom Francisco Inocêncio De Sousa Coutinho
– 1764-1772. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras E Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, 1998; Maria Adelina de Figueiredo Batista Amorim, “A Real Fábrica de Ferro de Nova Oeiras.
Angola, Séc. XVIII”. Clio, Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, v. 9, 2003, p. 189-216;
Patrícia Bertolini Gonçalves, “Iluminismo e administração colonial. Angola vista por brasileiros no século
XVIII”. VIª Jornada Setecentista; conferências e comunicações. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2006, p. 481-490;
Ana Madalena Trigo de Sousa, “Uma tentativa de fomento industrial na Angola setecentista: a “Fábrica do
Ferro” de Nova Oeiras (1766-2772)”. Africana Studia, n. 10, 2007, p. 291-308; Flávia Maria de Carvalho, Sobas
e homens do rei: interiorização dos portugueses em Angola (séculos XVII e XVIII). Maceió: Edufal, 2015. Ver
18
também: José Gentil Silva, “En Afrique portugaise: L'Angola au XVIIIe siècle”. Annales. Histoire, Sciences
Sociales, 14e Année, n. 3, 1959, p. 571-580.
6
Catarina Madeira Santos, Um Governo “polido” para Angola : reconfigurar dispositivos de domínio (1750
c.1800), p. 21.
19
7
Dentre os estudos clássicos que analisaram a África Centro-Ocidental que enfatizaram a formação política dos
estados africanos ver especialmente: Jan Vansina, Kingdoms of the Savanna. Madison: Wisconsin University
Press, 1966; David Birmingham, Trade and conflict in Angola: the Mbundu and their neighbours under the
influence of the Portuguese, 1483-1790. Oxford: Clarendon Press, 1966; Jan Vansina, How societies are born:
governance in West Central Africa before 1600. Charlottesville: University of Virginia Press, 2004; The
Kingdom of Kongo: Civil War and Transition 1641-1718. Madison: University of Wisconsin Press, 1983; Joseph
C. Miller, Poder político e parentesco: os antigos Estados Mbundu em Angola. Trad. Maria da Conceição Neto.
Luanda: Arquivo Histórico Nacional de Angola, 1995; Beatriz Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII. Estudos
sobre Fontes, Métodos e História. Luanda: Kilombelombe, 2007; Linda M. Heywood, John K. Thornton,
Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundations of the Americas, 1585–1660. New York: Cambridge
University Press, 2007; Virgílio Coelho, Em busca de Kábàsà: Uma tentativa de explicação da estrutura
político-administrativa do reino de Ndòngò. Luanda, Kilombelombe, 2010.
20
linhageiros, principalmente, nessa região que no século XVIII compõe o sertão próximo da
cidade de Luanda8.
Outro ponto importante da tese é a análise dos mecanismos de exploração local do
trabalho de africanos. Para isso, foi preciso compreender as mudanças nas relações de
trabalho ao longo do tempo e como a iniciativa colonial regulamentou a prestação de serviços
dos dependentes dos chefes linhageiros. Partimos do pressuposto de que os modos de
estabelecer o domínio colonial estão necessariamente relacionados às formas de controle do
trabalho dos africanos. Esse tema não é abordado pela historiografia que tratou das relações
firmadas pelos tratados de vassalagem entre portugueses e africanos9, e constitui mais uma
contribuição oferecida por essa tese.
Um estudo singular sobre o trabalho de centro-africanos e que reflete sobre a
legislação do trabalho é a dissertação de Elaine Ribeiro dos Santos, sobre os trabalhadores na
expedição de Henrique Dias de Carvalho (1884-1888). A autora reconstrói a experiência de
carregadores, guias e intérpretes a partir da obra do militar português, demarcando suas
práticas cotidianas e estratégias de resistências junto ao comando da expedição e às
autoridades africanas10.
A produção acadêmica sobre o trabalho africano na África, livre, obrigatório,
compelido, penal se concentra na segunda metade do século XIX e no século XX11. Ao
mesmo tempo, a historiografia sobre a sociedade angolana, em períodos anteriores, dedica-se
majoritariamente à análise do tráfico de escravos. Embora julguemos o tráfico um elemento
fulcral da história de Angola, o presente estudo é uma contribuição à história social do
trabalho africano no século XVIII. Evidentemente, há diversas conexões com o tráfico
negreiro, mas o objetivo, aqui, é discutir como se formaram as fronteiras entre as diferentes
8
Entre outros: Jill Dias, “Changing patterns on power in the Luanda hinterland, the impact of trade and
colonization on the Mbundu ca. 1845-1920”. Paudema, 32, 1986, p. 285-318; Jill Dias, “O Kabuku Kambilu (c.
1850-1900). Uma identidade política ambígua”. In: Actas do Seminário Encontro de povos e culturas em
Angola. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 15-52;
Isabel de Castro Henriques, Percursos da Modernidade em Angola: dinâmicas comerciais e transformações
sociais no século XIX. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1997.
9
Beatriz Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, 2007; Catarina Madeira Santos, “’Escrever o poder’. Os autos
de vassalagem e a vulgarização da escrita entre os africanos: o caso dos Ndembu em Angola (séculos XVII-
XX)”. International symposium Angola onthe Move: Transport Routes, Communication, and History, Berlin, 24-
26 September 2003; Flávia Maria de Carvalho, Sobas e homens do rei, 2015.
10
Elaine Ribeiro dos Santos, Barganhando sobrevivências: os trabalhadores centro-africanos na expedição de
Henrique de Carvalho (1884-1888). Dissertação (Mestrado em História). São Paulo: Universidade de São Paulo,
2010.
11
Entre outros: Adriano Parreira e Dale T. Graden, “África em debate: uma herança identitária - o trabalho
forçado”. In: Africana Studia, n. 5, 2010, p. 135-168; Jeremy Ball, “Relatos de investigação sobre o trabalho
forçado em Angola na era colonial”. In: Actas do II Encontro Internacional de História de Angola. v. II. Luanda:
Arquivo Nacional de Angola; Ministério da Cultura, 2015, p. 79-110.
21
12
David Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade. New York: Oxford
University Press, I987, p. 77; John Thornton, A África e os Africanos na formação do mundo atlântico, 1400-
1800, p. 122-125, 152. Entre outros, ver também: J. D. Fage, “Slavery and the Slave Trade in the Context of
West African History”. The Journal of African History, 10(3), 1969, p. 393-404; Philip Curtin, Economic
Change in Precolonial Africa: Senegambia in the Era of Slave Trade. Madison: University of Wisconsin Press, 2
v., 1975.
13
Paul Lovejoy, Transformations in slavery: a history of slavery in Africa [1983]. 2 ed. Cambridge: Cambridge
University Press, 2000; Patrick Manning, “Contours of Slavery and Social Change in Africa”. The American
Historical Review, 88(4), 1983, p. 835-857; Frederick Cooper, Plantation Slavery on the East Cost of Africa.
Portsmouth: Heinemann, 1997; Para um debate anterior, discutindo questões demográficas e sociais, ver: Walter
Rodney, How Europe Underdeveloped Africa. Londres: Bogle-L’Ouverture Publications, 1972; Joseph Inikori,
Forced migrations: The impact of the export slave trade on African Societies. London: Holmes and Meier, 1982.
14
Entre outros estudos: Jill Dias, “Changing patterns on power in the Luanda hinterland, the impact of trade and
colonization on the Mbundu ca. 1845-1920”, 1986; Isabel de Castro Henriques, Percursos da Modernidade em
Angola, 1997; Beatrix. Angola nos séculos XVI e XVII. Estudos sobre fontes, métodos e história. Luanda:
Kilombelombe, 2007; José Curto, “Un buttin illégitime: razias d’esclaves et relations luso-africanes das la région
des fleuves Kwanza et Kwango em 1850”. In: Isabel de Castro Henriques, Louis Sala-Mollins (ed.). Déraison,
Esclavage, et Droit: les fondements idéologiques et juridiques de la Traite Négrière et de l’Esclavage. Paris:
Unesco, 2002; Roquinaldo Ferreira, Transforming Atlantic Slaving. Trade, Warfare and Territorial Control in
Angola, 1650-1800. Tese (Doutorado) - University of California, Los Angeles, 2003; Beatriz Heintze, Angola
nos séculos XVI e XVII, 2007.
22
No que tange aos circuitos do comércio de cativos e a história das relações entre o
trato na África e seus links com o tráfico transatlântico, Way of death é referência
indispensável15. Entre aqueles que se dedicam à história social no Reino de Angola, destaco,
em especial, os estudos recentes de Roquinaldo Ferreira, sobre as conexões entre Angola e
Brasil, e de Mariana Candido, primeiro estudo exaustivo sobre a história de Benguela, com
ênfase na cultura e na sociedade africanas. O tráfico de escravos continua a ser um problema
central nestes estudos, mas eles diferem de outras abordagens porque seus autores pretendem
contribuir com uma análise qualitativa, buscando traçar as trajetórias de vida daqueles que se
envolveram no tráfico e compreender os mecanismos de escravização, as formas de
resistência e as consequências do tráfico de acordo com as experiências dos africanos e seus
descendentes. Como herdeiros de estudos precedentes, destacam o papel das “pessoas que
construíram esses lugares [Benguela e Luanda] e o[s] inseriram na economia global”16.
Esta tese dialoga mais de perto com essa historiografia que parte da perspectiva da
história social, inscrita na expressão inglesa: the history from below. A história “vista de
baixo” reuniu historiadores que ampliaram os limites da disciplina ao se voltarem para a
história das experiências de homens e mulheres das classes subalternas. Uma abordagem dos
processos históricos negligenciada nas narrativas clássicas que privilegiaram os grandes
acontecimentos e as personagens ilustres, ou ainda, que não foi considerada nas análises
estruturalistas dos historiadores marxistas. Este movimento historiográfico, que tem como
principais representantes Edward Thompson e Eric Hobsbawm é tributário do estudo pioneiro
de George Rudé, A multidão na história (1961), sobre os movimentos populares na França e
Inglaterra (1730-1848), especificamente greves, motins, rebeliões, insurreições e revoluções17.
Seguindo essa tradição teórica, Thompson se debruçou sobre a História do
Trabalho para além das temáticas das instituições, sindicatos, grandes lideranças, e se ocupou
sobretudo da cultura dos operários, seus costumes, valores, modos de vida, suas experiências.
15
Joseph C. Miller, Way of Death. Merchant Capitalism and the Angolan slave trade, 1730-1830. Madison:
University of Wisconsin Press, 1988.
16
Roquinaldo Ferreira, Cross-Cultural exchange in the Atlantic World. Angola and Brazil during the Era of the
Slave Trade. New York: Cambridge University Press, 2012; Mariana P. Candido, An African Slaving Port and
the Atlantic World. Benguela and Its Hinterland. Nova York: Cambridge University Press, 2013, p. 24;.No
Brasil, os programas de pós-graduação têm incentivado (sobretudo após a lei nº 10.639 que torna obrigatório o
ensino da História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da rede de ensino) o estudo da cultura e das
sociedades africanas. O tema da Angola setecentista tem sido revisitado e importantes contribuições surgiram
recentemente como o livro de Flávia Maria de Carvalho, Sobas e Homens do Rei: relações de poder e
escravidão em Angola (séculos XVII e XVIII). Maceió: EDUFAL, 2015. Ingrid de Oliveira, Textos militares e
mercês numa Angola que se pretendia reformada: Um estudo de caso dos autores Elias Alexandre da Silva
Correa e Paulo Martins Pinheiro de Lacerda. Tese (Doutorado em História), Niterói: Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2015.
17
George Rudé, A multidão na história: estudo dos movimentos populares na França e Inglaterra, 1730-1748.
Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
23
18
E. P. Thompson, A miséria da teoria ou um planetário de erros. Uma crítica ao pensamento de Althusser.
Trad, de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 15 e 16. Nas palavras de Jim Sharpe: “Thompson,
assim, identificou não apenas o problema geral de reconstruir a experiência das pessoas comuns. Ele também
enfatizou a necessidade de tentar entender as pessoas no passado, tanto quanto for possível ao historiador
moderno, à luz de suas próprias experiências e de suas próprias reações a essa experiência”. Jim Sharpe,
“History from below”. In: Peter Burke (ed). New Perspectives on Historical Writing. The Pennsylvania State
University Press, 1992, p. 26.
19
Frederick Cooper, “Work, Class and Empire: An African Historian's Retrospective on E. P. Thompson”.
Social History, v. 20, n. 2, 1995, p. 235-241.
20
Joseph Ki- Zerbo, Introdução, In: Joseph Ki- Zerbo (ed). História geral da África I: metodologia e pré-
história da África. 2° ed. revista. Brasília: UNESCO, 2010, p. XXXV. Sobre a perspectiva afrocêntrica, ver:
Paulo Fernando Moraes de Faria, “Afrocentrismo: entre uma contranarrativa histórica universalista e o
relativismo cultural”. Afro-Ásia, n. 29/30, 2003, p. 340 ; Mohamed Mbodj, “Le point de vue de Mohamed
Mbodj”. Politique Africaine, n. 79, 2000/3, p. 167 e 168 ; Steven Feierman, “African histories and the
dissolution of world history”. In: R. H Bates; V. Y. Mudimbe; J. O’Barr (ed.). Africa and the disciplines: the
contributions of research in Africa to the Social Sciences and Humanities. Chicago: University of Chicago Press,
1993, p. 186.
24
forma exata pela qual o poder é difundido e as formas como esse poder é engajado,
contestado, desviado e apropriado”21.
Por fim, o interesse particular na história da fábrica de ferro não tem por objetivo
escrever uma história monográfica. Antes consideramos importante o jogo entre as escalas de
análise proposto pela metodologia que ficou conhecida como micro-história. Com a
possibilidade de variar a escala e assim construir o macro pelo micro, consideramos a
reconstituição de elementos das histórias dos sobas, trabalhadores, funcionários régios que
conviveram em Nova Oeiras como um recurso metodológico fundamental para alcançar
nossos objetivos22. Por meio delas será possível lançar novas interpretações sobre a história
social dos Ambundos.
Para alcançar tais objetivos teóricos, foi preciso ler as fontes com um novo olhar e
enfrentar uma dificuldade comum a todos os pesquisadores que querem, por meio de
documentos administrativos coloniais, identificar as vozes dos que se pretendiam subjugados.
Achille Mbembe discorre sobre a distribuição do olhar em um contexto colonial, descrevendo
o europeu que observa o africano:
“um certo modo de distribuição do olhar acaba por criar o seu objeto, por
fixá-lo e por destruí-lo ou, ainda, por restituí-lo ao mundo, mas sob o signo
da desfiguração ou, pelo menos, de um ‘outro eu’, um eu objeto, ou ainda
um eu-à-parte. Determinado modo de olhar tem de fato o poder de bloquear
a aparição do terceiro e a sua inclusão na esfera do humano”23.
“diferentes personagens são vistas como forças conflitantes”, nem sempre é fácil detectar as
vozes distintas que estão expressas nas fontes históricas. Por vezes o historiador é tentado a
observar “por sobre os ombros” do inquisidor, “seguindo as suas pegadas”, deixando-se levar
pela percepção de um juiz, esquecendo-se que este é apenas uma das vozes contraditórias do
processo24. Assim como Ginzburg, ao procedermos a análise das nossas fontes, temos de
resistir à interpretação colonial sobre os africanos, aos juízos de valor, aos filtros das
autoridades portuguesas e nos esforçar para entender o ponto de vista africano ali inscrito.
Stuart Schwartz adensa essa reflexão ao lembrar que as narrativas construídas por
colonizadores e colonizados têm uma via de mão dupla. Para este autor, todo conhecimento
colonial foi fundamentado nos encontros culturais, nas etnografias implícitas. Com isso,
Schwartz quer dizer que dos dois lados dos encontros comerciais, militares e/ou plenamente
coloniais, os “membros de cada sociedade mantinham ideias, frequentemente não enunciadas,
de si próprios e dos ‘outros’, e das coisas que lhes davam tais identidades”, um conhecimento
que não precisava ser articulado, mas que permeava os modos como as pessoas pensavam e
agiam. De forma geral, nas zonas de contato entre culturas diferentes ocorreram
continuamente transformações nessas formas de percepção de si e do outro em uma “tensão
dinâmica entre compreensões e expectativas prévias e novas observações e experiências”25.
Esses conhecimentos tácitos se propagaram por meio de tratados, crônicas,
memórias, instruções, cartas, leis, enfim uma variada tipologia de documentos que informam
os pressupostos de uma cultura em relação à outra (mutuamente), ora reforçando estereótipos,
ora reafirmando instrumentos de dominação e resistência. Na análise das fontes, consideramos
importante atentar para as múltiplas vozes que as constituem, e assim analisar os pontos de
vista e as estratégias dos variados súditos da Coroa portuguesa e de africanos que não estavam
sob seu domínio, no contexto da colonização.
Essas breves observações teórico-metodológicas são suficientes para indicar um
dos procedimentos analíticos importantes adotados na pesquisa que sustenta essa tese, pois
utilizamos uma documentação que é, essencialmente, oficial. Aparentemente, as séries de
fragmentos oficiais oferecem apenas a perspectiva metropolitana ou de seus agentes coloniais.
No entanto, resistindo a olhar sobre os ombros dos que produziram esses documentos,
realizando uma leitura cuidadosa de seus elementos, como nos informa a bibliografia, é
possível observar muitos aspectos sobre como os centro-africanos resistiram ao projeto de
24
Carlo Ginzburg, “O inquisidor como antropólogo”, Revista Brasileira de História, v.1, n.21, São Paulo:
ANPUH/Marco Zero, p. 6-10.
25
Stuart Schwartz, Implicit understandings: observing, reporting and reflecting on the encounters between
Europeans and other peoples in the early Modern Era, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 2 e 3.
26
26
Estes documentos foram selecionados em um primeiro momento nos arquivos brasileiros: Instituto de Estudos
Brasileiros/USP, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sobretudo no PADAB (Projeto Acervo Digital
Angola-Brasil), no Arquivo Nacional e na Fundação Biblioteca Nacional. Na segunda etapa, em Portugal,
buscamos por estas fontes e pela bibliografia especializada no Arquivo Histórico Ultramarino, Biblioteca
Nacional de Portugal, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Sociedade de Geografia de Lisboa, Academia das
Ciências de Lisboa, Arquivo Histórico do Tribunal de Contas, Arquivo Histórico Militar, Museu Nacional de
História Natural e da Ciência, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar, Biblioteca da Ajuda,
Museu Nacional de Arqueologia, Museu Nacional de Etnologia, Biblioteca Municipal do Porto e Arquivo da
Universidade de Coimbra. Como mestres biscainhos foram contratados para trabalhar em Nova Oeiras, visitamos
alguns acervos na Espanha principalmente em busca de mais informações sobre as técnicas de fundição e forja
do ferro: a Biblioteca Nacional da Espanha, o Arquivo Nacional da Espanha e o Arquivo Geral das Índias.
27
Eric Hobsbawm, “A história de baixo para cima”, In: Sobre história: ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, p. 215-232.
27
CAPÍTULO 1
UM TRIÂNGULO DESCONTÍNUO:
O REINO DE ANGOLA NO SÉC. XVIII
1
Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, “Memórias do Reino de Angola e suas conquistas, escritas em Lisboa
nos anos de 1773 e 1775”. BMP, Códice 437, documento 10. Antonio Parreira traz as seguintes medidas: 1 légua
francesa = 3 milhas; 1 légua (1641) = 1 milha espanhola; 1 légua italiana = 3 milhas = cerca de 1250 m. Segundo
Joaquim Monteiro, em “Um viagem redonda da carreira da Índia (1597-1598)”, uma légua portuguesa
correspondia a 5920 m. Se considerarmos esse valor, significa que a soberania do rei de Portugal não era
reconhecida à aproximadamente 29 km ao norte e 59 km ao sul da Costa de Luanda. Isso mostra o limitado
traçado geográfico da influência portuguesa. Contudo, é preciso estar atento para “as diferenças dos valores
dados para a mesma distância, quando calculada em dias ou jornadas, podem estar relacionadas com os
diferentes ritmos de marcha, com as condições atmosféricas, o estado dos caminhos, com o peso transportado, e,
em muitos casos, podem ser consequência de erros de estimativa e até de impressão ou escrita. (...) Os africanos
no Kongo determinavam a distância das terras não por milhas ou espaço tal, mas em jornadas de homens
carregados ou ligeiros”. Adriano Parreira, Economia e sociedade em Angola na época da Rainha Jinga (século
XVII). Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 23 e 24. Joaquim Rebelo Vaz Monteiro, Uma viagem redonda da
carreira da Índia (1597-1598). Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1985, p. 463.
31
2
Sousa Coutinho não cita o Reino de Benguela, ao sul do Kwanza, como um vértice deste triângulo porque
desde 1612 este reino foi declarado independente com governador próprio. Contudo, após a expulsão dos
holandeses em 1648, Benguela passou a ser governada por um capitão-mor indicado pelo governador de Angola.
Somente em 1779 governadores voltaram a ser nomeados. Há de ressaltar que não eram reinos apartados, pelo
contrário, as relações comerciais e políticas entre esses reinos se tornaram ainda mais fortes no século XVIII.
Sobre o Reino de Benguela ver: Mariana P. Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela
and its hinterland. New York: Cambridge University Press, 2013.
3
Desde o século XVII, a Kisama se tornou destino de escravos em fuga. B. Heintze lembra que muitas vezes
essa referência às fugas para a região nos textos dos governadores era na verdade uma forma de justificar
expedições militares junto à chefia para obter escravos. Beatriz Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII. Estudos
sobre Fontes, Métodos e História. Luanda: Kilombelombe, 2007, p. 524. Joseph C. Miller, Way of Death.
Merchant Capitalism and the Angolan slave trade, 1730-1830. Madison: University of Wisconsin Press, 1988, p.
385.
32
chave para o tráfico de escravos que frequentemente comerciava com outros europeus,
minando os planos de monopólio dos portugueses4.
Em termos gerais, circunscreviam o Reino de Angola, no século XVIII, ao sul do
Kwanza a província de Kisama e a leste do rio Kwango, o Império Lunda. A oeste do
Kwanza, reinavam os potentados de Kasanje, do Holo e de Nzinga-Matamba. Ao norte do rio
Ndande, o Reino do Kongo, os Ndembu5 e os potentados Musulu, Sonho, junto ao rio Mbrije.
Na região do Reino de Loango, havia as sociedades Mubire ou Vili6. No mapa 1, essas
divisões tornam-se mais claras. Ele foi publicado em 1764, em Paris, e desenhado por Jacques
Nicolas Bellin, um importante cartógrafo da marinha francesa.
Nesta carta, os rios que cortam o território estão em relevo: o rio Zaire como
divisa natural entre o Reino de Loango e o Reino do Kongo; o rio Kwanza, principal via
pluvial do Reino de Angola; o rio Kunene, em Benguela, que marcava até fins do século
XVIII o limite conhecido do território ao sul de Angola pelos portugueses, o além-Kunene era
território inexplorado7.
4
FISC, “Memórias do Reino de Angola e suas conquistas”. O mani Sonho, titular do governo do Reino do
Kongo foi um dos primeiros parceiros comerciais dos portugueses. Principal autoridade de Mpinda, uma
província ao noroeste do Reino do Kongo, na margem sul do rio Zaire. Em ofício de 1766, Sousa Coutinho cita
outros potentados que assim como o Sonho se tornaram um empecilho à conquista portuguesa e aos avanços com
o tráfico de escravos: O mani Musulo e o ndembu Manicembo. São descritos como “soberbos potentados, os
mais fortes e assistidos de pólvora e bala dos portos vizinhos em que comerciam os estrangeiros (...) quase todas
as guerras que com eles tivemos foram malsucedidas”. Ofício do governador FISC. São Paulo de Assunção de
Luanda, 30 de Março de 1766. AHU_CU_001, Cx. 50, D. 7.
5
“Para Sul do Dande até ao Bengo (ou ao Zenza) estendia-se, e estende-se ainda, o território dos Dembo
(Ndembu), um povo de língua kimbundu com fortes afinidades com o Kongo, que correspondia, em grande
medida, aos ‘Ambundu’ das antigas fontes. Originalmente, Ndembu não era uma designação étnica, mas sim um
título dos grandes chefes locais. Estes formavam uma zona-tampão entre o Kongo e o Ndongo, e eram em larga
medida independentes, embora com uma nítida inclinação a favor do Kongo, cuja soberania reconheciam em
certas alturas”. Beatriz Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 183.
6
Joseph C. Miller, Way of Death, p.30-33.
7
A região ocidental da África Central, a savana ao sul da floresta equatorial, é marcada pelo caráter montanhoso
do território e pelo regime das chuvas. Nos vales encontram-se as terras férteis cuja estação da seca é de curta
duração. Em geral, há duas estações, a das chuvas de setembro a abril e a da seca entre maio e setembro
conhecida como cacimbo, quando as temperaturas se tornam amenas. Ao longo do corredor do rio Kwanza as
temperaturas são altas e as chuvas sazonais torrenciais. O recorte montanhoso da paisagem levou a desagregação
dos povos da savana que, em busca de um melhor habitat, se concentravam em regiões povoadas alternadas com
desertos. De forma geral, o clima é majoritariamente tropical úmido, mas incorpora todas as unidades ambientais
da África e a paisagem geomorfológica deste território é formada por extensos planaltos no interior e um relevo
movimentado no talude atlântico: “uma grandiosa escadaria que conduz ao oceano”. A savana africana se
localiza entre a floresta equatorial mais densa e o deserto nos trópicos, ocupando uma grande faixa do
continente desde leste a oeste, do Sudão aos Grandes Lagos, desde os entornos do Deserto do Saara, até os
entornos do Deserto de Kalahari, ao norte da África do Sul. Carlos Ervedosa, Arqueologia angolana. Lisboa:
Edições 70, 1980, p. 34 e 35.
33
Fonte: Jacques Nicolas Bellin, “Carte des Royaumes de Congo, Angola et Benguela avec les pays Voisins,Tire de l'Anglois”,
1764. National Maritime Museum, Paris. Disponível em:
http://www.davidrumsey.com/luna/servlet/detail/RUMSEY~8~1~233286~5509680:Carte-des-Royaumes-de-Congo,-
Angola?sort=Pub_List_No_InitialSort%2CPub_Date%2CPub_List_No%2CSeries_No?&qvq=q:angola;sort:Pub_List_No_In
itialSort%2CPub_Date%2CPub_List_No%2CSeries_No;lc:RUMSEY~8~1&mi=16&trs=25. Acesso em: 01/07/2016.
8
Honoré Mbunga, “A problemática da periodização da História de Angola: o período colonial”. In: Actas do II
Encontro Internacional de História de Angola. Luanda: Arquivo Histórico Nacional de Angola/ Ministério da
Cultura, 2014, p. 149-171. O historiador John Fage considera que a região “dos estados costeiros da Costa de
Ouro, Congo, Angola, Vale do Zambeze e as cidades dos povos da África tropical continuou a ser muito
34
semelhante ao que fora antes do século de D. Henrique, o navegador e de Vasco da Gama”. Esses autores
defendem que antes da Conferência de Berlim, e mesmo algum tempo após 1885, os portugueses tinham como
principal interesse o tráfico de escravos, não a colonização de Angola. John D. Fage, História da África. Lisboa:
Edições 70, 1997, p. 259.
9
Richard Reid, “Past and presentism: the ‘precolonial’ and the foreshortening of African History”. Journal of
African History, 52, 2011, p. 135–155.
10
Carta de Francisco Coelho de Carvalho para Dom João IV. São Luís, 20 de maio de 1647. Apud, Rafael
Chambouleyron, Monique da Silva Bonifácio, Vanice Siqueira de Melo. “Pelos sertões ‘estão todas as
utilidades’: Trocas e conflitos no sertão amazônico (século XVII)”, Revista de História, n. 162, 2010, p. 18.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/19150. Acesso em: 25/04/2016, p. 49. Grifo
nosso.
35
aos preexistentes, passando a coexistir com eles11. Esse também foi o modo como os
portugueses se estabeleceram na África e que possibilitou a manutenção do Reino de Angola
– coexistindo com soberanias africanas que, ao dominar grandes contingentes de pessoas,
controlavam também terras, recursos naturais e a força de trabalho para explorá-los.
Para nossos estudos, é importante assinalar que a partir da segunda metade do
século XVIII, há uma mudança nos esforços de colonização, à luz dos projetos do iluminismo
pragmático do marquês de Pombal12, a administração portuguesa na figura do governador
Sousa Coutinho construiu um plano para reformar o Reino de Angola, transformá-lo de
feitoria e colônia permeada por fortalezas (marcas da conquista) a uma colônia de povoações
civis. Como sabemos, Angola não se “reformou” aos moldes que Pombal esperava (o tráfico
de escravos continuou sendo sua principal vocação econômica), contudo existiu um gesto
colonial de inventariar recursos naturais, terras, gentes, domínios, conhecimentos e técnicas,
cartografar o espaço que causou transformações significativas nas sociedades da região. A
instalação de Nova Oeiras em terras de longo contato com os portugueses põe manifestas as
tensões que permearam esse processo.
O reino do Ndongo era o principal da região e foi com o seu rei, ou ngola para os
Ambundos, que os portugueses travaram os primeiros contatos e seguidas sucessivas guerras
durante todo o século XVII. Segundo Joseph Miller, o poder do ngola emanava do fato de ser
uma insígnia - feita de ferro, um machado ou faca que era símbolo de autoridade e acesso ao
mundo sobrenatural - introduzida pelos Samba entre os Ambundos que se tornaram detentores
de uma sofisticada tecnologia de fundição e forja do ferro13. Em uma corruptela do título
ngola, os portugueses denominaram sua nova conquista de Reino de Angola, ou em grande
parte das fontes simplesmente Angola. Em 1671, após sucessivos conflitos armados, os
portugueses derrotaram o Ngola Ari e submeteram à sua autoridade as chefias, detentoras de
títulos políticos entre os Ambundos, que antes estavam sob o domínio deste rei do Ndongo, os
sobas* e, além deste domínio, os ndembu*.
Dessa forma, a ocupação portuguesa se expandiu sobre as terras deste antigo
reino, e além dele, por meio da submissão dos sobados, inicialmente na região próxima à
11
Ângela Domingues, Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no norte do Brasil na
segunda metade do século XVIII. Lisboa: CNCDP, 2000, p. 215.
12
Sebastião José de Carvalho e Melo recebeu o título nobiliárquico de conde de Oeiras em 1759 e dez anos
depois o de marquês de Pombal. O título de conde de Oeiras passou a subsidiários da Casa de Pombal. Como o
período abordado na tese compreende os dois títulos, lançaremos mão de ambos sem respeitar de forma
categórica o ano a cronologia de sua obtenção.
13
Joseph C. Miller, Poder político e parentesco: os antigos Estados Mbundu em Angola. Trad. Maria da
Conceição Neto. Luanda: Arquivo Histórico Nacional de Angola, 1995, p. 67.
36
Costa chamada de Ilamba, entre os rios Mbengu (Nzenza) e Kwanza e, ao longo do tempo, na
que circunscreve o corredor do Kwanza, passando pela desembocadura do Lukala, seu
principal afluente, até os limites do Reino de Matamba. No século XVIII, a administração
portuguesa deste território estava delimitada a norte pelo rio Ndande, a sul pelo Kwanza, a
leste pelo Lukala e a oeste pelo oceano Atlântico. Além disso, ao sul do território, desde o
início do XVII, havia se estabelecido a capitania de Benguela. O potentado da Kisama que
intermediava Angola e Benguela permaneceu independente até o século XIX.
Os Ambundos se concentravam nas regiões banhadas pelo rio Kwanza, um
subgrupo étnico-linguístico dos denominados pela historiografia como Mbundu. Como
afirmou Thornton, a África possuía indústrias bem desenvolvidas que produziam muitas
mercadorias, inclusive aquelas que eram importadas da Europa, tais como tecidos, ferro,
cobre, bebidas alcoólicas14. Esse é o caso dos Ambundos, que cultivavam arroz, inhames, óleo
de palma, painço, sorgo, entre outros produtos. Eram grandes caçadores, usavam
primordialmente arcos e flechas, arapucas, também reuniam grupos de homens para
armadilhas com fogo. Além disso, ocupavam-se na exploração de salinas, trabalhos em metal
(ferro e cobre) e tecelagem. Havia criação de gado nas zonas onde a mosca tsé-tsé não
representava uma ameaça. Segundo Silva Correa, nos sertões era costume que as mulheres
cultivassem as terras e assim se ocupassem dos “rudes trabalhos da enxada e do machado”,
“enquanto os pais, maridos ou parentes tec[iam] entangas (sic), [iam] à guerra, ou à caça das
feras”15. Silva Correa descreve a presteza dos “negros tecelões”:
“sem conhecimento dos teares da Europa, tecem entre duas varas encostadas
a parede, construindo panos de dois palmos e meio de largura e oito ou dez
de comprimento: uma entanga se compõe de três panos unidos pela
extensão. (...) São excelentes cobertas de cama para países frios: o resto se
consume em redes de pescar e pavios de cera”16.
O esposo polígamo era a base da estrutura social porque, quanto mais mulheres
um chefe possuísse, mais plantações (arimos) e mais alimentos teria, assim como uma maior
possibilidade de agregar dependentes e riquezas, já que o poder do chefe se assentava no
número de súditos que tinha sob seu domínio. Os Ambundos seguiam, predominantemente,
14
John Thornton, A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de. Janeiro: Campus,
2004, p. 89.
15
Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola, Lisboa: Clássicos da Expansão Portuguesa no Mundo.
Império Africano, 1937, v. I, p. 113 e 156. Em kikongo moderno há a forma ntánga, “tecido espesso; tecido
vermelho escuro”.K. Laman, Dictionnaire kikongo-français. Avec une étude phonétique décrivant les dialectes
les plus importants de la langue dite kikongo. Bruxelles: [s.n.], 1936, p. 787).
16
Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola, v. I, p. 156. Colleen Kriger estudou em minúcia a
produção de tecidos na região da Nigéria, uma arte que demanda alto investimento de tempo, habilidade,
conhecimento e esforço. Colleen E. Kriger, Cloth in West African History. The African Archaeology Series.
Lanham, Maryland: Altamira Press, 2006.
37
Dessa forma, no século XVIII, os sobas Ambundos que foram avassalados aos
portugueses pertenciam à aristocracia do extinto Reino Ndongo. Nestas sociedades de
estrutura política complexa, o soba era o principal representante. No decorrer da ocupação
portuguesa, os sobas desenvolveram, segundo Jill Dias, uma “identidade ambígua”, ou seja,
adaptaram-se, “política e culturalmente ao mundo atlântico, aproveitando-se das novas
oportunidades comerciais e acomodando-se à presença colonial portuguesa, sem, contudo,
renunciar à sua identidade e convivência africana ou à sua autonomia política”19.
Outras autoridades dos Ambundos aparecem nas fontes portuguesas subordinadas
ou associadas aos sobas: o já citado conselheiro, o kota, o sobeta (sobas menores sob a
jurisdição de um soba mais poderoso), o tandala*, o ngolambole*, o kimbanda*, o kitombe*.
Existia também o kilamba*, descrito por Virgílio Coelho como um sacerdote
“encarregado de aplacar a fúria dos gênios da natureza”, mas ao que parece o significado
deste título se alterou no decorrer do tempo e devido à influência portuguesa porque passaram
a ser conhecidos pelos seus fortes laços com os colonizadores. Os “imbari”* (do kimbundu,
kimbari, pl. imbari, feitor, mordomo, caseiro) assumiam posições de subalternidade, eram
17
Joseph Miller, Poder político e parentesco, p. 35 e ss.
18
Flávia Maria de Carvalho, Sobas e homens do rei: interiorização dos portugueses em Angola (séculos XVII e
XVIII). Maceió: Edufal, 2015, p. 125.
19
Jill Dias, “O Kabuku Kambilu (c. 1850-1900). Uma identidade política ambígua”. In: Actas do Seminário
Encontro de povos e culturas em Angola. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 15.
38
guerreiros africanos que serviram, em diferentes cargos, aos portugueses em tropas auxiliares,
na guerra preta. Ilamba e imbari são identificados pelo seu envolvimento no comércio de
escravos nos sertões20.
Segundo relatos do missionário João Antônio Cavazzi de Motecúccolo, no Reino
do Ndongo, a escolha do primeiro “chefe do país” teria ocorrido porque ngola-mussuri, que
significa “rei-serralheiro”, era “mais perspicaz que os outros”, pois conhecia “a maneira de
preparar o ferro”, assim, como usava de seus conhecimentos com “sagacidade e socorria a
todos nas necessidades públicas, ganhou amor e o aplauso dos povos”21. No Reino Luba, a
leste do Kongo, o seu fundador Kalala Ilunga estava associado à fundição e os rituais de
realeza reproduziam o trabalho do ferreiro na forja22. Em muitos mitos fundadores das
sociedades africanas a associação entre o controle da metalurgia e das minas de ferro e o
poder de um soberano era frequente.
Joseph Miller apontou a importância do mito do ferreiro como fundador dos, por
ele chamados, Estados Mbundu, destacando a necessidade de compreender as razões
ideológicas que fizeram com que reis e chefes perpetuassem essas tradições. Para além das
questões tecnológicas, há outros motivos para que os chefes atribuíssem origem estrangeira ao
conquistador e fundador dos reinos, pois “as origens alienígenas do ubíquo herói civilizador
davam a ele e aos seus sucessores uma legitimidade recusada aos simples residentes do país,
que pareciam destinados a serem profetas sem honra entre os seus pares”23.
De acordo com Miller, os motivos para a formação dos estados Mbundu estão
relacionados à influência de “grandes homens e mulheres”. Entre os motivos citados estava o
controle de recursos escassos e valiosos, como as salinas da Baixa Kasanje, do Kisama, do
Libolo, e os depósitos de minério de ferro no vale do rio Nzongeji e na subida do planalto de
Benguela. Outro motivo foram as inovações institucionais ocorridas ao longo do tempo
(conforme eles se associaram a outros grupos) capazes de atrair mais pessoas para esses
estados, como o caso dos Mbangala, guerreiros que se associavam sem levar em consideração
as linhagens de pertencimento24. Inovações de matriz ideológica também possibilitaram a
20
Além desses títulos de nobreza, os ferreiros também teriam uma posição privilegiada junto à elite do estado
Ambundo, devido a suas habilidades técnicas que tinham também uma função mágico-religiosa explicitada na
própria história da fundação do Reino do Ndongo, no mito do rei-ferreiro.
21
Antonio Cavazzi de Montecúccolo, Descrição histórica dos três Reinos do Congo, Matamba e Angola,
Lisboa: Junta de investigações do Ultramar, 1965, p. 164-166.
22
Jan Vansina, Kingdoms of the Savanna, 1966; Thomas Q. Reefe, The Rainbow and the Kings: A History of the
Luba Empire to 1891. Berkeley: University of California Press, 1981.
23
Outros estados Mbundu, além do Ndongo, Mbondo, Libolo, Pende, Holo, Songo. Joseph Miller, Poder
político e parentesco, p. 9 e 40.
24
No caso os Mbangala formavam “uma associação de varões, aberta a qualquer um sem ter em conta a pertença
de linhagem, na qual os membros da associação se submetiam a impressionantes rituais de iniciação que os
39
consolidação dos Ambundos, uma vez que a posse de um título dependia da capacidade de
convencimento de seu detentor, que possuía o direito de governar porque tinha “métodos
sobrenaturais” de provar os poderes que reivindicava. A aliança com aliados externos foi
outro fator fundamental para a conformação destes estados25.
Nesta tese, usamos a expressão Reino de Angola para referir à área de influência
portuguesa a partir de Luanda e seu hinterland. Partimos de duas premissas, a primeira é a
necessidade de guardar os termos que aparecem nas fontes contemporâneas quanto à
existência deste e dos demais reinos. A preocupação em analisar esta circunstância histórica
específica também se refere às relações entre o Reino do Kongo e o Reino de Portugal. John
Thornton assinala, entre as muitas semelhanças entre ambos os reinos, o fato de os dois serem
monarquias governadas por reis e classes de nobres em que relações de “realeza,
clientelagem, e influência dominaram o sistema político”26. A segunda premissa se explica
porque as elites políticas Ambundas passaram a utilizar essa nomenclatura como símbolo de
distinção social diante de outras autoridades da região. Linda Heywood, ao descrever as
características da realeza no Ndongo depois dos contatos com a monarquia portuguesa,
analisa o caso de Nzinga Mbandi. Em 1624 ela era chamada de “Dama do Ndongo” e, poucos
meses depois da morte de seu irmão, era reconhecida como “Rainha de Ndongo”. Ela não só
“se promoveu como soberana através das suas palavras e ações, como também possibilitou a
continuidade real do Ndongo depois dela”, os portugueses a reconheciam como “Dama
Rainha”, “Dona Ana” e tratavam-na por “Sua senhoria”27.
Assim, ao lançar mão do conceito de “reino” não estamos impondo uma noção
alheia às sociedades Ambundos do século XVIII. Após mais de duzentos anos de contato com
os portugueses, as autoridades africanas se apropriaram da noção de realeza como uma
estratégia para criar e reforçar hierarquias sociais no interior de suas próprias sociedades
afastavam do seio protetor do seu grupo filial natal e, simultaneamente, unia fortemente os iniciados entre si,
como guerreiros num regimento de super-homens, tornados invulneráveis às armas de seus inimigos”. Idem,
ibidem, p. 160.
25
Haja vista os acordos políticos dos Mbangala com os portugueses, fundamental para a manutenção de ambos
os poderes políticos. Idem, ibidem, p. 271.
26
John Thornton, “Early Kongo-Portuguese Relations: A New Interpretation”. History in Africa, 8, 1981, 183-
204. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/3171515. Acesso em: 30/062016.
27
Linda Heywood, “Descoberta de memória, construção de histórias: o rei do Kongo e a rainha Njinga em
Angola e no Brasil”. In: Actas do II Encontro Internacional de História de Angola. Luanda: Arquivo Histórico
Nacional de Angola/ Ministério da Cultura, 2014, p. 559 e 560. Ver também: Selma Pantoja, Nzinga Mbandi:
mulher, guerra e escravidão. Brasília: Editora Thesaurus, 2000; Marina de Mello e Souza, Além do Visível.
Poder, catolicismo e comércio no Congo e Angola, séculos XVI e XVII. Tese de Livre Docência – Universidade
de São Paulo, 2012; Linda M. Heywood, Njinga of Angola. Africa’s warrior queen. Cambridge: Harvard
University Press, 2017.
40
como no caso da rainha Nzinga no início do XVII28. Todavia, é importante acrescentar uma
ressalva. O conceito de reino da Europa Moderna não é o modelo mais indicado para
enquadrar a organização política das instituições do Ndongo. Não é possível considerar a
figura do ngola como a do rei no sentido de uma forte centralização política, pelo contrário,
no Ndongo uma complexa rede de poderes submetidos ao ngola determinava o equilíbrio
social e político do reino. Estes outros poderes assentados em relações de parentesco titulares,
políticas e não pessoais, tornavam essa figura centralizadora muito mais frágil e dependente
que a noção de “rei” pressupõe. As autoridades sob a soberania do ngola eram conselheiros,
secretários, administradores dos assuntos externos e da guerra. Os chefes de linhagens tal
como os sobas e os ndembu exerciam poder sobre um grande número de dependentes29.
28
Roquinaldo Ferreira comenta sobre o empréstimo de elementos europeus pelos africanos em seu livro: “(...) os
africanos se apossavam de elementos da cultura europeia para reforçar hierarquias sociais entre eles”.
Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World. Angola and Brazil during the Era of the
Slave Trade. New York: Cambridge University Press, 2012, p. 12; Roquinaldo Ferreira, “’Ilhas crioulas’: o
significado plural da mestiçagem cultural na África Atlântica”, Revista de História, 155, 2006, p. 17-41.
29
Sobre as hierarquias sociais entre os Ambundos no Reino de Angola, ver: Flávia Maria de Carvalho, Sobas e
homens do rei: interiorização dos portugueses em Angola (séculos XVII e XVIII). Maceió: Edufal, 2015.
30
Elikia M’Bokolo, África negra. História e Civilizações até ao século XVIII. 2ª ed. Lisboa: Edições Colibri,
2012, p. 408 e 461.
41
31
“The slaving frontier zone thus washed inland in the 16th century and surged east like a demographic wave
bearing the sea-borne goods of the Europeans on its crest”. Joseph C. Miller, Way oh Death, p. 149. Um exemplo
da expansão da fronteira para o interior e suas consequências seriam as guerras travadas entre portugueses e,
principalmente, o ngola do Ndongo no século XVII. Às chamadas “guerras angolanas” sucedeu um período de
seca na região e na desagregação política do reino do Ndongo.
32
Ver: Mariana P. Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela and its hinterland, 2013;
Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, 2012; John Thornton, “As guerras civis no
Congo e o tráfico de escravos: a história e a demografia de 1718 a 1844 revisitadas”. Estudos Afro-Asiáticos, n.
32, 1997, p. 55-74; Linda Heywood, “Slavery and its Transformation in the Kingdom of Kongo: 1491-
1800”. The Journal of African History, v. 50, n. 1, 2009, p. 1-22. Um mapeamento das guerras nos sertões e sua
relação com o fornecimento de escravos é feito por Linda Heywood e John Thornton, Central Africans, Atlantic
Creoles, and the Foundation of the Americas, 1585-1660. New York: Cambridge University Press, 2007.
33
Jill Dias, “As primeiras penetrações portuguesas em África”. In: Luis Albuquerque (dir.). Portugal no Mundo.
Lisboa: Alfa, 1989, v. I, p. 281-298; Marina de Mello e Souza, Além do Visível. Poder, catolicismo e comércio
no Congo e Angola, séculos XVI e XVII. Tese de Livre Docência – Universidade de São Paulo, 2012.
34
Os relatos de Giovanni Antonio Cavazzi são fonte imprescindível para história dos reinos do Kongo e Angola
até o século XVII. Cf.: Giovanni Antonio Cavazzi de Montecúccolo. Descrição histórica dos três reinos do
Congo, Matamba e Angola. Tradução, notas e índices do Pe. Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de
Investigações do Ultramar, 1965. 2 v.
42
35
Roberta Marx Delson, Novas Vilas para o Brasil colônia. Planejamento espacial e social no século XVIII.
Brasília: Edições Alva, 1997, p. 140. Como lembra Silvia Lara, “os termos urbanismo e planejamento são
empregados aqui de forma descritiva, já que suas acepções contemporâneas são um tanto anacrônicas em relação
ao período estudado”. Silvia Lara, Silvia Hunold Lara, Fragmentos setecentistas, escravidão, cultura e poder na
América portuguesa, São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 34.
36
Ronald Raminelli, Viagens Ultramarinas: Monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda,
2008, p. 97.
37
William Joel Simon, Scientific expeditions in the Portuguese overseas territories (1783-1808). Lisboa,
Instituto de Investigação Científica Tropical, 1983, p. 9.
38
Ofício do Governador Antonio Alvares da Cunha para Diogo de Mendonça Corte Real. São Paulo de
Assunção de Luanda, 8 de Agosto de 1753. AHU_CU_001, Cx. 38, D. 82. Apud Catarina Madeira Santos. Um
governo "polido" para Angola, p. 101.
43
portuguesa é marcada por uma rede administrativa composta por fortalezas, presídios,
distritos e feiras. Na legenda, o engenheiro explicou que seu mapa compreendia
“o estado atual dos Reinos de Angola e Benguela, com todos os
estabelecimentos portugueses dispersos pela Costa e interior daqueles
sertões: notadas todas as povoações dos negros do país, que são vassalos,
aliados e inimigos do Domínio Português, até aos últimos confins
conhecidos que fornecem objetos à exportação nacional”39.
41
Sobre as constantes rebeliões dos sobas do Kisama, ver: Aurora da Fonseca Ferreira, A Kisama em Angola do
século XVI ao início do século XX: autonomia, ocupação e resistência. Luanda, República de Angola:
Kilombelombe, 2012; Flávia Maria de Carvalho, “Sobas rebeldes de Angola”. Impressões Rebeldes, UFF – Rio
de Janeiro, 2016. Disponível em: http://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/?temas=sobas-rebeldes-nos-
sertoes-do-ndongo-seculo-xvi. Acesso em: 20/09/2016.
42
José Carlos Venâncio, A economia de Luanda e hinterland no século XVIII. Um estudo de sociologia
histórica. Lisboa: Editorial Estampa, 1996, p. 35-40.
45
43
A biografia do militar Elias Alexandre da Silva Correa é praticamente desconhecida; sabe-se que ele era
proveniente da América portuguesa – “nascido americano português”. Após ter servido ao Marquês do Lavradio
(1749-1753), foi transferido para Santa Catarina, à época capitania anexa a do Rio de Janeiro. Em 1778, foi para
Lisboa para dar continuidade aos seus estudos. Seu propósito era construir uma carreira militar de êxito:
“adquirir no serviço real o acesso dos postos, estimação dos homens condecorados e bem-nascidos”. Com esta
finalidade, Elias Alexandre foi como voluntário para Angola. Segundo Ingrid de Oliveira, a principal motivação
do militar ao escrever a História de Angola era obter mercês: “Após ter servido ao Marquês do Lavradio (1749-
1753), foi transferido para Santa Catarina, à época capitania anexa a do Rio de Janeiro. Em 1778, foi para Lisboa
para dar continuidade aos seus estudos. Seu propósito era construir uma carreira militar de êxito: ‘adquirir no
serviço real o acesso dos postos, estimação dos homens condecorados e bem-nascidos’. Com esta finalidade,
segundo Magnus Pereira, Elias Alexandre foi como voluntário para Angola. Em agosto de 1782 foi provido no
posto de Ajudante do Regimento de Infantaria de São Paulo de Luanda, com a patente de capitão”. Ingrid Silva
de Oliveira, Textos militares e mercês numa Angola que se pretendia “reformada”: um estudo de caso dos
autores Elias Alexandre da Silva Correa e Paulo Martins Pinheiro de Lacerda. Dissertação (Mestrado em
História) – UFF, Rio de Janeiro, 2015, p. 210. Magnus Pereira, “Rede de mercês e carreira: o ‘desterro
d’Angola’ de um militar luso-brasileira (1782-1789)”. História: Questões & Debates, n. 45, 2006, p. 97-127.
44
Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola, v. I, p. 19-24.
45
Idem, p. 25.
46
Carlos Couto, Os capitães-mores em Angola no século XVIII. Subsídio para o estudo da sua actuação.
Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola, 1972, p.104 e 105.
46
47
Elias Alexandre da Silva Côrrea, História de Angola, v. I, p. 25.
48
Sobre este rio e região ao norte do Ndande: “Nesta barra do Ndande para o Norte, distância de três léguas,
desagua e faz barra o rio Lifune pequeno, inavegável, mas é da melhor água que há nesta Costa d'África do
domínio português. As origens deste rio, e do Ndande, dizem que vem dos estados dos dois Ndembu, o Dambi, e
o Quitoxe. A Leste do estado de Ambuila (Dembo poderoso, e vassalo de S. Majestade, mas mau e caviloso)
acima da barra deste Lifune, uma légua pela terra dentro, é a povoação do Libongo, vassalos de S. Majestade, e
donde sai o breu mineral”. Paulo Martins Pinheiro de Lacerda, “Notícias das regiões e povos de Quisama e do
Mussulo-1798. In: Annaes Marítimos e Coloniaes, série n.º 6 (4), 1846, p. 119-133. Transcrição de Arlindo
Correa. Disponível em: http://arlindo-correia.com/080109.html. Acesso em 30/04/2016.
49
“Terras nos arredores de Luanda, ao longo dos rios Kwanza, Dongo e Ndande, a região passou a ser chamada
de ‘celeiro da cidade’. Eram propriedades agrícolas que com o tempo foram associadas às formas tradicionais
africanas de cultivo e o arrendamento com investimentos de capitais maiores”. Selma Pantoja, “Donas de arimos:
um negócio feminino no abastecimento de gênero alimentício em Luanda nos séculos XVIII e XIX”. In: Selma
Pantoja (org.). Entre Áfricas e Brasis. Brasília: Paralelo 15, p. 24.
50
Ilídio do Amaral, O Rio Cuanza (Angola), da Barra a Kambambe: reconstituição de aspectos geográficos e
acontecimentos históricos dos séculos XVI e XVII. Lisboa: Ministério da Ciência e da tecnologia/ Instituto de
Investigação Científica Tropical, 2000, p. 14 e 15.
51
Joaquim José da Silva, em 1785, descreveu o rio Kwanza como “um dos mais importantes das possessões de
Portugal nesta Costa, assim pelas mercadorias que por ele se transportam comodamente para Calumbo,
Massangano, Muxima, e todos os outros presídios que estão nas suas margens, como pelas que se espalham por
quase todo o sertão de Angola e pelo comércio da Quissama e Libolo, férteis em ótimos escravos”. “Extrato da
47
viagem que fez ao sertão de Benguela no ano de 1785 o bacharel Joaquim José da Silva, enviado àquele reino
como naturalista e depois secretário do governo”. In: O Patriota, n. 1, 1813, p. 97.
52
Elias Alexandre da Silva Côrrea, História de Angola, v. I, p. 106.
53
Carta de FISC para o Cabido da Sé de Luanda. São Paulo de Assunção de Luanda, outubro de 1767. PADAB,
IHGB 126, DVD10, pasta 22, imagem DSC00047.
54
“O frei Belchior de Sousa nasceu em Mondim de Basto, nos fins do séc. XVI. Cursou gramática em Lamego.
Serviu como militar no Alentejo. Professou como carmelita descalço no Convento de Nossa Senhora dos
Remédios de Lisboa. Partiu para Angola em 1676, em companhia do governador e capitão general daquele reino,
Aires de Saldanha, onde construiu um templo e missionou em terras do Soba Bango Aquitamba [Mbangu kya
Tambwa]”. Verbete Belchior de Sousa, In: Barroso da Fonte (coord.). Dicionário dos mais ilustres
Trasmontanos e Alto Durienses. Guimarães: Editora Cidade Berço, 2001. Disponível em:
http://www.dodouropress.pt/index.asp?idedicao=66&idseccao=571&id=4137&action=noticia. Acesso em:
23/04/2016. Cadonerga cita que nas províncias da Ilamba e Lumbu entraram os “filhos da sem par Santa Tereza
de Jesus, Carmelitas descalços, e tendo sua residência em terras e senhorios do soba Bango a Kitamba, onde têm
feito muitos serviços a Deus no bem daquela gentilidade”. Antonio de Oliveira de Cadornega, História Geral
das Guerras Angolanas. Anotado e corrigido por José Matias Delgado. Lisboa: Agência-geral do Ultramar,
1972, v. I, p. 239. Escrita aproximadamente entre 1670 e 1681, a História Geral das Guerras Angolas, de
Cadornega, tem sido fonte imprescindível para a escrita da história de Angola. Cf.: G. Childs, “The Peoples of
Angola in the Seventeenth Century According to Cadornega”. The Journal of African History, 1(2), 1960, p.
271-279; B. Heintze, “Written sources, oral traditions and oral traditions as written sources: the steep and thorny
way to early Angolan History”. Paideuma, 33,1987, p. 263-287.
55
Consulta ao conselho Ultramarino, 27 de novembro de 1665. Monumenta Missionária Africana, v. 12, doc.
243, p. 592. Consulta ao conselho Ultramarino, 27 de novembro de 1665. Carta régia à Câmara de Luanda, 17 de
janeiro de 1662. Monumenta Missionária Africana, v. 12, doc. 171, p. 425. Apud Alexandre Almeida Marcussi.
48
os frades não parecem ter seguido os preceitos da vida religiosa. Em 1754, há notícias de que
um missionário carmelita descalço, frei Lourenço de Jesus Maria, vivia ali há 14 anos “nos
matos, sem vida de religioso, nem hábito”56.
O esforço em construir povoações civis no sertão, tal como Nova Oeiras, é outro
aspecto das políticas iluministas que incidiram sobre o território africano na segunda metade
do Setecentos.
O Marquês Pombal, em um parecer de 1760, analisou as condições da ocupação
estrangeira na Costa Ocidental da África buscando justificar a proibição do comércio de
armas no sertão. Para ele, “os estabelecimentos que os ingleses, holandeses e dinamarqueses
[tinham] desde Cabo Branco até Loango [eram] uns miseráveis fortes, sem forma de colônia
ou povoação e a maior parte deles sem soldados”. O objetivo destas nações era simplesmente
o tráfico de escravos e por isso comerciavam armas sem receios, pois não pretendiam formar
ali colônias, “que [fizessem] zelos aos negros seus vizinhos”57. Para o governador, o Reino de
Angola devia ser o oposto disso, assim como deviam ser outros os interesses dos portugueses
em sua ocupação. É neste exercício comparativo que Pombal disse: “Angola não é feitoria,
tomou logo desde o princípio outra forma. Temos ali uma cidade populosa e muitas colônias
até pela terra dentro em muita distância do mar”58.
Depois de todas as informações sobre a fragilidade do domínio português, a
leitura de Pombal sobre a ocupação do Reino de Angola só pode ser considerada exacerbada,
ainda que os avanços da colonização portuguesa fossem incomparáveis aos de outras nações
europeias, que restringiam seu domínio a zonas litorâneas. Contudo, Angola como uma
colônia de povoamento branco era mais uma pretensão dos governos de matriz pombalina que
uma realidade em 1760. Talvez para adequar a realidade às intenções, a partir da segunda
metade do Setecentos, a política metropolitana fomentou uma nova forma de ocupação do
sertão do Reino de Angola: as povoações civis. Segundo Catarina Madeira Santos, as
povoações somariam à rede administrativa formada pelos presídios, feitorias, distritos e feiras
e deveriam ser separadas dos sobados: “a cada nova povoação era atribuído, juiz, capitão-mor
Cativeiro e cura. Experiências religiosas da escravidão atlântica nos calundus de Luiza Pinta, séculos XVII-
XVIII. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, 2015, p. 237.
56
Parecer do governador Antonio Álvares da Cunha sobre as minas de ouro do rio Lombige. Belém, 29 de
outubro de 1754. AHU, Códice 574, fl. 4 e 4v.
57
Parecer do Conde de Oeiras. Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, 20 de Novembro de 1760. AHU, Cód. 555,
fl. 59 e 59v.
58
Idem, Ibidem.
49
59
Catarina Madeira Santos, Um governo polido para Angola, p. 150.
60
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, coronel e intendente geral das reais fábricas do
ferro. São Paulo de Assunção de Luanda, 25 de novembro de 1767. BNP, C. 8742, F. 6364, fl. 148.
61
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, coronel e intendente geral das reais fábricas do
ferro. São Paulo de Assunção de Luanda, sete de março de 1768. IEB/ USP, AL-083-027.
50
Fonte: Corte do “Mapa geográfico compreendendo a Costa Ocidental d’África entre 5 e 16 graus e 40 minutos de latitude
Sul, representando no continente o estado atual dos Reinos d’Angola e Benguela (...)” de Luis Candido Cordeiro Pinheiro
Furtado. Desenhado pelo mesmo Tenente Coronel Luís Candido Cordeiro Furtado; e copiado pelo discípulo do número
terceiro ano da Real Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho. Pedro José Botelho de Gouvea Cadete do Regimento de
Cavalaria de Meklemburg”. Lisboa, 1791. Biblioteca Municipal do Porto, BPMP_C-M&A-Pasta 24(17). Marcações nossas.
62
“Catálogo dos governadores do Reino de Angola. Com uma prévia notícia dos princípios de sua conquista e do
que nela obraram os governadores dignos de memória”. In: Coleção de notícias para a História das nações
ultramarinas que vivem nos domínios portugueses ou lhe são vizinhas. Academia Real das Ciências de Lisboa.
Lisboa: Tip. da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1826, p. 421. “Angola foi a colônia onde a tradição de
escrita de catálogos de governadores encontrou maior desenvolvimento. Nesta colônia, durante o século XVIII e
primeira metade do XIX, foram elaboradas diversas versões dessa modalidade historiográfica. Cada uma
retomava as versões anteriores, acrescentando-as com partes relativas aos governos subsequentes, relendo-os
segundo pontos de vista ora favoráveis à coroa e seus agentes, ora aos colonos luso-angolanos. Entre as diversas
versões dos catálogos, há uma atribuída ao coronel João Monteiro de Morais, que foi um dos principais líderes
52
interessante comparar os presídios com as “quipacas”* (do kimbundu, ekipaka) que eram
verdadeiras praças fortes africanas, trincheiras de pedras inacessíveis. No sertão de Angola,
conhecer e saber como valer-se de fortalezas rochosas, árvores resistentes, enfim o ambiente
natural era uma estratégia arquitetônica muito mais vantajosa que o adobe, a pedra e a cal.
O traçado vermelho desenhado no mapa mostra a rede administrativa e militar
formada pelos presídios no decorrer da ocupação portuguesa, ao longo do curso do rio
Kwanza, principalmente. Contígua a ela, está um tracejado amarelo que aponta outra rede de
finalidade comercial formada por algumas feiras que existiram neste território – Lukamba (a
grande feira de Ambaca), Beja e Dongo. Lembrando que a principal feira de escravos estava
além do Reino de Angola, fora da administração portuguesa, em Kasanje, controlada pelo
Mbangala. Esses traços nos permitem imaginar o triângulo de que falava o governador Sousa
Coutinho em suas memórias, que representaria a área que durante mais tempo estava sob
influência portuguesa. Para além deste interior próximo, a presença portuguesa adentrava os
sertões distantes de forma ainda mais fragilizada por meio de alianças com os chefados locais.
Este é o exemplo do importante título político ndembu Kakulu Kakahenda, cujo território se
localiza para além das linhas do suposto triângulo e que havia se tornado vassalo da Coroa
portuguesa em 1615 e, desde então, estabeleceu alianças e parcerias com os portugueses.
Os círculos azuis apontados no mapa são distritos tais como Golungo, Icolo,
Dande ou povoações, Libongo, Muxima junto ao presídio de mesmo nome, Lembo, Bengo
[próximo ao rio Mbengu], Nova Oeiras. Esses aglomerados mais ou menos povoados
abrigavam moradores de proveniência diversa e muitas vezes se relacionava a plantações,
como no caso dos arimos do Mbengu. Por fim, em verde estão representadas as missões
católicas, que era uma outra forma de influência colonial relevante, haja vista seu papel na
colonização dos sertões por meio da religião.
O mapa deixa evidente o quão descontínuo era esse triângulo, não só em suas
fronteiras, como também no seu interior em que as unidades políticas portuguesas conviveram
com unidades politicamente autônomas africanas, em que os chefes procuraram tanto quanto
possível manter sua independência por meio de alianças com a Coroa. No século XVIII, há
uma tentativa de implementar uma série de reformas nos sertões, tanto por causa da
agricultura fragilizada, da decadência moral do comércio sertanejo, quanto porque o gesto
colonial é de ocupar esse território de outra forma. Os nomes dos presídios e povoações são
das famílias tradicionais luso-angolanas da segunda metade do século XVIII. (...). Outra é de autoria de Manoel
Antônio Tavares, de origem portuguesa, que foi para Angola acompanhando o governador D. Francisco
Inocêncio de Souza Coutinho. Tavares constituiu família em Luanda e ali permaneceu por décadas”. Magnus
Pereira, “Rede de mercês e carreira: o ‘desterro d’Angola’ de um militar luso-brasileira (1782-1789)”, p. 99.
53
exemplos disso. Até então, eram topônimos que se relacionavam à conquista de grandes
sobados - Muxima, Cambambe, Golungo – uma marcação territorial da vitória das forças
coloniais. As povoações com nomes de vilas europeias queriam promover outro tipo de
colonização: incentivar as indústrias, o povoamento branco, a agricultura.
Aparentemente os portugueses construíram um vasto conhecimento do território
africano. Embora realmente essa profusão cartográfica evidencie um esforço de
interiorização, é preciso lembrar que um mapa é um sistema de símbolos; no caso da África, a
cartografia europeia estava imersa nos objetivos da conquista, elaborada para reafirmar a
ocupação portuguesa do território. A fixação geográfica das “povoações dos negros”- como o
engenheiro Pinheiro Furtado chama as banzas -, por exemplo, é equivocada se pensarmos esse
espaço do ponto de vista africano. A relação dos Ambundos com o seu território estava
vinculada a “complexos laços sobrenaturais [que] uniam cada grupo de parentesco às suas
terras e integravam o povo e o território numa única coletividade”63. A posse de um terreno
era coletiva e à medida que as colheitas esgotavam os solos das aldeias, novos campos eram
abertos em um sistema de cultivo itinerante. Soma-se a isso às formas de intermediar o mundo
dos vivos e o dos mortos entre os Ambundos. Seus chefes políticos portavam insígnias de
autoridade que permitiam que acessasse a forças espirituais, tal como o ngola que citamos há
pouco, para guiar seus súditos.
O movimento dos sobados seguindo diretrizes sobrenaturais e/ou em busca de
melhores terras para plantio não se alinhava ao traçado fixo da cartografia portuguesa, afinal,
eram duas concepções diferentes de ocupação territorial. Por isso, em 1797, o governador
Miguel Antonio de Melo indica falhas na carta de Pinheiro:
“Porquanto sendo as banzas ou aldeias dos negros fabricadas de casa de palha
e mudando-as elas quase todos os dias de uns para outros sítios, e nunca
pouco distante do deixado, todas as vezes que ou lhe apraz ou a isso são
levados por seus agoiros, e superstições, o que na carta se notasse hoje
povoado, amanhã se encontrará deserto, e cheio de mato habitado por
feras”64.
63
Assim por exemplo, os espíritos dos antepassados de uma linhagem só descansariam se os corpos dos mortos
fossem enterrados nas terras da linhagem. Joseph C. Miller, Poder político e parentesco, p. 239.
64
Carta de Miguel Antonio de Melo, governador de Angola, para Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de
Estado da Marinha e Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, três de Dezembro de 1797. AHU_CU_001,
Cx. 86, D. 66. Apud Catarina Madeira Santos, Um governo polido para Angola.
54
portuguesa de “filhos”65. Entretando, mesmo indiretamente, uma coisa levava a outra já que o
domínio sobre suas gentes inicialmente era pautado pelas grandes plantações. Com a
interiorização da presença portuguesa e a exploração local de recursos naturais, além da
agricultura perder muitos braços para o tráfico, a relação com a posse linhageira da terra
sofreu alterações importantes, como veremos no segundo capítulo66.
De toda forma, a expansão portuguesa dependia das alianças com as elites locais,
sendo como aliadas ou vassalas. Desde as primeiras iniciativas dos portugueses de contatar o
soberano do Kongo, em 1483, o que garantia a permanência, o deslocamento e o comércio
dos estrangeiros eram as relações regulares que conseguiram estabelecer com as chefias
locais. Nosso objetivo aqui não é discutir o processo histórico das relações de dominação
entre portugueses e africanos, mas observar que, sem a anuência dos estados locais, não teria
sido possível a permanência estrangeira que, por isso mesmo, sempre foi muito frágil e
restrita. Como lembra o historiador M’Bokolo em passagem citada anteriormente, apesar da
precariedade do domínio português, a manutenção de Angola se sustentou por causa do
tráfico de escravos, das mercadorias estrangeiras: essa foi a relação de interdependência
estabelecida com as elites africanas mais importante e duradora, já que o comércio de cativos
se consolidou ao longo do tempo como a economia fundante da região, principalmente devido
à demanda de mão de obra na América portuguesa.
Quais eram os habitantes que viviam nesse território? Como mostram as fontes
analisadas até aqui, o reino de Angola era povoado principalmente pelos centro-africanos.
Esses, principalmente, devido às migrações frequentes do tráfico poderiam ser de variada
origem, língua, costumes67.
65
Isso explicaria, de acordo com Thornton, o porquê de os estados da África não apresentarem, em geral, grande
extensão territorial, já que “o estado e seus cidadãos poderiam aumentar sua fortuna adquirindo escravos e não
precisariam comprar terras, a menos que estivessem com o espaço reduzido em seus países (o que não era o
caso)”. John Thornton, A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800), p. 162. Segundo o
autor, na África Central, “o Kongo era o maior dos estados, com 130 mil km2; outros estados, como Ndongo,
eram menores, mas ainda nessa faixa”. Idem.
66
Eva Sebestyen, “Legitimation through Landcharters in Ambundu Villages, Angola”. In: Thomas
Bearth, Wilhelm J.G. Möhlig, Beat Sottas, Edgar Suter (ed.). Perspektiven afrikanistischer Forschung. Beiträge
zur Linguistik, Ethnologie, Geschichte, Philosophie und Literatur. X. Afrikanistentag, 1993, p. 363-378. Para
Mariana Candido, uma das grandes transformações nas sociedades africanas provocadas pelo tráfico
transatlântico foi o aumento da demanda por cerais, que favoreceu o acúmulo de riquezas nas mãos dos
produtores. Mariana Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World, p. 84.
67
Daniel Domingues da Silva, Crossroads slave frontiers of Angola, c. 1780-1867. Tese (Doutorado) – Emory
University, 2011, p. 90-100.
55
68
As listagens deveriam conter: “1) número de habitantes; 2) ocupações; 3) nascimentos, casamentos e óbitos; 4)
volume de importações; 5) volume de exportações; 6) produção, consumo e exportação; 7) preços; 8) entrada e
saída de navios”. Mariana P. Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela and its
hinterland, 140-143. O objetivo deste levantamento de dados era conhecer o número e a qualidade dos
moradores, suas ocupações e os impostos arrecadados para a Real Fazenda. Integrantes de uma política
pombalina de povoamento e “civilização dos naturais” para todo o Império português, esses conjuntos
documentais também são encontrados, como era de se esperar, para a América portuguesa – Paraíba, Piauí, São
Paulo. Eles foram gestados segundo os princípios da Aritmética Política de William Petty, importante teórico do
mercantilismo inglês com quem Pombal estabeleceu contato. Sebastião José de Carvalho e Melo considera “a
necessidade de se realizar o ‘exame do número de habitantes do país de que se quer tratar’, o levantamento das
terras cultiváveis e da produção dessas terras, do quanto se pode taxá-las, do comércio (do que se vende e do que
se compra), dos rendimentos e salários” tendo em vista os lucros que o estado poderia obter. Antonio Cesar de
Almeida Santos, “O ‘mecanismo político’ pombalino e o povoamento da América portuguesa na segunda metade
do século XVIII”. Revista de História Regional, v. 15, n. 1, 2010, p. 103.
69
Antonio de Lencastre. “Mapa de todos os moradores...”. Luanda, 15 de Julho de 1778. AHU_CU_001_ Cx.
61, D. 81.
56
Neste levantamento, a maioria dos homens e mulheres era adulta (os homens
tinham entre 15 e 60 anos, as mulheres entre 14 e 40 anos) e majoritariamente (89,88%) filhos
de “pretos forros”, ou seja, da população africana. O termo “forro” quando relacionado a
“preto”, neste documento, é usado para designar quem não era escravo dos europeus;
acreditamos também, assim como Joseph Miller, que seja equivalente a ser livre em
contraposição a ser escravo - e não a ser liberto, uma vez que não foram computadas quantas
dessas pessoas eram egressas do cativeiro71. Contudo, não sabemos quantos destes eram livres
de nascimento, ou seja, não eram escravos dos portugueses; e também não sabemos se eram
escravos sob a jurisdição dos sobas vassalos porque essa informação não foi considerada.
Entre estas 474.117 pessoas, apenas 0,33% eram brancos, e o número de mulheres brancas é
praticamente a metade do dos homens. As camadas intermediárias eram formadas por
70
Antonio de Lencastre. “Mapa de todos os moradores...”. Luanda, 15 de Julho de 1778. AHU_CU_001_ Cx.
61, D. 81.
71
“Uma categoria que inclui quase toda a população africana, ‘livre’ no sentido de não serem diretamente
propriedade de um europeu da colônia portuguesa, mas não necessariamente de nascimento local (e, portanto,
‘livre’ em termos africanos). Esta categoria, 89,3% do total, refletiu os efeitos da importação de dependentes por
parte da população Africano da conquista”. Joseph Miller, Way of death, p. 160.
57
escravos (9,03%) e pardos (0,75%). Mais uma vez constatamos que a percentagem de brancos
era ínfima frente a grande maioria de “pretos forros”.
Os historiadores que analisaram a demografia do Reino de Angola, ao longo do
tempo, procuraram interpretar esses resultados no contexto do tráfico transatlântico. Entre
estas avaliações, John Thornton ressalta principalmente um grande contingente de mulheres
entre a população africana que era desproporcional ao número de homens do mesmo grupo. A
causa desse desequilíbrio seria a demanda do tráfico por homens adultos72. Patrick Manning
torna este argumento mais complexo diferenciando a dinâmica do tráfico do litoral da do
interior. Comparou os censos de finais do século XVIII com os dados da exportação de
cativos e apoiou-se nos estudos sobre os preços dos escravos. Ele concluiu que os homens
destinados ao tráfico transatlântico eram majoritariamente do interior, enquanto que as
mulheres eram sobretudo da região litorânea. Para compensar, o litoral retinha a maior parte
das mulheres vindas do interior. A questão central para Manning era demonstrar que as
populações do interior da África Centro-Ocidental sofreram um despovoamento demográfico
ao longo da história do tráfico de escravos73.
Não é nosso objetivo adentrar nas questões das dinâmicas demográficas, antes
apresentar, dentro das limitações da documentação, um quadro geral da população do Reino
de Angola. José Curto explica que, para a cidade de Luanda, foram realizados ao menos 30
censos entre 1773 e 1844, mas as contagens após 1798 apresentam dados mais fidedignos
porque as categorias demográficas dos censos passaram a ser mais uniformes74.
A realidade dos presídios do interior é ainda mais desigual quanto ao número de
brancos. No presídio de Cambambe, segundo um levantamento de 1798, havia 19 homens
brancos (sendo 15 maiores de 25 anos), 77 “pretos”, 42 mulatos. Em Muxima, havia apenas
72
John Thornton, “The Slave Trade in Eighteenth Century Angola”. Canadian Journal of African Studies, vol.
14, n. 3, 1980, pp. 417-427.
73
Patrick Manning, “The enslavement of Africans: a demographic model”. Canadian Journal of African Studies,
v. 15, 1981, p. 499-536. Ver também: José C. Curto, “Demografia histórica e efeitos do tráfico de escravos em
África: uma análise dos principais estudos quantitativos”. Revista Internacional de Estudos Africanos, v. 14-15,
1991, p. 268.
74
Os censos a partir de 1798 passaram a apresentar: “os números dos civis diziam respeito a pessoas solteiras,
casadas e viúvas, nascimentos, casamentos e óbitos, emigrantes e imigrantes, ordenados por cor, gênero e
condição social, enquanto os dados sobre pessoal administrativo diziam respeito a burocratas, tropas
governamentais e eclesiásticos, com referência, normalmente, ao seu estatuto marital. Por último, mas não
menos importante, todos estes censos continham caixas separadas com informação quantitativa sobre os
domicílios e a distribuição ocupacional de parte da população civil”. José Curto e Raymond Gervais, “A
dinâmica demográfica de Luanda no contexto do tráfico de escravos do Atlântico Sul, 1781-1844”. Topoi, 2002,
p. 92.
58
dois brancos, 65 mulatos e 468 “pretos”. Já no distrito de Dande não foi contabilizado
nenhum branco, no Encoge eram apenas quatro e em Pedras de Pungo Andongo, cinco75.
Havia, portanto, poucos brancos em Angola, principalmente nos sertões mais
distantes da Costa. O governador Sousa Coutinho enviava frequentemente soldados e
trabalhadores reinóis, ilhéus e brasílicos para a povoação de Nova Oeiras76. A mortalidade do
“clima maligno” de Angola fez parte de toda a história da fábrica de ferro desta povoação. Em
1773, o capitão José Francisco Pacheco, um dos responsáveis pela condução dos trabalhos na
fábrica de ferro, durante os três anos que trabalhou ali registrou a morte de 77 brancos: 43
oficias mecânicos (carpinteiros, ferreiros, pedreiros, cabouqueiros), 29 degredados e 5
mulheres77.
Algo importante que Curto comenta é que, até meados do século XIX, o estatuto
da cor era definido pela associação de critérios de nascimento e econômicos78. Joseph Miller
supõe que as mulheres brancas identificadas no censo populacional da cidade de Luanda de
1773 eram, na verdade, filhas de influentes famílias luso-africanas, cuja riqueza e prestígio
social “branqueavam suas aparências”, assim como no Brasil, onde o “dinheiro
embranquecia”79. A historiografia brasileira tem analisado a polissemia dos termos que
aparecem nas fontes setecentistas, que ora determinariam a cor da tez, ora a condição social.
Considera-se importante compreender como a terminologia se desenvolveu em situações
históricas específicas. Nesse sentido, Silvia Lara pondera que a associação entre cor e
condição social “(...) não caminhava de modo direto, mas transversal, passando por zonas em
que os dois aspectos se confundiam ou se afastavam, e em que critérios díspares de
identificação social estavam superpostos”80. Exercer cargo administrativo, militar ou
75
Mapas dos presídios do ano de 1798. AHU_CU_001, Cx. 89, Doc. 88. Estas informações, dos homens que
serviam no interior, foram consultadas em: Catarina Madeira Santos, Um governo polido para Angola, p. 119 e
ss.
76
Em 1767, o governador remeteu nove soldados e trabalhadores para Nova Oeiras, dois deles eram ilhéus
“muito bem-procedidos grandes lavradores”. Carta para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, São Paulo de
Assunção de Luanda, 27 de setembro de 1769. PADAB, IHGB 126, DVD10,22 DSC00044.
77
Certidão de Francisco José Pacheco, inspetor de obras da fábrica de Nova Oeiras. São Paulo de Assunção de
Luanda, 13 de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57, Doc. 28.
78
José Curto e Raymond Gervais, “A dinâmica demográfica de Luanda no contexto do tráfico de escravos do
Atlântico Sul, 1781-1844”, p. 95.
79
Joseph Miller, Way of death, p. 293.
80
Silvia Hunold Lara, Fragmentos setecentistas, escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 131. É importante observar como se davam essas associações entre cor e
nascimento e hierarquias sociais em outras localidades do império colonial português. Larissa Viana, por
exemplo, ao estudar as irmandades no Rio de Janeiro colonial discorreu sobre os alcances e os limites da ideia da
formação de uma “identidade parda” entre os confrades. Levando em consideração que identidades “são relativas
e mutáveis, produtos que são das negociações ou imposições sociais”, a autora alerta que no que tange aos
pardos “a referência não era apenas aos mestiços, mas também a formas de identificações mais sutis e próprias
da sociedade escravista, uma vez que o qualificativo pardo indicava o distanciamento da condição de africano”.
59
religioso, a cor da pele, o enriquecimento, a inserção política e/ou familiar entre outros
fatores, são categorias que poderiam se conjugar na determinação das hierarquias sociais e/ou
da cor.
Até aqui lidamos com dados dos mapas de população, censos organizados em
Lisboa e aplicados nas possessões ultramarinas que trazem designações gerais de cor, como
“preto”, “branco”, “pardo”, “mulato”. Há outros documentos, encomendados pelo governo de
Luanda e feito pelos oficiais régios do hinterland da cidade e dos presídios que trazem
informações mais ricas em detalhes sobre a qualidade dos moradores do Reino de Angola.
Trata-se das fontes dos presídios que quando se referem à população mestiça usam um maior
gama de termos “pardo”, “mulato”, “fusco”, “meio fusco” e, ainda, “cor honesta”. Assim, se
nos mapas de população há uma classificação de mais genérica, nas “notícias de presídios” do
interior dos sertões são variadas as designações e elas mudam de um local para outro. Esse
tipo de fonte traz listas nominativas dos moradores, cor, ocupação, cargo, patente militar dos
chefes de domicílio, posse de gados e escravos. Roberto Guedes considera que uma maior
variedade dos vocábulos de cor das “notícias” em relação aos “mapas” se deve a uma
tentativa das autoridades dos presídios de criar hierarquias locais, que qualificavam “a cor das
pessoas/famílias, bem como os status ou as posições sociais”, em uma sociedade marcada
pelo tráfico e a escravidão na África81.
