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O DEUS DE SÃO JOÃO DA CRUZ

Pretendemos mostrar, nestas páginas, o verdadeiro Deus de São João da Cruz, isto é,
um Deus amante do ser humano. Sua mensagem reside em transmitir um Deus que busca
constantemente um espaço, de preferência vazio, no coração humano, uma vez que Ele é um
Deus ciumento. Por isso, João da Cruz convida-nos a abrimos as portas do nosso coração e
deixar que Ele entre em nosso ser.
São João da Cruz conduz-nos ao Deus amor, ajuda-nos a compreender a centralidade
em Deus, em Cristo e, assim, a centralidade no amor que se expressa na relacionalidade de
uns com os outros, sobretudo nos mais pobres e necessitados, pois a imagem de Deus é
sempre a do Servo Sofredor.

* * * * * * *
Para que o ser humano abra a porta do seu coração é necessário que haja aí
um desprendimento de tudo o que não é Deus. É aqui que a mensagem de João da
Cruz se vê mais necessária: “Ele proclama um Deus que deseja encontrar-nos,
mudar e satisfazer nossas necessidades mais profundas”. 1
Os escritos de São João da Cruz são fruto de sua experiência.
Aparentemente não temos nada de pessoal em seus escritos. Parece que o doutor
místico não fala absolutamente nada de sua vida pessoal. Mas, não!! SUAS OBRAS
SÃO UMA BIOGRAFIA INTERIOR. Ele fala, e fala muito de sua experiência com
Deus. Suas cartas retratam a vida de quem está enamorado de Deus e quer ajudar
as pessoas a encontrarem o caminho dessa união com Deus. Assim João da Cruz
se expressa em uma carta a Juana de Pedraza em 12 de outubro de 1589, estando
o santo em Segóvia:

Como anda nessas trevas e vazios de pobreza espiritual, pensa que tudo e
todos lhe faltam, mas não é de admirar, pois nesse estado, lhe parece que
até [Deus lhe falta, entretanto, não é assim, nada lhe falta... Quem não
quer outra coisa senão a Deus, não anda nas travas, por mais escuro e
pobre que se veja.2

Tanto a personalidade de João da cruz quanto a sua produção literária foram


resultado de duas coisas: “o amor e a dor. Nasceu em uma Espanha que, sendo a
super potência do momento, sofria de grande pobreza e de desigualdades sociais
profundas”.3 João nasceu no seio do sofrimento, da dor; desde pequeno aprendeu
que a vida não é fácil desde que a esperança esteja viva no coração. Esperança de
dias melhores. Apesar da pobreza da família, sempre houve partilha do pouco que
tinham com os que tinham menos que eles. Mais tarde, João vai se deparar
novamente com um ambiente de dor e sofrimento: o hospital onde trabalhava. A
experiência com a dor do nosso semelhante parece nos aproximar de Deus,
sobretudo de seu Filho, Jesus Cristo. “Este tempo de penúria abarca quase a
metade da vida de João. Quando começou a escrever, tinha por de trás toda essa
experiência de amor e dor”.4

A palavra de João emana de tudo isto: uma juventude forjada no amor e na


dor, e uma vida religiosa temperada pelo conflito e por uma visão clara e

1
MATHEW, Iain. El Impacto de Dios. Burgos: Monte Carmelo, 2007, p. 17.
2
Epistolário 35: A Dona Joana de Pedraza, em Granada: Segovia, 12/10/1589. In: Obras Completas
de São João da Cruz.
3
MATHEW, Iain. El Impacto de Dios, p 22.
4
Idem, p. 24.
reta. João se Põe a escrever quando chega a uma vivência tal, que quase
não pode dizer outra coisa que disse e como disse.5

Foi na prisão da cidade de Toledo que João fez sua mais profunda
experiência de Deus no sofrimento. Para João a prisão significou fome... e junto a
isto uma espécie de tortura psicológica. Esse sofrimento também passa pela
ausência de Deus, pois quando João mais precisava, parecia que Deus estava
distante.

Quando mais precisou da presença de Deus, mais sentiu sua ausência e


mais se sentiu um estranho. Seus escritos posteriores revelarão o que seus
contemporâneos suspeitavam: ‘Durante o tempo de sua prisão, ele sofreu
grande secura e aflição’ (testemunho de Inocencio de San Andrés:
Crisólogo 156 n.49); às vezes o Senhor se retirava e o deixava em uma
escuridão interior tão grande como a de sua cela (testemunho das monjas
de Sabiote: In: Pacho, p. 111)6

Na prisão, João configura-se à morte de Cristo e, depois de sua fuga, à


ressurreição.

Na escuridão de sua noite João compreendeu o desejo gratuito que Cristo


tinha de amá-lo. Trata-se de um Deus que se dá a si mesmo ao pobre: esta
e a chave para entender tudo o que João tem que dizer. 7

Resumindo o que dissemos podemos dizer que:

1º ponto: a palavra de João nasce de sua experiência;

2º ponto: esta experiência lhe deu habilidade de encontrar o outro em sua


necessidade.

