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verberenas.

com

A CRIAÇÃO DA MULHER
MILLENNIAL
27-37 minutos

Vol. 5, nº 04, 2019

Nota da tradutora: Este ensaio foi originalmente publicado em


inglês pela revista digital Another Gaze no dia 12 de junho de
2019 e foi traduzido por nós do Verberenas com as
autorizações da autora, Rebecca Liu, e da Another Gaze. Trata-
se de um texto que se debruça sobre a recepção da arte feita
por mulheres millennials – também conhecidas como mulheres
da geração Y, aquelas nascidas por volta de 1981 a 1996 –
pertencentes a um grupo social muito específico e os perigos
de elevar as personagens criadas por elas ao status de
universais.
A Criação da Mulher Millennial

por Rebecca Liu

Ser um millennial é como estar preso em um estado de limiar


adolescente constante. Amuados, irritadiços e dolorosamente
hipervisíveis, cada um dos nossos movimentos é rastreado por
guardiões zelosos impacientes para anunciar a próxima
manchete viral. Nós não gostamos de guardanapos, segundo a
Business Insider; nós gostamos de casas pequenas, declara a
CNN. Goldman Sachs comenta que mais millenials têm
“escolhido” viver com nossos pais, ao mesmo tempo que um
artigo de opinião do Guardian pergunta por que nós não
estamos tendo filhos. Não é de se admirar que nós
supostamente tenhamos ansiedade e um amor insaciável por
destruir indústrias consolidadas.

Uma das poucas coisas associadas aos millennials que teve


uma recepção pública positiva é uma manifestação específica
de arte. Esta arte gira em torno do arquétipo da Jovem Mulher
Millennial – bonita, branca, cisgênero, e torturada o suficiente
para ser interessante, mas não o suficiente para ser repulsiva.
É comum que ela seja descrita como alguém com quem
podemos nos identificar, embora, na realidade, não seja. Essa
ideia de “identificação” esconde a verdade desconfortável de
que ela é mais bonita, mais inteligente e mais irritantemente
precoce do que nós somos na vida real. O seu charme reside
no fato dela se odiar tanto que se torna alcançável: ela é a
identificação desejável. Ela geralmente é rica, mas não pensa
muito sobre isso. Sua vida é tão cheia de drama, de baixa auto-
estima e de mobilidade social descendente que ela esquece
disso, assim como nós devemos esquecer. Seus amigos, se ela
tem algum, são narcisistas incorrigíveis, e os homens em sua
vida são decepcionantes e horríveis. Por mais que ela tente,
seus protestos contra o mundo sempre são redirecionados e se
transformam em autodestruição melancólica.

Fleabag, de Phoebe Waller-Bridge, confirmou minha suspeita


de que nós não assistimos à televisão tanto quanto
participamos da cultura televisiva. Objetos culturais de massa
se tornaram o elo de um tipo de vida pública. Eu nunca havia
ouvido, lido sobre ou visto tanto de uma série de TV antes de
ter a chance de assistir. O Guardian a classificou como “a série
mais eletrizante e devastadora em anos”; o Telegraph a chamou
de “uma obra de arte quase perfeita”. O Financial Times
começou sua crítica com um fato inverificável que ao menos
parecia verdadeiro: “Fleabag foi a melhor série da televisão?
Boa parte do Twitter parece achar que sim”. Quando eu
finalmente vi a série, eu a achei boa. Eu ri, chorei, empatizei
com ela, me irritei. A série desconstrói dinâmicas familiares
tóxicas, o espetáculo de autodesprezo que é ir em encontros
amorosos, e o que significa confrontar os próprios traumas
quando a ironia esquiva é muito mais fácil. Foi bom. Mas o que
permaneceu na minha mente depois não foi tanto a série em si,
mas a conversa previsível e frenética que girou em torno dela.