Há uma diferença significativa, portanto, quando reduzimos a escala de análise e
estudamos a população dos presídios. Em uma relação dos moradores do presídio de
Massangano foram listados 87 moradores: 33 de “cor honesta”, 22 “fuscos”, 18 “pardos”, 5
“brancos”, 2 “meio fuscos”, 1 “pardo ou meio pardo”, 5 “pretos” e 1 “escuro”. Esse é um
exemplo da pluralidade de vocábulos usados para designar a população mestiça do sertão que
era quem ocupava cargos públicos, os súditos da Coroa. Ariane Carvalho observa que as
pessoas “fuscas” e de “cor honesta” possuíam importantes cargos e ocupações neste presídio.
Apenas “pretos”, “escuros”, e “meios fuscos” não eram proprietários de escravos82. Uma
hipótese é a de que, assim como na América portuguesa, as categorias intermediárias entre
Larissa Moreira Viana, O Idioma da Mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2007, p. 159.
81
Roberto Guedes, “Branco africano: notas de pesquisa sobre escravidão tráfico de cativos e qualidades de cor
no Reino de Angola (Ambaca e Novo Redondo, finais do século XVIII)”. In: Roberto Guedes (org.). Dinâmica
Imperial no Antigo Regime Português: escravidão, governos, fronteiras, poderes, legados. Séculos XVII-XIX.
Rio de Janeiro: Mauad X, 2011, p. 55.
82
Ariane Carvalho da Cruz, “Cor e hierarquia social no reino de Angola: os casos de Novo Redondo e
Massangano (finais do século XVIII)”. XIV Encontro Regional ANPUH-Rio de Janeiro, 2010. Disponível em:
http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276742727_ARQUIVO_ArtigoAnpuhAriane.pdf.
Acesso em: 27/05/2016.
60
brancos, aludindo à liberdade, e pretos, referindo a escravos, tenham surgido como forma de
afastamento do estigma da escravidão.
Retomando a intenção de esboçar um quadro geral da situação populacional de
Angola setecentista, a avaliação com base nos censos de fins do século XVIII (pouco mais de
um século depois da derrota do rei do Ndongo), ainda que não possamos atribuir-lhes rigor
numérico e estimativo pelas razões descritas anteriormente, torna evidente que o povoamento
branco do Reino de Angola era uma diretriz metropolitana com muitos empecilhos para ser
colocada em prática.
Em suas memórias, o governador Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho também
reiterou a “falta de gentes”. Ele dividiu os europeus enviados para aquele reino em três
classes: “negociantes ou caixeiros, que em pouco tempo passam a primeira qualidade ou
morrem; degredados corrompidos cheios de vícios e moléstias e ilhéus, que conduz o
governador”. Os ilhéus eram maltratados pela viagem e os que chegavam a Luanda, morriam
logo. O casamento entre estes e as “mulheres ordinárias” eram raros, “muitos poucos os
capazes de concorrer para o adiantamento da colônia”, mesmo os casais novos se mostravam
incapazes de sobreviver um ano no sertão, quando não “pereceriam de miséria” nas praias de
Luanda. Entre os condenados ao degredo, distinguiu os “limpos” dos “miseráveis e infectos
das cadeias”; os primeiros se interessavam por postos e ofícios, apesar de recusarem o
casamento, e os segundos eram os “corrompidos e desesperados” como as “mulheres
prostituídas”, que só serviam de escândalo à justiça, em más e excessivas tavernas”. Para
Sousa Coutinho, os dois séculos de um esforço de colonização com remessas de condenados
ao degredo estariam levando aquele reino à ruína83.
A partir da segunda metade do século XVII e durante todo o século XVIII, há um
grande fluxo de degredados para Angola. Uma parte significativa acompanhava os
governadores a cada três anos e era enviada para comporem as tropas coloniais. Em 1759,
apenas um ano depois da chegada do novo governador Antonio de Vasconcelos (1758-1764),
dos 250 soldados que seguiram com ele, apenas 142 sobreviveram entre degredados (102) e
ilhéus (40). Os oriundos de Lisboa seriam mais adequados para o reforço militar da colônia,
enquanto os ilhéus, mais aptos a se adaptarem ao clima, promoveriam o povoamento e
reformas da colônia. Contudo, esses planos não chegaram a se efetivar. A deserção era uma
realidade constante, contra o que as autoridades pouco podiam fazer. Os soldos das milícias
83
FISC, “Memórias do Reino de Angola e suas conquistas”, fl. 5 e ss
61
eram pagos com produtos comuns do comércio de escravos, as fazendas e a jeribita84, por
exemplo. Os soldados mal preparados para os confrontos militares, parcamente remunerados,
se inseriam nas redes comerciais, comprando mantimentos e escravos85. Em 1760, o Conde de
Oeiras determinou o envio 60 casais das Ilhas da Madeira para o Reino de Angola, em uma
nova tentativa de promover o estabelecimento de colônias pelos sertões próximos de Luanda.
Nossa contribuição é ressaltar como a Coroa usou o degredo para enviar para
Angola trabalhadores especializados, oficiais mecânicos e técnicos.
Além disso, no Setecentos também foram enviadas famílias ciganas para Angola,
em alguns casos mais de uma geração foi degredada. Em Portugal, desde as Ordenações
Manuelinas (1514-1521) foram promovidas políticas discriminatórias contra os ciganos: não
podiam ocupar cargos públicos, religiosos e receber honrarias. As medidas restritivas se
intensificaram levando a sua expulsão da metrópole em 1526, e às penas ao degredo para
aqueles que não cumprissem os prazos em que deveriam deixar o reino. Se em um primeiro
momento, seu destino era o Brasil, no século XVIII, como vimos, o porto de desembarque
passou a ser Luanda. O Senado da Câmara de Luanda, em 1720, publicou uma série de
posturas proibindo que ciganos usassem seus “mantos”, seus xales pretos e demais trajes que
eram considerados indecorosos86.
84
Aguardente. Sobre o amplo emprego da jeribita como moeda de troca no tráfico de escravos, ver: José C.
Curto, Alcohol and Slaves: the Luso-Brazilian Alcohol Commerce at Mpinda, Luanda, and Benguela during the
Atlantic Slave Trade c. 1480-1830 and its impact on the societies of West Central Africa. Tese (Doutorado) –
Universidade da Califórnia, Los Angeles, 1996. Sobre o comércio de tecidos na África Centro-Ocidental, ver:
Telma Gonçalves Santos, Comércio de tecidos europeus e asiáticos na África Centro-Ocidental: fraudes e
contrabando no terceiro quartel do século XVIII. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Lisboa, 2014.
85
Roquinaldo Ferreira, Transforming Atlantic Slaving. Trade, Warfare and Territorial Control in Angola, 1650-
1800. Tese (Doutorado) - University of California, Los Angeles, 2003, p. 145-153. FISC, “Memórias do Reino
de Angola e suas conquistas”, fl. 5 e ss. Sobre o povoamento branco no Reino de Angola, o Conde de Oeiras
disse: “Se tem quase extinto naquele reino os brancos que a ele foram transportados; morrendo uns de fome e
miséria na cidade e suas vizinhanças, acabando outros nos sertões fugitivos e vagos; e vindo assim a prevalecer
os negros de tal sorte que ainda poucos brancos que existem olham para as mulheres da Europa com estranheza,
como extraordinárias, preferindo por quase geral abuso o consórcio das negras”. Parecer que o Conde de Oeiras
apresentou a Sua Majestade sobre o que ainda falta para se restituir a Agricultura, Navegação, e o Comércio de
Angola contra os monopólios vexações e desordens que fizeram os objetos das leis de 11 e 25 de janeiro de
1758. Lisboa, 20 de novembro de 1760. AHU, Cód. 555, fl. 56-57. Nesse período, Angola e Moçambique se
tornaram então os principais destinos dos sentenciados ao degredo, temporário ou perpétuo. Um elevado número
de infrações recebia essa punição: crimes de lesa-majestade (contra o Estado), falsificação de moedas e crimes
contra o cidadão – roubo ou invasão de domicílio, por exemplo. Ademais, esta pena também era largamente
utilizada pelo Tribunal do Santo Ofício, sobretudo nas sentenças contra os judaizantes. A ameaça de ser banido
para os territórios portugueses na África foi uma arma importante utilizada pela administração portuguesa.
Angola em especial era vista como a “própria residência da morte” pelo seu clima maligno, doenças
desconhecidas, nativos hostis”. Sobre a pena do degredo, ver: Timothy J. Coates, Degredados e órfãs:
colonização dirigida pela Coroa no Império português, 1550-1755. Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998; Tânia Macedo, Angola e Brasil: estudos comparados.
São Paulo: Arte & Ciência, 2002, p. 22 e ss.
86
Selma Pantoja, “Inquisição, degredo e mestiçagem em Angola no século XVIII”. Revista Lusófona De Ciência
Das Religiões, n. 5 e 6, 2004, p. 120.
62
87
Beatrix Heintze, “A lusofonia no interior da África Central na era pré-colonial. Um contributo para a sua
história e compreensão na atualidade”. Cadernos de Estudos Africanos, n. 7 e 8, 2005, p. 12.
88
Catarina Madeira Santos, “De ‘antigos conquistadores’ a ‘angolenses’”. Cultura, v. 24, 2007, p.5.
89
Suely Creusa Cordeiro de Almeida. “O feminino ao leste do Atlântico. Vendeiras, regateiras, peixeiras e
quitandeiras: mulheres e trabalho nas ruas de Lisboa e Luanda (séculos XVI-XVIII)”. In: Roberto Guedes (org.).
África. Brasileiros e portugueses, século XVI-XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013, p. 207-227; Roquinaldo
Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, cap.4.
90
Joseph Miller, Way of death, p. 271-272; Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World,
p. 32-34.
63
91
Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola, v. I, p. 35.
92
Carta de FISC a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de estado da marinha e ultramar,
informando sobre o estabelecimento da real fábrica do ferro. São Paulo de Assunção de Luanda. 29 de dezembro
de 1766. PADAB, IHGB 126, DVD10,20 DSC00396. Antonio Duarte de Siqueira havia se destacado no
comando de expedições militares contra os potentados “Ambuíla, Muçosos, Maungos”. “Catálogo dos
governadores do Reino de Angola”, p.417.
93
Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 59; Joseph Miller, Way of death, p.
189-190, 271-272. Em 1798, o governador do Reino de Angola definiu quissongos como os que se chamam “os
Benguelas na sua linguagem pretos que isentos do cativeiro servem homens brancos e regem outros negros
escravos”. Carta do governador Miguel Antonio de Melo para Rodrigo de Sousa Coutinho. São Paulo de
Assunção de Luanda, 30 de abril de 1798. In: Arquivos de Angola, v. I, n. 6, 1936, p. 325.
94
Carta do governador Miguel Antonio de Melo para Rodrigo de Sousa Coutinho. São Paulo de Assunção de
Luanda, 30 de abril de 1798. In: Arquivos de Angola, v. I, n. 6, mar. /1936, p. 325.
64
Também eram conhecidos como funadores, do verbo funar que nas línguas locais
significava “negociar comprando e vendendo”95. Essas personagens compartilhavam padrões
culturais e sociais com suas vítimas e por isso o “sucesso de seu negócio” dependia da
manipulação destes símbolos para se distinguirem dos escravizados. Um destes sinais de
diferenciação era o uso de calçados, neste caso, os comerciantes passavam a ser chamados
“negros calçados” e eram considerados brancos. Muitos se valiam do novo status social para
se livrarem das obrigações que deviam aos portugueses enquanto seus vassalos, negando-se,
por exemplo, a prestarem serviço como carregadores das mercadorias dos feirantes96. Essa
personagem é um exemplo de como a cor se relacionava com outras condicionantes que não
só a tonalidade da pele e, por outro lado, como os africanos e seus descendentes estavam em
constante risco de escravização.
95
Carta do governador Miguel Antonio de Melo para Rodrigo de Sousa Coutinho. São Paulo de Assunção de
Luanda, 30 de abril de 1798. In: Arquivos de Angola, v. I, n. 6, mar. /1936, p. 325.
96
Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 61-63.
97
Jan Vansina, How societies are born: governance in West Central Africa before 1600. Charlottesville:
University of Virginia Press, 2004, p. 200 e ss.
98
Linda Heywood, John Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas,
1585-1660, p. 73
99
Aida Freudenthal, Selma Pantoja (ed.). Livro dos Baculamentos: que os sobas deste Reino de Angola pagam a
Sua Majestade (1630). Luanda: Ministério da Cultura e Arquivo Nacional de Angola, 2013, p. 1-23.
65
100
Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 251. A autora comenta a questão da terra em diferentes
momentos, ver principalmente: p. 250-273. Ver também: Ilídio do Amaral. O consulado de Paulo Dias de
Novais: Angola no último quartel do século XVI e primeiro do século XVII. Lisboa: Ministério da Ciência e da
Tecnologia/ Instituto de Investigação Científica Tropical, 2000.
101
Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 255.
102
Alberto da Costa e Silva, A manilha e o libambo. A África e a escravidão, de 1500 a 1700 (2 ª ed.). Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 417 e ss. Catarina Madeira Santos, Um governo “polido” para Angola. “Os
possuidores dos sobados cobravam aos chefes africanos tributos, quer sob a forma de escravos, géneros ou
serviços. Do ponto de vista africano, a aceitação desta subordinação parece derivar de uma instituição
assimilável no reino de Ngola, onde os sobas tinham na corte um “grande” que era seu protetor ou ‘amo’. O
papel dos conquistadores, estabelecidos junto de Dias de Novais terá sido inicialmente associado a esse protetor
Ambundo residente na corte do Ngola”, Idem, p. 116.
66
patente que essa seria uma das justificativas dos próprios jesuítas para exercer seu domínio
sobre os sobados e arrecadarem tributos103. É muito importante levar em conta que,
provavelmente, não havia uma referência africana para a existência dos amos, que foi uma
instituição criada pelos agentes da Coroa, os jesuítas e os particulares. Isso porque essa forma
de legitimar um mecanismo de exploração e domínio pautando-se em características internas
das sociedades Ambundas se repetiu ao longo do tempo, como veremos.
Após a morte de Paulo Dias de Novais, que não deixou herdeiros, a Coroa enviou
para Angola o licenciado Domingos de Abreu Brito que foi responsável por avaliar a situação
econômica da conquista. Abreu Brito determinou que a ocupação do território e sua
administração deveriam ocorrer por meio da criação de um governo-geral, o que aconteceu
em 1591. Uma das razões desta mudança foi o fato de a Companhia de Jesus e os conquistares
particulares estarem enriquecendo e aumentando seu prestígio político, o que não promovia
maiores arrecadações para a Fazenda Real e era contrário à centralidade da figura do rei como
figura ordenadora em uma sociedade corporativa. Flávia Carvalho considera que “a extinção
do sistema de amos e a implementação da cerimônia de vassalagem representou uma
estatização, conduzida pela Coroa portuguesa, do poder [dos amos] exercido sobre os sobas”.
A necessidade de um maior controle fiscal sobre as transações no interior também foi um
importante fator na instituição da vassalagem dos sobas diretamente ao rei português104.
Os tratados de vassalagem têm sido documentos revisitados constantemente pela
historiografia. Beatrix Heintze foi pioneira no estudo exaustivo deste fenômeno e dos tipos
documentais que gerou. Para ela, termo “vassalo” foi introduzido pelos portugueses no
ultramar como um instrumento de poder, por meio do qual os chefes de linhagens passaram “a
ser vassalos do rei de Portugal num procedimento legal, documentado e reconhecido,
realizado na presença de testemunhas”, configurando um “tipo de dependência interestadual”.
Ao vencido cabia prometer cumprir todas as condições impostas, prestar juramento de
fidelidade e obediência. Em contrapartida, aos vencedores cabia a “promessa de proteção e a
investidura”. A autora ainda diferencia a “vassalagem voluntária”, quando os chefados por
razões políticas ou econômicas procuravam por iniciativa própria aliar-se aos portugueses, da
vassalagem imposta pela força das armas. Pontua, porém, que o primeiro caso era menos
frequente. A regra foi a condição de vassalo ser imposta às lideranças locais, de modo que os
103
Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 262. Os jesuítas “remetiam para a existência de uma
organização africana correspondente, afirmando que a instituição dos amos tinha sido copiada dos intermediários
tradicionais dos Mbundu: uma derivação muito citada até aos tempos mais recentes, que – mesmo que esses
intermediários tivessem existido de uma forma institucionalizada – se tornou insustentável face aos nossos
conhecimentos atuais”.
104
Flávia Maria de Carvalho, Sobas e homens do rei, p. 81 e 82.
67
portugueses ditavam os códigos contratuais105. No topo da lista dos deveres estava o serviço
militar, sem ele a manutenção da presença portuguesa em Angola seria insustentável. Além
disso, o vassalo não poderia “fazer guerras nem conquista alguma, nem consentir que outros a
façam a soba vassalo algum que for da Coroa, antes a estes deve amparar até ordem do
governo”106.
O direito de passagem gratuita e livre também era obrigatório, o soba avassalado
deveria “dar livre e desembargada entrada em suas terras e senhorios a todos os portugueses
ou seus pumbeiros”107, além dos missionários. Outro item se referia à entrega de todos os
escravos fugidos dos portugueses que buscassem abrigo em seus territórios. Isso mostrava o
forte caráter mercantil desta relação de dependência, marcada pelos interesses do tráfico de
escravos.
Em resumo, o soba selava sua vassalagem perante um representante do rei, o
governador, ou o mais frequente, o capitão-mor do presídio a que passava a ser “lotado”, ou
se encontrava “anexo”, no sentido de subordinado. O contrato era, então, assinado na fortaleza
mais próxima. Havia um procedimento simbólico que marcava a conclusão do processo, uma
celebração que incorporava rituais da entronização de um novo governante da cultura dos
Ambundos – o undamento.
Na cerimônia perpetuada pelos portugueses, undar o novo vassalo significava
“deita[r] farinha (ou barro branco) sobre os ombros do chefe africano que a esfregava pelo
peito e pelos braços. Os sucessores da linhagem do soba avassalado deveriam se submeter à
investidura, assim que escolhidos pelos makota, caso contrário seriam considerados rebeldes
e, assim, passíveis de punição108. Assim, de parte da cerimônia, o undamento passou a ser
sinônimo da própria vassalagem.
Como os sobas viam as relações de vassalagem? Para Flávia Carvalho, os sobas,
na medida do que lhes foi possível, utilizaram o avassalamento “como estratégia de defesa e
de alianças militares contra inimigos comuns”109. A sociedade de Antigo Regime estava
pautada no conceito de desigualdade social, assim como as próprias hierarquias Ambundas
não se assentavam em um conceito de igualdade social. Dessa forma, a submissão ao rei de
105
Beatrix Heintze. Angola nos séculos XVI e XVII, p. 395 e ss.
106
Auto de vassalagem de Dona Isabel, regente de Ambuíla. São Paulo de Assunção de Luanda, primeiro de
julho de 1664. Monumenta Missionária Africana (CD) - SI - V12_d203.
107
Beatrix Heintze. Angola nos séculos XVI e XVII, p. 398.
108
Idem, Ibidem.
109
Flávia Maria de Carvalho, Sobas e homens do rei, p. 23.
68
Portugal ainda que pressupondo uma reciprocidade assimétrica permitia alguma margem de
ação porque estava pautada na ideia de interdependência110.
Catarina Madeira Santos considera que os tratados mantiveram razoavelmente as
mesmas fórmulas de escrita desde o século XVII até a década de 1920 e “esta continuidade
textual e institucional exigiu um exercício intenso da cultura da vassalidade e contribuiu de
forma decisiva para uma vulgarização de todo o vocabulário jurídico-político de raiz feudo-
vassálica”111. Contudo, no século XVIII, estes autos se tornam mais menos frequentes, sendo
retomados com mais intensidade na segunda metade do século, o que por si só já é uma
mudança significativa112. De acordo com Madeira Santos, há que se considerar que, na
segunda metade do Setecentos, com as novas ordenações estabelecidas pelo conde de Oeiras e
postas em prática principalmente por Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, no Reino de
Angola, os tratados de vassalagem passaram “de instrumentos jurídicos propiciadores da paz,
a instrumentos de civilização”113.
Outro aspecto desta mudança estava na necessidade de controlar os deslocamentos
dos sobados. A pretensão de sedentarizar as populações africanas se relacionava às guerras de
conquista. Na segunda metade do século XVIII, os tratados passaram a determinar que, após
derrota e o avassalamento, os sobas voltassem às suas terras - o que ligava os sobados à
jurisdição de um presídio, reforçando a política de povoamento e territorialização. Essa era
uma medida com estratégias delineadas: a manutenção da paz e a ocupação do território
favoreciam o tráfico de escravos e afugentavam as investidas de outras nações europeias no
território114. Flávia Carvalho entende a política de interiorização dos portugueses nos sertões
a partir de outra perspectiva; atenta às determinações locais, a autora considera que a
penetração só foi possível por meio das alianças com sobas, pois a cronologia dos autos de
vassalagem seria representativa do avanço da ocupação colonial115.
110
Ariane Cruz estudando as cartas patentes conferidas aos sobas e também a outros africanos e luso-africanos
mostra uma outra forma de incluir essas pessoas na administração portuguesa, ressaltando que não somente a
violência pautou a relação com o poder colonial. Existiram “negociações, apropriações, reconhecimento e
legitimação”. Ariane Carvalho Cruz, Militares e militarização no Reino de Angola: patentes, guerra, comércio e
vassalagem (segunda metade do século XVIII). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, 2014, p. 83.
111
Catarina Madeira Santos, “’Escrever o poder’. Os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre os
africanos: o caso dos Ndembu em Angola (séculos XVII-XX)”. International symposium Angola on the Move:
Transport Routes, Communication, and History, Berlin, 24-26, 2003, p. 3.
112
Flávia Maria de Carvalho, Sobas e homens do rei, 2015 e Beatrix Heintze. Angola nos séculos XVI e XVII,
2007.
113
Catarina Madeira Santos, Um governo "polido" para Angola, p. 128.
114
Idem, p. 123 e 136.
115
Flávia Maria de Carvalho, Sobas e homens do rei, 23.
69
116
Carlos Couto, Os capitães-mores em Angola no século XVIII. Subsídio para o estudo da sua actuação.
Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola, 1972, p. 245-252; Catarina M. Santos, Um governo
“polido” para Angola, p. 123, nota 314 e p. 129.
117
Auto de vassalagem ao rei de Portugal de Dona Isabel, regente de Ambuíla. São Paulo de Assunção de
Luanda, primeiro de julho de 1664. Monumenta Missionária Africana (CD) - SI - V12_d203.
118
Aida Freudenthal, Selma Pantoja (ed.). Livro dos Baculamentos, p. 15-23. Ver também: Aida Freudenthal,
“Sobas, conquistadores e ‘peças d’Índias’, 1619-1630”. In: Selma Pantoja, Estevam C. Thompson (org.). Em
torno de Angola: narrativas, identidades e as conexões atlânticas. São Paulo: Intermeios, 2014, p.69-87.
119
“Auto que mandou fazer o ilustríssimo senhor governador Luís Mendes de Vasconcelos do tributo e
baculamento que se obriga a dar a cada um ano para a fazenda de Sua Majestade (...)”. Presídio de Nossa
Senhora da Assunção [Muxima], 29 de julho de 1619. Livro dos Baculamentos, p. 87.
70
século, o soba foi descrito por Cadornega como o “cabeça” (nkanda) de outros sobas, “que
chamam do Ganga”. Kambambe conseguiu manter seu poderio, pois os governava com
grande prestígio, com “insígnia de bastão”120. A quantia e qualidade dos tributos são
indicativos do poder político e econômico dos sobas, Kambambe devia “10 peças da Índia”
(homem adulto saudável, “os que valem mais que os outros”)121, uma das maiores coletas
registrada entre os contribuintes de Museke. É claro que não chegava perto da quantia de 100
peças que Ngola Hari, o soberano do Ndongo, se obrigava entregar quando se tornou vassalo
da Coroa, em 1626122. Não consta no auto de vassalagem do ngola qualquer referência ao
envio sistemático de seus súditos para trabalhar para os portugueses.
Outras chefias menores pagavam apenas alguns sacos de sorgo, como o soba
Kakombe ka Katwa, da Ilamba123. O documento que determina as obrigações desse líder é um
pouco diferente do anterior. Neste caso o “capitão e recebedor”, Bento Rebelo, foi até a banza
de outro soba, Kyambata, provavelmente já avassalado, e chamou Kakombe, que atendendo
diligentemente o encontrou, e ali foi selada a vassalagem. O capitão ainda anotou que “o soba
era muito pobre e pequeno e que não podia dar mais coisa alguma”. Neste caso o intérprete
foi Diogo Dias.
As editoras do documento mostram que houve resistência à execução destes
tributos e que o controle das cobranças era muitas vezes precário. Citam, por exemplo, a fuga
de muitos sobas para junto de governantes mais poderosos ou para longe dos caminhos
conhecidos pelos portugueses, para a mata; nestes casos, os cobradores registravam “não se
encontra este soba”. Havia sobas como Kitexi que no undamento se comprometeu com
apenas uma “peça d’Índia” por “lhe terem dado guerra e estar a sua terra destruída e a gente
dele fugida para Matamba e outras partes”124. Em outros casos, o soba já não estava sob o
120
Antonio de Oliveira Cadornega, História das Guerras Angolanas (1680), v. III, p. 242. Kambambe não fazia
parte dos sobas do presídio de mesmo nome que serviam nas fábricas de ferros, no século XVIII. Devido à sua
importância, é de se imaginar que se ainda existisse no avançar do Setecentos, as autoridades coloniais teriam
solicitado o auxílio de seus dependentes, esse chefado é um exemplo da desestruturação política que se seguiu à
conquista e às cobranças de tributos.
121
Nessa época, a grande parte dos escravos tinha como destino as plantações de açúcar no Brasil. Até a
ocupação holandesa (1630-1654), os preços variavam de 9 a 20 mil réis. Joseph Miller, “Slave Prices in the
Portuguese South Atlantic, 1600-1830”. In: Paul Lovejoy (ed.), Africans in Bondage: Studies in Slavery and the
Slave Trade. Madison, University of Wisconsin: 1986, p. 48. O preço das “peças da Índia” variou de 22 mil réis,
em 1696, para 44 mil réis em1701 (levando em conta a descoberta do ouro em Minas Gerais, em 1695).
Roquinaldo Ferreira, Tranforming Atlantic Slaving, 2003.
122
Aida Freudenthal, Selma Pantoja (ed.). Livro dos Baculamentos, p. 186-190.
123
Termo de baculamento do soba Kakombe ka Katwa. Banza de Kyambata, 11 de junho de 1621. Idem, p. 114.
124
Idem, p. 193.
71
poderio português, estava em rebelião, por isso o cobrador indicava “está alevantado e não
paga”125.
Para os nossos objetivos, não é necessário trazer outros exemplos do Livro dos
Baculamentos; por hora basta dizer que em nenhum documento é citada qualquer obrigação
de prestação de serviço para funcionários régios ou moradores dos presídios, não importando
se os sobas eram poderosos, “pequenos” ou o próprio Ngola. Portanto, o trabalho dos
dependentes dos sobados não consta nos undamentos nem nos baculamentos que deviam aos
representantes da Coroa. Outro ponto a ser destacado é que os capitães-mores e os
“recebedores” dos tributos assumiam posição chave tanto no momento de confecção e
assinatura dos autos, quanto na recolha das mercadorias.
Os autos de vassalagem de Dona Isabel, regente de Ambuíla (na região dos
Ndembu), e do Duque do Wandu (ao norte dos Ndembu) não trazem especificações sobre
relações de trabalho126. No primeiro, de 1664, as obrigações de Dona Isabel eram basicamente
não permitir que emissários do Kongo, Nzinga ou outro Ndembu passassem por suas terras
(provavelmente, para comerciar ou estabelecer relações diplomáticas). O segundo, de 1666,
documento é mais descritivo, o Duque de Wandu prometia entregar as minas que existiam nas
suas terras, permitir a passagem por seu território, dar socorro “com sua pessoa e armas” aos
presídios, fortalezas, “acampar seus exércitos sendo necessário”. Em contrapartida, o rei de
Portugal garantia proteção militar e tratar o duque com justiça, “a ele e a todos os seus
vassalos”. Além de reconhecer os “foros, privilégios, honras e estatutos” do vassalo.
O interessante no segundo auto é que era condição para a vassalagem não só a
conversão à fé católica, mas também que o duque procurasse “um capitão [capitão-mor] para
o que for do serviço d’El rei”. Mais uma vez, o capitão-mor é uma figura central. Mesmo em
relação ao potentado de Wandu, que tinha uma lista maior de obrigações, não há nenhuma
menção de que deveriam prestar auxílio com o trabalho especificamente.
125
Idem, p. 20. Estes tributos foram extintos em janeiro de 1650, por Salvador Correia de Sá por considerar que
os tributos abusivos seriam uma das causas da rebelião dos sobas contra os portugueses quando da chegada dos
holandeses. Beatrix Heintze, “Luso-African Feudalism in Angola?” The Vassal Treaties of the 16th to the 18th
Century”. Separata da Revista Portuguesa de História, v. 18, 1980, p. 123. Contudo, há referência a eles em
documentos do início do século XVIII, o que mostra que havia distâncias entre as determinações da Corte e a
prática da administração no sertão de Angola. Carta [provedor da Fazenda Real de Angola], Rodrigo da Costa
Almeida, ao rei [D. Pedro II] remetendo uma relação do dinheiro enviado ao provedor-mor da Baía, Francisco
Lamberto, desde 1702, por conta da moeda de cobre, dos baculamentos, dos direitos dos oficiais e da piparia
que vieram com o governador Bernardino de Távora, bem como dos quintos e direitos das aguardentes. São
Paulo de Assunção de Luanda, dois de janeiro de 1704. AHU_CU_001, Cx. 19, D. 1977.
126
Auto de vassalagem de Dona Isabel, regente de Ambuíla. São Paulo de Assunção de Luanda, primeiro de
julho de 1764. Monumenta Missionária Africana (CD) - SI - V12_d203. Auto de vassalagem do duque de
Wandu, s/l, 11 de janeiro de 1666. Monumenta Missionária Africana (CD) - SI - V13_d001.
72
127
Carta de El-Rei de Portugal ao governador geral de Angola. Lisboa, 17 de agosto de 1654. Monumenta
Missionária Africana (CD) -SI-V11_d132. Esse documento é analisado por José Curto em: José C. Curto, “A
restituição de 10.000 súditos Ndongo ‘roubados’ na Angola de meados do século XVII: uma análise preliminar”.
In: Isabel Castro Henriques (ed.). Escravatura e transformações culturais. África - Brasil - Caraíbas. Lisboa:
Editora Vulgata, 2002, p. 185-208. Sobre o serviço dos carregadores, Alfredo Margarido destaca que o primeiro
regimento dos governadores, de 1666, já proibia que seu trabalho fosse gratuito. Alfredo Margarido, “Les
Porteurs : forme de domination et agents de changement en Angola (XVIIe-XIXe siècles)”. In: Revue française
d'histoire d'outre-mer, tome 65, n°240, 3e trimestre 1978. p. 377-400.
128
Carta que Sua Excelência [FISC] escreveu aos capitães-mores de todos os presídios e distritos sobre o
undamento dos sobas, ilamba e mais potentados. São Paulo de Assunção, três de outubro de 1770.
AHU_CU_001, Cx. 55, D. 6 e 7.
73
que mostra que, a rigor, esses tratados não eram revisitados pelo capitães-mores. No Icolo,
por exemplo, o regente anotou que “revendo o livro de registro, nele não achou termos, nem
atos de undamentos de sobas”.
O regente do distrito de Kwanza respondeu que “todo o serviço que fazem os
sobas dele [do distrito] é pago à risca e não são undados como são os dos presídios, nem
também consta por donde dessem princípio a obrigações particulares”. A malha
administrativa do hinterland de Luanda contava com as fortalezas, os presídios onde os sobas
juravam sua fidelidade, e com vários distritos. O regente sugere que havia sobas que não eram
undados na área sob influência portuguesa e que estabeleceram outras alianças com os
agentes coloniais, dividindo os sobas entre: os dos distritos e os dos presídios. Pode ser uma
imprecisão do regente ou um indício de que as relações com os sobados eram mais complexas
do que as inscritas nos escritos da vassalagem.
Se seguirmos a cronologia da conquista e da construção das fortalezas,
conseguimos acompanhar como a exigência das obrigações se alterou ao longo do tempo. A
ordem seria: Massangano (1583), Muxima (1599), Cambambe (1604), Ambaca (1614), e
Pedras de Pungo Andongo (1671). A maioria dos sobas, ilamba, imbari é de Massangano
(24), para onze deles o capitão-mor disse que estavam obrigados a “dar filhos para todo o
serviço real que for ordenado e serve a esta vila”. Dois sobas deveriam dar azeite “para
alumiar o corpo da guarda e os presos”. Quatro ilamba deveriam dar lenha, carvão, e servir
particularmente ao capitão-mor: “para o serviço particular dos capitães-mores”. Os outros
deveriam servir “a todo serviço real que lhe fosse ordenado” e “hoje serve com seus filhos na
Real Fábrica da Nova Oeiras”. O capitão-mor especificou que nos autos a cláusula era a
designação generalizada do “serviço real”, porém, naquele momento porque a fábrica
demandava, os chefados deveriam servir ali.
Um caso emblemático é de Domingos Acaulo, sobre quem o funcionário escreveu
que seu nome “não consta nos livros, porém tem obrigação de dar filhos para o serviço real”.
O capitão-mor pode ter se referido a uma prática regida pelo costume, era sabido que os sobas
davam “filhos para o serviço real”, mesmo que não constasse nos livros.
Para Muxima, Cambambe, Ambaca e Massangano não há quaisquer
especificações quanto a fornecer gente para o trabalho. Como nos autos de vassalagem
anteriores, destaca-se a fidelidade e obediência ao rei e ao seu representante mais imediato, o
capitão-mor.
O distrito de Dande (nas proximidades do rio de mesmo nome) é o único lugar em
que um funcionário disse que os sobas davam uma assistência “pontual”: “para o serviço das
74
fortificações da capital, e todas as mais obras reais, conserto de igrejas, auxílio aos
missionários, e soldados que andarem em serviço de sua majestade”129.
Portanto, os tratados mais antigos traziam a obrigação genérica de “dar filhos”
para o serviço real. A expressão é indeterminada e não há nenhuma indicação de que o quer
que se enquadrasse no serviço real devesse ser prestado de forma gratuita. Pelo contrário, o rei
português asseverou em meados do século XVII que todos os vassalos do ngola deveriam ser
sempre remunerados. Com o passar do tempo surgiram as obrigações mais específicas, como
o trabalho nas fábricas de ferro de Nova Oeiras. Ao que parece a prestação de trabalho era
adensada às obrigações das autoridades africanas quando a demanda surgia. Contudo não
eram somente demandas que poderiam ser enquadradas como “serviço real”, foram elencados
serviços prestados particularmente aos capitães-mores.
Podemos nos fiar nessa fonte produzida como resposta ao governador, uma
autoridade superior aos capitães-mores, a quem estavam subordinados e que podia puni-los?
Há razões para crer que sim. As fórmulas de escrita se repetem em documentos de diferentes
localidades, assim como as obrigações requeridas. Além disso, nos casos em que fogem à
regra, os próprios funcionários dão pistas de que o que faziam não era justo, incorria em
vexação, pelo exagero com que tentavam se distanciar daquela prática. Nota-se que para
justificar o uso da mão de obra dos sobados, o regente de Dande sublinhou que era uma ajuda
“pontual”. No distrito do Kwanza, o funcionário garantia que todo o serviço era “pago à
risca”.
Por meio da leitura da documentação, confirma-se o que o governador Sousa
Coutinho já suspeitava: o uso gratuito e irrestrito dos serviços dos “filhos” dos sobas, ilamba
e imbari não estava previsto como obrigação nos primeiros tratados de vassalagem. Por isso,
logo depois de chegar à conclusão de ser um procedimento injusto, como bom funcionário
régio ciente de seu dever de zelar pelo bem comum, o governador determinou que a partir de
então, outubro de 1770,
“todos os sobreditos sobas, imbari e ilamba estavam isentos das obrigações
que tinham por força das novas ordens de sua excelência, e só os sobas
Kimbi e Kixingango a tinham de darem azeite todos os meses para o corpo
da guarda e cadeia, e todos os mais sobas só davam filhos para o serviço
real, auxílio aos missionários e militares”130.
129
Idem. Ibidem.
130
Idem. Ibidem.
75
131
Idem. Ibidem.
132
Em uma portaria de 1770, o governador define o que se entende por serviço real, auxílio aos missionários e a
particulares. Tudo passou a ser remunerado. Portaria em que se estabelecem os jornais dos “pretos
trabalhadores”, assinada por FISC. São Paulo de Assunção de Luanda, sete de dezembro de 1770.
AHU_CU_001, Cx. 55, doc. 6 e 7.
76
e quem lha (sic) deu para se levantarem”133. Estar “levantado” é uma designação de rebelião,
o soba já não reconhecia o domínio português.
Nem sempre esses levantamentos sobreviveram ao tempo ou estão acessíveis para
a análise histórica. Desde o final do século XVI o corredor do Kwanza foi marcado por
intensos confrontos militares entre os sobas e os invasores europeus. Como já nos referimos,
Aida Freudenthal e Selma Pantoja editaram o “Livro dos Baculamentos”, uma fonte
imprescindível para a compreensão das relações de poder entre eles, bem como do sistema
tributário e da rede comercial que existiam no Reino de Ndongo, no início do século XVII134.
As editoras identificaram os sobas que foram alvo da tributação da Coroa portuguesa, entre
1619 e 1639, desde Hairi, junto à margem norte do rio Kwanza, e “Além Mbengu” (rio) até
Cambambe (fortaleza portuguesa fundada em 1604). Nessa região, havia 202 vassalos e
contribuintes. A grande maioria localizada na região que, no século XVIII, abrigou a fábrica
de Nova Oeiras, na Ilamba e no Lumbu, onde 79 sobas avassalados se obrigaram a pagar os
tributos. A análise desses impostos, chamados baculamentos, permite entrever as hierarquias
locais entre as lideranças africanas, em que grandes sobas protegiam chefias de menor
poderio. Essas informações, comparadas com as de outras fontes, oferecem um panorama das
relações entre os poderes africanos e entre eles e os portugueses.
O militar Cadornega anotou, anos depois, as diferenças entre as correlações de
força entre os líderes africanos: havia os canda (do kimbundu nkanda, nhundu) que “com
insígnia de bastão” eram “cabeças e governadores dos demais”, “soba poderoso”, sobetas
(autoridades menores), ilamba, imbari135.
Em fins do século XVII, quando a conquista portuguesa avançou mais para os
sertões, Cadornega contou em média 250 sobas vassalos desde a cidade de Luanda até o
presídio da Pedras de Pungo Andongo, fundado após a conquista do Reino do Ndongo, e
autoridades da Kisama, Libolo, nas terras do Ndongo. A grande maioria situada nos arredores
dos presídios de Ambaca (57) e Pedras de Pungo Andongo (36). Apenas 21 dos sobas
arrolados por Cadornega constam na lista dos baculamentos do início do século136. O militar
133
Regimento do Governo do Reino de Angola dado em Lisboa, 12 de fevereiro de 1676. AHU, Códice 544, fl.
3.
134
Aida Freudenthal, Selma Pantoja (ed.). Livro dos Baculamentos, 2013, p. 15-23.
135
Antonio de Oliveira Cadornega, História das Guerras Angolanas (1680), v. III, p. 237 e ss.
136
Os sobas mantêm seus títulos político, por isso, podemos acompanhar por gerações a história desses títulos.
Por exemplo, quando encontramos o soba Bango Aquitamba [Mbangu kya Tambwa] desde o século XVII até o
XIX na documentação, sabemos que não se trata da mesma pessoa, mas dos muitos sucessores desse título
político, que por uma série de razões conseguem manter seu sobado ao longo do tempo. O próprio trabalho de
edição do Livro dos Baculamentos traz a anotação se o título do soba ou kilamba se repete na lista de Cadornega.
Contamos a partir da lista conferida pelos editores.
77
anotou também muitos ilamba como líderes políticos de relevo, a maioria em Ambaca, algo
que as listagens dos baculamentos não trazem137. Esse é mais um indício de como os ilamba
aliados aos portugueses, inclusive na guerra preta, e se estabelecendo como importantes
traficantes tornaram-se chefias de relevo no século XVIII, controlando um considerável
número de pessoas.
A discrepância pode ser explicada por um conjunto de fatores. Por exemplo,
Cadornega nem sempre nomeava os sobetas ou autoridades menores e isso pode ter omitido
muitos líderes que já eram súditos da Coroa; logo, sua listagem tende a ser incompleta.
Apesar disso, a leitura comparativa dessas fontes nos permite ter dimensão do nível de
desestruturação política que atingiu a região neste primeiro século da conquista portuguesa.
Sobre a área onde se assentou Nova Oeiras, Cadornega anotou: “os sobas da Ilamba e Lumbu
estão alguns deles atenuados com a calamidade do tempo”138. Informação que comprova o
enfraquecimento político e econômico, da pobreza resultante de muitos anos de guerras,
pilhagens e comércio de escravos.
Como há pouco nos referimos. Em 1770, com o intuito de inventariar os tipos de
serviços prestados pelas autoridades locais aos portugueses e regular as formas de
fornecimento do trabalho, inclusive para as fábricas de ferro, o governador Sousa Coutinho
ordenou que os capitães-mores dos presídios e distritos enviassem os termos e autos de
vassalagem pelos quais os sobas se obrigavam a servir os conquistadores. Essa era uma
maneira de saber mais sobre a população africana e controlar suas relações com as
autoridades espalhadas pelo sertão. Responderam a este levantamento os capitães-mores de
Muxima, Massangano, Cambambe, Pedras de Pungo Andongo, Ambaca, Distrito do Kwanza,
Dande, Icolo, Golungo e Bengo. Contudo, como vimos, nem todos os escrivães conseguiram
encontrar os documentos requeridos, ora justificaram que os autos haviam sido entregues aos
próprios sobas undados e por isso já não os tinham (como no caso do Golungo), ora que nos
distritos os sobas não eram undados, somente nos presídios (como no distrito do Kwanza).
Apesar das muitas falhas da listagem, constam os nomes de 33 autoridades locais vassalas
137
Antonio de Oliveira Cadornega, História das Guerras Angolanas (1680), v. III, p. 244. No Livro dos
Baculamentos, os ilamba aparecem como cobradores de impostos junto aos sobas. O Kilamba kya Phange é o
único kilamba que aparece enquanto tributário, undado, portanto, avassalado. Aida Freudenthal, Selma Pantoja
(ed.). Livro dos Baculamentos, fl. 28.
138
Idem, p. 236. Cadornega também anota as chefias de Benguela, que omitimos aqui, dado nosso recorte
geográfico. Para aquela região, Mariana Candido demonstra como o “colapso e a emergência de novos estados
no território de Benguela, como Kakonda e Viye, só podem ser entendidos no contexto da expansão do
colonialismo português e do tráfico transatlântico de escravos”. Mariana Candido, An African Slaving Port and
the Atlantic world, p. 6 e cap. II.
78
139
Há a menção de mais seis líderes locais, porém não são citados seus nomes. Carta de FISC aos capitães-mores
de todos os presídios e distritos sobre o undamento dos sobas e mais potentados. São Paulo de Assunção de
Luanda, 3 de outubro de 1770. AHU_CU_001, Cx. 55, D. 6 e 7. Nesta cota, há uma série de documentos sobre a
regulamentação da prestação e serviço dos sobas feita por FISC em 1770.
140
B. Heintze já havia indicado a preponderância de lideranças femininas nesta localidade. Beatriz Heintze,
Angola nos séculos XVI e XVII, p.221. A autora, porém, não cita Soba Joana Quioza, por isso, imagina que
somente no século XIX, mulheres fossem indicadas como soba. O registro de Cadornega aponta que já no XVII,
havia mulheres como chefes em Cambambe.
141
“Mapa geográfico compreendendo a Costa Ocidental d’África (...)”, 1790. GEAEM, 1207-2A-24A-111. Veja
mapa 2.
142
Linda M. Heywood, Njinga of Angola. Africa’s warrior queen, 2017, p. 15-17; Sobre a rainha Nzinga, ver
também: Marina de Mello e Souza, “A rainha Jinga de Matamba e o catolicismo - África central, século XVII”.
In: Congresso Internacional Las relaciones discretas entre las monarquías hispana y portuguesa: Las casas de
las reinas (siglos XV-XIX), 2007.
79
Dona Joana Quizoa e Dona Ana Soba não foram exceções entre os sobas em Angola. Além
disso, havia sobas mulheres que prescindiam do título de dona ou de um nome católico, como
a Soba Axila ya Bangi143. Entender as diferenças entre essas líderes com maior ou menor
contato com o universo colonial é um exercício fulcral para a melhor compreensão do papel
das mulheres africanas e luso-africanas enquanto chefes e diplomatas.
É importante destacar também que as mulheres conhecidas como donas foram
agentes essenciais na estrutura social e econômica do Reino de Angola, sobretudo devido aos
novos arranjos sociais resultantes das dinâmicas do tráfico de escravos, que tinha como alvo
os homens. Historiadores vêm acompanhando as trajetórias de algumas donas e mostram
como a rede do tráfico transatlântico de escravos foi uma oportunidade para as mulheres
locais. Como resultado de seu envolvimento com portugueses e brasílicos, as mulheres
africanas adquiriram riqueza e status social, tornando-se parceiras no comércio de cativos.
Elas ficaram conhecidas como donas e controlavam um grande número de dependentes,
muitas plantações, tinham tavernas e se envolveram nas redes comerciais. Mariana Candido
mostra que, na década de 1770, muitas donas em Angola chegaram a se casar até quatro
vezes, evidenciando como o envolvimento com estrangeiros significou uma estratégia de
ascensão econômica e social para as mulheres Ambundas144.
Em um “inventário dos sobas, ilamba e imbari anexos ao serviço [da] fábrica do
ferro da Nova Oeiras”145, Dona Ana Soba não aparece listada entre os vassalos de Cambambe,
143
Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 78.
144
É preciso lembrar que as mulheres conhecidas por donas, estudadas por Candido, não detinham o poderio
político e militar da rainha Nzinga. Mariana P. Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World.
Benguela and its hinterland, p. 318 e 319. Entre outros textos: Selma Pantoja, “Donas de arimos: um negócio
feminino no abastecimento de gênero alimentício em Luanda nos séculos XVIII e XIX”. Entre Áfricas e Brasis.
Brasília: Paralelo 15, 2001; Selma Pantoja, “Gênero e comércio: as traficantes de escravos na região de Angola”.
Travessias, n. 4-5, 2004, p. 79-97; Selma Pantoja, “As fontes escritas do século XVII e o estudo da
representação do feminino em Luanda”. In: Construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretação.
Actas do II Seminário internacional sobre história de Angola. Lisboa: Comissão Nacional para as
comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 583-596; Selma Pantoja, “Women’s work in the fairs
and markets of Luanda”. In: Clara Sarmento (ed.), Women in the Portuguese Colonial Empire: The Theater of
Shadows. Newcastle-upon-Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2008, p. 81-93; Mariana Candido, “Dona
Aguida Gonçalves marchange à Benguela à la fin du XVIII siècle”. Brésil(s). Sciences humaines et socials, v. 1,
2012, p. 33-54; Mariana Candido, “Marriage, Concubinage and Slavery in Benguela, ca. 1750-1850”. In: Nadine
Hunt, Olatunji Ojo (eds.). Slavery in Africa and the Caribbean: A History of Enslavement and Identity since the
18th century. London/New York: I. B. Tauris, 2012, p. 66-84; Mariana Candido, Eugénia Rodrigues, “African
women’s access and rights to property in the Portuguese Empire”. African Economic History, v. 43, 2015, p. 1-
16; Vanessa de Oliveira, “Gender, foodstuff production and trade in Late-Eighteenth century Luanda”. African
Economic History, v. 43, 2015, p. 57-61; Vanessa de Oliveira, “Mulher e comércio: a participação feminina nas
redes comerciais em Luanda (século XIX)”. In: Selma Pantoja, Edvaldo A. Bergamo, Ana Claudia da Silva
(org.). Angola e as angolanas. Memória, sociedade e cultura. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 134-152.
145
“Inventário dos sobas, ilamba e imbari anexos ao serviço dessa fábrica do ferro da Nova Oeiras respectivo
aos Dízimos que pagavam antes da isenção que lhes concedeu o Exmo. Sr. e pelo que regularam de próximo,
número de filhos que cada um tem, e os que são dão por mês para o serviço da mesma fábrica”. Carta de D.
Francisco Inocêncio de Souza Coutinho para Antônio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente geral das reais
80
apenas o Soba Dom André Fernandes Caboco Cambilo [Kabuku Kambilu146], que é
reconhecido como uma das principais autoridades africanas ao norte do Kwanza. Em outro
“inventário dos sobas, ilamba e imbari do distrito do Golungo que servem no serviço das
fábricas do ferro de Novo Belém e Nova Oeiras (..)”147 são listadas no total 67 autoridades
vassalas da região, a maioria do distrito do Golungo (65) e apenas dois sobas de Ambaca. A
maioria das chefias contadas nestes registros é das regiões circunvizinhas à fábrica; o presídio
de Ambaca era mais distante, por isso, constam tão poucas chefias dali. Na verdade, Ambaca
descrita como muito “dilatada”, por Cadornega, era a maior área do Reino de Angola e a mais
importante para o tráfico de escravos, com considerável produção de algodão, e que tinha em
média 80 sobados e ilamba vassalos148. Estas fontes mostram as lacunas do levantamento de
1770, pois justamente o escrivão do distrito do Golungo foi quem disse não ter encontrado os
autos de vassalagem porque esses documentos teriam ficado com os sobas depois da
cerimônia, e o escrivão de Ambaca não citou naquela listagem os nomes das lideranças locais.
Fora isso, os nomes das duas listagens não se repetem, o que pode indicar uma
complementaridade. Se levarmos em consideração a possibilidade de somar os dados destes
documentos, tendo em conta que não há repetição de nomes, chega-se a estimativa de que
havia, no mínimo, 100 líderes locais avassalados e relacionados aos presídios e jurisdições de
Massangano, Muxima, Cambambe, Ambaca, Golungo e Pedras de Pungo Andongo, para a
segunda metade do século XVIII.
O cruzamento das listas do Livro dos Baculamentos e de Cadornega com essas do
XVIII, em especial a dos sobas que serviam nas fábricas, indica que entre a centena de sobas,
44 eram sucessores de líderes já identificados no século XVII, a maioria da Ilamba, Lumbu e
Golungo. Portanto, os chefes dessa região onde foram formadas as povoações de Novo Belém
e Nova Oeiras vinham de uma longa relação com os portugueses. Essa permanência é um
bom exemplo de como essas chefias estabeleceram alianças com os colonizadores com o fim
de manter sua autonomia.
fábricas do ferro. Anexo: Inventário dos sobas, ilamba e imbari. São Paulo de Assunção de Luanda, 29 de
dezembro de 1768. IHGB 126, PADAB DVD10,22 DSC00303.
146
Jill Dias reconstrói a história do sobado Kabuku Kambilu, nas últimas décadas do século XIX. Jill Dias, “O
Kabuku Kambilu (c. 1850-1900). Uma identidade política ambígua”.
147
“Inventário dos sobas, ilamba e imbari do distrito de Golungo, que trabalhavam nas fábricas de ferro de Novo
Belém e Nova Oeiras, sobre os dízimos que pagavam antes de serem isentos, o número de filhos capazes que
cada um tem e que dão em dinheiro por mês (cópia posterior)”. S/l; s/d; PADAB, IHGB DL81, 02.19.
Possivelmente feito entre 1768 a 1770.
148
A estimativa é de Vansina que cruzou várias listagens de sobas vassalos ao longo do tempo. Jan Vansina,
“Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”. The Journal of African History, v. 46, n. 1, 2005, p. 23,
nota 88; Antonio de Oliveira Cadornega, História das Guerras Angolanas (1680), v. III, p. 244. Ver também:
Roquinaldo Ferreira, “O Brasil e a arte da guerra em Angola”. Revista Estudos Históricos, 2007, n. 39, p. 3-23.
81
É preciso tomar o cuidado de lembrar que essa permanência não quer dizer que os
sobas estiveram durante todo esse tempo avassalados, pois os nobres locais se rebelavam
constantemente contra a dominação estrangeira tanto pela ausência de uma efetiva conquista e
colonização, quanto porque os moradores e oficiais da Coroa tinham por atividade principal o
comércio de escravos, deixando para segundo plano o povoamento e a ocupação do território.
Não se trata aqui de reproduzir o gesto colonial e sua ansiedade de contar e
registrar, presente desde a conquista, e abundante durante a administração pombalina, que
queria criar uma imagem de controle e domínio149. Os números colhidos no cruzamento das
fontes são pouco representativos e de forma alguma perfazem o total de chefados africanos,
avassalados ou não, na época. Porém, a partir deles, podemos imaginar a dimensão do projeto
da fábrica de ferro naqueles sertões, o quanto mobilizou diversos chefados e suas gentes. Mais
que isso, o cruzamento de dados nos fornece um quadro de como, ao longo da ocupação
portuguesa, a correlação de forças entre africanos e portugueses foi se alterando, algumas
chefias sobreviveram, muitas outras sucumbiram, enquanto novas emergiram.
149
Para Arjun Appadurai, no contexto colonial, a profusão de informações numéricas, estatísticas, censos,
“gradualmente se tornou a parte mais importante da ilusão do controle burocrático e a chave para um imaginário
colonial em que abstrações contábeis, de pessoas e de recursos, a cada nível imaginável e para cada propósito
concebível, criaram a ideia de uma realidade indígena controlável”. Arjun Appadurai, “Number in the Colonial
Imagination”. In: Carol A. Breckenridge, Peter van der Veer, Orientalism and the Postcolonial Predicament.
Perspectives on South Asia. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1993, p. 317.
82
CAPÍTULO 2
DE ILAMBA A NOVA OEIRAS
banzas ou sobados ou qualquer outro tipo de povoação ou ocupação. Neste capítulo, veremos
que essa lacuna não se faz presente nas informações que os funcionários régios acumularam.
Talvez o vazio tenha sido uma forma de atestar uma apropriação indevida dessas terras e
minas.
Rio
Luinha
Lumbu
Rio
Lukala
Fonte: Detalhe do “Mapa geográfico compreendendo a Costa Ocidental d’África entre 5 e 16 graus e 40 minutos
de latitude Sul, representando no continente o estado atual dos Reinos d’Angola e Benguela (...)” de Luis
Candido Cordeiro Pinheiro Furtado. Desenhado pelo mesmo Tenente Coronel Luís Candido Cordeiro Furtado; e
copiado pelo discípulo do número terceiro ano da Real Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho. Pedro
José Botelho de Gouvea Cadete do Regimento de Cavalaria de Meklemburg”. Lisboa, 1791. Biblioteca
Municipal do Porto, BPMP_C-M&A-Pasta 24(17).
Joseph Miller aponta que os keta, um reino antigo da região, teriam baseado seu
poder no controle dos depósitos de ferro desta localidade. No século XVII, este reino já tinha
sido subordinado aos ngola. O controle das salinas e das minas de ferro são listados por
Miller como uma das causas da formação dos “estados Mbundu”, pois estes recursos raros e
necessários atraíram “pessoas não relacionadas entre si, de uma vasta área em busca do
desejado produto”. Quando as autoridades deste mercado angariaram prestígio e riquezas
suficientes, “ambiciosos governantes locais” converteram “o seu capital econômico em
autoridade política, formando um estado que reclamava a jurisdição sobre linhagens
adjacentes e mesmo mais distantes, bem como sobre os próprios recursos naturais”3.
3
Joseph C. Miller, Poder político e parentesco: os antigos Estados Mbundu em Angola. Trad. Maria da
Conceição Neto. Luanda: Arquivo Histórico Nacional de Angola, 1995, p. 267. Tamanha era a importância da
região que para Miller os ngola a kiluanje ali instalaram suas capitais e, mais tarde, “resistiram tenazmente aos
avanços portugueses em direção a esta área”, Idem, p. 77 e 86. Esta informação é difícil de precisar porque as
capitas do Ndongo não eram fixas. Segundo Beatriz Heintze, Kabasa (Cabaça na documentação portuguesa), a
cidade residencial e capital dos reis do Ndongo, pode ter sido situada na província de Quituxila, perto de
Ambaca. Na segunda metade do século XVII, “foi localizada algures entre os rios Lukala e Lutete, na província
84
de Ndongo. Mudou várias vezes de localização. (...) O rei do Ndongo nomeado pelos portugueses em 1626 já
não residia em Cabaça, mas sim na fortaleza natural de Pungo Andongo, nas imediações da qual se situavam 32
aldeias, uma delas na planície, outras na montanha. A sua conquista por parte dos portugueses no ano de 1671
assinalou o fim do que restava do Estado do Ndongo”. Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 229.
4
Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”. The Journal of African History, v. 46, n. 1,
2005, p. 10.
5
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
Secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 9 de maio de 1762. BNP, C.
8553, F. 6362, fl. 2 e 3.
6
Sobre esta Mina, a de Calombo, há uma informação sobre o lugar chamado de Kambulu que seria o “lugar no
antigo conc. do Golungo Alto, circ. civ. de Cazengo, distr. e prov. de Luanda onde se supôs a existência de
minas de ouro e ferro”. Pode ser que se trate do mesmo topônimo. Antonio de Assis Júnior, Dicionário
Kimbundu-português, linguístico, botânico, histórico e corográfico. Seguido de um índice alfabético dos nomes
próprios. Luanda: Argente, Santos e Comp. Lda. [s.d.], verbete “Kambulu”, p. 91.
7
LB significa que esses títulos constam como tributários da Coroa portuguesa no Livro dos Baculamentos, do
início do século XVII.
8
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
Secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 9 de maio de 1762. BNP, C.
8553, F. 6362, fl. 2 e 3.Antonio de Vasconcelos disse que as minas desabavam porque os trabalhadores não
tinham “indústria” para sustentar as galerias subterrâneas. É óbvio que é uma leitura preconceituosa que parte do
85
princípio que os africanos eram “ignorantes”, por isso, afirmo que havia ali uma tecnologia de exploração das
minas ainda que não fosse segura o suficiente para os trabalhadores.
9
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
Secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 9 de maio de 1762. BNP, C.
8553, F. 6362, fl. 2 e 3. “O ferro de pedra é inexaurível só à flor da terra e sem que nunca seja necessário cavar
para o extrair; muitas as lenhas, e com a circunstância de que no ano sucessivo [ao] seu corte estão renovadas, e
capazes de dar a mesma muitos os serventes satisfeitos com o mais módico jornal, as conduções muito cômodas
pela minha diligência; e enfim, tudo concorre para o maior progresso”. Carta de FISC para Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, secretário de estado da marinha e ultramar. Luanda, 17 de fevereiro de 1767. RJIHGB 126,
PADAB DVD10,20 DSC00410.
10
“Notícias do Presídio de Massangano do Reino de Angola, de 1797”. IHGB, DL 31.07.
11
Carta de José Álvares Maciel para Miguel Antonio de Melo, governador de Angola. São Paulo de Assunção
de Luanda, 31 de março de 1800. AA, v. IV, v. 52 a 53, 1939, p. 302.
12
Carta de Antonio Salines de Benevides, sargento-mor e ajudante das ordens do governo para Miguel Antonio
de Melo, governador de Angola. São Paulo de Assunção de Luanda, 15 de novembro de 1800. AA, v. IV, v. 52 a
53, 1939, p. 327.
13
Antonio de Assis Júnior, Dicionário Kimbundu-português, linguístico, botânico, histórico e
corográfico. Seguido de um índice alfabético dos nomes próprios, verbete “nguengue”.
14
“Da mesma maneira me consta que por toda essa jurisdição se acham espalhados muitos ferreiros, e
fundidores naturais da mesma Ilamba, que por causa de fomes saíram das suas terras e foram para essas”. Carta
de FISC para Francisco Matoso de Andrade, capitão-mor de Ambaca. São Paulo de Assunção de Luanda, quatro
de janeiro de 1767. BNP, C – 8742, F – 6364. Como veremos, na verdade esses ferreiros começaram a ser
capturados, por isso fugiram para o interior.
86
corrobora ter havido uma tradição de mineração do ferro na Ilamba. Esses documentos
também nos mostram que essas minas, exploradas pelos sobas, estavam ativas durante a
instalação da fábrica de ferro.
À luz dessas informações, pode-se começar a compreender como o
empreendimento colonial de Sousa Coutinho era, na verdade, uma tentativa de tomar das
mãos dos sobas uma indústria já consolidada e que funcionava muito bem sem a interferência
externa.
Outros chefados importantes relacionados a minas nas proximidades de Luanda
são os sobas Mbangu Kya Tambwa15 (LB), Gongue Anamboa [Ngombeya Nambwa] (LB) e
Cariata [Kariata Kakavingi]. Em suas terras havia ouro e “pedras cristalinas” (diamantes), ao
longo do rio Lombige, nas proximidades de Lumbu16. Em Cambambe, no século XVII, havia
exploração de minas de chumbo. Rotineira também era a exploração de cobre; os portugueses
sabiam da existência de minas em Kasanje e em Ambaca17. No Novo Redondo, à sul do rio
Kwanza, descobriu-se uma mina de cobre nas terras do soba Hevo18. No Reino de Angola,
desconhecemos quais chefias controlavam o comércio desse metal pelo mesmo motivo pelo
qual os portugueses não conseguiram mais informações: “como os negros o tem por ouro,
cuidam muito em ocultá-lo”19. Jill Dias nos explica a razão de tamanho sigilo: “o cobre, sendo
muito mais raro, e, por conseguinte, mais valioso do que o ferro, era muito procurado (...) para
produzir artefatos especiais – ornamentos, vasos cerimoniais e rituais”20. O que os
portugueses ignoravam é que quem funde ferro, conhece as técnicas para fundir outros
minérios e metais. Uma hipótese é a de que a lide com o ferro rotineira e bem conhecida
escondia a produção de outros metais e objetos preciosos.
Apesar de as minas de cobre serem as mais vigiadas, em geral, os centro-africanos
resistiam a revelar a localidade de seus minérios, quaisquer informações sobre as minas eram
resguardadas com grande severidade. Nas citadas incursões à procura de ouro pelo rio
15
O portador do título Mbangu Kya Tambwa aparece como “cabeça” de 18 sobas em fins do século XVII.
Antonio de Oliveira Cadornega, História das Guerras Angolanas (1680). Anotado e corrigido por José Matias
Delgado. Lisboa: Agência-geral do Ultramar, 1972, v. III, p. 237.
16
Carta de Martinho de Melo e Casto, secretário dos Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, para
Antonio de Lencastre, governador de Angola. Palácio Nossa Senhora da Ajuda, 10 de julho de 1772. AHU,
Códice 472, fl. 21v -26v.
17
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, São
Paulo de Assunção de Luanda, 28 de junho de 1762. AHU_CU_001, Cx. 45, D. 58. Cara de Fernão de Sousa ao
rei de Portugal, 13 de agosto de 1625. Monumenta Missionária Africana (CD) SI - V07_d117.
18
Carta de FISC para Francisco Nunes de Morais, capitão regente do Novo Redondo. São Paulo de Assunção de
Luanda, 27 de agosto de 1772. AHA, Códice 80, fl. 116.
19
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, São
Paulo de Assunção de Luanda, 28 de junho de 1762. AHU_CU_001, Cx. 45, D. 58.
20
Jill Dias, Nas vésperas do mundo moderno: África. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1992, p. 145.
87
Lombige, o governador Antonio Álvares da Cunha mandou prender o citado soba Mbangu
Kya Tambwa que era um antigo aliado dos portugueses, mas nesse assunto o prisioneiro não
colaborou. Nas palavras do governador: “é [a] única virtude que tem os negros destes sertões,
que não revelam sigilo ainda que entendam que por este motivo lhe hão de tirar a vida”21. O
soba permaneceu preso durante três anos. O sucessor de Álvares da Cunha mandou libertá-lo
por ter averiguado que não havia ouro em suas terras apenas cascalho com poucas faíscas de
ouro22. Todavia, em 1798, foram enviadas novamente expedições pelas terras do Mbangu Kya
Tambwa à procura de minas de ouro. O silêncio dos dirigentes do sobado e a persistência
colonial em empreender novas incursões apontam para a existência de minas ali sob o
controle das chefias locais, que fariam de tudo para não as perder23. Um exemplo dado por Jill
Dias, ainda que de um período posterior, torna a questão mais evidente; ela cita que, em
meados do século XIX, um soba do Golungo Alto (Lumbu) ameaçava com pena de morte
quem divulgasse a homens brancos a localização de suas minas de ferro24.
O ouro parece ter se tornado importante para os chefes africanos, caso contrário
por que tanto segredo? O ouro e o diamante com certeza tinham valor para os europeus e
poderiam ser trocados por outras mercadorias, como as fazendas asiáticas e a jeribita, objetos
de valor para o comércio local. Tanto era assim que os primeiros exploradores das minas
21
Carta do governador Antonio Álvares da Cunha para o rei. São Paulo de Assunção de Luanda, 28 de fevereiro
de 1756. AHU_CU_001, Cx. 43, D. 4027. Outro exemplo é a mineração das malaquites na Serra do Bende (“nos
domínios de um vassalo rebelde do rei do Kongo”), também chamadas de pedras verdes. O governo de Luanda
ordenou que se averiguasse as qualidades dos minérios que ali haviam e durante a inspeção dever-se-ia “ver com
dissimulação tudo o de que constava a dita serra, que tanto estimam e recatam os negros”. As tropas portuguesas
não conseguiram entrar nas terras do Mani Kongo. Carta de FISC a Francisco Xavier de Mendonça Furtado
AHU_CU_001, Cx. 54, D. 113 e 115.
22
Carta do governador Antonio de Vasconcelos para Tomé Joaquim da Costa Corte Real, secretário e Estado da
Marinha e dos Domínios Ultramarinos. São Paulo de Assunção de Luanda, 6 de janeiro de 1759. Arquivo das
colônias, v. V, n. 30, p. 148.
23
Carta do governador Miguel Antonio de Melo ao capitão-mor do Golungo. São Paulo de Assunção de Luanda,
22 de janeiro de 1798. AHA, Códice 322, fl. 13v. O mesmo se passou com o militar Antonio Candido Gamito
que visitou outros povos bantu, os Maraves, na Costa Leste africana, na margem norte do rio Zambeze, em 1831
e 1832. Ele tinha o interesse em ver a mineração do ouro, naquela localidade feita exclusivamente pelas
mulheres, mas foi avisado “que [havia] a superstição de que não deve[ria]m ser vistos estes trabalhos senão por
quem os faz, porque foge o metal se outrem os vê”. Viagem que seguiu do rio Tete ao Zambeze, liderada pelo
major Monteiro. O diário foi escrito por Gamito. Antonio Candido Pereira Gamito, O Muata Cazembe e os
Povos Maraves, Chevas, Muizas, Muenbas, Lundas e outros da África Austral. Lisboa: Agência Geral das
Colônias, 1937, v. I, p. 38.Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Tomé Joaquim da
Costa Corte Real. São Paulo de Assunção, seis de janeiro de 1759. SGL, Arquivo das colônias, v. V, n. 30, 1930,
p. 148.Carta do governador Miguel Antonio de Melo ao capitão-mor do Golungo. São Paulo de Assunção de
Luanda, 22 de janeiro de 1798. AHA, Códice 322, fl. 13v. Instrução para Antonio de Lencastre governador do
Reino de Angola. Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, 10 de julho de 1772. AHU, Códice 472, fl. 21v -26v.
Essas minas de fato existiam, foram exploradas, no século XX, pela Sociedade Mineira do Lombige (SOMIL) e
a Companhia de Diamantes de Angola (DIAMANG).
24
Jill Dias, “Relações econômicas e de poder no interior de Luanda ca. 1850-1875”. I Reunião Internacional de
História de África. Lisboa: Instituto de Investigação Científica, 1989, p. 249. Apud Juliana Ribeiro da Silva,
Homens de ferro. Os ferreiros na África Central no século XIX, p. 59.
88
foram dois particulares: um missionário carmelita descalço frei Lourenço de Jesus Maria que
“vivia nos matos”, aproveitando-se da missão em terras de Mbangu Kya Tambwa, e o mineiro
Caetano Álvares, exímio conhecedor de técnicas mineradoras. A Coroa só ficou conhecendo o
negócio porque o frei denunciou Caetano. Os sobas provavelmente estabeleceram acordos
com o frei e o mineiro visando algum favorecimento comercial25.
O segredo sobre as minas tinha um caráter imediato – proteger um recurso
econômico -, porém, naquela sociedade, este fator era indissociável das razões da cosmogonia
africana. Hampatê Bá lembra que na tradição da savana, os minerais são os “filhos do seio da
terra”, parte dos seres que têm uma linguagem “incompreensível para o comum dos mortais”.
O ferreiro-fundidor, como designa Hampatê Bá, aquele que se dedica a minerar o ferro
deveria ter um perfeito conhecimento da mineralogia, da mata, das plantas – “ele conhece as
espécies de vegetais que cobrem a terra que contém determinado metal e detecta um veio de
ouro simplesmente examinando as plantas e os seixos”. Cabia assim ao homem preservar o
equilíbrio entre as forças da natureza, “pois tudo se liga, tudo repercute em tudo, toda ação faz
vibrar as forças da vida e desperta uma cadeia de consequências cujos efeitos são sentidos
pelo homem”26. Pode-se imaginar que o conhecimento especializado dos minerais não seria
facilmente revelado aos portugueses e que revolver a terra em que descansavam os ancestrais
não podia ser uma operação banal, designada a qualquer mortal inábil.
Talvez a reação do soba sobre as minas de ferro, no século XIX, tenha sido mais
contundente por consequência da ação colonial no Setecentos, até onde conseguiram
perscrutar “não ficou rio, riacho, que se não apalpasse (...) examinados os morros, outeiros e
várzeas”27. Muitas foram as investidas para maior controle do território e exploração local de
riquezas. Porém o interesse colonial pelas minas era antigo, vale lembrar que, embora o
comércio de escravos tenha sido o fator determinante da conquista portuguesa do Ndongo, a
colonização e a ocupação territorial desde seus primórdios se relaciona com a busca por
25
Carta do governador Antonio de Vasconcelos para Tomé Joaquim da Costa Corte Real, secretário da marinha
e dos domínios ultramarinos. São Paulo de Assunção de Luanda, 6 de janeiro de 1759. Arquivo das colônias, v.
V, n. 30, p. 148. Depois, em 1754, por decisão do governador, as minas passaram a ser exploradas
exclusivamente pela Fazenda Real, o frei parece ter conseguido escapar (não foi encontrado), mas Caetano ficou
preso por quatro anos, quando foi degredado para Minas Gerais (“onde por conhecido, não podem prejudicar as
suas experiências”).
26
Amadou Hampatê Bá, “A tradição viva”. In: Joseph Ki-Zerbo (org.). História Geral da África I. Metodologia
e pré-história da África. São Paulo, Ed. Ática/UNESCO, 1980, p. 195-199.
27
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Tomé Joaquim da Costa Corte Real. São Paulo
de Assunção, seis de janeiro de 1759. SGL, Arquivo das colônias, v. V, n. 30, 1930, p. 148.
89
28
Marina de Mello e Souza, Além do Visível. Poder, catolicismo e comércio no Congo e Angola, séculos XVI e
XVII. Tese de Livre Docência – Universidade de São Paulo, 2012, p. 63 e ss; Beatrix Heintze, Angola nos
séculos XVI e XVII, p. 244.
29
Para Birmingham as minas de sal foram um dos principais fatores que atraíram os portugueses para Angola.
David Birmingham, “Early African trade in Angola and its Hinterland”. In: Rochard Gray, David Birmingham
(eds.). Pre-colonial African Trade. Essays on Trade in Central and Eastern Africa before 1900. Londres, Nova
Iorque, Nairobi: Oxford University Press, 1970. Em seu livro, Juliana Ribeiro da Silva faz um histórico da
exploração portuguesa de minerais no ultramar. Desde os primeiros contatos dos portugueses com a África
Centro-Ocidental, o interesse pelos minerais esteve presente. Os Ambundos perderam muitas das minas de sal
para os portugueses, o que deve ter sido um dano irreparável, pois o sal era imprescindível na região e se
configurou uma importante moeda da terra. De maneira geral, “os portugueses de fato queriam acreditar que em
África existiam riquezas inesgotáveis”. Juliana Ribeiro da Silva, Homens de ferro. Os ferreiros na África
Central no século XIX. São Paulo: Alameda, 2011, p. 36.
30
Sobre a mineração na Comarca do Serro Frio, ver: Júnia Ferreira Furtado, O livro da capa verde: o regimento
diamantino de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo: Annablume,
1996.
90
anos de prisão é exemplar desse conflito. Os sobas continuaram a deter o controle sobre esse
recurso natural.
Como esse controle era efetivado? Com armas: tanto o frei que explorava as
minas tinha muitos “negros armados” à sua disposição, quanto Mbangu kya Tambwa era
conhecido pelo suporte que dava aos portugueses na chamada guerra preta, as tropas africanas
que compunham o exército português31.
A questão das minas, portanto, engendrava muitas tensões. Quando o governo de
Luanda resolveu instalar na Ilamba fábricas de ferro, os embates se manifestaram inicialmente
por meio de querelas pela posse daquelas terras. É evidente que o governo de Luanda
precisaria de parte das minas da região, que eram controladas pelos chefes locais. Além das
minas, Sousa Coutinho planejou que uma parcela das terras onde fundou Nova Oeiras fossem
utilizadas para hortas para a subsistência dos trabalhadores da fábrica e dos serviços
auxiliares32. O minério de ferro por si só englobava fatores de ordem social, religiosa e
econômica, se lembrarmos da centralidade dos mitos fundadores do rei-ferreiro na África
Central. Por isso, desde o início das tentativas de implantação do plano Ilustrado para a
mineração do ferro nessa região, desde a escolha do terreno para o assentamento das fábricas,
os sobas reivindicaram a posse das terras.
Conseguimos identificar as terras de alguns sobas da vizinhança mais próxima das
fábricas: Nguengue a Kimbemba, dono de minas de ferro, citado acima, “o qual soba vai
confinar com outro” Kyambata kya Ngoto (LB). “E indo-se circulando só na distância de dez
ou doze léguas (aproximadamente 50km) se acham os sobas seguintes”: Itombe ya KaNdongo
(LB), Nzambi a Keta, Ngola a Kiato, Ngolome (LB), Kabuku Kambilu (LB), Kisala kya
Kabuku (LB), Nzamba Nsungui, Kabuto e Kilamba Pedro Ambaxi. Essa relação foi feita pelo
capitão Joaquim de Sousa Lobo em uma missão encomendada pelo governador que pedia
“exatos inventários” da região onde seria instalada a fábrica: “todos os matos e lenhas
próprias a carvão, que ficam em distância de servir a dita fábrica, assim as suas quantidades,
como qualidade, e grossuras, como também o número de libatas, e de sobas, que podem fazer
este serviço”33. Terras e gentes foram catalogadas.
31
Em uma batalha, Elias Correa disse que os portugueses só conseguiram a vitória pela ajuda de um “valoroso
negro capitão de Mbangu Kya Tambwa”. Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola. Lisboa:
Clássicos da Expansão Portuguesa no Mundo. Império Africano. Série E, vol. I, p. 227.
32
Dizia o governador sobre as terras da região: “Como me dizem que do rio Luinha, onde há de ser a Nova
Oeiras, até a feira do Zundo, há terras admiráveis, estenderá as povoações e as sementeiras por todas elas,
estando baldias”. “Instrução secretíssima para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira”, intendente geral da fábrica
do ferro. (FISC). São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de janeiro de 1767. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 73.
33
Instrução que levou o capitão Joaquim de Sousa Lobo. São Paulo de Assunção de Luanda, a 18 de julho de
1768. IEB/ USP, AL-083-099.
91
nenhum soba poderia ter feito essa negociação porque “comumente os sobas não po[dem]
vender as suas terras por serem uma espécie de morgado”. A ordem vinda de Luanda
determinou que as terras, que fossem classificadas como “baldias”, deveriam ser ocupadas até
que os supostos donos apresentassem seus “títulos” que comprovassem a “boa ou má venda”,
ou seja, a legitimidade dos negócios38. Se as terras baldias tivessem dono, eles seriam
obrigados a cultivá-las sob “pena de se lhes tirarem se logo o não fize[ssem]”39. Portanto, o
intendente não tinha autorização para ocupar terras produtivas40.
Os sobas, de fato, reclamavam a posse de terras e não apenas no contexto da
fábrica de ferro. Em 1759, quando os jesuítas foram expulsos do Reino de Angola, seus bens
foram apreendidos pela Fazenda Real41. Entre as muitas posses dos jesuítas, foram elencadas
casas, terras, arimos, fazendas –que eram as propriedades com maior produção de alimentos
em Luanda e seu hinterland. A posse destas terras era requerida tanto pelos moradores de
Luanda e dos sertões próximos quanto pelos sobas. O governador disse que essas querelas
levavam a “causas eternas” sem resolução e sobre os sobas registrou o seguinte: “há alguns
sobas que querem ter direito a muita parte delas porque sempre clamaram que [os jesuítas] as
retinham em má posse e as usurparam a seus antepassados com as sutilezas e as indústrias que
lhes eram naturais”42.
Para além do aspecto jurídico, deve-se notar que as disputas eram entre os
moradores de áreas sob administração portuguesas - onde predominava representantes da elite
luso-africana (como vimos no capítulo 1) - e os sobas, vassalos da Coroa portuguesa que
administravam de forma independente suas povoações.
38
Idem, ibidem.
39
“Instrução que deve guardar Antonio Anselmo Duarte de Siqueira servindo o emprego de intendente geral da
Fábrica do Ferro e que executaram também os capitães mores como intendentes particulares na parte que lhes é
respectiva”. São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de janeiro de 1767. AHU_CU_001, Cx. 52, Doc. 73
40
Não há qualquer menção a um tipo específico de cultura que deveria ser empregada.
41
“Dentre os muitos inimigos que a Companhia de Jesus teve ao longo dos três primeiros séculos de sua
existência em Portugal, o Marquês de Pombal foi o mais implacável a ponto de conseguir sua expulsão, primeiro
dos territórios portugueses, em 1759 e, depois, de toda a cristandade, em 1773, por ordem do papa Clemente
XIV”. Célio Juvenal Costa, “O Marquês de Pombal e a Companhia de Jesus”. In: S. L. Menezes; L. A Pereira.;
C. M. M. Mendes (orgs). A expansão e consolidação da colonização portuguesa na América. Maringá: EDUEM,
2011, p. 69. Sobre os jesuítas no Reino de Angola, segundo Catarina Madeira Santos, “a assistência missionária
da Companhia de Jesus no sertão angolano, no século XVIII, foi muito pouco expressiva. Desde a restauração,
em 1648, os jesuítas foram abandonando as missões do interior e passaram a ocupar-se acima de tudo do colégio
de Luanda (cujas obras se iniciaram em 1607) e dos arimos (fazendas ou propriedades agrícolas) que possuíam
em vários lugares, sobretudo na região do rio Bengo”. Um governo "polido" para Angola, p. 129.
