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INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA
Niterói
2020
Júlia Tavares Bessa
Niterói
2020
Júlia Tavares Bessa
Aprovada em:
Banca Examinadora:
______________________________________________________________________
Professor Dr. André Dias (UFF – Orientador)
______________________________________________________________________
Professora Dra. Claudete Daflon dos Santos (UFF)
______________________________________________________________________
Professor Dr. Márcio Scheel (UNESP – São José do Rio Preto)
______________________________________________________________________
Professora Dra. Stefania Rota Chiarelli (UFF) - Suplente
______________________________________________________________________
Professor Dr. Felipe Gonçalves Figueira (IFF) - Suplente
Niterói
2020
Para meus pais Adriana Tavares e Márcio Bessa meus
maiores exemplos.
Para meu irmão/afilhado, Joaquim Bessa, que todo dia
me ensina uma nova maneira de olhar a vida.
Para meus avós (in memoriam) Ambara Feres Bessa e
Jaylce da Silva Bessa, meus grandes mestres nessa vida.
Para Patricia Greff, minha “boadrasta”, que trouxe mais
luz para meu caminho.
E para meu companheiro, Gabriel Vertulli, que sempre
segura minha mão e me ajuda a alçar os voos mais altos
da vida.
Agradecimentos
No presente trabalho temos como objeto a peça Calabar: o elogio da traição, de Chico
Buarque e Ruy Guerra, escrita em 1973. A nossa questão principal é entender o estatuto
da traição existente na obra. Para tal, em um primeiro momento aproximaremos o
conceito de traição ao de desobediência, percebendo que os atos traidores existentes em
Calabar podem ser lidos como atos de desobediência. Em seguida abordamos a
importância de analisar as vozes femininas e masculinas da peça de forma separada para
compreender que tipos de denuncias são permitidas ou não a cada uma das personagens.
Por fim, examinamos as modificações feitas pelos autores ao revisarem o texto no início
do período da anistia, a relevância do contexto histórico em que os autores se
encontravam no momento em que produziram o texto e o exame dos espelhamentos e
extensões existentes entre os personagens. Ao fim pretendemos deixar claro que o
elogio da traição manifesto na peça pode ser interpretado como elogio da desobediência.
In the present work we have as object the play Calabar: o elogio da traição written by
Chico Buarque e Ruy Guerra in 1973. Our main question is to understand the betrayal
status in the play. To this end, at first we being the concept of betrayal closer to the
concept of disobedience, noticing that the acts of betrayal in Calabar can be read as acts
of disobedience. Then we address the importance of analyzing the female and male
voices of the play separately to understand what types of denunciation are allowed or
not to each one of the characters. Finally, we examine the changes made by the authors
when reviewing the text at the beginning of the amnesty period, the relevance of the
historical context in which the authors were when they wrote the text and the
examination of mirrors and extensions existing between the characters. At the end, we
intend to make clear that the praise of betrayal manifested in the play can be interpreted
as a praise of disobedience.
Introdução.......................................................................................................................11
1. O elogio da desobediência.........................................................................................17
1.1 Calabar e a Crítica: sobre heroísmo e traição........................................................17
1.2 A desobediência em Calabar: Outro Olhar...........................................................31
2. Que vozes são essas que mostram as dissonâncias?................................................40
2.1 As vozes femininas de Calabar............................................................................41
2.2 As vozes masculinas de Calabar..........................................................................51
3. Condições de Produção, Espelhamentos e Desobediência em Calabar.................62
3.1 Diferentes edições, diferentes textos: o que as modificações nas edições de
Calabar revelam..............................................................................................................62
3.2. O contexto de produção de Calabar – o que revela sobre a desobediência?.......69
3.3 Aproximações históricas e espelhamentos em Calabar – o que
indicam?...........................................................................................................................76
Considerações Finais.....................................................................................................86
Bibliografia.....................................................................................................................90
“Obedecer, desobedecer – é dar forma à nossa liberdade.”
(GROS, 2018, p.36)
11
Introdução
Mas por qual motivo a peça foi proibida tão de repente e de forma tão abrupta?