Um ciclo de marketing cheio de hipérboles celebram séries


como essa através de um vocabulário que indica total
identificação, e isso as deixa completamente expostas à
inevitável reação contrária. Nem tudo vai ser amado por todos,
especialmente quando dizem para esses “todos” que eles têm
que amar algo baseado no fato de que eles vão encontrar
reflexos deles mesmos ali. Isso aconteceu com Lena Dunham e
Girls, Sally Rooney e Pessoas Normais, Kristen Roupenian e
Cat Person. Embora os projetos dessas mulheres sejam
diferentes entre si, as formas como eles foram divulgados
parecem seguir o mesmo roteiro. Já aconteceu antes e vai
acontecer de novo. Embora essa abordagem promocional não
seja exatamente misógina, ela é uma forma de discurso público
que abre espaço à misoginia. É uma abordagem que pretende
se antecipar àqueles que são céticos quanto ao valor da voz da
mulher jovem enquadrando essa voz como um feito incrível e
transformador fruto do gênio de uma geração. A maioria das
pessoas não são gênios. Você não precisa ser um para fazer
boa arte – uma olhada rápida em qualquer lista longa de
homens autores celebrados mostra isso.

Ao invés de perguntar se essas obras de arte merecem tal


aclamação, talvez seja mais interessante perguntar porque sua
recepção pública – mesmo quando positiva – é ruim com tanta
frequência. Chamadas regularmente elogiam como Girls e
Fleabag tiveram coragem de abrir novos caminhos para o
feminismo, como se a história do feminismo ocidental em si já
não fosse marcada pela elevação não merecida da mulher
branca de classe média alta ao nível de universalismo. (Isso
não é uma crítica às séries em si, mas ao pedestal ofuscante e
autodestrutivo ao qual elas são elevadas pela classe midiática e
literária, que poderia ser mais autoconsciente).

Questões macropolíticas são tratadas de forma superficial,


jogadas para escanteio em favor de chavões paternalistas que
dão bons títulos sobre “problemas de uma geração”. Sally
Rooney é uma “escritora millennial” da “geração Snapchat”,
cujas tendências marxistas são deixadas de lado pelo rótulo
bem mais palatável de Jovem Mulher Promissora pronto para
ser usado pelo mundo lustroso e politicamente comedido da
alta sociedade literária. “Eu simplesmente morro por ela”, diz
uma citação em um pôster para a edição em brochura de
Pessoas Normais, assinada por @lenadunham. E se há
política, é uma em que a autoafirmação é considerada práxis
ousada, um ato revolucionário em si mesmo – um monólogo em
Fleabag sobre a dor de mulheres entrega poderosas verdades
feministas sobre a condição feminina; Girls transforma a forma
como nós vemos a mulher. Embora seja bem-intencionado, isso
também é um fardo. Não devemos esperar que séries
televisivas carreguem todo o enorme peso de nossas políticas
confusas e caóticas, nem devemos apressadamente usar
termos de emancipação revolucionária para caracterizar
simples revelações sobre como vivemos. Pensar o contrário é
viver em negação sobre nossa impotência.

Estamos supostamente vivendo na era da “mulher


desagradável”, o que significa que nós celebramos o fato de
que mulheres também podem ser sujas, repulsivas, más, cruéis
e falhas. Fleabag vive de forma imprudente e irresponsável
deixando para trás uma trilha de corações partidos; uma das
maiores revelações em Cat Person é a profunda ambivalência,
e até mesmo pena, que a protagonista sente pelo homem com
quem ela passa a noite. “Como ela se atreve!?” alguns
disseram, o que foi engraçado pois revelou que algumas
pessoas não compreendem mulheres, ou não sabem como ler
ficção. Eu entendo que a ascensão da “mulher desagradável” é
uma vitória. As figuras unidimensionais do passado – que
poderiam apenas ser adoradas ou desprezadas por homens –
foram substituídas pelas “personagens femininas complexas”
que são capazes de rejeitar a sociedade civilizada sem
remorsos. Isso pode ser potente. Mas a aclamação que gira em
torno de tais figuras também se arrisca em produzir uma
celebração prematura, um despir de poder que nos deixa felizes
em comer as sobras e nos inocular contra a missão mais difícil
e mais confusa na qual “ser desagradável” não é mais a piada
por si só. Raramente se pergunta com quem essas mulheres
são cruéis, o que constrói essa crueldade, e a que essa
crueldade serve. Fazer isso poderia erodir a imagem unitária do
“ser mulher” em que tantas discussões sobre a “mulher
millennial” se sustentam sem um viés crítico.