42
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para o Conde de Oeiras. São Paulo de Assunção de
Luanda, 14 de maio de 1760. AHU_CU_001, Cx. 46, D. 4261. “Além dos sobas há também alguns moradores
que com causas eternas contendiam com eles sobre o mesmo; e igualmente a Misericórdia desta cidade, que há
mais de cinquenta anos traz com eles um renhido pleito sobre a satisfação de um legado, que deixou a dita casa
um homem de quem foram herdeiros e testamenteiros, que faleceu há cento e trinta e sete anos, importando a
herança quatrocentos mil cruzados, que todos [ensoparam] em si; e nunca satisfizeram o legado ainda depois de
alcançar a Misericórdia sentenças da Relação contra eles”.
93
Uma das questões principais para o governo de Luanda à época era o fomento à
agricultura, com o fim de combater a escassez de alimentos e a má distribuição de água. Em
um bando de 1768, o governador ordenou o levantamento de todas as terras baldias (“arimos
desertos”) ao longo dos rios Nzenza, Ndande e Kwanza. O documento permite entender como
as próprias políticas coloniais instigavam os conflitos sobre as terras. O governador prometeu
entregar as propriedades abandonadas a quem denunciasse seu estado improdutivo e se
obrigasse a cultivá-las. Se, para ter acesso à terra, bastava denunciar seu mal emprego, era de
se esperar que a denúncias seriam abundantes. O documento também nos informa que, as
terras do reino eram ou de “natureza de sesmaria” ou “de indevidas compras aos sobas”43.
O regimento dos governadores ordenava que se soubesse “de todas as terras que
são dadas, quem as deu, e que poder tinha para isso, e quem as possui” porque havia notícia
de que terras que haviam sido doadas não estavam sendo cultivadas. Diante disso, as terras
sem dono deveriam ser repartidas por quem se obrigasse a cultivá-las dentro de cinco anos. Se
os particulares não o fizessem neste prazo, elas poderiam ser passadas a outrem44. Esse trecho
remete ao que está na “lei das sesmarias”, de 1375, que foi compilada nas Ordenações
Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, com algumas modificações nos textos desses registros45.
E as “indevidas compras aos sobas” ou a “má posse”, no caso dos jesuítas, como
descobrir os legítimos donos? A primeira hipótese é a desapropriação pela força, em situação
de guerra, por exemplo. Vansina disse que os sobas destituídos durante a conquista, não tendo
outro recurso, negociaram suas terras com os colonos46. Na ocupação portuguesa na margem
Oriental africana, a terra para os chefados africanos, em especial os Maraves, eram
propriedade coletiva, nenhum chefe a podia vender ou alienar. Um padrão que se repete entre
os Ambundos. Em Portugueses e Africanos nos rios de Sena, Eugénia Rodrigues faz um
longo inventário dos prazos na região do vale do Zambeze. No Índico, instituiu-se um outro
enquadramento jurídico para a repartição de terras, os prazos eram “concessões enfitêuticas,
em que a Coroa retinha o domínio direto e cedia o domínio útil em troca do pagamento de um
43
Bando sobre os arimos desertos. São Paulo de Assunção de Luanda, agosto de 1768. IEB/ USP, AL-083-92.
44
Regimento do Governo do Reino de Angola dado em Lisboa, 12 de fevereiro de 1676. AHU, Códice 544, fl.
8v.
45
Instituída no reinado de Fernando I, as sesmarias tinham por finalidade combater a diminuição da população
rural de Portugal. Código Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal: recompiladas por mandado
d’el-Rei D. Filipe I, edição fac-similar da 14ª edição de 1821 por Cândido Mendes de Almeida. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2004, Livro IV, p. 43. Na América portuguesa, as sesmarias também era a principal
norma de divisão de terras nessa época. Ver, a respeito, Márcia M. M. Motta, Direito à Terra no Brasil. A
gestação do conflito (1795/1824). São Paulo: Alameda, 2009. Sobre o regime de posse de terras no Atlântico
português, ver: Antonio de Vasconcelos Saldanha, As capitanias. O regime senhorial na expansão ultramarina
portuguesa. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico, 1992, p. 190. Na Costa Oriental, o marquês de
Pombal tentou “sesmarizar” os prazos, mas o sistema perdurou até o início do século XIX.
46
Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”, p. 22.
94
espaço sagrado: “para os africanos a terra não é valor de troca, pois ela não pertence ao grupo
senão graças à mediação dos espíritos”. Dessa forma, no território africano encontram-se
alguns dos “pilares fundamentais da identidade africana”51, o parentesco e a religião. As
árvores sagradas, os rios, as plantas que forneciam os pigmentos das cores sagradas, os
tambores que levavam mensagens de uma cubata a outra, as sepulturas dos antepassados ou
dos heróis fundadores são marcadores importantes deste território52. Por exemplo, em 1809, o
capitão-mor do presídio das Pedras de Pongo Andongo ordenou aos alguns sobas vassalos
que fossem habitar em uma das ilhas do Kwanza. As chefias não aceitaram porque isso ia
contra “os seus ritos”, traduzidos pelos agentes coloniais como “leis gentílicas”53.
Quando Sousa Coutinho se referiu ao “morgado” a ideia mais próxima que o
funcionário régio conseguiu formular para compreender a relação dos sobas com as terras da
Ilamba foi a aproximação da noção de parentesco e transmissão de títulos de nobreza, para os
africanos, com a dos direitos de herança e de sucessão dos europeus. Segundo o dicionário do
padre Raphael Bluteau, um morgado ou “bens de morgado” eram “bens vinculados de sorte
que sem se poderem alienar, nem dividir, o sucessor justamente os possua na mesma forma e
ordem que o instituidor tem declarado”54. As Ordenações Filipinas determinam como deveria
ocorrer a transferência da herança que, em primeiro lugar, privilegiava o filho, homem,
primogênito e “posto que o filho mais velho morra em vida de seu pai, ou do possuidor do
morgado, se o tal filho mais velho deixar filho, ou neto, ou descendentes legítimos, estes tais
descendentes por sua ordem se preferirão ao filho segundo”55. O morgado também deveria
ser confirmado pelos herdeiros pela posse de um documento. Ao fazer essa analogia, o
governador entendia que a posse da terra era regida pelas regras do parentesco.
Embora exista uma relevante historiografia para outras partes do Império
português, especialmente para a América portuguesa, a Índia e a África Oriental, a
bibliografia sobre os conflitos por terras para o Reino de Angola e para a África Centro-
51
Isabel de Castro Henriques, “A materialidade do simbólico: marcadores territoriais, marcadores identitários
angolanos (1880-1950)”. Textos de História, vol. 12, n° 1/2, 2004, p. 40.
52
Sobre os múltiplos sentidos da terra para os africanos, Holly Hanson apresentou um exemplo interessante.
Hanson estudou como um sistema de relações sociais baseadas em “obrigações mútuas” (“reciprocal
obrigation”) foram a base do desenvolvimento do estado de Ganda. As obrigações giravam em torno da posse de
terra (que eram pagamento da obrigação), estavam imiscuídas de significado afetivo que determinavam
hierarquias sociais e políticas. Holly Hanson, Landed Obligation: The Practice of Power in Buganda.
Portsmouth: Heinemann, 2003.
53
Carta do capitão-mor de Pedras de Pungo Andongo, Matias Joaquim de Brito para o Governador Saldanha da
Gama, AHA, Cód. 3018, s.fl., 19 de Fevereiro de 1809. Apud, Catarina Madeira Santos, Um governo “polido”,
p. 129.
54
Raphael Bluteau, Vocabulário portuguez e latino, 10 v. Lisboa/ Coimbra: Colégio da Cia. de Jesus, 1712-
1728, verbete “morgado”.
55
Código Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal: recompiladas por mandado d’el-Rei D. Filipe
I, Livro IV, Título 100, “Por que ordem se sucederá nos Morgados e bens vinculados”.
96
Ocidental, em geral, é escassa e voltada predominantemente para os séculos XIX e XX. Para
esses autores, as regras de acesso à terra Ambunda sofreram uma mudança significativa a
partir do declínio do tráfico de escravos, quando colonialismo português se voltou de forma
majoritária para as atividades agrícolas, o cultivo de mandioca, milho, índigo, além da
exploração de urzela, marfim e goma. Em resposta à expansão da agricultura, só então, os
portugueses teriam recorrido à exploração local do trabalho dos centro-africanos56.
A documentação consultada vai em sentido oposto. Como frisou Mariana
Candido, desde o século XVI, sob os desígnios dos direitos de conquista, em nome da guerra
justa, a ocupação portuguesa influenciou a política local de distribuição e controle da terra57.
No decorrer do tempo, a expansão para o hinterland de Luanda se intensificou com o
enfraquecimento do poderio dos africanos. Com o declínio do tráfico transatlântico, a posse
da terra se tornou uma questão central para o colonialismo, mas ela sempre existiu.
Para as regiões ao norte do Kwanza os estudos mais elucidativos sobre a posse de
terra são os de Eva Sebestyén sobre a transmissão da posse de terras nos Ndembu, em N’
Dalatando e no sobado Samba Cajú, na região de Ambaca58. Trata-se, portanto, de uma região
muito próxima a Nova Oeiras. A autora encontrou documentos guardados pelos sobas da
56
Cf.: Jill Dias, “Changing Patterns of Power in the Luanda Hinterland. The Impact of Trade and Colonization
on the Mbundu ca. 1845-1920”. Paideuma, 32, 1986, p. 285-318; José Carlos Venâncio, A economia de Luanda
e Hinterland. No Século XVIII. Um estudo de Sociologia Histórica. Portugal: Estampa,1996; Selma Pantoja,
“Donas de ‘arimos’: um negócio feminino no abastecimento de gêneros alimentícios em Luanda (séculos XVIII
e XIX)”. In: Selma Pantoja (ed.), Entre Áfricas e Brasis. Brasília: Paralelo, 2001, p. 35-49; Aida Freudenthal,
Arimos e fazendas: a transição agrária em Angola, 1850-1880. Luanda: Chá de Caxinde, 2005; Aurora da
Fonseca Ferreira, “A questão das terras na política colonial portuguesa em Angola nos anos de 1880: o caso de
um conflito em torno da Kisanga”. In: Maria Emília Madeira Santos (dir.). A África e a instalação do sistema
colonial - c.1885- c.1930. Lisboa: Centro de estudos de História e cartografia antiga, 2001, p. 261-272. Para o
Império português na América, ver: Tamar Herzog, Frontiers of Possession: Spain and Portugal in Europe and
the Americas. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2015; Maria Sarita Mota, “Apropriação
econômica da natureza em uma fronteira do império atlântico português: o Rio de Janeiro (século XVII). In: José
Vicente Serrão, Bárbara Direito, Eugénia Rodrigues, Susana Münch Miranda (org.), Property Rights, Land and
Territory in the European Overseas Empires, Lisboa: CEHC, ISCTE-IUL, 2015, p. 43-53; Para a África
Oriental, ver: Eugénia Rodrigues, Portugueses e Africanos nos rios de Sena, 2013; Maria Paula Pereira Bastião,
Entre a Ilha e a Terra. Processos de construção do continente fronteiro à Ilha de Moçambique (1763 - c. 1802).
Dissertação (Mestrado) – Universidade Nova de Lisboa, 2013, Albert Farré, “Regime de terras e cultivo de
algodão em dois contextos coloniais: Uganda e Moçambique (1895-1930)”, In: José Vicente Serrão, Bárbara
Direito, Eugénia Rodrigues, Susana Münch Miranda (org.), Property Rights, Land and Territory in the European
Overseas Empires, Lisboa: CEHC, ISCTE-IUL, 2015, p. 245-254.
57
Mariana Candido, “Conquest, occupation, colonialism and exclusion: land disputes in Angola”. In: José
Vicente Serrão, Bárbara Direito, Eugénia Rodrigues, Susana Münch Miranda (org.), Property Rights, Land and
Territory in the European Overseas Empires, Lisboa: CEHC, ISCTE-IUL, 2015, p. 230.
58
A autora encontrou 234 documentos entre “testamentos, listas de sobas, demarcações inspeções, compra e
venda de terrenos, casos litigiosos dos sobas por causa da terra e poder, correspondência com a administração
portuguesa e familiares, autos de vassalagem”. Eva Sebestyén, “Legitimation through Landcharters in Ambundu
Villages, Angola”. Perspektiven afrikanistischer Forschung. BeiträgezurLinguistik, Ethnologie, Geschichte,
Philosophieund Literatur. X. Afrikanistentag, 1993, p. 363-379; Eva Sebestyén, Os ‘arquivos’ de sobas
Ambundo: um caso transcultural dos testamentos em Angola. In: Actas do IV Curso de Verão da Ericeira.
População: encontros e desencontros no espaço português, 2003, p. 51-74; Eva Sebestyén, “O contexto cultural
dos marcos de terrenos nas aldeias Ambundu/ Angola”. Africana Studia, n. 24, 2015, p. 91-106.
97
região sobre disputas de terras e títulos de compra e venda desde o século XVII até o XX. São
registros escritos da tradição oral usados para legitimar a posse da terra, que mantêm os
protocolos narrativos dos testamentos portugueses, mas com conteúdo diferente. O testador
não elenca os bens e os respectivos herdeiros, antes deixa um registro de informações
importantes para a sua linhagem, inclusive para defender os herdeiros da escravização:
“principalmente uma declaração validando a filiação e um registro de inspeções de limites que
codificam a propriedade [as terras] da linhagem”59. Uma outra informação importante é que
os documentos dos sobas, da jurisdição do presídio de Ambaca, só eram reconhecidos como
autênticos se o escrivão oficial do presídio os registrasse. Logo, a administração colonial
reconhecia as terras das linhagens desde que fossem atestadas pelos seus funcionários. Mais
uma vez, nota-se a dependência dos chefes africanos dos funcionários dos presídios, já que
eram eles que registravam e autentificavam seus “testamentos”.
Para Sebestyèn, esses títulos serviam a dois propósitos. Atendiam às “exigências
portuguesas na medida em que relatavam detalhadamente os limites do sobado e os nomes
dos sobados vizinhos”60. Ao mesmo tempo, os registros serviam para salvaguardar a história
da linhagem: sua origem, as migrações, o primeiro assentamento, as guerras locais, as
alianças. Todas as vezes que um novo chefe era eleito, os limites do sobado eram
reconfirmados, com a inspeção de suas fronteiras.
Os limites dos terrenos eram determinados de forma diferente entre os Ambundos,
detinham conotação espiritual. No testamento de Dom Miguel Soba Caxinda Candala, de
1782, o soba descreve que as razões da migração de seu povo – “vendo que o meu povo era
bastante e não tinha cômodo para agricultarem”; as alianças que fez com outros sobas para
ocupar novas terras; os riachos e rios que serviam de marcadores dos terrenos, além de outras
marcações particulares – “pondo suas marcações”61. Segundo Sebestyèn, as marcas
fronteiriças utilizadas eram árvores específicas, que a autora descobriu terem propriedades
medicinais, “árvores com o desenho de uma cruz, pedaços de argila, pedaços de ferro,
pedras”, panelas de barros entre outros62. Em rituais anuais ligados a terra, os sobas recorrem
ao apoio dos seus antepassados e entidades da água, “nas margens dos rios fronteiriços para
59
Eva Sebestyén, “Legitimation through Landcharters in Ambundu Villages, Angola”, p. 364.
60
Idem, p. 365.
61
Agradeço a Roquinaldo Ferreira por ter compartilhado esse documento com os pesquisadores do
Cecult/Unicamp. Testamento de Dom Miguel Soba Caxinda Candala, 15 de maio de 1782, s.l. AHA, Caixa 3465
(Avulsos) - Ambaca.
62
Eva Sebestyén, “Legitimation through Landcharters in Ambundu Villages, Angola”, p. 365.
98
conseguirem boa colheita através da oferta às sereias, quiximbi donos dos rios, protetores da
terra”63.
Se levarmos em conta que esses não são os primeiros escritos guardados por
titulares de linhagens dessa região que chegaram ao nosso conhecimento64, é provável que os
sobas da antiga província da Ilamba também tivessem títulos para comprovar a posse
linhageira de suas terras e que os tenham apresentado para o governador65. Talvez, foi por
conhecer os documentos guardados pelos sobas que Sousa Coutinho usou a analogia ao
“morgado”, pois não poderia ser mais apropriada. No morgado “português”, a herança seguia
a linha paterna: filhos, netos, etc. Os Ambundos são de tradição matrilinear, portanto,
teoricamente, não seria a família do pai a preferida na sucessão, mas sim a da mãe. Todavia
não é o que Sebestyèn verifica: a transmissão dos títulos ocorria na linha patrilinear, o filho ou
a filha do soba tornava-se o herdeiro, protetor das terras da linhagem. No sentido prático, era
mesmo um morgado. A autora considera a hipótese de que a convivência com os portugueses
teria trazido essa mudança na transmissão e acesso à terra.
Nos documentos consultados, não há menção ao soba Muxixi ou aos sobas de
Muxima, o que indica que a disputa pelas terras não se dava apenas entre funcionários régios,
moradores e autoridades tradicionais centro-africanas. A posse de terras era também uma
questão geradora de conflitos entre os próprios sobas, e destes com os ilamba e imbari. Isso
se confirma, principalmente, no que diz respeito às terras da Ilamba Alta, com suas ricas
minhas de ferro.
Os ilamba, oficiais da guerra preta, segundo Beatrix Heintze, eram
recompensados “pelos seus leais serviços prestados com terrenos nas regiões dos [sobas]
vassalos”66. As terras onde foi fundada a fábrica de Novo Belém eram do Kilamba Ngongue a
Kamukala, ao redor de Nova Oeiras se encontravam terras do Kilamba Pedro Ambaxi e o
soba Muxixi, que reivindicava terras no Luinha, aparece em outra documentação como
63
Eva Sebestyén, “O contexto cultural dos marcos de terrenos nas aldeias Ambundu/ Angola”, p. 93.
64
Há ainda, pelo menos, o “Arquivo de Estado do Ndembu Kakulu Kakaenda”, composto por 210 documentos
trocados entre o ndembu e administração colonial, datados do século XVIII ao XX. Ana Paula Tavares e
Catarina Madeira Santos (ed.), Africae Monumenta. A Apropriação da escrita pelos africanos. Lisboa: Instituto
de Investigação Científica e Tropical, v. I, 2002.
65
É interessante observar que já no avançar do século XIX, em 1860, o soba Quipola, de Môssamedes, que
reclamava que a posse de terras que foram ocupadas por brancos para o desenvolvimento da agricultura,
solicitasse que o governador lhe entregasse o “título da terra” para comprovar que era o legítimo dono. O pedido
endossa o argumento de que a posse linhageira precisava ser atestada pelas autoridades coloniais. Mariana
Candido, “Conquest, occupation, colonialism and exclusion: land disputes in Angola”, p. 224.
66
Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 451; Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c.
1760-1845”, p. 7 e 8. Apesar de o plural de kilamba corresponder exatamente ao nome desta região (Ilamba) não
conhecemos as razões desta coincidência. Sabemos que os ilamba recebiam terras em contrapartida à sua
participação na guerra preta. Mas todas essas terras teriam sido doadas aos ilamba? É uma questão para qual não
temos resposta, pois não temos elementos mais para avançar na análise.
99
kilamba67. Heintze e Vansina também sugerem que os ilamba poderiam se tornar sobas, com
o tempo. Contudo, parece haver um consenso nas fontes de que o kilamba ocupava parte das
terras dos sobas, inclusive para melhor espioná-los, porém não teria seus próprios terrenos68.
Os casos aqui apresentados sugerem que ao menos alguns chegaram a ter terras.
Provavelmente havia ilamba, sobretudo os primeiros que se associaram aos portugueses, que
se tornaram senhores de terras, recursos naturais e gentes e, que quiçá até passaram a ser
inseridos nos mecanismos políticos de parentesco, chegando a ser sobas. Já outros não foram
tão bem-sucedidos, permanecendo nos terrenos dos sobas, assim como muitos sobas menores,
ou sobetas, que eram congregados nas terras de um soba mais poderoso69. Porém, é preciso
lembrar que os ilamba não eram bem vistos (“odiados”) pelos sobas por causa de suas
práticas de espionagem e alianças com os portugueses70, haja vista que muitos sobas podem
ter sido subjugados ao domínio colonial pela ação dos ilamba, os capitães da guerra preta.
As contendas em torno das terras eram “causas eternas”, como citado em
documento anterior. O embate pelos terrenos na Ilamba se desenrolou e outra personagem
apareceu para requerer as terras - um “negro calçado” cujo nome não foi mencionado em
fevereiro de 176871. É provável que este homem seja João Correia, que apresentou uma
petição com o “título de senhor das terras em que se fundou a Nova Oeiras” para a Real
Fazenda um ano depois, em fevereiro de 1769. Neste documento ele disse possuir uma
lavoura de tabaco naquela localidade, bem como lucrar com a passagem dos rios Luinha e
Lukala, ao alugar suas canoas para que comerciantes e viajantes atravessassem os rios. Com a
povoação e o início da construção da fábrica, ele perdeu seus negócios e teve grande prejuízo.
As ordens vindas de Luanda mais uma vez requeriam que fossem apresentados “os títulos em
que funda o dito senhorio”, que se inquirissem a testemunhas “verdadeiras e livre[s] de toda a
suspeita” para saber se as terras eram cultivadas e o quanto rendiam e também em que se
assentava o direito de passagem dos rios72.
67
Carta de FISC aos capitães-mores de todos os presídios e distritos sobre o undamento dos sobas e mais
potentados. São Paulo de Assunção de Luanda, 3 de outubro de 1770. AHU_CU_001, Cx. 55, D. 6 e 7.
68
Ver glossário.
69
Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”, 2005, p. 8.
70
O sentimento de ódio registrado por Cadornega era tão patente que nos documentos encontrados por
Sebestyén uma frase é recorrente: “somos vassalos da Majestade não quer sujação [sujeição] de serviço de
empacaceiro, quilamba e quimbar”. Os sobas não pareceriam querer que sua identidade fosse associada à dos
ilamba e imbari. Eva Sebestyén, “O contexto cultural dos marcos de terrenos nas aldeias Ambundu/ Angola”, p.
92.
71
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira Intendente Geral das Reais Fábricas de Ferro. São
Paulo de Assunção de Luanda, 10 de fevereiro de 1768. IEB/USP AL-083-009.
72
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente geral das fábricas de ferro. São Paulo de
Assunção de Luanda, 27 de fevereiro de 1769. IEB/USP, AL-083-223.
100
73
“Instrução porque se hão de governar o Intendente geral Antonio Anselmo Duarte de Siqueira na diligência
que agora faz para a Nova Oeiras com os Capitães Manoel Antonio Tavares, Antonio de Bessa Teixeira e
Joaquim de Bessa Teixeira a qual deve cada um guardar na parte que lhe é respectiva e por ela responder”. São
Paulo de Assunção de Luanda, 2 de junho de 1769. IEB-USP, Al-083-254.
74
As mulheres locais se tornavam grandes proprietárias de arimos no hinterland de Luanda quando as herdavam
como a terça de antigos senhores ou por conta do falecimento do marido - europeus ou luso-europeus
enriquecidos. Associando essas propriedades a outras como escravos, casas, lojas, tavernas, enriqueciam e
passavam a ser conhecidas como donas. Selma Pantoja, “Donas de arimos: um negócio feminino no
abastecimento de gêneros alimentício em Luanda (séculos XVIII e XIX)”. In: Selma Pantoja (org.). Entre
Áfricas e Brasis. Brasília: Paralelo Editores, 2001, p. 35-49.
75
Eugénia Rodrigues, Eugénia Rodrigues, Portugueses e Africanos nos rios de Sena, p. 27.
101
76
Mariana Candido, “Conquest, occupation, colonialism and exclusion: land disputes in Angola”, p. 224.
77
Carta para o capitão de Moçâmedes do secretário do governo de Angola. Moçâmedes, 22 de maio de 1849.
AHA, Códice – 326, fl. 78v. Ver: Mariza de Carvalho Soares, “Trocando Galanteria: A diplomacia do comércio
de escravos, Brasil-Daomé, 1810-1812”. Afro-Ásia, 49, 2014, p. 229-271.
78
Para a África Subsaariana, pesquisas arqueológicas mostram que a fundição de ferro ocorreu de forma
independente, ou seja, não foi importada para a região de outros lugares. Outro importante achado é sobre a
noção de que a redução do ferro por ser muito complexa teria derivado de experimentos com o cobre, como
consequência de uma tradição “piro-metalúrgica”. Arqueólogos consideram essa questão controversa, mas após
a revisão de novas evidências, dizem que não há qualquer tradição piro-metalúrgica na África que tenha dado
origem a fundição do ferro. Manfred K. H. Eggert, “Early Iron in West and Central Africa”, In: Peter Breunig
(ed.), Nok. African sculpture in archaeological context. Frankfurt: Africa Magna Verlag, 2014, p. 50-59. Há
muitos de estudos sobre a origem e o desenvolvimento da mineração de ferro na África. Destaco algumas
coletâneas e artigos: P. R. Schmidt (ed.), The Culture and Technology of African Iron Production. Gainesville:
University Press of Florida, 1996; Hamady Bocoum (ed.), The origins of Iron Metallurgy in Africa. New light on
102
Colleen Kriger em seu livro sobre os ferreiros na África Central traçou todo o
percurso da história da exploração de metais na região. Os estudos arqueológicos revelam
uma grande quantidade de instrumentos de metal. Apesar da similaridade das funções, os
objetos variavam muito, isso demonstra uma ampla variedade de técnicas de forja do ferro,
sugerindo que os ferreiros desenvolviam técnicas distintas nas suas muitas oficinas e que
havia um grande mercado de produtos de ferro e cobre80. As barras de ferro produzidas na
Ilamba poderiam ser comercializadas ou transformadas na forja de ferreiros centro-africanos
em objetos destinados a diversos fins, que alimentavam uma intensa rede de mercadorias.
O ferro era a matéria-prima utilizada para fazer ferramentas para a agricultura,
para pesca, para caça, para armas de guerra, para objetos ornamentais (braceletes, pulseiras,
colares), para o tráfico de escravos e para confeccionar objetos sagrados - zagaias, cutelos,
machadinhas, enxadas, catanas, correntes, grilhões. O metal também era moeda importante no
continente africano para o tráfico de escravos: as elites locais exigiam ser pagas com cauris,
barras de ferro e cobre, manilhas81, instrumentos de guerra e peças de metais. O ferro e o aço
produzidos em muitas partes da África tinham qualidade igual ou superior às barras
fornecidas pelos europeus. O controle desta tecnologia permitia uma maior exploração da
agricultura, o que levava ao incremento da produção de alimentos e atraía também um maior
its antiquity. West and Central Africa. Barcelona: Unesco, 2004; J. O. Vogel (ed.), Ancient African Metallurgy:
The Sociocultural Context. Walnut Creek: Aka Mira Press, 2000; S. B. Alpern. “Did they or didn‘t they invent
It? Iron in Sub-Saharan Africa”. History in Africa, 32, 2005, p. 41–94; B. Clist, “Vers une réduction des préjugés
et la fonte des antagonismes: Un bilan de l’expansion de la métallurgie du fer en Afrique sudsaharienne”.
Journal of African Archaeology, 10 (1), 2012, p. 71–84. Um estudo de história clássico é Walter Cline, Mining
and metallurgy in Negro Africa. Menasha: George Banta Publishing Company Agent, 1937.
79
Em alguns lugares, os africanos trabalhavam em fornos com ar pré-aquecido, técnica conhecida na Grã-
Bretanha somente em 1828, que resultava em um ferro com maior teor de carbono, mais especificamente, o aço.
O inglês Nielsen foi o responsável por essa melhoria técnica na Europa: o aquecimento do ar insuflado no forno
reduzia a necessidade de carvão. Candice L. Goucher, “Iron is Iron 'Til it is Rust: Trade and Ecology in the
Decline of West African Iron-Smelting”. The Journal of African History, v. 22, n. 2, 1981, p. 181; S. T. Childs
and E. Herbert, “Metallurgy and its Consequences”, In: A. Stahl (ed.) African Archaeology: A Critical
Introduction. London: Blackwell, 2005, p. 276-301; John Thornton, A África e os africanos na formação do
mundo atlântico, 1400-1800, p. 90-93. Sobre a metalurgia do ferro na África Ocidental, ver: Walter Rodney,
History of the Upper Guinea Coast, 1545-1800. New York: Oxford University Press, 1970, p. 186 e ss; P. de
Barros, “Societal Repercussions of the Rise of Traditional Iron Production: A West African Example”, African
Archaeological Review, n. 6, 1988, p. 91–115.
80
Colleen E. Kriger, Pride of Men: Ironworking in 19th Century, West Central Africa, Porthsmouth: N. H:
Heinemann, 1999, p. 29-44. Para a África Central é importante notar que arqueólogos, etnógrafos e historiadores
já não mais sustentam que a expansão Bantu se deveu ao domínio da metalurgia do ferro. Grupos falantes de
outras línguas foram igualmente importantes para a evolução da tecnológica de fundição de ferro. D. L.
Schoenbrun, A Green Place, A Good Place: Agrarian Change, Gender, and Social Identity in the Great Lakes
Region to the 15th Century. Portsmouth: Heinemann, 1998, p. 71; Eugenia W. Herbert, “African Metallurgy:
The Historian's Dilemma”. Mediterranean Archaeology, v. 14, 1999, p.41-48.
81
A manilha era um bracelete de metal, “geralmente de cobre ou latão, cuja circunferência não se fecha
inteiramente, como se fosse um ‘C’. Usava-se como adorno nos braços ou nos tornozelos e sobretudo, talvez já
antes da chegada dos portugueses aos litorais africanos, como moeda”. Alberto da Costa e Silva, A manilha e o
libambo. A África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 9.
103
contingente populacional. Isso, por conseguinte, garantia mais poder aos soberanos, pois era o
controle de uma grande quantidade de dependentes que legitimava o poder das elites locais.
No Reino do Ndongo, os ferreiros da Ilamba produziam uma série de produtos de
ferro “instrumentos músicos, alfaias domésticas e armas”82. Segundo Beatrix Heintze, já na
primeira metade do século XVI, o Ndongo dispunha um comércio interno bem organizado,
“não só o sal, mas também o cobre, os artigos de ferro, o marfim, o óleo de palma, bem como
o gado graúdo e miúdo desempenhavam um papel especial”83. Ao lado de penas, cascas de
caracóis, missangas importadas, corais falsos, caudas de elefantes (xinga, kimbundu:
muxinga) e pinturas do corpo, as argolas de metal (kimbundu: dilunga, pl. malunga) e brincos
eram adornos muito apreciados entre os Ambundos84.
Os sinos também eram importantes, pois eram utilizados para promover a
comunicação – “embora fosse um instrumento muito pequeno, ouvia-se a uma grande
distância”85. Entre os Ambundos e os Mbangala o sino duplo sem badalo era instrumento
militar e objeto ritual, poderia ser untado com sangue de sacrifício, trazendo sucesso para os
combates. Quando passou a ser usado por agentes da guerra preta dos portugueses, o sino
duplo perdeu muito de seu valor sagrado86.
Colleen Kriger aponta para a utilização de diferentes metais na confecção de
algumas peças, como ligas de ferro e cobre. Também indica usos que as fontes setecentistas
silenciam como é o caso do pagamento de dotes com barras de ferro, ligas de cobre, flechas,
lanças, facas, armas além de escravos, cabras, ovelhas e cães. Como a autora explica, o dote
era uma forma de concentrar fortunas nas mãos dos homens, fora isso, era uma maneira de
circular e redistribuir riquezas e uma oportunidade para indivíduos assumirem diferentes
papéis na hierarquia social87.
Isabel de Castro Henriques é outra autora que fez um levantamento cuidadoso
sobre os usos do ferro em Angola, entre eles, destaca os instrumentos musicais que não
82
Carta de Miguel Antonio de Melo, governador de Angola, para Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de
Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Luanda, 19 de dezembro de 1797. In: Arquivos de Angola, v. IV,
nº 52 a 54, 1939, p. 259-262.
83
Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 232.
84
Idem, p. 592.
85
Idem, p. 605.
86
Idem, p. 609.
87
Colleen E. Kriger, Pride of Men: Ironworking in 19th Century, West Central Africa, p. 198. Entre as coleções
de objetos de ferro da África Central, destaca-se a do Congo Belga que se encontra no Royal Museum for
Central Africa, em Tervuren, Bélgica. Estive em Tervuren, mas não pude visitar o museu porque ele está
passando por uma grande reforma que se estenderá até 2018. O mesmo aconteceu em Luanda, o Museu Nacional
de Antropologia está também fechado para reformulação do acervo. Apesar do senhor Antonio gentilmente me
mostrar parte da coleção, toda a parte dedicada à ferraria estava inacessível.
104
1 2 3 4
8
5 6
88
Isabel de Castro Henriques, Percursos da modernidade em Angola. Dinâmicas e transformações sociais no
século XIX. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical; Instituto da Cooperação Portuguesa, 1997, p.
323.
89
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
Secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 9 de maio de 1762. BNP, C.
8553, F. 6362, fl. 2 e 3.
105
Fontes: 1 – Machado – emblema de autoridade. Ferro. Tervuren, Musée Royal de l’Afrique Centrale.In: Jill Dias, Nas
vésperas do mundo moderno: África, p. 140; 2 – machadinha de guerra dos Mbangala; 3 – Machadinha Ovimbundu (Sul do
Kwanza); 4 - Machadinha ou enxada, que Njinga trazia no cinto na imagem anterior; 5 – Tambor usado na corte de Njinga.
Giovanni Antonio Cavazzi de Montecúccolo. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola; 6 – Sinos
duplos, o primeiro é Mbangala, o segundo Ovimbundu e o terceiro foi retirado do desenho de um guerreiro de Njinga; 7 –
Sineta dupla. Museu Nacional de Etnologia (Portugal), AU.457, Angola; 8 – Adornos para uma noiva, Nigéria, alguns com
funções medicinais. Walter E. A. van Beek, “The Iron Bride: blacksmith, iron and feminity among the Kapsiki/ Higi”. In:
Nicholas David, Metals in Mandara Mountains society and culture. New Jersey: Africa World Press, 2012.
Obs: os números 2, 3, 4, e 6 foram copiados de Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 599 e ss.
90
Joseph C. Miller, Poder político e parentesco, p. 66-67.
91
Juliana Ribeiro da Silva, Homens de ferro. Os ferreiros na África Central no século XIX, p. 84.
92
Antonio de Oliveira Cadornega, História das Guerras Angolanas (1680), v. III, p. 241.
106
1 2 3 4 5
Fontes:1 – Rainha Nzinga com arco e flecha e machado. (o uso da coroa é uma adaptação de Cavazzi à imagem que ele tinha
de signos de realeza), Giovanni Antonio Cavazzi de Montecúccolo. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba
e Angola; 2 e 3 – Representação do Rei de Angola, armas arco, zagaia, machado e lança. Antonio de Oliveira Cadornega,
História das Guerras Angolanas (1680), v. III; 4 – O Ndembu Kakulu Kakaenda “com todas as suas insígnias: barrete,
casaco de uniforme militar com galões; colete bordado; saco de pele à tiracolo; dois bastões”. 5 – Bastão do Ndembu Kakulu
Kakaenda, Museu da Sociedade de Geografia de Lisboa. 4 e 5 foram copiados de Ana Paula Tavares e Catarina Madeira
Santos (ed.), Africae Monumenta. A Apropriação da escrita pelos africanos, p. 454 e 457.
Assim como ocorreu com os sinos duplos, que assumiram uma função mais
profana, é de se esperar que, no século XVIII, a presença portuguesa já tivesse produzido
algumas transformações na forma como os Ambundos lidavam com os instrumentos de metal.
Esse é o exemplo da malunga. O militar Silva Correa mencionou sobre a malunga no
contexto do tráfico de escravos, traduzida por ele como “argola de ferro que prende as mãos a
uma cumprida corrente”93. Cecile Fromont descreveu outro uso do malunga no Reino do
Kongo, onde designava um bracelete utilizado em cerimônias de sucessão e estaria, portanto,
relacionada à realeza94. Entre os Ambundos a lunga, singular de malunga, era uma relíquia
sagrada tal como o ngola, que conferia ao seu possuidor o controle sobre a fertilidade da terra
e as chuvas95. Há também a reminiscência da ideia de bracelete, o uso como adorno. Segundo
B. Heintze, a rainha Nzinga quando da sua conversão lançou ao fogo todas as malunga (mais
93
Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola. Lisboa: Clássicos da Expansão Portuguesa no Mundo.
Império Africano. Série E, vol. I, p. 96.
94
Cecile Fromont considera que o bracelete malunga concede ao rei uma série de atributos oriundos de uma rede
de associações semânticas e visuais relacionadas à sua raiz linguística, ao material (ferro) e à sua forma (argola).
Para apresentar apenas um destes aspectos, a palavra malunga pertence a um grande grupo lexical nas línguas
bantu que agrega a ideia de divindade, infinidade, perfeição no sentido de realização, bem como, noções de
poder e força moral. Cecile Fromont, The art of conversion: Christian Visual Cutlture in the Kingdom of Kongo.
Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2014, p. 40. Um significado aproximado a ideia de ritual, de
sagrado, aparece no dicionário de Assis Junior: “instrumentos sonoros por meio dos quais se invocam certos
espíritos”. Antonio de Assis Júnior, Dicionário Kimbundu-português, linguístico, botânico, histórico e
corográfico. Seguido de um índice alfabético dos nomes próprios, verbete “malunga”, p. 276.
95
Joseph C. Miller, Poder político e parentesco, p. 62.
107
96
Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 594.
97
Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola, vol. I, p. 96. A malunga também poderia se referir
apenas a uma argola com finalidades ornamentais.
98
Sebestyèn contou que os ndembu que guardavam os seus “títulos de terra” como documentos sagrados usavam
a malunga emblema de poder. Eve Sebestyèn, “Legitimation through Landcharters in Ambundu Villages,
Angola”, p. 363.
99
“Instrução que deve guardar Antonio Anselmo Duarte de Siqueira servindo o emprego de intendente geral da
Fábrica do Ferro e que executaram também os capitães mores como intendentes particulares na parte que lhes é
respectiva”. São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de janeiro de 1767. AHU_CU_001, Cx. 52, Doc. 73. Carta de
FISC para Francisco Matoso de Andrade, capitão-mor de Ambaca. São Paulo de Assunção de Luanda, 25 de
maio de 1767. BNP, C – 8742, F – 6364, fl. 182v. “(..) achando vossa mercê ferreiros da Ilamba, ou fundidores
os mande ao dito intendente, porém com os dessa província não entenda mais que para os fazer trabalhar nestes
meses do cacibo [de seca] ferro de que o povo possa fazer as suas enxadas, libambos, e mais instrumentos para a
sua agricultura e comércio, o que tudo se entende para o próprio tráfico das gentes”.
100
Em kimbundu, lubambu, significa uma cadeia, grilhão, corrente, e era tão comum que se tornou sinônimo de
caravana de escravos. Uma palavra que ficou conhecida no clássico A manilha e o libambo de Alberto da Costa e
Silva, em que há uma descrição mais precisa: “punha-se nesta, de frente, o pescoço de um aflito e se fechava a
bifurcação com pedaço de pau muito bem amarrado. Num outro infeliz, a forqueta ia apoiar-se na nuca,
fechando-se depois na goela”. Alberto da Costa e Silva, A manilha e o libambo. A África e a escravidão de 1500
a 1700, p. 9.
108
necessidade deles é um indicativo de que as fugas eram rotineiras), mas também era uma
forma de tortura101.
Miller explicou como os agentes do tráfico agiam nas caravanas, com receio de
que os escravos fugissem, se revoltassem ou que lançassem algum feitiço contra eles ou que
os livrassem das cadeias, os deixavam extenuados com pouco suprimento de comida e bebida
e constantes castigos físicos. Os instrumentos para infligir as torturas eram zagaias, lanças,
algemas, o próprio libambo. A prática de marcar os cativos com ferro quente também foi uma
prática de longa data que visava evitar a troca por “peças” de menor valor102. Quem fabricava
esses objetos? O quanto o tráfico de escravos fez emergir um mercado de produtos de ferro
não só no Reino de Angola, mas em todo o mundo Atlântico? São perguntas que ajudam a
pensar na dimensão que tinha o trabalho de um fundidor e de um ferreiro em suas oficinas no
interior de Angola. Os objetos abaixo eram de uso rotineiro nas sociedades escravistas nos
dois lados do Atlântico; os elementos materiais da cultura são fundamentais para entender a
lide do trabalho com os metais.
3
4
Fontes:1 – peia e libambo. Museu Municipal Francisco Manoel Franco (Itaúna, MG); 2- libambos e gonilhas.
Biblioteca Nacional (RJ), Coleção Arthur Ramos; 3- Algemas. Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. 4 -
Conjunto de peças destinadas a castigar, imobilizar e marcar escravos no Brasil: viramundo, libambo, cinto de
ferro, palmatória, mordaça, gargalheiras, algema com cadeado e ferros de marcar. Museu Histórico Nacional
(RJ).
101
Segundo Silvia Lara, “facilmente um instrumento de captura se transforma em suplício ou tem um efeito de
aviltamento moral”. Silvia Hunold Lara, Campos da Violência. Escravos e senhores na Capitania do Rio de
Janeiro (1750-1808). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 73-74.
102
Joseph Miller, Way of death, p. 193-195.
109
103
Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 601.
104
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
Secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 18 de janeiro de 1759. BNP,
C. 8553, F. 6362, fl. 1 e 2.
105
Manuel Correa Leitão, “Uma viagem a Cassange nos meados do século XVIII [1755]”, editado por Gatão de
Sousa Dias. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, série 56, n. 1 e 2, 1938, p. 20.
106
Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Conselheiro de Estado, Ministro e Secretário dos Negócios
da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, para FISC, governador de Angola. Palácio de Nossa Senhora da
Ajuda, 30 de abril de 1768. AHU, Códice 472, fl. 153-155.
107
Bluteau define partasana (grafada com “s”) como “uma espécie de alabarda, mas com o ferro mais cumprido
e mais largo”. Alabarda é uma “arma ofensiva e defensiva da qual usam os arqueiros na guarda dos príncipes, e
nas batalhas os alferes. Dizem que foi inventada em Albania, donde tomou o nome”. Raphael Bluteau,
Vocabulário portuguez e latino, verbetes “partasana e “albarda”.
108
John Thornton, “Art of war in Angola, 1575-1686”. Comparative Studies in Society and History, v. 30, n. 2,
1988, p. 361.Como mostrou Roquinaldo Ferreira, as tropas brasileiras enviadas para a Angola e o uso de cavalos
foram também relevantes para fortalecer a presença militar portuguesa em Angola. Transforming Atlantic
110
Slaving. Trade, Warfare and Territorial Control in Angola, 1650-1800. Tese (Doutorado) - University of
California, Los Angeles, 2003, p. 159-171.
109
FISC envia a carga de ferro (15 quintais, sendo aproximadamente 1 quintal=60 kg, 900 kg de ferro) por meio
de um comerciante, Francisco Ferreira Guimarães, e encomenda ao Conde de Azambuja, Antônio Rolim de
Moura Tavares, então vice-rei do Estado do Brasil, que supervisionasse junto a Francisco Guimarães a
fabricação das partazanas. Carta de FISC para Francisco Ferreira Guimarães. São Paulo de Assunção de Luanda,
13 de fevereiro de 1768. AHA, Códice 79, Fl. 78v – 80. Carta de FISC para o Conde da Cunha, António Álvares
da Cunha, vice-rei do Estado do Brasil [provavelmente um engano no nome do destinatário, em 1768 o vice-rei
do Estado do Brasil já era o sucessor do Conde da Cunha, o Conde de Azambuja]. São Paulo de Assunção de
Luanda, 15 de fevereiro de 1768. AHA, Códice 79, fl. 80. Carta de FISC para Francisco Ferreira Guimarães. São
Paulo de Assunção de Luanda, 16 de janeiro de 1762. AHA, Códice 79, 192v.
110
Carta de FISC sem destinatário. Lisboa, 16 de setembro de 1773. BNP, C 8553, F6362.
111
Memórias do Reino de Angola e suas conquistas escritas por D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho,
governador e capitão general do Reino de Angola, escritas entre 1773 a 1775. Torre do Tombo, Condes de
Linhares, mç. 44, doc. 2, fl. 42. Temos poucos dados obre a importação deste metal em Luanda. Os comandantes
da Galera de São José e Nossa Senhora do Rosário, em 1756, apresentaram uma “carregação” feita na cidade de
Lisboa e entregue em Luanda. Entre os itens listados, encontramos “12 quintais de ferro de Biscaia”, “dois
arráteis de aço”, “três aparelhos com três facas flamengas”. No “Livro de receita e despesa da Fazenda Real do
Reino de Angola do ano de 1765”, foram registrados gastos com o ferro no total de 352$000 que compraram
aproximadamente 1 tonelada e 100 quilos do metal (159 quintais, 10 arrobas e 111 libras). Nem sempre a origem
da importação destes materiais foi anotada, embora o embarque no Rio de Janeiro seja citado frequentemente.
No caso de ferramentas - enxadas, pás de ferro, picaretas, alavancas grandes, marretas -, elas aparecem
importadas do Rio de Janeiro e têm por finalidade auxiliar a construção das obras reais. Um total de 143$915
foram gastos em 1765 com estes instrumentos. Para o ano de 1781, um total de 607$274 foram despendidos com
custos e gastos de madeiras e ferragens também para os serviços das obras reais. Terceiro livro da receita e
111
afirmar que na região da Ilamba e vizinhança não havia importação de ferro da Europa, que
sabemos que existia, e mesmo de outras áreas da África Centro-Ocidental. O comércio interno
controlado por africanos acontecia também com outros metais que poderiam entrar no Reino
de Angola por redes comerciais internas, “terra adentro”, como citou Vasconcelos. Em 1801,
o comerciante Joaquim Correa Pinto, “homem preto”, natural do Reino de Angola, que se
trajava “à maneira europeia”, fornece informações sobre o cobre que se comerciava na Feira
de Kasanje. Segundo Correa Pinto, as barras de cobre eram fabricadas na nação Mulua
(também chamada “Mwaant Yaav”, que ficou conhecido como o Império Lunda) e depois
compradas pelos vassalos do Jaga Kasanje112. Este potentado, por sua vez, comerciava o
metal em uma feira nos limites de seu território, mas não permitia que os feirantes vassalos da
Coroa de Portugal negociassem diretamente com os Mulua tampouco que fossem até as terras
que habitavam113. Assim, além de controlar o tráfico de escravos na região, o potentado
Mbangala Kasanje também dominava o acesso a mercadorias importantes, como o cobre em
barras ou já transformado em instrumentos.
Pedro João Baptista em sua “viagem para Angola para Rios de Senna”114, em
1802, afirmou ter encontrado ferro na região Lunda-kazembe (dos Mulua, acima citados). Ele
despesa da Tesouraria Geral [da Junta da Administração da Fazenda Real] deste Reino de Angola. Palácio de
São Paulo de Assunção de Luanda. 08 de janeiro de 1780. AHTC, Erário Régio, 4191. Embora o escrivão tenha
assinado na capa do livro na data de 1780, o livro também foi usado para registrar o ano de 1781, por isso, os
dados que citamos foram anotados para este ano.
112
Segundo Isabel de Castro, o cobre encontrado em Lunda poderia ser produzido em Kazembe, um tributário do
Mwaant Yaav. Isabel de Castro Henriques, Percursos da modernidade em Angola. Dinâmicas e transformações
sociais no século XIX, p. 313.
113
Carta de Miguel Antonio de Melo, governador de Angola, para Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de
estado da marinha e do ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 21 de outubro de 1801. AHU_CU_001, Cx.
102, D. 26. Manoel Correa Leitão, em 1755, descreve o Mulua como “muito poderoso e de seus senhorios e
domínios saem capitães despedidos por ele para oeste, para norte e para sul e mais partes, com tropas de
muitíssimas gentes, a fazer conquistas de escravos, que vendem conforme a parte mais vizinha onde os tomam
como para Benguela e para as partes onde se encaminham para Kasanje, para Holo, até para os reinos do Kongo,
So. Sos (sic), Quiiacas, quilubas, ungus, que todos têm metido debaixo de sua forte espada, tão valorosos e
temidos pelos estragos que tem feito em todos os domínios de quantos há, que basta a notícia do seu nome para
vencerem; de tal sorte que hoje já chegam a vender gente aos confinantes dos Ndembu Ambuela e Mutemos;
grandes homens por certo e tão famosos entre as nações de todos esses tão dilatados matos, que não se fala em
outra coisa; é certo que , a não serem eles, não teríamos tantos escravos, porque eles, pela sua ambição e fama de
vencer, feitos águias terrestres, correm terras tão remotas de sua pátria, só para azerem senhores de outras
gentes”. Manuel Correa Leitão, “Uma viagem a Cassange nos meados do século XVIII”. “O império Lunda do
Mwant Yaav - assim é vulgarmente referido na literatura - estendia-se, a quando do seu apogeu, do rio Kwango,
a oeste (Kasongo-Lunda), até ao Luapula, a este, tendo o seu movimento de expansão afetado a história desta
vasta área da África central até começos ou meados do século XIX”. Manuela Palmerim, “Identidade e heróis
civilizadores: "l'Empirelunda" e os aruwund do Congo”. In: 1ª Jornada de Antropologia intitulada
“Modernidades, etnicidades, identidades”. Universidade do Minho, 1998. Disponível:
http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/5319/3/Identidade%20e%20heróis.pdf. Acesso em:
02/08/2016.
114
Pedro João Baptista, “Viagem de Angola para Rios de Senna”, “Explorações dos portugueses no interior
d’África meridional (...) Documentos relativos à”. Anais Marítimos e Coloniais, Lisboa, III, 5, 1843. Apud Isabel
112
encontrou a fabricação de barras de ferro que seriam entregues como tributo ao Quiburi (chefe
Kazembe da salina de mesmo nome) que o mandaria ao Mwaant Yaav. Este pode ser mais uso
do ferro, servir como tributo a ser entregue às chefias locais, como o era o grande Mwaant
Yaav. O viajante também observou que os ferreiros trocavam suas barras por farinha e outros
mantimentos, o que também mostra uma complementariedade do complexo mercado interno
centro-africano115.
Em sua viagem ao território do potentado Kasanje em 1755, Manoel Correa
Leitão reconhecia que o “grande Kasanje” era a barreira, à leste, que impedia avanço dos
portugueses pelo interior dos sertões nas proximidades do rio Kwango. Ele afirma haver
muito ferro, cobre e latão nesse território, além de descrever em pormenor as armas que eram
utilizadas: flechas de ferro e pau, “catana larga cinco polegadas e do comprimento de três
palmos”, “cinco ou seis lancinhas curtas com choupa [ponta comprida e afiada] de ferro”,
facas, rodelas, lanças116. Apesar de não entrar em pormenores sobre a exploração de minerais
nesta localidade, a leitura deste documento fornece indícios de que também o ferro, além do
cobre, era uma mercadoria controlada pelo potentado de Kasanje, ou ainda, que era produzida
por trabalhadores especializados nesta localidade.
Estes fragmentos mostram que há circuitos comerciais de metais controlados pelas
elites dos grandes potentados africanos sobre os quais pouco sabemos, mas que com certeza
foram intensificados com o tráfico de escravos. Na região costeira, por exemplo, além dos
portos de Luanda e Benguela, valendo-se das rotas de escravos no sul do Kongo, novas redes
de comércio levavam a outros pontos no norte, Loango, Cabinda, Molembo, que eram
controlados por franceses, holandeses e ingleses117.
de Castro Henriques, Percursos da modernidade em Angola. Dinâmicas e transformações sociais no século XIX,
p. 312.
115
Isabel de Castro Henriques lançou uma questão que permanece sem resposta: como as mulheres eram
responsáveis pela agricultura entre os Lunda, ser solteiro seria um requisito do ofício de ferreiro, uma vez que
precisavam trocar suas ferramentas por alimento? Eugenia Herbert tece considerações sobre o afastamento das
mulheres dos rituais de fundição de ferro, sobretudo quando menstruadas. A autora também fala sobre como
esses ritos demandavam abstinência sexual. Enfim, são questões importantes e com certeza estão interligadas,
mas faltam elementos para chegar a uma conclusão definitiva no momento, principalmente para os ferreiros da
Ilamba. Isabel de Castro Henriques, Percursos da modernidade em Angola. Dinâmicas e transformações sociais
no século XIX, p. 312-315. Eugenia W. Herbert, Iron, gender and power. Rituals of transformation in African
Societies. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, p. 79.
116
Manuel Correa Leitão, “Uma viagem a Cassange nos meados do século XVIII”, p. 20. As observações atentas
do sargento-mor Manuel Correa, natural da cidade de Luanda, “pessoa prática e inteligente no conhecimento e
línguas destes sertões” são fruto do olhar de um militar que foi mandado para aquelas terras com o objetivo de
atravessar o rio Kwango e descobrir todos os detalhes sobre os povos que habitavam o norte e o comércio que
por ventura realizavam na outra banda do mar. É a antiga pretensão do Conselho do Ultramar português e do
governo de Luanda de chegar à Costa Oriental africana.
117
Joseph Miller, Way of death, p. 209-215; Jan Vansina, “Long-Distance Trade-Routes in Central Africa”. The
Journal of African History, v.3, n.3, 1962, p. 375-390.
113
Fonte: Traslado de Auto de exame e corpo de delito que se fez ao preto Manuel de Salvador, escravo do Tenente
João da Silva Francisco. São Paulo de Assunção de Luanda, 1771. AHU_CU_001, Cx. 55, D. 43.
123
“Recomendação em que sua majestade manda declarar que na proibição da lei de 29 de março de 1719 se
compreendiam as facas flamengas debaixo das penas nela declaradas contra os que as trouxeram fora do
ministério para que são necessárias”. Ordenações e leis do reino de Portugal confirmadas e estabelecidas pelo
115
senhor rei D. João IV, novamente impressas e confirmadas com três coleções; a primeira de Leis
Extravagantes; a segunda de Decretos e Cartas; e a terceira de Assentos da Casa da Suplicação e relação do
Porto, por mandado do muito alto e poderoso rei D. João V nosso Senhor. Livro Quinto. Lisboa: No Mosteiro
de S. Vicente de Fora, Câmara Real de Sua Majestade, 1747, p. 281.
124
Em uma ordem de 1768, o intendente foi encarregado de consertar as armas de três presídios da região. Carta
de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira. São Paulo de Assunção de Luanda, 10 de julho de 1768.
IEB/USP, AL-083-084.
125
Amadou Hampatê Bá, “A tradição viva”, p. 202.
116
126
Raphael Bluteau, op. cit., verbetes “fábrica”, “oficina”, “indústria”. Antonio Moraes Silva, Diccionario da
língua portugueza, verbetes “fábrica”, “manufatura”, “indústria”.
127
A ausência de fronteiras nítidas nas definições dessas palavras é evidente; se descartarmos alguns
complementos, as distinções praticamente desaparecem. Com isso queremos dizer que, em Portugal e nas suas
possessões ultramarinas, no século XVIII, o significado de manufatura se aproximava dos sentidos que teriam as
palavras “fábrica” e “oficina” que, em momento algum, podem ser associados às grandes indústrias do Sistema
Fabril.
128
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Tomas Joaquim da Costa Corte Real,
secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 18 de janeiro de 1769.
AHU_CU_001, Cx. 45, Doc. 4189.
117
Conde de Oeiras para que promovesse a exploração do ferro, metal imprescindível para o
fomento de qualquer indústria naquele momento, ele foi informado de um conhecimento
histórico sobre os minerais que os súditos da Coroa reuniram no decorrer de séculos de
ocupação portuguesa. Em 1765, este governador decidiu começar uma grande empreitada,
cuja construção durou os oito anos de seu governo, e resultou nos edifícios da fábrica de ferro
de Nova Oeiras:
“No ano de 1765, fazia eu a grande Fortaleza do Mar, que foi como o
noviciado das minhas fadigas, não tendo ferro para as obras, e comprando a
12$800 o quintal do pouco que aparecia me resolvi a tirá-lo das
copiosíssimas minas deste Reino”129.
129
Correspondência de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, governador de Angola, dirigida ao morgado de
Mateus, governador da capitania de São Paulo. São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de agosto de 1769. BN
(RJ), Coleção Morgado de Mateus Microfilme 12, fl. 31.
130
Em Portugal, no final do século XVII, durante o Ministério do Conde de Ericeiras, o padre Rafael Bluteau foi
encarregado de contratar técnicos italianos para a produção de ferro no atual concelho de Figueiró dos Vinhos.
Uma das unidades régias instaladas na região foi a denominada Engenho da Machuca, que “no final do século
XVII te[ria] contado com a dotação de uma fornalha de fundição, uma fornalha de refinação e instrumento de
brocar; a sua produção era fundamentalmente de ferro em barra e em vergalhão”. Mas essa fábrica teve pouca
duração. Heitor Gomes, Monografia do concelho de Figueiró dos Vinhos, Figueiró dos Vinhos (Portugal):
Câmara Municipal, 2004, p.90. Em 1764, Sousa Coutinho, diante da falta de armamentos, sugeria que a artilharia
de bronze e ferro fosse “toda fundida em Angola ou no Rio de Janeiro”. Ele chega a citar o nome de um homem
de negócio que estaria disposto a promover este comércio, João Álvares Ferreira. Carta de FISC para Francisco
Xavier de Mendonça Furtado. São Paulo de Assunção de Luanda, quatro de junho de 1764. IHGB – PADAB,
DVD10,20 DSC00213.
131
Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), São Paulo:
Hucitec, 1995, p. 285.
118
132
Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Conselheiro de Estado, Ministro e Secretário dos Negócios
da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, para FISC, governador de Angola. Palácio de Nossa Senhora da
Ajuda, 30 de abril de 1768. AHU, Códice 472, fl. 153-155.
133
Quando FISC escreveu para o Conselho Ultramarino sobre as conveniências de fazer esta fábrica em Angola,
ele afirmou: “É certo que as ditas fábrica são mais úteis aqui do que em Portugal (se as houvesse) porque os
serventes e as lenhas são absolutamente inúteis a sua majestade e aos povos, sem este emprego, lá tem muito
valor, cá nenhum, os transportes para Lisboa, e para o Brasil são muito fáceis e muito breves e incluindo este
trabalho todas as riquezas de uma copiosa mina, concilia todas as utilidades de uma manufatura, e aumenta o
comércio interior das fazendas do Reino, pois eu com estes gêneros se pagam as despesas do ferro: eu estou
persuadido que o rendimento deste metal no Régio Erário se aproximará muito ao do ouro nas minas da
América, se for atendido com o cuidado que refiro e que merece”. Carta de FISC para Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, secretário de estado da marinha e ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 17 de
fevereiro de 1767. AHU_CU_001, Cx. 53, D. 73.
134
Certidão de José Francisco Pacheco, inspetor das obras da fábrica, sobre o estado da fábrica de ferro. São
Paulo de Assunção de Luanda Luanda, 13 de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 28.
119
para a igreja junto à povoação. Com esse valor foram construídos “todos os edifícios
públicos”, como as “casas de intendência, ferrarias, tesourarias, prisões e as habitações dos
mestres de todos os ofícios e engenheiros”, e uma igreja, de “três altares”135.
O arquiteto Fernando Batalha, que visitou as ruínas da fábrica na década de 1970
ficou impressionado pelo conjunto de construções:
“podem observar-se ainda dois extensos troços do dique que represava o rio,
o aqueduto condutor da água para mover os engenhos, um grande
compartimento para as rodas hidráulicas, um forno de fundição, uma grande
ferraria com três armazéns, e um canal para, escoar a água”136.
Hoje, parte considerável das construções foi tomada pela vegetação, de forma que
mal conseguimos ver o muro do açude.
Além do grande investimento humano que levou a migrações de famílias de vilas
próximas e deixou muitos sobados despovoados, a fábrica exigiu muito dos recursos naturais
da região. Para situar a fábrica entre os rios foi preciso romper “uma serra que mediava entre
as do ferro e os rios Luinha e Lukala”. De outra maneira não seria possível transportar com
facilidade tanto a pedra do ferro quanto as barras. A abertura possibilitava, então, todos os
transportes: “porque já agora daqui vão as fazendas e viveres de Portugal desembarcar à porta
da fábrica e de lá vem o ferro em direitura aos armazéns desta cidade”137. O grande
empreendimento também levou à descoberta de novas lenhas. Embora haja poucos estudos
sobre a devastação ambiental imposta pela presença colonial para essa região138, é de se
135
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de estado da marinha e ultramar. São
Paulo de Assunção de Luanda, seis de setembro de 1769. IEB/USP, Al – 082 – 175. Parecer do capitão José
Francisco Pacheco, inspetor das obras da fábrica, do engenheiro Antonio de Bessa Teixeira, “que também
assistiu por algum tempo as mesmas obras”, e do mestre de obras, Antonio Ribeiro Cardoso. ANTT, Condes de
Linhares mç. 51, doc. 1, fl. 198. São Paulo de Assunção de Luanda, 17 de novembro de 1770.
136
Fernando Batalha, Povoações históricas de Angola. Lisboa: Livros Horizonte, 2008, p. 101.
137
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de estado da marinha e do ultramar.
São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de março de 1768. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 6 e 73.
138
Há de se destacar os estudos sobre o tráfico de marfim, que teve grande impacto ambiental na região. No
período de 1796 a 1825, foram comercializadas 56.992 pontas de marfim da África Centro-Ocidental. João
Baptista Gime Luís, O comércio do marfim e o poder nos territórios do Kongo, Kakongo, Ngoyo e Loango:
1796-1825. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Lisboa, 2016. Sobre a organização e os efeitos sociais do
comércio de marfim em Angola, ver: Jill Dias, “Changing Patterns of Power in the Luanda Hinterland. The
Impact of Trade and Colonization on the Mbundu ca. 1845-1920”. Sobre o impacto das mudanças nos padrões
de caça, ver: Marcos Vinícuis Santos Dias Coelho, Maphisa & Sportsmen. A caça e os caçadores no sul de
Moçambique sob domínio do colonialismo c. 1895-c.1930. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de
Campinas, 2015. Sobre a temática na África, ver: William Beinart, “African History and Environmental
History”. African Affairs, v. 99, n. 395, 2000, p. 269-302. Emmanuel Kreike estudou o norte da Namíbia, no
século XX, e mostrou como o governo colonial, o mercado capitalista e o crescimento populacional contribuíram
para mudanças ambientais dramáticas na região. Emmanuel Kreike, Deforestation and Reforestation in Namibia:
The Global Consequences of Local Contradictions. Leiden: Brill, 2010. As mudanças no padrão de posse de
terras instauradas durante a colonização também foram decisivas, Clover e Eriksen analisam esse processo para
Botswana, Moçambique, África do Sul e Zimbabwe. J. Clover, S. Eriksen, “The effects of land tenure change on
sustainability: human security and environmental change in southern African savannas”. Environmental Science
& Policy, v. 12, 2009, p. 53–70.
120
139
A Aula de Geometria e Fortificação de Luanda foi fundada em 1666, mas logo foi suprimida pela falta de
professores. O governador FISC foi quem a retomou em 1764, era destinada a militares, inclusive soldados. Em
uma carta de 1768, temos uma descrição em pormenor da carreira de Manuel Antonio Tavares. “Tem servido de
Mestre de Aula e Fortificação, desde 15 de abril de 1768: que trabalhou com outros, e fez cartas de todas as
costas do Reino de Angola: que foi à Fábrica do Ferro da Nova Oeiras regular a construção da mesma fábrica;
sendo mortos os mestres que se mandaram para este efeito; e que mediu e reduziu a cartas todos os terrenos, rios
e matos que servem à mesma Fábrica. Mostra mais uma certidão da vedoria e matrícula da gente de guerra em
Angola da qual consta que o dito Manuel Antonio Tavares, natural de Lisboa, sentou Praça de soldado
voluntariamente em 13 de junho de 1764; que em 18 do mesmo mês e ano passou para Cabo de Esquadra (...) E
como por ter dado provas claras de uma aplicação admirável e de um engenho particular para a ciência da
geometria pelo progresso que fez e a virtude com que a praticou voluntariamente, o continue Lente de Geometria
= que desde o dito dia continuou no Real Serviço na dita praça de ajudante até seis de agosto de 1768 que passou
para Capitão de Infantaria”. Carta sem destinatário assinada por Manuel Antonio Tavares, São Paulo de
Assunção de Luanda, 1768. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 18.
140
Sara Ventura da Cruz, “A construção de uma ideia de território: a cartografia de Angola na segunda metade
do século XVIII”. Cabo dos Trabalhos, v. 12, 2016, p. 8.
121
Mapa 4: Carta topográfica da província em que se localizava Nova Oeiras, 1769 c.a.
Fonte: “Carta Topográfica da Província que fornece Águas, Lenhas, e Serventes à Fabricado Ferro da Nova Oeiras que
mandou fazer o Ilmo. Exmo. Senhor D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho Governador e Capitão General do Reino de
Angola, ano 1769”. Manuel Antonio Tavares, [Angola], 1769. 1 mapa ms.: papel, color.: 66x117 cm. (Fonte: AHM). Apud
Sara Ventura da Cruz, “A construção de uma ideia de território: a cartografia de Angola na segunda metade do século
XVIII”, p. 11.
Legenda na parte esquerda: A. Sitio de Calumbo; B. Sitio de S. José; C. Sitio da Kwanza; D.Zambela; E. Bruto; F. Sitio do
Guedes; G. Molamba; H. Soba Cacoba; I. Catenga; L. Lagoa de Cabemba; M. Cabemba; N. Lagoa de Tôa; O. Lagoa
122
Salacata; P. Sitio de Muchacaçoa; Q. Presidio de Muxima; R. Lagoa do Quizua; S. Lagoa do Engolome; T. Presidio de
Massangano; V. Cacoalâla. Fábrica de Telha e Tijolo; X. Povoação da Nova Oeiras; Z. Casa da Fábrica de Ferro; K. Açude.
Legenda na parte direita:1. Montes do Ferro; 2. Soba Nguengue; 3. Soba Nguindala; 4. Rio Kwanza; 5. Rio Lukala; 6. Rio
Luinha; 7. Soba Moene Capexe; 8. Soba Nguinza; 9. Caculo Cazongo; 10.Quionzo; 11. Caculo Cahango; 12. Empacaça;
13.Zambiaquela; 14.Macoche; 15. Soba Quizua; 16. Mato de Calaquele; 17. Mato de Caçalacata; 18. Mato de Casanha; 19.
Mato do Hougo.
Sara Cruz observou que os elementos – “as povoações, lagos e zonas de mato” -
assinalados são ligados por caminhos e rios, formando um “conjunto [que] compõe um
sistema quase estratégico, uma rede de comunidades”141. Contudo, é preciso lembrar que esta
é uma representação do espaço que serve a fins políticos, por isso temos a impressão de uma
ocupação contínua com ligações precisas entre as povoações. Assim, as áreas desconhecidas
são pretensamente preenchidas com o objetivo de expressar uma unidade territorial que “não
existe, mas pretende ser, apesar de tudo, comunicada”. As povoações, as banzas, as vilas, os
sobados, a empacaça são representados na carta com o mesmo desenho, não se diferenciando
quais elementos formavam as povoações africanas e quais as vilas e presídios fundados por
portugueses no sertão142.
Os números e a letra “H” em vermelho identificam as banzas e os sobados, as
ocupações centro-africanas no interior, que são mais numerosas que as coloniais fundadas
com objetivo de defesa do território e povoamento do interior – os presídios, a própria fábrica
e vila de Nova Oeiras, as fábricas de tijolo e telha. Os números 1 (montes de ferro) e 2 (Soba
Nguengue) estão bem próximos, o que nos leva a aventar que essa liderança política fosse o
soba Nguengue a Kimbemba, sobre quem falamos há pouco, que possuía minas de ferro e
trabalhadores à sua disposição para explorá-las. O desenho reforça a ideia de que parte das
terras da localidade pertenciam a essa chefia e que de alguma forma, por desapropriação ou
venda, passaram às mãos do governo de Luanda.
Todo o conjunto de ocupações ligado ao trabalho na fábrica de ferro está
assinalado em rosa. Este espaço também foi ocupado por particulares (o sítio do Guedes, por
exemplo), o que mostra a complexidade política e social do sertão.
141
Sara Ventura da Cruz, “A construção de uma ideia de território: a cartografia de Angola na segunda metade
do século XVIII”, p. 16.
142
Segundo Sara Cruz, todas essas povoações “apresentam coberturas idênticas e semelhantes padrões de
aberturas, com clara influência do padrão do colonizador. Somente os presídios têm a indicação do forte e há
uma distinção cromática de alguns edifícios, apontando para que os desenhados a vermelho representem
equipamentos públicos ligados à administração e igrejas, uma vez que alguns deles apresentam cruzes no topo.
Apesar desta distinção, os tipos habitacionais são os mesmos, havendo apenas, entre os edifícios desenhados a
preto, quatro tipologias diferentes em todo o desenho. A homogeneidade na representação dos edifícios pode
dever-se a uma não preocupação em individualizá-los, por se estar a abordar uma escala regional, ou
simplesmente por se utilizar um padrão de representação”. Sara Ventura da Cruz, “A construção de uma ideia de
território: a cartografia de Angola na segunda metade do século XVIII”, p. 16.
123
143
Documento que sua Excelência mandou registrar de várias cousas que viu, e observou na Real Fábrica do
Ferro da Nova Oeiras o Tenente de Cavalos Joaquim de Bessa Teixeira, São Paulo de Assunção de Luanda a sete
de fevereiro de 1769. IEB/USP, Al-083-207. A sorveira é uma árvore endêmica da Ilha da Madeira, sua madeira
é branca ou rosada, de textura fina, compacta e com uma grande dureza. Foi por isso frequentemente usada para
elaboração de peças sujeitas a um desgaste constante: pontas de moinhos, fusos, rolos, cabos de ferramentas. A
Tacula ou Takula é uma árvore africana, cuja madeira é muito apreciada e usada em tinturaria (corante
vermelho).
144
Carta de FISC para Francisco de Mendonça, secretário de estado da marinha e ultramar. São Paulo de
Assunção de Luanda, seis de maio de 1769. IEB/USP, Al – 082- 156.
145
Segundo Warren Dean, seiscentos quilômetros quadrados de floresta foram destruídos na região mineradora,
na América portuguesa, no século XVIII: “grande parte dessa queimada se repetiria na floresta secundária,
acessível às vilas e lavras de ouro. (...) A remoção exploratória, hidráulica e manual da superfície dos solos da
floresta sugerem que o empreendimento minerador do século XVII exigiu mais da Mata Atlântica que os
primeiros dois séculos de lavoura de subsistência e as plantações de trigo e açúcar”. Warren Dean, A ferro e
fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica Brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 116.
Há estudos sobre os impactos da mineração para outras regiões da África. Cf.: Josiah Rungano Mhute,
“Downcast: Mining, men, and the camera in colonial Zimbabwe, 1890-1930”. Kronos, n. 27, 2001, p. 114-132;
William Beinart, “Soil erosion, conservationism and ideas about development: a Southern African exploration,
1900-1960”. Journal of Southern African Studies, 11, 1, 1984, p. 52-83.
124
Quanto aos montes de ferro, Bessa Teixeira contou cinco, representados na carta
pelo número 1 (“que qualquer deles dá pedra para sempre, e sem fim”). A historiografia por
vezes relaciona o fracasso da fábrica com a baixa qualidade do minério de ferro ou a pobreza
das minas de Nova Oeiras, que não passariam de poucos filões. Desde o governo de Antonio
Vasconcelos até as pesquisas do naturalista José Álvares Maciel, que visitou a fábrica em
1797, foram enviadas para Lisboa amostras tanto da terra ferruginosa quanto do ferro em
pedra ali encontrados. Francisco de Sousa Coutinho chegou a enviar amostras para os
doutores Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, em Paris, e Antonio Ribeiro Sanches, em
Lisboa. A quantidade de ferro encontrada no mineral foi de 65% segundo Miguel Franzini,
professor de Álgebra na Universidade de Coimbra, e 68% de acordo com José Álvares
Maciel. A qualidade do metal reduzido foi sempre considerada excelente; além disso, a
mineração do ferro na localidade antecede a presença portuguesa, por falta de estudos
arqueológicos não sabemos o quanto, e foi densamente explorada no governo de Sousa
Coutinho e seus sucessores que continuaram a comprar o ferro produzido pelos centro-
africanos. Logo, a fábrica de ferro de Nova Oeiras não fracassou por falta de um minério com
taxas consideráveis de ferro146.
Joaquim de Bessa Teixeira encontrou também muitas pedras para a construção
dos edifícios, além de “barro vermelho e bom como também saibro [areia grossa em cuja
composição entram grânulos maiores de pedra, amplamente utilizada para a construção] que
para misturar com cal é excelente”. E ainda sobre os recursos naturais: “as águas são
excelentíssimas, por quanto a povoação fica entre os dois rios correntes, como é o mesmo
Luinha, e Lukala, e bebe cada um do que lhe parece”147.
A letra K da “Carta Topográfica da Província que fornece Águas, Lenhas, e
Serventes à Fábrica do Ferro da Nova Oeiras” representa o açude, “ou presa da água”, feito
pelo represamento do rio Luinha, uma obra que demorou cerca de dois anos para ficar pronta
(1768 a 1770) e que foi destruída por uma grande enchente em 13 de abril de 1770. Por isso,
seria preciso refazer “o açude e o boqueirão”. Um projeto chegou a ser esboçado e a
construção chegou a ser iniciada como se pode examinar com mais detalhe na Figura 6148. A
primeira demarcação do açude fora feita pelos mestres biscainhos, que ali trabalharam por
cerca três meses. Para sua reconstrução, houve muita discussão sobre como torná-la mais
146
Carta de FISC sobre a utilidade da fábrica de ferro. Lisboa, 16 de setembro de 1773. BNP, C 8553, F6362.
147
Documento que sua Excelência mandou registrar de várias cousas que viu, e observou na Real Fábrica do
Ferro da Nova Oeiras o Tenente de Cavalos Joaquim de Bessa Teixeira, São Paulo de Assunção de Luanda a sete
de fevereiro de 1769. IEB/USP, Al-083-207.
148
As cheias haviam destruído parte da fábrica, foram tão fortes que arrancaram árvores pelas raízes. Joaquim de
Bessa Teixeira. São Paulo de Assunção de Luanda, 25 de abril de 1770. BNP, Reservados C 8743, F6377.
125
segura, uma vez que não podiam mais contar com a opinião de técnicos especialistas, pois os
biscainhos já haviam falecido. Em novembro de 1770, os engenheiros e mestre de obra da
fábrica declararam que o açude tinha de comprimento 269, 5 m (1225 palmos), de seis a sete
metros de largura e 9,46 m de altura. A calha que liga do açude à fábrica, o aqueduto, estava
fundada sobre 22 arcos de 2,2 m de largura e 3,08m de altura, perfazendo um comprimento
total de 115,5m149.
Segundo a documentação, a obra de reconstrução do açude nunca foi concluída.
Em 1772, Sousa Coutinho ainda insistia com os inspetores das obras para que o açude fosse
feito com cuidado para que outra enchente não o destruísse150. O secretário do governo de
Angola, José da Silva Costa, em 1798, visitou a fábrica e encontrou o açude destruído151.
Depois disso, a fábrica foi abandonada pelos governos posteriores. Em 1830, o açude e o
canal por onde derivava a água para a fábrica continuavam completamente destruídos152.
149
As medidas da fonte são apresentadas em palmos, consideramos 1 palmo = 0,22m. Conforme: “Quadro geral
das principais medidas e moedas utilizadas nos últimos tempos do Brasil colonial” elaborado por Roberto
Simonsen, História Econômica do Brasil. 7ª ed. S. Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1977, p. 462-463. Termo de
juramento feito pelo provedor da Fazenda Real Manuel Cunha e Sousa, José Francisco Pacheco, Antonio de
Bessa Teixeira, Antonio Ribeiro Cardoso. São Paulo de Assunção de Luanda, 17 de novembro de 1770. ANTT,
Condes de Linhares, mç. 51, doc. 1, fl. 198.
150
Carta de FISC para Joaquim de Bessa Teixeira, Intendente geral da Real Fábrica do Ferro da Nova Oeiras.
São Paulo de Assunção de Luanda, 19 de março de 1772. SGL, Arquivos de Angola, v.3, n. 30-33, 1958-1963, p.
423.
151
“Fui a Oeiras e os que a fábrica e tudo quanto lhe diz respeito está arruinadíssimo. O grande muro que
suspendia o curvo ao Ribeiro Luinha foi em parte lançado para este fora do seu lugar ou pelo peso das águas
acumuladas; este Ribeiro faz o seu giro bem perto da dita Fábrica, e mais adiante se avizinha ao canal”. Carta de
José da Silva Costa para Miguel Antonio de Melo, governador de Angola. São Paulo de Assunção de Luanda, 30
de abril de 1798. AHU_CU_001, Cx. 87, Doc. 71.
152
Carta de José Maria de Sousa Macedo Almeida e Vasconcelos, governador do Reino de Angola, para Nuno
Caetano Álvares Pereira de Melo, ministro assistente do despacho. S/l, seis de dezembro de 1830. IHGB,
PADAB DL76, 02.35.
126
zzz
G E D
E
A
B D
C F
Legenda: A. o Paredão que impede a correnteza do Rio para se formar o Açude; B. o Rio Luinha na sua natural
correnteza; C. a transversão (sic) do Rio que se havia feito para se dar princípio ao Açude; D. Corte sobre a linha
xx que mostra a altura do paredão; E. morros entre os quais fica represada a água; F. Registro para lançar fora a
água que não for necessária à Fábrica; G. Expedição da água para o engenho pelos arcos zzz.
Fonte: “Planta das obras que estão feitas na Nova Oeiras para a fábrica do ferro”. AHU_CARTm_001, D.272.
Na planta da povoação de Nova Oeiras (Figura 7), também desenhada por Manuel
Antonio Tavares, que pela semelhança com outras da época, consideramos ter sido feita em
cerca de 1770, pode-se visualizar os dois rios que circunscrevem a povoação: no lado direito
na vertical, está o rio Lukala e na horizontal inferior, o rio Luinha. Não há detalhes sobre as
construções, mas são cuidadosamente desenhados 124 edifícios, sendo um deles a igreja,
sinalizada com uma cruz. Há mais de uma construção marcada de vermelho, a que se localiza
logo na embocadura dos rios pelas descrições de época é provável que sejam os armazéns e o
edifício do forno de fundição de ferro. As outras duas construções também coloridas de
vermelho não soubemos identificar.
127
A
C
Igreja
A
Casa da
B Fábrica?
Fonte: “Planta da povoação de Nova Oeiras edificada pelo Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor Doutor Francisco
Inocêncio de Sousa Coutinho Governador e Capitão General do Reino de Angola. Feita e desenhada pelo
Capitão da Infantaria Manuel Antonio Tavares”. Legenda da planta: A – mostra a povoação; B - o rio Luinha; C
– o rio Lukala. Catálogo online da Biblioteca Nacional de Portugal. Disponível em:
http://www.bnportugal.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=373%3Aaquisicao-de quatro-
valiosos-manuscritos&catid=49%3Aaquisicoes&Itemid=427&lang=pt. Acesso em: 30/08/2012. Marcações
nossas.
