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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA

A DESOBEDIÊNCIA EM CALABAR: O ELOGIO DA TRAIÇÃO

Júlia Tavares Bessa

Niterói
2020
Júlia Tavares Bessa

A DESOBEDIÊNCIA EM CALABAR: O ELOGIO DA TRAIÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos de Literatura da
Universidade Federal Fluminense como pré-
requisito para a obtenção do título de Mestre em
Estudos da Literatura: subárea: Literatura
Brasileira e Teoria da Literatura. Linha de
pesquisa: Literatura, História e Cultura.

Orientador: Prof. Dr. André Dias

Niterói
2020
Júlia Tavares Bessa

A DESOBEDIÊNCIA EM CALABAR: O ELOGIO DA TRAIÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos de Literatura da
Universidade Federal Fluminense como pré-
requisito para a obtenção do título de Mestre em
Estudos da Literatura: subárea: Literatura
Brasileira e Teoria da Literatura. Linha de
pesquisa: Literatura, História e Cultura.

Aprovada em:

Banca Examinadora:

______________________________________________________________________
Professor Dr. André Dias (UFF – Orientador)

______________________________________________________________________
Professora Dra. Claudete Daflon dos Santos (UFF)
______________________________________________________________________
Professor Dr. Márcio Scheel (UNESP – São José do Rio Preto)
______________________________________________________________________
Professora Dra. Stefania Rota Chiarelli (UFF) - Suplente
______________________________________________________________________
Professor Dr. Felipe Gonçalves Figueira (IFF) - Suplente

Niterói
2020
Para meus pais Adriana Tavares e Márcio Bessa meus
maiores exemplos.
Para meu irmão/afilhado, Joaquim Bessa, que todo dia
me ensina uma nova maneira de olhar a vida.
Para meus avós (in memoriam) Ambara Feres Bessa e
Jaylce da Silva Bessa, meus grandes mestres nessa vida.
Para Patricia Greff, minha “boadrasta”, que trouxe mais
luz para meu caminho.
E para meu companheiro, Gabriel Vertulli, que sempre
segura minha mão e me ajuda a alçar os voos mais altos
da vida.
Agradecimentos

Primeiramente gostaria de agradecer de forma geral a todos (professores,


amigos, familiares, terapeutas) que acreditaram em mim nesse período de pesquisa e
produção dessa dissertação, pois, com certeza, sem essa força e o apoio que me deram
através de suas palavras e cuidados, talvez hoje esse trabalho não estivesse concluído.
Ao meu orientador André Dias, que me estimulou a crescer e a amadurecer não
só academicamente, mas interiormente também.
À professora, amiga, prima Beatriz Feres, que me instigou a seguir a literatura
desde o início dessa caminhada e que sempre acreditou em mim.
Aos meus pais que sempre acreditaram no meu potencial, me apoiaram e me
deram forças para seguir em frente, me mostrando que eu nunca estou sozinha e que os
meus alicerces continuam firmes mesmo quando eu acho que o vento é forte demais.
Ao Gabriel Vertulli que não só revisou diversas vezes esse trabalho e me ajudou
a alcançar parte da minha bibliografia através da biblioteca da PUC-RJ, mas também
tornou mais leves os momentos de desespero, e soube me fazer enxergar a necessidade
de às vezes parar e respirar antes de retomar a caminhada; sempre sendo companheiro e
exemplo para mim.
À biblioteca da PUC-Rio que muitas vezes foi meu refúgio para mergulhar na
pesquisa e na escrita dessa dissertação.
E à Universidade Federal Fluminense – que tem se feito casa desde 2014 – me
ajudando na minha formação e no meu crescimento como pesquisadora, professora,
educadora e, sobretudo, como pessoa no mundo.
RESUMO

No presente trabalho temos como objeto a peça Calabar: o elogio da traição, de Chico
Buarque e Ruy Guerra, escrita em 1973. A nossa questão principal é entender o estatuto
da traição existente na obra. Para tal, em um primeiro momento aproximaremos o
conceito de traição ao de desobediência, percebendo que os atos traidores existentes em
Calabar podem ser lidos como atos de desobediência. Em seguida abordamos a
importância de analisar as vozes femininas e masculinas da peça de forma separada para
compreender que tipos de denuncias são permitidas ou não a cada uma das personagens.
Por fim, examinamos as modificações feitas pelos autores ao revisarem o texto no início
do período da anistia, a relevância do contexto histórico em que os autores se
encontravam no momento em que produziram o texto e o exame dos espelhamentos e
extensões existentes entre os personagens. Ao fim pretendemos deixar claro que o
elogio da traição manifesto na peça pode ser interpretado como elogio da desobediência.

Palavras-chave: Calabar; Desobediência; Traição; Chico Buarque; Ruy Guerra.


ABSTRACT

In the present work we have as object the play Calabar: o elogio da traição written by
Chico Buarque e Ruy Guerra in 1973. Our main question is to understand the betrayal
status in the play. To this end, at first we being the concept of betrayal closer to the
concept of disobedience, noticing that the acts of betrayal in Calabar can be read as acts
of disobedience. Then we address the importance of analyzing the female and male
voices of the play separately to understand what types of denunciation are allowed or
not to each one of the characters. Finally, we examine the changes made by the authors
when reviewing the text at the beginning of the amnesty period, the relevance of the
historical context in which the authors were when they wrote the text and the
examination of mirrors and extensions existing between the characters. At the end, we
intend to make clear that the praise of betrayal manifested in the play can be interpreted
as a praise of disobedience.

Key-words: Calabar; Disobedience; Betrayal; Chico Buarque; Ruy Guerra.


SUMÁRIO

Introdução.......................................................................................................................11
1. O elogio da desobediência.........................................................................................17
1.1 Calabar e a Crítica: sobre heroísmo e traição........................................................17
1.2 A desobediência em Calabar: Outro Olhar...........................................................31
2. Que vozes são essas que mostram as dissonâncias?................................................40
2.1 As vozes femininas de Calabar............................................................................41
2.2 As vozes masculinas de Calabar..........................................................................51
3. Condições de Produção, Espelhamentos e Desobediência em Calabar.................62
3.1 Diferentes edições, diferentes textos: o que as modificações nas edições de
Calabar revelam..............................................................................................................62
3.2. O contexto de produção de Calabar – o que revela sobre a desobediência?.......69
3.3 Aproximações históricas e espelhamentos em Calabar – o que
indicam?...........................................................................................................................76
Considerações Finais.....................................................................................................86
Bibliografia.....................................................................................................................90
“Obedecer, desobedecer – é dar forma à nossa liberdade.”
(GROS, 2018, p.36)
11

Introdução

“Como é que um personagem é um traidor e outro não é, se ele trai o


primeiro? Como é que a mulher que ama um traidor passa a detestar
o outro e passa a amar o traidor? E como é que o outro traidor é mais
traidor, talvez, que o primeiro?”
(Ruy Guerra)

A presente dissertação tem como objeto a peça Calabar – o elogio da traição


escrita por Chico Buarque e Ruy Guerra em 1973. Em linhas gerais, podemos dizer que
o impulso inicial da pesquisa se dá a partir de seu subtítulo – afinal, como é possível
que uma traição seja elogiosa? – enfim, partindo do estranhamento sobre qual seria o
estatuto da traição que opera no interior desse discurso cênico, a pesquisa desenvolve-se
em ondas concêntricas: onde busca-se entender as condições históricas de produção da
peça, mas sem nunca esquecer que o seu epicentro é justamente a questão do ato traidor.
Em última instância, nosso objetivo é deixar claro como a traição elogiosa de Calabar
seria, ao fim, um ato de desobediência.
No ano de 1964, mais exatamente em abril, os militares assumiram o governo do
Brasil destituindo o então presidente João Goulart e instaurando assim a ditadura civil
militar brasileira. Ao longo dos governos militares que compuseram a ditadura, tivemos
entre os anos de 1969 a 1974, Emilio Garrastazu Médici como presidente do país. Seu
período é reconhecido historicamente como sendo o mais duro da ditadura.
Ao longo de seu governo, a censura se acentuou, e teve como um de seus
grandes marcos no meio teatral o episódio ocorrido com a peça Calabar – o elogio da
traição. A obra estava prestes a estrear; o texto já havia sido liberado pela censura de
Brasília em Abril de 1973, no entanto, – como relata Yan Michalski em O palco
amordaçado – em Novembro do mesmo ano:

Oito dias antes da data anunciada para a estréia de Calabar, a


empresa requer que seja marcado o ensaio geral para a censura, e é informada
de que a peça “foi avocada por instância superior para reexame”. A imprensa
é impedida de sequer mencionar o título da peça, só podendo noticiar, a data
prevista para a estréia, que “o espetáculo que iria estrear hoje no Teatro João
Caetano foi adiado sine die”. Quatro dias depois, o Gen. Antônio Bandeira,
Chefe da Polícia Federal, informa que o reexame do texto demorará três ou
quatro meses. Os produtores dissolvem o elenco, arcando com o maior
prejuízo (na época mais de Cr$ 400 mil) jamais causado pela censura a uma
produção isolada. Posteriormente, o texto é proibido. (MICHALSKI, 1979, p.
80-81)
12

Mas por qual motivo a peça foi proibida tão de repente e de forma tão abrupta?
Essa é uma das indagações que nos leva a pesquisar essa obra em questão e que
discutiremos mais a frente ao longo do capítulo três “Condições de Produção,
Espelhamentos e Desobediência em Calabar”. Para além disso, também abordaremos
ao longo desse capítulo todo o quesito do quanto a História do Brasil se entrelaça com a
peça – comprovando assim que, como alerta Bárbara (viúva de Calabar) à plateia, a
história é realmente uma grande colcha de retalhos. Para fazermos isso, veremos o
quanto é possível reconhecer e aproximar figuras e episódios históricos – para além
daqueles do período colonial – a partir do texto teatral.
Também se torna relevante apontarmos aqui que existe uma diferença entre as
edições de Calabar no que diz respeito ao texto, uma vez que após a anistia, quando a
peça foi liberada, os autores o revisaram e o modificaram. Esse ponto se torna pertinente
a essa pesquisa, pois percebe-se que, dependendo da edição que o leitor tem em mãos,
algumas de nossas análises não se tornam possíveis, uma vez que, principalmente após a
modificação do texto, cenas foram suprimidas, outras foram deslocadas e algumas
outras adicionadas – assunto esse que também será abordado no terceiro capítulo.
No entanto, é essencial que já tenhamos em mente que Chico Buarque e Ruy
Guerra se apropriaram de um episódio histórico ocorrido durante o período colonial
brasileiro – no qual Domingos Fernandes Calabar teria traído a Coroa Portuguesa ao se
aliar aos holandeses durante a invasão holandesa em Pernambuco – para então criarem o
enredo da sua obra. Para fazê-lo, eles tomam como bibliografia – como informado ao
fim de algumas edições do livro – os seguintes textos: Os Holandeses no Brasil de P.A.
Varhagen, Os Holandeses no Brasil de C. R. Boxer, D. Antonio Filipe Camarão e
Henrique Dias, ambos escritos por J. A. Gonçalves de Mello, O Valeroso Lucideno do
Frei Manoel Calado, Tempos dos Flamengos de Gonçalves de Mello Neto, Les
Hollandais au Brésil de Netscher, O Domínio Colonial Holandês no Brasil de Hermann
Natjen e Civilização Holandesa no Brasil de José Horório Rodrigues e Joaquim
Ribeiro. Isso se torna relevante exatamente para que possamos entender que alguns dos
episódios relatados aconteceram dentro da historiografia tradicional, assim como a
existência de todos os personagens, com exceção de Anna de Amsterdam.
Sobre o enredo, ao longo da peça pode-se entrever que o personagem principal
teria agido de tal maneira (rompido com os portugueses para se aliar aos holandeses)
por considerar a aproximação com Holanda mais promissora para “a gente do Brasil”;
ou seja, o que a Holanda propunha era mais próximo dos ideais e desejos de Calabar
13

para si e para o povo brasileiro se comparado aos princípios dos portugueses. A traição
– que se encontra no subtítulo da peça – é explicitada desde o início da obra e Calabar é
enforcado com trechos do mesmo discurso que foi proferido no enforcamento de
Tiradentes – deixando entrever mais um pouco da grande colcha de retalhos histórica. A
partir de então, ocorre o desenrolar de vários episódios como, por exemplo, a “traição”
de Bárbara ao se relacionar amorosamente com Souto, as inúmeras denúncias de traição
nas mais diversas camadas e a aliança posterior entre a Holanda e Portugal que, por fim,
deixa entrever que a morte de Calabar foi em vão, fazendo então do personagem que era
visto como o grande traidor, um mártir, um verdadeiro herói dentro do enredo.
A peça em si é dividida em dois atos, o primeiro relata Calabar através da
perspectiva portuguesa, onde ele é visto como traidor e entregue aos portugueses para
que possa ser enforcado e esquartejado. Já o segundo ato começa através da chegada de
Mauricio de Nassau, ou seja, passa a contar a história a partir do momento em que a
Holanda assume a colonização de Pernambuco, e Calabar deixa de ser o foco da peça.
Ele ainda está lá, no entanto a imagem do mameluco serve nesse momento mais como
ponte para que Nassau torne-se bem visto dentro de seu papel de governador; fazendo
com que o Brasil não só seja regido pelo comando holandês, mas também se aproxime
mais do que Calabar desejava que fosse. É a partir de então que o vemos perder a
alcunha de traidor para pouco a pouco ser reconstruído como um possível herói.
Ainda é importante aqui ressaltarmos que Calabar é apenas um nome ao longo
da peça, não há uma pessoa que represente o personagem; sendo assim, como aponta
Elzimar Fernanda Nunes em sua dissertação de mestrado:

Cada um enxerga o Calabar que lhe convém e aos debates a seu respeito, na
peça como na história, são palcos de uma luta onde se ouvem várias vozes
disputando o direito de serem consideradas detentoras da “verdade histórica”.
Só podemos traçar nosso próprio Calabar a partir da visão alheia. (NUNES,
2002, p. 12)

Ou seja, coube a peça não só recontar a história que já conhecíamos sobre o


Brasil colonial, mas também foi através de Calabar que os autores encontraram uma
maneira de aproximar o passado do presente, além de fazer uma provocação com a
plateia, de forma com que a ida ao teatro – que para muitos era visto como uma chance
de diversão e descontração – torna-se um momento de experimento catártico. O que
queremos dizer é que dentro de suas críticas, a provocação feita ao público ia além do
fato de que eles criassem seus próprios “Calabares”, mas que também se
14

identificassem/reconhecessem como Soutos, Bárbaras, Camarões, Dias e até mesmo


como Mathias e Nassaus; entendendo assim qual seria o papel que eles desempenhariam
na história a ser contada no futuro, quando os tempos de chumbo virassem “páginas
infelizes da nossa história”, como canta Chico Buarque em “Vai Passar”.
Muito já se foi abordado sobre Calabar no que diz respeito ao seu
entrelaçamento com a história do Brasil e até mesmo no que diz respeito ao seu valor
teatral e literário. No entanto, o que queremos propor aqui com nossa leitura é um novo
olhar que toma, sobretudo, a visão do quanto a temática da traição pode ser distorcida a
partir da dificuldade em se definir o que seria propriamente o ato de trair, como se pode
entrever através da epígrafe dessa introdução, ou também como disse o próprio Ruy
Guerra em entrevista dada aos alunos da PUC-Rio em 1973:

a traição é um negócio que a gente pode bater em muitos níveis. Pode bater
num nível inteiramente metafísico. Pode bater num nível inteiramente
circunstancial. Pode bater num nível ideológico. E é evidente que, para nós,
não interessa discutir a traição de uma forma absoluta, porque a traição é um
tema filosófico. (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 24)

Diante disso, percebe-se então o quanto o tema da traição se torna de extrema


importância para qualquer tipo de análise da peça; no nosso caso, ele se torna relevante,
primeiramente, pela questão de que ao longo da ditadura civil militar brasileira os
governantes viam aqueles que não compartilhavam da sua visão como traidores da
pátria. Tal situação permite que aproximemos a narrativa da peça do momento político
do país de então. Além dessa questão, o assunto também é relevante pela possibilidade
de todas essas leituras de traição (seja na peça, seja na história) abrirem uma perspectiva
pela qual elas poderiam ser analisadas como possíveis atos de desobediência.
Para entendermos o que seria a desobediência e os possíveis caminhos para
aproximá-la da traição se trona necessário que entendamos também os pensamentos de
Thoreau, Frédéric Gros e Aldo Carotenuto, onde temos os dois primeiros abordando a
desobediência e o último ocupando-se da traição. Todas essas questões, assim como
essa bibliografia, será o que abordaremos e destrincharemos ao longo do primeiro
capítulo da dissertação: “O elogio da desobediência”. Ao longo desse capítulo
discutiremos o que aproximam esses dois conceitos (desobediência e traição) e
entenderemos como a peça de Chico Buarque e Ruy Guerra permitem que seus atos de
traição sejam lidos como atos de desobediência.
15

Para além dos autores mencionados acima, devemos destacar também a


importância da entrevista que os autores deram aos alunos da PUC-Rio em 1973, bem
como da dissertação de mestrado defendida por Elzimar Fernanda Nunes em 2002 na
Universidade de Brasília, intitulada A reescrita da história em Calabar, o elogio da
traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra. As indagações e análises da autora foram de
grande ajuda para a compreensão e entendimento não só do entrelaçamento da
historiografia tradicional com o texto dramático, mas também para a clareza de quem
eram/são os personagens dessa trama.
Dito isso apontamos que nosso segundo capítulo, “Que vozes são essas que
mostram as dissonâncias?”, será dedicado a eles, ou seja, se deterá a analisar as
personagens do nosso enredo, levando-nos a entender o porquê desobedecem e de que
maneira revelam isso ao público. Já adiantamos aqui que alguns desses atos de
desobediência são extremamente atrelados aos papéis sociais que ocupam. Para nos
auxiliar nessas análises traremos para o debate os apontamos de Judith Butler sobre
quais vidas seriam enlutáveis, bem como as ideias de Marilena Chauí sobre o que seria
o discurso competente.
Focamos nessa introdução muito no que diz respeito à historicidade por trás de
Calabar, sobretudo pelo fato de que esse é um elemento relevante para a pesquisa. Pois
em um momento histórico no qual deveríamos ter extremo cuidado com o que dizer e
como dizer, Chico Buarque e Ruy Guerra resolveram justamente propor a traição como
tema, recontando a história do Brasil através de um outro prisma. A partir do enredo é
possível perceber críticas ao regime civil militar em que viviam, tornando então
possível fazer o seguinte questionamento: até que ponto ir contra aqueles que estão no
poder, ou seja, ir contra ao pensamento da elite que governa o país é um ato de traição?
A essa pergunta talvez nós nunca tenhamos uma resposta exata, pois, até mesmo
como aponta a personagem Bárbara em Calabar, para que se haja traição há que se
olhar primeiro para o que é traído, ou a pessoa traída, revelando assim não só a
problemática por trás do vocábulo traição, mas também a necessidade de se tomar um
lado para que exista uma traição, ou seja, um ponto de vista dentro da história.
No intuito de examinarmos um pouco dos mistérios existentes nesse mosaico
construído por Chico Buarque e Ruy Guerra, escolhemos então apontar uma leitura da
traição como desobediência (primeiro capítulo), perpassando pela análise dos
personagens presentes no enredo (segundo capítulo) e por fim compreendendo o quanto
16

que a historiografia tradicional, bem como o contexto de produção de Calabar, estão


entrelaçados na peça (terceiro capítulo).
Sendo assim, como diria a personagem Bárbara: sintam-se “iniciados nos
mistérios da traição” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 93).
17

1. O elogio da desobediência
1.1 Calabar e a Crítica: sobre heroísmo e traição.

“Uma planta que não pode viver de acordo com sua natureza morre;
assim também um homem.”
(Henry David Thoreau)

Ao analisarmos a peça Calabar: o elogio da traição (1973), escrita por Chico


Buarque e Ruy Guerra, é necessário que tenhamos em mente que os autores se
apropriaram de um episódio histórico ocorrido durante o período colonial brasileiro, em
que Domingos Fernandes Calabar teria traído a Coroa Portuguesa ao se aliar aos
holandeses durante a invasão em Pernambuco para então montar o enredo de sua obra.
O personagem principal teria agido de tal maneira por considerar a aproximação
com a Holanda mais promissora do que a vinculação aos portugueses. A traição é
explicitada desde o início da obra e Calabar é enforcado com trechos do mesmo
discurso que foi proferido no enforcamento de Tiradentes. A partir de então, ocorre o
desenrolar de vários episódios como, por exemplo, a “traição” de Bárbara ao se
relacionar amorosamente com Souto, as diversas denúncias de traição nas mais diversas
camadas – traição entre amigos, traição amorosa, traição ao governo, traição ao seu
próprio povo/as suas próprias origens (como no caso de Henrique Dias e Camarão),
traição a si mesmo – e a aliança posterior entre Holanda e Portugal que, por fim, deixa
entrever que a morte de Calabar foi em vão, fazendo então do personagem, que era visto
como o grande traidor, um mártir, um verdadeiro herói dentro da história.
A dicotomia (traidor/herói) fica evidente no personagem devido ao fato de que
ao longo do primeiro ato vemos Calabar sendo o traidor – através das vozes do Frei, de
Mathias, Souto, Dias e Camarão, que se encarregam de marcar e sublinhar a alcunha do
personagem principal. No entanto, no segundo ato, a imagem de Calabar começa a
mudar e ele passa a ser visto como herói, seja pelos confrontos que Bárbara trava,
sobretudo, com Souto, Camarão e Dias, seja pelo fato de o próprio traidor de Calabar –
Souto – chegar a se comparar em determinado momento com o mestiço, enaltecendo-o e
mostrando que só mesmo eles dois entendem o que estaria por trás de toda a guerra.
Nota-se que essa mudança da denominação dada ao personagem principal ocorre
desde a primeira fala do segundo ato, pois Nassau usa da imagem do mestiço para
legitimar seu governo, como Elzimar Fernanda Nunes, em sua dissertação de mestrado
18

intitulada A reescrita da história em Calabar, o elogio da traição, de Chico Buarque e


Ruy Guerra, descreve ao explicar qual seria a lógica que teria levado os autores a
dedicarem o segundo ato mais a imagem de Nassau do que a de Calabar

A lógica que levou os autores à, aparentemente, abandonarem Calabar e se


concentrarem em Nassau pode ser encontrada no princípio do segundo ato,
quando o conde declara sobre Calabar: “Tu não morreste em vão”,
apossando-se da figura do mestiço para legitimar seu próprio governo.
(NUNES, 2002, p. 113)

Entretanto, torna-se importante ressaltarmos aqui que a crítica feita sobre a peça
ainda é escassa, pois a mesma foi censurada poucos dias antes de sua estreia e só veio a
ser encenada em 1980, após o início da anistia aos exilados e presos políticos
brasileiros, promulgada em agosto de 1979; porém, nesse momento, já tinha seu texto
sido revisto e modificado pelos autores. Sendo assim, o material que encontramos hoje
que discorre a respeito da discussão em torno dessa divisão herói/traidor existente na
figura de Calabar ficou, principalmente, a cargo de pessoas que tivessem interesse em
pesquisar e estudar a obra de Chico Buarque e Ruy Guerra academicamente.
Dito isso, começaremos essa análise atentando para o fato de os autores terem
usado trechos do discurso proferido no enforcamento de Tiradentes. Isso é relevante
porque traz à cena dois personagens vistos como traidores na história brasileira, no
entanto, dentre os dois, o que tem sua traição vista com valor positivo seria apenas
Tiradentes, pois como nos aponta Aluizio Alves Filho em seu artigo “A “dialética da
traição”, no imaginário social e político brasileiro”: “acusados de traição, ambos
pagaram com a vida; entretanto, na posteridade, Calabar manteve a pecha infame de
“traidor”, enquanto Tiradentes foi elevado à qualidade de mártir da Independência,
herói da república.” (FILHO, 2006, p. 1). Ou seja, a traição do personagem da
inconfidência mineira acaba o colocando na história brasileira como herói.
Notamos que, ao transpor para Calabar uma aproximação com Tiradentes
através do discurso de enforcamento do inconfidente mineiro, os autores acabaram nos
oferecendo uma dica de que a personagem principal da peça não é de todo um traidor.
Essa aproximação acaba colocando Calabar e Tiradentes no mesmo patamar, ou seja,
ambos são mártires/heróis.
O mesmo ocorre quando Chico Buarque indica uma aproximação possível entre
Calabar e Lamarca em sua biografia escrita por Regina Zappa. O autor diz que parte da
intenção ao escrever e representar Calabar “Era como discutir se o Lamarca, um militar
19

que passou para o lado da guerrilha, era ou não um traidor. Havia um paralelo evidente.
O interesse era esse na época. Mais tarde, a peça foi encenada, mas não tinha mais
graça.” (ZAPPA, 1999, p. 192).
Carlos Lamarca é reconhecido, historicamente, pelas Forças Armadas
brasileiras, como traidor devido ao fato de ter se aliado à guerrilha armada durante a
ditadura imposta pelo golpe civil militar no ano de 1964, mesmo que tenha sido um
capitão do exército brasileiro. Apesar de seu histórico, seja como guerrilheiro seja como
capitão, Lamarca também vivenciou a dicotomia herói/traidor, como apresentado por
Jefferson Gomes Nogueira, em seu texto Carlos Lamarca no imaginário político
brasileiro: o papel da Imprensa na construção da imagem do “Capitão Guerrilheiro”,
evidenciando as duas maneiras de ler os atos de Lamarca. No primeiro momento o autor
nos mostra que “A imagem de Carlos Lamarca é reproduzida como ex-capitão do
exército, traidor que se transforma num terrorista e criminoso comum.” (NOGUEIRA,
2008, p.14) e logo em seguida ele apresenta que