A habilidade de apresentar o fato de que mulheres podem ser


imperfeitas, falhas e cruéis como uma revelação poderosa e
generalizada privilegia um certo ponto de vista. O “ser mulher”,
afinal, é composto por uma classe profundamente variada com
suas próprias histórias de exclusão, violência e dominação.
Para alguns, a crueldade sistêmica de outras mulheres não é
tanto uma revelação neutra, mas um fato da vida. Eu passei
tanto tempo tendo que lidar com homens horríveis quanto com
a crueldade sutil de mulheres brancas de classe média alta,
fossem elas proto-Regina Georges que me julgavam “legal para
uma asiática” no ensino fundamental, ou, quando adulta, me
sentindo minada por outras mulheres prontas para me
chamarem de “fofa” e “meiga”. Que essa verdade da minha
adolescência horrível, constrangedora e cheia de sentimento de
inferioridade – que mulheres podem ser cruéis, más e
narcisistas – agora tenha se tornado em uma das ferramentas
para emancipar “todas” nós sob uma mesma bandeira parece
algo perverso, senão um sinal assombroso de quão limitado é o
atual debate popular sobre a emancipação das mulheres. Para
cada celebração de uma mulher branca rica tão
descuidadamente destrutiva com a própria vida quanto homens
privilegiados, nós deveríamos nos perguntar o que lhe dá a
habilidade de ser tão audaz, e quem é deixado de lado como
efeito colateral. Neuroses, frequentemente enquadradas como
um sinal de impotência, também podem indicar o contrário.
Exigir que alguém entre e entretenha sua mente ansiosa e lide
com sua individualidade complicada e infinitamente fascinante
pode ser um ato de poder. Mas a quem é permitido ser um
indivíduo para o público ocidental? A quem é permitida a
complexidade?

A algumas psiques só são permitidas histórias unidimensionais


de sofrimento e triunfo – outras são apenas piadas. Perdi as
contas das vezes em que eu li releases de livros de autores
não-brancos nos quais a raça do autor é discreta, mas
visivelmente inserida através de termos previsíveis – imigrante,
dor, trauma, sobrevivência, pertencimento. Suas histórias não
são oferecidas como algo com que você possa se “relacionar”,
mas como algo que você possa olhar a uma certa distância
como um visitante a outro mundo. Há também a pergunta: a
subversão de quem é considerada?

Em um texto para a MTV, a crítica Meaghan Garvey observa a


hipocrisia das reações negativas à autoafirmação e ao
desrespeito às regras da rapper negra de Chicago, CupcakKe
(em um de seus singles de sucesso, a rapper anuncia sua
intenção de “Fazer pinto gozar mais rápido que o do Jimmy
John / Eu vou chupar um peido do seu traseiro”). Garvey
observa que os atos “desagradáveis” dos pares privilegiados de
CupcakKe são vistos como obras interessantes, enquanto “o
vídeo de CupcakKe é tratado como um meme”². Vulgaridade
desqualifica algumas mulheres da vida pública, ou, no mínimo,
as transforma em figuras marginalizadas reduzidas a uma única
característica; enquanto permite que outras estejam no centro,
vistas como mulheres artistas originais, filosóficas e com quem
se pode facilmente se identificar.

O problema se estende para além de questões raciais, é claro.


A romancista Jeanette Winterson, ao refletir sobre a recepção
de As Laranjas Não São o Único Fruto, disse “Nunca entendi
por que a ficção heterossexual é supostamente para todos, mas
qualquer coisa com um personagem gay ou que inclui
experiências gay são apenas para pessoas LGBT”³. Apenas
algumas autoras estão livres da exigência de oferecer seus
traumas pré-embalados para a absolvição unilateral de seus
leitores, deixadas em paz para experimentar no espaço
relativamente livre do “ainda-não-nomeado” e ser reconhecidas
como indivíduos interessantes e com coisas novas a dizer. Para
deixar claro: mulheres não gozam comando total do Eu neutro,
elas ainda são vistas em termos do seu gênero, mas, para além
disso, apenas algumas mulheres parecem ser capazes de
assumir o manto da mulher universal. No passado, discussões
como essa foram criticadas por serem desnecessariamente
divisivas ou até mesmo antifeministas⁴. Mas nós deveríamos
estar nos perguntando nos termos de quem essa unidade é
conquistada, e a quem interessa que essas fissuras
permaneçam ocultas.