A planta lembra os ideais de “uniformidade e retilineidade” que foram usados em
diferentes locais do Império português para reunir populações locais em “novas aglomerações
de projeto regulamentado”. Por exemplo, no interior de Mato Grosso, em 1765, a aldeia de
São Miguel sofreu uma reformulação, um “aquartelamento”, inclusive para abrigar os
trabalhadores indígenas que ali viviam. O novo plano previa “longas alas de unidades
residenciais em arranjo simétrico [que] aparecem como alojamentos para os índios”. As
instalações estavam dispostas “de um lado e do outro de uma grande praça, em cuja frente
[ficavam] as casas do administrador da comunidade”153 e do vigário. Os engenheiros
formados por Sousa Coutinho sem dúvida receberam as mesmas diretrizes que aqueles que
desenharam as vilas em Mato Grosso, ambos procuravam seguir o programa de urbanização e
europeização do marquês de Pombal.
153
Roberta Marx Delson, Novas Vilas para o Brasil colônia. Planejamento espacial e social no século XVIII.
Brasília: Edições Alva, 1997, p. 34. A ocupação do sertão de Minas Gerais e a instalação de núcleos urbanos
nessa época foram estudados em: Cláudia Damasceno da Fonseca, Des Terres aux Villes de l’or. Pouvoir et
territoires urbains au Minas Gerais (Brésil, XVIIIе siécle). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
128
154
Documento que sua Excelência mandou registrar de várias cousas que viu, e observou na Real Fábrica do
Ferro da Nova Oeiras o Tenente de Cavalos Joaquim de Bessa Teixeira, São Paulo de Assunção de Luanda a sete
de fevereiro de 1769. IEB/USP, Al-083-207.
155
José Carlos Venâncio, A economia de Luanda e hinterland, no século XVIII. Um estudo de Sociologia
Histórica. Lisboa: Editorial Estampa, 1996, p. 38.
156
Roberto Guedes lembra que as listas de moradores só abrangiam o pequeno núcleo de moradias do presídio
de Benguela, sem contar as sanzalas nos arrebaldes da cidade. Roberto Guedes, “Casas & Sanzalas (Benguela,
1797-1798)”. Veredas da História, ano VII, 2014, p. 66.
157
Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), p. 105.
129
158 Planta da Casa da Fábrica do Ferro e açude que se acha na Nova Oeiras, mandada fazer por FISC no ano de
1770. Dom Miguel de Blasco a delineou. São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de novembro de 1770. ANTT,
Condes de Linhares, mç. 51, doc. 1, fl. 194v. “Miguel Ângelo Blasco foi nomeado coronel, em outubro de 1750,
como engenheiro, com a obrigação de servir Portugal ou no Brasil, “nos portos, como em qualquer parte dos
sertões do Brasil e maranhão, por cinco anos”. Pertenceu ao número dos engenheiros recrutados para a
expedição à América, incumbida das demarcações de limites. Com ele foram contratados para o mesmo serviço:
Carlos Ignácio Reverend e João André Schwebel; como ajudantes de engenheiros, Adam Wentzel Hesteko,
Manoel Gotz e Inácio Hatton. Ângelo Blasco era genovês. Em atenção aos valiosos serviços por ele prestados
no Brasil foi promovido em 2 de outubro de 1763 ao posto de marechal-de-campo e em 21 de março de 1769
nomeado engenheiro-mor do reino na vaga aberta com o falecimento do ilustre engenheiro, Tenente-General
Manoel Maia. Entre os inúmeros trabalhos por ele elaborados, figuram a planta da Barra do Rio Grande de São
Pedro (Rio Grande do Sul), feita com a colaboração de José Custódio de Sá e Faria, em 1752, para servir de base
às operações técnicas e militares da demarcação dos limites, entre as possessões de Portugal e Espanha. Em
Santa Catarina, levantou e desenhou (tirou e riscou), em 1767, as plantas das fortificações: Santana do Estreito,
Conceição de Araçatuba e São Francisco Xavier”. Aurélio de Lyra Tavares, A Engenharia militar portuguesa na
construção do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Biblioteca do Exército, 2000.
159
Termo de juramento feito pelo provedor da Fazenda Real Manuel Cunha e Sousa, José Francisco Pacheco,
Antonio de Bessa Teixeira, Antonio Ribeiro Cardoso. São Paulo de Assunção de Luanda, 17 de novembro de
1770. ANTT, Condes de Linhares, mç. 51, doc. 1, fl. 198. “ Planta da Casa da Fábrica do Ferro e açude que se
acha na Nova Oeiras, mandada fazer por FISC no ano de 1770. Dom Miguel de Blasco a delineou. São Paulo de
Assunção de Luanda, 12 de novembro de 1770. ANTT, Condes de Linhares, mç. 51, doc. 1, fl. 194v.
130
160
Idem.
161
“Assim é o serviço que fazem os biscainhos, trabalham ferro, porque são muitas as Fábricas, trabalha cada
uma muito pouco para fazer vulto em uma região em que o gênio dos povos a há de fazer única, e muito mais
dispendiosa; sendo como só servem régias grandes, e capazes de fertilizar um país dos situados entre os trópicos,
hão de ser dirigidas por franceses ou alemães, cujos fornos em 24 horas com três homens produziam de 20 até 70
quintais de ferro; tudo o contrário não vale nada, e não se deve adotar”. Carta de FISC para Luís Antonio de
Sousa, o morgado de Mateus, governador de São Paulo. São Paulo de Assunção de Luanda, quatro de maio de
1770. BNP, C 8743, F6377.
162
Carta de FISC para Martinho de Melo e Castro, secretário de estado da marinha e do ultramar. São Paulo de
Assunção de Luanda, 12 de agosto de 1771. AHU_CU_001, Cx. 55, Doc. 52 e 56.
131
Fonte: Alçado da Planta da Fábrica de Fundição de Ferro em Oeiras, Distrito do Cazengo, 1855. N. 3. Assinadas
por: Jacinto de Gouvea Leal. AHU_CARTm_001,D.1343. Legenda: A. Armazém; B. Casa da Máquina; C. Dita
do forno; D. Escadas para o Terrado do Forno; E. Ditas para o Tanque; F. Superfície exterior; G. Dita interior; a.
Portas; b. Janelas; c. Cano das duas águas do Telhado; d. Guardas do muro que dá serventia para o Tanque.
Escala em pés ingleses.
Nas plantas abaixo, figuras 9 e 10, temos os detalhes do edifício, o local do forno,
dos foles, do aqueduto e demais repartições da fábrica.
163
Carta de Jacinto Gouvea Leal para o Conselho Ultramarino. S/l, oito de março de 1855. AHU, Conselho
Ultramarino Angola, Cx. 35, Doc. 1598.
132
Pela análise das plantas que coletadas durante a pesquisa documental e de fotos
atuais destes prédios, a equipe de arquitetos formada por Giovana Gomes Carreira, Katia
Sartorelli Verissimo e Stefane Saraceni Kaller, chegou à conclusão de que o edifício do forno,
indicado pela letra C, foi construído depois de A, os armazéns. Como vimos, o forno
realmente levou mais tempo para ficar pronto e por causa das experiências de fundição que
deterioravam suas paredes do mesmo pode ter sofrido mais modificações. As estruturas, os
traçados, os estilos e a grossura das paredes (as dos armazéns chegam a ter dois metros)
indicam que são prédios bastante diferentes; na casa do forno há detalhes arquitetônicos mais
134
164
“Vai uma forja completa com safra, e o mais depressa que poder ser irão ferreiros brancos para reduzirem a
barras o ferro”. Carta de FISC para João Baines capitão-mor do Golungo, e intendente da fábrica do Novo
Belém. São Paulo de Assunção de Luanda, 9 de abril de 1767. BNP, C 8742, F 6362, fl. 166.
135
Fonte: Giovana Gomes Carreira, Katia Sartorelli Verissimo e Stefane Saraceni Kaller, Planta esquemática
extraída da planta de 1855 - Pav. Térreo. Reproduz a fábrica existente no século XVIII e forno de ferro
(construção mais recente, com destaque para estilo arquitetônico). A escala é em metros e foi estabelecida tendo
em vista um conjunto maior de plantas e desenhos analisados ao longo da tese.
A casa da máquina, a letra B da planta anterior, era onde ficavam as grandes rodas
d’água de madeira que moveriam os foles e o grande malho, fabricando o ferro segundo os
métodos europeus. Operação que nunca aconteceu. Essa máquina permaneceu apenas na
imaginação do governador. Nas memórias elaboradas para festejar seus feitos, Sousa
Coutinho, em 1779, rememorou o passado: “imaginei a ideia de uma fábrica de ferro, tão útil
como se prova da sua qualidade, da necessidade que temos dele, do diferente preço porque se
venda na América e da facilidade com que em navios de negros podia ir por lastro sem
despesa alguma”165. Encontramos detalhes da Casa da Máquina em desenhos e plantas de
165
Breve e útil ideia de comércio, navegação e conquistas d’Ásia e da África. s.l., 1779. Arquivos de Angola, v.
3, 1935, p. 140.
136
1769-1770, em especial duas plantas muito semelhantes, uma assinada por Manuel Antonio
Tavares e outra pelo tenente da artilharia João Manoel Lopes. Abaixo reproduzimos a
delineada pelo segundo, mais rica em detalhes.
Legenda:
Planta da casa da Fábrica do
ferro e açude que se acha na
Nova Oeiras, mandada fazer
pelo Ilmo. Exmo. Snr. FISC
(...) no ano de 1770.
A – Casa da fábrica e nela o
engenho S, Z, de fazer o
ferro.
B – Forno aonde se liquida o
mesmo.
C - Pés direitos dos arcos
para cima dos quais vai a Malho A
água para o engenho.
Forno Foles
B
Roda hidráulica
para mover os
foles
Roda hidráulica
S z C
grande (cerca
de 18,5m de
circunferência)
para mover o
malho
Continuação da legenda:
D – Açude aonde vai água
para o dito.
E – Perfil da Casa da Fábrica
Açude considerando a cortada pela
linha XX da planta A.
F – Lugar por donde sai a
água de que se não precisa
para o engenho.
Fonte: Planta da Fábrica de
Ferro e açude de 1770,
assinada pelo Tenente de
E Artilharia João Manuel Lopes.
Roda para ANTT, Condes de Linhares,
Roda para
D mover os mç. 103, doc. 1.
mover o
malho foles
137
Observa-se que não há qualquer menção ao edifício chamada por Gouvea de “casa
do forno”, em 1855, que abriga um alto forno. A planta mostra apenas a casa da máquina e os
armazéns, o forno localizado à frente do fole é de tipo baixo, como eram os das ferrarias
hidráulicas da época. O que significa que o alto forno ainda não havia sido construído. Não
encontramos a letra “F” indicada na legenda, que era o lugar para onde era canalizava a água
descartada após mover a roda grande (18,59m de circunferência) que acionava o malho e a
roda menor (10,56m de circunferência) que movia os foles166. Na perspectiva a seguir temos
ideia do terreno em que se instalou a fábrica e dos detalhes do prédio do forno que
comentamos acima.
Fonte: Vista da Fábrica de Fundição de Ferro em Oeiras, 1855. Assinada por: Jacinto de Gouvea Leal.
AHU_ICONm_001_I, D.470.
166
Medidas descritas em: Termo de juramento feito pelo provedor da Fazenda Real Manuel Cunha e Sousa, José
Francisco Pacheco, Antonio de Bessa Teixeira, Antonio Ribeiro Cardoso. São Paulo de Assunção de Luanda, 17
de novembro de 1770. ANTT, Condes de Linhares, mç. 51, doc. 1, fl. 198.
138
167
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de estado da marinha e ultramar. São
Paulo de Assunção de Luanda, seis de setembro de 1769. IEB-USP, Al – 082 – 175.
168
“A Casa da Fundição dos Pretos ficaria melhor junto à grande, em alguma distância proporcionada, porque o
mesmo inspetor vigiava ambos os trabalhos”. Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira,
intendente da fábrica de ferro de Nova Oeiras. São Paulo de Assunção de Luanda, 22 de julho de 1769.
IEB/USP, Al-083-274.
169
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte, intendente geral da fábrica de ferro. São Paulo de Assunção de
Luanda, 10 de dezembro de 1766. BNP, C 8742, F6364.
139
170
“Instrução que deve guardar Antonio Anselmo Duarte de Siqueira servindo o emprego de intendente geral da
Fábrica do Ferro e que executaram também os capitães mores como intendentes particulares na parte que lhes é
respectiva”. São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de janeiro de 1767. AHU_CU_001, Cx. 52, Doc. 73. Carta de
FISC para Antonio Anselmo Duarte, intendente da fábrica de ferro. São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de
janeiro de 1768. O governador não comenta sobre quem eram as mulheres brancas do presídio adjacente a Nova
Oeiras que possuíam escravos. Uma hipótese é que fossem órfãs dotadas à espera de casamento, como veremos a
seguir.
171
Selma Pantoja, “Gênero e comércio: as traficantes de escravos na região de Angola”. Travessias, n. 4-5, 2004,
p. 79-97; Selma Pantoja, “As fontes escritas do século XVII e o estudo da representação do feminino em
Luanda”. In: Construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretação. Actas do II Seminário
internacional sobre história de Angola. Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 2000, p. 583-596; Mariana Candido, “Dona Aguida Gonçalves marchange à Benguela à la fin du
XVIII siècle”. Brésil(s). Sciences humaines et socials, v. 1, 2012, p. 33-54; Vanessa de Oliveira, “Mulher e
comércio: a participação feminina nas redes comerciais em Luanda (século XIX)”. In: Selma Pantoja, Edvaldo
A. Bergamo, Ana Claudia da Silva (org.). Angola e as angolanas. Memória, sociedade e cultura. São Paulo:
Intermeios, 2016, p. 134-152.
140
A diretriz pombalina para a ocupação dos sertões era uma reforma do espaço pela
instalação de “povoações civis, decorosas e úteis para o bem comum da Coroa e dos povos”.
O conde de Oeiras utilizou essa frase, em 1752, em uma carta secreta ao seu irmão, Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, à época recém nomeado governador do Grão-Pará e Maranhão.
Uma das primeiras ações do governador na Amazônia foi enviar uma expedição com colonos
açorianos para fundar a nova povoação e fortaleza de Macapá. O planejamento era que a
povoação tivesse de início em média de 600 pessoas brancas. Um dos objetivos é que fosse
um “chamariz” para os índios que viviam embrenhados nos matos fugindo dos aldeamentos
até então sob o controle de missionários. Incentivando a miscigenação, Pombal queria
adentrar nos sertões, povoando as novas vilas. Mendonça Furtado também fundou outras
povoações, como Bragança e Ourém, nomes portugueses tais como Nova Oeiras e Novo
Belém, repetindo topônimos de cidades reinóis de relevo para “reafirmar a pertença destas
vilas a um espaço que se queria inquestionavelmente português”172. É nesse programa de
ocupação e domínio colonial que estão inseridas as povoações da Ilamba. No que diz respeito
a Angola, essa diretriz vinha do parecer do conde de Oeiras sobre a situação deste reino
(1760), que objetivava “salvaguardar a presença portuguesa em Angola” e “passava, então,
pela adoção de uma política de fixação de colonos portugueses e supunha uma ocupação com
uma componente social estruturante e reformadora”173.
Ao contrário da política pombalina para outras partes do Império, de fomento à
miscigenação como instrumento de política colonial para povoar o sertão174, em Angola,
Sousa Coutinho considerava que o convívio com africanos tinha corrompido os costumes dos
europeus, principalmente no que se refere ao abandono da fé cristã – “as famílias em geral,
seja das que se acham mais acreditadas, seja das mais humildes, vivam encerradas e evitem
até os atos da religião, como a missa, o sermão, o sacramento da penitência”. Na leitura do
funcionário régio, o que acarretava tamanho desvio era o excesso de luxo, a “vaidade das
regiões do sol”, pois essas famílias não saíam de casa quando faltava “um excessivo número
de negras e mulatas que as acompanha[ss]em”, “peças de ouro, prata e pedras preciosas para
172
Renata Malcher de Araujo, “A urbanização da Amazónia e do Mato Grosso no século XVIII povoações civis,
decorosas e úteis para o bem comum da Coroa e dos povos”. Anais do Museu Paulista: História e Cultura
Material, 20(1), 2012, p. 57.
173
Catarina Madeira Santos. Um governo polido em Angola, p. 193.
174
Kenneth Maxwell, Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 120.
141
175
Memórias do Reino de Angola e suas conquistas escritas por D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho,
governador e capitão general do Reino de Angola, escritas entre 1773 a 1775. Torre do Tombo, Condes de
Linhares, mç. 44, doc. 2
176
Idem. A dependência do Kimbundu era tal que comerciantes e negociantes dos sertões pouco podiam fazer
sem o domínio da língua Ambunda.
177
Catarina Madeira Santos analisa as questões de hierarquização das culturas europeia e africana e o modo
como esses planos de imposição de um plano ilustrado para o Reino de Angola fracassaram. Os sertões seguiram
despovoados de brancos e o padrão cultural Ambundo foi o que permaneceu ao longo do tempo. Catarina
Madeira Santos. Um governo polido em Angola.
142
178
Ao mesmo tempo que os meninos eram preparados para a vida pública e, por isso, aprendiam parcialmente o
português, as meninas permaneciam sem nenhuma instrução. Jan Vansina, “Portuguese vs Kimbundu: Language
Use in the Colony of Angola (1575 - c. 1845)”, Bulletin des Séances de l’Académie royal e des Sciences
d’Outre-Mer, vol. 47, (3), 2001, p. 267-281; Beatrix Heintze, “A lusofonia no interior da África Central na era
pré-colonial. Um contributo para a sua história e compreensão na actualidade”, Cadernos de Estudos Africanos,
7/8, 2005, p. 179-207.
179
Seria este o caruru (amaranthus viridis), Ewétètè? Na cultura brasileira, estudiosos acreditam que foi
culturalmente introduzido pelos africanos. É um ótimo indicador de qualidade do solo. Todas as partes do caruru
são comestíveis. É um alimento rico em ferro, potássio, cálcio e vitaminas A, B1, B2 e C. Tendo funções
medicinais como lactígeno, combate também infecções, problemas hepáticos, hidropisia, entre outras. As
sementes podem ser ingeridas torradas ou em pães e outras receitas.
143
tabernas estavam proibidas assim como qualquer estabelecimento semelhante que fomentasse
uma “colônia de bandidos”180.
A documentação sobre a Fábrica de Novo Belém e sua povoação não é tão
extensa quanto a que versa sobre a de Nova Oeiras, mas para ali também foram mandados
povoadores e trabalhadores. A fábrica de Belém produziu ferro no decorrer desde 1765 até
1768 sob a administração do intendente João Baines. Sem as técnicas para “rasgar a terra” e
explorar as minas subterrâneas, em Belém sempre se trabalhou apenas as pedras de ferro que
vinham de Oeiras. Como as viagens ficavam dispendiosas e não havia previsão de quando se
conseguiriam técnicos que soubessem abrir galerias para realizar a exploração subterrânea,
nem razão para dividir o contingente de trabalhadores entre as duas fábricas, em outubro de
1768, o governador mandou que as fábricas fossem unidas em Nova Oeiras, enviando todo o
ferro produzido e todos os trabalhadores para o novo sítio181. Note-se que a administração
colonial não conhecia a tecnologia para explorar minas subterrâneas que as elites africanas
detinham, como no caso analisado do soba Kabanga kya Mbangu, na mesma região em que
funcionava Novo Belém, na Ilamba.
Para formar novas famílias brancas nas povoações civis, as “órfãs e donzelas” da
vila de Massangano foram orientadas a se casar com os soldados, trabalhadores e demais
homens brancos que foram mandados para Nova Oeiras. Aquelas mulheres estavam sob o
jugo de tutores que mantinham a tutela sobre seus bens e não permitiam que elas se casassem.
As corrupções na administração dos bens de herança pela Provedoria dos Defuntos e Ausentes
eram uma das correções que o governo de Sousa Coutinho pretendeu implantar182. O
governador estaria livrando as moças deste roubo quando, em outubro de 1767, ordenou que
no prazo dois meses todas deveriam estar casadas. Ele esperava que, gratas por esse benefício,
por ter lhes salvo o dote, era de se esperar que as senhoras da vila de Massangano, Lembo e
180
Instrução que deve guardar Antonio Anselmo Duarte de Siqueira servindo o emprego de intendente geral da
Fábrica do Ferro e que executaram também os capitães mores como intendentes particulares na parte que lhes é
respectiva”. São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de janeiro de 1767. AHU_CU_001, Cx. 52, Doc. 73. Não há
muitas informações sobre a povoação de Novo Belém, de forma que vamos nos ater a formação de Nova Oeiras.
Em 1769, Joaquim de Bessa Teixeira ao visitar Nova Oeiras disse que ali já haviam vivido brancos antes:
“situada em um sitio que já foi habitado de muitos homens brancos, como se vê dos alicerces de casa antigas, de
que ainda hoje há vestígios, como também se prova pelas muitas árvores de espinho que tem, pois, pretos senão
cansam em plantar árvores de frutos”. Talvez devido à proximidade de Massangano, colonizadores dos séculos
XVI e XVII já tinham vivido ali. Documento que sua Excelência mandou registrar de várias cousas que viu, e
observou na Real Fábrica do Ferro da Nova Oeiras o Tenente de Cavalos Joaquim de Bessa Teixeira, São Paulo
de Assunção de Luanda, sete de fevereiro de 1769. IEB/USP, Al-083-207.
181
Carta de FISC para São Paulo de Assunção de Luanda, sete de agosto de 1768. IHGB 126, PADAB DVD10,
22 DSC00197.
182
Selma Pantoja, “Luanda: relações raciais e de género”. In: II RIHA, Rio de Janeiro, 1996, p. 75-81
144
183
Cartas e ofícios endereçadas aos regentes da vila de Massangano podem ser encontrados em: BNP, C 8742, F
6364. FISC ordenava ao intendente das fábricas de ferro: “como no Quisecle, e em Massangano haverá brancas
pela saia, e moças honestas com alguns escravos, fará vossa mercê todo o esforço para pretende-las para os ditos
noivos, e porque eles se agradem das ditas senhoras, visto que não há outros meios de povoar a terra”. Carta de
FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente geral das fábricas de ferro. São Paulo de Assunção
de Luanda, 25 de setembro de 1767. BNP, C 8742, F 6364, fl, 231 v.
184
Carta de FISC para Pedro Matoso de Andrade, capitão-mor de Massangano. São Paulo de Assunção de
Luanda, 14 de novembro de 1767. BNP, C 8742, F 6364, fl, 240.
185
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente geral das fábricas de ferro. São Paulo de
Assunção de Luanda, 10 de julho de 1768, IEB/USP, AL-083-084.
145
186
O inspetor de obras da fábrica explicou que as terras não eram propícias para a agricultura, tinham muitas
pedras ou eram pequenas demais. Carta de Antonio de Lencastre para Martinho de Melo, secretário de estado da
marinha e do ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 31 de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 28.
187
Devido a essas incursões era preciso fortificar os moradores. Carta de FISC para Salvador de Menezes e Silva
capitão-mor e juiz da povoação do Novo Belém. São Paulo de Assunção de Luanda, 14 de janeiro de 1772. SGL,
Arquivos de Angola, v.3, n. 29, 1958-1963, p. 377.
188
Carta de FISC para o capitão-mor do presídio do Encoge, Paio de Araújo. São Paulo de Assunção de Luanda,
4 de abril de 1768. AHA, Códice 79, fl. 98v. Sobre o abastecimento da botica: Portaria para o doutor provedor
da Fazenda Real aprontar e remeter para Nova Oeiras, vários remédios de Botica. São Paulo de Assunção de
Luanda, 12 de abril de 1769. AHA, Códice 271, fl. 20v.
189
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de estado da marinha e do ultramar.
São Paulo de Assunção de Luanda, 16 de maio de 1769. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 29; Carta de FISC para
Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente geral das fábricas de ferro. São Paulo de Assunção de Luanda,
27 de outubro de 1767. BNP, C 8742, F 6364.
190
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de estado da marinha e do ultramar.
São Paulo de Assunção de Luanda, 1 de agosto de 1769. IEB/USP, Al – 082 – 164.
191
Documento que sua Excelência mandou registrar de várias cousas que viu, e observou na Real Fábrica do
Ferro da Nova Oeiras o Tenente de Cavalos Joaquim de Bessa Teixeira, São Paulo de Assunção de Luanda a sete
de fevereiro de 1769. IEB/USP, Al-083-207.
146
sempre procurou sublinhar que a povoação tinha chances de ser exitosa, fechando os olhos
para os constantes insucessos de suas iniciativas.
Os números de brancos mortos, em 1773, subiram para 77, sendo 5 mulheres, fora
os “centos de negros”, que não foram registrados. Apesar de as fontes não citarem com
frequência os africanos que moravam na povoação, sabemos que eles eram a principal mão de
obra utilizada. É de se imaginar que nem todos poderiam ir para Nova Oeiras e voltar todos os
dias para os seus sobados, pois alguns vinham de povoações distantes até oito dias de viagem.
Deviam ficar vivendo ao menos temporariamente na povoação ou em seus arredores, mas há
poucos dados sobre isso. Como dissemos há pouco, há indicações na documentação de que ali
existiam casas de brancos e de negros192.
A completa falência dos planos de formar ali uma colônia de povoamento branco
foi reconhecida quando Sousa Coutinho decidiu, em 1771, que a melhor saída para
estabelecer uma povoação seria “introduzir 200 casais de moleques de catorze [ou] de
dezesseis anos casados, para que os machos aprende[sse]m e fiz[essem] o serviço da fábrica e
as fêmeas cultiv[ass]em as terras de que se [haviam] de alimentar”, “assim como
costuma[va]m todas as outras deste país que deviam alimentar o casal”193. A única forma de
cultivar as terras e arregimentar trabalhadores seria utilizar a mão de obra centro-africana, ou
seja, mais que a força de trabalho, os conhecimentos e técnicas Ambundo de lavoura, criação
de gado e mineração e forja do ferro. Mas ele estava em final de governo e logo retornou a
Lisboa.
Assim que nomeado, o novo governador D. António de Lencastre (1772-1779)
ordenou o fechamento da fábrica de ferro sob alegação que era uma empresa muito
dispendiosa e que quando pronta não traria os lucros esperados. Lencastre suspendeu a
portaria de Sousa Coutinho para pagamento de jornais aos trabalhadores - o que causou o
abandono de boa parte da população que ali vivia. Contudo, a povoação não fora
completamente abandonada: quando o mineralogista José Álvares Maciel visitou a fábrica,
por volta de 1795, ele encontrou moradores na povoação que se sustentavam unicamente da
fundição de ferro: “vivem estes, e por muitos anos naquele sítio, e nos seus arrebaldes”194.
192
Certidão de José Francisco Pacheco, inspetor das obras da fábrica, sobre o estado da fábrica de ferro. São
Paulo de Assunção de Luanda, 13 de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57, D. 28.
193
Carta de FISC para Joaquim de Bessa Teixeira, Intendente geral da Real Fábrica do Ferro da Nova Oeiras.
São Paulo de Assunção de Luanda, 26 de novembro de 1771. BNP, Reservados, C 8744, F 6443, fl. 181v.
194
Carta de Miguel Antonio de Melo, governador de Angola, para Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de
estado da marinha e do ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 18 de março de 1800. Arquivos de Angola,
2ª serie, v. X, n. 39-42, 195. José Álvares Maciel, “Notícia da Fábrica de ferro da Nova Oeiras do Reino de
Angola”. São Paulo de Assunção de Luanda, 15 de dezembro 1797, [p. 9]. AHTC, Erário Régio, 4196.
147
CAPÍTULO 3
O TRABALHO E OS TRABALHADORES EM NOVA OEIRAS
1
Cópia do Termo da Junta da Fazenda Real do Reino de Angola assinado por Manuel da Cunha e Sousa,
ouvidor e provedor da Fazenda Real, João Delgado Xavier, juiz de fora e procurador da Fazenda Real e
Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (FISC), governador e presidente da Junta da Fazenda Real. São Paulo de
Assunção de Luanda, 20 de julho de 1767. Este termo segue anexo à carta de FISC, para Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, secretário do Conselho Ultramarino. São Paulo de Assunção de Luanda, 22 de agosto de
1768. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 27. Em abril de 1767, em carta para os intendentes das fábricas, o governador
já havia feito referência à essa súplica dos sobas: “porque me dizem, que os sobas, e imbari oferecem trabalhar
sempre nas fábricas sem outro pagamento que a isenção dos dízimos”. Carta de FISC para Antonio Anselmo
Duarte de Siqueira e João Baines, intendentes das fábricas de ferro. São Paulo de Assunção de Luanda, 14 de
abril de 1767. BNP, C-8742, F-6464.
2
Carta de FISC para João Baines, tenente general. ”Instrução que lhe dou a respeito da fábrica de ferro”. São
Paulo de Assunção de Luanda, oito de março de 1766. BNP, C-8742, F-6464. A instrução determinava: “os
prontos módicos pagamentos, que podem acariciar, e atrair os negros destinados a este serviço, e mais outros de
diferente jurisdição”.
148
Não é possível saber quando e com quais palavras exatamente as lideranças locais
se reportaram ao presidente da Junta da Fazenda Real, pois apenas um resumo de seu pedido
está guardado nos arquivos. Contudo, o emprego da palavra “súplica”, neste excerto, pode ser
entendido como indício de que essas autoridades haviam aprendido a lidar com a burocracia
da administração portuguesa – e tinham certo domínio sobre os costumes, as etiquetas e as
normas que intermediavam as relações dos vassalos que se sujeitavam ao domínio do rei de
Portugal.
Esse aprendizado decorria de mais de dois séculos de contato com os portugueses,
mas também fazia parte das relações de dominação estabelecidas entre autoridades africanas.
Como descrevemos no primeiro capítulo, quando um chefe era undado por um soberano
africano, tornando-se seu súdito, deveria entregar periodicamente parte de suas produções
como tributo - farinha, feijão, cabritos, galinhas, pedras de sal. Com a conquista portuguesa, o
undamento passou a fazer parte dos autos de vassalagem. Em termos gerais, os chefes
africanos, ao serem vencidos, eram obrigados pela força das armas de Portugal a firmar um
compromisso mútuo, em que se submetiam ao domínio do rei português enquanto seus
vassalos. Este lhes devia proteção contra os seus inimigos em troca de prestarem auxílio
militar, pagarem tributos (produtos ou escravos) e abrirem seus territórios ao comércio
português, sobretudo de escravos3. Os sobas quando undados passavam a pertencer à
jurisdição de um presídio, sob a autoridade de um capitão-mor.
Sousa Coutinho foi o primeiro governador a redigir um regimento para os
capitães-mores, em 24 de fevereiro de 1765. Nele o governador determinava os “limites” da
autoridade destes funcionários, pretendendo dar fim “às iníquas barbaridades” cometidas “em
alguns de seus presídios”. O provimento das capitanias-mores era prerrogativa do rei; tanto
reinóis quanto moradores de Angola poderiam se candidatar ao cargo em regime trienal.
Entretanto, devido à malignidade do clima, nocivo aos reinóis, luandenses e sertanejos, ou
moradores da região eram preferidos. A princípio, os capitães-mores não recebiam
vencimentos; somente a partir em 1722 lhes foi atribuído um soldo de 300 mil réis anuais. A
principal razão para iniciar os pagamentos era o fato de esses funcionários angariarem suas
fortunas com o tráfico de escravos, deixando de lado suas funções administrativas e militares
e explorando sua relação de proximidade junto aos sobados para favorecer seu comércio. Ao
serem pagos, os capitães-mores foram proibidos de se envolver com o tráfico. Mas essa
3
Beatrix Heintze,“Luso-African Feudalism in Angola? The Vassal Treaties of the 16th to the 18th Century”,
Separata da Revista Portuguesa de História, v. 18 (1980), p. 111-131.
149
proibição teve pouca efetividade; na prática, eles continuaram a ser agentes fundamentais nas
rotas do comércio no interior do Reino de Angola4.
Uma das atribuições dos capitães-mores que mais rendia reclamações junto ao
governo de Luanda por parte dos sobas e seus subordinados era a cobrança dos dízimos.
Assim como em outras localidades do ultramar português, em Angola os dízimos eram
arrecadados por quem arrematasse o contrato trienal, caso o arrematante não cumprisse o
valor esperado pela Fazenda Real, ele arcaria com o dividendo. Os dizimeiros, como eram
chamados os arrematantes do contrato, procediam à arrecadação nos distritos vizinhos cidade
de Luanda, Dande, Bengo, Kwanza, Golungo e Icolo eram divididos em duas arrecadações.
Nos presídios e jurisdições do interior, os capitães-mores deviam auxiliar na cobrança. Os
dizimeiros contratavam cobradores, que efetivamente visitavam os sobados. O pagamento era
feito em produtos, em sua maioria alimentos, farinha, milho, azeite, animais, algodão entre
outros. Segundo Correa Silva as dificuldades para efetivar a cobrança do tributo, que
contribuíam para os desvios fiscais feitos pelos cobradores eram “a longitude dos presídios e a
escabrosidade das estradas, a destituição dos transportes”. Seguindo a “lei dos dizimeiros”,
como Silva Correa chama o procedimento abusivo destes funcionários, os que cobravam os
tributos aumentavam seus lucros na medida de sua “ambição” e não da capacidade da
população, que vinham da “dureza com que [o arrematante] calcula e arrecada o rendimento”.
Capitães-mores e cobradores se uniam para tornar o negócio mais lucrativo. Um exemplo era
a medida-padrão utilizada nas cobranças que sempre excedia a estabelecida pelo governo: as
balanças e demais instrumentos de medida utilizados na pesagem das mercadorias entregues
como dízimo eram frequentemente alterados para gerar mais ganhos5.
4
Idem, p. 53-71; Carlos Couto, Os capitães-mores em Angola no século XVIII. Subsídio para o estudo da sua
actuação. Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola, 1972, p.104 e 105. Muitos historiadores têm
chamado à atenção para a generalizada participação dos funcionários régios no comércio de escravos. C.f.:
Joseph C. Miller, Way of Death. Merchant Capitalism and the Angolan slave trade, 1730-1830. Madison:
University of Wisconsin Press, 1988, p. 268; Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic
World. Angola and Brazil during the Era of the Slave Trade. New York: Cambridge University Press, 2012, p.
44; Mariana P. Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela and its hinterland. New
York: Cambridge University Press, 2013, p. 175-185; Flávia Maria de Carvalho, Sobas e homens do rei:
interiorização dos portugueses em Angola (séculos XVII e XVIII). Maceió: Edufal, 2015, p. 89 e 90.
5
Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola, v. 1, p. 37.A agricultura não correspondia às ambições da
cobrança dos dízimos, que representava 10% da produção agrícola. Os valores eram muito baixos; entre 1730 e
1765, a receita anual era entre um e 2,5 contos por ano. Silva Correa assinalou que alguns sobados eram isentos
do “flagelo dos dizimeiros” porque o volume da produção agrícola era diminuto e não havia como contribuírem.
Em contrapartida, os sobas isentos entregavam ao governador um presente anual, um regalo, que provavelmente
eram escravos. Mesmo com os dízimos pagos pelos sobados que faziam isso por obrigação, a quantidade era
insuficiente para garantir a subsistência dos moradores de Luanda, que muitas vezes precisavam importar
alimentos (“socorros estranhos”) e outros artigos de primeira necessidade. Elias Alexandre da Silva Correa,
História de Angola, v. I, p. 165. Sobre o levantamento dos valores dos dízimos ver: Maximiliano M. Menz,
“Angola, o Império e o Atlântico”. In: Anais do XI Congresso Brasileiro de História Econômica, 2015.
150
6
Carta de FISC ao secretário do Conselho Ultramarino, Francisco Xavier de Sousa Furtado. São Paulo de
Assunção de Luanda, 30 de junho de 1765. ANTT, Ministério do Reino mç. 600, caixa 703, doc. 101. Cadornega
também fala sobre um dizimeiro do século XVII, Bartolomeu Nunes era natural de Elvas, casado e morador em
Luanda. Antonio de Oliveira Cadornega, História das Guerras Angolanas (1680). Anotado e corrigido por José
Matias Delgado. Lisboa: Agência-geral do Ultramar, 1972, v. I, p. 316.
7
Carta de FISC ao secretário do Conselho Ultramarino, Francisco Xavier de Sousa Furtado. São Paulo de
Assunção, 30 de junho de 1765. ANTT, Ministério do Reino mç. 600, caixa 703, doc. 101. Elias Alexandre da
Silva Correa, História de Angola, vol. I v. 1, p. 163-167; ver também: Carlos Couto, Os capitães-mores em
Angola no século XVIII. Subsídio para o estudo da sua actuação. Luanda: Instituto de Investigação Científica de
Angola, 1972, p. 124-133.
8
Carta de FISC para o tenente Joaquim de Bessa Teixeira. São Paulo de Assunção de Luanda, 17 de agosto de
1768. IEB/USP, AL-083-115.Outra consequência das pressões que o pagamento dos dízimos trazia para os
sobados pode ser observada na cobrança feita junto aos presídios de Ambaca e Cambambe. Os moradores dos
sobados anexos a estes presídios comerciavam o fiado de algodão e tinham que entregar essa mercadoria como
pagamento do dízimo. Os coletores do imposto passaram a exigir que o algodão fosse entregue em “paus de fio”
da “grossura de uma perna humana”. Reagindo ao aumento no volume dos pagamentos, os africanos
“constrangidos a engrossar os volumes até a medida satisfatória”, desfiavam trapos e roupas velhas a que
cobriam de fio para engrossar as maçarocas”. Sabemos que as fazendas eram moeda de troca importante,
facilmente convertida em bens e escravos. O algodão também era usado para fabricar outros objetos, como redes,
roupas. Os cobradores com certeza tinham interesse por essa produção por essa razão. Elias Alexandre da Silva
Correa, História de Angola, v. I, p. 164.
9
Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola, v. I, p. 94 e 95.
10
Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”. The Journal of African History, v. 46, n. 1,
2005, p. 7; Mariana Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World, p. 204-205; Joseph Miller,
“Angola Central e Sul por volta de 1840”, Estudos Afro-asiáticos, 32, 1997, p. 30-32.
151
11
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira. São Paulo de Assunção de Luanda, 15 de junho de
1768.IEB/USP, AL-083-070.
12
Portaria assinada por FISC. São Paulo de Assunção de Luanda, a 29 de outubro de 1768. IEB/USP, AL-083-
138.
13
Em resumo, a guerra contra aqueles que resistiam à conversão ao cristianismo. Sobre o conceito de guerra
justa, ver: Ângela Domingues, “Os conceitos de guerra justa e resgate e os ameríndios do Norte do Brasil”. In:
Maria B. N. Silva (org.), Brasil: colonização, escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Trabalhos que
evidenciam a escravização de cristãos: José C. Curto, “The Story of Nbena, 1817-1820: Unlawful Enslavement
and the Concept of ‘Original Freedom’ in Angola”, In: Paul E. Lovejoy e David V. Trotman (orgs.), Trans-
Atlantic Dimensions of Ethnicity in the African Diaspora. Londres: Continuum, 2003, p. 44–64; Ferreira, Cross-
Cultural Exchanges in the Atlantic World, 2012, p. 52-87; Mariana Candido, “O limite tênue entre liberdade e
escravidão em Benguela durante a era do comércio transatlântico”. Afro-Ásia, 47, 2013, p. 239-268.
14
Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”. The Journal of African History, v. 46, n. 1,
2005, p. 7.
15
Carta de FISC ao secretário do Conselho Ultramarino, Francisco Xavier de Sousa Furtado. São Paulo de
Assunção de Luanda, 30 de junho de 1765. ANTT, Ministério do Reino mç. 600, caixa 703, doc. 101. Em
Angola, o sal era produzido a partir de salinas em Benguela e nas chamadas Cacuaco, próximas ao Bengo, fontes
de sal-marinho. O comércio do sal era contratado por um administrador, mas a partir de 1762, foi criada a
Administração da Venda do Estanco do Sal, que passou a ser responsável pela compra, transporte e venda do sal.
Isso tinha por objetivo diminuir os preços altos cobrados pelos particulares. José Carlos Venâncio, A economia
de Luanda e hinterland no século XVIII. Um estudo de sociologia histórica. Lisboa: Editorial Estampa, 1996, p.
55 e 56.
152
16
A partir de 1770, houve um aumento na arrecadação da Fazenda Real e os dízimos do sertão seguiram este
crescimento. Talvez esse tenha sido um dos resultados das políticas do governador Sousa Coutinho de reforma
da economia de Angola. Contudo, a arrecadação, quando comparada aos valores de outros lugares do ultramar
português, continuava a ser pouco representativa. Havia terra fértil, trabalhadores para lavrá-la, um comércio
dinâmico, e os arimos dispunham de trabalhadores, pois contavam, em média, com 37,5 cativos por unidade.
Uma explicação para isso é que a estrutura da economia de Angola estava pautada no tráfico de escravos, com
pouco setores voltados para outras atividades. Maximiliano M. Menz, “Angola, o Império e o Atlântico”, p. 14.
17
O padre Raphael Bluteau define abuso como “qualquer coisa feita contra a boa razão, a boa ordem”, já
vexação seria sinônimo de “maltrato” e, ainda: “diz se particularmente dos demandistas, que com pleitos injustos
e trapaças avexam as partes; e de uns régulos que com tiranias maltratam a província e perseguem o paisano
[aldeão]”. Raphael Bluteau, Vocabulário portuguez e latino, 10 v. Lisboa/ Coimbra: Colégio da Cia. de Jesus,
1712-1728.
18
“Dignando-se a Augusta Majestade de El Rei Nosso Senhor de usar de sua generosa e régia piedade em
benefício dos miseráveis negros empregados no serviço da fábrica do ferro, foi servido ordenar-se o
estabelecimento dos jornais que deviam vencer”. Portaria assinada por FISC. São Paulo de Assunção de Luanda,
a 29 de outubro de 1768. IEB/USP, AL-083-138. O governador se refere a essa portaria com a data de cinco de
novembro de 1768, talvez tenha havido uma segunda publicação.
19
Portaria em que se estabelecem os jornais dos “pretos trabalhadores”, assinada por FISC. São Paulo de
Assunção de Luanda, sete de dezembro de 1770. AHU_CU_001, Cx. 55, doc. 6 e 7.
153
e pagas todas as formas de prestação de serviço dos dependentes dos sobas no Reino de
Angola. Esse percurso burocrático é o resultado de uma estratégia bem-sucedida das
lideranças africanas no intuito de proteger seus interesses e conquistar e garantir direitos.
Simultaneamente, essas determinações legais mostram que as autoridades portuguesas
reconheciam a grande dependência que tinham em relação às chefias locais para realizar
qualquer empreendimento a que se lançassem naquela colônia. E, essa relação de dependência
resultava do poder que as chefias exerciam sobre seus subordinados.
Na portaria de 1770, a primeira conclusão a que os funcionários régios chegaram
foi que os serviços que os sobas prestavam gratuitamente aos portugueses não constavam
como uma obrigação nos primeiros autos de vassalagem. Como já discutimos no primeiro
capítulo. Se antes vimos a face normativa da regulamentação do trabalho dos dependentes dos
sobados, agora, vamos analisar a face prática. Em outras palavras, como a autoridades
portuguesas chegaram a essa conclusão e o que podemos dizer sobre a origem da prática de
cooptar os súditos dos sobas vassalos para os mais variados serviços.
Na cultura “juridizada” do Antigo Regime, um conjunto de normas garantiam a
boa ordem, o bem comum, enfim, o bom funcionamento do organismo social, que tinha por
cabeça o justo soberano20. A infração das normas era uma ameaça a toda sociedade
corporativista, por isso, era preciso evitar as vexações. O rei e seus representantes, em tese,
deveriam ser os arbítrios dos conflitos, restabelecendo o equilíbrio na sociedade por meio da
justiça21. São esses conceitos que guiavam a leitura de Sousa Coutinho quando julgou a
prática de cooptar os dependentes dos sobas para o trabalho gratuito um abuso.
Catarina Madeira Santos interpreta a isenção dos dízimos dos sobas que enviavam
trabalhadores paras as fábricas de ferro como resultado da política pombalina, pois as ideias
Ilustradas teriam possibilitado a “reconfiguração dos tratados de vassalagem”. A autora diz
que foi pelo gesto Ilustrado de voltar aos arquivos “que teve lugar uma discussão sobre o tipo
de serviços devidos pelos sobas à administração”22.
20
Antonio Manuel Hespanha, As vésperas do Leviatã. Instituições e poder político. Portugal, século XVII.
Coimbra: Almedina, 1994; Pedro Cardim, Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Ed.
Cosmos,1998.
21
“O rei exerce um ‘ofício’, cujo fim é o bem comum, e que consiste na justiça e na governança segundo o
direito, respeitando os foros das comunidades”. Armando Luis de Carvalho Homem, “Dionisius et Alfonsus, Dei
Gratia Reges et Communis Utulitatis Gratia Legiferi”. Separata da Revista da Faculdade de Letras, II Série,
Vol. XI, p. 12.
22
Catarina Madeira Santos. Um governo "polido" para Angola. Reconfigurar dispositivos de domínio (1750-
c.1800). Tese (Doutorado em História), Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa, 2005, p. 322.
154
O que fizemos até aqui foi mostrar como a nova política em relação ao trabalho
foi, na verdade, iniciada pela “súplica” dos sobas avassalados. O processo, portanto, ocorreu
em sentido oposto, determinado por conflitos locais mais que por ideias europeias. A
dinâmica interna das sociedades africanas e a dependência do trabalho dos Ambundos para
efetivar os planos coloniais de exploração do ferro foram mais determinantes que a Ilustração.
As políticas imperiais mais abrangentes estiveram atreladas às situações locais, em um
contexto de reivindicação e negociação com a elite africana no Reino de Angola; a história do
trabalho Ambundo na fábrica de ferro é exemplo disso.
Para o provedor da Fazenda Real, Manuel Cunha e Sousa, o uso da mão de obra
gratuita dos súditos dos sobas provinha da imposição dos tributos no “tempo da conquista e
fundação dos presídios”. Ele especulou que, no momento do undamento, os sobas prometiam
na homenagem voluntariamente “cumprir as ditas obrigações, respondendo com muita
satisfação”, tanto que acrescentou: “segundo ouço estão prontos a tudo”. Contudo, quando o
provedor analisou os documentos disponíveis para construir seu parecer, os autos de
vassalagem a que nos referimos no primeiro capítulo e os undamentos do duque de Wandu e
do Ndembu Ambuíla (que anexou ao parecer), não encontrou a “clara obrigação de darem
filhos, ou vassalos, para estes ou aqueles serviços que não seja o de socorrerem eles com os
ditos vassalos e suas armas os presídios e fortalezas”23. Aqui, o provedor faz referência à
esperada ajuda em tempo de guerra. Afinal, os chefes não “estavam prontos a tudo”.
O provedor expôs seu “embaraço”, pois se os sobas tivessem sido de fato
obrigados nos autos de vassalagem a prestar serviço gratuitamente aos colonos, os ilamba não
poderiam estar na mesma situação, deveriam ser “isentos ou ao menos pagos”24. Há, assim,
uma diferença entre as obrigações dos sobas e dos ilamba. E, nesse ponto, há uma contradição
entre o governador e o provedor, enquanto primeiro dizia que existia serviços específicos
prestados pelos “ilamba e outros povos destinados”, o segundo considerava que por serem
aliados, esses “soldados da Coroa” não deveriam ser obrigados a mais serviços. De acordo
com as “Notícias do presídio de Ambaca”, os ilamba e imbari se ocupavam “exclusivamente
no real serviço, particularmente da guerra”25. Ainda assim, muitos ilamba e imbari enviavam
trabalhadores para as fábricas de ferro, o que mostra que estavam sujeitos aos mesmos
23
“Certos e determinados serviços que alguns deles fazem nos presídios que lhes ficam vizinhos, como são o
repararem uns a igreja, outros a fortaleza, outros a casa dos capitães-mores, darem outros azeite para os corpos
das guardas, outros que assistem na vizinhança do Kwanza, canoas e botadores (sic) para conduzirem os
fardamentos dos soldados aos presídios”. Informação do provedor da Fazenda Real do Reino de Angola, Manuel
Pinto da Cunha e Sousa. São Paulo de Assunção, 30 de setembro de 1770. AHU_CU_001, Cx. 55, D. 6 e 7.
24
Idem.
25
Notícias do presídio de Ambaca, janeiro de 1798. IHGB/PADAB, DL 32.4.
155
“abusos” que os sobas, apesar da falsa impressão de que, por serem “espiões” e “capitães da
guerra preta”, só recebiam benesses dos colonizadores.
Por fim, o provedor, em 1770, chegou à mesma conclusão do governador Sousa
Coutinho: a causa das injustiças era o procedimento dos capitães-mores nos presídios que,
“degenerando em abuso contra os negros”, se apropriavam até mesmo de ferramentas de
trabalho (enxadas, pregos), e tinham os súditos dos sobas como seus “escravos”. A associação
com a escravidão estava diretamente relacionada com a gratuidade do serviço, pois os
trabalhadores entregavam lenha, carvão e “o mais que deles queriam”, “sem receberem ao
menos o alimento”26. De fato, havia sobas que eram designados para servir ao capitão-mor,
literalmente “para o serviço particular dos capitães-mores”, na sua cozinha, ou simplesmente
lhes era imposto “dar filhos para o serviço dos capitães-mores”.
O que o parecer do provedor indica é que poderia haver um costume local que
antecedia à chegada dos portugueses e que os capitães-mores se valeram disso para utilizar o
trabalho gratuito dos dependentes dos sobados. Contudo, não temos informação que prove a
existência de tal prática. O sistema de tributação do Reino do Ndongo envolvia a entrega
anual de produtos da terra dos chefados, que era chamada de luanda e consistia em “muitos
bois e cabras, galinhas e tudo o que têm em suas terras”. Beatrix Heintze comenta que, além
do gado, há referência no século XVII a óleo de palma e escravos27. Não há nos estudos que
se debruçaram sobre as formas de pagamento de impostos no reino do Ndongo uma referência
à prestação de serviços dos súditos dos sobados ao ngola. As pessoas que eram entregues aos
embaixadores do ngola eram escravas, como o próprio Livro dos Baculamentos mostra. Não
há descrição de contingentes de trabalhadores que deixavam por tempo determinado seus
sobados para servirem junto ao ngola, a não ser nas campanhas de guerra, mas neste caso a
finalidade é obviamente outra.
No entanto, na vigência do sistema de amos, decorrente da conquista, podem ser
encontradas as primeiras pistas sobre a prestação de serviços por parte dos sobas. Além dos
tributos em gêneros diversos, os portugueses exigiam escravos e, por motivos “ad hoc
inventados”, como diz Beatriz Heintze, os sobas eram obrigados a diversos trabalhos, “entre
os quais o trabalho nos campos, a construção de casas e o serviço de carregadores”28. Logo, a
26
Informação do provedor da Fazenda Real do Reino de Angola, Manuel Pinto da Cunha e Sousa. São Paulo de
Assunção, 30 de setembro de 1770. AHU_CU_001, Cx. 55, D. 6 e 7.
27
Beatrix Heintze, Fontes para a História de Angola do século XVII. Memórias, relações e outros manuscritos
da coletânea documental de Fernão Sousa (1622-1635). Stuttgart: Steiner-Verlag-Wiesbaden-Gmbh, 1985, p.
207.
28
Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII. Estudos sobre Fontes, Métodos e História. Luanda:
Kilombelombe, 2007, p. 262.
156
obrigação de trabalhar gratuitamente nas terras do amo não foi algo expresso por qualquer
legislação. Cadornega também afirmou que desde a chegada dos primeiros conquistadores, os
dependentes dos sobas os serviam “na fábrica de suas casas e lavouras”, na construção de
fortificações e trincheiras29.
Por isso, tendo por base os estudos de Heintze e a discussão que fizemos no
primeiro capítulo, levando em conta as novas possibilidades de leitura sobre a tributação com
base no Livro dos Baculamentos, consideramos que, em síntese, essa prática de dispor do
trabalho dos súditos dos sobas não estava prevista nos tratados estabelecidos entre as chefias
Ambundo e os representantes da Coroa portuguesa. Afinal, as próprias autoridades régias
admitiam que a regulamentação do trabalho dos Ambundos não era uma cláusula dos tratados
políticos selados na conquista portuguesa. Ela foi, antes, “inventada” e, provavelmente, no
decorrer do tempo foi vista como um “costume antigo”, convenientemente imemorial30.
Segundo os undamentos recolhidos pelos capitães-mores, as obrigações de alguns
sobas vinculados a Massangano são genéricas: eles deviam dar “filhos” para todo o serviço
que fosse ordenado. A expressão “serviço real” que indicava nos autos de avassalamento a
necessidade de prestação de serviços de interesse do monarca português deu margem para que
muitas dessas chefias passassem a ser obrigadas a enviar trabalhadores para os mais variados
fins. Em Muxima, o auto de undamento do soba Ucusso Dom Manoel Domingos o obrigava a
aprontar “todos os seus filhos, sobetas e imbari para acudirem ao trabalho do Real Serviço”.
Nesta passagem, o texto remete à esperada ajuda em tempos de guerra, uma das principais
cláusulas da vassalagem. Contudo, o trecho possibilita outras interpretações porque se
explicitou que o soba deveria servir com seus súditos em “qualquer outra diligência do
serviço”31. Ao que tudo indica, as autoridades coloniais do sertão, os particulares (moradores,
negociantes), os missionários, os soldados e “os viandantes, desertores e fugidos” valeram-se
da indefinição da expressão “serviço real” para explorar as populações sob seu domínio.
Sousa Coutinho chega a usar a expressão “trabalho pessoal”32 para essa categoria de prestação
de serviço a particulares, que era frequente nos sertões.
É preciso frisar que as autoridades africanas tinham conhecimento que estavam
sendo “vexadas”. Por exemplo, em 1732, o soba Kabuku Kambilu, Dom André, requeria uma
29
Antonio de Oliveira Cadornega, História das Guerras Angolanas, v. I, p. 45; v. II, p. 67.
30
Carlos Couto trata sobre o assunto no capítulo “O trabalho forçado e gratuito condenação do abuso e suas
regularização pelo Reino”. Carlos Couto, Os capitães-mores em Angola no século XVIII. Subsídio para o estudo
da sua actuação. Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola, 1972, p. 245-252.
31
Portaria em que se estabelecem os jornais dos “pretos trabalhadores”, assinada por FISC. São Paulo de
Assunção de Luanda, sete de dezembro de 1770. AHU_CU_001, Cx. 55, doc. 6 e 7.
32
Idem.
157
provisão para se livrar das “vexações” de homens brancos, negociantes de escravos, marfins e
cera, que o obrigavam a ceder carregadores e chegavam a “ficar” com alguns, sem devolvê-
los ao soba. Uma referência à escravização dos carregadores, um risco a que corriam nos
sertões33. O soba apresentou este requerimento porque sabia que não tinha obrigação de levar
as cargas de particulares, só as de “Sua Majestade”34. Não há qualquer menção a pagamentos,
pelo contrário, esse seria o caso de “carregadores telecos”, tomados à força do soba.
O que se enquadraria como obrigações para o serviço real? Para dar fim às
confusões, na portaria de 1770, o governador legislou sobre dois tipos de serviços. Os
“serviços régios que ou nasceram com a fundação deste reino ou foram crescendo com a
diversidade dos tempos mais ou menos gravosos aos povos” seriam os seguintes:
“a fábrica de igrejas e serviço de missionários nas suas diferentes viagens
seja nas funções dos seus sagrados ministérios, seja nas diligências de
recobrar a saúde porque não devem pagar nada nem tem com que; e é de
direito que aqueles a quem servem os sirvam também; a construção das
fortalezas; casas de feitoria, dos capitães-mores e das prisões públicas; azeite
para os corpos da guarda, condutores ou correios de cartas seja para este
governo, seja para os potentados do sertão; assistência dos carregadores
necessários às diligências das tropas e as de justiça onde os culpados não
podiam pagar culpas; palha e milho para os cavalos”35.
33
Mariana Candido analisou o processo de escravização de carregadores e a vulnerabilidade de sua situação nos
sertões. Mariana Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World, p. 216 e 217. Nas fontes, os capitães-
mores são considerados os grandes culpados pelas injustiças e abusos de que se queixavam os sobas nos sertões.
Silva Corrêa comentou sobre essa importante mão de obra e sobre os abusos cometidos contra os carregadores:
“A sujeição dos sobas ao seu capitão-mor lhe[s] põe nas mãos a dependência do expediente. Os volumes de
fazendas secas e molhadas que giram o continente se depositam nos ombros dos nacionais, para os transportar.
Cada sertanejo exige o número dos precisos carregadores. O capitão-mor em benefício do comércio é obrigado a
fornecê-los, mas a ambição tem chegado ao excesso de os vender debaixo de uma aparência honesta, quero
dizer, sobre a falta de carregadores recebe antecipados prêmios para os aprontar, sem cujas dádivas, persistiriam
as fazendas empatadas, sem se conduzirem às feiras destinadas”. Elias Alexandre da Silva Correa, História de
Angola, v. 1, p. 37.
34
Requerimento de Kabuku Kambilu, soba da jurisdição de Cambambe. Cambambe, quatro de junho de 1732.
AHU_CU_001, Cx. 29, D. 2806.
35
Portaria em que se estabelecem os jornais dos “pretos trabalhadores”, assinada por FISC. São Paulo de
Assunção de Luanda, sete de dezembro de 1770. AHU_CU_001, Cx. 55, doc. 6 e 7. O governador também
menciona os Axiluanda, os moradores da Ilha de Luanda, que eram empregados em serviço no mar e em terra
em contrapartida de parca remuneração. Teriam sido condenados a uma espécie de “escravidão perpétua” por
terem se aliado aos holandeses quando da invasão holandesa no século XVII.
158
36
Idem.
37
Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 42.
38
Cópia do Termo da Junta da Fazenda Real do Reino de Angola assinado por Manuel da Cunha e Sousa,
ouvidor e provedor da Fazenda Real, João Delgado Xavier, juiz de fora e procurador da Fazenda Real e
Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (FISC), governador e presidente da Junta da Fazenda Real. São Paulo de
Assunção de Luanda, 20 de julho de 1767. Este termo segue anexo à carta de FISC, para Francisco Xavier de
159
Mendonça Furtado, secretário do Conselho Ultramarino. São Paulo de Assunção, 22 de agosto de 1768.
AHU_CU_001, Cx. 52, D. 27.
39
Os trabalhadores dos arimos de “Luz de Teles” também queriam a isenção dos dízimos. Carta de FISC para
Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente da fábrica de ferro. São Paulo de Assunção de Luanda, 18 de
julho de 1768. IEB/USP, AL-083-098.
40
Concluímos que os inventários e mapas são desta época porque há indicação nas cartas trocadas entre o
governador de Angola e os intendentes das fábricas de que esses documentos foram enviados ou recebidos. Por
exemplo, em julho de 1768, o intendente Antonio Anselmo Duarte disse que seguia anexo à sua carta para o
governador, o inventário dos sobas: “Inclusa remeto a atestação que vossa excelência pede e a carta, que fica
registrada, e juntamente remeto o inventário dos sobas, que o número da gente que dão (...)”. Carta de Antonio
Anselmo Duarte, intendente geral das reais fábricas de ferro, para FISC. Nova Oeiras, 24 de julho de 1768.
IEB/USP, AL-083-100.
160
terço dos “capazes para o trabalho” dos sobados porque os funcionários da fábrica não
deveriam sobrecarregar os sobados, tirando deles a mão de obra necessária para ao
desenvolvimento da agricultura e, no caso dos ferreiros e fundidores, para a produção de
libambos e cadeias destinados a suprir o comércio de escravos e ferramentas agrícolas. Isso
significa que sob o domínio de 67 chefias da região (65 do Golungo e duas de Ambaca41)
existia ao menos 11.148 subordinados considerados “capazes” de trabalho, inventariados
pelos próprios sobas. Esse levantamento é o mais completo porque provavelmente foi feito
em reposta às ordens do governador para que os capitães-mores e intendentes inventariassem
o que os sobados vizinhos às fábricas poderiam oferecer em termos de mão de obra. Mesmo
que, inicialmente, todas essas lideranças tenham colaborado com o projeto colonial, há
indícios de que essa parceria não se manteve ao longo do tempo.
Não há nenhuma indicação do que se entendia por “capazes para o trabalho”.
Sabemos que os “serventes que conduziam materiais” nas obras reais eram mulheres42, logo
nas fábricas de ferro não seria diferente, carregariam pedras, talvez mina bruta de ferro, entre
outros serviços. Com a exigência de homens jovens para o tráfico transatlântico, é possível
que qualquer criança, velho ou mulher capaz de trabalhar fosse incluso na listagem. É preciso
sublinhar o esforço colonial em dar ares de “justa” a uma forma de exploração até pouco
tempo antes considerada “abuso”. Afinal, a remuneração estendida a todos os serviços, a
isenção dos dízimos, só serviram para legitimar que a partir de então essas pessoas
trabalhassem nas mesmas condições precárias que antes, mas agora a prática era
regulamentada. As condições de trabalho na fábrica de ferro embasam esse argumento.
Isso é muito importante porque ao corrigir um abuso, nos termos jurídicos da
época, os agentes coloniais criaram novos mecanismos para explorar o trabalho de africanos
livres; no caso, o trabalho “constrangido”43 com a isenção dos dízimos. Assim, os
trabalhadores Ambundos em Nova Oeiras estavam sob as regras de outro tipo de
compulsoriedade, que não a escravidão. Os súditos dos sobas seriam “constrangidos” ao
trabalho por causa da isenção do imposto decimal. Não eram considerados escravos, a
41
Ambaca era mais distante de Nova Oeiras, apesar de ter muitos fundidores e ferreiros trabalhando ali.
42
“(...) nos serventes que conduzem materiais cujo serviço costumam fazer as mulheres”. Carta de Antonio de
Vasconcelos, governador de Angola, para Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras. São Paulo de
Assunção de Luanda, 14 de maio de 1760. AHU_CU_001, Cx. 46, D. 4261.
43
FISC diferenciava os “constrangidos” daqueles que voluntariamente fossem trabalhar na fábrica: “Aos negros
(...) que voluntariamente ou constrangidos forem trabalhar na sobredita fábrica”. Portaria assinada por FISC. São
Paulo de Assunção de Luanda, a 29 de outubro de 1768. IEB/USP, AL-083-138. Outro exemplo, dando
instruções de como agir com os soldados que não se ocupavam da agricultura, como deviam: “fazendo como
tantas vezes lhe tenho dito, trabalhar (...) constrangidos aqueles que voluntários e contentes o não fizerem”. Carta
de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira. São Paulo de Assunção de Luanda, 26 de fevereiro de 1769.
IEB/USP, AL-083-222.
161
contrapartida do pagamento, para as autoridades régias, era a garantia de que ali não se
empregava trabalho escravo. A palavra “constrangido” nos parece uma boa definição para o
período porque incorpora a ideia das relações hierárquicas e de dependência que estruturavam
ambas sociedades na época moderna - a europeia do Antigo Regime e a Ambunda dos
mecanismos políticos de parentesco. Ao mesmo tempo, o vocábulo reforça a violência do
processo porque traz a noção de coação, a ideia de alguém que foi “obrigado por força ou por
necessidade” a uma relação compulsória de trabalho44.
Dito isso, voltemos à análise dos “inventários dos filhos capazes”. Em outra
listagem da mesma época, datada de 1768, o intendente geral das fábricas de ferro relacionou
apenas 15 líderes locais que serviam às fábricas com seus súditos. Número muito inferior aos
67 sobas, ilamba, imbari antes listados. Os filhos capazes dessas 15 lideranças perfaziam a
soma de 1.913 e os enviados por mês, 27345. Aparecem também autoridades de outras
jurisdições, Cambambe e Massangano. Para o Golungo são listados apenas seis sobas que
aparecem no levantamento anterior, mas o número de trabalhadores tanto “capazes” quanto
que deveriam ser enviados diminui para todos eles. Se no rol anterior essas lideranças tinham
520 filhos capazes, no de 1768, tinham apenas 328, e, quanto aos súditos que seriam
enviados, o número caiu de 122 para 56. Em Ambaca ocorreu uma revisão do número dos
filhos a ser enviados em relação a ajustes no pagamento dos dízimos, por isso o número
aumentou, os filhos capazes passam de 460 para 600 e o de enviados por mês de 120 para
180.
Esse descompasso entre as listagens fica mais evidente quando os números são
comparados com os dados de um documento sem data intitulado “mapa dos sobas e ilamba
que se desanexam do serviço da fábrica por serem remissos em aprontarem seus filhos para o
serviço dela”46 (ver anexo 5.4). Assim, dos 74 chefes enumerados nas duas listas anteriores,
37 do Golungo foram desanexados dos serviços da fábrica; com eles se retiraram 344 filhos
capazes e 80 dos trabalhadores enviados por mês (conforme o primeiro rol: 3.716 filhos
capazes, 538 por mês). Os sobas “desanexados” voltaram a pagar o dízimo.
44
“Constrangimento”, segundo R. Bluteau, é definido como coação; “constranger” é obrigar por força e
“constrangido” é aquele que foi “obrigado por força ou por necessidade”. Raphael Bluteau, Vocabulário
portuguez e latino, 10 v. Lisboa/ Coimbra: Colégio da Cia. de Jesus, 1712-1728.
45
Carta de FISC para Antônio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente geral das reais fábricas do ferro. Anexo:
Inventário dos sobas, ilamba e imbari. São Paulo de Assunção, 29 de dezembro de 1768. IHGB 126, PADAB
DVD10,22 DSC00303.
46
“Mapa dos sobas e ilamba que se desanexam do serviço da fábrica por serem remissos em aprontarem seus
filhos para o serviço dela e devem de hoje em diante, pagar o dízimo pela nova regulação que se fez”, s/d.
ANTT, Condes de Linhares mç. 46, doc. 11.
162
Em 1773, José Francisco Pacheco, então inspetor das obras da fábrica de Nova
Oeiras, citou que apenas nove chefias enviavam seus súditos para a fábrica. Eram chefes do
distrito do Golungo (6), de Ambaca (2) e de Cambambe (1) que enviavam 310 dependentes
por mês. Entre eles, apenas Mwata a Kamba do Golungo não constava nas listas anteriores47.
Vale observar que, ao longo do tempo, de uma listagem inicial de 74 lideranças locais que
contribuíam para o trabalho nas fábricas restaram somente nove. Percebemos a relutância dos
chefes locais em enviar trabalhadores, pois ora colaboravam, ora se rebelavam, tornando-se
remissos às ordens régias. Os intendentes da fábrica também reclamavam com certa
frequência da falta de trabalhadores. Essa atitude não era a esperada de um vassalo, por isso,
os chefados sofreram uma série de punições. Para citar um exemplo, os sobas anexos ao
presídio de Massangano foram obrigados a pagar uma multa em pedras de sal pelo tempo que
seus súditos se ausentaram do trabalho. O capitão-mor excedeu na cobrança, foi repreendido e
obrigado a restituir parte do pagamento48.
Ao olhar mais de perto essa documentação, é possível localizar entre os chefes
locais aqueles que possuíam maior número de dependentes capazes sob seu controle, o que
indicava aqueles que detinham o domínio sobre um maior número de pessoas. Como a
autoridade sobre amplo contingente populacional era o que determinava o poderio de um líder
Ambundo, essa documentação também nos fornece um recorte das diferenças
socioeconômicas e hierárquicas locais. A maioria dessas chefias (41 em 67) constava ter até
15 filhos capazes para o trabalho, 14 continham até 50 filhos, seis de 50 a 80 filhos, e sete de
150 a 1.000 filhos. É provável que essas sete autoridades fossem as principais da região entre
as vassalas da Coroa portuguesa, à época. Outra análise é a de que as chefias pequenas eram a
regra na região, como Vansina comentou, esse processo é decorrente da desagregação política
e econômica que os sobados sofreram ao longo do tempo por causa da ocupação colonial e
das exigências do tráfico transatlântico49.
O soba Mbangu kya Tambwa se sobressai do conjunto, pois era o único a ter
1.000 dependentes “capazes”. Um sobado, como vimos, importante para a manutenção do
domínio colonial, aliado de longa data dos portugueses. O Mbangu tinha muitos artesãos sob
o seu controle: pedreiros, carpinteiros, ferreiros. Esses últimos principalmente trabalhavam
sob encomenda; os clientes levavam o ferro e eles confeccionavam os objetos que eram
47
Carta de José Francisco Pacheco. Fábrica da Nova Oeiras, cinco de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57, D.
28.
48
Carta de FISC para Manoel de Abreu Aguiar, capitão-mor regente de Muxima. São Paulo de Assunção, 21 de
janeiro de 1772. AHA, Códice 80, fl. 48v-49.
49
Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”, p. 3.
163
facilmente vendidos já que o sobado se localizava nas proximidades de Luanda em uma das
principais rotas para o comércio. A missão dos Carmelitas em suas terras pode ter favorecido
isso, uma vez que os religiosos incentivavam o ensino de ofícios mecânicos. O governador,
repetidas vezes, ordenou que o intendente da fábrica recorresse a esse soba quando precisasse,
por ter “mais filhos”50.
Depois dele, o Ngola Kimbi e o Kabuku Kambilu aparecem com um número
muito inferior de filhos capazes - 400 cada um, seguidos pelo Ngongue Embo Francisco
Lourenço, Muzenze a Nzenza Felipe Antonio e o Kilombo Kya Katubia Antonio, todos com
300 súditos. Entre as chefias com o maior número de dependentes capazes, citamos também o
Kilamba Ngongue a Kamukala Antonio Pedro (dono das minas de ferro onde foi construída
Novo Belém), com 250 filhos, e o Mbumba Ndala Bento de Souza, com 150. Com exceção do
Ngola Kimbi, de Ambaca e do Kabuku Kambilu de Cambambe, todos os outros eram vassalos
do distrito do Golungo.
Entre esses nomes anotados na forma aportuguesada se destacam títulos políticos
Ambundo, sobas identificados como ngola e ndala, enquanto outros são intitulados nzenza
(pode ser lido como associação aos Mbangala assim como kilombo). Já kilamba, como vimos
anteriormente, remeteria a uma autoridade militar associada aos portugueses51. Se deixarmos
de lado o critério dos chefes que possuíam mais filhos capazes, teremos uma porção
significativa de ilamba e imbari, os agentes militares da guerra preta, intensamente ligados ao
comércio de escravos, como responsáveis por expressivo contingente de trabalhadores.
Portanto, ao que parece, outras chefias concorriam com o poderio regional dos sobas, pois
controlavam um considerável número de pessoas na região52.
50
Carta de FISC para Antônio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente geral das reais fábricas do ferro. São
Paulo de Assunção, quatro de julho de 1770. BNP, C 8742, F 6367.
51
O ndala era um titular vunga introduzido entre os Ambundos pelos hango do Libolo – “os antigos Mbundu
provavelmente usavam o nome Libolo apenas para regiões ao sul do Kwanza onde os reis hango tinham as suas
capitais. Os reinos Mbundu geralmente tomavam o nome dos títulos dos seus reis, neste caso os hango. Contudo,
Libolo é o nome hoje em dia usado pelos historiadores tradicionais Mbundu”. Há prevalências de posições
similares ao ndala ao sul do Kwanza. No caso de nzenza, Nzenza Ngombe é identificado nas crônicas militares
do século XVII como um líder Mbangala que foi derrotado pelos portugueses, passando a ser um importante
aliado da conquista colonial. O termo kilombo é mais complexo e polissêmico, variando ao longo do tempo.
Denomina uma associação Mbangala, “o significado original e primário da palavra designava uma associação de
varões aberta a qualquer um sem ter em conta a pertença de linhagem, na qual os membros da associação se
submetiam a impressionantes rituais de iniciação que os afastavam do seio protetor do seu grupo de filiação natal
e, simultaneamente, unia fortemente os iniciados entre si, como guerreiros num regimento de super-homens,
tornados invulneráveis às armas dos seus inimigos”. Joseph C. Miller, Poder político e parentesco: os antigos
Estados Mbundu em Angola. Trad. Maria da Conceição Neto. Luanda: Arquivo Histórico Nacional de Angola,
1995, p. 90-94, 159-161, 214.
52
Fora isso, como lembra Mariana Candido, essas nomenclaturas que designavam os chefes foram usadas pela
colonização portuguesa para classificar quem estava supostamente sob seu domínio: “os exploradores e
administradores portugueses classificaram os líderes da região centro-africana como mani, dembo ou soba,
independentemente da organização política ou ainda do grupo linguístico a que pertenciam”. Mariana Candido,
164
“Jagas e sobas no ‘Reino de Benguela’: vassalagem e criação de novas categorias políticas e sociais no contexto
da expansão portuguesa na África durante os séculos XVI e XVII”. In: Alexandre Vieira Ribeiro, Alexsander
Lemos de Almeida Gebera, Marina Berthet, África: histórias conectadas. Niterói: PPGHISTORIA-UFF, 2014,
p. 66.
53
Carta de João Baines para FISC, intendente da fábrica de ferro de Novo Belém. São Paulo de Assunção, 17 de
dezembro de 1768. IEB/USP, AL-083-203.
54
Cartão de João Baines para FISC. Povoação de Novo Belém, 17 de dezembro de 1768. IEB/ AL-083-203.
55
“Os primeiros antepassados dos Estados que sucedem os presentes se deram princípio com limitação na paga
do Dízimo, e no dar dos filhos, assim seguem os sucessores, esta é a razão da diferença, porque ainda que um
seja avultado, e outro sumenos (sic) no poder dos filhos, querem seguir as suas antiguidades nas regulações que
se praticam com eles”. Carta que João Baines escreveu para FISC. São Paulo de Assunção, 17 de dezembro de
1768. IEB/USP, AL-083-203.
165
56
“Porque se consolam por algum modo, pelo que estão vendo praticar-se com Mbangu kya Tambwa, Ambaca,
e algumas partes mais”. Idem.
57
Carta de FISC para Joaquim de Bessa, tenente regente da Real Fábrica de Ferro. São Paulo de Assunção, 16 de
agosto de 1770. BNP, C 8744, F6443. Essa descrição é de 1770, mas a ordem do Conselho Ultramarino para que
os sobados fossem demarcados é de abril de 1768. AHU, Códice 472, fl. 150-153.
166
Vinham, por exemplo, do arimo de Luz de Teles; nesse caso recebiam pagamento, mas não
eram beneficiados com a isenção dos dízimos, apesar de terem pedido por isso58. Tarefas
específicas, como a produção de tijolos, eram feitas pelos “negros dos arimos
desemparados”59.
Há também indicação de “pretos forros tirados das sanzalas de alguns brancos”60.
O capitão-mor de Cambambe dizia que só poderia “aprontar” de 67 até 100 “pretos dos
sobas” para enviar para Nova Oeiras. Dentro desse número estavam os trabalhadores tirados
da sanzala de moradores brancos. Essa informação é interessante porque apesar de todas as
tentativas de Sousa Coutinho para enfraquecer a autoridade dos os capitães-mores, eles
continuavam a ser quem pressionava aos líderes africanos a dar “filhos”, cooptando mão de
obra na jurisdição de seu presídio ou distrito, inclusive junto a moradores.
Além disso, essa citação nos faz lembrar do alistamento das “gentes d’armas” a
que os moradores, sobas, ilamba e imbari estavam obrigados em tempos de guerra e nos dá
dimensão, mais uma vez, da centralização do capitão-mor como a autoridade régia mais
importante nas relações entre chefias africanas e a administração colonial. Ao que parece, as
autoridades coloniais recorriam ao mesmo mecanismo do alistamento militar para
arregimentar trabalhadores. Na guerra, “cada um [capitão-mor] calcula[va] pelo número dos
sobados que deve[ria] aprontar cada soba, sem, contudo, esvair as forças de seus estados”61.
Assim como no alistamento, o capitão-mor recorria aos dependentes dos moradores como
força de trabalho quando era preciso. Os dependentes não eram remunerados por participarem
da guerra porque sua cooperação era uma obrigação na vassalagem. O que poderia atraí-los
eram os lucros com despojos de guerra. Consideramos que a experiência militar tenha
contribuído para o recurso gratuito da mão de obra dos filhos, reforçando o “costume
imemorial”.
58
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte, intendente geral das reais fábricas de ferro. São Paulo de
Assunção, 18 de julho de 1768. IEB, USP, AL-083-098.
59
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte, intendente geral das reais fábricas de ferro. São Paulo de
Assunção, 15 de junho de 1768. IEB, USP, AL-083-070.
60
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado da Marinha e Ultramar. São
Paulo de Assunção, 15 de novembro de 1768. AUH_CU_001, Cx. 52, D. 68.
61
Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola, Lisboa: Clássicos da Expansão Portuguesa no Mundo.
Império Africano, 1937, v. II, p. 49 e 50. Sobre a arregimentação de gentes para a guerra preta, ver: Roquinaldo
Ferreira, Transforming Atlantic Slaving. Trade, Warfare and Territorial Control in Angola, 1650-1800. Tese
(Doutorado) - University of California, Los Angeles, 2003, p. 174-176; Ariane Carvalho da Cruz, Militares e
militarização no Reino de Angola: patentes, guerra, comércio e vassalagem (segunda metade do século XVIII).
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2014, p. 105 e 106.
167
62
Carta de FISC para Joaquim de Bessa Teixeira, intendente da fábrica de ferro. São Paulo de Assunção de
Luanda, 22 de maio de 1772. AHA, Códice 80, s. fl.
63
“(...) porque trabalhando diariamente não podem ser pagos com o dízimo, e devem receber jornal”. Carta de
FISC para Antonio Anselmo Duarte, intendente geral das fábricas de ferro. São Paulo de Assunção, 15 de junho
de 1768. IEB, USP, AL-083-070.
64
FISC em carta para João Baines, tenente general e intendente da fábrica de ferro de Novo Belém: “É preciso
que vossa mercê evite quanto poder a providência da força, fazendo com que os negros pagos modicamente até o
preço dos que trabalham nesta cidade possam não só viver contentes e satisfeitos de ganhar a vida nas suas
próprias casas, mas que a sua alegria faça atrair mais outros negros dispersos de forma que em lugar de ficarem
desertas as habitações pelas costumadas violências deste sertão, sejam estas as mais florentes, e povoadas de
todo ele”. Carta de FISC para João Baines, tenente general. São Paulo de Assunção de Luanda, 8 de março de
1766. BNP, C - 8742, F - 6364.
65
Idem.
66
O número salta aos olhos, mas é o que foi registrado pelo autor do documento; lembrando que valiam-se do
regime de recrutamento parcial, essa é a quantia de pessoas que trabalharam durante dois anos ali, não
necessariamente ao mesmo tempo. Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Tomé
168
cifra foi calculada pelos seis mineiros que trabalharam ali; os trabalhadores serviam em um
sistema de revezamento que é parecido com o que vigorou nas minas de ferro.
Além disso, o governador de então, Antonio de Vasconcelos, afirmou que o
“arraial” da expedição que minerava o ouro “nunca se compunha de menos de 500 ou 400”
trabalhadores. As violências (“vexações” segundo o documento) contra as populações locais
foram tantas que “as fomes que padeceram foram grandes, especialmente entre os pretos pois
só se lhes repartiam por mês, a cada trinta, três sacos de farinha e o terço de um de feijão”.
Supridos desses poucos alimentos, os trabalhadores percorriam longas jornadas, de mais de
seis dias. Isso ocasionava muitas mortes e fugas, que eram punidas pelos soldados que
perseguiam os fugitivos “maltratando e afugentando tudo”. Essa era a experiência histórica de
exploração do trabalho junto a minas que pautava a memória dos funcionários régios e
também a dos sobas e seus dependentes. Sousa Coutinho entendia que precisava dissociar sua
grande empreitada de qualquer referência à exploração do ouro que ocorrera em uma região
muito próxima daquela em que se fundou as fábricas de ferro, pois o Lombige ficava contíguo
às terras do Mbangu kya Tambwa, no Golungo. Por isso, segundo ele, o responsável pela
fábrica deveria substituir as violências empregadas naquele episódio por um “método mais
suave” de tratamento dos trabalhadores.