Essa é uma das indagações que nos leva a pesquisar essa obra em questão e que
discutiremos mais a frente ao longo do capítulo três “Condições de Produção,
Espelhamentos e Desobediência em Calabar”. Para além disso, também abordaremos
ao longo desse capítulo todo o quesito do quanto a História do Brasil se entrelaça com a
peça – comprovando assim que, como alerta Bárbara (viúva de Calabar) à plateia, a
história é realmente uma grande colcha de retalhos. Para fazermos isso, veremos o
quanto é possível reconhecer e aproximar figuras e episódios históricos – para além
daqueles do período colonial – a partir do texto teatral.
Também se torna relevante apontarmos aqui que existe uma diferença entre as
edições de Calabar no que diz respeito ao texto, uma vez que após a anistia, quando a
peça foi liberada, os autores o revisaram e o modificaram. Esse ponto se torna pertinente
a essa pesquisa, pois percebe-se que, dependendo da edição que o leitor tem em mãos,
algumas de nossas análises não se tornam possíveis, uma vez que, principalmente após a
modificação do texto, cenas foram suprimidas, outras foram deslocadas e algumas
outras adicionadas – assunto esse que também será abordado no terceiro capítulo.
No entanto, é essencial que já tenhamos em mente que Chico Buarque e Ruy
Guerra se apropriaram de um episódio histórico ocorrido durante o período colonial
brasileiro – no qual Domingos Fernandes Calabar teria traído a Coroa Portuguesa ao se
aliar aos holandeses durante a invasão holandesa em Pernambuco – para então criarem o
enredo da sua obra. Para fazê-lo, eles tomam como bibliografia – como informado ao
fim de algumas edições do livro – os seguintes textos: Os Holandeses no Brasil de P.A.
Varhagen, Os Holandeses no Brasil de C. R. Boxer, D. Antonio Filipe Camarão e
Henrique Dias, ambos escritos por J. A. Gonçalves de Mello, O Valeroso Lucideno do
Frei Manoel Calado, Tempos dos Flamengos de Gonçalves de Mello Neto, Les
Hollandais au Brésil de Netscher, O Domínio Colonial Holandês no Brasil de Hermann
Natjen e Civilização Holandesa no Brasil de José Horório Rodrigues e Joaquim
Ribeiro. Isso se torna relevante exatamente para que possamos entender que alguns dos
episódios relatados aconteceram dentro da historiografia tradicional, assim como a
existência de todos os personagens, com exceção de Anna de Amsterdam.
Sobre o enredo, ao longo da peça pode-se entrever que o personagem principal
teria agido de tal maneira (rompido com os portugueses para se aliar aos holandeses)
por considerar a aproximação com Holanda mais promissora para “a gente do Brasil”;
ou seja, o que a Holanda propunha era mais próximo dos ideais e desejos de Calabar
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para si e para o povo brasileiro se comparado aos princípios dos portugueses. A traição
– que se encontra no subtítulo da peça – é explicitada desde o início da obra e Calabar é
enforcado com trechos do mesmo discurso que foi proferido no enforcamento de
Tiradentes – deixando entrever mais um pouco da grande colcha de retalhos histórica. A
partir de então, ocorre o desenrolar de vários episódios como, por exemplo, a “traição”
de Bárbara ao se relacionar amorosamente com Souto, as inúmeras denúncias de traição
nas mais diversas camadas e a aliança posterior entre a Holanda e Portugal que, por fim,
deixa entrever que a morte de Calabar foi em vão, fazendo então do personagem que era
visto como o grande traidor, um mártir, um verdadeiro herói dentro do enredo.
A peça em si é dividida em dois atos, o primeiro relata Calabar através da
perspectiva portuguesa, onde ele é visto como traidor e entregue aos portugueses para
que possa ser enforcado e esquartejado. Já o segundo ato começa através da chegada de
Mauricio de Nassau, ou seja, passa a contar a história a partir do momento em que a
Holanda assume a colonização de Pernambuco, e Calabar deixa de ser o foco da peça.