Usar a identificação como uma ferramenta crítica só nos leva a


becos sem saída, sempre usando um “nós” sem perguntar
quem esse “nós” é de fato, ou por que “nós” somos mais
atraídos por algumas histórias do que por outras. O que quer
dizer quando “nós” devemos ser atraídos por mulheres que
vivem em mundos de elites sociais, cujos estilos de vida nós
não somos capazes de sustentar, e cuja rebelião contra o
mundo está sempre um pouco fadada ao fracasso e nem é tão
subversiva assim, mesmo que devamos pensar o contrário? Por
que nos apressamos tanto para projetar sobre elas uma
sensação de identificação? A ironia da “mulher desagradável” é
que sua abjeção é agradável, até mesmo admirável, para nós:
elas são mais inteligentes, espirituosas e mais belas que
qualquer um que conhecemos, são ideais tomados como
supostos personagens da vida “real”. Celebrar a identificação
envolve engajar-se com a vida de outros ou fugir da nossa?

Para críticos, jornalistas e outros escritores no Ocidente –


majoritariamente brancos e de classe média – essas
representações de mundos sociais rarefeitos se oferecem como
afirmações de identificação universal. É menos provável que
você veja algo como “outro”, afinal, se você é esse algo (ou,
como meu amigo chinês brinca todo ano: “Hora de sentar com a
minha família e participar da nossa tradição anual de comer
comida chinesa no Natal! Ou, como nós chamamos – comida.”)
Mas ver universalidade onde ela não existe é fechar as portas
para perguntas importantes. Anunciar as descendentes da
aristocracia inglesa (Phoebe Waller-Bridge) ou suas
equivalentes criativas americanas (Lena Dunham) como a
mulher comum da nossa era (elas não são, e tudo bem), e
Fleabag e Girls como histórias universais de disfunção e
regeneração (elas também não são, e tudo bem também),
ignora as coisas muito particulares que elas têm a oferecer.
Existem temas que estão abertos a todos nós – lições sobre
felicidade negada, famílias separadas, e relacionamentos
cheios de mentiras desconfortáveis e decepções que mexem
com a cabeça – mas existem outras coisas também.

Ao nos apoiarmos na estrutura simplista e enganosamente


homogeneizante da identificação, o que perdemos? O caso
curioso de como essas mulheres específicas, ostensivamente
equipadas com todas as graças sociais para conquistar o
mundo – brancas, ricas, belas, atraentes para os homens
apesar de seus piores esforços – preferem olhar para si
mesmas e se odiar, odiar seus corpos, suas coxas, o tom de
seu discurso, as outras mulheres em suas vidas, seus pais. Por
que essas mulheres que, em teoria, têm o maior poder social
estão tão interessadas em se livrar dele? A súplica
desesperada de Fleabag para sua terapeuta avulta
ameaçadoramente – “Eu só quero que alguém me diga o que
fazer”. O mal-estar dos privilegiados sempre teve um quê de
narcisismo, tão frenético em sua energia neurótica quanto inútil
para o resto do mundo. Escapa-se a ironia de como essas
obras de arte que supostamente falam por uma geração –
histórias sobre gloriosas boêmias cheias de ansiedades – foram
criadas pela mesma geração que cresceu logo depois da
segunda onda do feminismo, bombardeada constantemente
com a mensagem que mulheres podem fazer qualquer coisa,
ser qualquer coisa, e especialmente mulheres como elas. Nos
mundos sociais intrincados e dolorosos destrinchados por
Dunham e Waller-Bridge, não nos apoiamos nos ombros das
nossas antepassadas feministas do século XX, ao invés disso,
dançamos sobre seus túmulos de forma letárgica e
desamparada.