Segundo Motter (2011) a imagem de Lamarca transitava entre dois mitos: a


ideia do “herói positivo serve à minoria que acreditava que as mudanças
sociais são necessárias e, muitas vezes, só possíveis pela luta armada” e a do
“herói negativo, serve à outra minoria, a que detém o poder na sociedade e
que para manter-se como grupo econômico dominante tem que impedir ou
retardar mudanças.” (NOGUEIRA, 2008, p. 20)

Sendo assim, nota-se que por mais que houvesse essa divisão entre traidor e
herói na imagem de Lamarca, ele ainda assim ficou marcado pela alcunha de traidor.
Toda essa análise da aproximação histórica torna-se relevante na medida em
que, ao colocar Tiradentes (herói/mártir) e Lamarca (traidor para uns e herói para
outros) dentro do mesmo personagem – Calabar –, os autores de Calabar: o elogio da
traição, de certa forma, acabam propondo essa dicotomia traidor/herói, deixando assim
um pouco mais transparente essa polarização atribuída ao personagem principal, pois
como aponta Mariana Rodrigues Rossel em seu artigo “Chico Buarque: dramaturgo
(1967-1978)” ao falar sobre Calabar a historiadora aponta:

De degredado pela história oficial, ele passa a herói na revisão feita por
Buarque e Guerra, exemplo a ser seguido no momento em que a peça foi
escrita. E embora seja bastante nítida a identificação entre Calabar e Carlos
Lamarca, é interessante observar que o personagem-título nunca aparece em
cena, sendo apresentado pelo olhar de outros personagens e pelos pedaços de
seu corpo mutilado que surgem no palco. Ao não apresentarem um rosto para
Calabar, os autores permitem a identificação do personagem com qualquer
20

herói, expandindo para o coletivo a responsabilidade pela resistência à tirania


e à opressão. (ROSSEL, 2017, p. 264)

Essas comparações entre as personagens históricas de Tiradentes e Lamarca com


o Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra será destrinchada mais a frente em nossa
pesquisa dentro do capítulo três, no entanto, era necessário atentarmos agora para essa
análise para que pudéssemos discutir a questão dessa dicotomia traidor/herói vivenciada
por Calabar.
Além disso, vemos que essa alcunha dada ao Calabar da peça de Chico Buarque
e Ruy Guerra pode ser favorecida também, como já apontado por Mariana Rodrigues
Rossel, pelo fato dele ser o único que não é representado por ninguém, só conhecemos
Calabar através do que os personagens nos dizem e apresentam sobre ele. Sendo assim,
vemos que a personagem principal da peça passa pelo que Elzimar Fernanda Nunes
aponta em sua dissertação de mestrado

Como nos textos históricos só o conhecemos pelo que outros falam dele.
Neste sentido a peça reproduz o discurso histórico no qual várias vozes falam
sobre Calabar tentando interpretar suas ações. A peça gira em torno do debate
travado entre as personagens sobre o significado das atitudes do mestiço.
Essa discussão aparece desde o início da peça, quando Mathias de
Albuquerque se interroga angustiado “Por que é que ele foi para lá?” E
continua até o segundo ato, onde Nassau se coloca como realizador do sonho
de Calabar.
Portanto, a peça não opera simplesmente a transformação do vilão em
herói. O que há é um registro dos diversos julgamentos em torno de Calabar.
Por exemplo, se Dias e Camarão consideram-no traidor por ter abandonado
as fileiras portuguesas, Bárbara considera Calabar um idealista. Cada uma
dessas visões sobre Calabar é fundamentada na concepção de mundo de cada
personagem. (NUNES, 2002, p. 93)

É interessante também pensarmos em como historicamente Domingos Fernandes


Calabar também recebeu essa denominação de traidor, pois para a historiografia
tradicional, durante o conflito entre portugueses e holandeses em 1600, Calabar foi um
traidor da pátria, como evidenciado por Ronaldo Vainfas, no capítulo que ele dedica a
Calabar, em seu livro Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela
Inquisição

[...] Calabar foi submetido a uma junta por crime de alta traição. Decidiu-se
que o castigo de seus crimes deveria ficar à mercê do rei, resolvendo-se, ato
continuo, que Matias era o legítimo representante da Coroa espanhola ali. E,
assim, esquartejado como traidor, aleivoso à sua pátria e a seu rei, “e por
muitos males, agravos, furtos e extorsões que havia feito aos moradores de
Pernambuco”. (VAINFAS, 2008, p. 90)
21

Tal alcunha recebida por Calabar dentro da história oficial também fica evidente
na maneira que ensinamos a história do país nas escolas. Elzimar Fernanda Nunes em
sua dissertação também se preocupou em olhar para esse fator, isto é, de como a história
oficial cristalizou Calabar como traidor até mesmo nos livros didáticos. A autora
estudou o livro História do Brasil escrito por Joaquim Silva e J. B. Damasco Penna. Tal
livro, segundo a autora, era recomendado pelo MEC e publicado pela Companhia
Editora Nacional, o exemplar analisado era de 1969. Sobre a obra e como ela descreve
Calabar a autora diz

O fim da vantagem portuguesa é atribuído à “passagem, para seu lado [dos


holandeses], de Domingos Fernandes Calabar. Perfeito conhecedor da região
em que se combatia, Calabar com sua traição facilitou várias vitórias aos
invasores”. Portanto, o livro didático propaga a versão segundo a qual a
traição do mestiço foi o fator decisivo para que se efetivasse o Brasil
holandês. (NUNES, 2002, p. 78)

Para além desses autores, podemos também perceber através da bibliografia


histórica existente ao fim das primeiras edições de Calabar, o elogio da traição (essa
bibliografia foi removida do livro após a revisão e modificação do texto) que outros
autores/historiadores marcaram Calabar como traidor em suas obras. Esses livros
acabaram não só sendo usados como fonte para que Chico Buarque e Ruy Guerra
contassem sobre o seu Calabar, mas também foram instrumentos da construção do
discurso histórico tido como “oficial”. A saber, foram eles: o Frei Manoel Calado,
Francisco Adolfo Varnhagen, Hermann Wätjen e Charles Ralph Boxer.
Diante dessas questões, vale refletirmos sobre essa escolha de recorte histórico
feita pelos autores através do pensamento de Ruy Guerra:

interessava ainda pegar um personagem que estava oficializado como traidor.


Numa época em que existia muito conflito de traição, só ele ficou vinculado
como traidor. Por que só esse cara é traidor no momento em que 200 índios
passam de um lado para o outro; que regimentos holandeses passam para um
lado, um ano depois para outro; num momento em que a Espanha domina
Portugal, que os portugueses são contra os espanhóis, isto é há toda uma
mistura de valores incrível e só tem um traidor oficializado? (BUARQUE &
GUERRA, 1973, p. 7)

Observamos, então, que desde o início da peça Calabar já tinha em seu horizonte
a alcunha de traidor, mas ao longo do enredo notamos que ele ganha um valor maior, ou
seja, o traidor passa a ser mártir, vira exemplo/herói. Pois, como assegura Ruy Guerra:
22

“Nós não tínhamos nenhuma informação rigorosa que nos permitisse pôr o personagem
em discussão, num nível que não fosse simplesmente o sentimental: é um traidor, então
vamos colocar como herói.” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 6).
Sendo assim, no que diz respeito a Calabar, tanto historicamente falando quanto
na obra de Chico Buarque e Ruy Guerra, percebe-se que por trás de sua traição perpassa
uma questão social, como é apontado por Fernanda Botton em seu texto “Calem-se as
Bárbaras: as traições discutidas em Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra”: “Calabar
foi considerado traidor, não porque lutou contra os portugueses, mas sim porque ousou
ir contra a elite que estava no poder”. (BOTTON, 2012, p. 109). Logo, questiona-se: até
que ponto ter ideias contrárias “a elite que está no poder” é traição e não apenas a
expressão de uma opinião contrária?
Para essa pergunta, tomamos outra fala de Ruy Guerra como o início de uma
resposta possível, quando o autor aponta:

(...) O que se debate também em Calabar, não explicitamente, mas


obrigatoriamente, é o conceito de pátria. Porque é coisa fundamental da
época. Quer dizer: naquela época, tínhamos os brasileiros, os portugueses, os
espanhóis, os holandeses, aquela confusão toda. Havia uma série de divisões
internas. Mathias representa toda uma...(BUARQUE & GUERRA, 1973, p.
24-25)

O presente trecho, retirado de uma entrevista que os autores deram aos alunos da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC – RJ), apresenta a fala de Ruy
Guerra de maneira entrecortada, no entanto, por mais que o autor não conclua seu
pensamento, ele nos dá a dica direta para responder nossa dúvida a partir do próprio
texto literário, através da fala de Mathias, quando ele se confessa com o Frei
completando a frase do mesmo que está lhe dando o perdão de Deus: “Me perdoe. Caso
contrário eu não seria digno de enforcar um homem, brasileiro como eu, que se atreve a
pensar e agir por conta própria.” (BUARQUE & GUERRA, 1974, p. 32; 1975, p. 51).
Ou seja, o próprio personagem que seria visto como quem representa a coroa portuguesa
defende que o único “erro” de Calabar foi “pensar e agir por conta própria”, como
defende Fernanda Botton.
No entanto, por mais que ao longo de nossa pesquisa nós venhamos a nos
debruçar sobre as diferenças textuais existentes entre edições, é importante ressaltar
também que após a modificação que os autores fizeram no texto por volta de 1979, essa
fala de Mathias sofre alterações, pois o personagem passa afirmar: “Me perdoe. Caso
23

contrário eu não seria digno de enforcar um homem, brasileiro como eu, mas tão
insensato quanto os meus devaneios.” (BUARQUE & GUERRA, 1985, p. 39; 2017, p.
55).
Dito isso, e tomando o subtítulo da peça “o elogio da traição”, cabe de imediato
observar que no trabalho de Chico Buarque e Ruy Guerra percebe-se, ao primeiro olhar,
como a “traição” passa por uma inversão de valores ao ser “elogiada”, assim, ela ganha
uma conotação positiva que está para além de seu uso no senso comum, como diria Ruy
Guerra:

Inclusive, quando a gente põe um Elogio da Traição é tirado do Erasmo de


Rotherdam O Elogio da Loucura, que é justamente uma inversão de valores,
quando o cara faz um elogio da loucura. Aí, a loucura, como valor positivo,
numa época que se dá assim como um estigma. (BUARQUE & GUERRA,
1973, p. 6)

Esta inversão é importante na medida em que ela traz à tona o valor irônico
existente na peça; afinal, elogios de atitudes controversas como a loucura e a traição são
deliberadamente irônicos, ainda mais na época em que a peça em questão foi escrita,
pois, como aponta Elzimar Fernanda Nunes

Numa época em que o peso negativo da palavra “traição” era utilizada na


validação de um regime autoritário, Buarque e Guerra forjaram outro sentido
para o termo, colocando-o num campo semântico positivo. Não se trata
apenas de apontar a relatividade do conceito, mostrando que “traição” é uma
questão de ponto de vista (para os portugueses Calabar era traidor e Souto,
um solado leal; para os holandeses dava-se o inverso), mas elogiar a traição,
propondo que, às vezes, trair pode ser a atitude mais nobre a se tomar.
(NUNES, 2002, p. 108)

Podemos dizer, então, que o elogio da traição em Calabar tem início com a fala
de Mathias, e que a partir de então esse elogio se desenrola na peça através de vários
conflitos entre os personagens. Entretanto, se a peça tem como tema central a traição,
nota-se que, ao longo do enredo, Calabar, que seria o principal traidor, começa a perder
gradativamente esse título para então começar a passar a ser visto como herói, o que fica
evidenciado através do diálogo entre Bárbara e Souto no momento em que a viúva
confronta Souto, Camarão e Dias:

Bárbara: Você está arrependido Sebastião?


Souto: Estou sempre arrependido.
Bárbara: Está arrependido do que fez?
24

Souto: Já estou arrependido do que vou fazer, sem saber por que faço, e por
que me arrependo a cada instante. Queria que as coisas fossem mais
imediatas. Queria saber do certo e do errado. Queria não ter dúvidas.
Bárbara: Como Calabar.
Souto: Sim, como Calabar.
(BUARQUE & GUERRA, 1975, p. 65)

No entanto, essa interpretação só se torna possível nas edições anteriores à revisão e


modificação do texto que os autores fizeram por volta de 1979, mesmo embora,
analisando a versão da 5ª edição de 1974 e da edição de 1975, note-se na fala de Souto
uma diferença na escrita do vocábulo “porque”, que na primeira aparece grafado junto
“porque” e na segunda grafado separado “por que”. Nas edições posteriores à
modificação do texto, Bárbara não questiona mais Souto sobre seu arrependimento, ela
afirma que ele está arrependido e ele apenas concorda com a viúva de Calabar dizendo
que está sempre arrependido e que gostaria de não ter dúvidas, e não fazem mais as
comparações com Calabar.

Bárbara
V. está arrependido do que fez.
Souto
Eu estou sempre arrependido, sem saber por que me arrependo a cada
instante. Eu queria não ter dúvidas.
(BUARQUE & GUERRA, 1985, p. 53; 2017, p. 64)

Posterior a essa cena, Calabar vai ter sua traição elogiada através da voz de
Nassau, o personagem que é visto como representante da Holanda, quando ele dialoga
com os soldados em sua primeira aparição. Entretanto, ao terminar sua fala, em todas as
versões do texto, Nassau se auto intitula como “um holandês sem palavras”, deixando
uma dica de como é a sua índole e sua fama, pois até mesmo dentro da história oficial
ele também divide muitas opiniões. Enquanto para alguns autores, como Pieter Marinus
Netscher, Nassau seria extremamente admirável, para outros autores, como o Frei
Manoel Calado, ele seria apenas um narcisista. É tomando consciência dessa
polarização a cerca da figura de Maurício de Nassau que Chico Buarque e Ruy Guerra
montam o Nassau de Calabar, pois como diria Elzimar Fernanda Nunes

A construção da personagem Maurício de Nassau em Calabar mescla muitas


dessas visões. Ele é pintado ora como governante admirável, ora como
embusteiro; ora como nobre humanista, ora como materialista interesseiro;
ora como sábio diplomata, ora como cínico e manipulador; oscilando “entre
bêbado e sonâmbulo, / entre fidalgo e corsário, / governante e mercenário”
(NUNES, 2002, p. 114)
25

Diante disso, lançamos então o seguinte questionamento: será que esses elogios
a Calabar, a sua traição e ao seu heroísmo são válidos quando partem de um alguém
sem palavra? Observamos que, como já dito anteriormente, Nassau usa da imagem de
Calabar para legitimar seu governo, sendo assim, esse seu elogio não é em vão e nem
gratuito.

NASSAU (off)
Tu não morres em vão.
Eis um estranho epitáfio
dirigido a estranha gente
de um estranho continente
de contorno incerto.
Tu não morres em vão
repito-o, porém, deste meu porto,
como um grito de conforto
a algum estranho herói
de contorno incerto
no porto de um povo de imaginação.

SOLDADO 1
Calabar.

SOLDADO 2
Alles dat?

NASSAU
[...] Eu, Maurício simplesmente,
sem nenhuma testemunha
e sem Bíblia nas mãos,
duvido firmemente,
em nome dos Santos Mártires,
que algum dia algum homem
tenha conhecido morte
que não fosse vã.

SOLDADO 3 (segurando um pedaço de Calabar)


Também, era apenas um negro...

NASSAU (off)
Mas tu não morreste em vão.
Embora seja difícil dizer isso
agora que avisto teu mundo
no horizonte verde e vivo
e a paisagem definida
sem qualquer ressentimento
da tua ferida.

Nassau entra em cena.

NASSAU
Não, não morreste em vão.
Ou será em vão que rasguei esses trópicos,
será em vão que adivinhei a terra nova,
será em vão que piso a terra nova,
que beijo a terra que beijavas,
26

e essas palavras serão vãs


de um holandês sem palavra.
(BUARQUE & GUERRA, 1975, p. 75-76)

Se ainda olharmos esse trecho nos textos modificados, como veremos a seguir,
perceberemos que não há mais diálogo entre Nassau e os Soldados, apenas haverá um
grande monólogo de Nassau que agrupa todas as falas do holandês existentes na citação
acima e sem marcações evidentes da referência a Calabar. No entanto, fica evidente a
questão de Calabar ser um herói, pois, dentro de seu monólogo, ele aparentemente se
refere a Calabar como um “estranho herói” – por mais que tal referência ao mestiço seja
apenas um artificio usado pelo governante para validar a sua posição política.

NASSAU
(Off)
Tu não morreste em vão.
Eis, talvez, um estranho epitáfio
dirigido a estranha gente
de um estranho continente
de contorno incerto
num mapa de imaginação.
Tu não morreste em vão, repito,
aqui deste meu porto como um gesto de conforto
a algum estranho herói
de contorno incerto
no porto de um povo de imaginação

A luz descobre Nassau.

NASSAU
Eu, Maurício de Nasau-Siegen, conde holandês de mui nobre casa dos
Orange, que tantos reis e guerreiros tem dado ao meu país, embarco neste ano
de 1637 a caminho de Pernambuco, em terras do Brasil, como Governador-
Geral plenipotenciário a serviço e mando da Companhia das Índias
Ocidentais, carregando títulos, armas, idéias e um compromisso tácito com o
sangue derramado por desconhecidos.
[...]
Eu, Maurício simplesmente,
sem nenhuma testemunha e sem Bíblia na mão
e sem porra nenhuma na cabeça
duvido firmemente,
em nome dos Santos Mártires,
que algum dia
algum homem
nalgum lugar
tenha conhecido morte que não fosse vã.
Mas tu não morreste em vão.
Embora seja mais difícil dizer isso
quanto mais avisto o teu mundo no horizonte verde e vivo
e a paisagem definida
sem qualquer ressentimento
da tua ferida.
Não, não morreste em vão.
Ou será em vão que rasguei esses trópicos,
27

será em vão que adivinhei a terra nova,


será em vão que piso a terra nova,
que beijo a terra que beijavas,
e essas palavras serão vãs
de um holandês sem palavra.
(BUARQUE & GUERRA, 1985, p.61 e 62)

Continuando nossas análises a partir dos textos anteriores às modificações,


vemos que ao longo da peça Calabar irá passar pela inversão de traidor para herói
através de vários personagens que representam diferentes traições para ele. Mais à
frente do enredo será a vez de Bárbara fazer essa transposição de Calabar, ao dizer em
diálogo com Anna – diálogo esse que foi removido do texto nas versões posteriores à
revisão feita pelos autores –:

Não é. Tudo isso aqui em volta, tudo continua a rodar sem eles. Tudo isso fez
Calabar trair... Sebastião enlouquecer... Não valia a pena morrer por isso.
Holandeses, portugueses, não valia a pena morrer por nada disso. Ah...
Calabar... Queria que Calabar estivesse vivo, só para ter uma idéia do que se
chama traição. Porque Calabar se enganou, mas nunca enganou ninguém.
Sebastião, sim. Tudo o que Calabar disse e fez foi de peito aberto, às claras,
sem mentiras. Sebastião; não. Se é necessário chamar Calabar de traidor, que
chamem Sebastião do Souto de herói. (BUARQUE & GUERRA, 1975, p.
125)

Ou seja, o que queremos propor aqui é que, no caso de Calabar, essa inversão é
proposta de forma gradativa e não imediata. No início da peça você entende que existe
algo de errado na definição de Calabar como traidor, mas isso não fica completamente
evidente, o processo de inversão em Calabar se dá ao longo da peça através dos
pequenos diálogos, para que, paulatinamente, o público se dê conta de que Calabar
realmente não é traidor, ele seria apenas alguém que seguiu suas convicções e acabou se
tornando herói.
Todas essas questões ficam ainda mais evidentes ao fim da peça quando Bárbara
se dirige ao público e afirma que não gosta de espectador que tenha memória boa
demais – “A História é uma colcha de retalhos. Em lugar de epílogo, quero vos oferecer
uma sentença: odeio ouvinte de memória fiel demais. Por isso, sede sãos, aplaudi, vivei,
bebei, traí, oh celebérrimos iniciados nos mistérios da traição.” (BUARQUE &
GUERRA, 1974, p. 93). Tal trecho (existente em todas as edições analisadas aqui com
leves modificações gráficas ou com adição de algumas palavras, mas que não alteram o
sentido) sublinha um pouco as questões levantadas até aqui, pois se lembramos de
Calabar apenas como traidor, a transformação dele em herói talvez não seja
28

convincente. No entanto, se o leitor/espectador permitir essa flexibilidade do


personagem, se o leitor/espectador não tiver memória boa demais, como propõe
Bárbara, então ele verá Calabar para além da polarização. Entendemos que o ato de
Calabar corresponde apenas a uma desobediência, mas que, entretanto, sempre nos será
apresentada pelo ponto de vista válido para a história oficial que toma a voz do
vencedor como a verdade a ser passada para as próximas gerações, uma vez que, como
aponta Elzimar Fernanda Nunes, “a história oficial tende a ir apagando até mesmo a
multiplicidade de versões históricas, elaborando uma narrativa de origem, mítica e
fundadora que forma tradições culturais e legitima sistemas políticos” (NUNES, 2002,
p. 94).
Com efeito, essa colocação de Nunes vai ao encontro de um conhecido
argumento de Walter Benjamin em seu Teses sobre o conceito de história:

A natureza dessa tristeza torna-se mais clara se procurarmos saber qual é,


afinal, o objeto de empatia do historiador de orientação historicista. A
resposta é, inegavelmente, só uma: o vencedor. Mas em cada momento os
detentores de poder são os herdeiros de todos aqueles que antes foram os
vencedores. Daqui resulta que a empatia que tem por objeto o vencedor serve
sempre aqueles que, em cada momento, detêm o poder. (BENJAMIN, 2019,
p. 12)

Um dos pontos que Benjamin deixa transparecer nesta passagem é uma espécie
de crítica ao labor historiográfico tradicional. Quer dizer, no seu entender, o “historiador
de orientação historicista” tende, a partir de uma peculiar empatia, a escrever sempre a
história através da perspectiva dos vencedores. Decerto, essa crítica é conhecida e
possivelmente colocada por muitos outros autores e pensadores, afinal, não é preciso
uma pesquisa extensa para se perceber que na maioria das vezes a história que já se
tornou canônica é justamente a história vista pela perspectiva dos vencedores. Contudo,
o que chama a atenção é a sua proposta para se fugir dessa perspectiva tradicional:
Benjamin nos diz no mesmo parágrafo, um pouco mais adiante, que para evitarmos uma
historiografia que se apresenta apenas pela perspectiva dos vencedores devemos
“escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 2019, p. 13) – ou seja, deve-se contar a
história pela perspectiva contrária. Em suma, o que ele nos diz é basicamente que a
história é normalmente escrita pelos vencedores ou por aqueles que detêm o poder
político e, em prol da criação de novas possibilidades interpretativas, devemos escovar a
história a contrapelo para escrevê-la pela ótica dos vencidos.
29

O ponto é que o apelo benjaminiano por uma historiografia a contrapelo é


extremamente pertinente para os nossos propósitos. O que o torna relevante é que nos
foi contada a história de Calabar através da visão portuguesa – que cristalizou a sua
imagem como um traidor. Não obstante, como parece já estar claro até aqui, contar a
história do mestiço a contrapelo significa justamente interpretá-lo como herói.
Com efeito, não podemos deixar de destacar que essa história a contrapelo já
vem sendo escrita por historiadores empenhados em desconstruir a visão cristalizada.
Por exemplo, Ronaldo Vainfas nos mostra uma perspectiva que vai justamente nessa
direção. Para tanto, ele apresenta a visão do historiador Evaldo Cabral de Mello ao falar
sobre Calabar personagem histórico:

...o historiador Evaldo Cabral de Mello não teve dúvidas em afirmar que a
execução de Calabar, sobretudo do modo como ocorreu em grande parte foi o
que hoje chamamos de queima de arquivo. “A verdade” diz Evaldo, “é que
sua execução não se deveu apenas ao colaboracionismo, mas igualmente ao
conhecimento que adquirira dos contatos comprometedores mantidos por
pessoas graúdas da capitania com as autoridades neerlandesas.”. (VAINFAS,
2008, p. 90-91)