Para termos ideia de como esse número de trabalhadores é uma imensidão de
gente, nas Minas Gerais, durante o auge da mineração aurífera, a média aproximada de
escravos na região era de 100.000 pessoas67. E, obviamente, a cifra não corresponde apenas
aos cativos que trabalhavam na mineração. Hoje é indiscutível que a diversificação das
atividades econômicas foi uma realidade nessa região mineradora, ao longo de todo o
Setecentos. Portanto, parte dos escravos desempenhava ofícios urbanos, e se concentrava nas
atividades comerciais e agrícolas. Logo, a quantia de Ambundos que trabalharam no
Lombige, em comparação, salta aos olhos.
Joaquim da Costa Corte Real. São Paulo de Assunção, seis de janeiro de 1759. SGL, Arquivo das colônias, v. V,
n. 30, 1930, p. 148. Não há na transcrição a referência arquivística do documento. Mas quem o transcreveu
anotou o seguinte: “Este documento esteve em poder do marquês de Sá da Bandeira para os seus estudos sobre
Angola, talvez quando coordenava elementos para a sua Carta de Angola”. Imagino que esse documento também
serviu para Sá da Bandeira construir sua argumentação sobre a extinção do recrutamento forçado de
carregadores.
67
Os historiadores não chegaram a um número definitivo sobre a estimativa da população escrava nas Minas
setecentistas devido as dificuldades com a documentação. Só a partir de 1776 que as autoridades coloniais
começaram a encomendar arrolamentos de todos os segmentos da população. Portanto, a cifra de 100.000 é uma
estimativa. Douglas Cole Libby, “As populações escravas das Minas Setecentistas: um balanço preliminar”. In:
Maria Efigênia Lage de Resende, Luiz Carlos Villalta (org.). História de Minas Gerais. As Minas Setecentistas.
Belo Horizonte: Autêntica, v. 1, 2007, p. 407-439.
169
68
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Tomé Joaquim da Costa Corte Real. São Paulo
de Assunção, seis de janeiro de 1759. SGL, Arquivo das colônias, v. V, n. 30, 1930, p. 148.
69
Idem. Esses trabalhadores parecem também terem sido remunerados em fazendas, porém o pagamento não
compensava as condições precárias de trabalho. No ano de 1756, despendia-se 300 mil réis em fazendas para o
“pagamento dos trabalhadores das minas”. Carta de Antonio Álvares da Cunha, governador de Angola. São
Paulo de Assunção de Luanda, 22 de janeiro de 1756. AHU_CU_001, Cx. 40, D. 72.
70
“Instrução que deve guardar Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, servindo o emprego de intendente geral da
fábrica do ferro, e que executarão também os capitães-mores, como intendentes particulares na parte que lhes é
respectiva” (FISC). São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de janeiro de 1767. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 73.
71
Carta de FISC para João de Meneses, capitão-mor de Muxima. São Paulo de Assunção, seis de fevereiro de
1768. AHA, Códice 79.
170
entregavam impostos, porque lhes deviam lealdade e obrigações assentadas nas lógicas do
parentesco e em relações de dependência.
Para o governador, era preciso mudar o “gênio dos negros”, torná-los “ativos
trabalhadores”, mas queria fazer isso “sem assustá-los”72. Por isso mesmo, Sousa Coutinho
determinava que as condições de trabalho fossem observadas severamente: as barras de ferro
não deveriam ser carregadas nas costas dos Ambundos, mas nos lombos dos jumentos que
mandou buscar no Brasil; o castigo pela falta de trabalho deveria ser a diminuição do jornal e
de “nenhuma forma com pancadas”; ficava estabelecido ainda “meia hora para almoçar e duas
para jantar” escolhendo o período mais apropriado “para fugir ao sol”73. Além disso, os sobas
deveriam enviar a terça parte dos trabalhadores que tinham com a finalidade de que cada
trabalhador servisse apenas quatro meses por ano nas fábricas74. Neste último aspecto, há
também a preocupação de que houvesse trabalhadores suficientes nos sobados para o
desenvolvimento da agricultura75.
Também foi determinado o uso de uma espécie de “livro do ponto” pelo qual
“todos os trabalhadores se[riam] revistados pela manhã, ao jantar e à noite”. Deste livro eram
extraídas “pelo escrivão, no fim de cada mês, relações” pelas quais se faria o pagamento
mensal dos jornais dos trabalhadores76.
A reunião de trabalhadores em um ambiente laboral controlado, ainda que em um
momento anterior ao que se convencionou chamar sistema de fábrica, colocava em jogo o
controle técnico do processo de trabalho, da produtividade e da comercialização dos produtos
que fora da fábrica permanecia ditado pelos trabalhadores77. O “livro do ponto”, a hierarquia
72
“Instrução que deve guardar Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, servindo o emprego de intendente geral da
fábrica do ferro, e que executarão também os capitães-mores, como intendentes particulares na parte que lhes é
respectiva” (FISC). São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de janeiro de 1767. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 73.
73
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado da Marinha e Ultramar. São
Paulo de Assunção de Luanda, 29 de outubro de 1768. AHU_CU_001, Caixa 52, D. 48.
74
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte, intendente geral das fábricas de ferro. São Paulo de Assunção,
29 de julho de 1768. IEB, USP, AL-083-090. “(...) mando que naqueles serviços distantes se estabeleça uma
medida certa de carga, e o número correspondente de caminhos, seja das Serras do Ferro para a Fábrica, seja das
carvoeiras, que a todos ficar comum”. Portaria estabelecendo os jornais dos trabalhadores da Fábrica de Ferro de
Nova Oeiras. São Paulo de Assunção, 20 de outubro de 1768. IEB, USP, AL-083-138.
75
“(...) dando sempre a terça parte dos filhos, que tiverem, para que se rendam aos meses, e fiquem as duas
descansando, e cultivando terra nas estações próprias”. Portaria estabelecendo os jornais dos trabalhadores da
Fábrica de Ferro de Nova Oeiras. São Paulo de Assunção, 20 de outubro de 1768. IEB, USP, AL-083-138.
76
Portaria estabelecendo os jornais dos trabalhadores da Fábrica de Ferro de Nova Oeiras. São Paulo de
Assunção, 20 de outubro de 1768. IEB, USP, AL-083-138.
77
Edgar de Decca chama a atenção para o processo histórico do desenvolvimento do “putting-out system”, o
modo de organização do trabalho que originou o sistema de fábrica, nas áreas coloniais. Para ele, na Europa, a
partir do século XVI,” nas áreas coloniais a concentração de trabalhadores destituídos de meios de produção e
expropriados de qualquer saber técnico apareceu como organização do trabalho mais eficiente para se levar a
cabo os interesses do lucro capitalista, e ali também a figura do empresário se tornou imprescindível para o
processo de produção”. O autor discorre como o processo de trabalho nos engenhos de açúcar no Brasil se deveu
171
a essa nova organização social do trabalho. Edgar Salvadori de Decca, O nascimento das fábricas. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1982, p. 43 e ss.
78
“(...) mandará vossa mercê contar e pagar aos negros que forem chamados para o Serviço dessa Fábrica, como
dias de efetivo trabalho aqueles de ida e de volta, mas não hão de ser os que eles gastarem pela sua frouxidão, só
sim os que devem gastar, como qualquer homem diligente o faria indo, e vindo para cujo fim fará vossa mercê
uma lista dos dias de caminho que tem cada uma das libatas, que na regulação dos dízimos ficam obrigadas a dar
trabalhadores para a Fábrica, para pela mesma justa e sabiamente se lhe contarem os dias de ida e volta, e se lhes
pagarem”. Carta de FISC para Joaquim de Bessa Teixeira, tenente regente da real fábrica de ferro. São Paulo de
Assunção, 22 de setembro de 1770. BNP, C 8744, F6443.
79
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de estado da marinha e ultramar. São
Paulo de Assunção, 28 de novembro de 1768. AHU_CU_001, Caixa 52, D. 44.
80
Conta da despesa feita com a construção da fábrica de ferro de Nova Oeiras desde o primeiro de janeiro de
1766 a março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57, Doc. 28.
172
sal para
jornais
comuns
fazendas
para
sal para sal para jornais
jornais jornais comuns sal para
comuns comuns jornais
comuns
fazendas
para
fazendas
para jornais jornais
comuns biscainhos comuns
Fonte: Conta da despesa feita com a construção da fábrica de ferro de Nova Oeiras desde o primeiro de janeiro
de 1766 a março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57, Doc. 28.
81
Carta de José Francisco Pacheco. Fábrica da Nova Oeiras, cinco de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57, D.
28. À princípio, antes das portarias para regular os salários, o governador estabeleceu como pagamentos para os
ferreiros e fundidores 2$400 rs pelo quintal de ferro produzido, pagos em fazenda.
82
Portaria assinada por FISC. São Paulo de Assunção de Luanda, a 29 de outubro de 1768. IEB/USP, AL-083-
138.
83
Idem.
174
86
Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”, p. 11.
87
Carta de FISC para Francisco Xavier de Andrade, capitão-mor do presídio de Ambaca. São Paulo de
Assunção, 15 de setembro de 1770. BNP, C 8744, F 6443. Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de
Siqueira, intendente geral da fábrica de ferro. São Paulo de Assunção de Luanda, 18 de setembro de 1768.
IEB/USP, AL-083-133.
88
Do kimbundu, mukanu, condenação, falta, culpa. Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 420.
176
89
Carta de Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral da fábrica do ferro da Nova Oeiras, para FISC. Nova
Oeiras, 28 de dezembro de 1771. SGL, AA, v.3, n. 29, p. 361-393.
90
Carta de FISC para Félix da Cunha de Almeida, capitão regente do Golungo. São Paulo de Assunção, 10 de
janeiro de 1772.SGL, AA, v.3, n. 29, p. 361-393.
91
Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 99.
92
Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”, p. 11.Sobre as mudanças nos tribunais de
mucanos instauradas no governo de Sousa Coutinho, ver: Catarina Madeira Santos, “Entre deux droits, les
Lumières en Angola (1750-v.1800)”, Annales. Histoire Sciences Sociales, Paris, 2005, n. 4, p.817-848.
93
Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 105-106. Roquinaldo Ferreira
acompanhou a história de africanos ilegalmente escravizados que contestaram sua condição junto a esses
tribunais.
177
com destino a Luanda. Por isso, reunia um grande contingente populacional atraído pelas
atividades de subsistência do comércio e contava com grande circulação de pessoas e
mercadorias94.
Inicialmente, a grande quantidade de ferreiros e fundidores trabalhando em
Ambaca chamou a atenção do governador, que passou a pedir “somente metade dos ditos
filhos”. Quatro meses depois, determinou que só os ferreiros e fundidores da Ilamba deveriam
ir para as fábricas e que em Ambaca, esses trabalhadores ficassem preparando o ferro e as
“enxadas, libambos, e mais instrumentos para a sua agricultura e comércio, o que tudo se
entende para o próprio tráfico das gentes”95. Os negociantes da região dependiam do trabalho
com o ferro mais que quaisquer outros e as demandas da fábrica começaram a concorrer com
as suas necessidades do metal. Nova Oeiras chegou a produzir 40 quintais de ferro por mês
que era enviado para Luanda, Lisboa, Rio de Janeiro e uma vez para uma nau da Índia; certo é
que a fábrica desestabilizou o mercado local de produtos de ferro. Há uma referência de que o
governador chegou a instalar naquela jurisdição uma pequena fábrica, provavelmente análoga
à “Casa de Fundição dos Pretos”, para arrefecer os ânimos dos negociantes96. Entretanto, a
falta de ferro persistia.
Os conflitos continuaram e Sousa Coutinho acusou os agentes do comércio de
Ambaca de espalharem mentiras sobre o serviço na fundição de ferro, pois atribuíam a
“deserção e ruína do país” às péssimas condições de trabalho em Nova Oeiras97. O
governador se defendia dizendo que as calamidades do Reino de Angola se deviam ao mau
procedimento daqueles pumbeiros, que praticavam o “reviro”98 e usurpavam o “governo das
94
Além disso, nos informa Elias Correa que ali havia grandes plantações de algodão e agrícolas, fabricação de
panos linhageiros (mais um item fundamental para o comércio – “moeda corrente” como diz o militar), também
se fabricava excelentes vasos de barro. Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola, v. I, p. 121, 154,
156, 165
95
Cartas de FISC para Francisco Matoso de Andrade, capitão-mor de Ambaca. São Paulo de Assunção de
Luanda, cinco e 25 de maio de 1767. BNP, C 8742, F 6364.
96
Como é só uma pequena citação, não encontramos mais informações sobre essa pequena “fábrica”. Carta de
FISC para José Antunes de Campos, regente de Ambaca. São Paulo de Assunção de Luanda, 25 de janeiro de
1768. IEB/USP, AL-083-002. “Se o Intendente Geral entender, que essa Fábrica de Ferro, que para os
Negociantes, e Negros mandei estabelecer nesse Distrito produz as vexações que me foram presentes, e não dá
proveito, nem remedeia a necessidade [disto?] que os ditos Negros e Negociantes tem quando necessitam todo o
ferro que querem sem constrangimento ou violência, vossa mercê deixará os Negros Ferreiros e Fundidores
livres ao seu arbítrio para obrarem o que bem lhes parecer, visto que não há outro meio de conduzir semelhantes
gentes”.
97
Idem.
98
Os pumbeiros de Ambaca eram conhecidos pela prática do “reviro”. Os agentes do comércio eram contratados
por negociantes da praça de Luanda para comprar escravos nas feiras do interior, com as mercadorias adiantadas
pelo negociante. Era comum o “reviro” dos escravos obtidos no sertão, ou seja, os pumbeiros vendiam os cativos
para outro comerciante que oferecesse um valor maior, desrespeitando o trato com o primeiro.
178
sanzalas dos sobas”. Só no caso do soba Ngonga a Mwiza99, por exemplo, “uns poucos de
negociantes tiraram quarenta sanzalas”100. Governadores, negociantes, capitães e sobas
disputavam o governo das sanzalas, das gentes.
Segundo o intendente da fábrica Joaquim Teixeira, os comerciantes espalhavam
boatos de que os trabalhadores de Nova Oeiras sofriam “maus-tratos” e “pancadas” e que as
obras das fábricas implicavam um trabalho exaustivo, mas o motivo desses rumores era que
os negociantes queriam “livrar os negros do serviço” das fábricas porque os queriam para as
suas próprias “conveniências”. Ao se dirigir ao governador, o intendente relatou:
“pois não há negociante naquela província [Ambaca] que não tenha duas e
três libatas*, ou povoações agregadas a si para serviços próprios, aos quais
povos defendem, e patrocinam tanto como a seus escravos, pois como tais se
servem deles, e o mesmo se pratica em todas as jurisdições e por esta razão
publicam as perniciosas vozes de culparem em tudo a fábrica”101.
99
B. Heintze estudou esse sobado. Ficava ente os rios Lukala e Lutete, foi avassalado no início do século XVII.
C.f.: Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 539-554.
100
Carta de FISC para Francisco Xavier de Andrade, capitão-mor do presídio de Ambaca. São Paulo de
Assunção, 15 de setembro de 1770. BNP, C 8744, F 6443.
101
Carta de Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral da fábrica do ferro da Nova Oeiras, para FISC. Nova
Oeiras, 28 de dezembro de 1771. SGL, Arquivos de Angola, v.3, n. 29, p. 361-393.
102
Carta de Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral da fábrica do ferro da Nova Oeiras, para FISC. Nova
Oeiras, 28 de dezembro de 1771. SGL, Arquivos de Angola, v.3, n. 29, p. 361-393. Os soldados a cavalo eram
mesmo mais intimidantes para a comitiva de trabalhadores. Roquinaldo Ferreira comenta que com os cavalos os
soldados podiam perseguir com mais sucesso as populações em fuga, vencidas em guerra. Roquinaldo Ferreira,
Transforming Atlantic Slaving, p. 171.
179
precisa para dois empregos que lhes eram muito caros: os carregadores103 necessários para as
caravanas e os ferreiros e fundidores, que fabricavam os libambos. O desagrado não era só
dos negociantes de Ambaca, já que Sousa Coutinho determinou que: “nas terras que dão gente
para o ferro se não dê carregador a ninguém, seja qual for o pretexto”104.
Por fim, na fábrica de nova Oeiras, as fugas dos Ambundos provenientes de
Ambaca eram tão comuns que, em 1769, o governador ordenou que não se pedisse mais
trabalhadores daquela localidade. Sousa Coutinho dizia não conseguir entender o motivo das
“deserções” uma vez que os trabalhadores eram pagos e “mais bem tratados do que os
negociantes os tratam”105. Não há dúvidas de que os trabalhadores em Nova Oeiras foram
submetidos a condições precárias de vida, o que era motivo mais que suficiente para fugas.
Talvez os de Ambaca fugissem mais porque próximo àquela jurisdição se encontrava um
importante mercado que recebia africanos escravizados do reino do Holo, o Bondo. Ali, os
fugitivos viviam “livremente apesar das queixas dos comerciantes itinerantes (sertanejos e
feirantes) que operavam na região em nome dos comerciantes de Luanda”106.
103
O capitão-mor de Ambaca dizia que tinha dificuldades de dar carregadores aos comerciantes porque o serviço
de Nova Oeiras ocupava “ainda bastantes negros do trabalho”. FISC denunciava “as violências que os mesmos
fazem aos tais carregadores, dando-lhes cargas exorbitantes, de forma que os mesmos para evitar a morte em
uma viagem tão dilatada, necessitam repetir a carga, alugando outro carregador à sua custa”. Carta de FISC para
Francisco Xavier de Andrade, capitão-mor de Ambaca. São Paulo de Assunção, 15 de abril de 1772. AHA,
Códice 80.
104
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte, intendente geral das reais fábricas de ferro. São Paulo de
Assunção, 15 de junho de 1768. IEB, USP, AL-083-070.
105
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte. São Paulo de Assunção, sete de novembro de 1769. BNP, C
8743, F 6367.
106
De acordo com o capitão-mor de Ambaca, o Bondo era “uma terra de muitas comunidades fugitivas formadas
por escravos que haviam fugido dos brancos, que às vezes eram capazes de apreender esses fugitivos, desde que
não estivessem relacionados aos africanos do país. Muitas vezes os fugitivos usavam laços com a população
local para formar grandes comunidades lideradas por fugitivos que se tornaram líderes. Alguns encontravam os
seus antigos proprietários na estrada, quando realizavam tarefas que queriam depois de repetidas solicitações,
após as quais retornavam livremente às suas casas”. Roquinaldo Ferreira, “Slave flights and runaway
communities in Angola (17th-19th centuries)”. Anos 90, v. 21, n. 40, 2014, p. 72.
107
Jill Dias, “O Kabuku Kambilu (c. 1850-1900). Uma identidade política ambígua”. Ver também: Roquinaldo
Ferreira, Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 41 e 42.
180
consequente poderio militar; havia expandido seu domínio sobre as terras dos sobados ao
longo do Kwanza, o que lhe permitiu o controle de rotas comerciais fulcrais.
O soba Kabuku Kambilu, D. André Fernandes, era um dos principais colaborados
das fábricas de ferro, enviava 400 trabalhadores todos os meses. A chefia deixou de servir
dois meses na fábrica porque o capitão-mor do presídio, a quem estava sujeito, “o notificou
para acompanhá-lo com todos os seus empacaceiros a uma diligência na província do
Libolo”108; uma provável incursão com “gente da guerra preta”, como os empacaceiros, para
repreender vassalos daquela província. O soba explicava que não podia “arder em dois fogos”
e por isso não havia enviado os 40 trabalhadores a que estava obrigado para Nova Oeiras.
Como resultado do conflito, o governador ordenou que José Tomás Xavier, o capitão-mor de
Cambambe, remetesse prontamente os trabalhadores para Nova Oeiras e continuasse a enviá-
los todos os meses109.
O soba Kabuku não cumpriu as ordens porque em maio de 1772, quatro meses
depois de o capitão-mor emitir a notificação, o governador determinou que o soba enviasse os
seus súditos para as fábricas sob pena de perder a patente que o governador lhe passara110,
bem como o “marco de isenção do dízimo”111. A ameaça ia no sentido de o soba perder duas
conquistas de peso: uma patente militar, símbolo de distinção social no sertão, e o marco dos
dízimos em suas terras, ou seja, o soba voltaria a ter de arcar com os impostos e a lidar com
os cobradores. Dois meses depois disso, o soba foi convocado a comparecer à presença do
governador. D. André Fernandes deveria explicar a razão de continuar faltando às obras da
fábrica de ferro, no prazo 15 dias, caso contrário o Sousa Coutinho mandaria “proceder
asperamente” contra ele por causa de sua desobediência112. Evidente menção a incursões
militares às terras de Kabuku como punição, caso ele não cumprisse a ordem. Essas razias
rendiam grande número de escravos113.
108
Carta de Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral da fábrica do ferro da Nova Oeiras, para FISC. Nova
Oeiras, 28 de dezembro de 1771. SGL, AA, v.3, n. 29, p. 361-393.
109
Carta de FISC para José Tomás Vaz Vieira, capitão-mor de Cambambe. São Paulo de Assunção, 10 de
janeiro de 1772.SGL, AA, v.3, n. 29, p. 361-393.
110
Por mais que s tentasse acabar com a política de estender as mercês aos sobas em forma de patentes, elas
eram comuns. Uma importante estratégia para incorporar chefias africanas para cargos da administração
portuguesa. Ao mesmo tempo em que gerava novas hierarquias nos sertões. C.f.: Ariane Carvalho da Cruz,
Militares e militarização no Reino de Angola: patentes, guerra, comércio e vassalagem (segunda metade do
século XVIII). Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2014.
111
Carta de FISC para D. André Fernandes Soba Kabuku Kambilu. São Paulo de Assunção, sete de maio de
1772. SGL, AA, v.3, n. 30-33, p. 401-445.
112
Carta de FISC para D. André Fernandes Soba Kabuku Kambilu. São Paulo de Assunção, 29 de julho de 1772.
AHA, Códice 80.
113
Joseph C. Miller, Poder político e parentesco: os antigos Estados Mbundu em Angola. Trad. Maria da
Conceição Neto. Luanda: Arquivo Histórico Nacional de Angola, 1995, p. 150.
181
Não sabemos se o Kabuku foi atacado pelo capitão-mor de seu presídio, mas
parece que foi repreendido porque, em setembro do mesmo ano, assinou um termo em que
prometia “cumprir, observar e executar” as ordens do intendente da fábrica, “sob pena de
castigo”, não deixando faltar “um só negro no tempo competente” a que tinha se obrigado a
enviar114. Segundo os relatórios dos sobas que enviavam trabalhadores para Nova Oeiras, o
Kabuku continua neste serviço até 1773 (ver anexo 5, tabela 5.5).
É interessante observar que, mesmo sob ameaças, o soba Kabuku descumpriu
sucessivamente as determinações do intendente da fábrica, do capitão-mor e do governador.
Ao que tudo indica, a importância desse título político africano se consolidou ao longo do
tempo, pois no século XVIII o Kabuku detinha grande número de dependentes sob seu
domínio. A história das relações políticas e econômicas deste sobado com os agentes
coloniais revela uma trama complexa que passa da “colaboração à resistência”, da “adaptação
à rejeição”115, em que os titulares do sobado conseguiram a duras custas, com constantes
repreensões e ameaças, manter a soberania ao longo do tempo.
Esses embates põem manifesta a tensão que permeava as relações entre o governo
de Luanda e os funcionários régios do interior, bem como destes com os comerciantes e sobas
vassalos. Por outro lado, com o advento da fábrica de ferro, as autoridades locais se
encontravam ainda mais pressionadas a enviar seus dependentes para atender as muitas
demandas descritas até aqui. Mesmo em uma situação de múltiplas tensões, os sobas valeram-
se da prerrogativa de que todas essas demandas dependiam do trabalho de seus dependentes e
isso lhes garantiu alguma margem de ação.
No “mapa dos sobas e ilamba que se desanexam do serviço da fábrica por serem
remissos em aprontarem seus filhos para o serviço dela” constam 37 autoridades locais que
também abandonaram os serviços da fábrica e, por isso, voltaram a pagar os dízimos116. Entre
elas não encontramos o ndembu Kakulo Kakahenda, que foi expulso dos serviços da fábrica
pelo intendente ao que parece porque não tinha “filhos” o suficiente para enviar. Isso porque,
em dezembro de 1771, o ndembu foi readmitido na fábrica de Nova Oeiras. O governador
ordenou que o intendente devia tornar a recebê-lo, mesmo que o ndembu pudesse enviar
114
Carta de FISC para Joaquim de Bessa Teixeira, intendente da fábrica de ferro. São Paulo de Assunção, nove
de setembro de 1772. AHA, Códice 80.
115
Jill Dias, “O Kabuku Kambilu (c. 1850-1900). Uma identidade política ambígua”, p. 15.
116
O soba Kabuku não consta na listagem. “Mapa dos sobas e ilamba que se desanexam do serviço da fábrica
por serem remissos em aprontarem seus filhos para o serviço dela e devem de hoje em diante, pagar o dízimo
pela nova regulação que se fez”, s/d. ANTT, Condes de Linhares mç. 46, doc. 11.
182
apenas 16 trabalhadores por mês117. Sousa Coutinho chegou a determinar que o intendente das
fábricas enviasse soldados para punir os sobas que se beneficiassem com a isenção dos
dízimos e não enviassem trabalhadores. Ao tomar essa medida violenta, a conclusão do
governador era de que os próprios sobas, pela sua desobediência, geravam as violências de
que se queixavam118. Raciocínio plausível com o conceito de guerra justa, já que os sobas
deviam obediência enquanto vassalos e, uma vez, que se rebelavam, passavam a merecer os
castigos que estavam previstos nos autos de vassalagem.
Ao que parece, ao tentar fugir das violências dos cobradores dos dízimos, essas
chefias acabaram por vivenciar os abusos do governo de Luanda e de seus funcionários nas
fábricas de ferro. No caso do soba Kabuku, de Cambambe, a justificativa para sua
desobediência era a incapacidade de atender simultaneamente múltiplas demandas, uma
situação que seguramente se repetia em outros sobados. Em contrapartida, os relatos das
razões das fugas dos súditos dos sobas da povoação de Nova Oeiras são mais abundantes. Em
uma representação do soba D. Manoel Mendes Kisala ao governador de Angola, ficam
explícitas as razões por que seus dependentes desertavam dos trabalhos da fábrica. Ele se
queixava dos “muitos castigos, insolências, prisões e roubos” que seus filhos sofriam em
Nova Oeiras119. Além disso, ao contrário do que determinavam as portarias de 1768 e 1770,
os súditos do soba Kisala não recebiam pagamentos porque realizavam o serviço de limpeza
da povoação, o que para o governador era “bem comum” e por isso não precisava ser
remunerado120.
Essa não é única indicação de falta de pagamentos. Em outubro de 1767, o
governador explicou ao intendente da fábrica que enquanto os mestres biscainhos não
chegassem não seria possível realizar pagamentos. Os filhos do soba Kabuku Kambilu, que
deveriam ser convocados para auxiliar aos soldados nas lavouras da povoação, ficariam sem
receber jornal. Somente na colheita receberiam a porção correspondente ao seu trabalho121.
117
Carta de FISC para Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral da fábrica do ferro da Nova Oeiras. São
Paulo de Assunção, 22 de dezembro de 1771. SGL, AA, v.3, n. 29, p. 343-351.
118
“Primeira, a regulação dos negros na forma das minhas ordens, porque é injusto que estejam alguns sobas
isentos do Dízimo não trabalhando na Fábrica, e posto que eu disse que não fossem lá soldados pelos não vexar,
isto se entende obedecendo eles as ordens, porque não obedecendo é certo que eles vem a ser o que radicam o
mal de que se queixam, e como esta é uma matéria de grande consideração, espero que vossa mercê a não
omita”. Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira. São Paulo de Assunção, 16 de novembro de
1769. BNP, 8743, FF 6377.
119
Carta de FISC para Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral da fábrica do ferro da Nova Oeiras. São
Paulo de Assunção, 24 de fevereiro de 1772. SGL, AA, v.3, n. 30-33, p. 401-445
120
Carta de FISC para Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral da fábrica do ferro da Nova Oeiras. São
Paulo de Assunção, 19 de março de 1772. SGL, AA, v.3, n. 30-33, p. 401-445.
121
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente geral das fábricas de ferro. São Paulo de
Assunção de Luanda, 27 de outubro de 1767. BNP, C 8742, F 6364.
183
Em 1770, José Francisco Pacheco, então inspetor das obras da fábrica, foi
admoestado pelo mesmo governador, já explicitamente ciente dos motivos das deserções: “os
negros do trabalho se queixam das pancadas que lhe dão e que por isso desertam, vossa mercê
evite semelhante tirania”122.
O verbo “desertar” era utilizado em meios militares. Para Bluteau “desertar” é
“termo militar, fugir e deixar o campo, o exército, guarnição, praça ou regimento, ou
companhia em que está qualquer soldado”123. Como já dito, a experiência militar de
arregimentar gentes para a guerra definia as relações estabelecidas com os súditos dos sobas
que eram “constrangidos” ao trabalho. Isso porque o governador esperava dos subordinados
dos sobados obrigações similares às esperadas dos soldados que sob seu mando enviava para
Nova Oeiras. Os filhos dos sobas, por sua vez, não estavam sob controle direto do governador
ou dos funcionários das fábricas, estavam ali em obediência aos seus makota, sobas. Mesmo
com todas essas tentativas de regular as relações de trabalho, a administração colonial
fracassou neste sentido – os líderes locais, ainda que sofrendo todas essas pressões,
conseguiram resguardar o domínio sobre suas gentes.
As notícias sobre pancadas, falta de pagamentos, roubos não eram novas, em carta
para o capitão-mor de Muxima, o governador advertiu:
“devo advertir a vossa mercê que pague por justo e moderado preço assim os
carpinteiros como os negros que os ajudarem porque El Rei não quer o
sangue de seus vassalos e toda realidade e desamparo desta conquista
consiste na falta geral de pagamento ao miserável suor do que trabalha
porque não há uma pessoa tão bárbara que recuse o serviço quando se lhe
satisfaz, e os mesmos negros tem a bastante razão para conhecer estes
princípios, se fogem ao trabalho é porque ele só lhe produz pancadas e
injúrias; sendo este o princípio da ruína e da decadência do país não é
possível que eu o siga principalmente quando para remediá-lo tenha feito
tantas diligências e tendo multiplicado todos os trabalhos”124.
122
Carta de FISC para José Francisco Pacheco, inspetor das obras de Nova Oeiras. São Paulo de Assunção de
Luanda, 14 de maio de 1770. BNP, C 8743, F6377, fl. 189v.
123
Raphael Bluteau, Vocabulário portuguez e latino, 10 v. Lisboa/ Coimbra: Colégio da Cia. de Jesus, 1712-
1728, verbete “desertar”.
124
Carta de FISC para Antonio João de Meneses, capitão-mor de Muxima. São Paulo de Assunção de Luanda,
seis de fevereiro de 1768. AHA, Códice 79, fl. 78.
125
“Instrução que deve guardar Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, servindo o emprego de intendente geral da
fábrica do ferro, e que executarão também os capitães-mores, como intendentes particulares na parte que lhes é
respectiva” (FISC). São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de janeiro de 1767. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 73.
184
126
Depois disso, Sousa Coutinho mandou que os filhos de Kisala passassem a ser remunerados. Carta de FISC
para Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral da fábrica do ferro da Nova Oeiras. São Paulo de Assunção, 19
de março de 1772. Arquivos de Angola, v.3, n. 30-33, p. 401-445
127
AHU, CCU, Avulsos Angola, 14 de março de 1756, Caixa 40, documento 119. Apud Ariane Carvalho da
Cruz, Militares e militarização no Reino de Angola: patentes, guerra, comércio e vassalagem (segunda metade
do século XVIII), p. 132. Sousa Coutinho nos conta essa história quando da nomeação do intendente: “entendo
que este homem [Siqueira] era o único que aqui havia para estes primeiros estabelecimentos, creio os servirá
muito bem, e fez uma grande fineza, abandonando o seu comércio, por que sendo um pouco maltratado nos dois
governos antecedentes, saiu do serviço militar, em que era antigo alferes de cavalaria e se fez negociante”. Carta
de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado da Marinha e Ultramar. São Paulo de
Assunção de Luanda, 17 de fevereiro de 1767. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 73.
128
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte, intendente das fábricas de ferro. São Paulo de Assunção de
Luanda, 18 de fevereiro de 1767. BNP, C 8742, F6364.
185
A citação corrobora o que pode ser encontrado em outros documentos citados até
aqui: a experiência da fábrica expõe as tensões que existiam nos sertões acerca do uso do
trabalho dos “constrangidos”. Essas situações teriam provocado um “entranhável ódio” na
forma como os Ambundos concebiam os trabalhos da fábrica, sendo necessário os “mandar
buscar com violência”. O relato de Pacheco informa ainda como os trabalhadores eram
conduzidos até Nova Oeiras: eram levados pelos makota, os conselheiros dos sobas, a quem
os súditos Ambundos deviam respeito, obediência, a quem temiam. O medo de ir para Nova
Oeiras era tanto que os trabalhadores fugiam dos seus “próprios” makota ainda no caminho
para a fábrica132.
129
Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola, v. I, p, 112.
130
“Não posso porém atestar o número dos pretos que vinham servir naqueles trabalhos e que neles morreram
porque foram centos deles, e não tinha tempo para assentar o número daqueles miseráveis”. Carta de José
Francisco Pacheco. São Paulo de Assunção, 13 de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57, D. 28.
131
Carta de José Francisco Pacheco. Nova Oeiras, cinco de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57, D. 28.
132
Idem. Nota-se que o espanto é do autor da carta: “fugiam dos próprios makota”.
186
133
A semelhança entre o relato de José Pacheco e do interlocutor anônimo deste documento nos leva a duas
hipóteses: José Francisco é o autor dos dois documentos ou quem escreveu a carta anônima leu os relatos do
Pacheco. De toda forma era alguém que teve acesso à documentação elaborada sobre a fábrica. “Resposta que
um sujeito do Brasil deu ao outro de Angola, sobre a Fábrica do Ferro”. s.l, s.d. BNP, Reservados, MSS Caixa
246, n. 22.
134
Carta de José Francisco Pacheco. Fábrica da Nova Oeiras, cinco de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57,
D. 28.
135
José C. Curto, “Resistência à escravidão na África: o caso dos escravos fugitivos recapturados em Angola,
1846-1876. Afro-Ásia, n. 33, 2005, p. 72. Roquinaldo A. Ferreira, “Escravidão e revoltas de escravos em Angola
(1830-1860)”. Afro-Ásia, 21-22, 1998-1999, p. 9- 44.
136
Beatrix Heintze, Asilo ameaçado: oportunidade e consequências da fuga de escravos em Angola no século
XVII. In: Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 507-539; Ainda Freudhental, “Os Quilombos de
Angola no Século XIX: A Recusa da Escravidão”. Estudos Afro-Asiáticos, n. 32, 1997; Roquinaldo Ferreira,
“Slave flights and runaway communities in Angola (17th-19th centuries)”, 2014.
187
auxiliam a reconstruir a história das experiências dos trabalhadores de Nova Oeiras que afinal
eram submetidos a condições de trabalho próprias da escravidão; a diferença é os
“constrangidos”, segundo regulamentação colonial, não deveriam ser tratados da mesma
forma137.
Para Roquinaldo Ferreira, uma das principais razões para as fugas de cativos, em
Angola, eram justamente as condições extenuantes de trabalho138. Afirmação que relativiza a
tese de que os africanos escravizados fugiam, e formavam comunidades de fugitivos,
majoritariamente pelo receio de serem embarcados e acabarem nas malhas do tráfico
transatlântico139. As fundições de ferro mostram que a exploração local do trabalho foi fator
decisivo para as fugas não só de escravos, mas de africanos livres sob um regime de trabalho
compulsório.
A análise desse conjunto documental revela que a principal consequência das
condições de vida e de trabalho a que os Ambundos foram submetidos foi o despovoamento
dos sobados. Os trabalhadores fugiam das “costumadas violências”140 do sertão, das pancadas
dos funcionários das fábricas, das pesadas tarefas que os aguardavam, carregando minério,
pedras para a cantaria, rompendo serras, cortando madeira para fabricar carvão, junto à
fundição do ferro. Eles não retornavam para suas povoações porque tinham medo de serem
enviados novamente para a fábrica. As continuadas deserções deixaram os sobados
despovoados, traziam instabilidade e insegurança, diminuíam a autonomia e ameaçavam o
poder dos sobas e dos makota, que tinham de escolher quem entre seus dependentes seguiria
para o trabalho mensalmente. Não é de admirar que muitos se desanexaram do serviço de
Nova Oeiras ou se recusaram a enviar suas gentes para ali.
137
A pesquisa mostrou que os escravos em Nova Oeiras aparecem em menor número, como analisamos mais
adiante neste capítulo.
138
Roquinaldo Ferreira, “Slave flights and runaway communities in Angola (17th-19th centuries)”, p. 70.
139
Para Thornton, o regime de trabalho local era fator de menor peso que a perspectiva de ser embarcado para as
Américas. “Where one can see clearcut opposittion to slavery in Africa is in its runaway communities. In some
cases, these are clearly connected to resistance to export in the Atlantic slave trade, as was the case in the slave
runaway communities that grew up south of the Kwanza River in Angola [Kisama], and dogged the Portuguese
for virtually the whole length of their tenure there. Likewise, the thousands of slaves who were harbored in
southern Kongo, similar runaways, were fleeing the deadly prospect of trans-Atlantic transportation and not a
labor regime”. John Thornton, “Africa and Abolitionism”. In: Seymour Drescher; Pieter Emmer (Eds.). Who
Abolished Slavery? Slave Revolt and Abolitionism: A Debate with João Pedro Marques. New York: Berghahn
Books, 2010.
140
Expressão usada quando o governador comentou sobre o pagamento dos Ambundos: “(...) até o preço dos que
trabalham nesta cidade possam não só viver contentes e satisfeitos de ganhar a vida nas suas próprias casas, mas
que a sua alegria faça atrair mais outros negros dispersos de forma que em lugar de ficarem desertas as
habitações pelas costumadas violências deste sertão, sejam estas as mais florentes, e povoadas de todo ele”.
Carta de FISC para João Baines, tenente general. São Paulo de Assunção de Luanda, oito de março de 1766.
BNP, C-8742, F-6364.
188
Os “filhos” que estavam sob a tutela dos sobas eram chamados de “negros
habitantes”, “negros lavradores”, “pretos trabalhadores”, “pretos dos sobas”, “gentes”,
“negros tecelões”, “povos confinantes” (aos presídios), “pretos cultivadores”, “ajudatários”
(sic), “serventes”, “naturais”, “habitantes nos matos”, “povos sujeitos aos sobas”, “pobres
negros”, “filhos capazes para o trabalho”143. De imediato sua identidade está relacionada ao
trabalho: lavram, tecem, cultivam, são “capazes de trabalhar”, geram riqueza. Aparecem nas
fontes como dependentes, súditos, subordinados e, como disse Vansina, “com demasiada
frequência, as sociedades rurais africanas são consideradas como se fossem apenas uma parte
da paisagem”144.
141
John Thornton, “The slave trade in eighteenth century Angola: Effects of demographic structure”, Canadian
Journal of African Studies, 14, n.3, 1980, p. 417-427; Joseph Miller, “The significance of drought, disease, and
famine in the agriculturally marginal zones of West Central Africa”. Journal of African History, 23, 1982, p. 30.
142
Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”; Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e
XVII; Mariana Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World, 2013.
143
Reunimos essas designações ao longo da pesquisa. Ver: Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola,
Lisboa: Clássicos da Expansão Portuguesa no Mundo. Império Africano, 1937, v. I e II. Cadornega, História das
Guerras Angolanas (1680). Anotado e corrigido por José Matias Delgado. Lisboa: Agência-geral do Ultramar,
1972, v. I, II e III.
144
Trocaria aqui apenas “sociedades rurais” por “sociedades dos sertões” para não incorrer nas oposições rural
versus urbano; populações rurais versus populações industriais que não existiam para a época e pouco ajudam no
momento da análise. Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”, 2005, p. 3.
189
Para o governador de Angola, essas pessoas estavam sob domínio dos líderes
locais o estatuto jurídico dos “filhos” enviados para trabalharem nas fábricas de ferro era o de
livres. Em 1769, ele afirmou que ali trabalhavam algo em torno de “400 negros livres”145 por
mês. Sousa Coutinho os reconhecia como livres porque supostamente eram remunerados e
bem tratados. Como vimos até aqui, essas premissas não correspondem de forma alguma à
situação a que foram submetidos os “filhos” dos sobas e às ordens que o governador dava aos
funcionários de Oeiras. O que as fontes mostram é que, do ponto de vista dos trabalhadores,
sob um regime de maus-tratos e trabalho extenuante, de pouco valia ser pago com os
diminutos salários que o serviço da fábrica oferecia.
As ideias de Sousa Coutinho de um trabalho bem pago e sem maus-tratos eram
resultado de uma experiência histórica de fracassos no recrutamento da mão de obra local,
como no caso das minas de ouro do rio Lombige, mas não só. Esse governador estava inserido
nas principais discussões sobre como efetivar um maior controle sobre as populações locais
nas diferentes colônias do Império português. Um exemplo paradigmático é o do Diretório
dos Índios, de 1757, projeto pombalino que reorganizou o trabalho indígena na América
Portuguesa. Quem implementou as normas legais do Diretório nas terras brasílicas foi
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal e um dos principais
interlocutores de Sousa Coutinho, pois foi secretário de estado durante o seu governo. Antes
de assumir a pasta da Marinha e Ultramar (1760-1769), Mendonça Furtado foi governador da
província do Grão-Pará e Maranhão (1751-1759).
De forma geral, antes do Diretório, os índios podiam ser livres ou escravos. Os
índios aldeados eram livres, haviam sido cooptados por missionários a deixarem os sertões e
viver em aldeias próximas às povoações dos portugueses. Essa prática era conhecida como
“descimento” e tinha por objetivo “tanto a civilização dos índios quanto a utilização de seus
serviços”146. As aldeias eram habitadas apenas pelos clérigos, que as dirigiam, e os índios. Os
moradores das proximidades poderiam alugar o serviço de índios, que desde o início era
remunerado: “sejam as aldeias administradas por missionários ou por moradores, as leis
preveem o estabelecimento de taxa, os modos de pagamento e o tempo de serviço”147. A
forma como o tempo de trabalho era divido visava possibilitar que os índios cuidassem de seu
145
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de estado da marinha e ultramar. São
Paulo de Assunção, 29 de dezembro de 1769. AHU_CU_001, Cx. 50, D. 64
146
Beatriz Perrone-Moisés, “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período
colonial (século XVI a XVIII)”. In: Manuela Carneiro da Cunha, História dos Índios no Brasil São Paulo:
Companhia das Letras, 1992. Ver também: John Monteiro, Negros da terra. Índios e bandeirantes nas origens
de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
147
Beatriz Perrone-Moisés, “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período
colonial (século XVI a XVIII)”, p. 129.
190
sustento nas roças das aldeias. O “bom tratamento dos índios” (“bondoso e pacífico”) era
sempre recomendado, embora raramente cumprido, já que os moradores dos sertões tentavam
manter os índios aldeados como escravos.
Em muitos aspectos podemos comparar os índios aldeados com os Ambundos que
trabalhavam em Nova Oeiras: eram livres, deveriam receber salário, ser bem tratados, eram
incentivados a não trabalhar durante todo o ano para promover a agricultura. E o mais
importante, o acesso a essa mão de obra era mediado; na América Portuguesa, as aldeias eram
dirigidas por missionários que negociavam com os moradores sobre os salários e tempo de
serviço indígena; no Reino de Angola, o acesso ao trabalho dos moradores dos sobados
também era mediado pelos sobas e makota, que de certa forma também negociavam os
salários, já que ofereceram a gratuidade do serviço em troca da isenção dos dízimos.
Com o Diretório esse quadro mudou, nos sertões da América portuguesa, todos os
índios foram declarados livres e as aldeias foram transformadas em vilas. Ainda assim, eles
eram obrigados ao trabalho, mas sob outras regras. A mediação dos missionários já não
existia, os índios deveriam ser “governados no temporal pelos juízes ordinários, vereadores, e
mais oficiais de justiça”. Segundo José Alves de Souza Junior, “a instituição do regime do
Diretório representou a completa laicização da administração das povoações indígenas
existentes no estado do Grão-Pará e Maranhão”148.
Outra informação que nos interessa de perto é que todos os índios maiores de 13
anos deveriam ser anualmente matriculados como “capazes para o trabalho”. Exatamente a
mesma expressão utilizada nos inventários em que constavam os “filhos capazes para o
trabalho” dos sobas. As comparações não se limitam ao dito até aqui. Nos sertões da América
portuguesa, as disputas pelo trabalho indígena entre moradores, missionários e autoridades
coloniais eram frequentes, bem como os abusos e maus-tratos tanto junto às obras públicas,
quanto nos serviços prestados a particulares149.
A grande diferença entre estas experiências históricas era o domínio dos sobas
sobre os seus “filhos”. Enquanto o Diretório foi uma norma legal bem-sucedida no sentido de
retirar dos missionários o controle sobre a mão de obra dos índios aldeados, as portarias de
Sousa Coutinho em que se regulamentava os jornais dos “pretos trabalhadores” e garantia o
bom tratamento (o fim das “vexações” e “violências dos sertões”) dos súditos dos sobados
142
José Alves de Souza Júnior, “Negros da terra e/ou negros da Guiné: trabalho, resistência e repressão no Grão-
Pará no período do Diretório”. Afro-Ásia, v. 45, 2013, p. 173-211.
149
Idem. Ibidem. A concorrência pela utilização de índios nos serviços públicos e particulares incomodava muito
os colonos. Em 1703, a Companhia de Comércio do Maranhão apresentou à Coroa portuguesa uma exposição
em que protestavam contra o emprego de 400 índios no serviço do Arsenal da Marinha. Idem, p. 178.
191
não foram suficientes para tirar das mãos dos sobas e makota o domínio sobre os seus
dependentes.
É preciso lembrar que, no interior das sociedades Ambundas, assim como em
outras da África, o poder de uma chefia era mensurado pelo número de dependentes que
estavam sob seu controle. Para os sobas, os seus subordinados, fossem eles livres ou escravos,
e os serviços prestados por eles constituíam sua principal fonte de riqueza. Esse domínio se
assentava nas normas do parentesco matrilinear, em que os filhos dentro de um sobado não
pertenciam nem ao pai ou à mãe, mas à família da mãe, nomeadamente ao tio materno, que
era o chefe dos filhos de suas irmãs, que controlava alianças matrimoniais, as “transações
implícitas ao casamento e dotes, decorrentes da circulação das mulheres”150.
Como explicou Paul Lovejoy, dentro de uma linhagem, “os mais velhos
controlavam os meios de produção e o acesso a mulheres, e dessa forma o poder político era
baseado na gerontocracia”. Na ótica africana, as relações de trabalho estavam perpassadas por
laços de dependência, pois “os dependentes eram mobilizados no interesse da linhagem de
acordo com a determinação dos mais velhos” para as expedições de caça, a defesa das
povoações, as cerimônias religiosas151.
Os laços de dependência em épocas de dificuldades poderiam se tornar mais
precários justamente para os que mais se amparavam nelas, os parentes mais jovens, que não
tinham recursos financeiros ou mesmo idade para cuidar de si mesmos. Então, era preciso
construir outras ligações que não as biológicas que as suplementasse, uma dessas conexões
seria o penhor. Não era por acaso que as crianças eram as mais retidas como garantia de
dívidas.
De acordo com Lovejoy, a escravidão também era um laço de dependência152.
Desde muito cedo os agentes coloniais souberam identificar quem, entre os africanos,
segundo as “leis dos sobas”, era livre. Segundo Beatrix Heintze, no reino do Ndongo, no
século XVI, os jesuítas portugueses registraram que os prisioneiros de guerra e os escravos
comprados eram chamados de “mobicas” (do kimbundu mubika, pl. abika), já os Ambundos
escravizados eram conhecidos por “quisicos” (do kimbundu kijiku, pl. ijiku). A escravização
era uma pena imposta a criminosos. O termo “quisico” era empregado pelos colonizadores
para designar a “totalidade da população escrava por oposição aos “morinda” (kimbundu:
150
Sobre sociedades matrilineares na África, ver: Christian Geffray, Nem pai, nem mãe. Crítica do parentesco: o
caso Macua. Lisbo : Caminho, 2000.
151
Paul E. Lovejoy, Transformations in slavery: a history of slavery in Africa [1983]. 2 ed. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000. p. 13; Joseph C. Miller, Poder político e parentesco: os antigos Estados
Mbundu em Angola, 1995.
152
Idem, p. 14-15.
192
murinda, pl. arinda), os Ambundos livres” que estavam organizados segundo linhagens
matrilineares. O verbete também teria sido usado para nomear “as aldeias destes mesmos
escravos” e “um determinado gênero de escravos, por exemplo, apenas os filhos dos
escravos”. O ngola servia-se dos ijiku como pagamento de tributos e recorria a eles para apoio
militar. Os ijiku tiveram grande importância na esfera política no Ndongo e,
“independentemente do fato de os superiores poderem dispor dos ijiku com maior liberdade e
decisão do que dos outros, é de presumir que a sua vida cotidiana nessas aldeias não tenha
sido muito diferente da vida população livre”153.
A autora pondera que Cavazzi observou que o vestuário dos escravos era mais
pobre. Além das aldeias de ijiku, havia também os escravos domésticos, provavelmente, já
chamados de mukama, desde finais do século XVI. Com o passar do tempo, em algumas
povoações, os escravos ganharam marcas de propriedade com a finalidade de impedir que
fossem trocados por outros de menor valor154. Em geral, a princípio, os escravos e os seus
descendentes não podiam ser vendidos. A principal diferença entre livres e escravos é o
pertencimento a uma linhagem. Como resumiu Vansina: “uma pessoa sem uma linhagem era
um escravo, uma pessoa com uma era livre”155. Daí o poder dos sobas e do conselho de
anciãos ser fulcral nessa relação de dependência, pois em grande medida, eram eles que
decidiam quem continuaria a pertencer a uma linhagem e quem seria expulso.
No episódio narrado por José Curto sobre os 10.000 súditos roubados do ngola,
no século XVII, até mesmo a herdeira que reclamava a posse dos súditos, disputando com o
rei do Ndongo, admitia que entre os milhares existiam vassalos que tinham fugido da
“violência de tiranos” – esses não eram escravos156. Em outro caso, Silvia Lara notou que
após a derrota do ngola e prisão de seus parentes, os seus súditos que deveriam ser
escravizados, como era previsto pela justiça da guerra, não foram porque os conselheiros do
Ultramar entenderam que deveriam permanecer “em poder dos reis e sobas circunvizinhos”.
153
Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 486. Para Heintze, “havia uma hierarquia entre os
diversos tipos de escravos”. Os prisioneiros de guerra eram os “menos afortunados”, sendo inclusive utilizados
em sacrifícios humanos. O grau de “integração do escravo no seu próprio sistema sócio-político” era levado em
conta no momento de incorporá-lo na nova sociedade; dito de outro modo, a posição hierárquica que ocupava em
sua comunidade de origem era considerada no momento de lhe atribuir novas funções.
154
Heintze considera que isso acontecia também entre os Mbangala e, pela rainha Nzinga, em Matamba. Idem, p.
484 - 495.
155
Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”, p. 6; Joseph Miller, Poder politico e
parentesco, p. 48.
156
José C. Curto, “A restituição de 10.000 súditos Ndongo ‘roubados’ na Angola de meados do século XVII:
uma análise preliminar”. In: Isabel Castro Henriques (ed.). Escravatura e transformações culturais. África -
Brasil - Caraíbas. Lisboa: Editora Vulgata, 2002, p. 185-208.
193
Afinal, muitos eram arinda, explicou Cadornega, “forros de sua nascença”157. Linda
Heywood também encontra o mesmo padrão de reconhecimento para o Kongo, os termos
“gente, naturais e naturais forros referem a um diferente grupo social” que os “fidalgos” e os
“de fora”158.
Havia ainda gradações entre a condição de livre e de escravo; existia, por
exemplo, o penhor. Uma pessoa livre poderia ser penhorada em troca de um empréstimo ou
como pagamento de dívida, mas permanecia livre e poderia ser a qualquer momento remida
pelos seus parentes. Para Vansina, a grande mudança em relação aos penhorados é justamente
que, no século XVIII, os penhorados passaram a ser fornecidos em “troca do empréstimo de
bens equivalente ao valor de um escravo”, como uma resposta a demanda crescente de
“produzir escravos” da economia atlântica. O autor considera que a prática se tornou comum
devido à concentração de poder em “matrilinhagens corporativas”, governadas pelos “mais
velhos” da linhagem que passaram a dispor de seus dependentes como forma de eles próprios
escaparem da escravidão (entregando o penhorado em seu lugar) ou para pagar dívidas, obter
bens e riquezas, uma vez que estavam envolvidos em uma ampla rede de endividamento em
torno das mercadorias que circulavam no âmbito do tráfico transatlântico159.
As autoridades coloniais admitiam que era comum pessoas livres, penhoradas, que
trabalhavam para pagar suas dívidas, ou as de outrem, fossem injustamente escravizadas,
sequestradas ou roubadas160. E, nesse caso, quando uma pessoa livre era capturada e/ ou
vendida como escrava, também já não fazia mais parte da linhagem.
No século XVIII, nessa região, o tráfico de escravos já havia se tornado o
elemento fundante da ordem econômica e social e foi por meio da ação de seus agentes
(traficantes, oficiais coloniais, entre outros) que a colonização se consolidou: a língua
portuguesa, a religião católica, novos padrões de alimentação e consumo, mudanças nas
relações de gênero tudo passou a entrar na órbita colonial ou a ser modificada por ela. As
formas legais e ilegais de escravização dentro dos sobados também se transformaram com a
pressão da economia atlântica. Sob influência portuguesa, mesmo antes da conquista, as
formas de escravizar os arinda, os livres dos sobados, já tinham sofrido alterações, sobretudo
em virtude do desenvolvimento do tráfico de escravos. Um exemplo disso é a “comutação da
pena de morte proferida em caso de rebelião contra o soberano, de adultério das suas
157
Silvia Hunold Lara, “Depois da Batalha de Pungo Andongo (1671): o destino atlântico dos príncipes do
Ndongo”. Revista de História (USP), n. 175, 2016, p. 214.
158
Linda Heywood, “Slavery and its transformation in The Kingdom of Kongo: 1491 1800”, Journal of African
History, 50, 2009, p.4.
159
Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”, p. 18.
160
Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 78.
194
161
Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII, p. 486, p. 206. Para o Kongo, Duarte Lopes observou que
“você pode encontrar em São Tomé e Portugal não pequeno número de escravos nascidos no Kongo vendidos
pela necessidade entre os quais estavam alguns de sangue real e senhores principais”. Linda Heywood, “Slavery
and its transformation in The Kingdom of Kongo: 1491 1800”, p. 7.
162
Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World. Angola and Brazil during the Era of the
Slave Trade. New York: Cambridge University Press, 2012. Mariana P. Candido, An African Slaving Port and
the Atlantic World. Benguela and its hinterland. New York: Cambridge University Press, 2013.
163
“Pois não há negociante naquela província [Ambaca] que não tenha duas e três libatas, ou povoações
agregadas a si para serviços próprios, aos quais povos defendem, e patrocinam tanto como a seus escravos, pois
como tais se servem deles, e o mesmo se pratica em todas as jurisdições e por esta razão publicam as perniciosas
vozes de culparem em tudo a fábrica”. Carta de Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral da fábrica do ferro
da Nova Oeiras, para FISC. Nova Oeiras, 28 de dezembro de 1771. SGL, Arquivos de Angola, v.3, n. 29, p. 361-
393.
195
164
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado dos Negócios da Marinha e
Domínios Ultramarinos. São Paulo de Assunção de Luanda, 27 de agosto de 1768. IEB/USP, AL – 082 – 087.
165
“Para que porém se adiante o que couber no possível a mesma fábrica, resolveu Sua Majestade que fossem
alguns oficiais de ferreiro, dos que se achavam presos nas cadeias desta Corte para se empregarem nesse
trabalho, reservando para quando for o referido mestre o mandar outros ainda mais hábeis para o total
estabelecimento da mesma fábrica”. Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário dos Negócios
da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, para FISC. Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, 21 de julho de 1767.
AHU, Códice 472 - fl. 124-126v.
166
Em 1768, Sousa Coutinho ordenou que o intendente se encarregasse dos preparativos: “Vossa mercê
suspenda a fatura do ferro e empregue os ferreiros somente no necessário às barras da medida que lhe mandei
para os reparos da Artilharia, empregando então todos os negros em ajuntar ferro bruto para que eles achem
muito pronto, e da mesma maneira carvão se houver meio de conservá-lo livre de umidade. É preciso que vossa
mercê faça adiantar a Fábrica do Tijolo, de maneira que eles possam ter logo ao menos doze milheiros prontos
para construir os fornos. Da mesma maneira fará fabricar mais canoas para que possa fazer-se a condução das
pesadas ferramentas”. “Quanto ás casas, espero que vossa mercê tenha feito algumas acomodações próprias para
estes homens, porque não estranhem mais este incômodo”. Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de
Siqueira, intendente da fábrica de ferro. São Paulo de Assunção de Luanda, três de julho de 1768. IEB/USP, AL-
083-079.
196
167
Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário dos Negócios da Marinha e dos Domínios
Ultramarinos, para FISC. Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, primeiro de maio de 1767. BNP, F3315.
168
Angola em especial era vista como a “própria residência da morte” devido ao clima, às sezões e às guerras
com os centro-africanos. FISC, “Memórias do Reino de Angola e suas conquistas, escritas em Lisboa nos anos
de 1773 e 1775”. BMP, Códice 437, documento 10.
169
Pablo Quintana Lopez cita quanto ganharam os trabalhadores da ferraria de Santa Eufemia, em Los Oscos,
durante o ano de 1679. O aroza, o ferreiro mais experiente e responsável pela ferraria, recebeu $900 rs, o
tirador, o forjador, e os dois fundidores auxiliares receberem cada um $400 rs, o tazador, o oficial mais baixo na
hierarquia, que poderia ser um aprendiz recebeu $200 rs. Esses valores estão desvalorizados para servirem de
parâmetro para o final do século XVIII, contudo nos ajudam a ter uma ideia dos baixos salários que os ferreiros e
fundidores recebiam. Pablo Quintana Lopes, La labranza y transformación artesanal delhierroenTaramundi y
Los Oscos. Siglos XVI-XVIII. Aportación a suconocimento. Taramundi: Associación “Os Castros”, 2005, Tomo
I, p. 143.
170
Rafael Ayo cita José Echevarri como um importante comerciante de minério de ferro em Portugalete, na
Biscaia, em 1826-27. Echevarri ou Chavarri era um dos quatro maiores comerciantes da região, com maior
número de negócios. Considero que uma ligação com o mestre enviado para Angola seja possível. Vale também
considerar que a família Chavarri procede de grandes proprietários de terras, minas de ferro e companhias
envolvidas no comércio do minério. Rafael Uriarte Ayo.“Minería y empresa siderúrgica em la economia
vizcaína pré-industrial (s. XVI-XVIII)”. XI Congreso Internacional de la AEHE, Madrid, 2014 p. 9 e 10.
“Algunos de los antiguos tratantes llegaron a convertirseen los principales productores de Bizkaia, de manera
que se formó una elite de mineros que controlaba gran parte de las concesiones, entre los que destacaban los
propietarios de origen local, especialmente los Ibarra, Chávarri y Ustara, que poseían concesiones de los
primeiros años de la demarcación minera”. Eneko Pérez Goikoetxea, Mineríadelhierroen los montes de Triano y
Galdames. Bilbao: E. Bilbao, 2003, p.65..
171
Há três ferrarias com o nome de Zuluaga em Guipúzcoa no levantamento que Luis Miguel Díez de Salazar
fez para a localidade, dos séculos XVI e XVII. Luis Miguel Díez de Salazar, “La indústria del hierro em
Guipúzcoa (siglos XIII-XVI) (Aportación al estudio de la industria urbana)”. La Ciudad Hispánica, Editorial de
la Universidad Complutense, 1985, p. 251-276.
172
Outra possível ligação familiar com os ramos relacionados às minas de ferro. Em 1825, José Francisco de
Echenique arrendou as ferrarias de Bereau e Biurra devido ao grande desemprego que assolava as ferrarias na
197
época. Pilar Erdozáin Azpilicueta, Fernando Mikelarena Peña, “Siderurgia tradicional y comunidad campesina.
La gestión de las ferrerías municipales de Lesaka y Etxalar en 1750-1850”. Vasconia, n. 32, 2002, p. 509.
173
Idem.
174
Encontramos a seguinte descrição no glossário publicado junto a edição comentada de Ensaios sobre as
enfermidades de Angola. Escorbuto também chamado de “mal de Luanda”. “Corrupção contagiosa do sangue
[...] figurando nos seus principais sintomas a aparição de manchas lívidas as diferentes partes do corpo, a
disposição para as hemorragias passivas, especialmente das gengivas, que estão moles, inchadas, fungosas e de
aspecto lívido”. Valdez: II, 387. In: José Pinto de Azeredo, Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola
[1799]. Antonio Braz de Oliveira e Manuel Silvério Marques (ed.). Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 99.
175
José Pinto de Azeredo, Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola, p.50. A quina foi imprescindível
para a expansão do império português. “Da Amazônia, no Brasil, foram transplantadas árvores para São Tomé,
onde se produziam toneladas de quina enviadas através dos domínios coloniais”. Jean Luiz Neves Abreu, “O
saber médico e as experiências coloniais nos Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola”, In: José Pinto de
Azeredo, Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola [1799]. Antonio Braz de Oliveira e Manuel Silvério
Marques (ed.), p. 204.
198
176
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário dos Negócios da Marinha e dos
Domínios Ultramarinos. São Paulo de Assunção de Luanda, 25 de novembro de 1768. São Paulo de Assunção de
Luanda, 20 de janeiro de 1769, IEB/ AL – 082 -142.
177
Tanto era assim que o militar Elias Alexandre observou que “nos anos secos as moléstias são menos e mais
benignas”. Por exemplo, a doença conhecida como “carneirada”– “enfermidade anual, que leva muita gente à
sepultura” –, uma febre intermitente terçã, como é descrita nos Ensaios sobre as enfermidades de Angola (1799),
era frequente nas estações chuvosas. Também no glossário de Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola;
Carneirada: “febre intermitente terçã. ‘Carneiraça ou carneirada, doença que dá na ilha de São Tomé’. Bluteau,
C, 153. ‘Desta podridão provêm aquelas febres pestilentas que chamam carneiradas nas minas do Mato Grosso,
Cuiabá e Guaiazes [Goiás]. Da mesma origem vêm outros males tão comuns a todo o Brasil como são os insetos
mais nocivos à saúde e outras moléstias vulgares’, Sanches, 1756, 31. Malária; epidemia de malária; moléstia
endêmica das margens do rio São Francisco, por ocasião das vazantes”. José Pinto de Azeredo, Ensaios sobre
algumas enfermidades de Angola, p. 94. Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola, Lisboa: Clássicos
da Expansão Portuguesa no Mundo. Império Africano, 1937, v. I, p. 80. Carta de FISC para Francisco Xavier de
Mendonça Furtado. São Paulo de Assunção de Luanda, 26 de agosto de 1768. São Paulo de Assunção de
Luanda, 20 de janeiro de 1769, IEB/ AL - 082 – 089.
199
178
Carta de Joaquim de Bessa Teixeira, intendente da fábrica de ferro, para FISC. Nova Oeiras, 27 de dezembro
de 1768. AHU_CU_001, Cx. 53, Doc. 8. Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário
de Estado da Marinha e Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 20 de janeiro de 1769. AHU_CU_001, Cx.
53, Doc. 8.
179
Jill Dias, “Famine and disease in the History of Angola c. 1830-1930”. The Journal of African History, v. 22,
n. 3, p. 358; Joseph Miller, “The significance of Drought, Disease and Famine in the Agriculturally Marginal
Zones of West Central Africa”. The Journal of African History, v. 23, n. 1, 1982, p. 23.
180
Matheus deixou em Lisboa uma mulher a quem prometeu casamento, Genoveva Lara. Inicialmente, a
apresentou como sua irmã solicitando que $240 rs de seu ordenado diário lhe fossem entregues. Em 1776,
escreveu aos Armazéns Reais de Lisboa pedindo que a pensão fosse suspensa porque Genoveva na verdade não
era sua irmã e ele já se encontrava casado em Angola. Em 1779, Genoveva solicitou que o débito fosse cobrado
porque ela não tinha condições de sustentar a si mesma e a seus irmãos e tampouco de se casar, já que fora
amante do ferreiro. “Relação dos oficiais militares, oficias mecânicos voluntários e degradados, e mais
degradados que devem embarcar na Sumaca que se acha próxima a partir para o Reino de Angola”. Palácio de
Nossa Senhora da Ajuda, a 22 de março de 1771. BNP, MSS Caixa 250, n. 71, Procuração de Matheus Pirson
Niheul, mestre de refinar ferro para que entregassem a sua irmã Genoveva Lara, uma pensão de 240 réis por dia
200
pagos do ordenado de 1200 réis que ele vence. Lisboa, 12 de outubro de 1771. AHU_CU_001, Cx. 54, D.
101.Catálogo cronológico de todas as ordens régias que existem na Secretaria do Estado do Reino de Angola.
São Paulo de Assunção de Luanda, 18 de junho de 1777. AN (RJ), Códice 543. Carta de Genoveva Lara para a
rainha, D. Maria I. Lisboa, 11 de maio de 1779. AHI_CU_001, Cx. 65, D. 35.
181
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado dos Negócios da Marinha e
Domínios Ultramarinos. São Paulo de Assunção de Luanda, 27 de agosto de 1768. IEB/USP, AL – 082 – 087.
182
Carta de FISC para Antonio Rolim de Moura Tavares, conde de Azambuja, govenador da Bahia. São Paulo
de Assunção de Luanda, seis de agosto de 1767. BNP, C 8742, F6364, fl. 210.
201
engenhos”183. A propaganda de altos salários era reiterada em cada carta para essas
autoridades do ultramar português.
A prática de direcionar degredados de diversas localidades do império que
tivessem um ofício relacionado à fundição e forja de ferro para Nova Oeiras foi constante. Era
um contingente abundante e que não precisava necessariamente ser remunerado. Alguns dos
principais mestres de Nova Oeiras eram degredados, como o mestre carpinteiro Antonio
Joaquim de Almeida e Antonio Ribeiro, que construiu o forno da fábrica. De fato, essa
categoria de apenados constituía mão de obra importante para o Reino de Angola; eles
também estavam submetidos a condições precárias de trabalho em Nova Oeiras. Um dos
pedreiros responsáveis pela obra de cantaria do forno de fundição, Gregório José, foi mantido
em preso com calceta184 enquanto trabalhava, pois, apesar de ser um excelente artesão, era
também um “fino ladrão”185. Os oito degredados enviados em 1771 só receberiam “conforme
o seu merecimento”. Outros trabalhavam somente pelo seu alimento186.
Em um levantamento dos oficiais mecânicos de Luanda, de 1801, constam 374
trabalhadores divididos entre canteiros (4), pedreiros (46), pintores (2), torneiros (8), latoeiros
(6), ferreiros (26), penteeiros (3), calafates (11), carpinteiro de obra branca (52), carpinteiros
de ribeira (10), cabeleireiros (21), alfaiates (69), sapateiros (28), tanoeiros (44) e ourives (11).
Foram divididos entre mestres (65), oficiais (225) e aprendizes (84). Do total de 374 artesãos,
168 eram escravos e 206 homens livres187.
Não são mencionados libertos ou forros - o que não parece corresponder à
realidade já que a legenda do “mapa” registra que um dos carpinteiros era um “preto, velho e
liberto dos extintos jesuítas” e de um dos mestres torneiros também era um ex-escravo dos
religiosos. Talvez os libertos tenham sido contados junto com os livres, mas não se pode
afirmar isso porque os critérios de categorização não estão explícitos. O governador de então,
Miguel Antonio de Melo, que remeteu a listagem, notou ainda que entre os trabalhadores
livres muitos serviam como soldados e eram degredados da Europa e do Brasil. Apesar de a
maioria ser classificada como “oficial”, o que significa tinham completado a aprendizagem, o
183
Carta de FISC a Luis Antonio de Sousa, morgado de Mateus, governador de São Paulo. São Paulo de
Assunção de Luanda, seis de março de 1769. IEB/USP, AL-083-210.
184
Calceta: grilhão ou argola de ferro, que prende o pé do escravo ou do forçado de galé.
185
Carta de FISC para Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral das fabricas de ferro. São Paulo de Assunção
de Luanda, 10 de janeiro de 1772. Arquivos de Angola, v. III, n. 29, 1937, p. 361-363.
186
Em 1769, Sousa Coutinho remetia para Nova Oeiras “um preto pedreiro preso”, que receberia “o necessário
para o seu alimento”. Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira Intendente Geral das Reais
Fábricas do Ferro. São Paulo de Assunção de Luanda, primeiro de janeiro de 1769. IEB/USP, AL-083-192.
187
“Mapa dos oficiais mecânicos que presentemente há nesta cidade, extraído do que se ordenou do estado da
sua povoação no mês de janeiro do corrente ano de 1801”. São Paulo de Assunção de Luanda, dois de abril de
1801. AHU_CU_001, Cx. 100, D. 4.
202
governador os julgava “tão imperitos que em outro qualquer país seriam reputados aprendizes
e ainda principiantes”188.
É interessante observar mais uma vez como a história do projeto de Nova Oeiras
suscita dados e temas relevantes sobre o trabalho no Reino de Angola. A contagem dos
artesãos foi feita tendo em vista a fábrica de ferro da Ilamba. O destinatário do documento é
Rodrigo de Sousa Coutinho, que nos últimos anos do século XVIII retomou os planos de seu
pai. Anexa ao “mapa” segue uma lista de trabalhadores que poderiam ser enviados para
trabalhar na reconstrução da fábrica.
Nesse cenário de escassez de mão de obra especializada, o degredo passou a ser
fonte permanente de fornecimento de artesãos. Se essa era a situação na cidade de Luanda, no
interior, era ainda mais difícil encontrar trabalhadores especializados para as obras reais. O
receio de enviar os degredados para os sertões era que, sem uma vigilância constante,
poderiam fugir, “desertar” como citam as fontes189. Justamente por isso, na tentativa de fugir
da prisão, muitos degredados mentiam sobre o exercício de um ofício. Por exemplo, em 1771
foram enviados cinco ferreiros para Nova Oeiras, mas apenas um deles era oficial de ferreiro,
“confessando os outros que para libertar-se da prisão que sofriam, se atribuíram os ofícios que
não tinham”190. Há que se relativizar aqui essa aparente falta de artesãos, os africanos eram
carpinteiros, ferreiros, tecelões, construtores e com certeza, aprenderam ofícios mecânicos nas
missões jesuítas ou servindo aos reinóis e brasílicos, muitos devem ter se valido dos ofícios
para inclusive amealhar pecúlio para a liberdade. De certo, tal como o governo colonial não
conseguiu controlar os ferreiros e fundidores e impor-lhes condições de trabalho alheias às
suas, também falharam com os demais trabalhadores manuais.
Além dos degredados, artífices voluntários seguiram para Angola. Assim como
Matheus Pirson, os mestres portugueses para ali embarcados receberiam 1$200 rs por dia, sem
contar com algumas ajudas de custo que compreendiam despesas com viagem e acomodação.
188
“Mapa dos oficiais mecânicos que presentemente há nesta cidade...”. Segundo as autoridades locais, a maior
parte dos serralheiros degredados só sabiam fazer pregos. “Também se precisam dois ou três bons serralheiros,
pois a terra os não tem, e os degredados que vêm com esse nome não passam de fazer pregos, com notável
prejuízo da Fazenda Real da Vossa Majestade”. Carta de Antonio Álvares da Cunha, governador de Angola, sem
destinatário. São Paulo de Assunção de Luanda, 28 de fevereiro de 1756. AHU_CU_001, Cx. 43, Doc. 4027.
189
As autoridades reclamavam de que nos presídios dos sertões a facilidade das fugas eram maiores. “A Real
Ordem de S. Majestade, expedida na data de 14 de novembro de 1761, pela qual ordena o mesmo senhor que
semelhantes ofícios sejam conservados presos no Trem desta Cidade pelo perigo de passarem aos sertões; e sem
embargo de que também nos ditos presídios nenhuma cautela há bastante para evitar semelhantes fugas, sempre
o mandei com as recomendações necessárias, não me atrevendo a tomar sobre mim outra resolução”. Carta de
FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios
Ultramarinos. São Paulo de Assunção de Luanda, 10 de junho de 1764. ANTT, Ministério do Reino mç. 600,
caixa 703, doc. 25.
190
Carta de FISC para Martinho de Melo e Castro, secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios
Ultramarinos. São Paulo de Assunção de Luanda, 20 de setembro de 1771. BNP, C 8553, F6362.
203
Nota-se que os mestres e oficiais da comissão de 1771, que segundo a hierarquia dos ofícios
mecânicos eram os mais bem preparados entre os artesãos, recebiam a metade que os mestres
biscainhos que para lá foram em 1768 (seu jornal era de 2$400 rs). Contudo, o refinador
francês foi mencionado à parte, recebendo adiantado por quatro meses de trabalho e dois de
ajuda de custo - 108$000 rs. Logo, houve um esforço maior de convencimento, por parte dos
funcionários da Coroa.
Segundo uma carta do fundidor e diretor das fundições de ferro de Foz de Alge e
Machuca, na Vila de Figueiró dos Vinhos, Conselho de Tomar (Portugal), o francês José
Levache191, alguns portugueses refinadores de ferro que trabalharam nas minas foram
enviados na “época do Marquês de Pombal” para uma fábrica em Angola, onde faleceram.
Como é de se esperar, trata-se da fábrica Nova Oeiras. Francisco de Sousa Coutinho citou a
chegada dos “fundidores de Figueiró” e apresentou um parecer favorável de sua conduta pois
eram muito dedicados ao trabalho192. Eles seguiram na comitiva de 1771, onde constam os
sete empregados das minas de Tomar - quatro deles eram refinadores, marteladores de ferro, e
entre os outros três havia um mestre latoeiro, um oficial latoeiro e um fundidor de sinos (ver
anexo 4).
Na frente dos nomes dos fundidores de Figueiró lemos a expressão “voluntário
porém obrigado”. Essa frase diz respeito a que condições esses artífices foram mandados para
Angola. O termo “voluntário” significava que eram livres e que não foram condenados a essa
viagem como uma forma de punição, como no caso do degredo. “Porém obrigado” indica que
apesar de não ser punido por um crime, era a obrigação de ter sido nomeado pelo rei que os
constrangia ao embarque. Nos livros sobre Foz de Alge não encontramos detalhes sobre o
cotidiano do trabalho ali ou a forma como os oito funcionários foram remetidos para a África.
Alguns dados imprecisos são citados por Antonio Costa Simões, na “Topografia Médica das
Cinco Vilas e Arega” (1848)193, sem qualquer referência documental. Costa Simões disse ter
recolhido relatos junto à população local que diziam que o marquês de Pombal, por volta de
1760, havia mandado prender os fundidores, sem nenhuma justificativa.
Os mestres foram mantidos presos em Lisboa à espera do embarque “não sabem
se para Goa, se para Angola, para ali ensinarem a fabricação do ferro”. A prisão injusta teria
191
Carta de José Le Vache para Martinho de Melo e Castro, Secretário deEestado dos Negócios da Marinha e
Domínios Ultramarinos. Figueiró dos Vinhos, oito de novembro de 1791. AHU, Reino, Cx. 25, D. 31. Le Vache
era uma família francesa que se fixou em Portugal em meados do XVIII e que tinha por tradição o ofício de
fundidor de sinos.
192
Carta de FISC para Martinho de Melo e Castro, secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios
Ultramarinos. São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de agosto de 1771. AHU_CU_001, Cx. 55, D. 52 e 56.
193
Antonio Augusto Costa Simões, Topografia Médica das Cinco Vilas e Arega: ou dos concelhos de Chão de
Couce e Maçãs de D. Maria em 1848 [1860]. 2ª ed. Coimbra: Minerva, 2003.
204
por único objetivo a promoção da indústria do ferro no além-mar e José Le Vache escapou
por uma única razão – ser estrangeiro. Ainda que não possamos comprovar essa narrativa pelo
cruzamento com outras fontes, o fato de os fundidores terem sido identificados como
“voluntários porém obrigados” é uma pista de que não foram contratados sem algum
constrangimento. Para o historiador Costa Simões, as ferrarias de Foz de Alge foram fechadas
pela ausência dos técnicos. Entretanto, há autores que defendem que o engenho foi encerrado
pelas dificuldades de transporte do ferro até Lisboa194. As duas hipóteses se complementam,
os problemas com os engenhos portugueses eram uma boa razão para investir em empresas
mais promissoras nas colônias, como Nova Oeiras parecia ser, ao menos aos olhos das
autoridades coloniais.
Outrossim, tal como os biscainhos, esses mestres sofreram com as intempéries do
clima local: Manuel Simões foi o primeiro a ser abatido pelas febres assim que chegou, em
agosto de 1771. O único que temos notícia de que sobreviveu foi Francisco Lourenço, que
recebeu a ordem de voltar para a Corte em 1777, junto ao francês Pirson195.
Apesar de conhecer e se beneficiar dos conhecimentos metalúrgicos dos ferreiros
e fundidores da Ilamba, o governador de Angola não reconhecia a capacidade africana de
produção de ferro. Por isso tentou de todas as maneiras importar mestres que considerava
mais habilidosos, sem se dar conta das implicações e problemas desses procedimentos. As
sucessivas mortes é o primeiro entrave para construir uma fábrica à moda europeia. Na
falência dessa estratégia, havia que se recorrer à mão de obra especializada local.
Por fim, escravos ao ganho de moradores das vilas próximas ou até mesmo de
Luanda também trabalharam em Nova Oeiras. Encontramos dados de pelo menos 12 escravos
dos ofícios de carpinteiro e pedreiro que receberam jornais de 1768 a 1772, entre eles, quatro
eram oficiais e um aprendiz. Note-se que no caso dos escravizados, eles não trabalharam na
casa de fundição ou como ferreiros, este foi um serviço desempenhado majoritariamente pelos
ferreiros Ambundos, dependentes dos sobados da região.
194
Jorge Gaspar (dir.), Monografia do concelho de Figueiró dos Vinhos. Figueiró dos Vinhos: Câmara
Municipal de Figueiró dos Vinhos, 2004, p. 90.
195
Catálogo cronológico de todas as ordens régias que existem na Secretaria do Estado do Reino de Angola. São
Paulo de Assunção de Luanda, 18 de junho de 1777. AN (RJ), Códice 543.
205
196
“Escravos de artesãos e de donos de vendas também tinham muitas oportunidades para comprar sua
liberdade. (...) Escravos com tais talentos não só atingiam, no mercado de escravos, preço mais elevado que seus
companheiros sem especialização como eram, também, muitíssimo procurados”. A. J. R. Russell-Wood.
Escravos e Libertos no Brasil Colonial. Tradução de Maria Beatriz Medina. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2005, p. 62.
197
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para o conde de Oeiras. São Paulo de Assunção de
Luanda, 14 de maio de 1760. AHU_CU_001, Cx. 46, D. 4261.