Além disso, no que se refere às direções espirituais, João não era somente
um mestre, mas também um aprendiz, pois algumas estrofes do Cântico Espiritual
surgiram nas conversas com seus dirigidos espirituais. A Francisca certa vez ele
perguntou como esta rezava. Ela disse que olhava a beleza de Deus. Assim
surgiram os versos: “Gozemo-nos Amado, e vamos ver em tua formosura”.
Toda a vida de João está voltada à união com Deus. Ele quer fazer com que
as pessoas encontrem esse caminho e deixem de lado as piedades extraordinárias. 8
Talvez a melhor obra de João da Cruz tenha sido a Chama Viva, que consiste
em um comentário do hino ao Espírito Santo. Há outras três obras que chamamos
de “maiores”: Cântico, Subida e Noite.

Subida: tratado sobre o progresso na vida cristã;


Noite: descreve o mais penoso desse progresso;
Cântico: o progresso é um caminhar de “amantes” que se buscam e se encontram.
Chama: canto de êxtase que mostra a solidez interior de João. A experiência de
Deus é tão profunda que não se pode expressar (Ch 2,21).
Constantemente João da Cruz nos pede que simplesmente acreditemos que
o Senhor pode fazer maravilhas em nossas almas (2S 4,6).

5
Ibidem, p. 26.
6
Ibidem, p. 28.
7
Ibidem, p. 31.
8
1S 8,4; Cb 39,4; 38,3; 35,1; 29,3.
Isto é o que a Chama nos pede: que nunca deixemos de crer no desejo de
Deus de saciar-nos... este Deus tão esplêndido converte-se em espaço
dentro do qual a minha vida decidiu viver9. (Ch 2,5; 2,21; 2,36).

Espaço

Abrir um espaço dentro de nós para Deus: este é o tema mais corrente na
espiritualidade de São João da Cruz. Para ele “Deus é um Deus que se aproxima, e
nosso trabalho consiste não tanto em construir senão em receber; a palavra chave
não é “conquista”, senão “espaço””. 10 E assim surge a doutrina do “nada”. Para que
Deus possa entrar em nós é preciso que não exista nada, a não ser o vazio. A
subida é exigente. Exige tudo e algo mais. É como quem quer seguir a Jesus.

O progresso cristão significa a busca de quem põe alegria em minha vida,


que parece crer em mim, que me vivifica. Quando estou com Ele, cada
momento é uma revelação; e estar sem Ele é como morrer11.

Em outras obras, como Chama, João usa alegorias que remetem à ação de
Deus na pessoa, que deve simplesmente abrir espaço. Essa é a ideia quando ele
fala do sol que ilumina, os olhos que olham, a mãe que amamenta, a água que
corre.
A palavra “nada”, segundo João, estaria vazia de sentido se não fosse o
anúncio que ela traz que consiste na presença do “Todo”: “Só mora neste monte a
honra e glória de Deus” (Ch 1,32). O que atrapalha a união com Deus não são as
coisas que podem existir na vida da pessoa, mas sim, as atitudes dessa pessoa.
Temos que desenvolver nossa capacidade de amar (1S 11,6). A harmonia
está em amar as coisas dentro de Deus, e não desprezá-las (1S 5,4).

A resposta de João vem a ser esta: consegue tua liberdade aprendendo a


dizer “não”. Não, não necessito disso. Necessito Dele. Não necessito disso,
não porque seja algo ruim, senão porque é ruim que ocupe o centro, e eu
quero Ele no centro. Nesta ocasião digo não. Não necessito escrever esta
carta ou fazer um telefonema. Não necessito ver hoje esse programa de
TV. Não necessito ter a aprovação daquela pessoa... João chama a isto
“negação”: Ser livre dizendo “não”. Não se trata de negar uma coisa ou
uma pessoa, senão a própria dependência, criando assim, o âmbito para a
verdadeira comunhão12.

A questão fundamental é optar por Deus, deixando tudo aquilo que não é Ele.
O VAZIO SÓ TEM VALOR QUANDO DEUS QUER OCUPAR O ESPAÇO.

Fé, esperança e amor.

Podemos resumir as obras maiores de São João da Cruz em três palavras:


crer, confiar, amar. Mas, poderíamos nos perguntar: onde encontrar a experiência de
Deus? João da Cruz fez a mesma pergunta em versos: “Onde te escondeste?”.
Quando João procura a experiência de Deus, procura explicar do que se trata. Não é
“sentir”, mas sim, trata-se de “realidade”. A presença de Deus é algo mais profundo
do que sentimentos (Cântico 1,12). A questão é buscar Deus na fé e no amor. “Viva
em fé e esperança, ainda que seja às escuras, que nestas trevas Deus ampara a
9
MATHEW, Iain. El Impacto de Dios, p. 64.
10
Idem, p. 70.
11
Ibidem, p. 71.
12
Ibidem, p. 79.
alma”,13 porque Deus se revela na fé. “Somente na fé receberá a iluminação do
Espírito de Deus”.14

Fé Amor Esperança
↓ ↓ ↓
Entendimento vontade memória
↓ ↓ ↓
Conhecer como amar no permite ser eu mesmo
o Filho conhece amor do Espírito no tempo

Quem é Jesus para João da Cruz?