Dessa forma, podemos concluir que o que Chico Buarque e Ruy Guerra
apresentam com seu elogio a traição é, mutatis mutandis, o preceito benjaminiano de
escovar a história a contrapelo. Tal preceito é transformador, pois visa inverter a ordem
de construção e interpretação da realidade – exatamente como Brecht apontava, ao
escrever Estudos sobre o teatro, que deveria ser a forma épica de teatro, ou seja, fazer
com que o espectador consiga transformar não só a si mesmo, mas também o seu
ambiente social, pois como aponta o autor alemão nesta mesma obra, “...creio que o
mundo de hoje pode ser reproduzido, mesmo no teatro, mas somente se for concebido
como um mundo suscetível de modificação” (BRECHT, 2005, p. 21).
Diante disso, tendo a ideia de que é necessário trazermos uma nova forma de
ver o mundo, podemos também tomar a proposta de análise dos textos parodísticos feito
por Marcia Elizabeth Bortone, onde a autora diz:

O discurso da paródia visa à possibilidade de se construir uma leitura crítica


de uma ideia ou fato tradicionalmente aceitos, daí ser esta linguagem em
discurso da libertação; é uma leitura “às avessas” do texto anterior que lhe
serviu de inspiração, buscando, assim, criar uma releitura nova, aberta e
subversiva. (BORTONE, 2015, p. 81)
30

Isto é, o fato de Calabar ser uma obra escrita como uma espécie de mosaico,
onde várias vozes são refletidas – questão essa que aprofundaremos mais a frente – e
pelo fato dos autores usarem de textos históricos para recontar a história, possibilitam a
interpretação da peça como uma paródia. Quer dizer, pode-se interpretar a peça Calabar
como uma paródia na medida em que ela é uma releitura cômico-crítica de
acontecimentos e textos fundadores da historiografia brasileira. Diante disso, podemos
concordar com Elzimar Fernanda Nunes quando ela nos diz que

Calabar é uma obra assim constituída. Os textos históricos que lhe


serviram de base são, ao mesmo tempo, sua matéria-prima e suas vítimas.
Eles foram utilizados para dizer o que não queriam dizer (pelo menos não
intencionalmente), seus significados são invertidos pelo texto da peça teatral.
Percebe-se, portanto, seu parentesco com a paródia e com outros gêneros da
literatura carnavalizada. Sant’Anna já apontara o parentesco entre
apropriação e paródia, concebendo a apropriação como uma paródia levada
ao seu paroxismo.
Embora o termo “paródia” remonte à Antiguidade Clássica, seu
conceito moderno foi elaborado por Iuri Tynianov e retomado por Mikhail
Bakhtin. Os dois estudiosos russos viram na paródia muito mais do que um
dos diversos gêneros do cômico. Para ambos, a paródia é um elemento
imprescindível no sistema da evolução literária. Textos paródicos estariam
visceralmente ligados a momentos de transformação ao enfraquecer (ou
tornar patente as fraquezas) de formas literárias já demasiado gastas pelo uso,
e por isso mesmo, tendendo à cristalização. Neste momento, as paródias
cumpririam, ao mesmo tempo, o papel de demolidoras do passado e de
prenunciadoras do futuro. (NUNES, 2002, p. 89)

Apesar da longa citação, ela se torna extremamente importante para


entendermos que os autores da peça, ao escreverem um elogio à traição parodiando os
textos históricos, realmente acabam fazendo uma crítica social que se encaixa na
proposta de demolir um passado e prenunciar um futuro – como bem apontado por
Elzimar Fernanda Nunes. A partir dessa crítica espera-se então que o espectador tome
uma posição, reafirmando assim a ideia de que o espaço do teatro deve ser de fato
transformador. Podemos dizer que Calabar tem o potencial de levar o público a uma
catarse, de maneira que ele “encontre a sua própria verdade”, como afirmado por José
Mauro Barbosa Ribeiro, ao dizer que:

Afinado com as concepções do teatro moderno, principalmente no que toca


ao inacabamento da obra teatral, a peça Calabar conduzia o espectador a
procurar sua própria verdade, a identificar nas vozes expressadas, a sua
própria voz, obrigando-o a responder como protagonista de seu próprio
destino. (RIBEIRO, 2015, p. 131)
31

Por fim, notamos então que a peça é construída de tal modo que, de fato, o
personagem Calabar também se tornou protagonista do seu próprio destino – assim
como Ribeiro propõe que o público deveria fazer – ao optar pelo lado dos holandeses.
Sendo assim, o mestiço permitiu que o seu ato não fosse apenas interpretado como uma
mera traição, mas sim como um emblemático ato de desobediência.

1.2 A desobediência em Calabar: Outro Olhar.

“A única realidade é aquela que se contém dentro de nós, e se os


homens vivem tão irrealmente é porque aceitam como realidade as
imagens exteriores e sufocam em si a voz do mundo inteiro.”
(Hermann Hesse)

Após apresentarmos como se desenrolam as leituras possíveis de Calabar através


da dicotomia traidor/herói, propomos aqui uma nova visão sobre a atitude de Calabar ao
apontarmos a personagem como alguém que desobedece. Aproximaremos o que até
então foi lido por traição nos textos críticos – e até mesmo no próprio texto literário – ao
conceito de desobediência.
Iniciaremos a análise nos debruçando na psicologia através de um pensamento
apresentado, sobretudo, por Aldo Carotenuto para podermos definir o que seria traição;
bem como o viés filosófico sobre a desobediência trazido por Frédéric Gros e por Henry
David Thoreau.
Para começar nossa discussão, as seguintes palavras de Aldo Carotenuto, em seu
texto Amar e Trair – quase uma apologia da traição, se mostram extremamente
oportunas:

A traição se nos mostra e se impõe à nossa atenção como antitética e


dolorosamente dialética. A linguagem comum dá testemunho preciso dessa
antítese dialética dos significados inerentes à área semântica da traição.
Dizemos, por exemplo, que o tradutor traiu o pensamento do autor ou que o
entrevistador traiu o pensamento do entrevistado, em suma que o deturpou, o
falseou. Dizemos também, legitimamente, que um gesto traiu o pensamento
oculto de alguém, que o revelou e nos disse a verdade. Portanto, o falso como
traição, e o autêntico como traição. Foi justamente essa desconcertante
ambiguidade que, de alguma forma, acabou por restituir a esse verbo um
pouco de sua neutralidade original. É essa ambiguidade que nos permite
afirmar que se pode “trair” sem trair, faltar a um pacto, mas em nome de uma
fidelidade mais alta ou mais profunda. (CAROTENUTO, 1997, p. 26-27)
32

Deste modo, como observamos anteriormente, ao analisarmos a dicotomia


herói/traidor assim como veremos ao longo dessa pesquisa, a maioria de nossos
personagens – sobretudo Calabar – está traindo sem trair, pois eles faltam com “um
pacto, mas em nome de uma fidelidade mais alta ou mais profunda.” (CAROTENUTO,
1997, p. 27); e é exatamente por isso que consideramos possível uma aproximação da
traição com a desobediência – pois ao faltar com um pacto você acaba por desobedecer
a uma ordem preconcebida.
Nessa proposta de aproximação entre a traição de Calabar e a desobediência, o
filósofo francês Frédéric Gros se apresenta como uma peça importante – uma vez que o
seu livro Desobedecer é, por assim dizer, uma espécie de elogio à desobediência. Na
verdade, pode-se dizer que esse elogio não convencional não é uma novidade, afinal,
uma das referências de Gros é o autor estadunidense do século XIX chamado Henry
David Thoreau. Sendo assim, o ato de desobedecer, como nos mostra o pensador
francês enquanto analisa a proposta de Thoreau em sua obra A Desobediência Civil, é
uma maneira de nos mantermos fiéis a nossa verdade, isto é, uma forma de nos
mantermos fiéis a nós mesmos:

A desobediência é um dever de integridade espiritual. Quando o Estado toma


decisões iníquas, quando empreende políticas injustas, o indivíduo não pode
se limitar a resmungar antes de ir dormir. O indivíduo não está simplesmente
“autorizado” a desobedecer, como se tratasse de um direito do qual ele
poderia fazer ou não em nome de sua consciência. Não, ele tem o dever de
desobedecer, para permanecer fiel a si mesmo, para não instaurar entre ele e
si mesmo um lamentável divórcio. (GROS, 2018, p. 153)

Ademais, a aproximação entre traição e desobediência se dá também através da


fala do filósofo, quando ele aponta que “A verdadeira traição é quando mentimos a nós
mesmos. Obedecer é se fazer ‘o traidor de si mesmo’.” (GROS, 2018, p. 215). Por isso é
possível dizer então que o elogio da traição proposto por Chico Buarque e Ruy Guerra
em seu subtítulo se aproxima aqui, através dessas leituras, com esse caminho de se
manter fiel a si mesmo – pois por mais que ocorra uma ruptura de pactos ou uma
ruptura da ordem, há previamente uma fidelidade com o que se acredita, e é essa que
está acima de qualquer ato de traição.
Para além disso podemos notar também que, se pensarmos no contexto histórico
no qual a peça foi produzida, a crítica que Chico Buarque e Ruy Guerra querem
provocar com seu texto parte de um desobedecer o governo civil militar, o que acaba
33

fazendo, de certa forma, com que a peça seja censurada (como veremos de maneira
esmiuçada mais a frente no capitulo em que analisaremos as questões históricas que
envolvem o contexto de produção da peça).
Como já dito, a peça Calabar: o elogio da traição nos aponta a traição nos
vários âmbitos que tal ação permite interpretações, ou seja, denuncia a deslealdade em
todas as suas camadas, seja ela a coroa/regime que governa o país cenário do enredo,
seja as suas origens, entre amigos e casais ou até mesmo ser desleal a si mesmo e aos
seus princípios e ideais – o que fica evidenciado através de alguns discursos e ações dos
personagens Sebastião Souto e Mathias de Albuquerque e até mesmo no amor existente
entre Bárbara e Anna, questões que discutiremos com mais profundidade ao longo do
próximo capítulo. É a partir dessa temática central que se pode então questionar o
estatuto da traição, isto é, sobre o que é ser traidor ou ser traído.
O que podemos perceber no que diz respeito a esse assunto é que o próprio
texto de Calabar evidencia a maneira pela qual se deve analisar a traição: através do
diálogo de Bárbara com o Frei ao fim da peça – “Para se ver o traidor é preciso mostrar
a coisa traída” (BUARQUE & GUERRA, 1974, p. 87). Ou seja, para esse tipo de
análise é necessário que se olhe para a coisa traída, pois só há traidor, só há traição, se
houver a coisa traída. Tendo esse ponto em mente podemos traçar a ponte com os
argumentos de Aldo Carotenuto

Não podemos, porém, falar da experiência real e vivida da traição, se não


conseguirmos identificar e personalizar os dois papéis, os dois protagonistas
do trair. Devemos então perguntar-nos quem é o traidor e quem o traído.
Embora pareça duro e injusto, a vida do traidor e a do traído se revelam
sempre a mesma, como se os dois fossem interpermutáveis: o traído merece
ser traído, e o traidor é obrigado a trair. (CAROTENUTO, 1997, p. 31)

Tal tipo de conceito nos mostra que o significado de traição é algo subjetivo,
algo que depende de um ponto de vista para ser comprovado. Assim, como aponta Ruy
Guerra, a traição pode ser apresentada em diversas camadas e ser lida de diferentes
maneiras:

(...) E a traição é um negócio que a gente pode bater em muitos níveis. Pode
bater num nível inteiramente circunstancial. Pode bater num nível ideológico.
E é evidente que, para nós, não interessa discutir a traição de uma forma
absoluta, porque a traição é um tema filosófico. (BUARQUE & GUERRA,
1973, p. 24)
34

Por mais que exista essa subjetividade dentro do conceito de traição, é


necessário olharmos para ele com muito cuidado, uma vez que é certo que a traição se
apresenta como o núcleo da peça. No entanto, o que nos propomos aqui é exatamente
transformar a leitura de traição em desobediência, pois é exatamente através da
existência de uma subjetividade no termo traição que acaba se possibilitando também
essa dicotomia herói/traidor no personagem de Calabar. Sendo assim, ao optarmos por
defender que Calabar desobedece, operamos com outra subjetividade e entramos na
questão do ser leal a si, entendendo que o que nosso personagem faz é um ato mais de
desobediência do que de traição. Ou melhor, o “elogio” da traição constatado no título
da peça pode ser compreendido na medida em que Calabar desobedece uma ordem
política que está vigente e não vai ao encontro dos seus ideais – em última instância, a
traição colocada “num campo semântico positivo” (NUNES, 2002, p. 108) é possível na
medida em que ela é uma desobediência.
Dito isso, é interessante perceber que Calabar desobedece aos outros, todavia,
jamais desobedece a si mesmo – ao contrário do que acontece com os outros
personagens – como aponta Gabriel da Cunha Pereira em seu livro Imaginando o
Brasil: o teatro de Chico Buarque e outras páginas:

Dentre as personagens da peça, Calabar foi o único que não se traiu, ao


menos não inteiramente, uma vez que lutava por um ideal seu e pela terra à
qual julgava de fato pertencer. Na canção “Cala a boca, Bárbara”, o corpo de
Bárbara serve de metáfora para a relação amorosa de Calabar com as terras
brasileiras. Bárbara idealiza a relação entre Calabar e o Brasil, apontando-a
como um ato de amor e cumplicidade. (PEREIRA, 2015, p. 100)

É importante ressaltarmos a maneira representada na peça, e como ela se


relaciona com a questão da traição, pois, por fim, a obra acaba nos deixando uma
sensação de vazio. Vemos isso em Calabar ao notarmos, no desfecho da peça, o fato de
não haver mais lado para se aliar, uma vez que portugueses e holandeses se entendem
sem olhar para todo sangue já derramado. Isso justifica a fala de Bárbara (nas versões
anteriores à revisão dos autores) ao apontar “Não valia a pena morrer por isso.
Holandeses, portugueses, não valia a pena ter morrido por nada disso.” (BUARQUE &
GUERRA, 1975, p. 125). Após a revisão, esse trecho é removido e o que mais se
aproxima de expressar algo semelhante a essa ideia é quando Bárbara diz para Anna:
35

Conhece mais alguém que tenha conhecido Calabar? Não. É claro que não.
Pois se Calabar nunca existiu... Pode perguntar por aí... Alguém vai dizer que
ouviu falar de um alguém que um dia viu uma alucinada gritando um nome
parecido. Então fica provado que Calabar nunca existiu, para descanso de
todos. (...) Sebastião do Souto... é a mesma coisa. Está ali o defunto, ainda
quente, e não se fala mais no assunto. (BUARQUE & GUERRA, 2017, p.
100-101)

Se continuarmos levando em consideração o fato de não haver mais lados para


se aliar nessa guerra, notamos também que esse pensamento justifica a fala de Souto
quando ele diz:

(...) Toda guerra só interessa a quem a faz. (...) Eu me orgulho de ter traído
Calabar. Porque eu entendo melhor Calabar que ninguém. E talvez ele fosse
também o único que me pudesse entender. E se estivesse vivo diria o mesmo
que eu agora. Gritaria como eu: a paz é falsa. A guerra continua e vai
continuar e as pessoas vão continuar se matando, se torturando, se
endoidando. Se Calabar estivesse vivo, se eu não o tivesse assassinado com
as minhas falas e com os meus sorrisos e com a minha inveja e com tudo do
que me orgulho, Calabar ia encher a boca com as mesmas palavras, com as
minhas palavras. (BUARQUE E GUERRA, 1975, p. 114)

Ou seja, a partir de tal declaração Souto acaba por evidenciar também a


desobediência, pois Souto mostra que para ele também não havia outra forma de lidar
com a guerra senão da forma pela qual ele lidou, ou seja, a única maneira seria optar por
uma das formas de resistência existentes, como aponta Gabriel da Cunha Pereira ao
analisar essa mesma fala de Souto: “Vemos, portanto, que não há escapatória para ele.
A traição, a troca de lado circunstancial e a ambivalência são as únicas leis e formas de
resistência.” (PEREIRA, 2015, p. 103).
Diante disso, e tomando as ideias do filósofo Frédéric Gros para entender um
pouco mais a desobediência, notamos que o autor ao escrever seu livro Desobedecer
dedica um capítulo inteiro a Thoreau. Em determinado momento ele coloca a visão de
desobediência de Kant e de Thoreau frente a frente, ao dizer “Onde Kant afirma que a
verdadeira desobediência é a crítica (teórica), Thoreau responde que a verdadeira crítica
é a desobediência (prática.)” (GROS, 2018, p. 152).
A luz da proposta thoreauniana sublinhada por Gros, observamos que, na obra
de Chico Buarque e Ruy Guerra, Calabar desobedece na prática quando se alia aos
holandeses, pois muda de lado abandonando os portugueses. Ao fazer isso ele então
evidencia a sua crítica aos últimos, mostrando assim que, a seu ver, eles não eram mais
dignos de sua lealdade, bem como não eram mais aqueles que abririam os caminhos
para o Brasil que o mestiço idealizara.
36

Diante disso, percebe-se então que é válido tomarmos a visão de desobediência


civil proposta pelo autor americano para analisarmos a peça de Chico Buarque e Ruy
Guerra na medida em que, no “transcendentalismo” (corrente literária-filosófica cujo
autor encontra-se vinculado), o ato deliberado de desobedecer está intimamente atrelado
a questões morais.
Thoreau deixava transparecer na escrita de suas obras as preocupações que ele
tinha com a índole e com a autonomia do homem em detrimento da sociedade. De certa
forma, o individualismo e a autonomia seriam para o autor um pressuposto para o
estado natural do homem. Vemos então que assim como afirmou o americano em sua
obra A Desobediência Civil: “A única obrigação que tenho o direito de assumir é fazer a
qualquer momento aquilo que julgo certo” (THOREAU, 2019, p. 9) e é isso o que leva a
maioria dos personagens de Calabar a trair. É exatamente ao assumir que devem fazer o
que julgam certo, Calabar e Souto desobedecem aqueles com quem eles previamente
teriam lealdade. Também através desse reconhecimento de que se tem liberdade para
desobedecer podemos perceber que, assim como aponta Fernanda Botton, Souto poderá
ser lido como um desdobramento de Calabar, o que discutiremos mais a fundo nos
capítulos que seguem essa pesquisa.
Ainda tomando como inspiração a obra de Thoureau, na qual o autor descreve
sua experiência ao ser preso, notamos que ele afirma que o que fizeram foi apenas
aprisionar seu corpo, mas não sua mente, pois essa continua livre e viajando para além
das grades de ferro. De certa forma, percebe-se então que o que acontece com Calabar é
semelhante ao que ocorre com Thoreau na prisão, pois ao enforcarem o personagem, o
eternizaram na sua desobediência, pois eles não mataram seu pensamento, a sua ideia, e
nem mesmo o que intitularam como traição, o que eles fizeram foi enforcar e
esquartejar o corpo de Calabar. Isso fica mais evidente ao analisarmos a fala de Bárbara
(apenas nas versões anteriores a revisão dos autores) quando ela utiliza a metáfora de
cobra de vidro para falar de Calabar:

Um dia esse país há de ser independente. Dos holandeses, dos espanhóis,


portugueses... Um dia todos os países poderão ser independentes, seja lá do
que for. Mas isso requer muito traidor, Muito Calabar. E não basta enforcar,
retalhar, picar... Calabar é cobra de vidro. E o povo jura que o cobra de vidro
é uma espécie de lagarto que quando se corta em dois, três, mil pedaços,
facilmente se refaz. (BUARQUE & GUERRA, 1974, p. 90)
37

Ou seja, podem ter retalhado o corpo de Calabar, mas as suas ideias não. Ao
matar Calabar, eles o colocaram ainda mais em evidência, sendo assim “espalharam” a
ideia dele, o pensamento que ele seguia, o direito de pensar por si, ser fiel a si e
desobedecer o governo em questão. Como aponta Mariana Rodrigues Rosell “Ao
mesmo tempo, reitera-se que mesmo morto, o herói não pode ser esquecido, pelo
contrário, deve ser lembrado e tido como exemplo; matam-se os homens, mas não se
pode matar as ideias e ideais.” (ROSELL, 2017, p. 264).
Ao transformarem Calabar em exemplo, notamos então que ele pode servir tanto
como um exemplo ruim, do que não se deve fazer, e do destino de um traidor, bem
como um exemplo bom de um alguém que seguiu seus ideais com tanta firmeza, alguém
que foi tão leal a si próprio que acabou morrendo por essa fidelidade maior. Ao matar
Calabar eles permitem que os outros personagens pensem que poderiam ser como ele,
uma vez que é isso que sugere Souto ao dizer que só ele entende Calabar, ou que se
Calabar fosse vivo ele marcharia ao seu lado gritando que a paz é falsa. Matar Calabar,
de certa forma, foi um erro, pois ao assassiná-lo acabaram por transformá-lo em mártir
de uma causa e não um exemplo a não ser seguido. Pois como traz Elzimar Fernanda
Nunes ao falar da voz de Bárbara

Zelosa da memória do amado, Bárbara é a voz incômoda que insiste em


lembrar Calabar quando todos preferem esquecê-lo, pois a lembrança do
mestiço tornara-se inconveniente desde o momento da sua execução, como
podemos ver pelas declarações que Dias, Camarão e Souto fazem perante o
cadáver do mestiço:
Dias: Eu acabei de chegar. Não vi nada.
Camarão: Do que você está falando? Eu não ouvi nada.
Souto: Eu gostaria de poder dizer alguma coisa, mas não sei o quê.
A memória de Calabar tornou-se ainda mais inoportuna durante o período
nassoviano porque este último foi apoiado pela mesma elite luso-brasileira
que condenou o mestiço. (NUNES, 2002, p. 97)

Nota-se através da análise proposta por Elzimar que a memória de Calabar se


torna indevida, pois ressalta um ato de desobediência, mas ao mesmo tempo reafirma os
ideais do mestiço. Talvez por isso a aproximação com Tiradentes e Lamarca.
Ainda tendo esse trecho destacado como base, percebemos que na citação que
Nunes faz da peça os três personagens tomam a posição dos três macaquinhos de
marfim, onde um não vê, outro não ouve e o terceiro não fala, comprovando não apenas
uma obediência a algum poder maior, que não permite que eles tomem atitudes
semelhantes a de Calabar que ousou pensar por si próprio e não seguir o que a maioria
38

desejava, mas também evidencia uma submissão existente nesses personagens, pois
como aponta Frédéric Gros:

Ser submisso é ser prisioneiro de uma relação de forças que subjuga, domina,
aliena no sentido literal. Submisso, estou sob a inteira dependência do outro,
o outro que comanda, decide, grita ordens, acaba com você e destrói as
vontades. O que faço então não é mais eu a execução passiva do que me é
pedido a partir desse outro, exterior, dominador.” (GROS, 2018, p. 38)

Dos três personagens em questão (Dias, Camarão e Souto), o menos submisso é


Souto, que perto da sua morte entende os ideais de Calabar e afirma que o mestiço
gritaria com ele que a paz entre portugueses e holandeses é falsa. Já Dias e Camarão são
a maior prova de submissão, pois um é negro e o outro é índio e ambos aceitam as
ordens de portugueses para matar seus iguais. Camarão ainda diz em determinado
momento da peça “Onde o holandês pensa que há meia dúzia, tenho duzentos índios.
Duzentos índios na emboscada, que morram cem (dá um gole e continua) estamos ai
para isso mesmo, ainda sobram cem para o cerco.” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p.
13). Ou seja, ele trai as suas origens e ainda reafirma o pensamento dos portugueses ao
assumir que eles, índios, estão naquela guerra para morrer. Enquanto Dias, que era
negro e estava na guerra no intuito de um embranquecimento de alma, também se
coloca nessa posição de trair suas origens mantando seus iguais. O personagem é
descrito pelo Frei da seguinte forma: “Este sim, um gênio da raça. Trocou um olho por
uma medalha e um braço por uma vitória. Negro na cor, porém branco nas obras e no
esforço. Tenho até notado que ele está ficando um pouco mais claro.” (BUARQUE &
GUERRA, 1985, p. 42).
Olhando pelo prisma da desobediência civil de Thoreau, percebemos que o autor
transcendentalista, ao propor uma resistência ao governo civil (sendo esse o título
original de sua obra), na realidade propõe também uma negação desse governo, tal
atitude faz com que possamos também aproximar Calabar dessa visão, pois o mestiço,
ao se recusar a fazer parte do governo de Mathias, ou seja, ao se aliar aos holandeses,
acaba por cometer uma desobediência civil apontando que a sua traição vai para além da
questão de simplesmente mudar de lado, mas ela acaba por englobar também uma
negação desse governo português. Ao perceber que ninguém deve decidir por ele,
Calabar comete sua desobediência, pois assim como aponta Frédéric Gros ao analisar as
teorias propostas por Thoreau
39

Ninguém, escreve Thoreau, pode ser eu “em meu lugar”. Desobedecemos


com base nessa prerrogativa. Ninguém pode pensar em meu lugar, e ninguém
pode decidir em meu lugar sobre o que é justo e injusto. E ninguém pode
desobedecer no meu lugar. É preciso desobedecer a partir desse ponto em que
nos descobrimos insubstituíveis, no sentido preciso de fazer essa experiência
do indelegável, fazer a experiência que “cabe a mim fazer” (mea res agitur),
que não posso transferir a mais ninguém a tarefa de ter de pensar o
verdadeiro, de decidir sobre o justo, de desobedecer o que me parece
intolerável. (GROS, 2018, p. 156)