206
jurídicas e sociais198. Havia os que estavam cumprindo pena, a maior parte europeus e
brasílicos; os que seguiram para lá voluntariamente, persuadidos pelos altos salários e
promessas dos administradores coloniais; os que foram nomeados, coagidos e talvez até
aprisionados, como os fundidores de Figueiró dos Vinhos; os centro-africanos “filhos
capazes” dos sobas vassalos também constrangidos a ali trabalharem, mas por outros laços
sociais, as relações de pertencimento do parentesco; os escravos ao ganho com alguma
possibilidade de autonomia entre outros escravizados.
As relações de trabalho estavam submetidas a obrigações específicas que
variavam dependendo do lugar que cada um ocupava em uma complexa trama hierárquica,
característica das sociedades de Antigo Regime e que também encontramos entre os centro-
africanos, resguardadas as muitas diferenças. Os mestres fundidores biscainhos tinham as
melhores casas, foram cuidados em suas doenças, foram bem tratados, bem pagos e bem
alimentados. Os mestres portugueses e Matheus Pirson também gozaram de algum conforto.
A grande maioria dos degredados não tinha privilégios, alguns trabalhavam em prisões,
muitos desertaram. O maior número de trabalhadores era composto pelos dependentes dos
sobas que foram, com certeza, os submetidos às piores condições de vida e de trabalho. Os
escravos ao ganho pareciam ter mais autonomia e mobilidade que os “constrangidos”.
É preciso lembrar que “trabalho”, nesse contexto, se referia a um “exercício
corpóreo, rústico”. Os “homens mecânicos” foram identificados por Bluteau como “baixos,
humildes”, que se ocupavam das artes fabris, nos “ofícios necessários para a vida humana”.
Nas posições hierárquicas das sociedades modernas, baseadas em padrões de qualidade,
condição e estado, um trabalhador manual que ganhava seu sustento por meio da “mecânica
corporal”, do esforço manual, era excluído de uma série de honrarias porque sofria o estigma
do defeito mecânico. A legislação determinava que os artesãos não tivessem acesso a cargos
municipais - juízes, vereadores e oficiais de milícias - nem ao uso de símbolos de distinção
social. Podemos somar aos termos que aparecem no dicionário, outro conjunto de vocábulos,
como artífice, artesão, oficial e obreiro - todos operando com a ideia de que um oficial
mecânico “trabalha[va] para ganhar sua vida”199.
198
Os trabalhadores escravizados eram uma minoria em Nova Oeiras. A exploração local de mão de obra livre e
de degredados no “trabalho penal” já era uma realidade na África portuguesa muito antes do período conhecido
como colonial, a partir do final do século XIX.
199
Raphael Bluteau, Vocabulário portuguez e latino, 10 v. Lisboa/ Coimbra: Colégio da Cia. de Jesus, 1712-
1728, verbetes “artífice”, “ofício”, “trabalho”, “oficial”, “mester”, “mecânico”, “nobre”; e Antonio Moraes
Silva, Diccionario da língua portugueza, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, verbetes “ofício”,
“trabalho”, “oficial”, “mester”, “mecânico”, “artezão”, “artífice”.
207
CAPÍTULO 4
FERREIROS E FUNDIDORES
1
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado da Marinha e Ultramar. São
Paulo de Assunção, 28 de novembro de 1768. AHU_CU_001, Caixa 52, D. 44.
209
2
Especificamente sobre o ofício de ferreiro na África Central, ver: Eugenia W. Herbert, Iron, Gender and
Power. Rituals of Transformation in African Societies, Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press,
1993; Colleen E. Kriger, Pride of men. Ironworking in 19th century, West Central Africa. Portsmouth, NH:
Heinemann; Oxford: James Currey; Cape Town: David Philip, 1999 e Juliana Ribeiro da Silva, Homens de ferro.
Os ferreiros na África-central no século XIX, São Paulo: Alameda, 2011.
3
Colleen E. Kriger, Pride of Men: Ironworking in 19th Century, West Central Africa, p. 13.
4
Para Portugal, o processo de aprendizagem de um ofício formava novos artesãos baseado em sucessivos
exames. O oficial examinado tinha direito à tenda própria. O mestre executava obras, “podendo empregar
obreiros e receber aprendizes”. Já o obreiro era o oficial que, sem ter sido examinado, trabalhava em troca de
salário. Por fim, o aprendiz ficava sob a responsabilidade de um mestre para receber a formação em seu ofício.
José Newton Coelho Meneses, Artes Fabris e Serviços Banais: ofícios mecânicos e as Câmaras no final do
Antigo Regime. Minas Gerais e Lisboa (1750-1808), Tese (Doutorado) - Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2003, p.48.
5
Colleen E. Kriger, Pride of Men: Ironworking in 19th Century, West Central Africa, p. 13.
210
Cadornega, o primeiro rei do Ndongo teria sido um ferreiro que era chamado de gongolhas
(sic) (em kimbundu/kikongo ngangula ou no plural jingangula) - o que fazia com que a
ocupação fosse muito estimada e envolta por prestígio social e econômico6. Há também outras
palavras para ferreiro: musuri, kateli, unsugula, muxiri, unguoxilaekete7.
Linguistas históricos encontraram duas variações para a palavra ferreiro no Baixo
Kongo, ngangula e npangula, ambas derivadas do verbo bantu - pàngʊd, que significa “para
cortar, separado”8. Portanto, não teria uma ligação direta com a propagação da metalurgia na
região. Ao longo do tempo, é possível que o título político ngangula tenha se associado
metaforicamente a um ferreiro, que como líder também era responsável por resolver disputas
(“separar”)9. A metalurgia e a realeza compartilham uma compreensão comum da natureza,
das fontes e do controle do poder. No Kongo, chefes e ferreiros eram iniciados em
circunstâncias semelhantes, em cultos de aflição coletivos, poderiam ser da mesma linhagem,
respeitavam tabus alimentares, usavam as mesmas joias, braceletes. Os ferreiros eram também
sacerdotes, intercediam junto aos bisimbi, espíritos criadores da metalurgia. Para o século XX,
os relatos do antropólogo Mertens (1942) registram a participação do ferreiro nos ritos
durante a investidura e enterro de chefes10. Mesmo que os ferreiros não fossem
exclusivamente reis ou nobres, participavam dessas sociedades como lideranças respeitadas.
Em outras narrativas do século XVII, como as de Cavazzi ou Antonio Gaeta, a
linhagem do rei do Ndongo também estava relacionada ao domínio das técnicas do ferreiro11.
6
Antonio de Oliveira de Cadornega, História geral das guerras angolanas (1681). Anot. José Matias Delgado.
Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca-Agência Geral das Colónias, 1940, vol. I, p. 56.
7
Antonio da Silva Maia, Dicionário complementar: português-kimbundu-kikongo.; A. de Assis Júnior.
Dicionário Kimbundu-Português; K.-E. Laman, Dictionnaire kikongo-français avec une carte phonétique
décrivant les dialectes les plus importants de la langue dite Kikongo.
8
Koen Bostoen, Odjas Ndonda Tshiyayi, Gilles-Maurice de Schryver, “On the origin of the royal Kongo title
ngangula”. Africana Linguistica, 19, 2013, p. 56 e ss.
9
Idem.
10
Eugenia W. Herbert, Iron, Gender and Power, p. 136-144; J. Mertens, Les chefs couronnés chez les Ba Kongo
orientaux : étude de régime successoral. Brussels: G. van Campenhout, 1942; Wyatt Macgaffey, Religion and
Society in Central Africa: the Bakongo of Lower Zaire. Chicago and London: University of Chicago Press, 1986;
Robert Slenes, “L´Arbre Nsanda replanté: cultes d´affliction Kongo et identité des esclaves de plantation dans le
Brésil du Sud-Et (1810-1888)”, Cahiers du Brésil Contemporain, Paris, n. 67/68, 2007, (partie II), p. 217-313;
Jan Vansina, “Linguistic Evidence for the Introduction of Ironworking in Bantu-Speaking Africa”, History in
Africa, 33, 2006, p. 321-361; John Thornton, “The Regalia of the Kingdom of Kongo, 1491-1895”. In: E.
Beumers & P. Koloss (eds), Kings of Africa: Art and Authority in Central Africa. Maastricht: Foundation Kings
of Africa, 1992, p. 56-63.
11
Segundo relatos do missionário Cavazzi, no Reino do Ndongo, a escolha do primeiro “chefe do país” teria
ocorrido porque Ngola-Mussuri, que significa “rei-serralheiro”, era “mais perspicaz que os outros”, pois
conhecia “a maneira de preparar o ferro”, assim, como usava de seus conhecimentos com “sagacidade e socorria
a todos nas necessidades públicas, ganhou amor e o aplauso dos povos”. Giovanni Antonio Cavazzi de
Montecúccolo, Descrição Histórica dos Três Reinos, Congo, Matamba e Angola, Junta de Investigações do
Ultramar, Introdução bibliográfica por F. Leite Faria, Tradução pelo Padre Graciano Maria de Leguzzano
Lisboa, 1965, vol. I, p. 253. Antonio da Gaeta, La meravigliosa conversione a lla Santa Fede di Cristo d
ellaregina Singa e del suo regnodi Matamba, Nápoles: Francisco de Maria Gioia, 1669.
211
O chamado Mubanga, principal soba da Ilamba Alta ou Lumbu, era herdeiro desta linhagem.
Para Cavazzi, o “mais considerável dos artífices” era o ferreiro12. Como acompanhamos no
capítulo 2, foi nessa região que, no século XVIII, a fábrica de ferro foi construída. Nas
palavras de Cadornega, o ngangula “entre este gentio é oficio muito estimado, e com ele se
adquirem escravos e fazenda, por ser o mais necessário para as suas lavouras (...)”13. O que já
remete a necessária presença material do ferreiro para o desenvolvimento da agricultura, da
caça, da guerra.
O fundidor, por sua vez, para alguns autores não teria a proeminência política do
ferreiro, embora tivesse importância ritual14. Cavazzi, por exemplo, quando explicou a
origem do ferro forjado em Angola, disse que, perto das minas,
“durante as chuvas, tomam uma certa terra que as águas levam para os
caminhos ou para as valetas e, colocando-a sobre o carvão, tanto a trabalham
com foles que, por fim, separando-se as escórias, fica o ferro muito bem
fundido e purgado”15.
12
A atividade do ferreiro seria a seguinte: “o serralheiro está sentado no chão encurvado penosamente, o que lhe
causa grande fadiga, e bate com uma das mãos, enquanto com a outra aciona os foles ou maneja o ferro”. No fim
do processo de forja, o produto era “uma seta, um machado ou um alfanje [catana]”. Giovanni Antonio Cavazzi
de Montecúccolo, Descrição Histórica dos Três Reinos, Congo, Matamba e Angola, v. I, p. 164 e 165.
13
Antonio de Oliveira Cadornega, História das Guerras Angolanas, v. I, p. 25 e 26. No “Catálogo dos
governadores do Reino de Angola” e na “História de Angola”, de Elias Alexandre da Silva Correa, há
referências à história da fundição de Nova Oeiras, mas nenhum detalhe mais específico sobre o processo de
trabalho nas oficinas de ferreiro ou fundidor. “Catálogo dos governadores do Reino de Angola. Com uma prévia
notícia dos princípios de sua conquista e do que nela obraram os governadores dignos de memória”. In:
Coleção de notícias para a História das nações ultramarinas que vivem nos domínios portugueses ou lhe são
vizinhas. Academia Real das Ciências de Lisboa. Lisboa: Tip. da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1826.
Elias Alexandre da Silva Correa, História de Angola, 3 v, Lisboa: Clássicos da Expansão Portuguesa no Mundo.
Império Africano, 1937.
14
Pierre de Maret, “The smith’s myth and the origin of leadership in Central Africa”. In: P. Shinnie, R. Haaland,
(eds.), African iron working. Bergen: Norwegian University Press, 1985, p. 73-87; Maria das Dores Cruz, “Ritos
e ofícios. Algumas notas sobre a metalurgia do ferro em Angola”. In: M. Conceição Rodrigues, Homenagem a J.
R. dos Santos Júnior. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, v. II, 1993, p. 131-143.
15
Giovanni Antonio Cavazzi de Montecúccolo, Descrição Histórica dos Três Reinos, Congo, Matamba e
Angola, v. I, p. 164 e 165.
212
16
Carta de João Baines para Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho. Novo Belém, 17 de dezembro de 1768.
IEB, USP, AL-083-203.
17
Carta de Antonio Salinas de Benavides. São Paulo de Assunção de Luanda, 15de novembro de 1800. Arquivos
de Angola, v. IV, nº 52, 1939, p. 323. Benavides considerava o Cathari um lugar mais apropriado para a
instalação de uma fundição: “este lugar mais afastado que Oeiras légua e meia do rio Lukala ganha na
salubridade pois que se desvia outro tanto das lagoas do Lembo, quanto perde no afastamento do rio pelo qual se
hão de fazer as exportações”.
18
Pulungu verbete é geralmente traduzido como pobre, miserável mendigo. Antonio da Silva Maia, Dicionário
complementar: português-kimbundu-kikongo: (línguas nativas do centro e norte de Angola), 1961. A. de Assis
Júnior. Dicionário Kimbundu-Português. Luanda: Argente, Santos e Comp., Lda., [s.d.].K.-E. Laman,
Dictionnaire kikongo-français avec une carte phonétique décrivant les dialectes les plus importants de la langue
dite Kikongo. Mémoires de la Classe des Sciences Morales et Politiques, IRCB, 1936.
19
Agradeço ao professor Robert Slenes por me indicar essa hipótese e chamar a atenção para essa palavra nos
estudos de Kriger. Colleen E. Kriger, Pride of men, p. 84 e ss.
20
Em Mbangu kya Tambwa havia notícias de “bastantes ferreiros”, produzindo enxadas, machadinhas e outras
ferramentas. Ali havia só ferreiros, uma vez que o metal que utilizavam era importado de outras localidades ou
entregue no momento da encomenda das ferramentas. Já citamos as duas minas na Ilamba, de Quituxe e
Calombo, de “terra ferruginosa”, que eram exploradas por meio de escavação de galerias, “furnas profundas”.
213
foles Ambundos, funcionavam 36 forjas, cada uma composta de três pessoas, “um era o
fundidor e dois lhe tangiam os foles” (totalizando 108 pessoas). Em outras 10 forjas
trabalhavam também três homens, “um ferreiro e dois dos foles, que batiam as pastas que
saíam dos fundidores e as reduziam em barretas” (num total de 30 pessoas)21. Então, podemos
considerar que a divisão entre essas especializações de fato exista. Porém, não eram ofícios
independentes, mas sim complementares.
Os fundidores e ferreiros que eram dependentes das autoridades africanas, como
no caso citado do Kilamba Ngongue a Kamukala ou o dos muitos ferreiros de Mbangu kya
Tambwa, serviam em Nova Oeiras porque, como “filhos”, estavam obrigados pelas relações
de parentesco a trabalharem ali. Podiam também ter sido capturados em razias ou vencidos
em guerra. De qualquer modo, esses artesãos devem ter sido alvos cobiçados na região. Os
sobas tinham interesse em manter uma mão de obra que lhes possibilitava acúmulo de
riquezas, poderio militar, haja vista o pungente mercado de produtos de ferro no Reino de
Angola. Outrossim, era de seu interesse direto ter, entre os seus dependentes, aqueles que por
poderes mágico-religiosos legitimassem sua autoridade, seja participando de rituais
específicos, seja produzindo emblemas de poder. Fora que eram artesãos essenciais para a arte
da guerra, produzindo facas, zagaias, machados, e consertando armas de fogo,
confeccionando balas. Essa não era uma estratégia política exclusiva dos chefados de Angola.
Na Guiné Inferior, no Império Ashanti, por exemplo, os líderes estendiam seu domínio
territorial e político, enquanto, incentivavam as artes e o artesanato. Com a Confederação
Ashanti, surgiram centros especializados; Fumesua, por exemplo, congregava ferreiros e
fundidores22.
Não eram somente os sobas que tinham interesse em manter esses trabalhadores
por perto. Com o aumento da demanda por libambos, algemas e prisões, negociantes e
moradores também se tornavam seus patronos ou protetores. Isso acontecia sobretudo em
Ambaca que, como vimos, foi o local mais afetado pela falta de ferro para esses e outros
objetos como as ferramentas agrícolas, provocada pelas demandas de Nova Oeiras – o que
causava muitas reclamações por parte dos comerciantes.
Isso mostra que diferentes povoações poderiam especializar sua produção de acordo com as demandas locais.
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 9 de maio de 1762. BNP, C.
8553, F. 6362.
21
Carta de José Francisco Pacheco. São Paulo de Assunção, 15 de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57, D.
28.
22
J. Anquandah, Rediscovering Ghana’s Past. Harlow: Longman, 1982, p. 40.
214
Por outro lado (ou por isso mesmo), o ofício garantia aos ferreiros e fundidores
maior mobilidade; podiam deixar um sobado, ou mesmo fugir, e buscar a proteção de outros
líderes. Decerto, seriam bem-vindos23.
Os trabalhadores especializados poderiam ter sido constrangidos pela força a
trabalharem em Nova Oeiras como pode-se depreender das estratégias de recrutamento de
trabalhadores que analisamos no terceiro capítulo.
Outro fator que não podemos ignorar era o acesso às minas. Os artesãos detinham
o conhecimento, porém, as minas eram exploradas por sobas e ilamba poderosos que há
muito as guardavam. Para terem acesso ao minério, era preciso negociar com as autoridades
locais. Esse também podia ser um motivo para muitos ferreiros e fundidores empobrecidos
terem ido trabalhar em Nova Oeiras, para ter acesso ao minério e de alguma forma furtar o
ferro fabricado para suas próprias obras ou mesmo vendê-lo, já que era um objeto-moeda
comum em Angola. Quando, em 1762, o governador mandou fazer experiências para
averiguar a qualidade do ferro produzido, disse que não poderia dizer com certeza as quantias
fabricadas porque os “pretos [ferreiros e fundidores] furtaram alguns pedaços” do metal que
fundiram. Se somarmos essa informação à constante vigilância a que os trabalhadores
estavam submetidos na fábrica (eram revistados três vezes durante o dia), parece plausível
pensar que ter acesso ao minério não era tarefa simples e que Oeiras era uma oportunidade de
fugir ao controle das chefias locais24.
Por fim, essas pessoas eram remuneradas, em Nova Oeiras, como vimos poderiam
ser pagas em fazendas, uma mercadoria de valor que facilmente seria trocada por
mantimentos ou até mesmo escravos. Para aqueles que se encontravam em situações de
penúria, essa poderia ser uma alternativa viável.
A bibliografia aponta para a existência de grupos étnicos ligados ao ofício de
ferreiro25. É possível encontrar indícios desse aspecto em documentos referentes às fábricas
da Ilamba. Em 1767, o governador de Angola ordenou que o capitão-mor de Ambaca deveria
arregimentar ferreiros e fundidores da Ilamba, mas que não devia recorrer aos Mubires, “até
23
Em 1803, “pretos ferreiros e fundidores” dos sobas anexos ao presídio de Massangano encontravam-se
“refugiados” nas terras de outros sobas. Carta ao regente da Vila de Massangano. São Paulo de Assunção de
Luanda, oito de julho de 1808. AHA, Cód. 91, fl. 97v.
24
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 10 de julho de 1762.
AHU_CU_001, Cx. 45, D. 68.
25
Eugenia W. Herbert, Iron, Gender and Power; Colleen E. Kriger, Pride of men. Ironworking in 19thcentury,
West Central Africa.
215
segunda ordem”26. No século XVII, Cadornega se referiu aos Vili ou Mubires como “negros
tratantes” que circulavam pelo reino do Kongo e “todas as mais partes”; eles andavam
“volantes” e eram temidos por serem “grandes feiticeiros”27. Essas são características que se
relacionam ao ofício de ferreiro na África Central, com suas poucas ferramentas (além dos
foles, poderiam usar pedras como bigornas, martelos para forjar o metal) poderiam circular
pela região em busca de clientes e feiras onde comerciar seus produtos. Em 1656, os Mubires
foram acusados de provocar uma rebelião entre os escravos das sanzalas e arimos, incitando-
os a fugir para se juntarem a “um negro do rei do Kongo que capitaneia a sua guerra contra o
conde de Sonho”28.
Em seus apontamentos de viagem do final do século XIX, Alfredo Sarmento
relata que, por volta de 1759, na fundação do presídio do Encoge, foram mandados para ali
“negros Mubires”, que eram oriundos do Loango. O que ele relatou é que “os usos e costumes
destes negros” eram diferentes; por exemplo, não aceitavam a escravidão entre eles. Os
Mubires pagavam tributos aos ndembu e consideravam-se estrangeiros, não se incorporando
às linhagens locais. Eram “trabalhadores e inteligentes”, entre eles havia ferreiros e
carpinteiros, sua identidade comercial estava relacionada ao tráfico de escravos29. Entre tais
características atribuídas aos Mubires, destacamos o isolamento social que também pode ser
considerado um aspecto da figura do ferreiro. Por seu ofício ser ligado às armas e, assim, à
morte, o ferreiro ao mesmo tempo que é respeitado é temido. Ademais, havia o interesse em
resguardar seus conhecimentos técnicos; assim, o afastamento os manteria em segredo.
Se os Mubires estavam no Encoge, é possível que eles em algum momento
tenham sido recrutados para o trabalho de Nova Oeiras. Sousa Coutinho, no entanto, não
parecia inclinado a aprovar a iniciativa do capitão de Ambaca de ir buscá-los. Talvez pela
reputação de causarem rebelião, de escolherem viver isolados, de serem poderosos feiticeiros.
Não podemos dizer mais sobre os Mubires porque encontramos uma única referência a eles na
documentação. Parece que eram um povo voltado para o artesanato, inclusive ou
principalmente os do ferro.
26
Carta de FISC para Francisco Matoso de Andrade, capitão-mor de Ambaca. São Paulo de Assunção, 25 de
maio de 1767. BNP, C 8742, F 6364.
27
Antonio de Oliveira Cadornega, História das Guerras Angolanas, v. I, p. 271. David Birmingham mostra
como os Vili se tronaram grandes mercadores de escravos no decorrer do século XVII. David Birmingham,
Central Africa to 1870: Zambezia, Zaire and the South Atlantic. Cambridge: University Press, 1981, p. 68.
28
Carta da Câmara de Luanda, 19 de janeiro de 1656; Consulta do Conselho Ultramarino, 3 de agosto de 1656.
AHU_CU_001, Cx. 6, D. 61
29
Alfredo de Sarmento, Os sertões d´África. Apontamentos de uma viagem. Lisboa: Francisco Arthur da Silva,
1880, p. 153, 159-161.
216
30
Carta de FISC para José Antunes de Campos, regente de Ambaca. São Paulo de Assunção de Luanda, 25 de
janeiro de 1768. IEB/USP, AL-083-002.
31
Carta de José Álvares Maciel para Miguel Antonio de Melo, governador de Angola. Trombeta, dois de março
de 1800. BNP, C 8553, F6362.
217
obediência; logo, seriam punidos se não colaborassem. Em segundo lugar, a aliança com os
portugueses e a participação na construção de uma grande fábrica, representava para essas
chefias ascensão e prestígio social na complexa hierarquia local. Sousa Coutinho repetidas
vezes prometeu o enriquecimento daqueles que colaborassem com a fábrica. Se sobas,
ilamba, imbari frequentemente pediam mercês, patentes militares, sem dúvida se
interessavam pelos mecanismos de distinção social que os colonizadores ofereciam.
Por último, na lógica local, as escolhas do fundidor e do ferreiro relativas a
técnicas e ritos determinados não se dissociavam de suas aspirações econômicas. Ao
contrário, manter o sigilo sobre a localidade das minas, como vimos no capítulo 2, e dificultar
o acesso a seu conhecimento específico, por meio de ritos e segredos, eram estratégias não só
para controlar a mão de obra de aprendizes e dependentes como para garantir a exclusividade
de seus produtos. Trabalhar na fábrica, cotidianamente, era uma maneira de saber tudo o que
acontecia ali. Quiçá, um modo de sabotar por dentro o projeto colonial. No fim das contas, a
principal razão de Nova Oeiras, construída com pedra e cal, ter sucumbido vinha da
resistência dos que trabalhavam na “Casa da Fundição dos Pretos”. Os ferreiros e fundidores
recusaram o ritmo de trabalho e as exigências de produção que o projeto da Real Fábrica do
Ferro tentou impor. Isso porque, seguiam outro ritmo, fundiam e forjavam “segundo os seus
ritos”.
O que podemos dizer sobre esses ritos? Muitos rituais foram registrados por
etnólogos ao longo do século XX. Não se pode afirmar que os ritos que envolviam a fundição
no final do século XVIII correspondessem aos observados mais de duzentos anos depois.
Contudo, como bem lembrou o historiador Hampatê-Bá, “os ofícios tradicionais são os
grandes vetores da tradição oral”32. O autor considera o exercício de um ofício como o
exemplo máximo da tradição oral porque encerra-se ali mais que ações e gestos; ao transmitir
os conhecimentos para um aprendiz, o mestre está compartilhando “verdadeiros códigos
morais, sociais e jurídicos peculiares a cada grupo, transmitidos e observados fielmente pela
tradição oral”33.
Um exemplo dessa continuidade é o uso da pemba, uma argila branca que foi
citada por Miller como um pó sagrado utilizado por algumas linhagens Ambundas para
32
Amadou Hampatê Bá, “A tradição viva”. In: Joseph Ki-Zerbo (org.). História Geral da África I. Metodologia
e pré-história da África. São Paulo, Ed. Ática/UNESCO, 1980, p. 202. É interessante observar que também na
antiga África Ocidental francesa, na tradição bambara do Komo (Mali), que é a região de estudos de Hampatê-
Bá, muitos dos rituais descritos na transcrição de Redinha se repetem para os ferreiros daquela região. Por
exemplo, ali também se verifica o uso de uma vestimenta especial, de plantas, de preces.
33
Idem, p. 199.
218
assegurar a fertilidade das mulheres34. José Redinha, por volta de 1950, registrou os rituais de
uma fundição de ferro que também usavam a pemba, na povoação de Tchiungo-Ungo35. Nas
fundições registradas por Redinha, o forno foi modelado com características femininas – com
seios, umbigo, além da genitália feminina, que seria o lugar de onde o ferro escorria. Redinha
observou que a fundição simulava um parto. Nesse contexto, o uso da pemba parecer ser
bastante alusivo porque garantia um bom resultado ao trabalho, assim como seu uso nas
mulheres das linhagens Ambundas lhes conferiria fertilidade.
Nesta fundição da década de 50 do século XX, o processo completo levou
aproximadamente 11 horas porque, durante a fundição, o mestre fundidor, que era filho do
soba, procedeu a uma série de ritos além do descrito acima: vestiu-se de roupas especiais
(“uma pele de corça”), disse preces “sobre o local de entrada do ar”, invocando “os avós e os
tios, que foram sucessivamente mestres do ofício, pedindo-lhes a sua boa graça para que a
fundição resultasse perfeita”; entre outras cerimônias36.
A documentação consultada, para o século XVIII, composta basicamente por
fontes administrativas, registra que o ritmo de trabalho dos ferreiros Ambundos era um
empecilho à “indústria” e indicativo de “preguiça”; o fato de produzirem poucas quantidades
de ferro era considerado falta do “espírito do lucro” e o uso de suas ferramentas e técnicas
locais foi visto como algo “tosco” e “bárbaro”. Um exemplo é a descrição feita pelo
governador Antonio de Vasconcelos, em 1759:
“como eles [ferreiros e fundidores] naturalmente são preguiçosos e de pouca
indústria operam só o preciso segundo as encomendas com desperdício de
infinitos tempo[s] por falta de instrumentos, contentando-se de um pedaço
de pele de cabrito por fole e de uma pedra para botarem o ferro enquanto não
têm algum bocado que lhes sirva de malho”37.
34
Joseph C. Miller, Poder político e parentesco, p. 47.
35
Entre os Cokwe. José Redinha, Campanha etnográ fica ao Tchiboco (Alto-Tchicapa), 2v, Lisboa: Companhia
de Diamantes de Angola; Museu do Dundo, 1953-1955. Apud José Bacellar Bebiano, Museu do Dundo: notas
sobre a siderurgia dos indígenas de Angola e de outras regiões africanas. Lisboa: Publicações culturais da
Companhia de Diamantes de Angola, 1960, p. 36-43.
36
Idem, p. 37.
37
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola para Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
secretário de Estado da Marinha e Ultramar. São Paulo de Assunção, 18 de janeiro de 1759. BNP 8553, F 6362.
Outro exemplo, falando mais especificamente da questão econômica: “Pelo contrário sucede aqui, onde a
pobreza dos negros, a sua preguiça e a falta de indústria com um total desprezo de possuir riquezas faz que seja
verdadeiramente impossível que eles apeteçam pelo espírito do lucro, dilatar o serviço, e as utilidades do ferro”.
Carta de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de
Estado da Marinha e Ultramar. São Paulo de Assunção, 25 de novembro de 1768. AHA - Governo. Ofícios para
o Reino. Códice nº 3, fls. 287v-288v.
219
38
É mais provável que em 150 dias tenha-se produzido 1 quintal por dia (60 kg), entrando na média do
governador de 30 a 40 quintais por mês. Carta de José Francisco Pacheco. Fábrica da Nova Oeiras, cinco de
março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57, D. 28.
39
Idem.
40
Diversos tipos de minérios de ferro eram encontrados nessa região. “Em Angola de maneira geral tem sido
aproveitada a limonite (ferro hidratado) dos pântanos, conhecida localmente pelos europeus pela designação
imprópria de ‘piritas’. Em Massangano, extraía-se o minério (magnetite) de areias aluvionárias. Na região de
Zenza de Itombe, próximo do Dondo, os fundidores aproveitavam o minério de Embassa (magnetite)”.
Lembramos que Nova Oeiras se localizava na Ilamba Alta, atual província do Dondo. José Bacellar Bebiano,
Museu do Dundo: notas sobre a siderurgia dos indígenas de Angola e de outras regiões africanas, p. 23.
41
Carta de José Francisco Pacheco. Fábrica da Nova Oeiras, cinco de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 52, D.
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado da Marinha e Ultramar. São
Paulo de Assunção de Luanda, seis de maio de 1769. IEB/USP, Al – 082- 156.
42
Um carvoeiro com seis ajudantes produzia 500 fangas de carvão em 40 dias. Se considerarmos que a medida
indique alqueires em litros, seria algo em torno de 645 l de carvão.
220
Sebastião e João André. Pelos nomes, eram batizados e vassalos da Coroa portuguesa. Foram
chamados para que se averiguasse o quanto seu método rendia em ferro. Pedro Manoel, o
fundidor com que começamos essa tese, com seus dois “servidores” tocadores de foles, usou
60 libras de “mina bruta”, ou seja, em média 28kg do minério garimpado nos montes
circunvizinhos à fábrica. Pedro construiu seu forno e com a ajuda dos tocadores de foles
começou a fundir a mina. No primeiro dia, após a fundição, restaram 40 libras, no segundo 20
libras, cerca de nove quilos de ferro. Portanto, foram feitas duas fundições para se obter o
ferro. Esses 9kg de massa de ferro seguiram para a forja do ferreiro que “apurando”, retirando
as escórias, também com a ajuda de dois assistentes, reduziu o ferro a uma barrinha de quatro
libras e meia (2kg) 43.
Todos os outros fundidores seguiram o mesmo método e chegaram a resultados
parecidos, variando entre quatro e quatro libras e meia de ferro. Fundidores, tocadores de
foles e o ferreiro que fabricou as barrinhas receberam $80 rs por dia, no total de 3$200 rs.
Foram produzidos 12 kg de ferro a partir de 168 kg de mina bruta em 48 horas.
Para o governador, essa quantidade de ferro era muito pouca, ele queria
rendimentos maiores como os que os biscainhos alcançavam em suas ferrarias hidráulicas44. A
questão é que na Biscaia se trabalhava dia e noite, durante seis dias da semana; os
trabalhadores chegavam a dormir nas ferrarias.
Na Ilamba, o ofício de ferreiro parece ter sido exclusivamente masculino. Antonio
Salinas Benevides citou, em 1800, que os ferreiros no Golungo Alto deixavam suas mulheres
cultivando os campos e se retiravam para fundir o ferro. O isolamento e a exclusão da mulher
eram características frequentes deste ofício na África Central e Ocidental. Eugene Herbert
considera que os tabus em torno da presença feminina no momento da fundição devem ser
compreendidos em termos de controle social da sexualidade e da reprodução45. Também
temos de considerar, como lembra Colleen Kriger, que os rituais, os segredos, a exclusão de
terminados grupos dos ofícios do ferro e do fogo se relacionam a estratégias dos próprios
artesãos em manter o controle sob uma atividade que, como vimos, lhes proporcionava
privilégios – sociais, econômicos e políticos46. Portanto, o ritmo e a ideia da casa de fundição
era uma intromissão em uma prática fechada e sacralizada.
43
Certidão de José Francisco Pacheco, inspetor das obras da fábrica, sobre o estado da fábrica de ferro. São
Paulo de Assunção de Luanda Luanda, 13 de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57, D. 28.
44
No item “Da Biscaia” neste capítulo, discorremos sobre o cotidiano em uma ferraria hidráulica.
45
Carta de Antonio Salinas de Benavides. São Paulo de Assunção de Luanda, 15de novembro de 1800. Arquivos
de Angola, v. IV, nº 52, 1939, p. 323. Eugenia W. Herbert, Iron, Gender and Power. Rituals of Transformation
in African Societies, p. 96.
46
Colleen E. Kriger, Pride of men. Ironworking in 19th century, West Central Africa, p. 57.
221
Kriger aponta que, na África Central, a fundição ocorria na estação seca (no caso,
no cacimbo, entre março e agosto) porque as árvores e o minério em pedra ou terra ficavam
encharcados durante as chuvas, o que reduzia a qualidade do carvão vegetal e, assim, do ferro
que seria fundido. Encontramos duas menções sobre isso nas fontes. O governador Sousa
Coutinho mandou fazer a “Casa da Fundição dos Pretos”, um lugar coberto, para que eles
pudessem trabalhar em todas as estações do ano, prevenindo “as desculpas que as chuvas dão
lugar embaraçando [atrapalhando] o trabalho dos ferreiros”47. Além disso, em uma de suas
cartas, ele comenta que na Ilamba não se conseguia recrutar todos os ferreiros e fundidores, já
que alguns ficavam na localidade para fundir o ferro nos “meses do cacimbo”48. Logo, nas
aldeias os ferreiros trabalhavam em estações específicas e, na casa de fundição, operavam
fornos o ano inteiro.
Se a casa de fundição já trazia problemas para as dinâmicas internas do ofício, a
ferraria hidráulica, então, mudava completamente a relação dos ferreiros e fundidores
Ambundos com sua prática. Muitos deles se tornavam dispensáveis, já que em uma ferraria
hidráulica era preciso apenas cerca de seis funcionários entre mestres fundidores e ferreiros
para fazer a fábrica funcionar e produzir de 40 a 50 toneladas de ferro anuais. A “Casas de
Fundição dos Pretos” produzia algo em torno de 18t por ano e empregava 138 ferreiros e
fundidores. Se Nova Oeiras funcionasse como uma ferraria movida por rodas d’água se
tornaria uma ameaça à sobrevivência de um ofício e de todo prestígio e significado social que
o cercava dentro e fora da fábrica. Pedro Manoel e seus colegas de ofício, o soba fundidor,
bem como os rebeldes “negros ferreiros e fundidores” de Ambaca percebiam as intenções do
governador, mesmo que desconhecessem a Biscaia, e não devem ter apreciado a ideia.
Na Biscaia, as associações de ofício de ferreiros e fundidores se recusaram a
aderir à fundição em alto-fornos porque isso ameaçava sua sobrevivência enquanto mister.
Por que, com os Ambundos, que percebiam todas essas mudanças e tentativas de
interferência, seria diferente? Dito isso, a hipótese de que podem ter tentado sabotar por
dentro o projeto colonial torna-se mais plausível.
A fábrica queria impor um ritmo pautado por concepções europeias de trabalho e
de ofício. Essas duas percepções chocavam-se em Nova Oeiras, não apenas em termos de
visões de mundo opostas, mas também entre as pessoas representantes destes sistemas de
pensamento. Esse é o contexto que permite entender outros motivos para as constantes fugas,
47
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte, intendente geral da fábrica de ferro. São Paulo de Assunção de
Luanda, 10 de dezembro de 1766. BNP, C 8742, F6364.
48
Carta de FISC para Francisco Matoso de Andrade, capitão-mor de Ambaca. São Paulo de Assunção, 25 de
maio de 1767. BNP, C 8742, F 6364.
222
para as pancadas, para o fato dos Ambundos serem considerados preguiçosos e indolentes
pelos governadores. Os confrontos emergem da situação colonial. O governador Ilustrado
incluía o “outro” africano no estatuto jurídico de “pessoa miserável” – são frequentes as
alusões aos “miseráveis negros”, às “gentes pobres” – desprovido de meios para aproveitar os
recursos naturais e tecnológicos a seu dispor e, carentes, portanto, da tutela colonial. Esse tipo
de justificativa foi criado porque os Ambundos, em certa medida, não eram vistos como
sujeitos históricos possuidores da mesma complexidade dos europeus e, por isso mesmo,
dotados de conhecimentos, cultura e linguagem igualmente multifacetados49. Era essa visão de
mundo que não permitia que os administradores coloniais percebessem a contradição em
considerar “miseráveis e sem arte” técnicos metalúrgicos capazes de produzir de “40 e 50
quintais de ferro” por mês apenas com seus “pequenos foles”50.
Sousa Coutinho não subestimava apenas a capacidade dos Ambundos em
subverter o significado de Nova Oeiras: ele não levava em conta que, com instrumentos
rústicos, fossem tão ou mais capazes de produzir ferro e aço de alta qualidade que qualquer
europeu. Para entender o equívoco do governador, é preciso conhecer alguns detalhes das
técnicas metalúrgicas usadas pelos centro africanos e sua potencialidade.
Pode não parecer à primeira vista, mas os ritos e as cerimônias, a aplicação de
plantas durante a fundição e o ritmo dos foles têm muito a ver com conhecimentos químicos,
apesar de transcender essa função técnica51. O minério de ferro, encontrado na natureza,
precisa passar pela fundição para se transformar em metal. As etapas do trabalho com o ferro
podem ser divididas, de modo geral, em garimpar o minério, fabricar combustíveis (no caso,
carvão vegetal), construir o forno de fundição, fundir o mineral, e, por fim, forjar a bola de
ferro obtida, produzindo barras, utensílios e objetos acabados. Durante a fundição, dentro do
forno, o minério passa por reações químicas em virtude de seu aquecimento, que pode ser a
temperaturas acima ou abaixo do ponto de fusão do metal (no caso do ferro 1.538ºC).
Nos alto-fornos industriais, o produto desta operação é o ferro gusa líquido com
teor de ferro da ordem de 95% que pode ser prontamente utilizado em diferentes moldes. Nas
49
Achille Mbembe, A crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, p. 191; Georges
Balandier, “A Situação Colonial: Abordagem Teórica”[1951]. Cadernos Ceru, série 2, v. 25, n. 1, junho de 2014.
50
Carta de Francisco Inocêncio de Souza Coutinho, governador do reino de Angola, a Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, secretário de Estado da Marinha e Ultramar, informando sobre o estabelecimento da real
fábrica do ferro. São Paulo de Assunção de Luanda, 29 de dezembro de 1766.RJIHGB/ PADAB DVD10,20
DSC00396.
51
Essa ideia ocorreu a Jacob Bronowski. Após analisar fundições de ferro na África Subsaariana, ele disse:
“quando não se tem linguagem escrita, não se tem nada que possa ser chamado de fórmula química, então deve-
se ter uma cerimônia precisa que corrija a sequência de operações para torná-la exata e memorável”. Jacob
Bronowski, The Ascent of Man. London: BBC, 1973, p. 171.
223
fundições africanas descritas na documentação de Nova Oeiras, o ferro era obtido em estado
sólido em um método conhecido como redução direta, ou seja, pela redução dos óxidos de
ferro em ferro metálico em temperaturas abaixo do ponto de fusão. O combustível utilizado
era predominantemente o carvão vegetal, que fornece o calor e que, combinado ao oxigênio
durante a combustão, produz o monóxido de carbono. Este, por sua vez, reduz os óxidos de
ferro produzindo o ferro metálico e o dióxido de carbono. O monóxido de carbono é muito
importante nesse processo, “pois proporciona uma atmosfera de redução para a fundição de
minério de ferro e, limitando a quantidade de suprimento de ar ao forno, as fundições podem
criar mais monóxido de carbono e, portanto, uma área de trabalho maior no forno”52.
Dito de outra forma, a quantidade maior ou menor de moléculas de carbono
combinada com o ferro resulta em metais com diferentes propriedades. O ferro com baixas
quantidade de carbono é mais maleável; “ferro com moderado conteúdo de carbono (aço) é
durável e resistente; ferro fundido com alta concentração de carbono pode ser quebradiço e
muito difícil de forjar”53. Dessa forma, a fundição de ferro em estado sólido “envolve um
equilíbrio delicado de importantes fatores: o suprimento de ar e a temperatura”54, ambos
controlados pelos artesãos do ferro. O resultado final da fundição é uma massa de ferro com
impurezas, chamada de bloom, que, após o martelamento manual ou mecânico na bigorna,
permite a confecção de produtos.
É preciso relativizar alguns aspectos técnicos descritos até aqui. Como Colleen
Kriger acertadamente apontou, os alto-fornos desenvolvidos na Europa não são mais
sofisticados e desenvolvidos tecnicamente que os fornos baixos utilizados na África. O
modelo de forno baixo ficou conhecido como bloomery e se acreditou durante muito tempo
que não era possível atingir altas temperaturas com ele. A premissa era que as temperaturas de
fusão de alguns metais seriam alcançadas apenas nos alto-fornos. Na verdade, esses pequenos
fornos são capazes não só de atingir, mas manter altas temperaturas. Em baixos fornos
experimentais, foram alcançadas temperaturas em torno de 1.600ºC. O objetivo dos
fundidores africanos não era simplesmente atingir altas temperaturas, antes o desafio era
manter a temperatura controlada – em torno de 1.200ºC e 1.300ºC – assim, a “atmosfera de
redução” do forno era suficiente para criar um ferro fundido com “grande resistência à tração
52
Colleen E. Kriger, Pride of men. Ironworking in 19th century, West Central Africa, p. 7. Ver também:
Anicleide Zequini, Arqueologia de uma fábrica de ferro: Morro de Araçoiaba, séculos XVI-XVIII, São Paulo:
Tese (Doutorado em Arqueologia) – USP, 2006, pp. 63 e 64.
53
Colleen E. Kriger, Pride of men. Ironworking in 19th century, West Central Africa, p. 33 e 34
54
Idem, p. 88.
224
e relativamente baixo teor de carbono”. Ou seja, “um material que poderia convenientemente
ser transformado pelo ferreiro em variados tipos de produtos”55.
Além disso, as escórias contidas no ferro bloomery possibilitam uma maior
fusibilidade, fazendo com que pedaços de ferro possam ser soldados sem a necessidade de
agente fundente. Isso faz com que os utensílios fabricados com este ferro sejam facilmente
consertados, reformulados e afiados. A partir dessa informação é interessante reler alguns
comentários de Sousa Coutinho sobre o ferro produzido pelos Ambundos. O governador
considerava este metal superior “a todos quanto há para instrumentos de corte”, sendo que as
ferramentas produzidas com ele não cediam à longa “duração” e nem aos diferentes usos, ou
“empréstimos”, como ele anotou56. Todas as características que descrevemos acima.
Os requisitos mínimos para construir um forno bloomery são: um forno com o
feitio de uma bacia cavado no chão, que pode ser feito de argila, um ou mais tubos condutores
através do qual o ar é impelido para dentro do forno e os foles para o suprimento de ar.
Paredes podem ser construídas em volta do forno com muitos metros de altura; há uma grande
variabilidade de formatos de fornos. O que possibilita que um forno produza mais ferro que
outro não é a sua altura ou profundidade, tanto é assim que diferentes fundições em um
mesmo forno podem produzir resultados muito discrepantes. “Para avaliar a capacidade
potencial de um forno, isto é, o tamanho da massa de ferro produzida ou o bloom que poderia
produzir, deve-se ser capaz de medir o tamanho potencial da área de trabalho do forno”57, a
área com monóxido de carbono. Para fabricar mais bloom, é preciso aumentar a área de
produção do monóxido de carbono, o que pode ser feito alocando tubos condutores de ar em
diferentes ângulos entre si58.
José Álvares Maciel escreveu o mais completo relato sobre todos os detalhes
envolvidos no processo de fundição de ferro em Nova Oeiras. Nele encontramos todos os
elementos técnicos descritos até aqui. O mineralogista visitou a região da Ilamba (então
chamada de Trombeta) sucessivas vezes, entre 1795 a 1800, e fez desenhos e anotações a
partir da observação de fundidores e ferreiros locais. Maciel era um importante naturalista,
55
Ibidem.
56
Carta de FISC para Francisco Ferreira Guimarães. São Paulo de Assunção de Luanda, 13 de fevereiro de 1768.
AHA, Códice 79, fl. 78v – 80.
57
Colleen E. Kriger, Pride of men. Ironworking in 19th century, West Central Africa, p. 63.
58
Em um forno com apenas um tubo condutor para suprimento de ar, o monóxido de carbono seria criado
próximo à boca do tudo. Aumentando o número de tubos, seria possível aumentar a área de produção de
monóxido de carbono e, assim, aumentar a massa esponjosa de ferro resultante. Idem. Ibidem.
225
59
Brasílico, foi condenado por envolvimento na Inconfidência Mineira e deportado para Angola. Robson Jorge
de Araújo, José Álvares Maciel: o químico inconfidente. Disponível em:
https://bibliotecaquimicaufmg2010.files.wordpress.com/2012/02/josc3a9-c3a1lvares-maciel.doc. Acesso em:
02/2013.
60
José Álvares Maciel, Notícia da Fábrica de Ferro da Nova Oeiras do Reino de Angola. São Paulo de
Assunção de Luanda, 15 de dezembro 1797. AHTC, Erário Régio, 4196.
226
José Álvares Maciel explicou como os fundidores locais faziam o ferro bloomery.
Começou descrevendo as ferramentas: o forno tinha menos “de um pé até um pé e meio de
diâmetro” e oito polegadas de altura (aproximadamente 20 cm). Suas paredes eram feitas de
pequenos pedaços “de telha ou panelas” e por isso tinham algumas aberturas. Sua forma era a
de uma bacia, feita fora do chão. Os foles, logo acima, tinham forma de um tambor de
madeira que na parte superior traziam bem atada uma pele de cabra ou carneiro, formando um
pequeno balão fechado. No topo dos tambores foram introduzidas varetas por meio das quais
com um movimento rápido de vaivém se conseguia controlar a entrada de ar no forno. A
“longa”61 (sic), era um tubo de barro que tinha o mesmo comprimento do diâmetro do forno.
Seria o tubo condutor através do qual o ar era insuflado para dentro do forno, também
chamado de porta-vento ou alcaraviz (algaraviz), que poderia ser feito de barro ou madeira. A
quantidade e a disposição das longas eram importantes no processo da fundição porque
61
Não encontramos a palavra lunga nos dicionários de kimbundu e kikongo com quaisquer referências à
fundição (longa ou lunga). Recorremos novamente à ideia de que é uma palavra próxima à raiz -lungu que
estaria relacionada aos fornos de fundição.
227
62
“Na distribuição e colocação dos porta-ventos pretende-se evitar posições diametralmente opostas que possam
provocar embates de ar que anulem a sua ação”. José Bacellar Bebiano, Museu do Dundo: notas sobre a
siderurgia dos indígenas de Angola e de outras regiões africanas, p. 28.
63
“Existem corpos de sílica de inúmeros formatos e tamanhos nas gramíneas e palmeiras e extensiva taxonomia
é feita a partir deles”. “Cyperuspapyrus (Cyperaceae) – Caule: silhueta triangular, estômatos paracíticos, corpos
de sílica cônicos nas células da epiderme acima dos feixes de fibras da hipoderme, rede de parênquima com
grandes espaços de ar, feixes vasculares espalhados no parênquima”. David F.Cutler, Ted Botha, Dennis Wm
Stevenson. Anatomia vegetal: uma abordagem aplicada. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 115 e 209.
64
Edwin Eme Okafor, “Twenty-five Centuries of Bloomery Iron Smelting in Nigeria”. Hamady Bocoum (ed.).
The Origins of Iron Metallurgy in Africa. New light on its antiquity: West and Central Africa. Paris: UNESCO,
2004, p. 45-46. Foram encontrados traços de papiros em escórias analisadas por arqueólogos no reino de
Buganda, atual Uganda, na região dos Grandes Lagos. Louise Iles, “The Use of Plants in Iron
Production”. Archaeology of African Plant Use, v. 61, 2013, p. 267.
228
para realizá-lo podiam ser encontrados em abundância em toda a região da Ilamba65. Os foles
eram operados manualmente e o minério era de fácil acesso e recorrente nesta área.
Os agentes coloniais não compreendiam os motivos de os ferreiros e fundidores
Ambundos produzirem poucas quantidades de metal e assim seguirem um ritmo de trabalho
que era oposto ao “espírito do lucro”66. O que o governador e os funcionários desconheciam
era que os artesãos locais detinham um saber antigo de controle dos recursos naturais a seu
dispor e de uma técnica apropriada a eles. Controlavam os saberes do ferro e do fogo, sabiam
quanto de ar os foles deveriam insuflar, quando parar, quando abastecer o forno de mina
triturada, quando de carvão. Tal saber se relacionava à responsabilidade dos homens de ofício
tradicionais em preservar o equilíbrio entre as forças da natureza, mas não só. A conotação
mágico-religiosa atribuída ao ofício tinha implicações práticas.
Por exemplo, para fazer o carvão vegetal, os fundidores selecionavam as madeiras
mais apropriadas, para produzir carvão de melhor qualidade. Segundo os funcionários da
fábrica, os centro-africanos não sabiam como fazê-lo de “madeiras grossas”, desperdiçavam
assim a o que consideravam ser a “melhor madeira”; os Ambundos valiam-se apenas das
“ramas”67. Paradoxalmente, um ano antes disso, Sousa Coutinho deu instruções para que se
fizessem “os cortes como os negros praticam”; isso porque “por este método estão no ano
sucessivo capazes de dar tanta as mesmas árvores e matos que a deram neste”68. Talvez os
carvoeiros locais se valessem da técnica do árbol tras mocho, tal como os ferreiros
biscainhos: preservavam o tronco das árvores, podando apenas os ramos para aumentar o
tempo de vida da planta e o número de podas. Além disso, as árvores apropriadas para a
fundição eram árvores de crescimento lento na região; elas demoravam cerca de 20 anos para
chegar ao estágio em que podiam ser utilizadas69. O corte em larga escala de madeira levaria
esse recurso à escassez, por isso ele deveria ser usado com parcimônia. De todo modo, para os
65
Colleen E. Kriger, Pride of men. Ironworking in 19th century, West Central Africa, p. 59.
66
Carta de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de
Estado da Marinha e Ultramar. São Paulo de Assunção, 25 de novembro de 1768. AHA - Governo. Ofícios para
o Reino. Códice nº 3, fls. 287v-288v.
67
Carta de Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente geral das fábricas de ferro, para FISC. São Paulo de
Assunção de Luanda, 24 de julho de 1768. IHGB/ PADAB, DVD10,22 DSC00189.
68
“Instrução que deve guardar Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, servindo o emprego de intendente geral da
fábrica do ferro, e que executarão também os capitães-mores, como intendentes particulares na parte que lhes é
respectiva” (FISC). São Paulo de Assunção de Luanda, 12 de janeiro de 1767. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 73.
69
“De importância ecológica considerável é o fato de que as espécies de árvores que são adequadas para o
carvão também tendem a ser de crescimento lento. Por exemplo, a substituição das duas árvores Burkea africana
exigirá mais de vinte anos de crescimento”. Candice L. Goucher, “Iron is Iron 'Til it is Rust: Trade and Ecology
in the Decline of West African Iron-Smelting”. The Journal of African History, v. 22, n. 2, 1981, p. 181. Em
Angola, essa espécie de árvore é conhecida como Carapingau ou ainda Pau ferro.
229
portugueses era preciso instruí-los a não repetir este tipo de poda, que para os carvoeiros
brancos era pouco eficaz.
O mais interessante é que o olhar preconceituoso da ideologia colonial resultava
em prejuízos econômicos para os próprios agentes coloniais. Explico. O inspetor das obras da
fábrica informou que as barrinhas produzidas por fundidores e ferreiros Ambundos passavam
por um segundo processo de refinamento, na forja de ferreiros brancos, “para melhor apurar”
porque, segundo o funcionário, o ferro produzido tinha muitas escórias. Durante essa
operação, a produção diária chegava a diminuir uma arroba (15 kg)70. Lembrando que o
objetivo do artesão africano em produzir um ferro com mais escórias era garantir mais
fusibilidade, percebemos como a iniciativa colonial não tinha os conhecimentos técnicos
necessários para de fato aproveitar os saberes dos Ambundos: na forja dos ferreiros brancos
ficava muito do que garantia a qualidade do ferro local.
70
Carta de José Francisco Pacheco. Fábrica da Nova Oeiras, cinco de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 57, D.
28.
230
especializados, dos lucros do comércio de ferro e mais uma fonte de subtração de seus
dependentes e, para os ferreiros, no mínimo o fim de um ofício tradicional que lhes conferia
prestígio social e ascensão econômica.
Neste complexo e violento embate de interesses, a rápida morte de grande parte
dos peritos europeus que poderiam potencializar os conhecimentos africanos e transformar
Nova Oeiras em uma ferraria hidráulica primeiramente, depois uma fábrica tal como a das
Maurícias com alto-fornos, não permitiu que as técnicas europeias fixassem raízes em
Angola. Contudo, responsabilizar o clima hostil e as doenças ou a má administração dos
funcionários régios pela permanência do uso da tecnologia africana retiraria completamente a
agência dos ferreiros e da elite política da Ilamba do processo histórico. Ao seu modo, os
centro-africanos recusaram o experimento industrial português. Pensar de outra forma
reiteraria versões eurocêntricas dessa história, pois não perceberíamos o argumento mais
importante desenvolvido aqui: a tecnologia da Ilamba não deixou de ser utilizada na fábrica,
devido a sua excelência. Mesmo valendo-se de expressões preconceituosas para caracterizar o
trabalho africano tais como “imperfeito” ou com “defeito”, e julgar as ferramentas simples
que empregavam como exemplo de “ignorância” e “pobreza”, o governador ilustrado
reconheceu seu mérito. Em 1768, em carta para o Morgado de Mateus disse:
“muito melhores tenho eu inumeráveis negros, que não só fazem há quatro
anos subsistir este reino sem ferro da Europa, mas me tem aprontado muitos
centos de quintais que mandei a Sua Majestade”71.
71
Carta de FISC para Luis Antonio de Sousa, Morgado de Mateus, governador de São Paulo. São Paulo de
Assunção de Luanda, 30 de novembro de 1768. ANTT, Projeto reencontro Morgado Mateus mf. 12.
72
Nancy Rose Hunt, “The Affective, the Intellectual, and Gender History”. In: Journal of African History 55, 3,
2014, p. 331–345. Alguns estudos sobre o tema: V. Y. Mudimbe, The Invention of Africa. Bloomington: Indiana
UP, 1988; Ngugiwa Thiong’o, Something Torn and New: An African Renaissance. New York: Basic Civitas,
2009; Frederick Cooper, Africa in the World: Capitalism, Empire, Nation-State. Cambridge, MA: Harvard UP,
2014.
231
73
Enrique Dussel, 1492: el encubrimiento del otro. La Paz: Plural, 1994.
74
Maria Cristina Cortez Wissenbach, “Ares e azares da aventura ultramarina: matéria médica, saberes endógenos
e transmissão nos circuitos do Atlântico luso-afro-americano”. In: Leila MezanAlgranti, Ana Paula Megiani
(Org.). O império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico séculos XVI-XIX. São
Paulo: Alameda, 2009, p. 375-394. Ver também: Cristiana Bastos; Renilda Barreto (Org.). A circulação do
conhecimento: medicina, redes e impérios. Lisboa: ICS, 2011.
232
exercida por goeses e africanos escravizados e livres. Sua botica continha medicamentos de
origem europeia, mas também guardava drogas das medicinas indianas de Goa75.
A historiografia sobre as influências africanas na cultura e nos conhecimentos
americanos é mais abrangente. Judith Carney e Richard Rosomoff escreveram um livro denso
de informações sobre plantas, hábitos alimentares, técnicas de cultivo originários da África
Ocidental e trazidos por africanos e seus descendentes para a América. Uma abordagem
multidisciplinar, baseada na arqueologia, na etnografia e na história oral, em que os autores
argumentam que os escravos não forneceram aos seus senhores apenas o trabalho manual,
mas sobretudo o intelectual. Graças aos canteiros em que cultivavam as sementes que traziam
da África e suas habilidades culinárias, a comida se tornou um poderoso veículo para
preservar e criar memórias na diáspora. Além disso, os ingredientes africanos passaram a
constituir a base da alimentação americana76.
Por tudo isso, a fábrica de ferro na Ilamba e a contribuição dos Ambundos não
podem ser excluídos dos estudos mineralógicos e científicos que estiveram em expansão na
segunda metade do século XVIII, no contexto das políticas pombalinas de fomento às
manufaturas.
4.2. Da Biscaia
78
Com a coqueificação do carvão mineral (1709), no norte da Europa, a fundição do ferro passou a ocorrer nos
alto-fornos construídos de alvenaria e que usavam como combustível o carvão coque. Em 1735, Abraham Derby
foi o primeiro a operar um alto-forno empregando, exclusivamente, o carvão coque. Com a substituição do
carvão vegetal, o ônus da devastação das florestas não seria mais um obstáculo ao desenvolvimento da siderurgia
europeia. Joaquín de Almunia y de León, Antigua indústria del hierro en Vizcaya. Bilbao: Caja de Ahorros
Vizcaina, 1975, p. 3-5.
79
Chris Evans, “Guinea Rods’ and ‘Voyage Iron’: metals in the Atlantic slave trade, their European origins and
African impacts”. Economic History Society annual conference, 2015, p. 1-15.
80
Embora na Espanha tenham sido instalados altos fornos a carvão vegetal antes de altos fornos a carvão coque,
foi somente no século XIX que esta tecnologia passou a ser empregada nas fábricas espanholas. Até então, as
ferrarias hidráulicas continuaram a ter proeminência na região, fabricando ferro pelo método de redução direta.
Os primeiros altos fornos à carvão vegetal (redução indireta) da Espanha se localizaram na Cantábria, em 1628-
29. O investimento em altos fornos era proveniente da própria Coroa espanhola, que tinha por finalidade
incrementar a indústria bélica. Pedro Arroyo Valiente, Manuel Cordera Millan. Ferrerias em Cantabria.
Manufacturas de ayer, patrimônio de hoy. Santander: Associación de Amigos de la Ferrerpia de Cades, 1993, p.
12-19. Joaquín de Almunia y de León, Antigua indústria del hierro en Vizcaya, p. 15-35.
81
O governador de Angola demonstrava seu conhecimento das técnicas para produzir ferro na região da Biscaia.
Francisco Coutinho discorre sobre o quanto as técnicas e fábricas eram difundidas nessa localidade: “porque na
Biscaia basta que um morador faça uma fábrica destas para que o seu vizinho cobice outra e que assim se
estendem por toda a província”. Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. São Paulo de
Assunção de Luanda, 25 de novembro de 1768. IEB/ Al – 082- 109.
234
para o governador “o mais importante negócio” consistia em “ensinar desde logo os negros
fundidores a trabalharem com foles grandes em maiores quantidades, para este fim é preciso
que os mestres desde logo os ensinem”82. Os mestres a que se referiu eram os biscainhos que
nesta época foram contratados para trabalhar em Nova Oeiras. Fazia parte dos projetos do
administrador ilustrado tornar Nova Oeiras uma grande oficina, onde os trabalhadores locais
fossem capacitados a operar o maquinário hidráulico. Essa seria uma forma de reduzir as
despesas com a mão de obra especializada estrangeira.
A fábrica de ferro de Nova Oeiras foi, então, planejada segundo os modelos das
ferrarias biscainhas. Como apresentamos no segundo capítulo, o terreno foi escolhido pela
proximidade dos rios Luinha (que foi represado) e Lukala, de bosques e de minério de ferro,
tudo o necessário para a instalação da ferraria.
A migração de trabalhadores especializados da Biscaia para orientar a condução
de fundições e ensinar suas técnicas não era uma novidade para os portugueses. Fundidores do
norte da Espanha já vinham trabalhando nas ferrarias e minas do Pireneu, tanto na vertente
espanhola quanto na francesa e em Portugal, desde a Baixa Idade Média83.
82
Carta de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho para o capitão José Francisco Pacheco. São Paulo de
Assunção de Luanda, três de dezembro de 1768. IEB/USP – Col. ML, 83
83
Rafael Uriarte Ayo. “Minería y empresa siderúrgica em la economia vizcaína pré-industrial (s. XVI-XVIII)”.
XI Congreso Internacional de la AEHE, Madrid, 2014, nota 3, p. 2.
84
Idem, p. 8.
235
questão foi uma forma específica de poda (árbol trasmocho) que, como vimos, permitia a
extração regular de lenha, sem a necessidade derrubar as árvores. O tronco central da árvore
jovem era cortado a uma altura de cerca de dois metros do solo, favorecendo o
desenvolvimento de ramos laterais que eram utilizados na fabricação do carvão. Esta também
era uma atividade sazonal, o corte era feito no inverno para que na primavera e durante o
verão se fabricasse o carvão. Nesse período, os dias eram mais longos e havia menos risco de
temporais. Rafael Ayo aponta que embora não se possa quantificar, a carvoaria
provavelmente era a atividade florestal em maior expansão na Biscaia e na qual se empregava
o maior número de trabalhadores, em sua maioria camponeses85.
A partir da segunda metade do século XVII e ao longo do século XVIII,
desapareceu a diferenciação entre uma ferraria maior, onde se obtinha o ferro bruto ou
transformado em barras, e outra menor, em que o ferro se tornava mais elaborado ou era
transformado em produtos. A nova ferraria que integrava essas duas etapas passou a ser
chamada ferrería tiradera, ou seja, a partir do mineral se obtinha ferros comerciáveis (em
espanhol, se tiraba el hierro, por isso o nome tiradera). A ferraria biscainha ocupava de
quatro a cinco operários, um mestre forjador (um ferreiro especializado em “puxar” o ferro e
dar o primeiro acabamento forjado à peça)86, dois fundidores e um aprendiz. Um
administrador que morava próximo à ferraria era o responsável pelo funcionamento da
instalação, seu financiamento, contratação de oficiais, aquisição de minério e combustível,
resolução de conflitos entre outros afazeres.
Neste espaço se trabalhava dia e noite, durante seis dias da semana. Os artesãos
comiam e dormiam na ferraria. A remuneração variava de acordo com a quantidade de ferro
produzido, dando-se uma gratificação por cada quintal; o mestre tirador recebia mais que
fundidores e esses mais que os aprendizes, que eram pagos com um par de sapatos ou algum
85
Idem, p. 12.
86
Nas ferrarias de Taramundi e Los Oscos (Astúrias), por exemplo, a organização técnica do trabalho se dividia
em cinco oficiais: um aroza, um tirador, dois fundidores e um tazador. O chefe da equipe era o aroza, um termo
que em basco quer dizer encarregado ou capataz da ferraria, “um ferreiro com amplos conhecimentos na matéria
que havia adquirido diretamente de outro aroza e que ia ampliando à base da experiência conhecimentos que
guardava zelosamente até o momento de transmiti-los a seu sucessor”. Era o oficial com maior remuneração na
ferraria. Logo após ele, na estrutura hierárquica, se encontravam os fundidores, que controlavam a redução do
minério no forno, os carregamentos de minério e carvão, distribuindo corretamente para um maior rendimento,
além de controlar o trabalho dos foles. “No mesmo nível laboral e econômico se encontrava o tirador, um
ferreiro especializado que se encarregava de puxar o ferro” e dar o primeiro acabamento forjado à peça. Esse
seria o trabalho mais penoso, pois trabalhava junto ao calor do forno, batendo as massas de ferro que a cada
quatro horas saíam do forno. O mais baixo oficial na ferrária era o tazador, que triturava o minério até ficar do
tamanho de uma avelã antes de ser colocado no forno, além de servir de criado aos outros oficiais auxiliando nas
mais variadas tarefas, por isso era na maioria das vezes um jovem aprendiz. Pablo Quintana Lopes, La labranza
y transformación artesanal del hierro en Taramundi y Los Oscos. Siglos XVI-XVIII. Aportación a su
conocimento. Taramundi: Associación “Os Castros”, 2005, Tomo I, p. 142 e 143.
236
87
Idem, p. 23. “De acordo com dados estimados para distintas zonas do território (1827), o produto semanal
oscilava sobre no mínimo de 2.562 kg nas ferrarias de Marquina e no máximo de 3.345 kg em Valmaseda e
Trucíos”.
88
P. B. Villarreal de Berriz, Máquinas hidráulicos de molinos y herrerías y governo de los árboles y montes de
Vizcaya. San Sebastian: Sociedade Guipuzcoana de Ediciones y Publicaciones de la Real Sociedade
Vascongadas de Amigos del País y Caja de Ahorros Municipal de San Sebastian, 1973, s/p.
237
1. Armazém de ferro.
2. Dormitório dos oficiais
3. Banzado (reservatório de água abaixo das rodas).
4. Barquinera (o mecanismo dos grandes foles movidos
pela roda d’água).
5. Malho movido pela roda d’água.
6. Forno.
7. Lenheira e tazadera (onde se quebrava o minério em
pedaços pequenos para introduzi-lo no forno).
8. Carvoaria.
9. Transbordo do banzado.
10. Descarte/esgoto.
11. Escada de aceso ao banzado.
Muro Bergamazo
Roda hidráulica
Roda hidráulica
Forno
Malho
Malho
Forno
Foles
238
Fontes: Discposición interior de uma ferraría hidráulica. Pedro Arroyo Valiente, Manuel CorderaMillan.
Ferrerias em Cantabria. Manufacturas de ayer, patrimônio de hoy, p. 13.
Parte de la “Casa de Ferrería” que aloja la maquinaria. Carlos Fernández García, Ferrerías y mazos entre
elríoXunco y elNavia. EscuelaUniversitaria de Arquitectos técnicos de LA CORUÑA, s/d. Apud Pablo Quintana
Lopes, La labranza y transformación artesanal delhierroenTaramundi y Los Oscos, p. 148.
Figuras 20 e 21: As rodas d’água que moviam o malho (à esquerda) e os foles (à direita).
Malho
Forno Foles
Fonte: C. Ceballos Cuerno, Las grandes familias de ferrones de Cantabriaen De peñas al mar. Santander:
Sociedad e institucionesen la Cantabria Moderna, 1999.
89
Em janeiro de 1769, o intendente recebeu a ordem para manter conservados “todos os instrumentos da Fábrica
de forma que se não encham de ferrugem e se não percam os couros que foram para os foles grandes”. Carta de
FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente da fábrica de ferro. São Paulo de Assunção de
Luanda, 29 de janeiro de 1769. IEB/ USP, AL-083-214.
90
Uma came (ou camo) é um elemento mecânico usado para acionar outro elemento, chamado seguidor, por
meio de contato direto.
91
Em Nova Oeiras, o malho foi construído assim: “os cepos em que anda o cabo do malho tem três palmos
[0,66 m] de grosso em quadro, e debaixo da terra os mesmos palmos que o outro, com igual segurança de
socalco [plataforma] e paredes; que o cabo do malho tem 24 palmos de comprido (5,28m), e quatro (0,88m) em
quadro, de grossura na parte do eixo, acabando em seis (1,32m) de circunferência”. Termo de juramento feito
pelo provedor da Fazenda Real Manuel Cunha e Sousa, José Francisco Pacheco, Antonio de Bessa Teixeira,
Antonio Ribeiro Cardoso. São Paulo de Assunção de Luanda, 17 de novembro de 1770. ANTT, Condes de
Linhares, mç. 51, doc. 1, fl. 198. Considerando 1 palmo= 0,22m.
239
cabeças dos malhos pesavam de 50 a 350 kg, golpeando a massa de ferro com uma frequência
de 120 golpes por minuto – quando a elevação era de 48 cm – até 300 golpes por minuto, com
elevação de 15 cm92.
O modelo descrito até aqui é o que encontramos nas plantas da fábrica de Nova
Oeiras elaboradas pelos engenheiros militares Manuel Antonio Tavares, João Manoel de
Lopes e Miguel Blasco, conforme mostramos no segundo capítulo. De acordo com o plano
ideal, os responsáveis pelas plantas e construção da fábrica seriam os quatro mestres
biscainhos contratados para este fim. No contrato que firmaram com o secretário de Estado
dos Negócios da Marinha e Domínios do Ultramar português, os biscainhos se
comprometeram a dar as “instruções necessárias para o edifício do laboratório, fábrica, de
fábricas de ferraria”93.
O alto custo com o salário e sustento dos mestres se justificava pelo fato de que
uma vez construída a fábrica e formados novos mestres, os biscainhos já não seriam
necessários. A ideia de Sousa Coutinho era a de que os centro-africanos instruídos nas novas
técnicas seriam uma mão de obra qualificada e barata, compensando os custos com os
primeiros investimentos. Na verdade, o governador tinha por objetivo formar tanto os brancos
de Nova Oeiras quanto os “negros do país” em todos os ofícios mecânicos – pedreiros,
carpinteiros, ferreiros, fundidores – porque não havia muitos desses artesãos em Angola e os
poucos existentes residiam em Luanda. Sobre as técnicas de ferraria, os mestres estrangeiros
deveriam instruir os “negros fundidores”, uma vez que eles já tinham conhecimento
acumulado sobre o assunto. Os jingangula e pulungus seriam mais aptos a aprender o novo
método para que, “com diferentes forjas e maiores foles”, se pudesse aumentar a produção de
ferro94. A ideia de tornar Nova Oeiras uma oficina também está impressa nas condições de
contratação dos espanhóis, já que, nas negociações, eles se obrigavam a ensinar “com toda
aplicação e sem ocultar nada de nossa arte àqueles aprendizes que se nos apresentarem”.
Pediam em contrapartida que tivessem à sua disposição carvão, lenha, minério e todos os
“materiais oportunos”, malho maior e demais ferramentas95. O plano era “fazer sempre
92
Pedro Arroyo Valiente, Manuel Cordera Millan. Ferrerias em Cantabria. Manufacturas de ayer, patrimônio
de hoy, p. 34.
93
Condições do contrato firmado entre Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado dos
Negócios da Marinha e Domínios do Ultramar, e Joseph Manuel de Echevarria, Francisco Xavier de Zuluaga,
Francisco de Echenique e Joseph de Retolaza. Lisboa, 30 de abril de 1768. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 15.
94
Carta de FISC para Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente da fábrica de ferro. São Paulo de
Assunção de Luanda, 31 de outubro de 1768. AHU_CU_001, Cx. 52, Doc. 15.
95
Idem.
240
sucessivamente muitos homens capazes, não só para substituir comodamente os atuais, mas
para que se possam multiplicar com o tempo muitas fábricas”96.
Os mestres da Biscaia prepararam todo o material necessário para as instalações
que construiriam em Nova Oeiras, e insistiram em levar utensílios, inclusive algumas barras
de ferro importadas da Suécia e da própria Biscaia. A relação das ferramentas transportadas
na charrua Nossa Senhora das Mercês de José da Silveira, em 1768,97 é interessante:
“1 bigorna
1 fole
1 malho
1 martelo
1 forno
1 argola de ferro
1 manipulo de ferro
1 veio para o eixo
2 canos para os foles
2 grampos para os foles
4 braçadeiras para os foles
1 prancheta para os foles
8 pranchas de ferro abauladas (sic)
3 pranchas para o sangradouro das forjas
2 pranchas grossas com seus entalhos
3 pranchas compridas e direitas
1 marreta
2 chapas de cobre para o algaraviz da forja que pesam 3 arrobas e seis arráteis
10 caixotes com as ferragens
1 caixote em que vai o aço
foles novos”
96
Portaria sobre os jornais pagos aos trabalhadores de Nova Oeiras. São Paulo de Assunção de Luanda, 29 de
outubro de 1769. AHU_CU_001, Cx. 52, Doc. 15.
97
Relação das ferramentas conduzidas por José da Silveira, mestre da charrua Nossa Senhora das Mercês, para a
fábrica de ferro no Reino de Angola. Lisboa, 29 de abril de 1768. AHU_CU_001, Cx. 52, Doc. 15.
241
98
Carta de Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente da fábrica de ferro, para FISC. Nova Oeiras, 15 de
novembro de 1768. AHU_CU_001, Cx. 52, Doc. 38. Carta de Feliciano Pinto da Costa para FISC. Nova Oeiras,
20 de novembro de 1768. AHU_CU_001, Cx. 52, Doc. 15. Carta de FISC para Francisco Xavier Mendonça
Furtado, secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos. São Paulo de Assunção de Luanda, três de
dezembro de 1768. AHU_CU_001, Cx. 52, Doc. 15. Certidão do escrivão da Real Fábrica do Ferro de Nova
Oeiras Hipólito Fernandes Pinto. Real Fábrica do Ferro da Nova Oeiras, 21 do mês de novembro de 1768.
IEB/USP, AL-083-206.
99
Carta de Antonio Anselmo Duarte de Siqueira, intendente da fábrica de ferro, para FISC. Nova Oeiras, 21 de
novembro de 1768. AHU_CU_001, Cx. 52, Doc. 38.
100
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado dos Negócios da Marinha e
Domínios Ultramarinos. São Paulo de Assunção de Luanda, seis de março de 1769. AHU_CU_001, Cx. 53, Doc.
18.
242
Luanda, foram submetidos à primeira prova: fundir o minério de ferro local. Tiveram de
construir um forno que se acomodasse aos foles de mão usados pelos centro-africanos, “cujo
sopre sempre é incerto”. Apesar das dificuldades conseguiram reduzir o ferro que se “liquidou
perfeitamente101”. Da segunda vez que repetiram a experiência, o governador chegou à
conclusão de que os mestres de Figueiró não conseguiam fundir o ferro com os foles de mão
já que nas ferrarias de Tomar os foles eram imensos e movidos por rodas d’água. Quando os
portugueses tentaram imitar os africanos, falharam completamente pois não sabiam usar as
ferramentas locais. Sousa Coutinho também temia enviá-los para Nova Oeiras, onde poderiam
construir uma ferraria hidráulica, porque receava que falecessem como os biscainhos102.
Ainda que admitisse que cada mina exigia um conhecimento específico, Sousa
Coutinho acreditava que um mestre mais experiente encararia o desafio e, por meio de
experimentos, conseguiria seu objetivo. O propósito do governador era que os fundidores de
Figueiró ensinassem os locais a fundir em maiores quantidades, ele queria uma técnica que os
habilitasse a isso com o uso dos foles de mão – “conformar o forno aos pequenos foles”. De
acordo com os preceitos técnicos que descrevemos aqui, aumentar a produção sem aumentar
as instalações, especialmente o tamanho dos foles, não era tarefa fácil. Há de se considerar
que os refinadores e latoeiros portugueses não sabiam muito sobre as instalações de uma
fábrica, conhecimento que seu diretor, José Le Vache, com certeza dominava, porém ele havia
ficado em Portugal. Além disso, os ferreiros de Figueiró liquidavam o ferro, isso significa que
eles usavam uma tecnologia diferente da ferraria hidráulica biscainha e dos baixos fornos
centro-africanos. Nas ferrarias da Foz de Alge, um alto-forno era usado para obter o ferro em
estado líquido, enquanto outro o refinava.
A história da ferraria da Foz de Alge, situada sobre a ribeira de Alge, se divide em
duas etapas: a primeira remete ao início do século XVII e se estende até 1761, quando foi
fechada por Pombal, e a segunda no reinado de D. Maria I, quando foi reaberta sob a direção
de José Bonifácio de Andrada e Silva e funcionou até 1834. O modelo para a sua construção
no Seiscentos foram as ferrarias biscainhas; tanto é assim que em uma das plantas da ferraria
vem assinalado: “desenho que mostra a ordem das ferrarias e engenhos na forma que se usa
no Reino da Biscaia pelo qual se vê o que se há de fazer e a ordem que se deve ter nas ditas
ferrarias que sua majestade pretende fazer neste reino junto a Vila de Tomar” (essa é o título
da figura abaixo). A diferença entre as plantas de ferraria hidráulica já analisadas e o que se
101
Idem.
102
Carta de FISC para Martinho de Melo e Castro, secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios
Ultramarinos. São Paulo de Assunção de Luanda, 20 de setembro de 1771. BNP, C 8553, F6362.
243
construiu em Figueiró é que ali se instalou um alto-forno que usava como combustível o
carvão vegetal e, justamente por isso, o ferro precisava ser refundido em um forno de refino.
Isso explica por que, na figura abaixo, vemos dois fornos sendo insuflados pelos grandes foles
movidos pela força hidráulica.
Desenho que mostra a ordem das ferrarias e engenhos na forma que se usa no Reino da Biscaia: pelo qual se vê o
que se há de fazer e a ordem que se deve ter nas ditas ferrarias que sua majestade pretende fazer neste reino junto
a Vila de Tomar e pelo alfabeto se declara cada coisa per si bem distintamente. Legenda: “A – Casa das ferrarias
onde hão de [lavrar] os engenhos; B – Tercena para recolhimento do carvão; C – Rodas e eixos dos engenhos; D
– Tanque d’água; E – Agulheiros por onde há de ir a água das rodas”. Assinada pelo arquiteto Diogo Marques
Lucas.
Fonte: “Desenho que mostra a ordem das ferrarias ....”. [Reino] [s.n.], [ca.1624].- 1 planta : papel, color., ms. ;
42,4 x 56,3 cm. AHU_CARTm_076_D.1.Apud: Luiza da Fonseca, “As ferrarias de Tomar”. In: Quarto
congresso, 1940, p. 351.
a direção produtiva das ferrarias: Rodrigo Manhoz, Baltazar Manhoz (ou Manhorca),
Cristóvão de Manhorca103.
Ainda assim, a influência biscainha não foi a única em Foz de Alge, já que a
ferraria foi dirigida pelos franceses Francisco e Pedro Dufour, pai e filho, em fins do século
XVII. Desde então, muitos artesãos dessa procedência foram contratados, Joseph Le Vache é
apenas mais um exemplo em uma longa lista: Estevão Levoim, mestre fundidor, Martim
Vernete, mestre refinador, Clodo Miguel, mestre forjador, Estevão Matheus, todos franceses e
contratados em 1670104. Portanto, as técnicas nessa fábrica eram oriundas de variadas
matrizes de conhecimento, além de que evidentemente os artesãos ali aprimoraram e
desenvolveram seus próprios métodos. Em Foz de Alge, o interesse em importar técnicos
franceses pode ser explicado pelo uso do alto-forno que era muito mais comum na Suécia e na
Inglaterra que na Biscaia, até fins do século XVIII.