Isso não deve ser visto como uma acusação contra essas
obras, ou uma sugestão de que há algo de errado com as
personagens. Não devemos exigir que a arte represente o
mundo como nós gostaríamos de vê-lo. Afinal, a atitude otimista
“lean-in” do feminismo liberal tem suas próprias falhas
fundamentais. O problema é que tantos de nós querem ver
narrativas de auto-emancipação radical onde não há nenhuma.
Apesar de toda a conversa sobre quão revolucionárias,
poderosas e importantes essas vidas fictícias são, a Mulher
Millennial por excelência é um ser humano profundamente
desempoderado. Fleabag não tem amigos, não consegue falar
sobre seu trauma e admite usar o sexo como uma forma de
sustentar sua autoestima deteriorada. Em Girls, o narcisismo de
Hannah esconde o fato de que ela é uma pessoa solitária que
se odeia: “Qualquer coisa cruel que qualquer um pode pensar
em me dizer eu já disse para mim mesma, sobre mim, na última
meia hora”. Marianne de Pessoas Normais de Sally Rooney tem
dificuldades em se apoderar do próprio corpo durante o sexo,
em aceitar o fato que ela possa ser apreciada, até mesmo
amada, e sugere-se que ela sofre de alguma disfunção
alimentar que é de certa forma normalizada. Essas mulheres
não são tanto símbolos de possibilidades emancipatórias
femininas quanto indicativos do enorme fracasso social em
proporcionar caminhos de prosperidade, cuidado e
generosidade em comunidade.
O fato de elas serem tomadas como símbolos de uma geração
é mais uma confirmação de como ser colocada num pedestal
pode ser tão desgastante quanto empoderador. Existe um
elemento disso no longo fascínio pela mulher rebelde, foda,
sórdida, um arquétipo desbocado diferente do que estamos
tratando aqui, mas adorado de forma semelhante. O programa
do British Film Institute sobre “Bitches” (N.T.: algo como
“megeras” em português) – cujo título, embora não o conteúdo,
foi alterado depois de críticas para “Playing the Bitch” (N.T.:
fazendo o papel da megera) – procura celebrar uma série de
“mulheres destemidas”, que permanecem majoritariamente
brancas, vistas pela lente de diretores exclusivamente homens.
Parece suspeito que nós estejamos tão investidos na narrativa
da mulher solitária que cria o caos em um mundo cruel e
desumano e está desinteressada no que significa chegar,
coletivamente, a um lugar onde tais vitórias dispendiosas e
dolorosas deixariam de ser necessárias.

Toda a conversa sobre quão desagradáveis são essas


personagens esconde o fio emotivo mais poderoso que une a
Mulher Millennial Arquetípica – elas desesperadamente, tão
desesperadamente, querem ser apreciadas, até mesmo
amadas. Isso parece sempre abrir concessões ao male gaze.
Fleabag faz toda uma performance para esconder seus
absorventes extragrandes na frente de homens atraentes (a
verdadeira piada, me parece, é ela achar que eles olhariam
para produtos de higiene feminina por tempo suficiente para
notar o seu tamanho) e se pergunta se ela ainda seria uma
feminista se ela tivesse “peitos maiores”.

Em uma entrevista de 2013, Vicky Jones, a diretora da peça de


Waller-Bridge que deu origem à série Fleabag, falou sobre um
momento que serviu de inspiração para elas: uma palestra
sobre feminismo, mostrada na peça, em que um grupo de
mulheres são perguntadas se elas trocariam cinco anos de vida
pelo corpo perfeito. Jones nota que ela e Waller-Bridge
sussurraram em segredo que sim. “Nós somos parte dessa
cultura,” ela continua, “então nós queríamos escrever uma
personagem que é um produto do mundo que nós vemos
agora, ao invés de uma luz guia do feminismo”⁵. É uma
afirmação que oculta tanto quanto esclarece. Nem toda mulher
está em uma posição em que ela pode negociar seu grau de
maleabilidade quando confrontada com exigências patriarcais –
algumas de nós estão excluídas dessa possibilidade desde o
princípio, já condenadas a algum tipo de “abjeção” devido à
nossa raça, sexualidade, identidade de gênero, classe ou falta
de beleza normativa. Algumas também se recusam a ceder a
essas ideias, criando formas de autoafirmação que – talvez por
serem menos obviamente inteligíveis ou palatáveis à maior
parte do público – não recebem a mesma atenção. Há quem
diga que essa última é a marca da verdadeira e impenitente
“desagradabilidade”. Essa questão como um todo, de novo, não
é um problema de Fleabag em si, mas sim de como ela foi
impossivelmente elevada a uma obra absoluta e representativa.
Nem todos os feminismos envolvem um assentimento discreto
ao que os homens querem, mas, olhando para as chamadas de
hoje, é possível pensar que esse é o caso. Render-se, contanto
que você expresse alguma angústia mental e auto-irônica, e
você permanece vagamente dentro dos limites do feminismo.