Ou seja, é ao perceber a necessidade de ser leal a si, que precisa negar um


governo e que é fundamental desobedecer, que Calabar acaba sendo visto como traidor.
Por fim o que queremos dizer é que Calabar, na verdade, ao desobedecer obedece a si,
pois como propõe Gros “Desobedecer é, portanto, supremamente, obedecer. Obedecer a
si próprio.” (GROS, 2018, p. 214).
Diante de todos esses pontos, concluímos que com a nossa análise pretendemos
aqui ver e reler a traição de Calabar como desobediência, pois o que fica evidente
através de todos esses teóricos e através até mesmo do próprio texto literário é (para
além do fato da traição ser um tema, um conceito de difícil definição) que o personagem
principal de Chico Buarque e Ruy Guerra realmente desobedece a um governo com o
qual ele não concorda. Sendo assim, os autores fazem uma releitura de uma importante
passagem do período colonial brasileiro. Além disso, eles também transpõem para o
palco uma leitura do momento social e histórico em que escreveram a peça. A meu ver,
Chico e Ruy Guerra não só iniciam seu público nos mistérios da traição, como diria
Bárbara em seu epílogo, mas também fazem do espetáculo um ato de desobediência
civil, como forma de se contraporem à repressão política dominante nos idos de 1973.
40

2. Que vozes são essas que mostram as dissonâncias?

Para começarmos a nos debruçar nessa discussão de que vozes são essas que
mostram as dissonâncias existentes em Calabar devemos sempre ter em mente que os
acontecimentos da peça se passam nos anos de 1600 quando, durante o período colonial
brasileiro, os holandeses invadiram Pernambuco. Além dessa questão, devemos também
atentar para o fato de que todas essas personagens existiram na história do Brasil, exceto
Anna de Amsterdam; no entanto, entende-se que ela representaria todas as prostitutas
que migraram para o Brasil, sobretudo quando Pernambuco estava sob domínio
holandês.
Torna-se inevitável observar que as personagens da obra de Chico Buarque e
Ruy Guerra são majoritariamente masculinas, sobrando apenas duas personagens
femininas: Bárbara – viúva de Calabar – e Anna de Amsterdam – a prostituta. Entende-
se que é relevante fazer a distinção de gênero das personagens, pois, como
observaremos ao longo deste capítulo, esse é um fator marcante para como elas se
dirigirão ao público e como abordarão a temática da desobediência entre si. A diferença
de gênero implica muitas vezes em o que pode ser dito ou não por uma personagem,
sobretudo nos anos em que a peça se passa.
Para além da questão de personagem masculina e feminina, faz-se relevante aqui
abordar também as diferenças entre os papéis sociais que cada personagem ocupa, pois
isso também distingue o poder e o tipo de denúncia que cada uma delas faz. A peça nos
oferece dentre seus personagens uma prostituta, um índio e um negro ex-escravo, e
esses status sociais são relevantes na análise do lugar de enunciação de cada um, como
será possível observar no decorrer da pesquisa.
Tais questões quanto ao gênero e os papéis sociais das personagens da trama
ganham importância pelo fato dessas definições estarem atreladas as “condições sociais
de surgimento” desses grupos, o que cada um deles representa; e como aponta Judith
Butler em Relatar a si mesmo: crítica da violência ética:

não existe nenhum “eu” que possa se separar totalmente das condições
sociais de seu surgimento, nenhum “eu” que não esteja implicado em um
conjunto de normas morais condicionadoras, que, por serem normas, têm um
caráter social que excede um significado puramente pessoal ou
idiossincrático. (BUTLER, 2017, p. 18)
41

Isto é, a partir do momento que Chico Buarque e Ruy Guerra optam por colocar
dentro de seu enredo personagens que representem os mais diversos papéis sociais, eles
não têm como individualizá-los por completo, ou seja, os autores não teriam como
desassociá-los dos grupos e das minorias – como é o caso, sobretudo, das personagens
de Bárbara, Anna, Camarão e Dias – das quais eles fazem parte.
É notório no enredo de Calabar o fato de que todas as personagens traem; todos
eles são, de certa forma, traidores de algo, de alguém ou até mesmo de si próprio, e é
exatamente nessa diversidade de vozes e de traições que iremos nos debruçar a seguir
para poder entender como essa traição – que transmutamos em desobediência ao longo
do capítulo anterior – se constrói e se desenrola nesse enredo.
Percebemos que, assim como a traição/desobediência, o conceito de pátria
também é de extrema relevância; e todos esses conceitos se encontram, de certa forma,
atrelados na peça de Chico Buarque e Ruy Guerra. Sendo assim, todas essas ideias se
tornam importantes para discussão da construção de cada personagem, pois como
aponta Gabriel da Cunha Pereira em seu livro Imaginando o Brasil: o teatro de Chico
Buarque e outras páginas essas questões estão ligadas umas as outras:

Duas questões principais inquietavam os autores na época em que escreveram


Calabar: a ideia de Pátria e a traição como tema filosófico. Veremos que
essas duas noções caminham juntas e cada uma delas é ao mesmo tempo
causa e consequência da outra. (PEREIRA. 2015, p. 77-78)

Em vista disso, e tendo em mente que todas essas questões são pertinentes para o
discurso e análise de cada personagem, adentremos na discussão sobre as diferentes
vozes.

2.1. As vozes femininas de Calabar

“Já não quero ser mulher de homem nenhum


Quero ser mulher pra mim
E ser quem eu quiser”
(Phill Veras)

Como dito anteriormente, as vozes femininas de Calabar são duas: Bárbara – a


viúva de Calabar – e Anna de Amsterdam – a prostituta. Pode-se observar que essas
personagens femininas só desvelam a traição quando são forçadas ou expostas a
42

condições que as levam à desobediência do papel social que deveriam cumprir dentro
do momento histórico que a peça se desenvolve. Por exemplo, Bárbara expõe a traição
através de seu diálogo com Anna ou quando confronta alguns homens da peça; e Anna,
por ser uma prostituta, não cumpre com o papel social que se espera de uma “mulher de
bem” nos anos de 1600 – período no qual se passa a obra de Chico Buarque e Ruy
Guerra –, sendo assim, por ser uma voz a margem da sociedade, tem liberdade para
denunciar e apontar todas as traições sem pudor.
Sabe-se que, historicamente, a posição social da mulher sempre foi a de
submissão. Isso se dá devido ao fato de que quem detinha poder naquela sociedade
seriam somente aqueles que se encaixavam nas categorias: homem, heterossexual,
branco, cristão e europeu. Sendo assim, dentro dessa relação, cabia a essas mulheres
cumprirem determinadas regras sociais, como: ser obediente ao marido, cuidar da casa e
educar os filhos, ou seja, cabia a mulher o papel de submissão ao homem, fosse ele seu
pai ou seu marido. A mulher que fugisse dessas regras, desse padrão, era uma mulher
desobediente e que não estaria cumprindo, plenamente, seu papel social.
Aqui cabe então o questionamento que Maria Wollstonecraft traz e que nos foi
apresentado por Elaine Showalter, em seu livro The Female Malady, quando a feminista
pergunta “Was not the world a vast prison, and woman born slaves?”1
(WOLLSTONECRAFT, M. Apud SHOWALTER, E. 1987, p. 1).2 Diante de tal
questionamento, notamos que a história das mulheres pode ser aproximada como a dos
negros e índios – que foram escravizados ao longo da história – e assim, a situação de
enunciação da mulher também assumiria um papel de discurso que não se enquadra
como discurso competente apresentado por Marilena Chauí em Cultura e democracia: o
discurso competente e outras falas, uma vez que, como a autora aponta:

O discurso competente se instala e se conserva graças a uma regra que


poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa
a qualquer outro em qualquer ocasião e em qualquer lugar. Contra esta regra,
ele produz sua contraface: os incompetentes sociais. (CHAUÍ, 1981, p. 2)

Exatamente por não ser “qualquer um que pode dizer qualquer coisa”, como
Marilena Chauí afirma, que as mulheres ao longo da história, e por terem um modelo
social que as colocavam em posição básica de submissão, estariam enquadradas na
1
Não era o mundo uma vasta prisão, e as mulheres nasceram escravas? (tradução nossa).
2
Uma vez que o arquivo do texto de Wollstonecraft que tivemos acesso não tinha paginação e as
informações para que indicassemos usar como referência bibliográfica; preferimos por fazer o apud para
que pudéssemos indicar corretamente as informações necessárias para formular a bibliografia.
43

condição dos “incompetentes sociais”, cabendo assim apenas aos homens (branco,
heterossexuais, europeus) a função de criadores do que seria apresentado como discurso
competente.
Em paralelo a essas questões, notamos então que, como aponta Daisy Aparecida
Nogueira em sua dissertação A figura feminina no teatro de Chico Buarque e Cia.,
caberia as mulheres ocupar apenas dois espaços dentro da sociedade: ou o da Virgem-
Mãe ou o da prostituta

... restam à mulher dois modelos possíveis e excludentes: a Virgem-Mãe ou a


prostituta. No primeiro caso, seu poder é dado de acordo com suas virtudes
morais, devendo primar pela honestidade e pela obediência, para poder
abençoar e honrar o seu lar, colocando a capacidade reprodutiva acima dos
favores e prazeres sexuais. Neste caso, seu espaço é o da casa, local sagrado e
protegido, do qual os homens têm domínio das entradas e das saídas. Em
outras palavras, a mulher deve incluir-se no “ritualismo”, segundo a tipologia
de modos de adaptação individual de Robert Merton, o que significa um
ajustamento social próprio daqueles que abandonam ou reduzem seus
elevados alvos culturais, seja do sucesso pecuniário, seja da rápida
mobilidade social. Assim, enredada no “ritualismo”, a mulher agarra-se,
estreitamente, a rotinas seguras e a normas institucionais, esvaziada do
espírito de luta para caminhar para fora e para cima, na hierarquia social: “as
aspirações mais baixas produzem satisfação e segurança.”
No segundo caso, a mulher reprime e susta seu poder reprodutivo – a
mãe-puta é uma ofensa e uma contradição –, tornando-se um centro de poder
controlador da sexualidade masculina. Seu espaço é o da rua, nas “casas de
tolerância”, governado por um código incerto. (NOGUEIRA, 1995, p. 33-34)

Apesar de longa, a citação nos traz uma maneira de olharmos para as


personagens de Chico Buarque e Ruy Guerra. Sendo assim, e tendo em mente o que
Nogueira apresenta, ao analisarmos as personagens femininas de Calabar percebe-se
que elas vivem e transcendem a dicotomia Virgem-Mãe ou prostituta, pois por mais que
Anna viva a prostituição, Bárbara, no entanto, vive um espaço curioso e digno de
análise mais atenta, uma vez que a viúva de Calabar não pode ser analisada como
representante do modelo da “Virgem-Mãe” – porque ela não é submissa a ninguém.
Diante disso, ela passa a peça inteira se enquadrando em um entre lugar – até mesmo
por ser apenas nesse espaço que as suas denúncias podem ser feitas – contudo,
exatamente por ser uma mulher que vive em uma sociedade que impõe um modelo
feminino, Bárbara ganha ao longo da peça um novo espaço ao se tornar prostituta, visto
que, com a morte de Calabar, ela sofre pressões para que ocupe um espaço político-
social – como nos apresenta Daisy Aparecida Nogueira:
44

Finalmente, morto Calabar e sem lugar na esfera política ou social, Bárbara


sofre as injunções que tipicamente se desencadeiam sobre a figura feminina,
obrigando-a ao enquadramento. Sem família, ou propriedade privada, só lhe
restaria a vereda da prostituição. (NOGUEIRA, 1995, p. 48)

Voltando ao fato de que o enredo de Calabar toma um fato histórico ocorrido


nos anos de 1600 no Brasil, assim como usa dos personagens reais que vivenciaram esse
episódio, percebemos que as duas personagens femininas da peça acabam ocupando o
mesmo espaço tanto na sociedade quanto no discurso histórico, pois nenhuma das duas
tem sua história contada. Anna é uma personagem fictícia que pode ser vista como
representação das mais diversas prostitutas que habitaram o Brasil e Bárbara só é
reconhecida nos livros como a viúva de Calabar, ou através da descrição que o Frei
Manoel Calado faz em O valeroso lucideno apontando que Calabar tomou por
compadre o Governador da Guerra, Sigismundo Vandsecope, sendo esse então o
padrinho de “hum filho que lhe naceo de huma Mamaluca, chamada Barbora, a qual
leuou consigo, & andaua com ella amancebado.” (CALADO, 1668, p. 14).3 Ou seja,
pouco se sabe sobre essas mulheres, pois, dentro da história quem detinha o poder de
criar discursos competentes não eram elas, e sim os homens; e dentro do quadro social
onde deveriam ser submissas não haveria motivo para contar a história dessas
representantes do sexo feminino, uma vez que elas não fariam parte dos grandes feitos a
serem relatados.
A partir da contextualização histórica da peça, repetimos que deveríamos
imaginar Anna de Amsterdam e Bárbara como mulheres de 1600 que, por mais que
estivessem vivendo a realidade da colônia portuguesa, naquela época deveriam assumir
a posição tomada por uma mulher do período colonial, ou seja, incumbir-se-iam sempre
em serem submissas e obedientes aos seus homens. Contudo, ao analisarmos as
personagens, percebemos que elas foram escritas mais como mulheres de 1973.
Diante disso, abrimos outra possibilidade de interpretação para essas
personagens, ou seja, a de elas terem sido escritas como mulheres mais modernas, e isso
fica evidenciado através do fato de que existe uma quebra de tabu ao dar protagonismo
ao amor homoafetivo existente entre Anna e Bárbara, amor esse que foi suprimido das
edições mais recentes, após a revisão que os autores fizeram no texto. Entretanto, se
analisarmos a letra da canção “Anna e Bárbara” ainda podemos ver traços dessa paixão:

3
Apesar de se tratar de um texto do século XVII, tivemos acesso a ele através de um arquivo em PDF
obtido através do site: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/18144
45

ANNA. Bárbara,
Bárbara,
Nunca é tarde,
Nunca é demais.
Onde estou?
Onde estás?
Meu amor
Vou te buscar.
BÁRBARA. O meu destino é caminhar assim
Desesperada e nua
Sabendo que, no fim da noite,
Serei tua.
ANNA. Deixa eu te proteger do mal,
Dos medos e da chuva,
Acumulando de prazeres
Teu leito de viúva.
AS DUAS. Bárbara,
Bárbara,
Nunca é tarde,
Nunca é demais.
Onde estou?
Onde estás?
Meu amor
Vou te buscar.
ANNA. Vamos ceder à tentação
Das nossas bocas cruas
E mergulhar no poço escuro
De nós duas.
BÁRBARA. Eu vou viver agonizando
Uma paixão vadia,
Maravilhosa e transbordante
Feito uma hemorragia.
(BUARQUE E GUERRA, 2017, p. 102-103)

Em um dos versos em que Anna canta, ela diz a Bárbara que irá acumular “de
prazeres teu leito de viúva” ou pede a amante que ela ceda “à tentação das nossas bocas
cruas” para que então juntas possam “mergulhar no poço escuro de nós duas”. Enquanto
isso, Bárbara responde que sabe que “no fim da noite serei tua”, ou seja, se entregará a
Anna.
Sendo assim, entremos na análise individual de cada uma delas. Foquemos
primeiramente em Anna de Amsterdam. Ela é a personagem que está ali exatamente
para rebaixar os outros personagens, para mostrar que todos se vendem, todos traem,
todos desobedecem. Basta a prostituta estar presente em cena que o episódio já ganha
outra conotação, já muda. Isso se dá pelo fato de que a personagem Anna teria a função
“bobo da corte” ao longo da peça, como analisa Elzimar Fernanda Nunes

Anna é outra personagem bufona dentro de Calabar. Presente ao longo de


toda peça, ela tem a função de rebaixar as outras personagens. Não tanto
como Bárbara, que estranha e questiona as convenções sociais; mas fazendo
46

às vezes de bobo da corte, aquele que ridiculariza através da imitação


grosseira de tais convenções.
Para usar um termo bakhtiniano, o bobo atua no universo carnavalesco
como um duplo destronante, uma paródia que assume forma de personagem
e profana os heróis a partir de “um autêntico sistema de espelhos
deformantes”. Tais duplos impedem que o herói se transforme numa
representação de uma verdade final, garantindo a permanência do diálogo.
(NUNES, 2002, p. 117)

Ou seja, Anna realmente está ali para sempre confrontar as outras personagens
mostrando que todos eles têm um lado traidor, um lado corrompido.
Anna representa um papel social que, para além do fato de ser mulher, é um
papel ainda mais a margem da sociedade por se tratar de uma prostituta. Dar a voz a
uma prostituta é assumir completamente que esta não cumpre de maneira alguma o
papel social esperado a uma mulher. Ela não será mãe, não cuidará da casa, do marido
ou dos filhos; ela sempre será aquela que está ali simplesmente para suprir os desejos
carnais dos homens. Anna chega a cantar sua profissão e seu papel social: “ANNA
(cantando) Quando perco alguma guerra, Eu não perco a profissão, Muda só minha
bandeira Como muda o rufião.” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 20) ou até mesmo
nos versos de “Anna de Amsterdã” quando ela diz: “Fiz mil bocas para Solano / Fui
beijada por Gaspar. Sou Anna de cabo a tenente, Sou Anna de toda patente das Índias”
(Ibid., p. 28).
Logo, tendo a ocupação que tem, pode-se dizer que Anna seria ainda mais
“rebaixada” por ser uma mulher que não cumpre o papel esperado de uma representante
do sexo feminino e, por conseguinte, que acaba desobedecendo à ordem social. No
entanto, isso tudo não é em vão, pois é exatamente o seu ofício que lhe permite a função
de duplo destronante como aponta Elzimar Fernanda Nunes

Anna exerce o papel de duplo destronante de várias personagens de


Calabar. Tal poder de profanação deriva de seu status de prostituta.
Condição social marginalizada e polêmica, a figura da “prostituta” permite os
mais diversos enfoques literários. Buarque e Guerra optaram por se
concentrar no tema da pessoa que se vende, que se entrega e se submete. A
construção de Anna segue o estereótipo da mulher que, após muito sofrer,
desiste da luta e acomoda-se aos ultrajes e humilhações. “Eu amo quem me
paga” é seu lema e “Vence na vida quem diz sim” é seu hino.
Todavia Anna não está limitada a viver seu drama pessoal, sua
função primordial é funcionar como um espelho que deforma e desvenda
outras personagens, revelando o quanto elas também têm de vendidas e
conformistas, ou seja, de “prostitutas”. (NUNES, 2002, p. 117)

Esse duplo destronante de Anna fica evidenciado em diversos trechos e


passagens em que ela se encontra na peça, como apontado pela análise feita por Elzimar
47

Fernanda Nunes, toda vez que Anna aparece na peça é para apontar algum erro e
destronar alguém ou alguma situação e é assim que Anna denuncia a traição em
Calabar. Isso fica evidenciado em trechos como quando ela canta “Só vence na vida
quem diz sim”. Nas primeiras edições da peça, essa canção só era cantada depois que
Anna encontra Bárbara chorando sobre o corpo de Souto, no entanto, depois da revisão
dos autores essa canção foi movida para o início da peça, logo depois de Souto,
Camarão e Dias se apresentarem. Contudo, independente do momento em que ela se
encontra na peça, essa é uma canção destronante dos personagens, pois o tempo inteiro
Anna afirma que só vence na vida quem diz sim, ou seja, só vence na vida quem aceita
seguir as regras que os outros impõem, quem é submisso:

ANNA. Vence na vida quem diz sim.


Vence na vida quem diz sim.
Se te dói o corpo,
Diz que sim.
Torcem mais um pouco,
Diz que sim.
Se te dão um soco,
Diz que sim.
Se te deixam louco,
Diz que sim.
Se te babam no cangote,
Mordem o decote,
Se te alisam com o chicote,
Olham bem para mim.
Vence na vida quem diz sim,
Vence na vida quem diz sim. (BUARQUE E GUERRA, 2017, p. 58)

Dito isso, é importante olharmos para a relação existente entre Anna e Bárbara.
Embora o cargo que Anna ocupe defina seu espaço/seu lugar, a personagem demonstra
amor e carinho por Bárbara. Nas primeiras edições esse apreço teria uma conotação
mais amorosa sugerindo a relação homoafetiva entre elas. Contudo, torna-se importante
apontar que é a prostituta quem ampara Bárbara nos seus momentos mais dolorosos. A
relação existente entre as duas é a que demanda uma análise ainda mais profunda, pois
dentro do seu posto de bobo da corte Anna destronaria Bárbara ao permitir que a viúva
descumpra seu papel social por completo diante do fato de amar outra mulher. No
entanto, para além disso, a prostituta também acaba servindo como o Sancho Pança de
Bárbara, assim como analisou Elzimar Fernanda Nunes

De certa forma, poderíamos dizer que Anna é o Sancho Pança de Bárbara,


pois ela nega e ao mesmo tempo completa a cosmovisão da viúva de Calabar.
Esse equilíbrio entre o idealismo de Bárbara e o ceticismo amargo de Anna é
48

essencial para manter a riqueza dialógica da peça, caso contrário a voz de


Bárbara poderia soar como a expressão de uma verdade absoluta, já que é
notória a identificação dos autores com a mestiça. (NUNES, 2002, p. 119)

Nota-se também, a partir da análise feita por Elzimar Fernanda Nunes, que é
através da relação entre a viúva e a prostituta que ambas irão trair a si mesmas. Pois,
como define a autora, é pelo amor que Bárbara terá ao ceticismo de Anna que fará com
que ela traia todo o idealismo presente nos seus amores anteriores (Calabar e Souto) e
Anna se trai ao se apaixonar pelo inconformismo existente em Bárbara.
Anna em momento algum demonstra se sentir inferior ou pior que alguém por
ser prostituta. Ao que tudo indica, é exatamente por exercer tal ocupação que ela se vê
livre para desobedecer todas as regras impostas pelos homens. Pois como aponta
Gabriel da Cunha Pereira, em Imaginando o Brasil: O teatro de Chico Buarque e outras
páginas, ao falar da prostituta o autor aponta: “Ao mesmo tempo em que ela se trai, pois
vende seu corpo e o oferece como mercadoria, também trai o outro. É pela transgressão
muitas vezes de si mesma que encontra, paradoxalmente, meios de resistir à opressão.”
(PEREIRA, 2015, p. 100).
Sendo assim, percebe-se que Anna acaba sendo a mais humana dentre todos,
pois é a que se entrega para seu lado animal e deixa ele aflorar sem medo. Ela, assim
como aponta Gros sobre Antígona, “em sua desobediência, não afirma uma ordem
contra outra: ela abala a própria possibilidade da ordem.” (GROS, 2018, p. 90). E é
exatamente por abalar a possibilidade de ordem que Anna destrona todos os
personagens.
Por fim, dentro dessa análise do feminino, nos resta olhar para a personagem
Bárbara, que foi casada com aquele que era visto como traidor (Calabar), mas que
também foi traído, e posteriormente se envolve com aquele que traiu Calabar ao
denunciá-lo (Souto). Bárbara é a viúva que vive o luto dia após dia, que sofre com cada
lembrança de Calabar, e que faz questão de denunciar, a todo momento, os verdadeiros
culpados pela morte de seu marido.
Ainda assim, Bárbara também não cumpre seu papel de mulher – ou pelo menos
não cumpre com o que a sociedade espera dela – pois ela não se torna mãe e, ao mesmo
tempo, acaba traindo Calabar, ou a memória de Calabar, ao se envolver amorosamente
com Souto, o que, mais a frente na história, fará com que ela mostre explicitamente em
diálogo com Anna o quanto isso a tira do eixo e a confunde:
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Anna: E daí? Você amou um, agora ama outro... Acontece que o
segundo traiu o primeiro... Não tem nada de mais. Os dois morreram.
Está tudo certo.
Bárbara: Não é bem assim. Eu me orgulho de um traidor e a traição do
outro me repugna.
Anna: Quem trai, trai. Não faz diferença.
Bárbara: Não?
Anna: Não.
Bárbara: Também já pensei desse jeito... Misturei Sebastião do Souto
e Calabar, traí um pelo outro, misturei as traições, misturei os corpos,
misturei tudo, fiz de tudo uma paçoca e mergulhei com prazer nessa
pasta toda... De um certo modo eu estava feliz e me sentia mesmo
vaidosa de estar traindo Calabar e a sua traição, como mulher, de todo
jeito, de estar dentro da traição, de viver dentro da traição e de amar
dentro, se tudo o que me davam era traição... Mas não é verdade,
Anna. É, Anna? (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 124-125)

Através desse diálogo vemos um pouco de transgressão de ambas as


personagens, pois, se o que se esperava de uma mulher era que ela cumprisse seu papel
social sendo dona de casa, mãe amorosa e esposa carinhosa, ao expor o ato de traição
dessa maneira (ainda mais se levarmos em conta o fato de que o enredo da peça se passa
nos anos de 1600), elas comprovam que “Desobedecer não é só invocar uma
legitimidade superior, afirmar que se obedece a outras leis, é pôr em causa o próprio
princípio de uma legitimidade. Na desobediência pode entrar uma dose de transgressão
pura (...)” (GROS, 2018, p. 91). Diante disso, reforçamos a nossa tese de que Anna e
Bárbara, por mais que estejam inseridas no período colonial brasileiro, são escritas
como mulheres de 1973, que, ao que tudo indica, estão ali para transgredir qualquer tipo
de ordem de qualquer instituição criada por homens.
Para além dessa transgressão/traição de Bárbara percebemos o fato de ao longo
da peça ela se tornar uma prostituta também, por mais que ela se deite com Souto,
traindo a memória de Calabar, ela se deita com ele por dinheiro e mostra a ele que agora
é seu corpo que lhe dá seu sustento – característica que só encontramos nas edições
posteriores à revisão dos autores –:

BÁRBARA. Muito bem, homem, são dois florins.