João ouviu falar de Jesus, estudou, ensinou, dirigiu muitas pessoas a Jesus.
Porém, no cárcere de Toledo ele, agora, quer encontrar a Jesus: “Onde te
escondeste”? O que significa Jesus para mim, pergunta João.
Frei João foi preso no começo de dezembro e os “Romances”, que mostram
quem é Jesus para João, têm muito do Advento. “Pai, Filho e Espírito são
absolutamente pobres porque se dão completamente um ao outro; e assim cada um
é imensamente rico com a generosidade do outro”. 15
Para Santo Tomás, Deus não haveria se encarnado se o ser humano não
fizesse pecado. “Este tema de Tomás de Aquino foi estudado por João na
universidade. Mas aqui, nos Romances, o pecado não ocupa já o centro da cena.
Agora que João foi levado mais além de seus próprios limites, é importante que o
Filho não só perdoe, senão que ‘esteja com’”. 16 Este é o Jesus de João, aquele que
está junto, o Emanuel: Deus conosco.

Este é o Jesus de João da Cruz, quando este começa a viver seus meses
de isolamento e de amargo rechaço; quando tudo (seu corpo, seus amigos,
seu futuro, seu sentido da vida, inclusive o Deus de seus pais) se torna
estranho. Jesus é aquele que João encontro do seu lado na fé; aquele que
derrama suas mesmas lágrimas e sofre sua mesma angústia, adoçando o
que é terrivelmente amargo com seu amor de esposo.” 17

Jesus: experiência de Deus

O livro da Subida, no capítulo 22, fala da necessidade de confiar em Deus na


fé, isto é, sem apoio algum. Nesse sentido, vamos apresentar sistematicamente um
resumo deste capítulo para termos uma ideia do que se trata. A numeração que
segue são os parágrafos:

1-4: a fé é um encontro com Deus na escuridão.


5: a meta consiste na união.
6: as virtudes teologais nos conduz à meta.
8: os sentimentos ou as ideias não nos levam a Deus.
9: a fé, sim, pode. Assim, aparecem as alternativas da fé enumeradas no cap. 10.

13
Epistolário 40.
14
2S 29,6.
15
MATHEW, Iain. El Impacto de Dios, p. 190.
16
Ibidem, p. 192.
17
Ibidem, p. 194.
12-15: pensar e imaginar diversas cenas é importante, mas pode chegar o momento
de ir além delas.
11,16: fenômenos extraordinários não devem ser buscados.
17: Deus concede às vezes estas experiências extraordinárias em razão das
necessidades concretas de uma pessoa.
18: mas, podem ser mal entendidas como,
19: vemos na escritura.
20: inclusive alguns personagens bíblicos entenderam mal algumas manifestações
divinas.
21: o fato de que Deus responde a um sinal, não quer dizer que Deus o faça com
gosto.

São João é enfático: nem isso, nem aquilo. Não se deve buscar nada em
parte alguma. É só na fé.

Nada → espaço aberto para Cristo.

Todo → Jesus Cristo – 2S 22,4; C 6,7


Todo vazio tem por finalidade a plenitude.

No livro do Cântico vemos que a dinâmica consiste em conduzir a pessoa,


como que em uma viagem, ao centro de si mesma. “Isso é o céu: um entrar
plenamente nas cavernas do coração de Cristo, o espaço infinito do Pai”. 18 “Queres
alguma palavra de consolação? Olha meu Filho, submisso a mim, tão humilhado e
aflito por meu amor, e verás quantas palavras te responde”. 19
João da Cruz nos conduz à pobreza interior e ao vazio total (2S 7). Para ele o
que importa é a experiência que Jesus fez da “noite” (2S 7,9).

João quer chegar às últimas consequências da cruz. Para ele, o ponto


central é a relação de Jesus com seu Pai. E é aí onde Jesus sente-se
abandonado. Jesus resgata o pecador, a humanidade pecadora,
recorrendo toda a distância que o pecador fez desde o Pai e descobrindo
ali onde se encontra.20

Jesus está presente em ‘Noite’: é o amor por ele que impulsiona a pessoa a
buscá-lo (1N 1,1; 2N 21,3). A união com o Filho faz com que tudo valha a pena (2N
24,3). O amor do Ressuscitado manteve viva a esperança dos discípulos (2N 19,4;
13,6). A noite trata do que se sente e não o que acontece durante a noite do espírito.
Basta olharmos para a imagem do crucificado. Ele está totalmente abandonado, está
totalmente mergulhado no sofrimento.
Este é o Deus de São João da Cruz, um Deus-Amor que quer se aproximar
de nós, fazer parte de nossa vida. Basta estarmos vazios para que Ele possa
preencher toda a nossa existência.

Frei Lucas Elias, ocd.


Rio Grande-RS

18
Ibidem, p. 201.
19
2S 22,6.
20
MATHEW, Iain. El Impacto de Dios, p. 205.

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