O problema aqui não é a série em si – até os traumas da


burguesia merecem ser representados – nem as mulheres que
lidam com o mundo assumindo essa posição, e sim o porquê de
a mídia amar essas representações de impotência convencional
tanto, e estar tão desesperada em lhe dar um verniz
revolucionário. Transformar a cultura pop em um espaço de
revolução é uma forma fácil de oferecer uma imagem de política
emancipatória sem mudar nada de verdade. Parece que tem
dez anos que nós estamos tratando a “feminista falha” como um
arquétipo revolucionário. Apesar da retórica altiva em torno do
mesmo, o mundo da Jovem Mulher Millennial arquetípica
entende a política do princípio ao fim a partir de seus
sentimentos de angústia individual. Existe ali uma notável falta
de feminismo produzido por e alcançado através de construção
de mundo ativa e colaborativa. Como observou a teórica
cultural Lauren Berlant, práxis se tornou coisa de experiências
psicológicas. Suas famosas perguntas sobre sentimento e
política agora servem tanto como um insight e um aviso: “O que
significa a luta para dar forma à vida coletiva quando uma
política de sentimentos reais organiza a análise, a discussão, a
fantasia e os princípios? Quando sentimento, o que existe de
mais subjetivo, o que torna as pessoas públicas e marca seus
locais, tira a temperatura do poder; media a humanidade,
experiência e história; toma o lugar da ética e da verdade?”⁶

Talvez esse seja o último suspiro do millennial, cujo horizonte


no “mundo real” se estreitou tanto (nós não conseguimos
comprar casas ou nos engajar com o público para além das
nossas personas amigáveis-para-com-empregadores, e
estamos em uma batalha perdida com o capitalismo tardio) que
nós lidamos com isso expandindo os limites do que emoções
pessoais podem conquistar em dissimulada má fé, embora eu
já tenha listado os meus problemas com o “nós” simplista. A
política tem com cada vez mais frequência sido envolvida na
esfera midiática da representatividade, repleta como ela é de
artistas, escritores e jornalistas que não são organizadores
políticos, nem ativistas e certamente não são a vanguarda de
nenhuma revolução. Eles também não parecem interessados
em sê-la. Trancados na assustadora prisão das suas próprias
neuroses, onde os caminhos para liberação cada vez mais
estreitos sempre parecem invocar a linguagem da recuperação,
autodesenvolvimento e melhora individuais (terapia é algo
maravilhoso, mas é estranho que uma troca privada e
mercantilizada parece ter se tornado sinônimo de uma prática
pública de uma ética de cuidado), o millennial da indústria
cultural enfrenta um dilema. Ou você encontra um caminho para
sair dessa corrida competitiva louca tentando
desesperadamente conseguir a aprovação dos guardiões da
indústria (boa sorte com isso) ou sai e molda seus próprios
caminhos para florescer, o que – se você puder arcar com isso
– requer tanto perceber que você não é tão especial assim
quanto talvez encontrar uma verdadeira utilidade para o seu
esquerdismo predominantemente inerte. Muitos parecem
escolher a primeira opção.