SOUTO. Dois florins, o quê?
BÁRBARA. São dois florins e o teu turno já está acabando.
SOUTO. Deixa de bobagem, Bárbara...
BÁRBARA. Bobagem? É o meu sustento, porra! Dois florins na mão, deita
comigo e trabalha rapidinho, por favor. (Começa a se despir
mecanicamente.)
SOUTO. Bárbara...
BÁRBARA (Gritando, autoritária.) É já! É já! Dois florins!
(Assustado, SOUTO dá-lhe o dinheiro e BÁRBARA, imediatamente, deita-
se no chão, abre as pernas e começa a gemer.) Ai, meu bem, que coisa boa!
50

Vem com a tua neguinha, vem. Ai, não, amor, assim você me faz dodói.
(BUARQUE E GUERRA, 2017, p. 84)

Bárbara, no entanto, é a personagem que mais se aproxima do ponto de vista dos


autores, como diria Elzimar Fernada Nunes, é ela quem muitas vezes vai mediar a
relação existente entre os autores e o leitor/espectador. Se a autora nos diria que Anna
teria a função de bobo da corte, ela então nos apresenta Bárbara como bufão, não
apenas por essa aproximação com o pensamento dos autores, mas também devido ao
fato de ela ser uma personagem importante na peça, como expõe a professora quando
descreve Bárbara em sua dissertação:

Mas a voz de Bárbara é a dos bufões, que insistem trazer à baila o que as
convenções recomendam não comentar em público. Ela não apenas questiona
as personagens da peça, mas, além disso, denuncia as máscaras de hipocrisia
que são necessárias para preservação de qualquer tipo de autoritarismo. Daí
ela encerrar o primeiro ato dizendo ao público: “Não posso deixar nesse
momento de manifestar um grande desprezo, não sei se pela ingratidão, pela
covardia ou pelo fingimento dos mortais” (NUNES, 2002, p. 98).

É através de seu papel de bufão que Bárbara denuncia as traições. Questionando


as atitudes das personagens, assim como pode ser visto quando ela questiona a verdade
e a lealdade dos amigos de Calabar: Souto, Dias e Camarão. Ela aponta que eles eram
amigos de Calabar e que foram os que causaram a morte do mesmo. Ela os afugenta e
os coloca no papel dos três macaquinhos de marfim e é através dessa conversa entre os
personagens que brevemente, através do confronto entre Bárbara e Dias, que se começa
a entrever que o que diferencia um traidor de um herói é apenas uma questão de opinião
– ou simplesmente de qual lado vê-se a história ser contada:

CAMARÃO – A gente não pode saber de tudo o que acontece.


SOUTO – Nem querendo.
DIAS – Eu não quero. Quem sabe demais se dá mal. Eu sei o que preciso. Sei
o suficiente.
BÁRBARA – O suficiente para que?
DIAS – Para não ser um traidor, por exemplo.
BÁRBARA – O suficiente para ser um herói.
DIAS – Por que não?
BÁRBARA – O suficiente para não se importar de ser negro.
(...)
BÁRBARA – E o que você diz Camarão?
CAMARÃO – Eu não digo nada. Sou um índio. Os índios dizem coisas que o
branco não pode entender.
BÁRBARA – É por isso que você luta do lado deles?
CAMARÃO – Esta é uma guerra dos brancos, dos dois lados. Por isso tanto
faz.
(...)
BÁRBARA – Você está arrependido, Sebastião?
51

SOUTO – Estou sempre arrependido.


BÁRBARA – Está arrependido do que fez?
SOUTO – Já estou arrependido do que vou fazer, sem saber porque faço e
porque me arrependo a cada instante. Queria que as coisas fossem mais
imediatas. Queria saber do certo e do errado. Queria não ter dúvidas.
(BUARQUE E GUERRA, 1973, p. 37-40)

Para além desse papel de bufona, Bárbara também é a que mais traz a relevância
da memória de Calabar ao longo da peça, como aponta Evelina Hoisel ao falar da
personagem em seu texto “Fado Tropical”: Jogos de Ambivalência. A autora, além de
reafirmar a aproximação da personagem com as ideias dos autores, diz também que:
“ela é uma espécie de guardiã da memória e dos ideais de Calabar, e é ainda a voz que
traduz as ideias libertárias de Chico Buarque e de Ruy Guerra para falar sobre sua
época” (HOISEL, 2013, p. 138). Até mesmo por isso que reafirmamos que ser herói ou
traidor é apenas uma questão de ponto de vista, uma vez que para Bárbara, Calabar
sempre será herói, pois dentro de seu ponto de vista, ele que estava certo em se aliar aos
holandeses em busca de um bem maior para o Brasil.
Caminhando para o término do exame das vozes femininas de Calabar,
podemos concluir que, através da análise dessas personagens da peça, torna-se possível
traçar um elo entre desobediência e as mulheres da obra. Em suma, podemos afirmar
esse elo na medida em que Anna e Bárbara não cumprem o papel social delas esperado.
Ao fim, as duas mulheres, de certa forma, desobedecem às normas e convenções sociais
impostas por aqueles que detinham o controle de como contar a história, destronam e
criticam esses poderosos e criam seu próprio jeito de viver e entender esse mundo sem
serem submissas e transgredindo qualquer tipo de regra. Enfim, as personagens Anna e
Bárbara possibilitam a perspectiva do que é insólito e, por conseguinte, as suas vozes
possuem a capacidade da enunciação daquilo que é intempestivo.

2.2. As vozes masculinas de Calabar

“Em suma, tudo não passa de uma fresta de comodidade! Aquele que
acha mais cômodo não ter que pensar por si mesmo e ser seu próprio
juiz acaba por submeter-se às proibições vigentes. Acha isso mais
simples. Mas há outros que sentem em si mesmos sua própria lei...”
(Hermann Hesse)
52

Tendo em mente que a maioria dos personagens de Calabar são do sexo


masculino e lembrando, sobretudo, que a temática da Pátria e da traição são
extremamente importantes para nossa análise, ao debruçarmos nas vozes masculinas da
obra falaremos mais sobre esse assunto sobretudo quando abordarmos as personagens
de Mathias de Albuquerque, Henrique Dias e Felipe Camarão, pois são eles os mais
dissonantes da peça, uma vez que, como diz Gabriel da Cunha Pereira, esses três
“encontravam-se deslocados, lutando uma guerra em favor de outros em detrimento
deles mesmo. Os três lutaram por uma terra que não lhes pertencia de fato, cujo os
donos estavam além-mar, ora Portugal, ora Espanha, quiçá Holanda.” (PEREIRA. 2015,
p. 83).
Tonar-se também relevante apontar que dentre os pesquisadores usados para
embasar nossos estudos e as obras examinadas ao longo deste trabalho, poucos
abordaram as imagens de Frei Manoel do Salvador, Maurício de Nassau e Sebastião
Souto, sendo eles analisados apenas por Elzimar Fernanda Nunes dentro das nossas
leituras. Por outro lado, percebemos que Mathias de Albuquerque é o mais debatido
dentre todos os personagens masculinos da peça.
É relevante termos em mente também que, diferentemente das personagens
femininas – onde temos Anna de Amsterdã como uma personagem que não existiu na
história oficial – todos os personagens masculinos da peça são reais, e vivenciaram os
episódios da guerra entre Portugal e Holanda em Pernambuco nos anos de 1600. Dentre
eles temos o Frei Manoel do Salvador que seria o Frei Manoel Calado, padre esse que
inclusive escreveu a obra O valeroso lucideno que relata os episódios ocorridos no
período do Brasil colônia através do seu ponto de vista sobre os fatos.
Começaremos com a análise do Frei. Por ser homem e ser um representante da
Igreja ele pôde escrever tudo que vivenciou e presenciou naqueles tempos. Ao lermos o
livro escrito por ele notamos que, assim como aponta Elzimar Fernanda Nunes, ele
também via Calabar como traidor; sendo assim, dentro de sua obra, ele descreve o
personagem logo após apontar que muitos traidores levavam informações para os
holandeses – dentre eles Calabar:

tiveraõ alguns traidores entre estas idas, & vindas ao Arrecife, lugar de
mandar avisos ao Olandes de tudo que entre nós se passava; neste tempo se
meteo com os Flamengos hum mancebo Mameluco, mui esforçado, &
atrevido, chamado Domingos Fernandes Calabar, o qual entre elles, em
breves dias, aprendeo a lingoa Flamenga, & travou grande amizade com
Sigismundo Vandsecope Governador da guerra (CALADO, 1668, p. 14)
53

Diante disso, e tendo o relato do Frei nas mãos, assim como aponta Elzimar
Fernanda Nunes, os autores de Calabar conseguiram aproveitar muito do que Calado
relatou para montar a sua própria versão dos fatos. Como apresentado pela professora
em sua dissertação, é possível perceber a interferência do texto do Frei “na construção
da personagem frei Manoel do Salvador, na construção de outras personagens (como
Mathias de Albuquerque, Nassau e o Holandês) e na elaboração de cenas e episódios da
peça (a ponte, o boi voador, a morte de Sebastião Souto e outros).” (NUNES, 2002, p.
99).
Não foram apenas essas questões que foram aproveitadas de O valeroso
lucideno, outro exemplo seria até mesmo algumas falas do personagem que teriam sido
tiradas do que o religioso escreveu; como aponta Elzimar Fernanda Nunes quando a
autora apresenta que o fato dos autores terem tido acesso à obra de Calado ter-lhes
poupado “a tarefa de imaginar o que o frei teria falado, mas lhe deu outra tarefa: a de ler
nas entrelinhas o que ele disse sem querer ou o que simplesmente deixou de dizer. Em
Calabar, a voz do frei não é reconstituída, mas profanada.” (Ibid., p. 99).
Em Calabar, diante da temática da traição, e no intuito de ironizá-la e questioná-
la o tempo todo, Chico Buarque e Ruy Guerra nos apresentam o Frei como um
personagem que também muda de lado com certa facilidade, mas que nunca é visto
como traidor. Isso, dentro do texto, é sublinhado ao fim da peça por Bárbara que, em
seu papel de bufão, encontra com o frade e diz:

BÁRBARA – Padre! O meu nome é Bárbara.


FREI OLHA-A ATENTAMENTE:
BÁRBARA (irônica) – É, Bárbara...
FREI (indeciso) – A Bárbara...
BÁRBARA – Essa mesma... Não dá para reconhecer, né?
FREI TEM UM GESTO EVASIVO.
BÁRBARA – Estou bonita?
FREI – Diferente.
BÁRBARA – Acertou. Diferente. E o Padre, está igual?
FREI – Sempre o mesmo... e com Deus.
BÁRBARA – Padre, eu queria saber uma coisa... É muito importante...
FALA BAIXO, COMO SE TIVESSE MEDO DE SER OUVIDA, MAS A
INTENÇÃO É DE DEBOCHE EVIDENTE.
BÁRBARA – ...Como é que o Senhor faz para ser sempre o mesmo... Com
os portugueses... depois com os holandeses, com os portugueses, outra vez
com os holandeses... Como é que faz com a sua consciência? (BUARQUE &
GUERRA, 1973, p. 86 e 87)
54

Essa conversa entre Bárbara e o Frei se estende até o ponto em que Bárbara
compara o que o frade fez (ao mudar tantas vezes de lado) com o fato de Calabar
também ter mudado de opinião e se aliado aos holandeses. No entanto, quando
questionado do porquê que ele e Calabar terem destinos diferentes, o Frei continua
afirmando que isso se deu porque Calabar era traidor. Dentro desse diálogo Chico
Buarque e Ruy Guerra só comprovam o quanto todos são passiveis de serem traidores,
até mesmo (ou principalmente) os religiosos.
Elzimar Fernanda Nunes aponta que o comportamento do frade pode ser
equiparado com o comportamento da elite pernambucana da época, e ao finalizar sua
análise sobre o religioso também sublinha a questão de que apesar de tanto o Frei
quanto a elite pernambucana terem muitas vezes trocado de lado na guerra nenhum
deles “passou para a história oficial do Brasil como traidor da pátria. Essa incumbência
foi repassada ao mestiço Calabar, como que num alerta: “traidor é quem trai a vontade
dos detentores do poder”. (NUNES, 2002, p. 101).
Dito isso, seguimos para a imagem de Maurício de Nassau, personagem que
domina todo o segundo ato da peça. A personagem histórica, como discutido ao longo
do primeiro capítulo, teve seu papel defendido por alguns textos históricos e também
criticados por outros. Todos os feitos do governante holandês retratados na peça
realmente aconteceram, inclusive o episódio do boi voador que foi relatado em O
valeroso lucideno:

depois de visto do grande concurso de gente que alli se ajuntou, o madou


meter dentro de hum aposento, & dalli tiraraõ o outro couro de boi cheio de
palha, o fizeraõ vir voando por humas cordas com hum engenho, & a gente
rude ficou admirada, & muito mais a prudente, vendo que com aquella traça
ajutara alli o Conde de Nasao (CALADO, 1668, p. 131).

O que se pode notar dentre os escritos históricos é que o governante holandês


divide opiniões e foi com base nisso que Chico Buarque e Ruy Guerra construíram o
Maurício de Nassau de Calabar, o governante humanista/narcisista.
O governante holandês, na peça, se apropria da imagem de Calabar logo na sua
chegada ao Brasil, mostrando que a morte do mestiço não foi em vão. Podemos dizer
que a morte de Calabar é vista dessa maneira pelo príncipe não apenas para trazer a
dicotomia de traidor/herói para o personagem principal, mas também para poder assim
55

legitimar seu governo, pois também se Calabar não tivesse sido morto, talvez não
houvesse o governo de Maurício de Nassau.
No emaranhado de traições que a peça nos traz, Fernando Peixoto nos aponta,
em seu texto Uma reflexão sobre a traição, qual seria a traição cometida por Nassau ao
longo do enredo de Calabar quando autor diz que o governador holandês “chega ao país
afirmando que Calabar não morreu em vão. Mas, no final, trai o sonho de Calabar e
regressa à Holanda, com lágrimas nos olhos, carregado nos braços dos índios.”
(BUARQUE & GUERRA, 2017, p. 22).
Outro dado importante sobre o príncipe é o que aponta Elzimar Fernanda Nunes
ao dizer que, no período colonial, Nassau teria deixado o Brasil devido ao fato de ter
sido “chamado à Europa sob suspeitas de indisciplina ou alta traição.” (NUNES, 2002,
p 112). Ou seja, até mesmo dentro da história oficial houve uma certa traição cometida
pelo governante holandês. No entanto, novamente, por mais que houvesse suspeitas de
“alta traição” e por mais que as opiniões sobre o príncipe e seu governo sejam
divergentes, Nassau não ficou reconhecido como um traidor dentro da história oficial, e
sua traição continua sendo contada apenas como uma suspeita.
Colocando a traição da história oficial lado a lado com a traição que Fernando
Peixoto aponta que Nassau teria cometido, percebe-se que ambas tratam do mesma
coisa, um ideal libertário para o Brasil que não é concretizado.
Passemos à análise de Sebastião do Souto, personagem que também existiu
durante a guerra entre Portugal e Holanda nos anos de 1600. Apesar de ter existido e
poder ser analisado como herói dentro da história oficial – segundo o que relatam os
livros usados como bibliografia pelos autores – Chico Buarque e Ruy Guerra se
apropriaram da imagem do rapaz e lhe transformaram, dando a ele nova personalidade e
atitudes, como aponta Elzimar Fernanda Nunes: “Os dois autores agiram com bastante
liberdade na construção de Souto, atribuindo-lhe atitudes não constantes dos textos
históricos, como sua fixação por Calabar, seu relacionamento com Bárbara ou sua
atuação como guerrilheiro.” (NUNES, 2002, p. 104).
Pode-se dizer que, dentro do enredo de Calabar, Souto é um dos personagens
mais contraditórios, além de ser aquele que mais põe a traição em xeque. Ele começa a
peça cometendo uma traição, uma vez que dentro de sua “espionagem” dos holandeses,
acaba os traindo quando leva as informações que obteve dessa falsa amizade para
Mathias de Albuquerque e, posteriormente, trai o amigo Calabar duas vezes: ao entregá-
lo para os portugueses e ao se relacionar amorosamente com Bárbara. No entanto,
56

diante de todos esses atos, ele é o único que aponta que não tem certeza se está tomando
as atitudes mais corretas dentro da guerra, é Sebastião do Souto que diz que se
arrepende antes mesmo de fazer; é ele que não entende o porquê que faz o que faz – sua
fala sobre tal ponto é sintomática: “SOUTO – Já estou arrependido do que vou fazer,
sem saber porque faço e porque me arrependo a cada instante. Queria que as coisas
fossem mais imediatas. Queria saber do certo e do errado. Queria não ter dúvidas.”
(BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 40)
Por fim, Souto é o que consegue entender todo o jogo da guerra; e ao se tornar
guerrilheiro queimando as plantações de cana ele quebra as amarras que lhe prendiam
na submissão e compreende então que soldados como ele e Calabar são apenas uma
peça sem valor no jogo da guerra. Ao adquirir consciência e analisar friamente os
acontecimentos, o personagem percebe a absurdidade e arbitrariedade da situação, o que
faz com que as fronteiras entre traído e traidor percam o sentido para ele. Diante disso,
em sua última cena antes de morrer, ao dialogar com Bárbara, ele confessa seu papel de
traidor e brada que a “paz é falsa”:

BÁRBARA – (...)Mas a guerra para Calabar tinha um sentido preciso. A tua


guerra não interessa a ninguém.
SOUTO – A minha guerra só interessa a mim mesmo.
BÁRBARA – Eu sei.
SOUTO – Não, você não sabe. E eu não presto contas do meu sangue. Toda
guerra só interessa a quem faz. Eu gosto da guerra, E sabe de uma coisa,
Bárbara eu não te agüento mais ouvir falar de Calabar, da sua guerra e das
suas ilusões. Ninguém agüenta mais. Calabar, Calabar, Calabar. Antes eu
quase tinha me arrependido de o ter traído, Mas agora não. É porque você
encheu tanto a boca com Calabar que estou contente de o ter levado até o
cadafalso. Eu me orgulho de ter traído, Calabar. Porque eu entendo melhor
Calabar que ninguém. E talvez ele fosse também o único que me pudesse
entender. E se estivesse vivo diria o mesmo que eu agora. Gritaria como eu: a
paz é falsa. A guerra continua e vai continuar e as pessoas vão continuar se
matando, se torturando, se endoidando. Se Calabar estivesse vivo, se eu o não
tivesse assassinado com as minhas falas e com os meus sorrisos e com a
minha inveja e com tudo do que me orgulho, Calabar ia encher a boca com as
mesmas palavras, com as minhas palavras. (Ibid., p. 76 e 77)

Entretanto, percebe-se, mais uma vez, que um personagem masculino visto


como herói pela bibliografia da história oficial passa a traidor no enredo desenhado por
Chico Buarque e Ruy Guerra, questionando ainda todos seus atos e assumindo sua
posição dentro do emaranhado de traições existentes em Calabar.
Analisemos a imagem de Henrique Dias e Felipe Camarão. Examinaremos as
duas personagens em conjunto, devido ao fato de esses personagens terem diversas
semelhanças – dentro de nossas pesquisas – sobre o que representam tanto na história
57

oficial, quanto no enredo de Calabar. Ambos fazem parte de minorias sociais que foram
submissas ao reino de Portugal, no entanto, eles se destacam dentro de seus grupos por
serem vistos como os “capitães”.
Não obstante, esses personagens fazem parte de classes que se enquadram no
que Marilena Chauí, em seu livro Cultura e democracia: o discurso competente e
outras falas, chamaria de “incompetentes sociais”, pois não fazem parte dos grupos
sociais que produzem o “discurso competente”. A autora defende que esse tipo de
discurso seria “aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim
resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em
qualquer lugar e em qualquer circunstância.” (CHAUÍ, 1981, p. 7). Dessa forma,
entende-se que tanto Camarão quanto Henrique Dias, por se enquadrarem nesse grupo
de “incompetentes sociais” não poderiam nem mesmo escrever a sua própria história.
Sendo assim, tudo o que sabemos sobre o índio e sobre o negro foi escrito por aqueles
que detinham o poder para fazer a história.
A partir disso tudo, o que os autores souberam e conheceram sobre Dias e
Camarão veio através da biografia escrita pelo Frei Manoel Calado e pelas biografias
escritas por Gonçalves de Mello, que apresentam as atitudes do negro e do índio
atreladas, respectivamente, a um desejo de embranquecimento e a uma religiosidade.
Diante disso, e da submissão com a qual serviram à coroa Portuguesa, ambos alcançam
títulos e patentes de respeito, sendo reconhecidos historicamente como heróis,
independente da quantidade de negros e índios que, comandados por eles, morreram
durante a guerra.
Sendo assim, e tomando de empréstimo os fatos históricos, Chico Buarque e
Ruy Guerra lançam mão das imagens de Henrique Dias e Felipe Camarão para
interpretar as atitudes deles evidenciando seus interesses de embranquecimento e
religiosidade acima de tudo e todos; em nome disso valia a pena ver seus iguais
morrerem no combate, pois a vida dos negros e índios não era passível de luto, porque
nem mesmo poderiam ser consideradas vidas, uma vez que, como apresenta Judith
Butler em seu livro Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?:

Sem a condição de ser enlutada, não há vida, ou melhor dizendo, há algo que
está vivo, mas que é diferente de uma vida. Em seu lugar, “há uma vida que
nunca terá sido vivida”, que não é preservada por nenhuma consideração, por
nenhum testemunho, que não será enlutada quando perdida. (BUTLER, 2018,
p. 33)
58

Contudo, nota-se que Camarão, diferentemente de Dias, percebe que por mais
que os portugueses tenham lhe dado o título de “Governador e Capitão-Mór de todos os
índios do Brasil” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 36), para eles, os representantes
da coroa, a sua vida é indigna de luto, pois ele continua sendo índio. Isso fica evidente
quando em dialogo com Bárbara, no momento em que Calabar vai ser enforcado, e o
índio diz:

CAMARÃO – Esta é uma guerra dos brancos, dos dois lados. Por isso, tanto
faz.
BÁRBARA – E você vai morrer sem acreditar em nada...
CAMARÃO – Vou morrer porque sou índio e nós índios morremos todos no
primeiro dia que os brancos botaram o pé nas Américas. (Ibid., p. 39)

Entretanto, Dias já não compartilhava da mesma visão de Camarão, acreditando


que ele era superior aos outros negros. Ele acreditava que era livre e, exatamente por
lutar por um embranquecimento, pensava que sua vida fazia diferença e que seu passado
e sua cor não eram relevantes:

BÁRBARA – O suficiente para não se importar de ser negro.


DIAS – Por que iria me importar de ser negro?
BÁRBARA – Nunca o trataram como negro?
DIAS – Na minha pátria, graças a Deus, o negro é quase igual ao branco.
BÁRBARA – Você nasceu livre?
DIAS – E de sangue limpo.
BÁRBARA – Os seus pais nunca foram escravos...
DIAS – Isso não importa.
BÁRBARA – Os outros negros não são escravos...
DIAS – Eu não sou.
(...)
BÁRBARA – E os outros?
DIAS – Os outros?
BÁRBARA – Os outros negros.
DIAS – Que sigam meu exemplo. Há sempre um lugar ao sol para quem não
é preguiçoso. (Ibid., p. 38)

É importante ressaltarmos nesse diálogo o momento em que Dias aponta que na


pátria dele os negros são iguais aos brancos. Isso se dá devido ao fato de o governador
dos negros reconhecer a sua pátria como sendo o Brasil, e é exatamente por esse
reconhecimento que ele participa dessa guerra, é submisso aos desejos dos portugueses
e vê a sua vida como sendo digna de luto, pois como aponta Gabriel da Cunha Pereira,
em Imaginando o Brasil o teatro de Chico Buarque e outras páginas:

Para sentir-se pertencendo ao Brasil, quer ter uma vida que se assemelha a
dos fidalgos. Esta, a sua ambiguidade. Henrique Dias aspira o poder e se vê
59

seduzido pela hegemonia da classe dominante. E neste momento, ele trai a


sua classe e se deixa corromper pelo poder (PEREIRA, 2015, p. 89)

Sendo assim, percebe-se que o que diferencia o índio do negro é apenas o


entendimento de cada um quanto a sua submissão e no que diz respeito ao seu valor
diante dos detentores do poder. Nos termos de Judith Butler, podemos dizer que um
entende a sua vida como passível de luto, já o outro, por sua vez, demostra uma
consciência maior de sua condição e, logo, é pessimista e cético quanto a sua mudança
de “status”. Não obstante, apesar de terem traído seus grupos sociais, a “história oficial”
os coloca no patamar de heróis.
Por fim, analisaremos Mathias de Albuquerque, o representante da coroa
portuguesa, nascido em terras brasileiras. Segundo a historiografia consultada pelos
autores da peça, e como relata Elzimar Fernanda Nunes, o governador de Pernambuco
teria sido “chamado à Europa para prestar contas, chegando lá, foi imediatamente preso
por suspeita de traição.” (NUNES, 2002, p. 108). Mas, novamente, repetimos que,
apesar de tais suspeitas, Mathias de Albuquerque não recebeu a alcunha de traidor.
No que diz respeito à peça de Chico Buarque e Ruy Guerra, o governador
brasileiro seria aquele que traz para a obra a visão portuguesa, sendo ele também, de
certa forma, um submisso a Portugal. No entanto, em diversos momentos do texto, ele
mesmo questiona seus ideais, e aponta que chegou a hesitar em seguir as regras do jogo,
como se pode ver no momento em que Mathias se confessa com o Frei:

FREI – Que Deus...