O alto-forno operando com o carvão vegetal foi uma consequência do uso de foles
maiores dos engenhos hidráulicos. O aumento da eficácia dos foles permitiu ampliar o
tamanho dos fornos que fundiam completamente o ferro, liquefazendo-o, e também
incrementavam a produção. Entretanto, uma grande quantidade de impurezas se somava ao
ferro líquido tornando-o quebradiço. Para utilizar esse ferro era necessário submetê-lo a uma
segunda operação de fundição, de modo a refiná-lo – o que explica o forno de refino. Do
refinamento, obtém-se o ferro líquido já adequado para a fabricação de peças com moldes
(armas, balas de canhão, sinos de igreja, grades); utensílios que nem sempre era possível
confeccionar usando a massa de ferro forjado que resultava dos fornos baixos. Mesmo assim,
os alto-fornos não substituíram as ferrarias porque o ferro obtido nelas era competitivo devido
a algumas de suas propriedades, como uma maior maleabilidade. No norte da Espanha, essa
tecnologia chegou por volta de 1628-29, porém as ferrarias hidráulicas que usavam fornos
baixos eram as mais utilizadas tanto por uma resistência das agremiações de ferreiros
espanhóis à introdução do novo sistema quanto porque os engenhos demandavam mais carvão
e, portanto, mais bosques e a Península Ibérica apresentava poucas reservas vegetais105.
Além disso, ao pensar nos artesãos franceses em Foz de Alge, vale lembrar que a
importância da perícia de um artesão não se limita ao fato de possuir os conhecimentos
103
José Luís Gomes e João Luís Cardoso, “As Ferrarias Del Rey, Fábrica Da Pólvora De Barcarena. Resultados
Da Intervenção Arqueológica Realizada Em 2009”. Estudos Arqueológicos De Oeiras, 18, 2010/2011, p. 147-
173.
104
Miguel Ângelo Portela, “A superintendência dos tenentes de artilharia Francisco Dufour e Pedro Dufour nas
Reais Ferrarias da Foz de Alge e Machuca”. In: Anais do XXI Colóquio de História Militar, Lisboa, 2012, p.
517.
105
Pedro Arroyo Valiente, Manuel Cordera Millan. Ferrerias em Cantabria. Manufacturas de ayer, patrimônio
de hoy, p. 17.
245
necessários para operar um alto-forno. O trabalho dos metais envolvia uma grande variedade
de habilidades, não sendo fortuita a divisão entre ferreiro, fundidor, refinador, cuteleiro,
latoeiro. Com o passar do tempo, a diversificação dos ofícios acompanhou o avanço
tecnológico, dando origem a novas divisões profissionais, o que demandava trabalhadores
especializados na modelagem com ferro líquido, na aplicação de moldes de barro, por
exemplo.
Sem dúvida, Pedro Simões, Manuel Simões, Manuel Nunes, Julião Miguel,
Francisco Lourenço, Manuel dos Santos, Manuel José Ferraz eram profissionais
imprescindíveis em Figueiró dos Vinhos e se empenharam em aprender como fundir o
minério de ferro da região da Ilamba. Não foram bem-sucedidos primeiramente porque cada
minério, por sua diversa constituição química, demanda um saber específico, adquirido com o
tempo por meio de experimentos. E é provável que trabalhassem há muitos anos na ferraria
hidráulica de Foz de Alge, que não requeria qualquer compreensão dos métodos de fundição
em fornos baixos106.
Diante das tentativas frustradas de enraizar na Ilamba uma técnica que permitisse
a maior produção de ferro, Sousa Coutinho reuniu os engenheiros formados por ele na Aula
de Geometria de Luanda, todos os materiais bibliográficos que tinha compilado e estudou a
melhor maneira de construir um forno de fundição. Em outubro de 1771, um forno de
experiência foi edificado próximo a Fortaleza de Penedo, em Luanda, e nele Sousa Coutinho
conseguiu fundir completamente o ferro: “correu o ferro”, em suas palavras107. Um dos livros
consultados foi o tomo sete da “Enciclopédia”, que continha os verbetes “forja – artes
mecânicas”. A cópia foi enviada junto com as ferramentas e os trabalhadores em 1771 e, entre
os conteúdos, há orientações para os carvoeiros, fundidores, malhadores; instruções sobre
106
Catálogo cronológico de todas as ordens régias que existem na Secretaria do Estado do Reino de Angola. São
Paulo de Assunção de Luanda, 18 de junho de 1777. AN (RJ), Códice 543.
107
Em carta ao morgado de Mateus, o governador disse: “Porque chegando aqui oito fundidores muito rústicos e
muito ignorantes e querendo eu não só experimentá-los nesta cidade, mas fazer que a sua habilidade se
comunicasse aos naturais e naturalizados e sendo para isso necessário para fazer um forno pequeno que fosse
conforme aos foles de mão, não se acertou na primeira nem na segunda vez este defeito visível e claro pela sua
dificuldade não entrou naquelas cabeças, atribuindo-o a má qualidade do ferro, que não há melhor. Considere V.
Exa. em que aflição eu me veria estando feita a fábrica com excessivas despesas e trabalho desprezei os homens
e voltei-me para os livros, imediatamente quis a Providência que se acertasse a Fundição com um maravilhoso
efeito mostrando o ferro a sua bondade, e ficando confundindo os supostos Mestres”. Carta de FISC a Luis
Antonio de Sousa, morgado de Mateus, governador de São Paulo. São Paulo de Assunção de Luanda, nove de
outubro de 1771. BNP, C 8744, F 6443, fl. 156v.
246
como “ordenar e buscar as minas”; sobre as “reservas d’água e gasto dela”; sobre as lenhas,
foles, fornos108.
Àquela altura, o único empecilho que restava era encontrar uma pedra de cadinho
que suportasse as altas temperaturas do forno. Seguindo as orientações dos fundidores de
Figueiró, Coutinho mandou buscá-las em Figueiró e em Belas, Portugal. Também procurou
por elas em Angola e chegou a fazer experimentos com algumas pedras “encarnadas”
encontradas em Cambambe, sem sucesso. Não há notícia de que o alto-forno construído em
Nova Oeiras tenha fundido um grama sequer de ferro109. Pesquisas arqueológicas poderão
preencher as lacunas das fontes manuscritas.
Em 1770, quando os engenheiros e o mestre de obra deram seu parecer sobre
como deixaram a fábrica, advertiram que, embora tivessem preparado todos os materiais
necessários, os foles não foram construídos porque não havia mestres que soubessem como
confeccioná-los110.
Em 1773, quando já estava longe de Luanda, mas ainda defendia a ideia da fábrica
de ferro, Sousa Coutinho considerava que tanto os mestres portugueses quanto Pirson, o
francês, deveriam ser despedidos por não servirem para o serviço. Insistia ser necessário
encontrar um mestre hábil que fosse capaz de inventar um mecanismo para aumentar a
quantidade de ferro produzida segundo o método centro-africano. Feito isso, de acordo com
os planos do governador, os ferreiros e fundidores da Ilamba aprenderiam a nova técnica e
deveriam trabalhar em suas casas e ir vender o ferro na Fábrica Real. Assim, calculava ele,
surgiriam algo em torno de 400 pequenas fábricas. Nova Oeiras, a Fábrica Real, deveria
trabalhar só pelo método francês que liquidava o ferro. Dessa forma, os portugueses teriam
108
Carta de Martinho de Melo e Castro, secretário de Estado dos Negócios da Marinha e dos Domínios
Ultramarinos, para FISC. Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, 25 de março de 1771. AHU, Códice 472 - fl. 160-
283.
109
Carta de FISC para Martinho de Melo e Castro, secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios
Ultramarinos. São Paulo de Assunção de Luanda, 29 de novembro de 1771. AHU_CU_001, Cx. 55, D. 84. Carta
de FISC para José Tomás Vieira, capitão-mor de Cambambe. São Paulo de Assunção de Luanda, 25 de
novembro de 1771. BNP, C 8744, F6443. Em 1772, Pedro Schiappa Pietra, mestre genovês que trabalhava da
Fábrica de Serralheria de Lisboa enviou as pedras para Angola. Carta de Pedro Schiappa Pietra, Mestre da
Fábrica de Serralheria de Lisboa, para FISC. Lisboa, 24 de abril de 1772. AHU_CU_001, Cx. 56, D. 32.
110
“Porque ainda não estão feitos por se achar melhor e mais conveniente se reservassem para quando vierem
mestres, se fazerem à medida, e satisfação deles; porém que na mesma casa em que hão de servir fica pronto
tudo o que para eles é necessário, como são: oito pranchões, a saber, quatro de cinco palmos de largo, e vinte e
seis de comprido, e quase um de grosso, e quatro da mesma grossura, e comprimento, e de três palmos e meio de
largo, couros prontos, pregos, taxas, barbantes. E logo que chegarem os ditos mestres, se farão a seu contento no
tempo de oito dias. Que também não estava feito o ferro imediato à boca dos foles, pela mesma razão de se achar
mais conveniente se reservasse para ser feito pela disposição e gênio dos mestres, que nele hão de trabalhar;
porém que esta obra se pode fazer no mesmo tempo dos foles, e acabar muito antes deles”. Termo de juramento
feito pelo provedor da Fazenda Real Manuel Cunha e Sousa, José Francisco Pacheco, Antonio de Bessa Teixeira,
Antonio Ribeiro Cardoso. São Paulo de Assunção de Luanda, 17 de novembro de 1770. ANTT, Condes de
Linhares, mç. 51, doc. 1, fl. 198.
247
ferro das duas qualidades: o forjado ou batido, das pequenas fábricas, e o ferro fundido,
obtido em estado líquido, da Fábrica Real111.
O que une os artífices que compõem este capítulo são seus conhecimentos
específicos tanto no que diz respeito a técnicas construtivas, como no caso da cantaria, quanto
naquilo que interessava mais de perto para uma fábrica de ferro, os experimentos
metalúrgicos. Os trabalhadores da povoação e fábrica de ferro de Nova Oeiras conheciam os
segredos do trabalho com o ferro; todos, brasílicos, africanos, portugueses, espanhóis,
franceses, conheciam alguma etapa do processo de fundição e forja. Detinham saberes
adquiridos em um processo de ensino-aprendizagem que remete à prática tradicional de um
ofício, a anos de experiência e contato com o conhecimento de outros mestres. Representantes
de diversas matrizes culturais, os artesãos eram preciosos porque conheciam o segredo de
transformar minério em ferro, que era desconhecido pelos mais ilustrados nobres em Angola,
entre eles o governador Sousa Coutinho. Mesmo quando o governador, como alguém
pertencente às artes liberais, recorreu aos livros e conseguiu liquefazer o ferro, sua façanha
durou pouco, pois faltou o cadinho feito de pedra apropriada, lavrada por um canteiro. A
pedra foi mandada de Portugal e ainda assim a fábrica de ferro nunca chegou a funcionar
porque faltavam mestres hábeis que soubessem colocar os engenhos e o forno em
funcionamento.
O argumento que defendemos é simples: mais que trabalhadores manuais, esses
artesãos foram os químicos e mineralogistas de Nova Oeiras. Até meados do século XVIII, os
mestres de ofício em suas oficinas e em sua prática diária controlavam os saberes necessários
à metalurgia. É preciso destacar sua contribuição intelectual, ainda que para o século XVIII
essa seja uma ideia anacrônica, pois as artes mecânicas estavam distantes das liberais e o
conhecimento prático não era considerado imprescindível para os acadêmicos. Tanto era
assim que somente no século das Luzes o laboratório se transformou em um local de prática
acadêmica e surgiram disciplinas de química associadas ao ensino da metalurgia, da
tecnologia, da cameralística e às escolas de minas. Antes disso, o estudo da química esteve
muito mais relacionado à medicina, à farmácia e à botânica do que à mineralogia112.
111
Carta de FISC sem destinatário. São Paulo de Assunção de Luanda, 16 de setembro de 1773. BNP, C 8553,
F6362.
112
Juergen Heinrich Maar, “Aspectos históricos do ensino superior de química”. In: Scientiæ Studia, v. 2, n. 1,
2004, p. 33-84. “A cameralística era uma disciplina introduzida nas universidades alemãs em 1727 (Halle e
Frankfurt/Oder) e criada para aqueles que se destinavam ao serviço público, ensinando desde aspectos de
administração e economia até artes e ofícios e outros assuntos de interesse do futuro administrador”. Juergen
Heinrich Maar, “Glauber, Thurneisser e outros. Tecnologia química e química fina, conceitos não tão novos
assim”. Química Nova, 23, n.5, 2000, p. 710.
248
113
Elena Faus, La labranza del hierro em el Pais Vasco. Bilbao: Servicio Editorial Universidad del Pais Vasco,
2000, p. 51.
114
Carta de José Álvares Maciel e Miguel Antonio de Melo, governador de Angola. São Paulo de Assunção de
Luanda, 31 de março de 1800. In: Arquivos de Angola, v. IV, nº 52 a 54, 1939, p. 300-306.
115
Carta de Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral da fábrica de ferro, para FISC. São Paulo de Assunção
de Luanda, 27 de dezembro de 1768. Arquivos de Angola, 2ª serie, v. X, n. 39-42, 1953. Os ferreiros e
fundidores das ferrarias biscainhas trajavam uma longa veste talar de tecido grosso chamadas “obreras” e para
proteger a cabeça do calor, um chapéu de abas largas. Joaquín de Almunia y de León, Antigua indústria del
hierro en Vizcaya, p. 10.
249
116
Juliana Ribeiro da Silva, Homens de ferro. Os ferreiros na África-central no século XIX, p. 155. “Espólio de
Silva Porto”, 10 de julho de 1884. SGL, Cx. 1, Cad. 4, p. 6.
117
Carta de José Álvares Maciel para Miguel Antonio de Melo, governador de Angola. São Paulo de Assunção
de Luanda, primeiro de novembro de 1799. AHU_CU_001, Cx. 93A, D. 1.
118
Pode ser um erro do governador e na verdade se tratar do soba Kabuku Kambilu.
119
Carta de Luiz da Motta Feo Torres, governador de Angola, para Joaquim Germano de Andrade, capitão-mor
de Ambaca. São Paulo de Assunção de Luanda, três de dezembro de 1818. AHA, Códice 93, A - 20 – 3.
120
Juliana Ribeiro da Silva, Homens de ferro, p. 181.
250
um ditado comum era: “Quando chove há muito mantimento, mas não há quem o coma”121.
Vítimas de varíola, febres, malária, doenças intestinais, os europeus tinham dificuldade de se
instalar em Angola, principalmente nos sertões.
Para os Ambundos, a apropriação do conhecimento também foi sinônimo de
perseguição e escravização, além das pancadas que sofriam na fábrica. Na “Resposta que um
sujeito do Brasil deu ao outro de Angola, sobre a Fábrica do Ferro”, encontramos uma citação
que mostra como o número dos fundidores e ferreiros diminuiu depois da implantação das
fábricas de ferro: “os muitos negros ferreiros, já não são tantos que o seu governador [Sousa
Coutinho] consumiu grande parte deles entre mortos e fugidos”122. No entanto, essa mão de
obra vinha sendo explorada antes do governo de Sousa Coutinho. Muitos dos trabalhadores
especializados que moravam na Ambaca eram na verdade naturais da Ilamba e para ali teriam
migrado devido a fomes em sua terra natal123.
A procura por esses trabalhadores especializados no decorrer da ocupação
portuguesa deve tê-los afugentado para o interior. Isso porque em 1762, ferreiros ou
fundidores da Ilamba foram capturados e remetidos para Lisboa para que sua tecnologia de
mineração do ferro fosse estudada na metrópole124. Em julho do mesmo ano, o governador
Vasconcelos disse que não enviaria “mais negros práticos (...) porque como viram embarcar
os primeiros, todos anda[va]m alvoraçados”125. Os trabalhadores seguiam para Lisboa junto
com amostras do ferro por ele produzidos, como se eles próprios fossem amostras de um
conhecimento a ser explorado126.
Como bem apontou Mariana Candido, as fomes, secas e demais desastres naturais
que aparecem nas fontes portuguesas precisam ser analisados como consequência de ações
121
José Pinto de Azeredo, Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola [1799]. Antonio Braz de Oliveira e
Manuel Silvério Marques (ed.). Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 49.
122
Resposta que um sujeito do Brasil deu ao outro de Angola, sobre a Fábrica do Ferro”, s.l, s.d. BNP,
Reservados, MSS Caixa 246, n. 22.
123
“Da mesma maneira me consta que por toda essa jurisdição se acham espalhados muitos ferreiros, e
fundidores naturais da mesma Ilamba, que por causa de fomes saíram das suas terras e foram para essas”. Carta
de FISC para Francisco Matoso de Andrade, capitão-mor de Ambaca. São Paulo de Assunção de Luanda, quatro
de janeiro de 1767. BNP, C – 8742, F – 6364.
124
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 9 de maio de 1762. BNP, C
8553, F6362.
125
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 10 de julho de 1762.
AHU_CU_001, Cx. 45, D. 68.
126
Ângela Barreto sintetiza bem esse interesse de inventariar técnicas e minerais: “a vontade de ter um império
sobre o mundo requeria conhecer esse mundo sobre o qual se queria exercer o imperium”. Ângela Barreto
Xavier, “O orientalismo católico. Rotinas do saber na Goa da época moderna”. In: Conferência no Simpósio
Internacional Novos Mundos – Neue Welten. Portugal e a época dos Descobrimentos. Berlim: Deutsches
Historisches Museum, 2006, p. 4.
251
humanas e não como simples ciclos ecológicos127. Neste caso, as fomes que fizeram os
ferreiros fugirem da Ilamba parecem estar relacionadas ao aprisionamento destes
trabalhadores para serem enviados para Lisboa. Afinal, a ampliação do controle e da
exploração do território e gentes coloniais passava pela apropriação de conhecimentos,
técnicas e tradições, como a análise das fontes acima evidencia.
Quando chegaram em Lisboa, os ferreiros centro-africanos que sobreviveram à
viagem não fundiram as amostras do ferro da Ilamba. Na Corte, a experiência não resultou no
muito elogiado metal centro-africano, a despeito de os portugueses tentarem reproduzir
exatamente o cenário de Angola: o minério da Ilamba, os ferreiros locais e as ferramentas de
seu cotidiano “uns pequenos foles de cabra e uma bigorna proporcionada a sua pobreza e
ignorância”128. Podemos imaginar que os artesãos africanos não foram bem-sucedidos porque
não tinham acesso aos materiais necessários para construir o forno e para bom andamento da
fundição (a argila, o próprio mabú, o carvão produzido em Angola), ou que eram apenas
aprendizes ou até mesmo que não quiseram colaborar com os europeus. Certo é que mesmo
permeados de preconceitos sobre as ferramentas e técnicas centro-africanas, as autoridades
régias procuraram extrair dos artífices seus métodos e segredos metalúrgicos. Se o soba
Mbangu kya Tambwa permaneceu três anos na prisão sem revelar o caminho das minas de
ouro, os fundidores da Ilamba podem ter se valido da mesma estratégia, já que o segredo era
uma das obrigações de seu ofício. No fim, os europeus se valeram da ciência dos que
pretendiam conquistar, neste caso, para explorar as riquezas minerais do Reino de Angola. E
os fundidores e ferreiros poderiam eles mesmos acabar nas algemas que fabricavam.
127
Mariana P. Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela and its hinterland. New
York: Cambridge University Press, 2013, p. 275.
128
Carta de FISC para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado da Marinha e Ultramar. São
Paulo de Assunção de Luanda, 18 de dezembro de 1765. AHU_CU_001, Cx. 49, D. 71.
252
1
Catarina Madeira Santos, Um governo "polido" para Angola. Reconfigurar dispositivos de domínio (1750-
c.1800). Tese (Doutorado em História), Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa, 2005, p. 89.
253
remetidos de Lisboa com a finalidade de dar continuidade aos planos de Francisco de Sousa
Coutinho2.
Para fundamentar sua opinião sobre Nova Oeiras, no início de 1773, Lencastre
encomendou muitos pareceres, relatórios contábeis e experiências de fundição.
Primeiramente, usou o forno construído por seu antecessor que se localizava próximo à
Fortaleza de Penedo e era do tipo francês. Foram duas tentativas frustradas, que custaram
171$330 rs à Fazenda Real. O valor foi despendido com canteiros, pedreiros, mestres
fundidores, ferreiros brancos e “pretos”, cabouqueiros, serventes que assistiam à obra, lenha e
carvão para o forno. Os ferreiros e fundidores, engenheiros e funcionários da fábrica não
conseguiram operá-lo, “reduzindo a escórias toda esta fornada, sem que delas [das “pedras de
ferro”] se liquidasse parte alguma de ferro”3.
A seguir, passou à construção de fornos baixos para aplicar o método biscainho. O
pagamento dos trabalhadores e técnicos era também o fator que encarecia a produção; no caso
a despesa foi de 91$500 rs, dos quais 67$200 rs foram apenas para o pagamento dos
fundidores. O custo do ferro produzido ali foi de 28$900 rs por arrátel (450g), conseguindo-se
obter somente um pouco mais de 3 libras.
As experiências com fornos europeus não foram exitosas, mas ele apostou na
prática dos artesãos centro-africanos. Convocou seis fundidores locais. A despesa média em
cada fundição foi de $533rs, quantia bem inferior que a dos experimentos anteriores porque o
jornal dos trabalhadores africanos também era menor. Mas, como a produção em si, em
termos de quantidade, não era significativa, somente de quatro a quatro libras e meia por
fornada, Lencastre não via a técnica dos Ambundos como lucrativa.
Para confeccionar o citado forno francês, Sousa Coutinho no fim de seu governo
solicitou a ajuda dos engenheiros militares que formou na Aula de Geometria de Luanda, no
caso Luis Candido Cordeiro e João Pedro Miguéis. Lencastre os convocou para darem o seu
parecer. Os engenheiros disseram que não tinham conhecimento especifico suficiente para
avaliar as causas dos sucessos ou fracassos de cada fundição, se limitaram a conferir uma
narração sucinta das experiências que presenciaram.
Em termos de lucros, a conta que Lencastre não fez é a mais simples. Como a
leitura do gráfico das despesas da fábrica, no capítulo 3, evidencia, os maiores gastos durante
todos os anos de funcionamento de Nova Oeiras foram despendidos com jornais comuns, ou
2
Carta de Antonio de Lencastre para Martinho de Melo, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São
Paulo de Assunção de Luanda, 31 de março de 1773. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 28.
3
Idem.
254
seja, com aqueles que construíram o edifício da fábrica. A fábrica de pedra e cal era o
prejuízo, além de ser improdutiva; em contraposição a “Casa da Fundição dos Pretos” era
barata e lucrativa porque explorava mão de obra local especializada que fabricava excelente
ferro.
Manoel Antonio Tavares e José Francisco Pacheco, antigos administradores da
fábrica também foram chamados para apresentar pareceres sobre a qualidade das minas de
ferro. Lencastre queria saber se concordavam com as explicações dadas pelos mestres
fundidores brancos deque naquelas minas se encontravam apenas limitadas partículas de
ferro, não sendo possível extrair do minério maiores quantidades de metal. O inspetor das
obras da fábrica, José Pacheco, descreveu o que testemunhou no cotidiano de Nova Oeiras, os
maus-tratos, as mortes frequentes, as péssimas condições para o desenvolvimento da
agricultura – terrenos com muitas pedras ou pequenos demais - e a pouca quantidade de ferro
ali produzida4.
O então sargento-mor Manoel Tavares respondeu que as muitas experiências
metalúrgicas não produziam metal suficiente para tornar a empresa lucrativa e que o carvão
gasto valia muito mais que o ferro que se extraía. Por essa razão, conformava-se com a
opinião dos mestres, que por sua vez culpavam a pobreza das minas e às invisíveis partículas
de ferro. Manoel Tavares foi, portanto, o único a dizer com todas as letras que considerava a
fábrica inviável, os outros se limitaram a apresentar descrições dos serviços prestados.
Munido dos pareceres, Lencastre formou sua opinião, ao menos foi isso que disse
quando escreveu para o secretário do Ultramar, Martinho de Melo e Castro. Porém, não nos
parece que foi o que realmente aconteceu. O esforço em produzir documentos comprobatórios
do fracasso de Nova Oeiras não foi apenas uma iniciativa administrativa, que buscava
otimizar as receitas e despesas da Fazenda Real do Reino de Angola. Os relatórios foram uma
estratégia política para legitimar uma decisão tomada por razões que pouco tinham a ver com
as finanças do reino, como podemos perceber pela repercussão dessas notícias em Angola e
na Corte.
Em fevereiro de 1773, José Plácido Correia de Brito, escrivão da Fazenda Real,
escreveu para Francisco de Sousa Coutinho explicando as razões que levaram Manoel
Antonio Tavares, cuja carreira se consolidara sob a proteção do ex-governador, a se voltar
contra ele5. De acordo com Correia de Brito, Manoel Tavares sofreu pressões do novo
4
Idem.
5
Carta de José Plácido Correia de Brito, escrivão da Fazenda Real, para FISC, ex-governador de Angola. São
Paulo de Assunção de Luanda, 11 de fevereiro de 1773. ANTT, Condes de Linhares, mç. 44, doc. 100.
255
governador para confirmar a opinião dos mestres fundidores. Chegou a dizer: “vossa
excelência [Francisco de Sousa Coutinho] está lá e ele [Manoel Antonio Tavares] cá debaixo
das ordens de quem pode dar cabo dele em poucos dias”. Outra ameaça foi a prisão –o
“senhor general” o “mandaria para um presídio carregado de ferros”6.
Houve conflito entre interesses divergentes durante a produção dos relatórios
sobre a fábrica; embates entre quem os escrevia, funcionários coloniais e a autoridade régia
maior em Angola naquele momento, o governador, que encomendou os documentos. O
primeiro parecer de Tavares transcrito por José Plácido tinha caráter meramente descritivo,
como os demais e, tal como os engenheiros, ele disse que não era fundidor e por isso não
podia dar a palavra final sobre as técnicas empregadas em Oeiras. Correia Brito nos contou
como o governador pressionou e obrigou o antigo administrador da fábrica para que mudasse
seu parecer. De fato, nos anexos à carta de Lencastre, Manoel Tavares mudou o texto,
ratificando a versão do fracasso da fábrica.
Para atenuar a fúria de Sousa Coutinho, inconformado com a traição de Tavares,
José Plácido lhe enviou o que seria a primeira resposta de Manoel Tavares à portaria do novo
governador que, como dizíamos é muito diferente da versão que seguiu anexa à
correspondência de Antonio de Lencastre. No original, Tavares reiterava que nem os mestres
fundidores que estavam em Nova Oeiras, nem ele e os outros engenheiros militares eram
práticos metalúrgicos. Os mestres que restaram após as deserções e sucessivas mortes “nunca
trabalharam em fundição de ferro, e que o ofício de uns é refinar, e o de outros de fundir
sinos”. Por isso, ele não podia ratificar seus pareceres, pois foram produzidos por imperitos.
As experiências conduzidas pelos engenheiros e por Tavares se baseavam nos
cadernos em francês sobre forjas e fornos deixados por Sousa Coutinho. Para justificar sua
inaptidão para resolver o problema e argumentar que somente fundidores práticos conheciam
os segredos da fundição, Tavares recorreu a esses livros e parafraseou uma passagem:
“Não se deve julgar por estranho que uma mina sendo rica produza pouco
ferro; o que sucede se a obra não for construída pelas regras da Arte, se o
vento soprar muito obliqua ou horizontalmente; se a chaminé ou cavidade
interior não tiver as dimensões necessárias; se o fundidor não souber a sua
Arte e bastantes atenções que contribuem muito para o maior ou menor
produto. Encontro mais abaixo que ainda que em 24 horas um forno pode
dar por produto 7.500, 6.000, 4.000 e ainda 3.500 libras, contudo se o
fundidor for ignorante com a mesma quantidade de carvão com que no
6
Idem.
256
Manoel Tavares atestou o que temos dito repetidamente: o principal motivo para
Nova Oeiras não ter se tornado uma grande fábrica de exportação de ferro foi a ausência de
fundidores que, dominando as técnicas de transformação do minério, quisessem colaborar
com os planos coloniais. Os centro-africanos tinham conhecimento suficiente sobre os
processos de fundição, mas continuaram a usar suas técnicas de exploração das minas e
fabricação de objetos e, no máximo, adotaram algumas ferramentas estrangeiras. Essa era uma
tática bem-sucedida para manter sob controle o comércio de ferro e um ofício muito
importante para aquelas sociedades. Os europeus que também eram mestres fundidores
haviam morrido, e os que permaneceram vivos não eram peritos o bastante para fundar a
fábrica. A morte dos técnicos europeus foi um dos fatores decisivos para a dependência
portuguesa dos conhecimentos metalúrgicos centro-africanos.
A narrativa das relações pessoais e políticas que envolvem a produção dos
relatórios de Lencastre sobre a fábrica mostra o quão frágeis são suas explicações, o quanto
tentou conferir uma aparência de imparcialidade e idoneidade administrativa para uma
questão que simples: não havia mão de obra qualificada entre os agentes públicos e os mestres
portugueses, em Angola, que efetivasse os planos da elite administrativa. Por outro lado, se
isso poderia ser resolvido com a remessa de novos mestres, Lencastre estava dizendo
explicitamente que não se lançaria àquela aventura como seu antecessor. Para entender a
posição do novo governador, é preciso retomar algumas informações analisadas no terceiro
capítulo, especialmente no que se refere à maneira como a fábrica de ferro não era bem quista
por outros súditos da Coroa portuguesa.
Como vimos, os negociantes do sertão, os capitães-mores e os traficantes de
escravos viram a mão de obra que antes lhes servia das mais variadas formas ser direcionada
para Nova Oeiras. Os inúmeros conflitos que Nova Oeiras suscitou trouxeram à luz o modo
como os “filhos capazes” dos sobas eram explorados por esses agentes coloniais e o quanto a
interrupção abrupta do fornecimento sem limites de trabalhadores lhes fez falta. Os traficantes
de Ambaca chegaram a reclamar que a concentração de ferreiros em Nova Oeiras resultava
em menos libambos disponíveis para o tráfico. Assim, não foi só a escassez de pessoas à sua
disposição que os incomodava, mas também a carestia de ferro. Logo, as principais
7
Idem.
257
8
O governador de Angola Miguel Antonio de Melo, em 1801, chegou à mesma conclusão a respeito de Nova
Oeiras: “os negociantes e moradores deste reino são pelo comum tais que nunca ajudam a causa pública, antes se
esforçam por impedir e arruinar tudo quanto é de público interesse como por infinitos fatos sucedidos em
diversos tempos se acha verificado”. Carta de Miguel Antonio de Melo para Rodrigo de Sousa Coutinho,
secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, três de abril de 1801.
Arquivos de Angola, v. IV, n. 52-54, 1939, p. 253.
9
“Resposta que um sujeito do Brasil deu ao outro de Angola, sobre a Fábrica do Ferro”, s/l, s/d. BNP, MSS, Cx.
246, n. 22.
10
Antonio Brásio (org.), Monumenta Missionária Africana. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1973, p. 576.
Catálogo dos Governadores do Reino de Angola; com huma previa noticia do principio da sua conquista, e do
que nella obrarão os governadores dignos de memória. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1826. Outra
versão do catálogo dos governadores foi escrita por Manoel Antonio Tavares. John K. Thornton, Joseph C.
Miller, “A crónica como fonte, história e hagiografia; o Catálogo dos Governadores de Angola”. Revista
Internacional de Estudos Africanos. Lisboa, n. 12-13, jan./dez. 1990, p. 9-55
11
Catarina Madeira Santos, Um governo "polido" para Angola, p. 318.
258
12
Ofício de FISC. São Paulo de Assunção Luanda, 25 de janeiro de 1764. Filmoteca Ultramarina Portuguesa, R-
5-3-17, AL, M-99, Papéis vários sobre Angola, fl. 90. Apud Catarina Madeira Santos, Um governo "polido" para
Angola, p. 318.
13
Carta de José Plácido Correia de Brito, escrivão da Fazenda Real, para FISC, ex-governador de Angola. São
Paulo de Assunção de Luanda, 11 de fevereiro de 1773. ANTT, Condes de Linhares, mç. 44, doc. 100.
14
Luiz Carlos Villalta,“As origens intelectuais e políticas da Inconfidência Mineira”. In: M. E. L. de Resende; L.
C.Villalta (org.). As Minas Setecentistas 2.Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007. p.579-580.
259
era defender o que se julgava ser a correção da boa ordem política, do “bem comum”, pois no
conjunto das letras coloniais, a sátira é “guerra caritativa: fere para curar”15.
No caso, Monteiro de Moraes queria mostrar que Nova Oeiras era uma obra
contrária ao bem comum, “desde o seu princípio repugnante e duvidosa”, fruto de devaneios
de um “um famoso herói de caraminholas” e que por isso deveria ser fechada. O “sujeito do
Brasil” arrazoava que, com o governo de Sousa Coutinho “imprudentemente se alter[ara] toda
aquela boa ordem com que se governava”16. O texto literário simula uma resposta de “um
sujeito do Brasil” a uma carta que ele teria recebido cinco anos antes, de alguém de Angola,
sobre a fábrica de ferro. A carta é um diálogo em que o primeiro cita, comenta e critica
excertos escritos por seu interlocutor, que era um defensor das ideias de Francisco de Sousa
Coutinho e da fábrica de ferro. Sem mencionar o nome do governador, Moraes o elegeu como
a autoridade satirizada, personagem caricatural, exagerando na descrição de seus caracteres:
“agora acabou vossa mercê de pintar com todas as suas cores, o verdadeiro caráter de seu
governador: muito prometer, muito fingir, muita aparência fantástica”17.
Por ser elaborada a partir de uma série de convenções retóricas do século XVIII, a
sátira não tinha compromisso de retratar a realidade. Entretanto, a leitura desse texto permite
conhecer elementos importantes da política, economia e sociedade do Reino de Angola. Os
autores coloniais apropriavam-se do referencial colonial e o “transformam, citam, estilizam e
parodiam”18. Sem essa referência, os próprios jogos retóricos não seriam compreensíveis.
Além disso, fica bastante evidente que o autor do documento estava a par dos acontecimentos
que se seguiram à construção e manutenção de Nova Oeiras, pois detalha situações muito
específicas19. Nesse sentido, também é de se notar a forte ligação com o Brasil, já que o
personagem do remetente é de terras brasílicas e conhecia intimamente fatos que ocorreram
no interior de Angola.
O conteúdo da carta se divide em capítulos que abordam temas relacionados à
viabilidade e aos impactos da instalação de Nova Oeiras na região da Ilamba, enumerados
assim:
15
João Adolfo Hansen, A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, 2a edição, São Paulo:
Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 48.
16
“Resposta que um sujeito do Brasil deu ao outro de Angola, sobre a Fábrica do Ferro”.
17
“Resposta que um sujeito do Brasil deu ao outro de Angola, sobre a Fábrica do Ferro”. Sobre os códigos
retóricos próprios da sátira que condicionam a construção de personagens caricaturais como a do governador, as
“exagerações dos traços tipificadores do satirizado devem dar prazer ao público que nelas encontra, além do
prazer de reconhecer a deformação na caricatura, também o prazer de reconhecer um desempenho adequado da
técnica da fantasia poética”. Idem, ibidem, p. 54.
18
João Adolfo Hansen, “Letras coloniais e historiografia literária”. Matraga, Rio de Janeiro, v. 18, 2006, p. 24.
19
Cita por exemplo que o custo do ferro de Nova Oeiras era de 45 mil ou 46 mil réis. Somente alguém muito
próximo do circuito da correspondência entre governadores e Corte poderia ter essa informação.
260
“se será útil esta fábrica, se poderá durar sem opressão dos negros; porque
preços poderá sair para fazer conta; que gente branca será necessária para o
seu serviço; a forma porque pode subsistir-se em um clima tão enfermo; que
conduções tem, qual a riqueza, abundância, ou qualidade da Mina; a força ou
duração das lenhas”20.
“Não me cansarei em provar que há muito ferro, que há muita lenha e que
há muitos negros ferreiros, costumados a este penoso trabalho, porque isto é
público e constante, direi só os meios porque se pode dar a precisa atividade
20
“Resposta que um sujeito do Brasil deu ao outro de Angola, sobre a Fábrica do Ferro”.
261
aos negros, mostrando que se eles não forem deste modo empregados, não
farão nenhuma utilidade ao rei e ao povo”21.
21
“Resposta que um sujeito do Brasil deu ao outro de Angola, sobre a Fábrica do Ferro”.
262
22
“Resposta que um sujeito do Brasil deu ao outro de Angola, sobre a Fábrica do Ferro”.
263
De certa forma, Sousa Coutinho tentou negociar com essas forças políticas
conflitantes, assim como utilizou estratégias para convencer as autoridades africanas. Tanto é
assim que, frequentemente, enfatizava a necessidade de não subtrair a força de trabalho e o
ferro da agricultura, nem desviar os carregadores das atividades que eram indispensáveis para
quaisquer expedições nos sertões e, principalmente, para o tráfico de escravos. Não poderia
faltar ferro e ferreiros para as ferramentas agrícolas e para os libambos23. Tais medidas
destinavam-se a evitar o confronto com pessoas importantes nos sertões do Reino de Angola,
de quem procurava conquistar apoio. As elites locais, tais como a família Monteiro, tinham
uma forte ligação com o tráfico de escravos, como lembram Thornton e Miller:
“estes ‘portugueses’ angolanos ou luso-africanos, eram comerciantes de
escravos, contrabandistas, ocupavam cargos médios e baixos na burocracia
civil, militar e eclesiástica da colônia, e constituíam o equivalente mais
próximo de uma aristocracia agrária local”24.
23
Carta de FISC para Francisco Matoso de Andrade, capitão-mor de Ambaca. São Paulo de Assunção de
Luanda, 25 de maio de 1767.BNP, C – 8742, F – 6364, fl. 182v.
24
John K. Thornton; Joseph C. Miller, “A crônica como fonte, história e hagiografia; o Catálogo dos
Governadores de Angola”, Revista Internacional de Estudos Africanos, n. 12-13, 1990, p. 15.
25
Ana Madalena Trigo de Sousa, D. Francisco de Sousa Coutinho em Angola: Reinterpretação de um Governo
1764-1772. Dissertação (Mestrado em História). Funchal / Lisboa: Universidade de Nova Lisboa, 1996, p. 102.
Catarina Madeira Santos, Um governo "polido" para Angola, p. 533.
264
muitos braços, e estava além de seu alcance, da estrutura colonial ali montada e do pouco
tempo que passou em Angola: “semelhantes obras não são para governadores que acabam,
são para o rei, que sempre vive, e que pode domar a preguiça, a ignorância, e a preocupação
dos povos e dos governadores”26.
Como isso não aconteceu, ao findar seu governo, foi substituído por um
administrador refratário a suas ideias. Com apoio das forças que havia se oposto a Sousa
Coutinho e sem condições de enfrentar a resistência dos centro-africanos em manter seus
“segredos”, Antonio de Lencastre fechou a fábrica de ferro em Nova Oeiras: suspendeu os
jornais, mandou que se deportasse os mestres europeus que ali se encontravam, abandonou o
edifício.
30
Exposição do Governador D. Rodrigo José de Menezes sobre o estado de decadência da Capitania de Minas -
Gerais e meios de remedia-lo, 04/08/1780, In: Livro Primeiro de registro dos ofícios dirigidos à Corte Pelo Ilmo.
e Exmo.Senhor D. Rodrigo José de Menezes, Governador e Capitão General desta Capitania de Minas Gerais,
APM - Seção Colonial, Códice 224,fl. 314.
31
O direito das Entradas era cobrado em postos fiscais e impunha taxas sobre os produtos que entravam nas
Minas. Tratava-se, igualmente, de uma das principais formas de fiscalizar a circulação das mercadorias,
inclusive o ouro. A cobrança deste tributo por meio de contratos existia desde 1715 e representava um meio de
pagar os quintos devidos para a Coroa. O sistema de cobrança por contratos vigorou até 1789, quando a Fazenda
Real passou a se encarregar pela arrecadação. Cláudia Maria das Graças Chaves, Perfeitos negociantes:
mercadores das Minas Setecentistas, São Paulo: Annablume, 1999, p. 85.
32
Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), São Paulo: Hucitec,
1995, p. 285.
266
33
Domingos Ferreira Pereira também recebeu a concessão para minerar chumbo.
34
Carta de Luis Antonio de Sousa, governador da capitania de São Paulo, para Sebastião José Carvalho de Melo,
conde de Oeiras. São Paulo, três de janeiro de 1768. In: Publicação Oficial de documentos interessantes para a
história e costumes de São Paulo. v. XIX. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo, Typographia da
Companhia Industrial de São Paulo, 1896, p. 39-41.
35
Em 1765, Sousa Coutinho defendia que “quanto conheço que só no Régio Erário durará e se aumentará [a
fábrica], quando tudo se perderia se fosse entregue a particulares”. Carta de FISC para Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 29 de
dezembro de 1766. AHU_CU_001, Cx. 50, D. 64. Em 1770, o governador explicou que antes deste ano a sua
opinião era para manter a iniciativa longe dos interesses particulares. “Se eu não considerasse tão cheios de
importantíssimos e grandes negócios, que preferem a este, e pudessem dar vivos e continuados auxílios à fábrica,
votaria como já votei, que ela se conservasse na administração real para que os seus lucros dessem força às
guarnições”. Carta de FISC para Martinho de Melo e Castro, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São
Paulo de Assunção de Luanda, 23 de agosto de 1770. AHU_CU_001, Cx. 57, D. 45.
267
então36. O interesse do comerciante se justificava pelas muitas vantagens que Nova Oeiras
traria para seus negócios na Índia, o que ele estendia para o comércio de Portugal com os
produtos indianos:
“Nada pode (...) ser mais interessante ao reino de Portugal e o comércio da
Índia que eu pretenda estabelecer, permitindo-se Sua Majestade Fidelíssima,
do que esta Fábrica, pois remetendo-se para a Índia carregações de ferro,
gênero de que naquelas partes há tanta necessidade dela podem vir todas as
fazendas que quiserem sem que seja preciso tirar do Reino as grandes somas
de ouro que todos os anos para lá se levem”37.
36
Roquinaldo Ferreira comentou a trajetória de Luis Cantofer no contexto do comercial. Roquinaldo Ferreira,
“Dinâmica do comércio intracolonial: jeribitas, panos asiáticos e guerra no tráfico angolano de escravos (século
XVIII)”. In: João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa. Antigo Regime nos trópicos. A
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 358 e ss.
37
Carta de Luis Cantofer para FISC. São Paulo de Assunção de Luanda, 18 de agosto de 1770. BNP, C - 8743, F
– 6377. Luis Cantofer também fazia parte do tráfico de escravos da Bacia do Rio Prata. Em 1782, recebeu
autorização da Coroa espanhola para introduzir 1.000 escravos em navios portugueses, em Buenos Aires. Fábio
Pesavento, “Para além do império ultramarino português: as redes trans, extraimperiais, no século XVIII”. In:
Roberto Guedes (org.), Dinâmica Imperial no Antigo Regime Português. Escravidão, governos, fronteiras,
poderes e legados: séc. XVII - XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
38
Carta de FISC para Martinho de Melo e Castro, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de
Assunção de Luanda, 23 de agosto de 1770. AHU_CU_001, Cx. 57, D. 45.
268
39
Carta de FISC para Sebastião Carvalho de Melo, marquês de Pombal. São Paulo de Assunção de Luanda, 13
de fevereiro de 1771. IEB/ USP, AL – 082 – 302. Outro motivo para a mudança de posição do governador
poderia ser o fato de que Cantofer não ser português; precisaria “naturalizar-se” para ter direito ao arrendamento
da fábrica.
40
Rodrigo Ricupero, “Governo-geral e a formação da elite colonial baiana no século XVI”. In: Maria Fernanda
Bicalho e Vera Lúcia Amaral Ferlini (org.), Modos de Governar. Ideias e práticas políticas no Império
Português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005, p. 119.
41
Carta de Luis Antonio de Sousa, governador da capitania de São Paulo, para Sebastião José Carvalho de Melo,
conde de Oeiras. São Paulo, três de janeiro de 1768. In: Publicação Oficial de documentos interessantes para a
história e costumes de São Paulo. v. XIX, p. 41.
269
Nova Oeiras e que os candidatos teriam grandes rendimentos42. Essa concorrência por mão de
obra especializada mostra, por outra perspectiva, a grande falta de mestres fundidores à
disposição da Coroa portuguesa, que sempre tinha que recorrer a outros países europeus com
tradição nos empreendimentos siderúrgicos.
Desde a volta de João de Oliveira para Sorocaba até o final de 1768, os esforços
foram convertidos para conhecer o terreno em que se situaria a fábrica: “na distância de duas
léguas em quadra é continuada mina de pedra férrea, com abundância de lenha e água para
sustento das fábricas”. Principiaram, então, as despesas com a estrutura dos fornos e as
experiências de fundição: “fornos grandes e pequenos, por diferentes modos, safras [bigornas
de ferreiro], martelos, malhos, rodas e engenhos para os mover”. Mesmo o governador tendo
enviado “pessoas engenhosas e experientes” para assistir aos trabalhos, não foi “possível
acertar-se com a caldeação do ferro, nem fazê-lo igual ao da primeira amostra” que foi
remetida ao conde de Oeiras43.
O morgado de Mateus suspeitava da imperícia do mestre, “por ele não ter nunca
trabalhado em fábrica, nem visto as de Biscaia”. Também desconfiava que “pessoas mal-
intencionadas” teriam subornado o mestre (“pelos meios dele se fazer ignorante”) para que a
fábrica não prosperasse44. Nota-se aqui a suspeição do governador quanto a falta de apoio da
elite local no desenvolvimento do projeto. Em 1769, dizia que a grande quantidade de matos,
a excelente disposição das águas para mover engenhos e transportar o ferro para regiões
distantes de nada adiantavam porque o mestre responsável tinha “pouca experiência” e não se
encontraram “pessoas hábeis e curiosas” que, aplicando-se, “conseguissem o descobrimento
deste segredo”45.
Como se vê, o segredo da fundição de metais era um problema insolúvel para as
autoridades portuguesas. Luis Antonio de Sousa propôs para seu cunhado em Angola que
ambos mandassem buscar “uma segunda vez outros mestres de Biscaia” para as duas fábricas.
Em terras brasílicas, mais “sadias” e de melhor clima que as do Reino de Angola, não seria
difícil instruir e formar muitos fundidores que seriam suficientes para reestabelecer as duas
42
Ver capítulo IV.
43
Carta de Luis Antonio de Sousa, governador da capitania de São Paulo, para Sebastião José Carvalho de Melo,
conde de Oeiras. São Paulo, três de janeiro de 1768. In: Publicação Oficial de documentos interessantes para a
história e costumes de São Paulo. v. XIX, p. 41.
44
Idem, Ibidem.
45
Carta de Luis Antonio de Sousa, governador da capitania de São Paulo, para FISC. São Paulo, 30 de outubro
de 1769. In: Publicação Oficial de documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. v. XIX, p.
406-408.
270
fábricas46. De Angola, Sousa Coutinho respondeu dizendo que declinava da oferta porque já
não tinha forças ou recursos para mandar buscar mestres na Biscaia47.
A grande diferença que poderia existir entre Nova Oeiras e a fábrica de Sorocaba
era que, em Angola, Sousa Coutinho recorria aos conhecimentos de práticos fundidores
centro-africanos. No Morro de Araçoiaba, como veremos, eles estavam distantes, mas essa
não era uma possibilidade remota.
Durante todo o século XVIII, a mão de obra indígena foi largamente utilizada na
capitania de São Paulo. O que se convencionou chamar de substituição da escravidão indígena
pela africana ocorreu de forma gradual e só se consolidou no final do Setecentos48. Na
segunda metade do século XVIII, houve um declínio na captura de índios, devido, entre outras
razões, às dificuldades para penetrar os sertões. A importação de africanos escravizados foi
uma das alternativas à crise da escravidão indígena, inicialmente adotada pelos senhores mais
abastados. É preciso lembrar que o escravo africano havia sido introduzido em São Paulo
desde o início da colonização, ainda que de forma inexpressiva se comparada à exploração do
trabalho escravo indígena, preeminente desde o século XVI49.
De acordo com Maria Marcílio, “a cidade [de São Paulo] viu aumentar, depois
dos anos de 1740-1750, o número de escravos de origem africana”50. No final da década de
1760, a população da capitania de São Paulo atingiu 83.880 pessoas; deste total, 23.333 eram
escravos africanos e 2.736 índios aldeados - sem contar os milhares de indígenas que viviam
nos sertões, fora do domínio português51. Durante o século XVIII, a taxa de cativos na
capitania permaneceu em 24,2%. Segundo Fabiana Schleumer, com base em 3.398 registros
de óbitos localizados na Cúria Metropolitana de São Paulo, a maioria (489) dos escravos de
46
Idem, Ibidem.
47
Carta de FISC para Luis Antonio de Sousa, governador de São Paulo. São Paulo de Assunção de Luanda,
quatro de maio de 1770. BNP, C – 8743, F – 6377.
48
“Mas falar em transição, pelo menos no sentido da substituição dos cativos índios na execução de tarefas na
agricultura, seria precipitado: manteve-se, nesse período, como um processo incompleto, a ser consumado
apenas no final do século XVIII, quando a expansão açucareira revitalizaria a economia paulista”. John Manuel
Monteiro, Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras,
1994, p. 220.
49
Idem, p. 221.
50
Maria Luíza Marcílio, “A população paulistana ao longo dos 450 anos da Cidade”. In: Paula Porta
(Org.). História da Cidade de São Paulo. A cidade colonial (1554-1822). São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 254.
51
Francisco Vidal Luna, Herbert S. Klein. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de 1750
e 1850. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 45.
271
São Paulo e arredores era proveniente da Guiné. A autora ainda destaca outros locais de
procedência: Congo, Cabo Verde, Moçambique e Rebolo52.
Entre 1801 e 1805, segundo dados coletados por Regiane Matos nos “maços de
população da cidade de São Paulo”, há predominância de dois etnômios da África Central:
são computados 1.427 cativos provenientes de Benguela e 609 de Angola. O terceiro grupo de
procedência é o Mina, com 243 cativos53. Assim, em finais do século XVIII e início do XIX,
podemos dizer que, em São Paulo, havia africanos escravizados da Costa Ocidental e Centro-
Ocidental africana.
É preciso considerar que só conhecemos os locais da origem dos africanos
trazidos como escravos para a América Portuguesa por meio de designações étnicas
específicas chamadas de “nações”. Presente nas fontes coloniais – em especial nos assentos de
batismo, casamento e óbito, e nas matrículas - essas classificações estavam mais relacionadas
ao tráfico ou à construção de uma identidade pelos colonizadores, que a etnias específicas da
África. De acordo Mariza Soares, “não existe qualquer homogeneidade nos nomes das
procedências [que] vão desde os nomes de ilhas, portos de embarque, vilas e Reinos a
pequenos grupos étnicos”.54 O termo Angola, por exemplo, é muito genérico, pois
corresponde a variadas etnias da África Centro-Ocidental que foram embarcadas no porto de
Luanda.
Na fábrica de Sorocaba, Luis Antonio de Sousa contou em uma de suas cartas que
o pouco de ferro que se produzia se devia à “rude inteligência de um negro, que, principiando
a trabalhar com o mestre, tira[va] melhores fundições quando as governa”55. Não conhecemos
a origem deste escravo habilidoso que suplantava o mestre português, nem ainda se era
africano. Contudo, esta é uma citação que pode unir as duas margens do Atlântico português
no que concerne à exploração dos conhecimentos africanos sobre a metalurgia. Os africanos
trazidos à capitania de São Paulo, “apesar da separação radical de suas sociedades de origem,
52
Lembrando que não há informações para 1803. Fabiana Schleumer, “Recriando Áfricas: presença negra na
São Paulo colonial”. Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 46, fev.
2011, p. 2.
53
Regiane Augusto de Mattos, De cassange, mina benguela a gentio da Guiné. Grupos étnicos e formação de
identidade africanas na cidade de São Paulo (1800-1850). Dissertação (Mestrado) – História Social,
Universidade de São Paulo, 2006, p. 89.
54
Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro,
século XVIII, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.109.
55
Carta de Luis Antonio de Sousa, governador da capitania de São Paulo, para FISC. São Paulo, 30 de outubro
de 1769.In: Publicação Oficial de documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. v. XIX, p.
406-408.
272
teriam lutado (...) para organizar”56 suas vidas tendo como base elementos socioculturais
bantu. Sabedoria antiga da África Ocidental e Central, a metalurgia, tal como outras
contribuições intelectuais, como as práticas médicas e culinárias, fazia parte de um conjunto
de tradições africanas reinventadas na situação colonial como forma de resistência e de luta
pela sobrevivência57.
As pesquisas arqueológicas em Sorocaba também fornecem pistas da
reminiscência de técnicas africanas nos fornos de fundição. Os fornos encontrados são de tipo
baixo assentados no chão: a parede circular do forno é “assentada diretamente sobre o solo e é
constituída por tijolos e fragmentos de telhas e argamassa com argila do próprio solo
original”58. A análise do solo também identificou uma abertura no forno que era responsável
pela drenagem das escórias típica dessas estruturas de redução direta do minério de ferro. A
hipótese dos arqueólogos é que os foles empregados eram os “de mão”. Todas essas
características encontramos nos fornos africanos e podem ser mais um indicativo da presença
de fundidores africanos naquela fábrica de ferro59.
É interessante observar que a associação entre africanos e o início da metalurgia
no Brasil se repete em outras regiões. A relevância dos saberes africanos sobre a produção de
ferro no Brasil está presente nas obras de viajantes ou naturalistas – como José Vieira Couto,
o Intendente Câmara, o Barão Eschwege – e nos escritos de pesquisadores da Escola de Minas
de Ouro Preto, pioneiros em narrar a história da siderurgia - Paul Ferrand, Henri Gorceix e
Bovet. Para esses autores, a própria técnica usada nas tendas advinha em grande parte dos
conhecimentos africanos. O Barão Eschwege chegou a defender que o ferro foi fabricado pela
56
Robert W. Slenes, Na Senzala, uma Flor. Esperanças e recordações na formação da família escravista. 2ª ed.
Campinas: Editora da Unicamp, 2014, p. 155.
57
Robert Slenes analisou alguns aspectos da figura do ferreiro a partir de estudos voltados para a região do
Congo, na África Central, e mostra como o trabalho de fundidores e ferreiros estava relacionado a cerimônias
rituais. Além disso, Slenes chama a atenção para a importância de ferreiros como líderes de revoltas, como a
insurreição quilombola de 1848, em Vassouras, comandada por um pardo liberto que era ferreiro. Robert Slenes,
“L´Arbre Nsanda replanté: cultes d´affliction Kongo et identité des esclaves de plantation dans le Brésil du Sud-
Et (1810-1888)”,Cahiers du Brésil Contemporain, Paris, n° 67/68, 2007, (partie II), p. 217-313.
58
Anicleide Zequini, Arqueologia de uma fábrica de ferro: Morro de Araçoiaba, séculos XVI-XVIII, Tese
(Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 193.
59
Flávio Gomes e Luís Symanski estudaram os vestígios arqueológicos encontrados em duas fazendas de café
no Vale do Paraíba, no século XIX. Em Santa Clara identificaram escórias de fundição de ferro, argila branca e
flocos de quartzo. Os autores mostram como esses elementos se relacionam a cosmologia centro-africana sobre
os poderes sobrenaturais que envolviam os ferreiros. A manutenção dessas ideias mostra a presença de
tecnologias africanas no Brasil. Luís Cláudio P. Symanski e Flávio dos Santos Gomes, “Iron Cosmology,
Slavery, and Social Control: The Materiality of Rebellion in the Coffee Plantations of the Paraiba Valley,
Southeastern Brazil”. Journal of African Diaspora Archaeology and Heritage, 5:2, 2016, p. 174-197. A
propósito da transferência e da continuidade cultural de técnicas metalúrgicas africanas na América, no caso no
Caribe, ver também: Candice Goucher, “African Metallurgy in the Atlantic World”. In: Akinwumi Ogundiran,
Toyin Falola (ed.), Archaeology of Atlantic Africa and the African Diaspora. Bloomington: Indiana University
Press, 2007.
273
primeira vez em Antonio Pereira, por um escravo do capitão-mor Antonio Alves “e também
em Inficionado, por um escravo do capitão Durães (o mesmo senhor que achara cobre nativo
arenoso). Ambos disputavam a honra da prioridade”60.
Poucas são as notícias sobre os trabalhadores que estiveram na fábrica de
Sorocaba, no século XVIII. Já em 1815, há relatos de que trabalhavam na então Real Fábrica
de Ferro de Ipanema, 16 índios trazidos das aldeias de Itapecerica, M’Boy, Carapicuíba,
Barueri e Itapevi61. É possível que índios tenham trabalhado na fábrica, no século XVIII,
entretanto, por hora não há indícios de que as muitas e diversas sociedades indígenas da
América portuguesa conhecessem a fundição e forja de metais62. Pode ser, porém, que as
populações nativas tenham aprendido com europeus ou africanos esses saberes, já que há
narrativas de ataques de índios a fazendas usando “muitas setas farpadas de ferro e cobre”63.
Para a fábrica que se tentou construir durante o governo do morgado de Mateus,
existem dados sobre a falta de trabalhadores. Os acionistas reclamavam não poder “continuar
em levantar as ditas fábricas por falta de escravos para a servirem”. Eles sugeriam buscar
cativos na fazenda de “Arassariguama”, onde havia muitos “sem ter emprego em que
ganhem”. Também se ofereciam para pagar os jornais desses escravos até que se encontrasse
uma solução para a escassez de serventes: “se lhe deem até doze escravos, (...), para se
arrecadar o jornal que oferecem, que é de quarenta reis, e de comer por tempo de três
60
Wilhelm Ludwig Von Eschwege, Pluto Brasiliensis. Tradução de Domício de Figueiredo Murta, Belo
Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1979, p. 203. Cf.: Henri Gorceix, “Estudo
químico e mineralógico das rochas dos arredores de Ouro Preto", em Anais da Escola de Minas de Ouro Preto:
coleções de memórias e de notícias sobre a mineralogia, a geologia e as explorações das minas no Brasil, Ouro
Preto: Escola de Minas de Ouro Preto, 1883, p. 5-23; Armand Bovet, “A indústria Mineral na Província de
Minas Gerais”, p. 24-40; Paul Ferrand, L’or a Minas Gerais, Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de
Minas Gerais, 1913.
61
Os exploradores das minas se responsabilizavam com os custos com mão de obra, logo, é provável que tenham
levado índios em suas excursões. Entre eles cita-se: Afonso Sardinha e Francisco de Sousa (século XVI e XVII),
Luis Lopes de Carvalho (XVII), Domingos Pereira Ferreira (XVIII). Nas tentativas de exploração da fábrica no
século XVII, uns dos particulares que se lançou a explorar as minas sugeriu a Câmara de São Paulo
encaminhasse das “aldeias que tem de índios forros cem casais de índios para se formar uma Aldeia no lugar que
se há de fundar a fábrica”. Contudo, não há qualquer vestígio que de fato isso aconteceu. Anicleide Zequini,
Arqueologia de uma fábrica de ferro, p. 125. Anicleide Zequini, “Técnicos e Práticos fundidores: a produção de
ferro no Brasil nos séculos XVI e XVIII”. In: ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, Fortaleza,
2009, p. 1-13.
62
“Diferentemente do que ocorreu nas colônias espanholas da América, os indígenas que aqui [Brasil] foram
encontrados não tinham conhecimento metalúrgico e, portanto, não utilizavam nenhuma técnica de fundição que
pudesse ser adaptada aos interesses do colonizador”, Anicleide Zequini, Arqueologia de uma fábrica de ferro, p.
125.
63
Carta de Luis Antonio de Sousa, governador da capitania de São Paulo, para Sebastião Carvalho de Melo,
conde de Oeiras. São Paulo, 19 de maio de 1769. In: Documentos interessantes para a história e costumes de
São Paulo. v. XIX. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo, Typographia da Companhia Industrial de São
Paulo, 1896, p. 346-348.
274
meses”64. Não sabemos se de fato essa ideia saiu do papel. Certo é que esses são traços de que
africanos escravizados e seus descendentes mineraram, fundiram e forjaram ferro na capitania
de São Paulo.
Segundo Azevedo Marques, entre 1766 a 1770, a fábrica conduzida por
Domingos Ferreira produziu cerca de quatro arrobas de ferro por dia65, quantia que era
garantida pela “rude inteligência de um negro”. Assim como acontecia na congênere de
Angola, a perícia e habilidade dos africanos embora vista de forma pejorativa, foi muito útil
para a produção de ferro e, de certa forma, para o aumento da riqueza da Coroa.
Outra semelhança com Nova Oeiras foi a barreira da produtividade, pois em
Sorocaba não se conseguiu ultrapassar o marco de algumas arrobas diárias. Nas duas
fundições, a falta de mestres europeus capazes de aumentar a produção por meio do uso de
alto-fornos, ou as ferrarias hidráulicas biscainhas, foi uma das principais causas para que
ambas iniciativas fossem abandonadas.
Os projetos de fins do século XVIII para as minas de Sorocaba ficaram aquém do
esperado. Nas primeiras décadas do Oitocentos a fábrica de Sorocaba foi refundada e teve seu
período de alta produtividade. Há estudos relevantes sobre a mão de obra de escravos e
africanos livres empregada na fábrica no século XIX66. Para essa época, os registros
descrevem os etnônimos que identificavam os africanos que trabalhavam na fundição,
indicando uma ligação mais direta entre o local de origem e a detenção de conhecimentos
metalúrgicos. Francisco Angola, por exemplo, trabalhava “nas fundições dos fornos altos”67.
Francisco de Sousa Coutinho e o morgado de Mateus, dois administradores
ilustrados, falharam repetidamente ao tentarem promover as fundições de ferro. Contudo, esse
64
Carta de Luis Antonio de Sousa, governador da capitania de São Paulo. Sem destinatário. São Paulo, três de
junho de 1769. In: Publicação Oficial de documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. V.
65. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo, Typographia da Companhia Industrial de São Paulo, 1896, p.
346-348.
65
Não se sabe em que essa quantia foi empregada ou como foi vendida, negociada. Manoel Eufrasio de Azevedo
Marques, Apontamentos históricos, geográficos, biográficos, estatísticos e noticiosos da província de São Paulo.
São Paulo. São Paulo: Martins, 1954, v. 1, p. 248. Apud Heloísa Liberalli Bellotto, Autoridade e conflito no
Brasil colonial, p. 181.
66
Og Natal Menon, A Real Fábrica de Ferro de São João do Ipanema e seu mundo (1811- 1835). Dissertação
(Mestrado) – PUC, São Paulo, 1992; Afonso Bandeira Florence, “Resistência escrava em São Paulo: a luta dos
escravos da fábrica de ferro São João Ipanema, 1828-1842”. Afro-Ásia, nº 18, 1996, p. 7-32; Jaime Rodrigues,
“Ferro, trabalho e conflito: os africanos livres na Fábrica de Ipanema”. História Social, nº 4/5, 1997/1998, p. 29-
42; Mario Danieli Neto, Escravidão e indústria: um estudo sobre a Fábrica de Ferro São João de Ipanema,
Sorocaba (SP), 1765-1895. Tese (Doutorado) – Unicamp, Instituto de Economia, 2006; Mariana Alice Pereira
Schatzer Ribeiro, Entre a fábrica e a senzala: um estudo sobre o cotidiano dos africanos livres na Real Fábrica
de Ferro São João do Ipanema - Sorocaba - SP (1840-1870). Dissertação (Mestrado) - Unesp, Faculdade de
Ciências e Letras de Assis, 2014.
67
Jaime Rodrigues, “Ferro, trabalho e conflito: os africanos livres na Fábrica de Ipanema”, p. 37.
275
ramo que prometia o enriquecimento do Império português não foi esquecido por
governadores e ministros que os sucederam, nas duas margens do Atlântico Sul.
Em 1795, Luis Pinto de Sousa Coutinho, então secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra, escreveu ao vice-rei do Brasil advogando em favor do
desenvolvimento da indústria de ferro no Brasil. A primeira justificativa era a “defeituosa
tarifa por onde regula a entrada do ferro, pagando ele o mesmo que pagavam nas alfândegas
fazendas finas, em igual proporção de peso”68. O ministro passou a averiguar se existiam
minas de qualidade nas proximidades da capital. Assim que as primeiras amostras das “pedras
ferruginosas” surgiram, enviou para João Manso Pereira69, “pessoa de bastantes luzes na
química e mineralogia”, para fazer os primeiros experimentos. Como faltavam cadinhos e
outros instrumentos para montar um laboratório “mais decisivo”, o ministro enviou as pedras
para Lisboa, onde poderiam ser mais bem analisadas. Pinto e Sousa estava “bem esperançado”
de que acharia abundantes minas para estabelecer uma boa fábrica. Já adiantava ser necessária
a vinda de mestres europeus “de conhecimento sólido e reconhecida experiência”. A fábrica
deveria ser bem dirigida para que os investimentos com sua construção e manutenção não
ficassem “inutilizados”. E, neste ponto, citava Nova Oeiras e Ipanema como modelos do que
não se deveria fazer: “a exemplo do que se viu suceder na Capitania de São Paulo e no Reino
de Angola; aonde achando-se riquíssimas minas, tão pouco produziram, que tudo se tornou
em lamentável prejuízo”70. Havia uma mudança importante que precisava ser feita para tornar
a exploração do ferro lucrativa.
68
Luis Pinto de Sousa, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, para José Luís de Castro,
Conde de Resende, vice-rei do Brasil. AN (RJ), Códice 68, v. 12.
69
João Manso Pereira foi um naturalista importante que chegou a ser contratado, em 1796, por Rodrigo de Sousa
Coutinho para junto a outros pesquisadores estudar as minas de São Paulo, estudos que pautaram a nova fase da
fábrica de Ipanema. Nascido em 1750, sem referência precisa de seu local de nascimento, Manso Pereira estudou
no seminário da Lapa, no Rio de Janeira. Foi professor de gramática latina, conhecendo grego, hebraico e
francês. Não estudou fora como os demais naturalistas de sua geração, ficou na América portuguesa, revelando-
se um “autodidata”, como muitos de seus biógrafos descrevem. Foi sócio da Sociedade Literária do Rio de
Janeiro, onde elaborou uma memória que, segundo Alexandre Varela, unia duas tradições químicas: a pré-
Lavoisier e a química moderna. O manuscrito que resultou das experiências com os minerais citados por Luis
Pinto de Sousa se chamava “De alguns fenômenos que se apresentam intentando-se a análise do mineral
descoberto pelas diligências do Ilmo. Sr. conde vice-rei”, de 1795. Alex Gonçalves Varela, Atividades científicas
na “bela e bárbara” capitania de São Paulo (1796-1823). Tese (Doutorado) – Instituto de Geociências da
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005, p. 115-120.
70
Luis Pinto de Sousa, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, para José Luís de Castro,
Conde de Resende, vice-rei do Brasil. AN (RJ), Códice 68, v. 12.
276
71
Silvia F. de M. Figuerôa, Clarete Paranhos da Silva, Ermelinda Moutinho Pataca, “Aspectos mineralógicos das
‘Viagens Filosóficas’ pelo território brasileiro na transição do século XVIII para o século XIX”, História,
Ciências, Saúde, v. 11 (3), 2004, p. 715.
72
Kenneth Maxwell, Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.2.
73
Sobre a vida e trajetória política de Rodrigo de Sousa Coutinho, ver: Andrée Mansuy-Diniz Silva, Portrait
d'un homme d'État: D. Rodrigo de Souza Coutinho, Comte de Linhares 1755-1812, vol. I e II. Lisboa, Paris:
Centre Culturel Calouste Gulbenkian - Comissâo Nacional para as Comemoraçôes dos Descobrimentos
Portugueses, 2002.
74
Planos do Estatuto da Academia, em: José Silvestre Ribeiro, História dos estabelecimentos científicos,
literários e artístico de Portugal nos sucessivos reinados da monarquia, T. II. Lisboa, Tipografia da Academia
Real das Ciências de Lisboa, 1872, p. 39 Apud Alex Gonçalves Varela, “Juro-lhe pela honra de bom vassalo e
bom português”: Filosofo Natural e Homem Público – Uma análise das Memórias Científicas do Ilustrado José
Bonifácio de Andrada e Silva (1780-1819), Campinas: Dissertação (Mestrado em História), Universidade
Estadual de, Campinas, 2001, p. 98. A Academia era composta por três classes: duas de Ciências (Ciências da
Observação – Meteorologia, Química, Anatomia, Botânica e História Natural – e Ciências do Cálculo –
Aritmética, Álgebra, Geometria, Mecânica e Astronomia) e a classe de Belas Letras.
277
das viagens filosóficas (a partir de 1778), vale um exemplo. Já nos anos 1770 a rede de
informações formada por interlocutores diversos do universo da ilustração setecentista
(autoridades coloniais, naturalistas, professores da universidade de Coimbra, cientistas da
época) atingia nível internacional. Isso possibilitou que o naturalista francês Georges-Louis
Leclerc, conde de Buffon, estivesse em contato com Antonio Ribeiro Sanches e o governador
de Angola, numa ponte de comunicação entre Luanda e Paris, através de Lisboa, para
discutirem a qualidade do ferro angolano e as formas do seu aproveitamento na Fundição de
Ferro de Nova Oeiras. Para averiguar a qualidade do minério de ferro da Ilamba, Sousa
Coutinho havia enviado amostras primeiro para Miguel Franzini, professor de Álgebra na
Universidade de Coimbra, que respondeu que a mina dava “65 por 100 de benefício”. Depois
disso, o governador enviou outras amostras para seu irmão, Vicente de Sousa Coutinho, então
embaixador em Paris. Foi assim que Monsieur Buffon, juntamente com Antonio Ribeiro
Sanches, tiveram acesso à amostra da mina de Angola.
O parecer dos naturalistas foi:
“Todos louvam a excelente qualidade do ferro de Angola, a que pode ser
[comparada] ao do Mogol, que se vende a peso de prata para instrumentos de
corte, bem se deixa ver a conveniência que os portugueses têm se
trabalharem estas minas”75.
Nesse encontro, Buffon e Sanches enviaram por meio de Vicente Coutinho “uns
Quesitos de História Natural”, opúsculo que foi remetido para Angola, para auxiliar no
avanço da fábrica de ferro76. Esse intercâmbio entre Paris e Luanda mostra o
comprometimento do “administrador-filósofo” com o seu projeto mais prestigiado, ao mesmo
tempo que revela as novas possibilidades de estudos pragmáticos acerca das riquezas das
possessões ultramarinas.
No decorrer do século XVIII, os naturalistas europeus “planejavam realizar um
grande inventário da natureza e dos povos, para tanto, percorreram os mares e as terras com
equipes de jardineiros e artistas”. Os sábios que participavam das viagens filosóficas, “como
economistas e etnógrafos”, tinham também como objetivo coletar “as técnicas nativas de
transformação da natureza”77. Eram também vistos como exploradores, uma noção que estava
75
Carta de FISC sobre a utilidade da fábrica de ferro. Lisboa, 16 de setembro de 1773. BNP, C 8553, F6362.
76
Idem.
77
Ronald Raminelli, Viagens Ultramarinas:Monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda,
2008, p. 97.
278
78
Ermelinda Pataca, Terra, Água e Ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808). Tese (Doutorado em
Geociências), Campinas: Unicamp, 2006, p. 11.
79
William Joel Simon, Scientific expeditions in the Portuguese overseas territories (1783-1808), Lisboa,
Instituto de Investigação Científica Tropical, 1983, p. 9.
80
Idem, ibidem.
81
Silvia F. de M. Figuerôa, Clarete Paranhos da Silva, Ermelinda Moutinho Pataca, “Aspectos mineralógicos das
‘Viagens Filosóficas’ pelo território brasileiro na transição do século XVIII para o século XIX”, p. 717. Ver
também: Ângela Domingues, Viagens de exploração geográfica na Amazônia em finais do século XVIII:
política, ciência e aventura. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 1991; Artur C. Ferreira Reis, “Limites e
demarcações na Amazônia Brasileira”. Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 244,
nº3, p. 3-103. Importantes também são os trabalhos de Magnus Pereira sobre a reforma da Universidade de
Coimbra e o protagonismo de João da Silva Feijó, Elias Alexandre e Silva, entre outros naturalistas e viajantes.
279
Magnus Roberto de Mello Pereira; Ana Lúcia Rocha Barbalho da Cruz. “Ciência, identidade e quotidiano:
alguns aspectos da presença de estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra, na conjuntura final do
período colonial”. Revista de História da Sociedade e da Cultura, v. 9, p. 205-23, 2009; Magnus Roberto de
Mello Pereira, “Rede de mercês e carreira: o ‘desterro d’Angola’ de um militar luso-brasileiro (1782-1789)”.
História. Questões e Debates, v. 45, p. 97-128, 2007; Magnus Roberto de Mello Pereira, “Um jovem naturalista
num ninho de cobras: a trajetória de João da Silva Feijó em Cabo Verde, em finais do século XVIII”. História.
Questões e Debates, v. 19, n.36, 2002, p. 29-60; Magnus Roberto de Mello Pereira (Org.). João da Silva Feijó;
Um homem de ciência no Antigo Regime português. 1. ed. Curitiba: Editora da UFPR, 2012. v. 1.. 19, n.36, p.
29-60, 2003.
82
Ermelinda Pataca, Terra, Água e Ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808), p. 30.
83
Domingos Vandelli, Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o filósofo naturalista
nas suas peregrinações deve principalmente observar. Lisboa, 1779. Academia Real das Ciências de Lisboa,
Manuscritos Vermelhos, 405.
84
Silvia F. de M. Figuerôa, Clarete Paranhos da Silva, Ermelinda Moutinho Pataca, “Aspectos mineralógicos das
‘Viagens Filosóficas’ pelo território brasileiro na transição do século XVIII para o século XIX”, p. 715.
280
90
Carta de Joaquim José da Silva para Martinho de Melo Castro. Luanda, 17 de março de 1784. AHU, Angola,
Caixa 39. Apud William Joel Simon, Scientific expeditions in the Portuguese overseas territories (1783-1808), p.
158.
91
Joaquim José da Silva nasceu no Rio de Janeiro por volta de 1755. Estudou Matemática e Medicina na
Universidade de Coimbra e, em seguida, trabalhou no Jardim Botânico e no Museu da Ajuda, em Lisboa, como
auxiliar de Vandelli. Realizou viagens filosóficas no reino, nas Serras da Estrela e de Gerês, entes de partir para
Angola no início da década de 1780. Ermelinda Pataca, Terra, Água e Ar nas viagens científicas portuguesas
(1755-1808), p. 382-389. Ver também: William Joel Simon, Scientific expeditions in the Portuguese overseas
territories (1783-1808); Maria Emília Madeira Santos, Viagens de exploração terrestre dos portugueses em
África. 2ª Edição. Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988; Henrique Coutinho
Gouveia, “Aspectos das relações entre Portugal e Angola no Domínio Museológico – As viagens de exploração
científica setecentistas”. In: III Encontro de Museus de países e comunidades de língua portuguesa. Bissau,
1991, p. 77 - 118; Marcio Mota Pereira, “As luzes se ascendem em África: viagens filosóficas de um naturalista
luso-brasileiro em Angola (1783-1808)”. E-hum, v.8, nº2, 2015, p. 103, notas 13 e 14.
92
Carta de Joaquim José da Silva para Julio Mattiazzi, s/p. Apud Marcio Mota Pereira, “As luzes se ascendem
em África: viagens filosóficas de um naturalista luso-brasileiro em Angola (1783-1808)”, p. 103, notas 13 e 14.
282
diário de que conhecemos parte como “Extrato da viagem, que fez ao sertão da Benguela no
ano de 1785 por ordem do Governador e Capitão General do Reino de Angola”93.
Em Luanda, ele dividia seu tempo entre as atividades como secretário de Estado
de Angola e as coletas e remessas de produtos naturais para Lisboa. As remessas que fez
mostram suas incursões pelas regiões próximas da cidade, como no caso da visita à
circunvizinhança do rio Ndande. Em uma das relações enviadas para Lisboa encontram-se:
“Um herbário com 37 esqueletos.
Uma coleção de onze Estampas.
Um frasquinho de Petróleo do Ndande
Um pedaço de Tales Rubrica do Ndande
Três pedaços de Pederneira (SilexMarmoreis) de Cabinda
Dois ditos do Ndande
Um pedaço da pedra que se faz no Ndande a cal para as obras reais.
Dois ditos de mármore rude de Angola.
Uma caixinha de Pau com insetos.
Dois pedaços de enxofre de Benguela.
Um pedaço de Mina de cobre de Benguela (do Sertão).
Uma ponta de cabra montesa de Benguela.
Duas ditas de outro animal ainda não observado por mim.
Oito dentes de cavalo marinho do Kwanza.
Sete costelas do chamado Peixe-mulher, que é o TricleclusManatus de [cinco].
Duas pontas de Espadarte.
Quatro cristais de sal da Kisama.
93
“Extrato da viagem, que fez ao sertão da Benguela no ano de 1785 por ordem do governador e capitão general
do Reino de Angola o Bacharel Joaquim José da Silva, enviado a aquele Reino como naturalista, e depois
secretário do governo. De Luanda para Benguela”. O Patriota, vol. 1, 1813, p. 86-100.
94
“Relação das peças que vão na caixa pertencente a História Natural, remetida pelo naturalista de Angola”,
Joaquim José da Silva. São Paulo de Assunção de Luanda, 20 de março de 1784. AHU_CU_001, Cx. 68, D. 47.
95
“Breves instruções aos correspondentes da Academia das Ciências de Lisboa sobre as remessas dos produtos e
notícias pertencentes a História da Natureza, para formar um Museu Nacional. Dedicado à sua alteza real o
sereníssimo príncipe do Brasil. Pelo doutor José Antonio de Sá. Opositor as cadeiras de leis da Universidade de
283
um manual de como reparar e tomar nota de modos de vida, usos e costumes, e da “moral dos
povos”.
Em Benguela, Joaquim da Silva descreveu a construção das bimbas e jangadas,
bem como a fabricação de óleo de palma, feitas pelos africanos nas proximidades do presídio
de Novo Redondo. Além das técnicas, retratou ainda as moradias, vestimentas, adornos e a
estrutura política nas sociedades que encontrou. Anotou também características dos
trabalhadores:
“os naturais da terra são bem feitos e vencem, como nas outras partes, soldo
os que se empregam nas obras reais e estes são todos vassalos de dois sobas
os mais vizinhos e principais daquele território”96.
Coimbra e correspondente da Academia das Ciências de Lisboa”. Lisboa: Oficina de Francisco Borges de Sousa,
1783. Apud Ermelinda Pataca, Terra, Água e Ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808), p. 92.
96
“Extrato da viagem, que fez ao sertão da Benguela no ano de 1785 por ordem do governador e capitão general
do Reino de Angola”, p. 100.
97
Marcio Mota Pereira, “As luzes se ascendem em África: viagens filosóficas de um naturalista luso-brasileiro
em Angola (1783-1808)”, p. 109.
98
“Memória analítica sobre a memória escrita e enviada do degredo de Angola pelo inconfidente Dr. José
Álvares Maciel sobre a fábrica de ferro de Nova Oeiras”. In: Marcos Carneiro de Mendonça, O Intendente
Câmara, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1958.
284
em 1788, onde se encontrou com Joaquim José da Silva Xavier e, então, regressou para Vila
Rica99.
Nos autos da devassa da Inconfidência Mineira, Maciel disse ter viajado para o
sertão de Minas Gerias para “examinar as produções da natureza que encontrasse”. Foi nos
arredores de Vila Rica que realizou as análises mineralógicas, e ali descobriu “nas fraldas do
Saramenha [morro] junto ao rio que ali passa no distrito da freguesia de Antonio Dias, vitriolo
de cobre”100. Também achou “uma argila micacia semelhante à mica e de cor verde”. No
morro das Lages, havia abundância de “arsênico, de ouro, pimenta e de ferro”. Suas
expedições na capitania mineira foram interrompidas devido à conjuração de 1789, quando foi
preso por ter se envolvido no movimento. Maciel conseguiu se livrar da pena de morte em
troca do degredo para o presídio de Massangano, em 1792.