Para um romance sobre semi-marxistas, é irônico que o clímax


triunfante de Pessoas Normais, como Madeleine Schwarts
comentou no New York Review of Books, envolva um dos
protagonista ser aceito em um programa de mestrado de escrita
em Nova York. A pergunta sobre o que ele fará depois de
conquistar essa ascensão permanece convenientemente sem
resposta. Quando o inimigo é tão insuperável quanto o
capitalismo tardio, imaginar o futuro parece um exercício inútil.
Será que você vai emergir do outro lado para ocupar o espaço
de poder? Como muitos pensadores têm ponderado, é mais
provável que o mundo acabe antes. As muitas divisões
socioeconômicas que marcam a nossa geração estão
esmagadas debaixo da linguagem vaga do esgotamento
coletivo e sofrimento mútuo que vêm de viver debaixo da bota
do capital. O “nós” usado em tantas discussões sobre os
millennials que no final das contas são apenas discussões entre
criativos de classe média alta funciona não como uma
convocação unificada, mas um apagamento conveniente de
diferenças. Ele permite que os mais poderosos entre nós
abandonem a ideia que o mundo é algo que nós podemos de
fato construir, não apenas suportar.

As poucas millennials privilegiadas que são capazes de


prosseguir marchando, prosseguem; ansiosamente fazendo o
que podem com o que lhes foi dado. Na metade final de
Fleabag, nossa protagonista sofrida consegue ter uma conversa
vagamente sincera com seu pai emocionalmente distante, uma
das primeiras – suspeitamos – de sua vida. Ele lhe diz que ela
ama demais. É tanto o que a torna especial quanto o que a
deixa vulnerável a uma gama de emoções terríveis que ela
preferiria não sentir e que passa bastante tempo tentando
reprimir. Nessa troca, nós temos um vislumbre de crescimento,
uma mudança que pode parecer pequena, mas que possui um
mundo de significado pessoal, como a maioria dos triunfos
individuais costuma possuir. A série termina com uma confissão
– uma que não é seguida por uma piada perspicaz com intuito
de desviar o rumo conversa, tática típica da personagem. “Eu te
amo,” ela fala para o padre interpretado por Andrew Scott, o
que serve não tanto como uma confissão beatífica quanto como
uma sentença de morte para o relacionamento condenado dos
dois. Ele tenta interrompê-la, mas ela permanece firme – “Não,
não, vamos só deixar isso existir por um segundo.” Embora
Fleabag esteja conversando com um padre, essa também é
uma súplica para o público. Fique um momento com a minha
história como ela é; deixe-me ter a minha dor. Nós devemos
honrar isso enquanto permanecemos conscientes das
condições que as tornaram indivíduos por excelência nesse
pequeno pedaço do mundo.

© Rebecca Liu, 2019

Rebecca Liu é assistente digital para a Prospect e é uma das


colaboradoras da Another Gaze.

Este ensaio foi publicado originalmente na revista


digital Another Gaze e pode ser encontrado no idioma original
aqui. A tradução foi feita por Glênis Cardoso e revisada por
Karine e Amanda V.

¹ c/f Bret Stephens, ‘Opinion | Dear Millennials: The Feeling Is


Mutual’, the New York Times; Bret Easton Ellis’s late career.

² Meaghan Garvey, “The True, Freaky Originality of


CupcakKe”, MTV News.

³ Jeanette Winterson, ‘Oranges Are Not The Only Fruit’ online


Q&A.

⁴ “Quando Mulheres Não-Brancas falam de um lugar de raiva


que parte de tantos dos nossos contatos com mulheres
brancas, com frequência nos dizem que nós estamos ‘criando
um clima de desesperança’, ‘impossibilitando que mulheres
brancas superem a culpa’, ou ‘impedindo o caminho da
comunicação e da ação honestas…’ Pessoas oprimidas sempre
são cobradas para que sejam mais flexíveis, façam a ponte
entre a cegueira e a humanidade.” Audre Lorde, The Uses of
Anger: Women Responding to Racism, 1981.

⁵ Vicky Jones in an interview with Billy Barrett, “Is ‘Fleabag’ a


feminist action? Absolutely”, A Younger Theatre.
⁶ Lauren Berlant, “The Subject of True Feeling: Pain, Privacy,
and Politics” in Left Legalism/Left Critique, pp. 111-112.

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