MATHIAS – Me perdoe. Caso contrário eu não seria digno de enforcar um
homem, brasileiro como eu, que se atreve a pensar e agir por conta própria.
FREI – Que Deus o perdoe.
MATHIAS – Sim, Padre, suplico a Deus que me perdoe a desgraça de ter
sido fraco e ter hesitado, ainda que por instantes, em seguir as regras do jogo.
Pois Deus sabe que... (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 32).

Esse trecho, nas versões após a revisão dos autores ganha outra interpretação,
uma vez que eles retiram as duas últimas falas e a confissão é interrompida pela entrada
de um oficial. Além disso, a primeira fala de Mathias também é modificada, e no lugar
de dizer que “não seria digno de enforcar um homem, brasileiro como eu, que se atreve
a pensar e agir por conta própria” (Ibid., p. 32); ele passa a dizer “não seria digno de
enforcar um homem, brasileiro como eu, mas tão insensato quanto os meus devaneios.”
(BUARQUE & GUERRA, 2017, p. 55). Tal mudança no texto não deixa explícito o
paradoxo, a dúvida que rondava o governador de Pernambuco, impedindo assim a
60

interpretação de que Mathias de Albuquerque talvez tenha tido vontade de trair a coroa
portuguesa.
Diante disso, podemos perceber que em diversos momentos da peça Mathias
vive um impasse e questiona o que fazer. Evelina Hoisel ao analisar a canção entoada
por Mathias (Fado Tropical), em seu texto “Fado Tropical”: Jogos de Ambivalência,
aponta que:

Chico Buarque e Ruy Guerra demonstram acolher a teoria da cordialidade ao


construírem a feição de um sujeito que vive os embates da razão e do
coração, da ação e do sentimento. A partir das ambiguidades que fraturam
ação e sentimento, configura-se a feição plural de um sujeito cujas definições
e representações simplistas apreendem apenas a brutalidade e a violência do
seu gesto, sem incursionar pela intimidade do seu sentimento. A dor sentida
pelo carrasco Mathias, capturada pela voz lírica do sujeito enunciador, vem
dos acordes do coração, e deflagra a sua dúvida em relação à ação de
“torturar, esganar, trucidar”. (FERNANDES, 2013, p. 146)

A partir da canção, podemos ver perfeitamente bem as incertezas que corroem o


governador de Pernambuco, a cada estrofe cantada ele interrompe com uma fala
declamada que geralmente demonstra a dicotomia em que vive: servir a Portugal ou
servir aos seus desejos e devaneios: “Quando me encontro no calor da luta / Ostento a
aguda empunhadura à proa, / Mas meu peito se desabotoa. / E se a sentença se anuncia
bruta, / Mais que depressa a mão cega executa / Pois senão o coração perdoa.”
(BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 15).
No entanto, por mais que exista toda essa oscilação, essa dúvida que Mathias
demonstra viver, ao longo do enredo da peça, ele sempre busca justificar suas ações
tentando se eximir de culpa, como analisa Elzimar Fernanda Nunes. Um dos exemplos
mais nítidos que a autora dá dessa tentativa é o de que

Atento ao que o discurso histórico poderia dizer, logo após negociar a


entrega de Calabar, o fidalgo pede aos historiadores: “Quando contarem estes
desafortunados fatos/ Falem de mim como eu sou...” e, em coro com o
Holandês, declara que “Jogou o inimigo na desgraça/ E na desgraça ele
mesmo mergulhou”, colocando-se na posição de vítima. (NUNES, 2002, p.
111).

Dito isso, percebe-se que apesar das incertezas de Mathias de Albuquerque, do


desejo pelo embranquecimento de Henrique Dias ou da religiosidade de Felipe
Camarão, os três personagens por fim lutam uma guerra que não são deles. Ou seja, os
três estão na posição de submissão defendida por Frédéric Gros – que foi apresentada no
61

capítulo anterior –, pois como aponta o autor: “a submissão é uma relação de forças que
torna a desobediência impossível, despropositada, demasiado custosa.” (GRÓS, 2018, p.
56). E, é assim que os personagens constroem suas relações, nunca desobedecendo às
ordens da coroa, pois caso desobedecessem, isso poderia não só custar-lhes a vida –
como no caso de Calabar – mas poderia também cancelar seu embranquecimento ou sua
conversão católica.
Conclui-se que falar de desobediência para as vozes masculinas de Calabar: o
elogio da traição se torna mais difícil, pois, diferentemente de Calabar, a maioria das
personagens masculinas não desobedece, porque estão completamente absortos em uma
relação de submissão que não permite a desobediência; como seria o caso de Mathias de
Albuquerque, Henrique Dias, Felipe Camarão e Sebastião do Souto. No que diz respeito
ao Frei Manoel, esse lida apenas com seus interesses, mudando de lado e jogando o
jogo. E por fim, Nassau que, como estrangeiro, apenas trai o sonho de Calabar e nada
mais.
Dessarte, e sendo notório a relevância da historiografia tradicional para a
interpretação de Calabar: o elogio da traição, nos debruçaremos ao longo do próximo
capítulo a compreender como esses objetos se entrelaçam e também sobre como as
várias edições, por apresentarem mudanças significativas, possuem sua própria
historicidade.
62

3. Condições de Produção, Espelhamentos e Desobediência em Calabar.


3.1 Diferentes edições, diferentes textos: o que as modificações nas edições
de Calabar revelam.

Calabar: o elogio da traição foi escrita no ano de 1973 e recebeu uma grande
atenção do público devido a forma que foi censurada – isto é, dias antes de sua estreia.
Por não ter sido encenada, coube ao vinil com as músicas da peça e ao livro com o seu
texto disseminarem a história escrita por Chico Buarque e Ruy Guerra. O livro, em
2017, já estava em sua 39ª edição pela Civilização Brasileira.
É de extrema importância ressaltarmos essas questões, ao longo de nossa
pesquisa percebemos que o texto de Calabar escrito em 1973 sofreu alterações ao ser
reeditado, não obstante, não fomos os primeiros a constatar tais mudanças, Elzimar
Fenanda Nunes aponta em sua dissertação de mestrado que essas modificações foram
feitas ao longo de algumas edições:

Não pudemos ter acesso a todas as edições Calabar, mas foi possível
constatar que há modificações profundas da 22ª para 23ª. Episódios foram
modificados, cenas foram invertidas, diversas falas foram condensadas e
outras suprimidas, resultando num texto mais enxuto. (NUNES, 2002, p. 9)

Assim como a autora, dentro de nossa pesquisa também não pudemos ter acesso
a todas as edições já publicadas do texto, no entanto tentamos aumentar o número de
edições a serem analisadas. Assim somamos o total de oito edições de Calabar: o elogio
da traição, a saber: a 1ª edição datada em 1973, a 5ª edição de 1974 – ambas da
Civilização Brasileira –, a 3ª edição de 1975 pela editora Círculo do Livro, a 12ª edição
de 1979 (Civilização Brasileira), 15ª edição de 1985 (Civilização Brasileira), 20ª edição
de 1995 (Civilização Brasileira), 21ª edição de 1996 (Civilização Brasileira) e a 39ª
edição de 2017 (Civilização Brasileira).
Sendo assim, percebemos que devido às transformações feitas no que diz
respeito ao textual, nota-se que, dependendo da edição que se tem em mãos, ela irá
permitir ou não algumas interpretações. Ou seja, se analisarmos somente o texto de
1973 chegaremos a algumas conclusões bem diferentes do que se tivéssemos focado
apenas no texto de 2017, pois partes textuais que seriam cruciais para algumas
interpretações propostas, existentes no texto da 1ª edição, foram removidas na nova
63

versão de 2017. O mesmo ocorre para espaços temporais mais curtos, como
exemplificado pela professora Elzimar em sua dissertação.
Uma hipótese para os diferentes registros nas edições diz respeito ao fato do
contexto histórico no qual a primeira versão foi escrita, ou seja, em plena ditadura civil
militar brasileira instaurada com o golpe de 1964; uma vez que a nova versão já não
compartilhava do mesmo cenário histórico, algumas críticas e interpretações possíveis
foram removidas ou reestruturadas, fazendo com que o novo texto ganhasse, por
conseguinte, um novo horizonte interpretativo.
Segundo Gabriel da Cunha Pereira, algumas das modificações também se deram
“de acordo com os mandos e desmandos da censura.” (PEREIRA, 2015, p. 76). A 15ª
edição (datada justamente do fim do período ditatorial [1985]) traz em sua capa a
informação de que o texto havia sofrido modificações feitas pelos autores, pois vem
escrito logo abaixo do número da edição que ali se tem o “texto revisto e modificado
pelos autores” – o mesmo se dá para a 20ª e 21ª edições. No entanto, as modificações
que ocorrem entre essas edições – e até mesmo na edição mais recente – não nos é
possível afirmar ao certo de quem partiu; se os autores revisavam e modificavam o texto
conforme as edições saiam, ou se partia das próprias editoras ao reeditarem a obra.
No que diz respeito a grande modificação textual que nos é apresentada logo na
capa de algumas edições, temos a explicação para elas dentro do texto Duas vezes
Calabar (datas), escrito por Fernando Peixoto, presente na 15ª, 20ª, 21ª e 39ª edição de
Calabar, quando ele aponta:

Entre 15 e 21 de agosto de 1979, no Rio, retomamos Calabar: com


Chico e Ruy, análise crítica e autocrítica do texto em sua versão original, e do
espetáculo abortado e realizado seis anos antes. O avanço e a maturidade das
lutas populares e democráticas forçam o governo a fazer concessões. Estamos
vivendo o princípio da chamada “abertura” e parece possível conquistarmos
novos critérios, certamente mais brandos, para a censura. É a ocasião de
retomar um projeto que foi interrompido nos mais difíceis anos de repressão.
Mas encenar Calabar agora não significa refazer o espetáculo anterior. Nem
mesmo partir do texto original. Tudo se transformou: o país, nós mesmos, a
linguagem teatral, as exigências culturais, a forma de encarar a temática,
ainda que esta nos pareça vigente e essencial. (PEIXOTO In: BUARQUE &
GUERRA, 2017, p.13).

Ou seja, levando em consideração esse relato de Fernando Peixoto, e as


evidencias nas capas dos livros, ao menos uma dessas modificações textuais foi feita
pelos próprios autores, no que diz respeito às outras transformações, não temos como
afirmar. O que é interessante perceber a partir de tudo isso que dissemos até aqui é que
64

o texto da peça muda conforme mudam as circunstâncias. Quer dizer, não apenas as
circunstâncias históricas “externas” que, devido à censura, modificam o texto de forma
coercitiva, mas também os próprios autores modificam o texto com o passar do tempo
conforme aquilo que lhes convinha. Dito isso, olhemos então para as edições para
entendermos quais são as grandes diferenças existentes entre elas.
Ao olharmos para todas as edições, as dividimos em dois grupos, as anteriores e
as posteriores a revisão dos autores, pois, dessa maneira, é possível analisar mais a
fundo as diferenças no que diz respeito as possíveis interpretações do texto. No entanto
não podemos negligenciar o fato de que mesmo em edições do mesmo grupo existem
entre elas algumas diferenças; porém elas são menores, sendo mais voltadas a algumas
marcas de cena, às questões de diferentes formas de grafar uma palavra – como, por
exemplo, “d’El Rey” que aparece geralmente grafado com “y”, mas em outras aparece
grafado com “i” – ou a preferência por uso de letras maiúsculas para iniciar cada verso
de uma canção, enquanto em outra edição já há uma mistura entre maiúsculas e
minúscula – na primeira edição “Cala boca Bárbara” mescla maiúsculas e minúsculas,
já na 5ª todos os versos iniciam com maiúscula –, e também o fato de termos adição e
omissão de algumas palavras ou frases inteiras. Contudo, essas alterações não
modificam a interpretação do texto – na primeira edição na cena do banquete, quando os
moradores revezam suas falas com as falas de Anna, em determinado momento os
moradores dizem: “Ha ha ha! Rebola para cá, meu bem! Eu sou ateu! Me segura que
vou ter um troço!” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 9); a fala “Me segura que vou ter
um troço” foi removida das edições subsequentes.
A partir de tal análise decidimos contrapor a primeira edição com a 15ª.
Escolhemos essas duas por ser a primeira, a edição original da peça e a 15ª ser a edição
mais antiga – após a modificação e revisão feita pelos autores – que tivemos acesso.
Olhando para essas duas, temos diferenças maiores que implicam na interpretação
textual permitindo ou não algumas leituras e análises.
A primeira mudança se dá na cena inicial da peça, quando Mathias escreve uma
carta para Calabar, na edição posterior a revisão, o representante da coroa portuguesa já
nos indica que Calabar está na Vila de Porto Calvo ao pedir que o escrivão enderece a
carta para lá. Na primeira edição, essa informação ficava omitida, e só entendíamos que
Calabar já estava ao lado dos holandeses no desenrolar da cena. Posterior a isso, ao ditar
a carta para o escrivão, Mathias muda o tratamento de Calabar diversas vezes,
começando por Major, passando por Mestre-de-Campo e finalizando por coronel, após a
65

revisão textual feita pelos autores; ao olharmos para a edição de 1973, ele só o trata
como Major. Essa cena se alonga mais na 15ª edição, pois Mathias diz:

Prefiro não considerar as respostas negativas que me destes noutras ocasiões


certo de que aceitareis a mão que ora vos estendo. Até porque não se me
apagam da memória as provas de bravura e lealdade que vós me dedicastes
no passado, especialmente na resistência ao invasor holandês, neste mesmo
Arraial do Bom Jesus onde me encontro, quando logramos encurralar o
inimigo contra o litoral. (BUARQUE & GUERRA, 1985, p. 3 e 4)

Tal trecho torna-se relevante uma vez que permite outra leitura da relação
existente entre Mathias e Calabar, posto que apresenta as memórias que o Governador
de Pernambuco tem quanto a bravura e lealdade de Calabar. A passagem evidencia
ainda o fato de que eles lutaram lado a lado, e que um dia Calabar viu os holandeses
também como inimigos.
Mais a frente no texto, temos praticamente toda a cena do banquete do holandês
modificada, todavia, as falas do holandês continuam mostrando ao Frei que o que eles
buscam ao colonizarem o Brasil é que esse seja um país mais liberal, onde ninguém será
expulso, tendo espaço para todos; no entanto na edição revisada ele se prolonga, e o que
antes o holandês dizia em quatro falas, ele passa a usar sete falas bem diferentes e mais
longas. Nessa mesma cena, no texto de 1973, Anna canta um trecho de “Anna de
Amsterdam” antes da entrada de Souto, esse trecho é removido pós-revisão. A retirada
da canção, bem como o prolongamento da cena não modificam tanto o que se pode
depreender sobre esse episódio.
Após a entrada de Souto, a cena também muda um pouco quando comparada a
primeira edição. Na 15ª, por exemplo, ao relatar para o holandês a chegada de Mathias e
quem o acompanhava, Souto diz: “Ah, sim, bois gordos e suculentos! E carruagens,
senhor, carregadas de muita riqueza! (Para o Frei) E homens armados até os dentes,
índios, negros, peixeiras, canhões... (Para o Holandês) Presa fácil.” (Ibid. p. 11). Nessa
fala não há apenas mudanças em como as frases foram escritas, mas também há adição
da informação dada ao Frei. Essas alterações só prolongam a cena e sublinham ainda
mais para o leitor a questão de que Souto realmente está agindo como infiltrado na
coroa holandesa, bem como deixa entrever que o Frei também é mais aliado de Portugal
do que da Holanda. Sendo assim, pode-se dizer que tais alterações também não
modificam substancialmente o que é possível compreender através da peça ou da
passagem.
66

Na cena seguinte – na primeira edição – temos a apresentação de Henrique Dias,


Sebastião do Souto e Filipe Camarão, cantando a “Canção dos Heróis”, tal canção, bem
como a apresentação deles, é transferida para o momento após a execução de Calabar na
edição pós-revisão e, ao invés de vir ao som da “Canção dos Heróis”, vem ao som de
“Vence na Vida Quem Diz Sim” – canção que será entoada por Anna logo em seguida à
apresentação dos personagens, enquanto a viúva de Calabar olha para os três homens
que anteriormente eram amigos de seu marido. Tal modificação já faz com que olhemos
para esses personagens de forma a compreender que eles são submissos e que só
venceram na vida e se tornaram heróis porque disseram “sim” para a coroa portuguesa.
Anteriormente, ao entrarem cantando a “Canção dos Heróis”, a única coisa que o
publico obtinha era uma breve apresentação sobre os personagens, fazendo com que
entendêssemos um pouco mais quem eles eram.
Em seguida eles retomaram o diálogo com Bárbara onde ela os reconhece e os
confronta – existente em todas as edições – entretanto algumas falas desse diálogo, na
versão pós-revisão, são repassadas para Anna, que nesse momento já se posiciona em
defesa da outra personagem feminina. Esse confronto também ganha novas falas,
sobretudo, quando o diálogo se torna direto entre Bárbara e Souto, em que ela aponta
que Souto nunca entendeu Calabar e Souto em resposta aponta que ele nunca entendeu
nada, que ele já nasceu inserido na guerra e que sempre achou normal tudo que
aconteceu e acontece dentro dela.
No momento em que Mathias olha suas próprias mãos e declama um texto
exaltando-as e explicando o que elas fazem por ele e com os outros, nas edições mais
recentes nota-se que o texto continua igual, porém alguns versos mudam de posição e a
última estrofe é removida completamente. Essa última estrofe em que Mathias diz:
“Esfregai-vos, minhas mãos de orgia! Ejaculai, oh mãos de estrangular! Alegria, minhas
mãos, é dia Que é noite de Calabar.” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 12) é
realocada, tornando-se a fala final dele em seu diálogo com o Frei enquanto ele come
bacalhau, e ainda ganha, no início dela, a repetição do nome Calabar por três vezes,
sendo assim, há a remoção completa da fala em que ele, às gargalhadas, dizia:

Um ano de fracassos consecutivos. Perdi Cabedelo, Reis Magos, Nazaré e


Bom Jesus, estou sendo enxotado para a Bahia, donde vou ser recambiado
para a metrópole, onde me fazem uma devassa. E para me substituir vão
mandar um espanhol, como se não bastasse. (subitamente sério). Mas esta
guerra é santa. Deus é justo e não permitirá que eu morra sem antes encarar o
67

Calabar (tira o pergaminho do peito). E fazê-lo engolir a resposta que me


mandou. (Ibid. p. 14)

Essa alteração textual nos mostra que, diferentemente da primeira edição, em


que aparentemente Mathias não tinha segurança de que teria Calabar em suas mãos, na
edição pós-revisão ele já vislumbra que os holandeses entregariam Calabar.
A cena em que Mathias e o holandês negociam o proceder da guerra também
ganha mais falas na 15ª edição, tornando assim o diálogo entre eles mais desaforado,
trazendo mais comicidade para a conversa de latrina dos dois representantes.
Posteriormente, vem o momento em que Souto, Dias, Camarão, o Frei e Mathias
apontam o que seria um traidor, no entanto na edição de 1985 esse trecho também é
removido da peça, impedindo assim a interpretação de que a traição depende de um
ponto de vista.
A fala de Bárbara anterior à confissão de Mathias com o Frei também é
modificada, quando antes Bárbara dizia:

Certo. Certo.
Não tem culpa arraia-miúda.
Não tem culpa arraia-miúda.
Arraia-miúda não muda,
Arraia-miúda está muda,
Carrancuda, tartamuda,
Bochechuda, barriguda.
Arraia-miúda, só ajuda.
A traição graúda,
chifruda e nariguda,
sisuda, trombuda e papuda.

Certo. Certo.
A culpa de todo é de Calabar.
A culpa de todos é de Calabar.
É bom, é cômodo, é fácil
Trazer o traidor dentro da manga.

Certo, certo, certo, certo.


O melhor traidor é o que se escala
Copo pronto para a bala
Se encurrala, se apunhala,
Se amarrota e não estala,
E cabe dentro da mala,
Se despeja numa vala.
Se esquece espetado em tala
Como que arraia não se rala
E não se fala na sala. (Ibid. p. 30 e 31)

Agora Bárbara não diz mais as duas primeiras estrofes que foram modificadas
por um texto que aponta que “O traidor se chama Calabar” (BUARQUE & GUERRA,
68

1985, p. 38) e compara o silêncio de Calabar por não ter entregue o nome de amigos,
que também traíram os portugueses, com os que delataram amigos, ou que receberam
propinas mas que continuarão vivos, ao contrário do seu amado. Tal mudança só
evidencia outro valor na traição, apontando a diferença entre a arraia-graúda e a arraia-
miúda de forma mais explícita do que era feito na primeira versão do texto.
Em seguida – na versão de 1985 – acontece a execução de Calabar e a cena que
relatamos anteriormente em que os heróis Dias, Camarão e Souto se apresentam
seguidos do confronto com Bárbara e Anna. E logo após Souto canta “Vou Voltar” e sai
de cena deixando Bárbara e Anna – essa cena das duas personagens femininas pós-
morte de Calabar ganha um novo diálogo que não permite mais entrever a relação
amorosa existente entre as duas, como era possível de interpretar através do dialogo e da
canção “Anna e Bárbara” existente na versão de 1973. A canção entoada aqui deixa de
ser a que leva o nome das personagens e passa ser a música “Cobra-de-Vidro” que
proporciona ao público o entendimento de que matar Calabar é ineficiente, pois a ideia
que ele perseguia continuaria viva independente de seu corpo não estar mais presente, e
assim começa então o segundo ato.
O segundo ato, na 15ª edição, começa com um grande monólogo de Nassau e
segue com os moradores encantados com o príncipe, fazendo perguntas a ele sobre o
que achou do Brasil, do Recife, e o governador responde a todos os questionamentos em
francês, fazendo com que os residentes daquela região ficassem ainda mais
maravilhados. Na primeira edição esse diálogo entre Nassau e os moradores só acontece
depois de Anna cantar “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”. A imagem do Consultor
que poda e aconselha Nassau também só passou a existir a partir da revisão e
modificação do texto feita pelos autores; e logo, todo diálogo existente entre os dois é
completamente novo e acentua o lado egoico do príncipe.
Todo o diálogo entre Bárbara e Souto antes e depois da canção “Você Vai Me
Seguir” é modificado na edição pós-revisão, deixando a relação entre eles menos
amorosa quanto o que é possível perceber no texto de 1973, uma vez que após a canção
no lugar da rubrica: “OS DOIS SE AMAM” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 60), a
direção de cena muda para: “Terminada a canção, Souto agarra Bárbara para beijá-la”
(BUARQUE & GUERRA, 1985, p. 80) e Bárbara o cobra o preço de dois florins, pois
seu turno já está acabando, deixando prever que ela se tornou uma prostituta, o que não
é descrito na primeira edição.
69

A última grande mudança entre as edições está no fato de os autores terem


adicionado a canção “Minha Fortaleza”, nas edições publicadas pós-revisão. E segue o
último diálogo entre Anna e Bárbara. Nas edições anteriores a 1980 esse diálogo mostra
ainda o amor que Bárbara sentia por Souto, bem como deixa entrever alguns dos
paralelos existentes entre ele e Calabar e só nesse momento conseguimos vislumbrar
que o destino de Bárbara talvez seja realmente a prostituição. Já na publicação de 1985
não fica tão evidente esse sentimento de amor por Souto, só ficando mais evidente o
fato de Bárbara realmente ter se tornado uma prostituta. Ainda nesse diálogo, em todas
as edições de Calabar que tivemos acesso, Anna canta “Anna e Bárbara”, a diferença é
que na primeira ela só canta um trecho enquanto na 15ª ela canta a música inteira
fazendo o dueto com Bárbara, mas ainda não deixando transparecer o amor delas duas
para as mais recentes.
Logo, diante dessas análises, nota-se que as modificações existentes entre as
edições realmente fazem com que os textos sejam muito diferentes um do outro e
permitem assim relações e interpretações distintas. Como já dito, sabe-se que muitas
dessas modificações aconteceram em decorrência não só da censura, mas também da
revisão e modificação feita pelos autores, visto que, quando encenada em 1980, no
início da anistia, muitas das críticas existentes nas versões anteriores já não faziam mais
tanto sentido, como poderemos ver a seguir.

3.2 O contexto de produção de Calabar – o que revela sobre a


desobediência?