No Reino de Angola, José Álvares Maciel sobreviveu como negociante, da venda
de “fazendas que lhe fiavam os comerciantes”. O mineralogista voltou a colocar seus
conhecimentos de naturalista em prática e chegou a ser nomeado diretor da fábrica de ferro de
Nova Oeiras por causa da insistência do então ministro da pasta do Estado da Marinha e do
Ultramar, Rodrigo de Sousa Coutinho, para se dar continuidade à exploração de ferro naquele
reino.
Herdeiro das muitas memórias de seu pai, Rodrigo Coutinho, uma das maiores
referências do Reformismo Ilustrado em Portugal, mais de uma vez apresentou estudos e
pareceres favoráveis à exploração de minérios101. Sua ideia era formar um quadro de técnicos
capazes de desenvolver as atividades mineradoras, sobretudo a extração de ferro, uma
indústria que subsidiaria os armamentos e demais ramos manufatureiros de Portugal. Segundo
Nívia Cirne Santos, a característica mais original da presença de Rodrigo de Sousa Coutinho
no quadro dos administradores da época foi a “sua concepção de equilíbrio do poder, fundada
99
Ermelinda Pataca, Terra, Água e Ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808), p. 330-332. Ver
também: Francisco Antonio Lopes, Alvares Maciel no degredo de Angola. Rio de Janeiro: Ministério de
Educação e Cultura, 1958; Robson Jorge de Araújo, “José Alvares Maciel: o químico inconfidente”. Disponível
em: www.fafich.ufmg.br/~scientia/art_araujo.htm. Acesso em 05/04/2013. É interessante observar que um dos
interesses dos inconfidentes fosse justamente o fomento à exploração do minério de ferro e que Maciel tivesse
todos os requisitos necessários para desenvolvê-la. Um conhecimento que será usado para executar o projeto
contrário: o desenvolvimento das fábricas de ferro sob administração da metrópole.
100
Ofício de Miguel Antonio de Melo, governador de Angola, para Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de
Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Luanda, 19 de setembro de 1799. Apud Francisco Antonio
Lopes, Alvares Maciel no degredo de Angola, p. 41-42.
101
Rodrigo de Sousa Coutinho escreveu o “Discurso sobre a verdadeira influência das minas e dos metais
preciosos na indústria das nações que as possuem e especialmente da portuguesa”, de 1789, e a “Memória sobre
o melhoramento dos domínios de Sua Majestade na América”, em 1797. In: Andrée Mansuy-Diniz Silva (dir.).
D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Textos políticos, econômicos e financeiros, 1783-1811. Lisboa: Banco de
Portugal, 1993, t. I e II.
285
102
Nívia Pombo Cirne dos Santos, O Palácio de Queluz e o mundo ultramarino: circuitos Ilustrados. (Portugal,
Brasil e Angola, 1796-1803). Tese (Doutorado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade
Federal Fluminense, 2013, p. 13.
103
Carta de Martinho de Melo e Castro, secretário de Estado da Marinha e Ultramar, para José Gonçalo da
Câmara, governador de Angola. Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, 22 de junho de 1779. AHU_CU_001, Cx.
62, D. 58.
104
Carta de Manuel de Almeida e Vasconcelos, governador de Angola, para Miguel Jesus e Abreu, regente da
Vila de Massangano. São Paulo de Assunção de Luanda, 20 de agosto de 1796. AHA, Códice 89, A-19-3.
286
105
“(...) Toda a superfície do monte está coberta dele [do ferro], a configuração é de seixo, a cor exterior é preta
e lustrosa, e outras de um pardo ferruginoso, por dentro de um pardo azulado, o seu fisso (?) é composto de
pequenos grãos semelhantes aos que apresenta o aço na sua fratura”. Memória de José Álvares Maciel sobre a
fábrica de ferro de Nova Oeiras. São Paulo de Assunção de Luanda, novembro de 1797. BNP, C 8553, F6362.
287
O próprio Maciel em viagem anterior à região caiu enfermo assim que chegou, e as febres o
perseguiram por meses.
O governador Miguel Antonio de Melo só não concordou com um ponto
nevrálgico do discurso do naturalista. Para o administrador, talvez ciente das dificuldades que
reedificar Nova Oeiras acarretaria, disse que no estado em que se encontrava a fábrica, não
valia a pena onerar a Fazenda Real com novos gastos. Mais acertado seria recomeçar a
exploração de ferro em um novo sítio, Calumbo, bastante próximo de Luanda, livre da
“malignidade do clima” da Ilamba, e com as mesmas conveniências do acesso a lenhas e por
estar próximo ao rio Kwanza. Em Nova Oeiras, os trabalhadores iriam somente buscar a
“pedra mineral”. O governador adiantava que já era o caso de dar providências para
estabelecer um novo comércio: o de resgatar o ferro dos Ambundos, assim como procediam
ao resgate do marfim e da cera. Para dar seguimento à ideia, novas amostras, “algumas barras
de ferro fundidas pelos negros, outros com alguns de seus instrumentos músicos, alfaias
domésticas e armas” foram remetidas para Lisboa106.
Dez meses depois, D. Rodrigo respondeu que as “barrinhas de ferro” deram o
“melhor ferro possível, doce e fácil de trabalhar a frio e a quente”107. Imediatamente, o
secretário conseguiu aprovação da rainha para enviar as ferramentas necessárias e pedras de
cadilho para Angola. A ideia de obter o ferro com os centro-africanos agradou a Corte, já que
o metal poderia ser exportado para o Brasil, onde era necessário e se dependia das
importações vindas do estrangeiro. Para “animar” o novo comércio, Sua Majestade decretou a
isenção de impostos para o envio de ferro de Angola no Brasil. Também autorizava que Sousa
Coutinho nomeasse José Álvares Maciel diretor da nova fábrica108. Para antecipar tudo o que
fosse possível, Maciel ficou encarregado de ensinar aos Ambundos como “trabalhar em
grande a mina”. O Calumbo se transformaria em uma “escola aos negros” que depois
poderiam inclusive levar adiante os planos de Francisco de Sousa Coutinho para Nova Oeiras:
106
Carta de Miguel Antonio de Melo, governador de Angola, para Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de
Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Luanda, 19 de dezembro de 1797. In: Arquivos de Angola, v. IV,
nº 52 a 54, 1939, p. 259-262.
107
Carta de Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar, para Miguel Antonio de
Melo, governador de Angola. Palácio de Queluz, sete de outubro de 1798. In: Arquivos de Angola, v. IV, nº 52 a
54, 1939, p. 263.
108
Carta de Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar, para Miguel Antonio de
Melo, governador de Angola. Palácio de Queluz, 11 de outubro de 1798. In: Arquivos de Angola, v. IV, nº 52 a
54, 1939, p. 263 e 264.
288
“transportassem essa nova indústria para o estabelecimento da Nova Oeiras onde eles vivem,
e nós não poderíamos viver”109.
A decisão de D. João VI, quando assumiu a regência em 1799, não foi diferente.
Ao contrário: além do resgate do ferro centro-africano, ordenou que se reestabelecesse a
fábrica de ferro, dando-lhe uma “grande extensão”110. Os soberanos mais uma vez estavam
convencidos dos benefícios que o empreendimento poderia trazer para o império.
Dois anos depois das primeiras impressões que escreveu sobre as minas de ferro
no Reino de Angola, José Maciel redigiu um novo documento em que muda sua opinião
inicial sobre estabelecer uma fábrica em Calumbo. Mais bem informado sobre o terreno, os
meios de transporte da mina pelos rios e o modo de vida dos ferreiros da Ilamba, o naturalista
chegou à conclusão que um local chamado Trombeta (onde ficava a fábrica de Novo Belém)
seria o mais apropriado. Uma missão a Kasanje, a serviço do governador, teria lhe permitido
conhecer melhor a região, fazendo com que elegesse um novo lugar para extrair ferro: “achei
quatro dias distante desta cidade que a mesma cadeia de montes da Ilamba, de onde se tira o
ferro para Oeiras, chega até o sítio ‘Trombeta’ da jurisdição do Golungo, e que aí havia
bastantes lenhas, águas altas, o ar tão puro e sadio como o de Luanda, à pequena distância do
rio Nzenza”. A nova localidade tinha um atrativo importante, pois era onde morava a maior
parte dos “pretos ferreiros” que viviam exclusivamente do seu oficio provendo “todos os
instrumentos de agricultura, prisões e ainda alguns pregos de que se usam no sertão”. A ideia
de instalar um novo empreendimento na vizinhança da moradia dos ferreiros era evitar a
“repugnância” que sentiriam pelo trabalho por terem de deixar suas casas e famílias111.
No entanto, essa não foi a única mudança proposta por Maciel, que desistiu
também da construção de um alto-forno. Esse foi o primeiro ponto em que diverge das
propostas de Francisco de Sousa Coutinho. Vivendo no sertão, coisa que nenhum governador
faria, o naturalista percebeu que o trabalho em alto-forno privaria os ferreiros da Ilamba “da
sua liberdade porque então se desgostam e fogem”. Soma-se a isso a já conhecida falta de
pedra de cadinho, de foles de madeira que não eram feitos em Angola, assim como as rodas
que moviam a máquina. Mais uma vez é notória a dependência da administração colonial do
conhecimento dos ferreiros Ambundos. A única forma de ter acesso a esse saber era contar
109
Carta de Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar, para o marquês Ponte
de Lima, mordomo-mor. Palácio de Queluz, 28 de outubro de 1798. ANTT, Projeto reencontro, MF0027.
110
Carta de Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar, para Miguel Antonio de
Melo, governador de Angola. Palácio de Queluz, 22 de setembro de 1799. In: Arquivos de Angola, v. IV, nº 52 a
54, 1939, p. 265-269.
111
Carta de José Álvares Maciel para Miguel Antonio de Melo, governador de Angola. São Paulo de Assunção
de Luanda, primeiro de novembro de 1799. AHU_CU_001, Cx. 93A, D. 1.
289
com sua colaboração; a violência só resultava em fuga: “atrair os negros por sua livre vontade
e própria conveniência, contra os quais se deve evitar até a menor sombra de força ou
violência para que não desamparem suas casas fugindo para o gentio como ordinariamente
costumam praticar”112. Isso a experiência dos trabalhadores na fábrica nos anos 1760 já
provara; com certeza Maciel já ouvira falar dela pois mencionava com frequência dados da
história da fábrica.
O naturalista propunha outra solução. Com a areia de Massangano construiria
pequenos fornos apropriados aos foles de couro usados pelos Ambundos, porém o faria de
modo a aumentar a produção com pequenas modificações na forma como eram feitas aquelas
ferramentas. Ensinaria também “o uso dos malhos” para que pudessem bater uma maior
porção de ferro, “sem se queimarem com os macetes de que usam”. O método de Maciel
prometia produzir no mesmo tempo de fundição até seis vezes. Os custos seriam irrisórios e
depois de acostumados a um novo ritmo de trabalho seria mais fácil convencê-los a trabalhar
em uma grande fábrica.
Para organizar esse aglomerado de ferreiros, Maciel aventou formar uma “Aldeia
de pretos ferreiros”. A referência do naturalista para a aldeia vinha do que vira na América
portuguesa: “no Brasil cada aldeia de índios tem seu diretor, evitando para este modo toda a
dependência do capitão-mor”. Assim, propõe que a aldeia ou, como segue no registro, o
“quilombo”, deveria ter seu próprio regimento e o diretor seria o inspetor da fábrica.
Na América portuguesa, desde o Diretório dos índios implementado na segunda
metade do século XVIII, os aldeamentos indígenas haviam sido elevados à condição de vilas
ou aldeias administradas por um diretor. Como já comentamos no capítulo 3, o Diretório foi
fundamental para tirar das mãos dos missionários o controle da mão de obra indígena, pois o
clérigo foi substituído por um funcionário a serviço da Coroa. Álvares Maciel parecia querer
fazer o mesmo nessa situação: eliminar a dependência que a Coroa tinha dos sobas e dos
capitães-mores para ter acesso à mão de obra. Os trabalhadores passariam ao controle direto
da administração colonial, sem intermediários.
Essa passagem é elucidativa de possíveis transformações que a instalação da
fábrica de Nova Oeiras pode ter causado nessa região. Isso porque em nenhum momento
Maciel cita sobas, ilamba, imbari ou quaisquer outras autoridades africanas a quem os
ferreiros poderiam estar submetidos. A figura mediadora e que poderia gerar algum conflito
era a do capitão-mor. É bem provável que, mesmo após o fechamento da fábrica, os ferreiros
112
Idem.
290
que ali se reuniram durante os anos de seu funcionamento tenham continuado a trabalhar em
sua vizinhança de forma independente. Aqueles que eram moradores dos sobados próximos
não retornaram para suas casas, como era comum depois das fugas ou “deserções”, registradas
nos documentos.
Como essa fonte permite entrever, alguns dos problemas enfrentados pelo
“administrador filósofo” anos antes continuavam presentes na época de Maciel. Tanto é assim
que o naturalista solicitava que os capitães-mores permanecessem fora da administração da
“aldeia”, que não obrigassem os ferreiros a trabalhar em outros serviços e que não lhes
tirassem mantimentos ou criações, reclamações frequentes quando da edificação de Nova
Oeiras. As medidas de Sousa Coutinho para reduzir o poder e a autonomia dos capitães-mores
no sertão não parecem ter surtido o efeito esperado ao longo do tempo.
José Álvares Maciel também solicitava que uma das regras das “aldeias” seria a
isenção dos dízimos dos ferreiros que produzissem uma quantia determinada de ferro. O
naturalista anotou que esse era um “privilégio que eles pres[avam] sobre todas as coisas e que
foi concedido em outro tempo à Fábrica de Oeiras”113. A preservação da memória de suas
conquistas era muito importante para os Ambundos, pois era a forma de negociar na condição
de vassalo com o seu soberano e os representantes da Coroa portuguesa. Os ferreiros da
Ilamba não esqueceram a isenção dos dízimos que seus antepassados haviam conquistado e
continuaram a reivindicá-lo ao longo do tempo.
Um exemplo do que foi dito acima é que, ao organizar a expedição de Maciel para
a Trombeta, o governador escreveu ao capitão-mor de Massangano com todas as
recomendações assinaladas pelo naturalista quanto a evitar maltratar os ferreiros e retirar à
força o ferro que não quisessem entregar ou vender. Em nenhum momento, Miguel de Melo
se referiu às autoridades africanas; ao contrário, mencionava apenas os “negros da Ilamba”,
que deviam ajudar o naturalista em troca de um jornal semanal, contratados de forma
independente114.
A ausência de referências à elite local centro-africana não significa que já não
existissem sobas influentes. Até porque, nas expedições de Maciel, os trabalhadores que
serviam no corte de lenhas, na fábrica de cal ou nas pedreiras eram chamados de “filhos” dos
sobas da região (ver anexo 5); apenas os ferreiros não aparecem com essa “filiação”. A
113
Carta de José Álvares Maciel para Miguel Antonio de Melo, governador de Angola. São Paulo de Assunção
de Luanda, primeiro de novembro de 1799. AHU_CU_001, Cx. 93A, D. 1.
114
Carta de Miguel Antonio de Melo, governador de Angola, para Pedro Muzzi de Barros, tenente do regimento
de infantaria e regente do Golungo. São Paulo de Assunção de Luanda, quatro de novembro de 1799. Arquivos
de Angola, v. IV, nº 52 a 54, 1939, p. 274-276.
291
presença portuguesa pouco mudou no intervalo de pouco mais de 20 anos que separa os dois
eventos tratados aqui. De fato, até ao menos 1880, os agentes coloniais dependiam fortemente
das alianças que estabeleceram, durante os séculos de ocupação, com as lideranças locais.
Em resumo, nos anos de 1800 e 1801, Maciel percorreu a Ilamba, instalando-se na
região e fez experiências em vários fornos de fundição, fabricando carvão e telha. Chegou a
edificar uma “casa de ensaio”, outra para residência dos pedreiros e ferreiros e uma para si.
Cerca de 134 trabalhadores participaram dessas viagens, “filhos” de 32 sobas e ilamba da
região115. Todos eram remunerados ou recebiam pagamentos em mercadorias comuns do
sertão, em jeribita ou cré (tecido fino). Maciel tinha grande dificuldade para controlar os
trabalhadores porque enquanto vigiava os das pedreiras, os que se ocupavam da fabricação do
carvão já tinham ido para suas sanzalas ou se encontravam todos sentados e sem interesse
pelo trabalho. Por isso, ele contabilizava só 70 pessoas que, efetivamente, estavam
empregadas nas lides cotidianas da extração do ferro116. Neste ponto, aprendemos um pouco
mais sobre as táticas dos Ambundos para escapar da imposição colonial de novas condições
de trabalho. Se em tese seria mais fácil fundar uma “Aldeia de pretos ferreiros”, na prática,
Maciel encontrou grande dificuldade em lidar com os trabalhadores Ambundos e seus líderes
nas suas viagens de prospecção.
Diferente do governador Francisco de Sousa Coutinho, José Álvares Maciel
desistiu do edifício de pedra e cal, do alto-forno, das grandes quantidades de ferro produzidas
diariamente. Enfim, um funcionário régio compreendeu que a única forma bem-sucedida de
resgatar ferro dos Ambundos era elaborar uma proposta que levasse em conta o processo de
trabalho, o modo de produzir ferro dos Ambundos, fazendo somente pequenas alterações; era
preciso respeitar suas ferramentas, suas técnicas, seu ritmo de trabalho, sua relação com a
família e dependentes. Pela primeira vez, um agente colonial analisou a história de Nova
Oeiras e descobriu que a única coisa que havia dado certo ali fora a “Casa da Fundição dos
Pretos”. Afinal, era justamente esse o projeto que ele queria retomar com a “Aldeia dos pretos
ferreiros”. A diferença eram as condições de trabalho: para o naturalista, ficara patente ser
preciso dar fim aos maus-tratos e ir acostumando os Ambundos aos poucos a um novo ritmo
de trabalho para que, em momento posterior, fossem empregados em uma grande fábrica,
115
José Álvares Maciel, “Relação dos sobas e ilamba que dão presentemente filhos para este trabalho”.
Trombeta, dois de março de 1800. BNP, C 8553, F6362.
116
Carta de José Álvares Maciel e Miguel Antonio de Melo, governador de Angola. Trombeta, dois de março de
1800. Arquivos de Angola, v. IV, nº 52 a 54, 1939, p. 283-290.
292
como Nova Oeiras fora planejada para ser. É preciso sublinhar que, mesmo com todos esses
ajustes, os trabalhadores Ambundos resistiram aos planos de Maciel.
O naturalista identificou várias “minas de maré”, que se esgotavam rapidamente, e
outras de maior longevidade: as de Canzengo, Gariabaile, Valereo, Sambaquiba, a Quiabala.
As minas ao redor de Nova Oeiras eram muito ricas, “acha-se à superfície da terra e não
contém nada de enxofre nem zinco, apenas se descobre algum quartzo intermisto (sic), e esse
muito pouco”117. Maciel descobriu o fundente para a mina, um agente que diminua a escória
no momento da fundição, ou seja, o que retirava as impurezas do metal. A substância era a
castina, ou o calcário, muito usado na fundição do ferro. Esses experimentos permitiram que
Maciel descobrisse como aperfeiçoar os métodos de extração do minério da Ilamba. Ainda
deixou uma relação com tudo o que seria necessário para a nova fábrica de ferro: desde
oficiais mecânicos especializados, passando por lavradores e mineiros (quatro escravos que
deveriam ser trazidos de Minas Gerais), ferramentas, barcos, livros, artigos de laboratório, até
a estrutura administrativa e fiscal da fábrica: almoxarife, escrivão, diretor, inspetor,
cirurgião118.
A investigação do doutor Maciel das minas da Ilamba e das técnicas dos ferreiros
que ali viviam foi minuciosa e rendeu uma documentação considerável que comprovava a
grande serventia do incentivo à extração do ferro em Angola119. Ainda assim, não obstante
seus esforços e os empenhos do governador de Angola e de Rodrigo de Sousa Coutinho, o
financiamento não veio. Miguel Antonio de Melo, em uma última tentativa, sugeriu que a
fábrica fosse entregue a negociantes particulares. O francês Francisco Agostinho Guilhebel
chegou a se interessar pela proposta120. Nívia Cirne atribuiu às desavenças entre D. Rodrigo e
117
Carta de José Álvares Maciel e Miguel Antonio de Melo, governador de Angola. Trombeta, dois de março de
1800. In: Arquivos de Angola, v. IV, nº 52 a 54, 1939, p. 283-290.
118
“Relação do que se necessita e neste reino falta absolutamente para se poder dar princípio à fundição de uma
fábrica de ferro”. José Álvares Maciel, São Paulo de Assunção de Luanda, dois de abril de 1801. In: Arquivos de
Angola, v. IV, nº 52 a 54, 1939, p. 339-345.
119
Uma nova viagem foi feita para apurar as informações de Maciel. O major e ajudante de ordens, Antonio
Salinas de Benevides, percorreu a região da Ilamba logo em seguida e acabou por considerar o Cathari, também
no Golungo, um lugar mais apropriado para a instalação de uma fundição: “este lugar mais afastado que Oeiras
légua e meia do rio Lukala ganha na salubridade pois que se desvia outro tanto das lagoas do Lembo, quanto
perde no afastamento do rio pelo qual se hão de fazer as exportações”. Carta de Antonio Salinas de Benavides
para Miguel Antonio de Melo, governador de Angola. São Paulo de Assunção de Luanda, 15de novembro de
1800. In: Arquivos de Angola, v. IV, nº 52, 1939, p. 323.
120
“Francisco Agostinho Guilhebel, francês de origem e nascimento, porém casado com uma portuguesa e
estabelecido em Tornegal ainda em outro tempo teve uma Fábrica de Botões e no ano de 1796 tratava de lavoura
e comércio, assistindo a tesouro Velho junto à Casa de Parte do Izidoro pedindo-lhe notícias do sítio, da riqueza
das minas e das facilidades que haveria para estabelecer a fábrica. As referidas perguntas, respondeu o dito
Sargento-mor circunstanciadamente, depois que se recolheu a diligência de que o encarreguei remetendo ao
mencionado Francisco Agostinho Guilhebel amostra da Mina e encarregando da entrega e da carta que lhe
enviou o chefe da divisão Joaquim José Monteiro Torres quando nos fins do ano passado daqui saiu na Nau
293
Medusa para este Reino com escala pelo Rio de Janeiro”. Carta de Miguel Antonio de Melo, governador de
Angola, para Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Luanda,
31 de janeiro de 1801. AHU_CU_001, Cx. 98, D. 50.
121
Nívia Pombo Cirne dos Santos, O Palácio de Queluz e o mundo ultramarino: circuitos Ilustrados. (Portugal,
Brasil e Angola, 1796-1803), p. 340.
122
Carta de Fernando Antonio de Noronha, governador de Angola, para João Rodrigues de Sá e Mello de
Menezes e Sottomayor, Visconde de Anadia, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de
Assunção de Luanda, 15 de março de 1804. In: Arquivos de Angola, v. IV, v. IV, nº 52 a 54, 1939, p. 347 e 348.
123
Carta de Antonio Saldanha da Gama, governador de Angola, para o capitão do Golungo. São Paulo de
Assunção de Luanda, 14 de setembro de 1807. AHA, Códice 322, D - 2 – 5. Carta de Antonio Saldanha da
Gama, governador de Angola, para João Rodrigues de Sá e Mello de Menezes e Sottomayor, Visconde de
Anadia, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. São Paulo de Assunção de Luanda, 14 de janeiro de
1801. AHU_CU_001, Cx. 119, D. 1.
294
126
História de Angola. Centro de Estudos Angolanos. 2ª ed. Porto: Edições Afrontamento, 1975. Publicada
inicialmente em Argel, em julho de 1965, pelo Centro de Estudos Angolanos, Grupo de Trabalho História e
Etnologia, p. 107-109.
296
127
J. Mimoso Barreto, “Sousa Coutinho, percursor da abolição da escravatura”. In: Boletim da Sociedade de
Geografia de Lisboa, Série 102, nº 1-6, 1984, p. 69-77. “Perante a nódoa da escravatura, não devemos alimentar
um complexo de culpa, porque o sistema já existia no mundo, antes de o adotarmos, e, após o havermos abolido
continuou a existir, noutros lugares. Pertence-nos, de tal culpa, apenas uma parcela, por sinal a menos dolorosa,
que não ofusca o progresso polivalente proporcionado pelos Descobrimentos à humanidade”. Idem, p. 76
128
David Birmingham, Trade and conflict in Angola. The Mbundu and their neighbours under the influence of
the Portuguese 1483-1790. Oxford: Clarendon Press, 1966, p. 157 e 158.
129
António da Silva Rego, “A Academia Portuguesa da História e o II Centenário da Fábrica do Ferro de Nova
Oeiras, Angola”. In: Colectânea de Estudos em Honra do Prof Doutor Damião Peres, Lisboa, Academia
Portuguesa da História, 1974, p.387-398.
297
contradições das ideias desse Ilustrado ao tentar efetivá-las em Angola. No mesmo sentido
desse estudo, Monica Tovo Machado Soares, procurou analisar os “aspectos da ideologia
colonialista” dos estudos anteriores, dando relevo à “resistência nativa no período”. Nas duas
dissertações há muitas anotações sobre a importância da mão de obra africana no contexto da
fábrica de ferro, porém a análise pende para a reiteração da narrativa do fracasso. O fracasso
é atribuído por essas autoras à falta de materiais, técnicos especializados europeus e ao
insucesso na mobilização da mão de obra africana130.
Catarina Madeira Santos escreveu uma densa análise sobre o período em questão.
Quanto à fábrica, analisada por ela como um estudo de caso, a autora também retoma sua
breve história e afirma a relevância dos fundidores e ferreiros como ofícios tradicionais, sem
os quais Nova Oeiras não subsistiria. A fábrica para Santos é “um contraste ‘rude’ entre uma
leitura científica e uma leitura ritual e política” do impacto do Iluminismo em Angola. Como
seu ponto de vista é a história cultural do encontro entre “a técnica e a magia, as Luzes do
cientismo e os saberes tradicionais africanos”, ela acaba reiterando a versão do “fracasso desta
primeira industrialização em Angola”131. A autora explica que o fracasso se relaciona de
forma direta às sucessivas mortes dos mestres fundidores.
Por mais que a historiografia mais recente reitere a importância dos ferreiros e
fundidores da Ilamba, sua participação na fábrica é relacionada a um ofício que por ser
tradicional pertence a outros padrões econômicos, portanto é sempre visto fora da fábrica. Por
exemplo, esses estudos não trazem a dimensão sistemática, organizada, ritmada, concreta da
“Casa da Fundição dos Pretos” ou da “Aldeia dos pretos ferreiros”. Talvez por isso retomem a
narrativa do fracasso, ainda que sob outras perspectivas.
Recentemente, em uma publicação angolana sobre a cidade do Dondo, o fracasso,
o abandono e o “deserto” dão mais uma vez o tom da narrativa. Algo importante é posto em
relevo neste livro, mas se perde na construção do argumento:
“A fábrica de Nova Oeiras permanece no silêncio à espera que um dia o
esforço dos mineiros de Massangano, da Ilamba, dos brasileiros e dos
biscainhos e de todos os que contribuíram para que da fundição jorrasse
130
Ana Madalena Trigo de Sousa, D. Francisco de Sousa Coutinho em Angola: Reinterpretação de um Governo
1764-1772. Dissertação (Mestrado em História). Funchal / Lisboa: Universidade de Nova Lisboa, 1996. Ver
também: Ana Madalena Trigo de Sousa, “Uma tentativa de fomento industrial na Angola setecentista: a “Fábrica
do Ferro” de Nova Oeiras (1766-2772)”. Africana Studia, n. 10, 2007, p. 291-308. Mônica Tovo Soares
Machado, Angola No Período Pombalino: O Governo De Dom Francisco Inocêncio De Sousa Coutinho – 1764-
1772. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras E Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, 1998.
131
Catarina Madeira Santos, Um governo "polido" para Angola, p. 547.
298
132
Alexandra Aparício, Rosa Cruz e Silva e Honoré Mbunga, A cidade do Dondo e o seu desenvolvimento
econômico: aportes para a sua história. Luanda: Arquivo Nacional de Angola, Ministério da Cultura, 2015, p.
32.
299
século XVIII, mas nós temos. Quando detalhamos a produção de ferro africana, a partir dos
estudos de Colleen Kriger, tal concepção se mostra completamente equivocada. O ferro
produzido na Ilamba era de alta qualidade, tão útil e, em certos casos, mais que o importado
da Europa.
Nesta tese, a produção de ferro em Ilamba não malogrou e de forma alguma
celebramos o colonialismo. Primeiramente, como uma fábrica que produziu, durante sete anos
consecutivos, 40 quintais por mês, provendo os arsenais de Luanda, os utensílios necessários
no sertão, e enviando ferro para Lisboa (só em remessas foram mais de 60 t), Índia (ao menos
uma vez) e para o Brasil pode ser considerada um fracasso? Novo Belém, por sua curta
duração esquecida pela historiografia, e Nova Oeiras foram produtivas: muitos quintais de
ferro e aço foram ali fabricados e muitas ferramentas forjadas. O governador Ilustrado voltou
para Lisboa e essa produção de ferro e ferramentas permaneceu.
Há, portanto, uma dupla questão a ser explicada: é preciso entender a razão dessas
iniciativas bem-sucedidas e os motivos de sua negação pela historiografia.
Se, por um lado, alguns autores que citamos consideraram a importância dos
fundidores e ferreiros da Ilamba para os planos coloniais, por outro, não chegaram a propor
outra interpretação. Por certo a fábrica de pedra e cal foi abandonada, não chegou a funcionar.
A “mais pequena” (sic), porém, a “Casa da Fundição dos Pretos”, não parou. Os ferreiros,
fundidores e sobas deliberadamente, dentro do que lhes era possível, não colaboraram com os
projetos coloniais.
Certamente, Sousa Coutinho não conseguiu “reconfigurar”, “reconverter” um
ofício tradicional em uma manufatura à europeia, como disse Catarina Santos. Pode-se
também dizer que a “iniciativa estatal” ficou “refém das competências de uma casta, cujas
razões de ação se situavam no plano do sagrado”133. Mas é preciso ir além da resistência mais
imediata às iniciativas do governador Ilustrado. O conceito de resistência é fulcral aqui, mas é
preciso evitar o perigo de a “resistência se unir ao projeto foucaultiano de exploração do
poder em todas as suas variações, subterfúgios e disseminações”134.
Dito de outro modo, os ferreiros e fundidores da Ilamba não resistiram apenas,
como reação a uma iniciativa externa. A produção de ferro, confecção e comercialização de
objetos era um ramo de longa data na região. Uma indústria e comércio que foram planejados,
que eram controlados e tinham suas dinâmicas próprias e antecediam a presença colonial.
Nova Oeiras foi um capítulo breve dessa história maior, os ferreiros e fundidores da Ilamba
133
Idem, ibidem.
134
Michael F. Brown, “On resisting resistance”. American Anthropologist, New Series, v. 98, n 4, 1996, p.729.
300
continuaram a fazer o que durante gerações vinham executando. Na verdade, fizeram mais
que isso, inventaram novos ofícios, se adaptaram às novas rotas comercias e demandas
inauguradas pela intensificação do tráfico de escravos.
O que tentamos mostrar aqui é que assim como Sousa Coutinho planejou Nova
Oeiras, os africanos, na Ilamba, também planejaram suas ações. Não podemos interpretá-las
apenas como reações às investidas coloniais de exploração. As narrativas sobre as pessoas que
serviram na “Casa da Fundição dos Pretos” são antigas, perpassam o período de
funcionamento da fábrica de pedra e cal e sobreviveram a ela. De fato, os ferreiros e
fundidores Ambundos resistiram. As estratégias que usaram para manter o ofício tradicional
que lhes conferia prestígio e poder foram longamente descritas nesta tese: eles fugiram,
fizeram corpo mole, recusaram o ritmo do alto-forno que lhes tirava a “liberdade” da
itinerância, como o naturalista Maciel apontou. Todavia, também construíram uma relação
complexa, por dentro do plano colonial, trabalhando na fábrica, ora colaborando para a
produção do ferro, ora sabotando Nova Oeiras.
A ideia de Maciel de instalar uma “Aldeia dos pretos ferreiros” surgiu após sua
incursão pelos sertões, quando pode conhecer mais de perto os anseios e reivindicações dos
Ambundos diante da construção da fábrica. Os ferreiros da Ilamba impuseram uma condição
para trabalhar ali: que a isenção dos dízimos conquistada anos antes pelos sobas que
enviavam seus dependentes para Nova Oeiras também valessem para eles. A lógica se inverte
mais uma vez: não foi o “governo polido” que propôs a isenção dos dízimos em troca do
trabalho dos sobas que serviam na fábrica, antes foram as autoridades africanas que elaboram
a proposta e negociaram com o governador nos seus termos. Maciel deixa bem claro que o
requerimento da isenção de tributos veio dos ferreiros.
A mesma reivindicação pode ser encontrada anos depois. Os sobas de
Massangano, a partir de 1808, se obrigaram a entregar seis libras de ferro por “fogo” (família,
moradia) de seus sobados, com a condição de serem dispensados de pagar os dízimos135. O
episódio gerou conflitos com seus dependentes ferreiros e fundidores, pois alguns anos
depois, em 1813, os “pretos ferreiros e fundidores” dos sobas anexos ao presídio de
Massangano encontravam-se “refugiados” nas terras de outros sobas “por fugirem do trabalho
a que se dev[iam] aplicar”136. Os trabalhadores especializados sob comando dos sobas
135
Carta ao regente da Vila de Massangano. São Paulo de Assunção de Luanda, oito de julho de 1808. AHA,
Cód. 91, fl. 97v.
136
Carta de José de Oliveira Barbosa, governador de Angola, para Manuel Antonio da Silva, capitão-mor de
Ambaca. São Paulo de Assunção de Luanda, 16 de novembro de 1813. AHA, Códice 92, A-20-2.
301
continuaram a encontrar maneiras de proteger seu ofício, seu produto, seu lucro. A obrigação
de entregar as quantias estipuladas pode ter pesado muito sobre os ferreiros. As seis libras por
“fogo” (2,76 kg) podiam ser uma quantidade exacerbada se lembrarmos que cada fundição
resultava em média em de duas a quatro libras. Para um sobado com 100 fogos seria preciso
proceder no mínimo a 150 fundições em um mês para atingir o volume a ser entregue. Isso
sem contar o que precisassem produziam para suprir as necessidades básicas do sobado: para
a agricultura, para a guerra, para os rituais, para os adornos.
Havia os artesãos que trabalhavam de forma independente, vendendo diretamente
para o governo de Luanda. Em 1830, José Almeida e Vasconcelos, então governador,
rememorou as grandes despesas feitas com a fábrica de ferro, que estava em completa ruína:
“o edifício e a máquinas tudo está reduzido a uma perfeita nulidade; o açude e o canal por
onde se derivava a água para a Fábrica estão demolidos”. Ele relata que, naquele momento,
havia na Trombeta (Golungo) um “coberto”, possivelmente um prédio simples, onde “os
pretos que estão obrigados por um contrato a pagarem o dízimo em barras que têm sido
remetidas ao Arsenal Real da Marinha que fica nesta cidade, pelo preço de vinte e cinco réis
cada arrátel [ou libra]”.
Tudo indica que, no fim, a ideia de Maciel fora posta parcialmente em prática. O
ferro, segundo ele, era fabricado “com a maior ignorância e só por uma mal pensada rotina”,
como ferramentas muito simples:
“sem fornos que os substituem por covas na terra, sem foles que em lugar se
servem de uma pele de onça cheia de vento, e que para o expelir lhe ar dão
um bico de barro que aplicam ao lugar que se dar a incendiar para extraírem
o ferro, aonde está um carvão por eles feito debaixo dos mesmos
conhecimentos”137.
E os relatos sobre a “Aldeia dos pretos ferreiros” e congêneres não acabam por
aqui. Em suas memórias (1838), o militar Fortunato de Melo (1797-1853) anotou que no
distrito de Golungo havia “uma pequena fábrica em que se apuram oito barras de ferro por dia
de mais de nove polegadas de comprimento cada uma”138. Em 1840, houve uma iniciativa de
comerciantes em Lisboa de mais uma vez tentar explorar aquelas minas, mas não tiveram
137
Carta de José Maria de Sousa Macedo Almeida e Vasconcelos, governador de Angola, para Nuno Caetano
Álvares Pereira de Melo, ministro assistente ao despacho. Luanda, seis de dezembro de 1830. IHGB – PADAB,
DL76,02.35.
138
Fortunato de Melo, Memória sobre Angola, que foi publicada no Periódico dos pobres de Lisboa, de 17 de
agosto de 1838. Apud José Joaquim Lopes de Lima, Ensaios sobre as possessões portuguezas na África
Ocidental e Oriental, Ásia Ocidental, China e Oceania. Lisboa: Imprensa Nacional, 1844, p. 23
302
sucesso139. Em 1866, foram enviadas 10 barras de ferro de “extração nativa” para o governo
de Luanda das minas da Trombeta e de Zenza do Gulungo Alto140.
Por detrás da narrativa permeada de um discurso depreciativo, é possível
identificar as mesmas ferramentas descritas nas notas do naturalista Maciel. A persistência de
um ofício tradicional, trabalhando “segundo os seus ritos”, como vemos no soba que
construiu o forno para o mineralogista, depois de todas essas tentativas de desagregação de
técnicas, de ritmo de trabalho, de um modo de vida, é o que encontramos na leitura destes
excertos.
139
Idem, Ibidem.
140
Boletim Oficial do Governo Geral da Província d’Angola. n. 28, nove de julho de 1866, Luanda, Imprensa do
governo.
303
PALAVRAS FINAIS
1
“O termo ‘tradição inventada’ é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as ‘tradições’
realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais
difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo”. Seria um “conjunto de práticas, normalmente
reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar
certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma
continuidade em relação ao passado”. Eric Hobsbawm e Terence Ranger (orgs.). A invenção das tradições. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 9.
304
Esse é um tema que merece ser abordado com mais vagar do que nos propomos
aqui. O campo de estudos sobre o trabalho livre, obrigatório, penal, compelido, em Angola,
nos séculos XVI a XVIII é uma área bem pouco explorada pela historiografia, que geralmente
aborda esses temas nos séculos XIX e XX. Isso se justifica pela escassez de fontes, porém
esta tese pretende ser um exemplo de como reler uma documentação oficial e procurar nas
entrelinhas, nos subtextos e nas ambiguidades, e reconstruir a história dos trabalhadores.
Ainda está por ser feita uma análise que perscrute, desde a conquista, os acordos políticos, os
conflitos envolvendo os “filhos” dos sobas vassalos, as formas de escravização, o trabalho
prestado junto às missões, aos presídios e o recrutamento de trabalhadores junto às obras
reais. Fora o estatuto dos Axiluanda, descrito pelo governador, ou seja, seu castigo de
servirem por módicos salários por terem apoiado os holandeses quando da invasão holandesa
no Reino de Angola. Outra história ainda por contar.
Os assuntos tratados no segundo capítulo delineiam uma história de
transformações, envolvendo o choque entre o gesto colonial e os interesses de moradores,
sobas e ilamba, literalmente, no terreno. A iniciativa colonial ocupou parte da região da
Ilamba, fundando as povoações de Novo Belém e Nova Oeiras, assim como, na América
portuguesa, estabeleciam-se novas vilas como Bragança, Oeiras e Ourém. Os nomes eram
portugueses, de acordo com o projeto “civilizador”, para transformar aldeias, banzas, libatas,
palhoças em núcleos de colonização. A historiografia sobre as povoações civis pouco trata das
vilas planejadas para o norte do Kwanza; o enfoque maior recaí sobre as fundadas no Reino
de Benguela2. As vilas que receberam as fundições de ferro tiveram uma história curta, é
verdade; de Belém restaram poucos relatos. Contudo, 168 pessoas, entre europeus, brasílicos
e locais, no mínimo, foram enviadas para formar as povoações, sem contar as famílias de
Massangano que migraram para Oeiras. Além de toda a estrutura física da fábrica de ferro,
153 casas formavam o núcleo de moradores composto por soldados, degredados, mulheres
“brancas”, homens “brancos” ou “quase brancos” e uma multidão de Ambundos que sequer
foi contada.
O projeto arquitetônico da fábrica de ferro contou com a colaboração de
engenheiros formados pela Aula de Geometria que Sousa Coutinho restaurou, em Luanda, e
2
Catarina Madeira Santos menciona e descreve brevemente as povoações de Novo Belém e Nova Oeiras, porém,
assim como outros autores, dá muito mais espaço em sua tese das as povoações a sul do Kwanza. Catarina
Madeira Santos. Um governo "polido" para Angola. Reconfigurar dispositivos de domínio (1750- c.1800). Tese
(Doutorado em História), Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa,
2005; Mariana P. Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela and its hinterland. New
York: Cambridge University Press, 2013, p. 175-185; Flávia Maria de Carvalho, Sobas e homens do rei:
interiorização dos portugueses em Angola (séculos XVII e XVIII). Maceió: Edufal, 2015.
305
3
Kristen Windmuller analisa como, na Etiópia, etíopes, indianos e egípcios projetaram e construíram templos
católicos, mesclando padrões europeus com a arquitetura etíope. Kristen D. Windmuller-Luna, Building Faith:
Ethiopian Art and Architecture During the Jesuit Interlude, 1557-1632. Tese (Doutorado) - Princeton
University, 2016. Para Vila Rica e Mariana setecentistas, Fabiano Gomes da Silva consegue mapear as técnicas
africanas e tópicos estilísticos pela forma como são usadas na confecção de carrancas, que assumem traços e
símbolos das culturas da África Centro-Ocidental. Fabiano Gomes da Silva, Pedra e Cal, os construtores em
Vila Rica no século XVIII (1730-1800), Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2007.
306
4
Mary Louise Pratt, Imperial Eyes: Travel Writing and Transculturation. Nova York: Routledge, 2008, p. 7 e 8.
Segui a indicação de leitura de Robert Slenes em resenha do livro Cross-cultural Exchange in the Atlantic
World. Angola and Brazil during the Era of the Slave Trade, de Roquinaldo Ferreira. Robert Slenes, “Trocas
culturais no ‘rio Atlântico’: Angola no auge do trato de escravos”. Afro-Ásia, 49, 2014, p. 365-378.
Transculturação foi um termo cunhado por Fernando Ortiz para descrever a cultura afro-cubana. Fernando Ortiz,
Contrapunteo cubano [1947, 1963]. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1978.
307
6
Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World. Angola and Brazil during the Era of the
Slave Trade. New York: Cambridge University Press, 2012; Mariana P. Candido, An African Slaving Port and
the Atlantic World, 2013.
7
Talvez esses homens de ofício sofressem do que conhecemos hoje como doenças pulmonares ocupacionais,
causadas por inalação de poeiras inorgânicas e que se manifestam como doenças intersticiais pulmonares.
Eduardo Algranti, “Poluição e doenças ocupacionais pulmonares”, Jornal de Pneumologia, Brasília, v.25, n. 5,
1999, p. 241-244.
309
O ritmo de trabalho nas fábricas, imposto por um sistema que queria disciplinar os
africanos, foi em muitos aspectos recusado, sobretudo, pelos artesãos do ferro. Acima de tudo,
eles rejeitaram a ferraria hidráulica, o alto forno e tudo o que essas “inovações” implicariam:
a redução do número de mestres ferreiros e fundidores, a produção ininterrupta (sem a parada
nos meses depois do cacimbo), o aumento do tempo nas fábricas e não junto às famílias, a
dessacralização de seu ofício, com o fim da exclusividade e do segredo - já que o plano do
governador era formar uma grande oficina de aprendizes. Resistiram para defender um oficio
tradicional que conferia prestígio social, econômico, religioso a quem o exercia. Além disso,
os rituais que ferreiros realizavam nas cerimônias e as insígnias que produziam eram fatores
estruturantes da sociedade Ambunda.
Frederick Cooper descreve como, no período pós-emancipação, os europeus
tiveram de respeitar, de certa forma, os ritmos locais de trabalho para continuar a explorar a
mão de obra local. Fizeram isso aderindo às práticas de trabalho próprias dos africanos e por
meio da manutenção das autoridades culturalmente estabelecidas. Esse conjunto de
características conformavam a ideia da “peculiaridade do africano”, desenvolvida no final do
século XVIII e início do XIX, ou seja, os hábitos de trabalho que lhe eram peculiares8. A
“Casa da Fundição dos Pretos” é um exemplo de um período anterior desse mesmo embate de
forças. Para continuar a ter ferro com um preço mais barato que o produto europeu, as
autoridades coloniais tiveram que aceitar que ele fosse produzido à moda centro-africana.
Passaram a resgatar o ferro dos Ambundos como faziam com o marfim. Os ferreiros e
fundidores entregavam, mediante pagamento, as barras de ferro produzidas sem a
interferência externa no processo e organização do trabalho. Foi assim que a fábrica de Nova
Oeiras produziu ferro na segunda metade do século XVIII. Ainda assim, o projeto só se
estabeleceu pela garantia da isenção dos dízimos tanto para os ferreiros e fundidores volantes,
quanto para os sobas que passaram a entregar o ferro em lugar do imposto.
O tráfico de escravos foi um elemento fundamental nas mudanças que os ofícios
de ferreiro e fundidor sofreram ao longo do tempo. A alta demanda por libambos, algemas,
prisões, enxadas, machados, pregos, facas, armas brancas de todo tipo alterou a organização
do trabalho ligado à produção desses instrumentos. Alguns objetos, como o sino duplo ou a
malunga, quando usados no contexto colonial perderam muito de seu valor sagrado. O mesmo
pode ter acontecido quanto à sacralidade do ofício. Isso teria levado muitos aprendizes,
mestres menos poderosos e ferreiros capturados em razias a trabalharem para os sobas que
8
Frederick Cooper, Thomas C. Holt, Rebecca Scott. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e
cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
310
protetores e cingiam o forno com pemba para assegurar uma boa fundição. Conheciam os
seixos das rochas, escolhendo as mais ferruginosas, e as árvores apropriadas ao carvão,
procedendo a poda de modo a estimular a renovação das ramas. As fundições levavam dias.
Pedro Manoel fabricava um excelente ferro que era trabalhado na forja do ferreiro. Qual era o
segredo? Depois de cansá-lo, leitor, com essas centenas de páginas e de termos apenas
vislumbrado o que acontecia em um forno de fundição de um pulungu, no Setecentos, devo
admitir: muito da prática de Pedro permanece como um saber secreto, impermeável às
investidas desta pesquisadora. Mas isso não deveria nos surpreender, afinal, parece que era
isso mesmo que ele queria.
*
* *
Fonte: Placa nas proximidades da Fábrica de Ferro de Nova Oeiras, no Dondo. Acervo da autora, outubro de
2015.
“No Bicentenário da fundação da Real Fábrica do Ferro de Nova Oeiras mandada erigir pelo governador Sousa
Coutinho presta a nação na pessoa de sua excelência o governador geral do Estado de Angola, Engenheiro
Fernando Augusto Santos e Castro. Homenagem ao gênio e vontade do povo português”. 1772-1972. Nova
Oeiras, 29 de setembro de 1973.
10
Projeto e site que tem por objetivo catalogar o patrimônio de origem portuguesa no mundo:
http://www.hpip.org/def/pt/AcercaDoHPIP/ApresentacaodoPortal.
313
Nela lemos “Patrimônio Histórico Cultural Nacional”. Ao que parece, com a independência, a
fábrica foi nacionalizada e deixou de ser um trunfo da colonização portuguesa para ser
expressão da cultura da jovem nação.
Fonte: Placa na parede de um dos armazéns da Fábrica de Ferro de Nova Oeiras, no Dondo. Acervo da autora,
outubro de 2015.
Obs.: A placa não traz a data em que foi afixada. A data de 28 de maio de 1923 é da portaria que identifica Nova
Oeiras como patrimônio histórico. Nota-se que a descrição diz erroneamente que os edifícios são do século
XVII.
Não é só por meio de placas que o significado da Real Fábrica de Ferro está em
disputa. Como vimos, para muitos historiadores, a fábrica não deixou de ser analisada como
um exemplo máximo da administração Ilustrada em Angola. Ela assinala o ápice dos
desígnios pombalinos de promoção da manufatura, da política de aproveitamento das
potencialidades naturais e do conhecimento dos centro-africanos, da implementação de
núcleos de colonização. Sem dúvida, Nova Oeiras representou todo o empenho que competia
a um administrador do século das Luzes.
No entanto, na concretude da situação colonial, diante das dificuldades de
implantação dos planos pombalinos, a fábrica de ferro foi um expoente das contradições
daquele projeto de governo. Afinal, Angola continuou a ter no fornecimento de escravos para
a América sua principal função econômica no Império português. O projeto colonial de
interiorização do domínio colonial que se pretendeu implantar na segunda metade do século
XVIII quis consolidar os tratados políticos com as autoridades africanas, conquistar novas
chefias, garantir a proteção dos vassalos - sobas, ilamba e imbari e seus dependentes - e a
manutenção dos interesses dos comerciantes de escravos. Ora, esses interesses são
inconciliáveis11. A fabricação de ferro em Nova Oeiras é bem um emblema disso: quando a
“Casa da Fundição dos Pretos” produziu ferro para ser exportado, os negociantes reclamaram
11
Mariana Candido, An African Slaving Port, capítulo 3.
314
12
João Monteiro de Moraes, “Resposta que um sujeito do Brasil deu ao outro de Angola, sobre a Fábrica do
Ferro”, s/l, s/d. BNP, MSS, Cx. 246, n. 22.
13
Isabel de Castro Henriques, “Presenças angolanas nos documentos escritos portugueses”. In: Actas do II
Seminário Internacional sobre a História de Angola. Construindo o passado angolano: as fontes e a sua
interpretação. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 31.
14
Frederick Cooper observou a mesma dinâmica nos circuitos de prostituição analisados por Luise White, em
Nairobi. Frederick Cooper, “Conflito e conexão: repensando a história colonial da África”. Anos 90, v. 15, n. 27,
315
p. 43; Luise White, The Comforts of Home: prostitution in colonial Nairobi. Chicago: University of Chicago
Press, 1990.
316
Fontes e Bibliografia
FONTES
FONTES MANUSCRITAS
Avulsos - Reino (AHU_CU_Reino): Cx. 4A, Doc. 51; Cx. 8A, Doc. 35; Cx. 25, Doc. 31; Cx.
19-A, Doc. 32; Cx. 19-A, Doc. 34; Cx. 19-A, Doc. 8; Cx. 27, Doc. 27; Cx. 220, Doc. 61
Cartografia:
855
A pesquisa nos avulsos de Angola do AHU ocorreu de fevereiro a junho de 2015. Os avulsos têm passado por
uma reorganização, então é muito provável que a numeração das caixas e documentos anotados já esteja
desatualizada, sendo necessário consultar tabelas de conversão.
317
Iconografia:
“Vista do rio Lukala tirada do sítio de Xiquina na foz do rio Luinha”, 1855. Assinado por:
Jacinto de Gouvea Leal. AHU_ICONm_001_I, D.469.
Alçado da Planta da Fábrica de Fundição de Ferro em Oeiras, Distrito do Cazengo, 1855.
Assinado por: Jacinto de Gouvea Leal. AHU_ICONm_001_I, D.470.
“Vista da Fábrica de Fundição de Ferro em Oeiras”, 1855. Assinado por: Jacinto de Gouvea
Leal. AHU_ICONm_001_I, D.470
“Ritare Tambungo ou Pedras de Bungo. Fim da navegação do rio Lukala”, 1855. Assinado
por: Jacinto de Gouvea Leal. AHU_ICONm_001_I, D.471
Ministério do Reino: Maço 600, caixa 703, doc. 25; doc. 101; doc. 106.
Projeto Reencontro
Morgado Mateus: microfilmes 12 e 18.
Fundação Biblioteca Nacional (RJ): microfilmes MF0027; MF0035
Projeto Reencontro: microfilme 131
Manuscritos:
Coleção Pombalina:- PBA 122
Avulsos: Caixa 246, n. 22, Caixa 250, n. 71, Caixa 261, n 25.
Noticia e mappa da nova villa de Oeiras no Reino de Angola, e noticia, e planta da casa, e
engenhos para a fabrica de ferro do mesmo Reino. - Feita em o anno de 1776. - [1], [4] f., 2
mapas il. desdobr., enc. ; 34 cm. Cota do exemplar digitalizado: cod-13424 (disponível
integralmente em: http://purl.pt/24075)
“Notícia da fábrica do ferro de Nova Oeiras do Reino de Angola”, São Paulo de Assunção de
Luanda, 15 de dezembro de 1797, [p. 8]. ER, 4196.
Nova Teoria fundada em um grande número de experiências por Monsieur Bellidor que ao
Ilmo. e Exmo. Snr. Conde de Oeiras do Concelho de Estado de Sua Majestade Fidelíssima, e
seu secretário de Estado. PT/AHM/DIV/4/1/07/22
Viagem que eu Sargento-mor dos moradores do Destrito do Dande diz às remotas partes de
Cassange, no ano de 1755 thé o seguinte de 1756, 2ª Divisão, 2ª secção, Cx. 1, nº 6.
“Carta Topográfica da Província que fornece Águas, Lenhas, e Serventes à Fabricado Ferro da Nova
Oeiras que mandou fazer o Ilmo. Exmo. Senhor D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho
Governador e Capitão General do Reino de Angola, ano 1769”. Manuel Antonio Tavares, [Angola],
1769”. 1 mapa ms.: papel, color.: 66x117 cm.
“Diário ou relação das viagens filosóficas que por Ordem de Sua Majestade Fidelíssima tem feito nas
Terras da Jurisdição da Vila de Tete, e em algumas dos Maraves”. Manuel Galvão da Silva, 1788.
Manuscritos Azuis, 1011
“Viagens filosóficas ou Dissertação sobre as importantes regras que o Filósofo Naturalista nas suas
peregrinações deve principalmente observar”, 1779. Manuscritos Vermelhos, 405.
"Tratado das queixas endêmicas e fatais nesta conquista". "Direção para prevenir e remediar
as doenças destes vastíssimos países de Angola e Benguela sujeitos à grande Monarquia
portuguesa e famosíssimo Teatro das Hérvicas ações e incomparável Governo do Ilmo.
Exmo. Snr. Dr. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, seu atual governador e Capitão
General".1770. Ms. 1369
Mapas:
The Western Cost of Africa; from Cape Blanco to Cape Virga; Exhibiting Senegambia
proper by T. Jefferys.1730. BPMP_C-M&A-Pasta25(42)_01
Mapa Hidro-Geográfico da Costa Ocidental da África. Desenhado pelo Tenente Coronel Luís
Candido Cordeiro Pinheiro. 1791. BPMP_C-M&A-Pasta 24(16)_01
Mapa Hidro-Geográfico da Costa Ocidental da África. Desenhado pelo Tenente Coronel Luís
Candido Cordeiro Pinheiro. Cópia posterior. 1791. BPMP_C-M&A-Pasta 24(17)
Mapa Hidro-Geográfico da Costa Ocidental da África. Desenhado pelo Tenente Coronel Luís
Candido Cordeiro Pinheiro. Cópia posterior. 1791. BPMP_C-M&A-Pasta 24(17)_a e b
Mapa Geográfico da Costa Ocidental da África. Desenhado por Justino José de Andrade.
1796. BPMP_C-M&A-Pasta24(18)_01
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Glossário
Futa: do kimbundu mfuta, pagar. “Em kikongo nfuta é dádiva, oferta que o inferior dá a
seu superior em demonstração que o reconhece por superior, a modo de um caseiro ao
senhorio; presente oferecido voluntariamente a um superior em testemunho da sua
dedicação”. Beatrix Heintze, Fontes para a História de Angola do século XVII.
Memórias, relações e outros manuscritos da coletânea documental de Fernão Sousa
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Makota: plural de kota. Beatrix Heintze por meio da análise de fontes do século XVII
traz a definição de kota como “o mais velho de uma linhagem, conselheiro dos sobas
dos Mbundu e do rei do Ndongo”. Beatrix Heintze, Fontes para a História de Angola
do século XVII, p. 120.
Soba: Eram os chefes locais sob domínio de reis africanos ou do rei de Portugal quando
se tornavam vassalos da Coroa portuguesa. Beatrix Heintze, Fontes para a História de
Angola do século XVII. Memórias, relações e outros manuscritos da coletânea
documental de Fernão Sousa (1622-1635). Stuttgart: Steiner-Verlag-Wiesbaden-Gmbh,
1985, p. 127. Segundo Vansina, são aqueles que ocupavam posições de liderança dos
“chefados monocefálicos” (monocephalic chiefdom), que seriam os sobados. Jan
Vansina, How societies are born: governance in West Central Africa before 1600.
Charlottesville: University of Virginia Press, 2004, p.196.
Vestir: uma maneira de impor troca forçada, introduzida pelos portugueses para pedir
peças aos sobas. Aida Freudenthal, Selma Pantoja (ed.). Livro dos Baculamentos: que
os sobas deste Reino de Angola pagam a Sua Majestade (1630). Luanda: Ministério da
Cultura e Arquivo Nacional de Angola, 2013, p. 44.
341
ANEXOS
Fonte “Mapa geográfico compreendendo a Costa Ocidental d’África entre 5 e 19 graus de latitude Sul, e no continente, o
estado atual dos Reinos d’Angola e Benguela, com todos os estabelecimentos portugueses dispersos pela Costa e interior
daqueles sertões: notadas todas povoações de negros do país, que são vassalos, aliados e inimigos do domínio português, até
aos últimos confins conhecidos que fornecem objetos à exportação Nacional. Em que foram corrigidas as posições e
ortografia das antecedentes e arbitrárias cartas, pelas observações do Marechal de Campo e Comandante Geral do Nacional e
Régio Corpo de Engenheiros Luis Candido Cordeiro Pinheiro Furtado, então Tenente Coronel do mesmo Corpo, que por
espaço de 10 anos que se viu naquele Reino percorreu por várias expedições que dirigiu e comandou toda Costa entre
Molembo e Cabo Negro, e os inteiro do país, servindo-se de cálculos astronômicos, luzes e conhecimentos locais dos
melhores práticos e mais inteligentes da topografia do país. Construído no ano de 1790. Petipé (escala) de 30 léguas.
Desenhado pelo Capitão engenheiro Lourenço Homem da Cunha Eça”. GEAEM, 1207-2A-24A-111.
343
Obs.: 1 quintal = 60 kg, 1 @ (arroba) = 15 kg, 1 libra= 460g. Conforme o “Quadro geral das principais medidas
e moedas utilizadas nos últimos tempos do Brasil colonial” elaborado por Roberto Simonsen, História
Econômica do Brasil. 7ª ed. S. Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1977, pp. 462-463. São medidas próximas das
estabelecidas por Adriano Parreira, 1 libra ou arrátel=450g; 1 quintal= 4 arrobas = 60kg. Quadro 4, em Adriano
Parreira, Economia e Sociedade em Angola na época da Rainha Jinga, século XVII. Lisboa: Editorial Estampa,
1997, p. 97.
Fontes: AHU_CU_001, Cx. 45, D. 68; AHU_CU_001, Cx. 51, D. 1; AHU_CU_001, Cx. 51, D. 44;
AHU_CU_001, Cx. 52, D. 15; AHU_CU_001, Cx. 52, D. 73; AHU_CU_001, Cx. 119, D. 15; AHU_CU_001,
Cx. 119, D. 16; AHA, C - 14 -3; AHA, C - 14 – 4; AHA, A-2-2, fl. 166; AHA, D - 2 – 5; AHA, A - 20 – 2;
IHGB - PADAB, DVD9,19 DSC00153; IHGB - PADAB, DVD9,19 DSC00198; IHGB - PADAB, DVD10,20
DSC00415; BNP,C 8742, F6364; BNP, F3315; IEB/USP, Al-082-024.
346
Anexo 3 – Soldados, lavradores, cozinheiro e prático do sertão enviados para Nova Oeiras (1766-1771)
Ano de Ano de
início fim Enviado/número Ofício Enviado de Origem Obs. Remuneração
prático dos gados do
1766 Lourenço Lopes sertão Luanda
1767 Francisco José Leitão soldado Ilhéu lavrador
1767 João Pereira Soldado Ilhéu lavrador
1767 7 Soldado
Muxima,
Pedras,
Ambaca, "Casados e pobres para se
1767 10 Soldado Kambambe. estabelecerem na Nova Oeiras".
voluntário; "cozinheiro que foi
do bispo o qual ainda que pardo
é industrioso e trabalhador, e
serve para fazer pão e de comer
aos mestres, e a sua família os
pode também servir; para este
fim lhe mandará vossa mercê
fazer um forno, e procurará
estabelece-lo dando lhe terras
que cultive para o seu alimento,
pois como é de Portugal e vai
Antonio dos Santos e corrido da fortuna, facilmente a
1767 família cozinheiro Luanda poderá achar".
1767 Tomé Tomaz Soldado receberia baixa depois de casar.
recebeu baixa; sua mulher seria
encaminhada para Nova Oeiras,
1767 José Xavier Soldado como havia pedido.
347
Anexo 4: Oficiais Mecânicos enviados para trabalhar nas fábricas de ferro de Nova Oeiras e Novo Belém, 1767-1800
Cabouqueiro
Ano de Ano de
início fim –Nome (ou quantidade) Ofício Enviado de Origem Observação Remuneração
"tenho feito outra de admirável carvão,
para a qual me servi de um soldado
1769 cabouqueiro França francês, que possuía esta Arte".
à jornal, trabalhou de junho de
Francisco Furtado de mestre 1772 a fevereiro de 1773 em
1772 1773 Mendonça cabouqueiro Nova Oeiras, total de 56$550.
pelo valor de 537 tangas de carvão que
mestre da fez em janeiro de 1773 a 40 réis, total
1773 Diogo Espinado carvoaria de 21$480
Canteiros
Ano de início Ano de fim Enviado Ofício Enviado de Origem Observação Remuneração
1770 Joaquim Freire canteiro jornal de 1$600
1770 Luiz José canteiro jornal de 1$600
Carpinteiros
Ano de Ano de
início fim Enviado/Número Ofício Enviado de Origem Observação Remuneração
1768 4 carpinteiros
"deveria voltar [para
Luanda] para ser
1769 Domingos Viegas carpinteiro instruído sobre o modelo
350
da fábrica".
1769 Antonio Ribeiro mestre carpinteiro
1770 João dos Santos carpinteiro Lisboa jornal de 1$600
escravo de D. Maria da
1771 Antonio Francisco carpinteiro Conceição Simões
escravo de D. Maria da
1771 Paulo João carpinteiro Conceição Simões
escravo de Paulo Gabriel
1771 Amaro carpinteiro Moreira Rangel
1771 Ventura José Carpinteiro escravo de Luis Prates
escravo de D. Teresa de
1771 João Felipe Carpinteiro Barros
escravo do Cônego
1771 Paulo Sebastião Carpinteiro Gonçalo Cardia
consta na relação dos
artífices aprovados que se
acham aprovados para
embarcarem para o Reino
de Angola; era oficial de
oficial carpinteiro carpinteiro no Arsenal
1790 Estanislao Cosme de navios Lisboa Real da Marinha.
consta na relação dos
artífices aprovados que se
acham aprovados para
embarcarem para o Reino
oficial de de Angola; era oficial de
carpinteiro de carpinteiro de casas no
1790 Antonio José Fernandes casas Lisboa Arsenal Real do Exército.
1800 “carpinteiros da terra” carpinteiros
Ferreiros
Ano de Remuneração
início Ano de fim Enviado - número Ofício Enviado de Origem Observação
352
Funileiro
Ano de Ano de
início fim Enviado – número Ofício Enviado de Origem Observação Remuneração
consta na relação dos artífices
oficial de aprovados que se acham
1790 José Candido funileiro Lisboa aprovados para embarcarem para
355
Latoeiros
Ano de Ano de
início fim Enviado – número Ofício Enviado de Origem Observação Remuneração
jornal de 600$, quando começasse a
trabalhar segundo seu ofício deveria
receber 1$200 por dia; deixou para
oficial voluntário; Em uma sua filha do seu jornal diário, 200 réis;
listagem de 1770, dos mecânicos morador ao Forte da Junqueira
nomeados para embarcarem para Freguesia de N. S. da Ajuda. Pediu
mestre Angola, consta ser "voluntário, para levar a mulher Maria Jacinta
1771 Manoel dos Santos latoeiro Lisboa porém obrigado". Rosa consigo.
oficial voluntário; em 1774,
ordenou-se que voltasse para jornal de 600$, quando começasse a
Portugal. Em uma listagem de trabalhar segundo seu ofício deveria
1770, dos mecânicos nomeados receber 1$200 por dia; deixou para
para embarcarem para Angola, sua mulher do seu jornal diário, 200
consta ser "voluntário, porém réis; casado com Isabel Genovesa
oficial de obrigado" que se achava "em sua moradora na cidade de Lisboa na Rua
1771 Manoel José Ferraz latoeiro Lisboa casa". da Paz Freguesia de N. S. das Mercês
jornal de 600$, quando começasse a
mestre trabalhar segundo seu ofício deveria
1771 Manoel do Nascimento latoeiro Lisboa oficial voluntário receber 1$200 por dia.
consta na relação dos artífices
aprovados que se acham
aprovados para embarcarem para
o Reino de Angola; era latoeiro
latoeiro de de fundição no Arsenal Real do
1790 Manoel dos Reis fundição Lisboa Exército.
356
Pedreiros
Ano de Ano de
início fim Enviado – número Ofício Enviado de Origem Obs. Remuneração
357
1768 4 pedreiros
escravo de D. Teresa de Barros da
aprendiz de Silva (herdeira de Luis Gouvea, à jornal, trabalhou de 1768 a
1768 1770 Pedro pedreiro seu irmão) 1770, 18$300
preto, preso "que trabalhará pelo
1769 pedreiro Luanda seu alimento" Trabalhou pelo seu alimento.
1770 pedreiros Massangano
1770 Manoel Teixeira pedreiro jornal de 1$600
1770 João Martins pedreiro jornal de 1$600
degredado; se encontrava nas
Pedro Bogarim Calcetas da Inspeção da Junta do
1770 Castelhano pedreiro Comércio
degredado; se encontrava nas
Calcetas da Inspeção da Junta do
1770 José Inácio pedreiro Comércio
"deveram vencer no de Angola
os seus jornais conforme o seu
merecimento, quando
1771 José Inácio pedreiro Lisboa degredado trabalharem"
"deveram vencer no de Angola
os seus jornais conforme o seu
merecimento, quando
1771 Manoel de Oliveira pedreiro Lisboa degredado; galés trabalharem"
"deveram vencer no de Angola
os seus jornais conforme o seu
merecimento, quando
1771 Francisco da Rocha pedreiro Lisboa degredado; galés trabalharem"
à jornal, os 3 trabalharam de
oficial de escravo de Antonio Simões da março de 1772 a abril de 1773,
1771 1773 Antonio pedreiro Silva total 194$200
358
à jornal, os 3 trabalharam de
oficial de escravo de Antonio Simões da março de 1772 a abril de 1773,
1771 1773 André pedreiro Silva total 194$200
à jornal, os 3 trabalharam de
oficial de escravo de Antonio Simões da março de 1772 a abril de 1773,
1771 1773 Miguel pedreiro Silva total 194$200
"um bom oficial de pedreiro e
tendo muita habilidade é
acompanhada de ser um fino
ladrão"; deveria "preparar as
oficial de pedras de cantaria que forem
1772 Gregório José pedreiro necessárias para o forno".
à jornal, trabalhou de fevereiro
oficial de escravo de Joaquim da Costa a dezembro de 1772, um total
1772 1772 Gaspar pedreiro Braga de 59$600
oficial de à jornal, trabalhou de fevereiro
1772 1773 João Miguel pedreiro de 1772 a fevereiro de 1773
à jornal, trabalhou de junho de
oficial de 1772 a abril de 1773, total de
1772 1773 Protázio Inácio pedreiro 39$150
consta na relação dos artífices
aprovados que se acham
aprovados para embarcarem para
oficial de o Reino de Angola; era oficial de
1790 Pedro José pedreiro Lisboa pedreiro no Arsenal Real.
Refinadores do ferro
Ano de Ano de
início fim Enviado – número Ofício Enviado de Origem Obs. Remuneração
359
Serralheiros
Ano de Ano de
início fim Enviado – número Ofício Enviado de Origem Obs. Remuneração
Obs.: Total: 85 oficiais mecânicos, entre eles 3 cabouqueiros, 2 canteiros, 21 carpinteiros, 14 ferreiros, 9 fundidores, 1 fundidor e refinador de ferro, 1 funileiro, 2 refinadores
de ferro, 7 latoeiros, 4 serralheiros, 21 pedreiros. Não foram computados os trabalhadores que aparecem em informações genéricas, como “carpinteiros da terra”, sem a
especificidade da quantia de carpinteiros.
Fontes: ANTT, Ministério do Reino mç. 600, caixa 703, doc. 25; ANTT, Condes de Linhares mç. 47, doc. 20; ANTT, Condes de Linhares mç. 52, doc. 74; ANTT, Projeto
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53, D. 8; AHU_CU_001, Cx. 54, D. 101; AHU_CU_001, Cx. 75, D. 77; AHU_CU_001, Cx. 96, D. 54; IEB/USP – Col. AL- 83-070; IEB/USP – Col. AL- 82-087; IEB/ USP,
Al-83-037; IEB/USP, AL-83-098; IEB/USP – AL-83-192; IEB/USP – AL-83-252; AHTT, Erário Régio 4191; AHA, A-17-2; AHA, C-14-4; BNP, C 8743, F6377; BNP,
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361
Anexo 5 – Os “filhos”, trabalhadores dos sobados enviados para as fábricas de ferro, 1768-
1800
As tabelas a seguir trazem as informações dos “inventários dos filhos capazes” recolhidos entre
os sobados isentos do dízimo, obrigados a enviar trabalhadores para a fábrica, de 1768-1800.
Foram calculados os valores dos dízimos que cada autoridade pagava em produtos e em réis.
“Inventário dos Sobas, Ilamba e Imbari do Distrito do Golungo que servem no serviço das
Fábricas do Ferro de Novo Belém e Nova Oeiras donde se mandaram anexar todos por ordem
do Ilmo. e Exmo. Snr. General e sobre os dízimos que pagavam antes de serem isentos e pelo
que regularam na regulação que se fez e o número de filhos capazes que cada um tem e os que
dão por mês”.
Trabalhadores
“Filhos fornecidos por Valor do
Soba Capazes” mês Dízimo dízimo em réis
12 exeques de farinha, 2
Quitala Quazumba Andre leitões, 2 cabritos e 2
Fernandes 60 15 galinhas 12$000
Quitendele Quiacababa 2 exeques de farinha, 1
Antonio João 3 1 leitão e 1 galinha 2$000
Kilamba Cangondo
Caquilvangi Francisco da 2 exeques de farinha, 1
Costa 4 1 leitão e 1 galinha 2$000
338 exeques a saber 100
Bango Aquitamba de farinha, 100 de feijão e
Jeronimo de Gregorio 1000 50 138 de milho 310$400
2 exeques e 1/2 a saber 1
Quimbar Cabombe e 1/2 de farinha, 1 de
Manuel Antonio 3 1 milho e 1 galinha 2$300
40 exeques a saber 20 de
Kilamba Gongue feijão fradinho e 20 de
Acamucala Antonio Pedro 250 42 farinha 40$000
Kilamba Calunga
Cagombe Domingos 4 exeques de milho e 3
Antonio 15 3 galinhas 3$200
20 exeques a saber 10 de
Kilamba Bango Bango feijão fradinho, 10 de
Pascoal Pedro 80 24 farinha 20$000
Gola Bumba Antonio 3 exeques e meio de milho
Matheus 20 4 e 6 galinhas 2$800
2 exeques e meio de milho
Dala Hui Antonio Gaspar 10 3 e 2 galinhas 2$000
Zombo andala Alexandre 4 exeques de milho e 3
Francisco 4 1 galinhas 3$200
Quilombo Quiacatubia 9 exeques e 1/2 de milho e
Antonio Jeronimo 300 30 6 galinhas 7$600
Muquixi Aquhuano 2 exeques de farinha e 3
Antonio Garcia 4 1 galinhas 2$000
Kilamba Quiapangi 4 1 3 exeques e meio de milho 2$800
362
Tabela 5.2. Sobas de Ambaca que forneciam trabalhadores para Novo Belém
“Declaração dos dois Sobas da Jurisdição de Ambaca que estavam anexos ao Novo
Belém e passarão para a Fábrica de Nova Oeiras adonde trabalham desde o princípio da
dita Fábrica até o presente e são os seguintes”.
Dá para o E foi
Filhos serviço de regulado
Soba Capazes cada mês Pagava de dízimo por
O Soba Gola Quimbi Antonio da
Silva 400 40 300 pedras de sal 30$000
O Soba Cariata Cacavingi 60 20 300 pedras de sal 30$000
Total 460 60 600 pedras de sal 60$000
Fonte: IHGB-PADAB, DL81, 02.19, s/l, possivelmente feito entre 1768 a 1770.
365
“Inventário dos Sobas, Ilamba e Imbari anexos ao serviço desta Fábrica do Ferro de
Nova Oeiras respectivos os dízimos que pagavam antes da isenção que lhes concedeu o
Exmo. Snr. e pelo que regulando de próximo, número de Filhos, que cada um em e os
que dão por mês para o serviço da mesma Fábrica”. São Paulo de Assunção, 29 de
dezembro de 1768.
Localidade Trabalhad
ores
“Filhos fornecidos
Soba Capazes” por mês Paga de dízimo por ano Total
Soba D. Andre Presídio de
Fernandes Kabuku Cambambe 129 Beirames e 1 folhinha a
Kambilu 400 50 600réis 90$650
Ambaca
Soba Gola Guimbi 380 40 300 pedras de sal a 100 réis 30$000
Ambaca
Soba Cariata 200 20 300 pedras de sal a 100 réis 30$000
Massangano
SobaItombe 100 20 15 beirames a 700 réis 10$500
Massangano
Soba Zambi Aqueta 120 25 25 beirames a 700 réis 17$500
Massangano
Soba Guengue 50 15 12 beirames a 700 réis 8$400
Soba Gola Quiato com Massangano
seus 3 macotas e o seu
sobeta [Magoxi?] 300 40 40 beirames a 700 réis 28$000
Soba Zumba a Massangano
Quizunde 20 4 9 beirames a 700 réis 4$900
Massangano
Soba Cabuto 15 3 8 beirames a 700 réis 5$600
Soba Mussengue Golungo 3 exeques de farinha a 10
Azenza 200 30 réis 3$000
Golungo 3 exeques de farinha a 10
Soba Mussuso 30 8 réis 3$000
Golungo 2 exeques de farinha a 10
Soba Quiambata 20 5 réis 2$000
Golungo 2 exeques de farinha a 10
Kilamba Pedro Ambaxi 40 6 réis 2$000
Golungo 2 exeques de farinha a 10
Soba Zamba Riasungui 30 5 réis 2$000
Golungo
Soba Dala Huy 8 2 1 exeques de farinha 1$000
Total 4 1913 273 238$550
Fonte: Carta de D. Francisco Inocêncio de Souza Coutinho para Antônio Anselmo
Duarte de Siqueira, intendente geral das reais fábricas do ferro. Anexo: Inventário dos
sobas, ilamba e imbari. São Paulo de Assunção, 29 de dezembro de 1768. IHGB 126,
PADAB DVD10,22 DSC00303.
366
Esse é o inventário dos sobas e ilamba que deixaram de enviar os trabalhadores para as
fábricas e, portanto, deveriam voltar a pagar os dízimos, que aparecem em quantias em
réis.
“Mapa dos sobas e ilamba que se desanexam do serviço da fábrica por serem remissos
em aprontarem seus filhos para o serviço dela e devem de hoje em diante, pagar o
dízimo pela nova regulação que se fez”, s/d.
Esses são os sobas e ilamba que trabalharam junto ao naturalista José Álvares Maciel.
“Relação dos sobas e ilamba que dão presentemente filhos para este trabalho”, 2 de
março de 1800.
Obs.: *A fonte diz que a soma é de 134 trabalhadores, mas a contagem acima é de 117.
“Destes apenas andam no trabalho 70, outros uns se fingem doentes, outros que lhe
morreu o parente e querem licença para irem a casa (...) Andam 10 no corte da madeira,
além de seis carpinteiros da terra a quem tenho pago por vezes a proporção do seu
370
trabalho e não a dias porque também não havendo quem os assista vão fazer bancos
para os venderem a 25 réis e mesas que lhes compram estes pretos. Andam outros 10 na
pedreira com um mestre para tirar pedra, andam amassando barro para o tijolo e telha, e
os mestres são também pagos a proporção do que fazem. O resto conduz a mesma, e o
carvão”.
** Este rol foi encaminhado a José da Silva Costa.
Fonte: Carta de José Álvares Maciel informando sobre os andamentos de suas
experiências. São Paulo de assunção, dois de março de 1800. BNP, C 8553, F6362.
371
Nesta seção, apresentamos algumas imagens, fotos e maquetes da fábrica de Nova Oeiras e arredores.
Há algumas fotos de 1970 que foram feitas pelo arquiteto Fernando Batalha. Para mais informações, ver:
Fernando Batalha. Povoações históricas de Angola, Lisboa: Livros Horizonte, 2008.
As maquetes foram desenhadas a partir das informações que reunimos junto às fontes. As arquitetas Giovana
Gomes Carreira, Katia Sartorelli Verissimo e Stefane Saraceni Kaller elaboraram as imagens.
373
Em 1770, os funcionários da fábrica emitiram um parecer sobre o edifício. Anotamos alguns detalhes que mostram a dimensão do
conjunto arquitetônico àquela época.
Fonte: Parecer do capitão José Francisco Pacheco, inspetor das obras da fábrica, do engenheiro Antonio de Bessa Teixeira, “que também assistiu por
algum tempo as mesmas obras”, e do mestre de obras, Antonio Ribeiro Cardoso. ANTT, Condes de Linhares mç. 51, doc. 1, fl. 198. São Paulo de
Assunção de Luanda, 17 de novembro de 1770.
Rio Lukala
Acervo da autora,
outubro de 2015.
378
“Ritare Tambungo ou
Pedras de Bungo. Fim da
navegação do rio Lukala”,
1855. Assinado por:
Jacinto de Gouvea Leal.
AHU_ICONm_001_I,
D.471
379
Açude no
Rio Luinha
Armazéns
Aqueduto
Casa do
Forno de fundição
Casa da máquina
381
Aqueduto
Muro
do açude
Rio Luinha
“Planta das obras que estão feitas na Nova Oeiras para a fábrica do ferro”, 1770
c.a. AHU_CARTm_001, D. 272.
382
Muro do açude
coberto pela
vegetação
Rio Luinha.
383
Casa do
Forno de fundição
Armazéns
Detalhes Casa do
Forno de Fundição
385
Detalhe Casa do
Forno de Fundição
386
O forno de fundição
Detalhes Casa do
Forno de Fundição
387
Detalhes - Aqueduto.
Foto Aqueduto –
Arquiteto Fernando Batalha,
1972.
388
Detalhes - Aqueduto.
389
Detalhes - Aqueduto.
390
Detalhes – Aqueduto
Na parte da frente da
fábrica.
391
Detalhes - Armazém.
392
Sobre o aqueduto –
Vista armazéns (à direita)
e casa da fundição
(à esquerda).
393
Detalhes - Armazém.
394
Dentro dos
Armazéns
395
Dentro dos
Armazéns
396
Dentro dos
Armazéns –
As marcas nas
paredes podem
indicar o local onde
ficavam as rodas de
madeira feitas para
mover o malho e os
foles.
397