“elogiar a traição, propondo que, às vezes, trair pode ser a atitude


mais nobre a se tomar.”
(Elzimar Fernanda Nunes)

Paul Van Tieghem, diz que “por trás do livro você perceberá o homem que o
escreveu, e, em torno do homem, seu meio e seu tempo” (TIEGHEM, P.V. 1994, p. 89),
e é exatamente isso o que nos ocorre ao ler a obra de Chico Buarque e Ruy Guerra. Os
autores se apropriam do episódio histórico ocorrido durante o período colonial
brasileiro, e, a partir de uma paródia de um recorte histórico, apontaram e criticaram
firmemente a política do regime da ditadura civil militar brasileira, instaurada através do
70

golpe de 1964, que ainda governava o país na época em que foi produzido o texto;
deixando assim em sua obra as marcas históricas que vivenciavam no ano de 1973.
Toma-se como base para a obra a pouca bibliografia existente sobre Domingos
Fernandes Calabar que, pelo que se sabe, foi um mameluco que se aliou aos holandeses
na época que o Brasil era colônia de Portugal. Segundo os autores da peça, o tema
surgiu de repente, despretensiosamente, e acabou encaixando bem com o que eles
queriam e gradativamente foi evoluindo para a questão da invasão holandesa e outros
episódios da história brasileira que foram recortados e transferidos para Calabar. Em
uma entrevista para os alunos da PUC-Rio, os dois autores afirmam o seguinte:

Ruy: a história para nós era um pretexto. Nós fizemos um corte vertical na
história. Tanto que a linguagem é inteiramente descompromissada com
qualquer linguagem quinhentista. As músicas não têm nada a ver com as
músicas da época, porque tem calipso, valsa, fado...
Chico: exceto o soneto, que é recitado pelo Mathias, e tem um hino holandês
da época, tem o texto do Frei Manoel Calado, que é tirado “ipsis literis” do
livro O Valoroso Lucideno, de onde a gente tirou várias coisas.
Ruy: tem texto dele, assim como tem frase do Ibrahim, do Pelé, tem tudo. A
fala da condenação de Calabar é tirada, textualmente, da condenação de
Tiradentes. Há um corte vertical na história, a partir do qual se tem uma
compreensão. (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 5)

No entanto, por mais que o tema tenha surgido de forma despretensiosa,


tratando-se da época na qual a obra em questão foi escrita, ou seja, em plena ditadura
civil militar brasileira, nota-se também que essa é uma das formas encontradas pelos
autores para atingirem aqueles que estavam no poder, uma vez que todos os que não
concordavam com o regime ditatorial eram vistos como traidores da pátria.
Dito isso, é necessário termos em mente que ao longo da ditadura civil militar
brasileira os mais diferentes setores da cultura, sobretudo o teatro, tornam-se grandes
inimigos do Estado totalitário, uma vez que, através desses instrumentos, ideias
contrárias as daqueles que estavam no poder poderiam ser disseminadas. Sendo assim,
numa tentativa de impedir a disseminação de ideias e manifestações contrárias ao
governo, o presidente Costa e Silva, em dezembro de 1968, endurece a censura através
do Ato Institucional número 5 – ato esse que é visto como o grande marco da ditadura, e
pelo qual se tem início o período mais violento do governo militar.
De 1968 até 1973, ano em que a peça de Chico Buarque e Ruy Guerra é escrita e
começa a ser ensaiada, há um intervalo de 5 anos, dentro desse período, Costa e Silva
sai do poder e em 1969 Emilio Garrastazu Médici assume a presidência do Brasil.
71

Médici vive seu mandato de 1969 até o ano de 1974. Sendo o terceiro presidente da
ditadura civil militar brasileira, tem seu período reconhecido pela história como “anos
de chumbo”, pois foi durante o seu mandato em que se acentuou a tortura, a repressão e
a censura no país.
Ao longo do governo de Médici, o Brasil também vivenciou a dizimação dos
focos guerrilheiros que já haviam se organizado antes da ascensão do presidente, e é
exatamente nesse período que o nome do Capitão Carlos Lamarca ganha espaço nos
noticiários. Entretanto, por mais que fosse um capitão do exército, seu nome não se viu
atrelado ao governo, mas sim à guerrilha. Lamarca “transforma-se num símbolo da
revolução junto à esquerda.” (JOSÉ & MIRANDA, 1989, p. 59). É relevante
apontarmos a imagem de Lamarca atrelada ao governo de Garrastazu Médici porque é
dentro desse regime que o capitão deserta do exército e se alia à guerrilha, bem como
em 1971 é assassinado por militares enquanto dormia.
Tendo em mente esse cenário, percebe-se que é possível depreender diversos
paralelos entre os fatos históricos e o enredo de Calabar. Sendo assim, podemos
também afirmar que os autores lançam mão da imagem do mameluco e, por
conseguinte, do episódio da invasão holandesa porque viram que, como aponta Carolina
Maia Gouvêa:

(...) recontar o passado é uma forma de rever valores instituídos e conquistar


um espaço, para além daquele imposto, na prática do discurso da “doxa” na
dominação.
Daí, Chico Buarque e Ruy Guerra reativam o mito político Calabar.
O gesto da traição, posto em tempo de memória, deveria estabelecer o
distanciamento crítico necessário, para que se desvelassem covardias e
mascaramentos, próprios da ideologia-dissimulação. Na representação da
peça Calabar, as grotescas guerrilhas da invasão holandesa ao Brasil
entrariam em analogia com os acontecimentos correntes, que o regime militar
teimava em recalcar.
Assim, à proporção que se ativasse a memória da plateia, desvelar-
se-ia o jogo entre as intenções soterradas pelos fatos da história e certas faces
do contexto político-social em vigor. (GOUVÊA, 1993, p. 115).

Diante disso, tendo em mente a crítica ao regime, bem como o desvelamento que
propõe Carolina Maia Gouvêa, é de se entender o porquê de a peça ter sido duramente
censurada às vésperas de sua estreia, não podendo ter nem mesmo seu nome divulgado
em nenhum meio. Até mesmo o disco que Chico Buarque gravou com as canções da
peça não pôde ter o nome Calabar na capa, sendo assim ficou apenas “Chico Canta”,
pois como relata Vavy Pacheco Borges em Ruy Guerra: paixão escancarada:
72

Ruy contou que queriam pôr na capa o título Chico Canta Calabar, com três
letras “C” grandes e destacadas, em alusão ao violento grupo da extrema
direita Comando de Caça aos Comunistas – o CCC –, que vivia aterrorizando
o mundo estudantil e cultural de esquerda. Entretanto, até a palavra “Calabar”
foi proibida e o disco intitulou-se somente Chico canta. Qualquer tipo de
apresentação pública das músicas foi controlado. Nos documentos do Dops,
há notícia de proibições a “Fado Tropical” e “Boi voador” em rádio, em TV,
até em alto-falantes de lojas, um documento registra como condenável o fato
de o Jornal do Brasil publicar a letra de “Vence na vida quem diz sim”.
(BORGES, 2017, p. 238-239)

O caso da censura da peça e até mesmo da palavra Calabar também ganha


explicação no livro de Vavy Pacheco Borges, quando o autor apresenta o que dizia no
Documento do Centro de Informações do Exército e posteriormente aponta a razão que
levou o diretor da Polícia Federal Antônio Bandeira a revogar a autorização da peça:

Documento do Centro de Informações do Exército (CIE), de outubro


de 1973, diz:

A peça teatral em epígrafe é da autoria dos subversivos Chico Buarque


de Holanda e Ruy Guerra [...]. Vários heróis de nossa história, inseridos no
fato, são ridicularizados e acusados de traidores, na tentativa de desmoralizar
aspectos fundamentais da formação da nacionalidade brasileira, cujo berço se
assenta, exatamente, no episódio da luta contra a dominação holandesa no
Nordeste [...] alguns escritores atuais, inocentes úteis ou ideólogos do
comunismo internacional, entre esses os srs. Nelson Werneck Sodré e
Barbosa Lima Sobrinho, fazem apologia da inocência de Calabar [...]. Nos
anos de 1970 e 1971, os setores de agitação e propaganda das diversas
organizações terroristas tentaram fazer Tiradentes o patrono da subversão no
Brasil [...]. O trabalho dos órgãos de segurança para neutralizar essa
propaganda alcançou êxito em 1972, durante as comemorações do
sesquicentenário da nossa Independência, quando a figura de Tiradentes foi
exposta à opinião pública como “Patrono da Nacionalidade Brasileira”. No
início deste ano foram levantados indícios que Tiradentes seria, na
propaganda subversiva, substituído por Calabar [...]. A peça Calabar segue
essa orientação.

Foi o diretor da Polícia Federal Antônio Bandeira que revogou a


autorização já concedida. Razão apontada:

[o musical] faz apologia à traição, distorcendo de maneira capciosa os


fatos históricos de uma das mais belas epopeias da nossa formação, marco
que foi da unidade nacional, atingido e denegrindo os valores tradicionais da
nacionalidade enquanto exalta a figura execrável do traidor Calabar.
(BORGES, 2017, 237 e 238)

Apesar de longa, a citação se torna extremamente válida para que possamos


compreender o que levou não só à censura da peça, mas também para entendermos o
porquê de nem mesmo poderem citar o nome da obra, ou melhor dizendo, o nome de
Calabar. Ao escrever o texto e colocarem o personagem histórico Calabar na posição
73

que detalha o documento do Centro de Informações do Exército, Chico Buarque e Ruy


Guerra acabam fazendo o mesmo que seu personagem faz ao longo da peça, e o que fez
o personagem histórico que lhes serviu de inspiração, ou seja, vão contra a elite que
estava no poder, sendo assim, todos são traidores, todos desobedecem.
Podemos traçar assim muitos paralelos entre Calabar e seu contexto de
produção, uma vez que a peça está repleta de críticas. Percebe-se que, como aponta
Daisy Aparecida Nogueira, a possibilidade de aproximarmos a realidade de Bárbara
com a que vivia o povo brasileiro nos anos de chumbo, uma vez que:

Se Bárbara vive espreitada por Souto, Dias e Camarão (subalternos do poder


vigente), o povo brasileiro, fora dos palcos, não vive em situação diferente.
Qualquer “atitude suspeita” pode ser motivo para a prisão ocasional. Uma
série de operações – “Operação Gaiola”, “Operação Arrastão”, “Operação
Pente-Fino”, “Operação Pára-Pedro” – definem o ilimitado poder da polícia
política. Pessoas e carros são parados e revistados a qualquer hora. Manter
em casa um livro incluído na “lista negra” torna-se comprometedor. Nas salas
de cinema ou de teatro, a projeção ou a peça podem ser interrompidas ao
meio, a sala ser invadida pela polícia e a obra “subversiva” ser
repentinamente suspensa, sem qualquer explicação. (NOGUEIRA, 1995, p.
20)

Bárbara, assim como Anna de Amsterdam, traz um traço de feminismo à peça,


assunto em voga ao longo dos anos 70. Diante disso, tendo em mente a canção “Cala a
boca, Bárbara”, nota-se que, assim como aponta Elzimar Fernanda Nunes, a música,
além de representar a censura política existente ao longo da ditadura civil militar
brasileira, também aponta a opressão sexual feminina; como diz a autora:

As duas leituras não se excluem, pelo contrário se complementam na


denúncia de uma sociedade patriarcal e autoritária que silencia em vida
(através de censuras oficiais e interdições culturais) e silencia em morte (pelo
simples “esquecimento” do discurso histórico) as vozes que lhe são
divergentes. (NUNES, 2002, p. 97)

Ou a possível aproximação de Mathias de Albuquerque com os militares,


quando – para além da referência direta que ele faz ao “primeiro de abril”, data que os
militares teriam dado o golpe instaurando assim a ditadura civil militar brasileira – ele
diz em meio à canção Fado Tropical “Mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em
torturar, esganar, trucidar, meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora.”
(BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 14).
Para além de todas essas questões do cenário que a ditadura civil militar
instaurou no Brasil, é necessário discutirmos também a influência que os Estados
74

Unidos da América tiveram em todo esse processo. Como aponta Gabriel da Cunha
Pereira: “Nosso regime ditatorial, aliado ao governo dos Estados Unidos desde a
Segunda Guerra Mundial, seguia à risca sua política e ideologia.” (PEREIRA, 2015, p.
92).
Uma das críticas que os autores deixam transparecer na peça sobre esse poder
que os EUA exerciam sobre o Brasil ao longo do regime militar, está presente ao longo
da peça dentro do conceito de pátria. Isso fica evidente na explicação que o autor citado
anteriormente nos traz ao analisar a peça contrapondo-a com o poder que os EUA
tinham sob o Brasil durante a década de 1970, poder esse que ia para além do fato de
terem patrocinado a ditadura civil militar. Usando novamente as palavras do autor,
depois de explicar o processo que levou os Estados Unidos da América a assumirem
uma política liberal, ele apresenta o quão paradoxal seria o Brasil assumir a mesma
postura, pois tal política não coincide com o que prega um regime ditatorial, e então
Cunha Pereira diz:

Portanto, se em Calabar o colonizador invadiu nossas terras e controlava


nossa forma de governo, o mesmo de dava em 1970, em que os Estados
Unidos é que ditavam nosso caminho político. Se antes queriam que
trilhássemos por um regime ditatorial, agora exigia-nos a via liberal. Calabar
é o retrato da invasão política em dois períodos brasileiros, um durante o
Império, outro já na República. (...)
Assim, a crítica dos autores da peça é que da mesma maneira que em
Calabar não é possível falar em pátria porque estávamos sob o jugo de várias
metrópoles, também não é possível falar em pátria durante os anos 1970 em
um país que estava controlado por uma ditadura militar e tinha sua política
econômica determinada por outro país, os Estados Unidos. Nos dois
momentos estávamos colonizados. Se nos anos de Brasil-Colônia, Calabar foi
enforcado, nos anos de ditadura militar aqueles que não apoiavam o governo
eram torturados e mortos. (PEREIRA, 2015, p. 94 e 95)

A partir de tal análise que o autor nos propõe sobre esse cenário brasileiro, onde
nossa política econômica se encontrava completamente atrelada aos desejos Norte
Americanos, percebe-se a crítica existente na cena final da peça quando todos os
personagens cantam “O Elogio da Traição”:

O que é bom pra Holanda é bom pro Brasil


O que é bom pra Luanda é bom pro Brasil
O que é bom pra Espanha é bom pro Brasil
O que é bom pra Alemanha é bom pro Brasil
O que é bom pro Japão é bom pro Brasil
O que é bom pro Gabão é bom pro Brasil

O que é bom pro galego é bom pro Brasil


O que é bom pro grego é bom pro Brasil
75

O que é bom pro toiano é bom pro Brasil


O que é bom pra baiano é bom pro Brasil
O que é bom pra inglês é bom pro Brasil
O que é bom pra vocês é bom pro Brasil

O que é bom pra mamãe é bom pro Brasil


O que é bom pro nenem é bom pro Brasil
O que é bom pra fulano é bom pro Brasil
O que é bom pra (......) é bom pro Brasil
(BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 93)

De forma irônica, a canção nos traz a possibilidade de questionarmos e


colocarmos em xeque o que seria bom para o Brasil. Apresenta uma crítica para além de
mostrar que “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”, mas evidencia que o
nosso conceito de pátria sempre foi atrelado aos desejos de outros e não ao nosso
próprio desejo. Ou, como diria Carolina Maia Gouvêa “Invoca-se, ainda, na peça, a
traição do poder em relação à gente brasileira, no tocante aos seus próprios conceitos de
identidade, impossíveis de serem constituídos, em baixo de ameaças coercitivas e sob
toda sorte de dependência estranha.” (GOUVÊA, 1993, p. 119-120).
Diante de todo esse cenário e da grande censura que proíbe a peça, a obra de
Chico Buarque e Ruy Guerra só vem a ser encenada em 1980, sendo uma das primeiras
peças a serem liberadas pela anistia. No entanto, muito já tinha se perdido ao logo dessa
pausa de 7 anos, pois como aponta Renata Pallottini ao falar de sua obra Enquanto se
Vai Morrer, proibida no mesmo período, “Teatro tem sua perenidade, é evidente, mas
também tem um impacto de momento. Às vezes tem que ser feito na hora em que foi
escrito.” (COSTA, 2006, p. 37). Sendo assim, levando em conta a grande mudança no
cenário político, Chico Buarque e Ruy Guerra reescrevem o texto, tirando alguns
elementos que não fazem mais sentido e inserindo outros.
Percebe-se que assim como aponta Elzimar Fernanda Nunes, quando o público
assiste à encenação da peça em 1980, muito já se perdeu dentro dessa perenidade do
teatro, pois de acordo com a autora, o público:

Atento às inúmeras referências aos anos da ditadura militar, ele não percebeu
o instigante diálogo que a peça estabelecia com textos clássicos da história do
Brasil. Não percebeu que – para além do ataque ao regime de 64 – Calabar
discutia o processo de elaboração dos mitos nacionais e o uso destes na
legitimação de estruturas sócio-políticas, terminando por questionar a própria
feitura do discurso histórico e da identidade nacional. (NUNES, 2002, p. 32)

Destarte, quando a peça vem a ser encenada, muito se perde da ideia original,
pois, como apontado, para além das modificações textuais que foram feitas, existe o fato
76

de que o mundo já está mudado, o Brasil já está passando pela anistia e muito do que
tinha para ser dito já não faz mais sentido. Logo, não só a crítica que os autores tinham a
fazer na época, mas também o efeito catártico que deveria gerar no público – devido a
um reconhecimento quanto ao seu papel político-social – já não era mais possível. A
peça abre-se para um novo horizonte interpretativo.

3.3 Aproximações históricas e espelhamentos em Calabar – o que indicam?

“Nada garantem os fantasmas, sem dúvida; e por isso aqui estamos, e


de novo.”
(Novas Cartas Portuguesas)

Devemos, antes de tudo, ressaltar que estamos tratando aqui a ideia de


espelhamento como recurso metafórico para explicar o que acontece na obra. No
entanto, a importância de falar sobre esse pensamento está no fato de podermos analisar
a riqueza histórica presente em Calabar: o elogio da traição, pois, como aponta
Fernando Peixoto em seu texto Duas vezes Calabar:

Em última análise, todos os personagens são históricos (com exceção de


Anna de Amsterdã, mas mesmo ela é uma síntese, em certo sentido, de tantas
prostitutas importadas nos navios holandeses) e todos os fatos são históricos.
Mas na peça servem apenas de ponto de partida para uma criação livre,
espontânea, criativa e pessoal. O passado é revisto com a lucidez de quem
vive o presente: com a consciência de quem mergulha na História em busca
de uma compreensão do mundo de hoje, Calabar, neste sentido, é uma
reflexão aberta, irônica e provocativa, teatral e musical, grotesca e crítica,
existencial e materialista, sobre o significado, tornado relativo, portanto
passível de interpretação, do problema e do significado da traição.
(PEIXOTO In: BUARQUE & GUERRA, 2017, p. 17 e 18)

Diante dessa fala de Fernando Peixoto, reafirmamos a leitura evidente na peça


onde todos os personagens, de fato, foram figuras históricas. Indo além desse
espelhamento óbvio e levando em consideração o ano em que foi escrito a peça, bem
como as informações obtidas através da pesquisa sobre os recortes de outros textos
históricos e de falas de outras personagens, propomos aqui colocar lado a lado os
personagens de Calabar não somente com os sujeitos que lhes serviram de inspiração,
mas transpor essa análise para tantos outros indivíduos que elas espelham.
A começar pela personagem principal, ou seja, o próprio Calabar; sabe-se,
através da fala de Chico Buarque na obra de Regina Zappa escrita sobre a vida do
77

artista, que parte da intenção ao se representar Calabar era o fato da possibilidade de


um espelhamento histórico entre o personagem principal e a imagem do capitão militar
que se juntou a guerrilha armada – Lamarca: “Era como discutir se o Lamarca, um
militar que passou para o lado da guerrilha, era ou não um traidor. Havia um paralelo
evidente. O interesse era esse na época. Mais tarde, a peça foi encenada, mas não tinha
mais graça.” (ZAPPA, 1999, p. 192). Ou seja, o artista aponta que “havia um paralelo
evidente” entre Calabar e Lamarca, ambos “traidores” da pátria.
No texto “Carlos Lamarca no Imaginário Político brasileiro: o papel da Imprensa
na construção da imagem do ‘Capitão Guerrilheiro’”, escrito por Jefferson Gomes
Nogueira e publicado na Revista Ágora, o autor aponta que “Lamarca não só rompe
com o regime, mas ao contrário, ousa combatê-lo frontalmente, despertando a fúria
daqueles que se sentiram traídos e a admiração daqueles a quem foi ombrear na luta
armada” (NOGUEIRA, 2008, p. 3). Tal citação se encaixaria perfeitamente no cenário
proposto na peça de Chico Buarque e Ruy Guerra, pois Calabar, assim como Lamarca,
rompe com os portugueses, combatendo-os frontalmente e despertando-lhes a mesma
fúria que Lamarca despertou nos militares. Os militares que se sentiram traídos se
espelham nos portugueses do enredo da obra, e os que admiraram Lamarca são os
mesmos que admiraram Calabar, ou seja, aqueles a quem eles se aliaram, bem como
todos que concordavam com a visão política deles.
Ainda sobre tal paralelo possível na leitura da personagem, no livro Ruy Guerra:
paixão escancarada, Vavy Pacheco Borges aponta:

Para alguns, teria sido fundamental na peça uma indireta e secreta


comparação entre Calabar e Carlos Lamarca, ex-capitão do Exército, chefe da
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), morto no interior da Bahia em
1971. Em declarações posteriores os autores salientaram como uma cortina
de fumaça era necessária naquele momento. (BORGES, 2017, p. 364)

Ou seja, para trazer Lamarca para esse espelhamento, Chico Buarque e Ruy
Guerra apontam que, em 1973, durante a ditadura civil militar brasileira, era necessário
escondê-lo atrás de algo, usar uma “cortina de fumaça” para enganar os censores sobre
as verdadeiras intenções. Vemos que os autores tentaram discutir a traição usando a
imagem de Calabar para “representar” Lamarca. Sendo assim, podemos apontar que
havia um viés a mais na obra, e que fica ainda mais evidente ao olharmos na peça o
momento em que Bárbara diz
78

Certo, certo, certo. O melhor traidor é o que se escala, Corpo pronto para
bala, Se encurrala, se apunhala, Se amarrota e não estala, E cabe dentro da
mala, Se despeja numa vala. Se esquece espetado em tala Com que arraia não
se rala E não se fala na sala. (BUARQUE & GUERRA, 1975, p.49-50)

Usamos tal trecho da obra para evidenciar a comparação entre as personagens


(Calabar e Lamarca) pelo fato de não só Lamarca ter sido assassinado ao ser
encurralado pelo exército e ter levado um tiro enquanto dormia, tendo “o corpo pronto
para bala” – como aponta o relato de Oldack Miranda e Emiliano José, em Lamarca: o
capitão da guerrilha ao descreverem a morte do capitão da guerrilha: “Deitado estava,
deitado ficou” (MIRANDA & JOSÉ, 1989, p. 166) – mas também pelo fato de Bárbara
dizer que “O melhor traidor é o que se escala”, pois ambos foram escalados para o papel
de traidor por aqueles que se sentiram traídos, e assim eles foram representados pela
historiografia tradicional.
Outro paralelo evidente entre os dois personagens está presente no que evidencia
Fernanda Botton ao apresentar a semelhança no fato de não poder se falar na morte
deles. A Professora nos apresenta esse paralelo ao comparar a proibição em se falar no
nome Calabar – a partir do diálogo do Frei com Bárbara – com o que a Censura Federal
ordenou aos meios de comunicação no que se referia à morte de Lamarca. Sendo assim,
apresentamos a fala do Frei:

Calabar é um assunto encerrado. Apenas um nome. Um verbete. E quem


disser o contrário atenta contra a segurança do Estado e contra as suas razões.
Por isso o Estado deve usar o seu poder para o calar. Porque o que importa
não é a verdade intrínseca da coisa, mas a maneira como elas vão ser
contadas ao povo. (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 88)

E ao olharmos para o que a Censura Federal ordenou, como consta no texto de


Elio Gaspari, encontramos o seguinte:

Por determinação do presidente da República, qualquer publicação sobre


Carlos Lamarca fica encerrada a partir da presente, em todo país. Esclareço
que qualquer referência favorecerá a criação do mito ou deturpação,
propiciando a imagem de mártir que prejudicará interesses da segurança
nacional. (GASPARI, 2002, p. 366-367)4

Em ambas as citações é importante frisar não só a questão de tentar silenciar o


ocorrido, mas, sobretudo, que o objetivo com esse silêncio, em ambos os textos, mora

4
Esse texto de Gaspari faz menção à Ordem da Censura, de 22 de setembro de 1971, transcrita em Paolo
Marconi, “Perseguição e morte de Lamarca” Coojornal, agosto de 1979.
79

no fato de que não se deve criar uma imagem diferente daquela que o Estado deseja
sobre aqueles que eram vistos como traidores.
Dito isso, fica mais fácil também de entendemos a crítica que Chico Buarque fez
ao apontar que não tinha mais graça encenar a peça mais tarde, pois o paralelo com o
capitão da guerrilha não ficaria mais evidente. E, talvez, esse seja um dos traços que
tentaram “apagar” com as edições posteriores à revisão e modificação do texto, pois não
há mais proximidade histórica que nos faça enxergar imediatamente Lamarca através de
Calabar.
Para além de Lamarca, sabe-se também que há um possível espelhamento de
Calabar com Tiradentes, ao começar por ter trechos da sentença do inconfidente mineiro
sendo proferida pelo Oficial no enforcamento de Calabar, como apontou Ruy Guerra na
entrevista que os autores deram para os alunos da PUC-Rio em 1973: “A fala de
condenação de Calabar é tirada, textualmente, da condenação de Tiradentes.”
(BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 5). Além desse indicativo na entrevista, mais à
frente Chico Buarque ainda diz: “Interessa é que se, por acaso, os holandeses, tivessem
tido força para conquistar todo o Brasil, hoje a gente seria colonizado pelos holandeses
e Calabar seria Tiradentes mesmo, seria o maior herói...” (Ibid. p. 25), colocando
novamente Calabar e Tiradentes no mesmo patamar. Ademais, ainda há a questão
apresentada no Documento do Centro de Informações do Exército – citado
anteriormente – em que ele mostra que “os terroristas” tentaram usar Tiradentes como
personagem representante da publicidade “subversiva” e que posteriormente essa
imagem do inconfidente teria sido substituída por Calabar nessas propagandas,
confirmando assim mais uma possibilidade de leitura da imagem do personagem na
peça.
Refletindo ainda sobre os possíveis espelhamentos com os personagens
históricos, temos também a possibilidade de aproximar o personagem Nassau com
Juscelino Kubitschek, pois como aponta Chico Buarque na entrevista aos alunos da
PUC: “ele é meio Chacrinha. A personalidade dele, ele mesmo é um pouco Juscelino,
um pouco Chacrinha.” (Ibid. p. 13). Outra evidência que nos permite aproximar os dois
é o fato de que ambos pretendiam realizar governos de 50 anos em 5. Tal comparação
fica evidente na fala do personagem aos moradores quando ele aponta:

Senhores, a Companhia das Índias Ocidentais, que financiou a campanha das


Américas, fecha agora o balanço dos últimos quinze anos com um saldo
80

devedor aos seus acionistas da ordem de dezoito milhões de florins. Para


corrigir esse estado das coisas, recebi o mandato de governar-vos por cinco
anos. Mas pretendo realizar cinqüenta anos em cinco. (BUARQUE &
GUERRA, 1975, p. 81)

Para além da questão de os autores terem usado ipsis litteris a expressão usada
como slogan pelo ex-presidente do Brasil, podemos também colocar Kubitschek e
Nassau lado a lado devido ao fato de ambos terem realizado governos nos quais o Brasil
viveu um grande crescimento econômico. De um lado, teríamos o governante de 1956
construindo Brasília, rodovias, hidrelétricas e permitindo a entrada das grandes
montadoras como a Ford, General Motors, dentre outras. Entretanto, tamanho
desenvolvimento rendeu ao Brasil uma grande dívida externa. Do outro lado, teríamos o
holandês que trouxe a cultura, a tolerância religiosa, construiu canais, palácios, museus
e dentre seus grandes feitos construiu a ponte Maurícia e fez, até mesmo, um boi voar5.
Não obstante, o texto deixa entrever que esses grandes feitos de Nassau renderam
prejuízos, uma vez que a Companhia das Índias não viu com bons olhos os gastos
exorbitantes do governante:

E se mais não me foi dado criar, é porque atrás de um homem de visão, há


sempre no mesmo reino podre dez generais e mil burocratas. Um grande
império e estreita mentalidade são maus companheiros. Eu continuo um
homem de armas. E um humanista. E essa combinação é difícil em qualquer
século. E porque conquistei, mas não fui cego no exercício do poder, porque
das armas e da repressão não fiz minha última paixão, dizem agora que errei.
A mesma Companhia que me trouxe, me leva. Talvez as mesmas intrigas. E
porque nem tudo o que fiz cabe nos seus cofres, e nem todos esses horizontes
(...) foram trocados em florins... (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 92)

Visto isso, sendo a aproximação pertinente ou não, de acordo com a narrativa


criada por Chico Buarque e Ruy Guerra o que diferenciaria o presidente Juscelino
Kubitschek de Maurício de Nassau seria apenas o fim de seus governos. Enquanto o
primeiro cumpriu todo seu mandato, o segundo foi enviado de volta para Holanda tendo
que responder por seus gastos exorbitantes.
Há quem apresente também a possibilidade de uma aproximação do personagem
holandês com o presidente militar Emílio Garrastazu Médici, abordando não só o
grande Milagre Econômico que aconteceu no Brasil enquanto o presidente militar

5
Em o Valeroso Lucideno, o Frei Manoel Calado conta que no dia que Nassau fez a festa para inaugurar
a ponte Maurícia, diante da quantidade de pessoas que apareceram para o evento, o governador fez com
que enchessem um boi de palha e o trouxessem voando por cordas com um engenho (Cf. CALADO,
1668, p. 131). O episódio é recontado em Calabar: o elogio da traição.
81

estava no poder, assim como grandes obras como a Transamazônica. A pesquisadora


Fernanda Botton defende essa aproximação alegando que “Nas alusões ao passado
recente e ao passado remoto, os autores revelavam aos brasileiros que o Plano Médici
poderia trazer somente a fama ao presidente e a momentânea bonança ao país.”
(BOTTON, 2012, p. 114).
Cabe ainda analisar espelhamento que Mathias nos oferece. Como já apontado,
ele poderia ser lido como uma representação dos militares do 1º de abril de 1964, como
se pode entrever quando o personagem começa a cantar “Fado Tropical”:

Oh, musa do meu fado,


Oh, minha mãe gentil,
Te deixo, consternado,
No primeiro abril.
Mas não sê tão ingrata,
Não esquece quem te amou.
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou.

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal,


Ainda vai tornar-se um imenso Portugal.
(BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 14).

Segundo Gabriel da Cunha Pereira, toda a canção “Fado Tropical” que é


interpretada por Mathias de Albuquerque, deixa entrever esse paralelo, pois como
aponta o autor “A canção é uma alusão à tortura dos anos de ditadura militar e à
malfadada tentativa dos torturadores e mandantes de justificá-la” (PEREIRA, 2015, p.
87). Podemos evidenciar o que Gabriel da Cunha Pereira aponta principalmente através
das falas de Mathias que entrecortam a canção, em momentos como quando o
personagem diz: “Mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar,
trucidar, meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora.” (BUARQUE &
GUERRA, 1973, p. 14) ou quando ele declama:

Meu coração tem um sereno jeito


E as minhas mãos o golpe duro e presto.
De tal maneira que, depois de feito,
Desencontrado eu mesmo me contesto.

Se trago as mãos distantes do meu peito,


É que há distância entre intenção e gesto.
E se meu coração nas mãos estreito,
Me assombra a súbita impressão de incesto.

Quando me encontro no calor da luta


Ostento a aguda empunhadura à proa,
82

Mas o meu peito se desabotoa.

E se a sentença se anuncia bruta,


Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa.
(Ibid. p. 15)

Ainda olhando para a canção que Mathias de Albuquerque entoa percebe-se que
ao fim do trecho supracitado da canção “Fado Tropical”, ao focarmos na parte de que
esta terra vai cumprir seu ideal de tornar-se um imenso Portugal, podemos também
apresentar o espelhamento, uma referência familiar, que os autores trazem com a
ditadura do Estado Novo em Portugal. Dessa maneira, podemos entender que há uma
proposta de colocar a ditadura civil militar brasileira no mesmo patamar do
Salazarismo, uma vez que ambas ditaduras eram regimes autoritários, nacionalistas,
anticomunistas, apoiados na censura, na repressão e na perseguição de “inimigos
políticos”.
Para além desses personagens, temos Camarão, Dias, Frei Manoel, Bárbara,
Sebastião do Souto e Anna de Amsterdam que ainda não foram analisados aqui. Isso se
dá pelo fato de que esses personagens fazem apenas o espelhamento com os
personagens históricos que eles são. Sendo assim, todos eles só representam a si
mesmos ou vão um pouco mais além ao representarem o grupo social ao qual eles
pertencem – como já discutido anteriormente.
Devemos ressaltar que a análise dos espelhamentos é de extrema importância
para chegar ao fator traição, pois eles explicitam contextos e produções relevantes para
a temática central. Além disso, tal análise nos propicia outra investigação acerca da
questão do velamento e desvelamento, visto que ao tentar representar Lamarca através
de Calabar, notamos que os autores acabam fazendo um velamento dos próprios
personagens históricos que querem realmente retratar na peça no intuito de fazer uma
grande crítica ao momento, e para incitar o pensamento crítico do público, pois como
aponta Fernando Peixoto

Em Calabar compreender o peso e conteúdo da traição de cada um, ou das


inúmeras traições de cada um, é um primeiro passo para a compreensão do
enunciado de um teorema complexo, contraditório, fascinante e provocante,
lírico e feroz, escrito com paixão e sentido crítico por Ruy Guerra e Chico
Buarque. Cabe ao espectador observar homens agindo, pesar suas ações e
alternativas, ver o que fizeram, onde foram omissos ou responsáveis. O texto
não encerra uma solução dogmática, nem o espetáculo pretende fechar as
chaves de entendimento dos fatos. Cabe ao espectador, diante dos caminhos
oferecidos à sua sensibilidade e inteligência, omitir-se ou escolher sua forma
83

de pensar. O espectador, diante do espetáculo, é livre. O que importa é o


diálogo palco-plateia. A realidade, a ser transformada, está fora do teatro. O
palco não quer entregar ao público nenhuma verdade, nenhuma certeza. Ao
contrário, quer provocar dúvidas, desconfiança e perplexidade. (PEIXOTO
In: BUARQUE & GUERRA, 2017, p. 22)

Admite-se também dizer que os espelhamentos se estendem e não se limitam


apenas aos personagens históricos, que acabam por criar críticas à sociedade. Existe
também a possibilidade de vermos Calabar se desdobrando/se espelhando, em outras
personagens da peça, como em Bárbara, Sebastião Souto e Anna.
Apontamos que esse desdobramento de Calabar nas outras personagens acontece
como se ele fosse uma extensão do outro personagem, sendo assim como uma sombra
do personagem pela qual ele se desdobra. Ou seja, ele não apareceria como a formação
de uma entidade, sem necessariamente surgir do interior do personagem. O que se
percebe é que não há um apagamento de Calabar através do outro, mas sim uma
proposta de que a personagem em que ele se reflete seja ela e Calabar ao mesmo tempo,
pois existe uma relação de dependência entre eles.
Portanto, nota-se que justamente o personagem que não aparece ao longo da
encenação e que ao ser enforcado tem seu corpo esquartejado, aquele que é visto como
cobra de vidro que se corta em vários pedaços, mas que facilmente se refaz é aquele que
se espelha, se recria e se refaz em outros. Diante disso, pode-se dizer que Calabar então
se apresenta na peça para além de um nome, pois é um personagem vivo em seus
desdobramentos. E, ironicamente ou não, dentre os personagens em que ele se refaz
estão Sebastião do Souto e Anna de Amsterdam, os dois personagens com quem
Bárbara, sua viúva, irá se envolver amorosamente, o que reforça a ideia de que ele seja
um desdobramento do personagem.
Dito isso, analisemos os desdobramentos de Calabar. Começando por Sebastião
do Souto, o personagem que era amigo de Calabar, que chegou a lutar ombro a ombro
com ele, mas que posteriormente o entrega aos portugueses, assim traindo-o. Como
aponta Elzimar Fernanda Nunes, é através das semelhanças existentes entre Calabar e
Souto que Bárbara acaba se apaixonando pelos dois:

Na peça, Souto de assemelha a Calabar. Ambos poderiam ter se contentado


em tomar posição ao lado de holandeses e/ou portugueses de acordo com as
conveniências. Ao invés disso, fizeram uma escolha baseada na convicção e
decidiram lutar e, se preciso fosse, morrer por ela. É por isto que Bárbara se
apaixona por ambos: “Eu amo a mesma coisa neles dois. Uma energia furiosa
que havia dentro desses homens. Uma energia que vai continuar movendo
84

outros homens à morte, à morte, à morte, a quantas mortes forem


necessárias”. (NUNES, 2002, p. 108)

Sebastião do Souto, assim como aponta Fernanda Botton, também será o


personagem a ser identificado no texto diversas vezes como traidor, no entanto, a sua
traição é diferente da de Calabar no ponto de que o seu ato traidor é perdoado e sempre
está do lado da “arraia graúda”. Por fim, é Souto que se identifica com o mameluco e
aponta que ninguém, se não ele, entendia melhor Calabar, e que se acaso ele ainda
estivesse vivo marchariam lado a lado e gritariam que a paz é falsa.
Além de Sebastião do Souto, temos Anna de Amsterdam também como um
possível desdobramento para o mameluco. Essa extensão fica evidente através do texto
quando, ao cantarem “Anna e Bárbara”, em uma rubrica aponta-se que “Anna canta
para Bárbara e Bárbara canta para Calabar, mas Calabar nesse momento tem o rosto de
Anna” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 46). Como apresenta Botton em sua análise
sobre a prostituta, Anna é a que representa a sexualidade mais exacerbada na peça, e se
torna uma extensão de Calabar “porque assim como ele, vive a sexualidade plena do
amor que transgride a moralidade de um tempo.” (BOTTON, 2012, p. 120).
Por fim, temos Bárbara. A viúva se torna desdobramento de Calabar exatamente
por ser ela que enxerga o heroísmo presente no amado e nas ideias que ele pregava, será
ela a disseminar seu nome e seus pensamentos questionando a todos os outros
personagens o porquê deles terem se colocado contra Calabar. Será ela que ouvirá de
todos “Cala a boca Bárbara!” música/frase essa que, de certa maneira, diz não só que se
deve calar, mas também evidenciar o nome Calabar, pois a tonicidade da frase encontra-
se em CALA e BAR. Bárbara é quem ama o Brasil, as matas, os rios e florestas a ponto
de se confundir com eles, e nessa confusão ser objeto de amor de Calabar como ela
canta: “Ele sabe dos caminhos dessa minha terra. No meu corpo se escondeu, minhas
matas percorreu, os meus rios, os meus braços. Ele é o meu guerreiro nos colchões de
terra, nas bandeiras, bons lençóis, nas trincheiras, quantos ais, ai.” (BUARQUE &
GUERRA, 1973, p. 5). E de certa forma é ela quem transforma Anna e Souto em
extensões de Calabar também, pois o que ela ama neles é exatamente os pontos em que
eles se aproximam/ se desdobram de Calabar.
Diante de toda essa análise entende-se que as possibilidades dos desdobramentos
e espelhamentos em uma obra tão rica quanto Calabar são inúmeras, e que os autores
conseguiram misturar muitas vozes do passado e do presente em um mesmo enredo,
apresentando assim uma narrativa que agrupa múltiplas visões e tempos históricos
85

diferentes. Cabe aqui considerarmos uma fala de José Mauro Barbosa Ribeiro, de que
Calabar é uma

Mistura de crítica alegórica e paródia carnavalesca de textos oficiais de nossa


história (NUNES, 2002), a peça misturava procedimentos épicos e
dramáticos com algumas letras das músicas se transformando em diálogos,
como é o caso de “Tira as mão de mim”. Em outros diálogos, identifica-se
um forte vínculo com textos clássicos da história do Brasil, provocando, por
conseguinte, uma reflexão sobre o processo de constituição dos mitos
nacionais e de uso desses mitos na legitimação de estruturas sociopolíticas e
consolidação de nossa identidade nacional. Afinado com as concepções do
teatro moderno, principalmente no que toca ao inacabamento da obra teatral,
a peça Calabar conduzia o espectador a procurar sua própria verdade, a
identificar, nas vozes expressadas, a sua própria voz, obrigando-o a responder
como protagonista de seu próprio destino. (RIBEIRO, J.M.B., In:
CYNTRÃO, S. 2015, p.131).

Tal citação torna-se importante, pois é através desses espelhamentos e


aproximações que a crítica de Chico Buarque e Ruy Guerra se torna possível, pois era
preciso, como Ruy Guerra aponta, uma cortina de fumaça para que tudo isso pudesse ser
dito. E é através dessa cortina que o público deve olhar, entendendo qual é o seu papel
dentro dessa grande colcha de retalhos.
86

Considerações Finais

A traição. Desde nossa infância, papai e o professor nos repetem que


é a coisa mais abominável que se possa conceber. Mas o que é trair?
Trair é sair da ordem. Trair é sair da ordem e partir para o
desconhecido. Sabina não conhece nada mais belo do que partir para
o desconhecido
(Milan Kundera)

Diferentemente do que apontam Chico Buarque, Ruy Guerra e Fernando Peixoto


– quando afirmam que muito se perdeu ao longo do grande silenciamento da peça e do
nome Calabar – preferimos acreditar que o silêncio imposto à peça foi benéfico em
termos de corpus analítico. O ponto central é que a peça ganhou dinamismo, exatamente
porque, através das modificações textuais que os autores fizeram, podemos sempre
alcançar novas possibilidades interpretativas. Isso se dá, sobretudo, se observamos essa
grande característica caleidoscópica de misturar personagens, eventos históricos e
ficção, como um caminho para nossa leitura; permitindo assim olharmos para Calabar
como um grande mosaico. Ou seja, em última instância poderíamos dizer que Calabar é
um discurso cênico caleidoscópico, exatamente por todos esses recortes e retalhos
históricos que ele nos possibilita observar quando colocados à luz.
Diante desse cenário, é importante perceber mais uma vez a evidente
aproximação entre “o elogio da traição” com O Elogio da Loucura de Erasmo de
Roterdã. Podemos apontar para o fato de Chico Buarque e Ruy Guerra, assim como o
pensador neerlandês, se inclinarem para o sério-cômico, pois há no enredo de Calabar
uma mensagem séria imbuída de ironia. Assim como aponta George Logan sobre O
Elogio da Loucura, podemos dizer que a peça Calabar também constrói “uma espécie
de labirinto de espelhos verbal.” (LOGAN, 2009, p. 34) através de seus recortes e
espelhamentos históricos.
Diante desse grande mosaico escrito por Chico Buarque e Ruy Guerra,
procuramos dentro de nossa análise focar o capítulo inicial na possibilidade de transpor
a traição, substituindo-a por desobediência. Tal fato pode ser melhor compreendido
através das postulações de Thoreau e Frédéric Gros, que operavam com o conceito
desobediência em lugar de traição. Essa perspectiva é, sem dúvida, mais apropriada para
a pesquisa aqui efetivada. Isso se dá pelo fato, por exemplo, de que a concepção de
traição é algo que depende de muitos fatores, o que acaba transformando o termo em
algo vago, e impossibilita definição do que é ser traidor/ser traído. Dessa forma,
87

explicamos a traição através das definições propostas por Aldo Carotenuto,


contrapondo-a com as teorias sobre desobediência disseminadas por Thoreau e Frédéric
Gros, entendendo assim que não existe traição maior do que trair a si mesmo. Sendo
assim, se faz necessário muitas das vezes que desobedeçamos regras impostas por
outrem, o que, algumas vezes, pode ser interpretado como traição por quem julgar que
assim seja definido o ato de desobediência. A partir de tais aproximações e
entendimentos, se torna possível compreender o que leva as personagens de Calabar a
trair das mais diversas formas. Foi também, através de tais aproximações que
desenvolvemos melhor a discussão sobre a posição dicotômica que Calabar toma ao
longo da peça, onde a personagem inicia sendo lida como traidor e encerra passando a
ser interpretado como um possível herói.
Ao longo do segundo capítulo, nos detivemos a analisar as vozes das
personagens da peça, entendendo seus papéis sociais dentro do enredo, bem como seus
papéis dentro da paródia na qual Chico Buarque e Ruy Guerra construíram o seu
Calabar. Ou seja, dividindo-os em dois grupos maiores – mulheres em um subcapítulo e
homens em outro – pode-se então compreender qual era o papel que cada um cumpria
ao longo do enredo, bem como qual era a forma em que eles traiam/desobedeciam não
só aos que estavam no poder, mas também como traiam a si mesmos. A partir de tal
leitura podemos entender um pouco mais do grande mosaico que é a peça Calabar – o
elogio da traição.
Por fim, no terceiro capítulo, concentramo-nos primeiramente em compreender o
quanto as diferentes edições e modificações textuais implicavam nas leituras e
interpretações do texto. Posteriormente atentamos para não só o contexto de produção
em que Calabar encontrava-se inserido, como também o quanto isso possibilitava
leituras de espelhamentos entre as personagens do texto com os personagens históricos.
Ou, melhor dizendo, dedicamos o último capítulo para fazermos a análise do quanto a
historicidade se embaralha no enredo da peça, de forma que podemos ver os possíveis
motivos que fizeram a peça ser censurada de maneira que Yan Michalski noticiou o
episódio no Jornal do Brasil da seguinte forma:

para falar da censura, com esforço e a coragem comuns a seu feitio, vê-se na
contingência de referir-se a ela como “várias circunstâncias de ordem geral
que conspiram contra o progresso de nossa literatura dramática”. O máximo
que se podia fazer para se recusar o silêncio no dia-a-dia da vida
institucional. E para citar Calabar, escreve: “Uma super-produção musical
88

sobre um episódio da história do Brasil que levava a chancela de vários


nomes conhecidos.” (MICHALSKI, 1979-1980, p. 34)

Para que todas essas análises fossem possíveis era extremamente necessário
entendermos, mesmo que brevemente, o que fizeram os militares voltarem atrás na
liberação da peça e decidirem por censurá-la de maneira tão dura.
Além disso tudo, para compreendermos todos esses conceitos e possibilidades de
leitura que esse discurso cênico caleidoscópio nos oferecia, foi necessário que
colocássemos ele à luz não só do próprio texto dramático, mas também das teorias
trazidas por tantos outros nomes, os já citados Thoreau, Frédéric Grós e Aldo
Carotenuto, como também Judith Butler, Marilena Chauí, Elzimar Fernanda Nunes e
Gabriel da Cunha Pereira. Pois, por mais que o leitor interprete um texto através da sua
bagagem e experiência de vida; fazer essa pesquisa que propomos aqui demandava
novas leituras e novos horizontes para contrapor junto à literatura dramática que
analisamos.
É incontestável que, ao longo desse trabalho, muitas outras perguntas surgiram e
muitos outros autores foram visitados, entretanto, dentro do espaço de tempo que
tínhamos para estruturá-lo, acabamos nós mesmos criando novos recortes para um novo
mosaico. Quem sabe futuramente não venhamos a escrever mais sobre as dúvidas que
ainda surgem, uma vez que o texto dramático, dentro da sua perenidade, sempre estará
disponível para revisitarmos, ainda nos trazendo sempre reflexões possíveis para tanta
atualidade e críticas para o mundo. Pois, como já diria Heráclito em seus fragmentos
comentados por Alexandre Costa (2002)6, nós nunca nos banhamos duas vezes no
mesmo rio; por mais que na literatura a obra sempre seja a mesma, nós, enquanto
indivíduos, nunca o seremos.
Caminhando para o fim da nossa análise, entendemos que textos dramáticos
quando encenados no palco talvez tenham um impacto diferente se feito no momento
que foram escritos, como explicitado por Renata Pallottini. No entanto, preferimos crer
que é sempre importante revisitarmos a história. É exatamente por nos permitimos
observar e analisar grandes recortes históricos, colocando-os lado a lado com momentos
atuais, que podemos entender os caminhos que tomamos no passado e evitar repeti-los
no presente, caso nossas escolhas tenham gerado danos. É evidente que isso não é

6
No livro de Alexandre Costa é possível encontrar na página 205 o fragmento em que Heráclito diz:
“Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”
89

garantia de que não repetiremos os mesmos erros, no entanto, é uma maneira de os


deixarmos latentes na memória.
De forma curiosa, reforçamos aqui que vamos na direção contrária do
pensamento de Chico Buarque, Ruy Guerra e Fernando Peixoto sobre não fazer mais
sentido encenar a peça. Por mais que paralelos imediatos com figuras históricas talvez
não sejam mais feitos com tanta rapidez, ainda é possível observar traços que até os dias
atuais farão o público revirar na cadeira e repensar seus atos e posições diante do mundo
em que vivem. Dessa forma, podemos dizer que, em algum nível, a presente dissertação
“trai” o seu próprio objeto de análise: ao defender que a peça continua significativa
porque seus leitores e expectadores a reinventam toda vez que a enquadram em novos
horizontes interpretativos, vamos na contramão dos seus próprios autores que
defendiam que, com o passar do tempo, a peça teria perdido “a sua razão de ser”.
Por fim, ao tirar o que os autores de Calabar viam como motivo para não
encenar mais a obra, lançamos a peça no desconhecido – visamos com isso evitar a todo
custo o entrave que impossibilita a criação de novas interpretações. Em alguma medida
Chico Buarque e Ruy Guerra se esqueceram de que novos leitores e espectadores
poderiam trazer novos sentidos à peça, recuperando assim a graça em encená-la. Em
última instância, nossa análise trai o seu objeto na medida em que, como escreveu
Milan Kundera, “Trair é sair da ordem e partir para o desconhecido” (KUNDERA,
2008, p. 91). Em suma, inspirada pela própria peça e divergindo da sentença final dos
seus próprios autores, a presente dissertação também exala a pungente desobediência
existente em Calabar.
90

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