Ele ainda está lá, no entanto a imagem do mameluco serve nesse momento mais como
ponte para que Nassau torne-se bem visto dentro de seu papel de governador; fazendo
com que o Brasil não só seja regido pelo comando holandês, mas também se aproxime
mais do que Calabar desejava que fosse. É a partir de então que o vemos perder a
alcunha de traidor para pouco a pouco ser reconstruído como um possível herói.
Ainda é importante aqui ressaltarmos que Calabar é apenas um nome ao longo
da peça, não há uma pessoa que represente o personagem; sendo assim, como aponta
Elzimar Fernanda Nunes em sua dissertação de mestrado:
Cada um enxerga o Calabar que lhe convém e aos debates a seu respeito, na
peça como na história, são palcos de uma luta onde se ouvem várias vozes
disputando o direito de serem consideradas detentoras da “verdade histórica”.
Só podemos traçar nosso próprio Calabar a partir da visão alheia. (NUNES,
2002, p. 12)
a traição é um negócio que a gente pode bater em muitos níveis. Pode bater
num nível inteiramente metafísico. Pode bater num nível inteiramente
circunstancial. Pode bater num nível ideológico. E é evidente que, para nós,
não interessa discutir a traição de uma forma absoluta, porque a traição é um
tema filosófico. (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 24)
1. O elogio da desobediência
1.1 Calabar e a Crítica: sobre heroísmo e traição.
“Uma planta que não pode viver de acordo com sua natureza morre;
assim também um homem.”
(Henry David Thoreau)
Entretanto, torna-se importante ressaltarmos aqui que a crítica feita sobre a peça
ainda é escassa, pois a mesma foi censurada poucos dias antes de sua estreia e só veio a
ser encenada em 1980, após o início da anistia aos exilados e presos políticos
brasileiros, promulgada em agosto de 1979; porém, nesse momento, já tinha seu texto
sido revisto e modificado pelos autores. Sendo assim, o material que encontramos hoje
que discorre a respeito da discussão em torno dessa divisão herói/traidor existente na
figura de Calabar ficou, principalmente, a cargo de pessoas que tivessem interesse em
pesquisar e estudar a obra de Chico Buarque e Ruy Guerra academicamente.
Dito isso, começaremos essa análise atentando para o fato de os autores terem
usado trechos do discurso proferido no enforcamento de Tiradentes. Isso é relevante
porque traz à cena dois personagens vistos como traidores na história brasileira, no
entanto, dentre os dois, o que tem sua traição vista com valor positivo seria apenas
Tiradentes, pois como nos aponta Aluizio Alves Filho em seu artigo “A “dialética da
traição”, no imaginário social e político brasileiro”: “acusados de traição, ambos
pagaram com a vida; entretanto, na posteridade, Calabar manteve a pecha infame de
“traidor”, enquanto Tiradentes foi elevado à qualidade de mártir da Independência,
herói da república.” (FILHO, 2006, p. 1). Ou seja, a traição do personagem da
inconfidência mineira acaba o colocando na história brasileira como herói.
Notamos que, ao transpor para Calabar uma aproximação com Tiradentes
através do discurso de enforcamento do inconfidente mineiro, os autores acabaram nos
oferecendo uma dica de que a personagem principal da peça não é de todo um traidor.
Essa aproximação acaba colocando Calabar e Tiradentes no mesmo patamar, ou seja,
ambos são mártires/heróis.
O mesmo ocorre quando Chico Buarque indica uma aproximação possível entre
Calabar e Lamarca em sua biografia escrita por Regina Zappa. O autor diz que parte da
intenção ao escrever e representar Calabar “Era como discutir se o Lamarca, um militar
19
que passou para o lado da guerrilha, era ou não um traidor. Havia um paralelo evidente.
O interesse era esse na época. Mais tarde, a peça foi encenada, mas não tinha mais
graça.” (ZAPPA, 1999, p. 192).
Carlos Lamarca é reconhecido, historicamente, pelas Forças Armadas
brasileiras, como traidor devido ao fato de ter se aliado à guerrilha armada durante a
ditadura imposta pelo golpe civil militar no ano de 1964, mesmo que tenha sido um
capitão do exército brasileiro. Apesar de seu histórico, seja como guerrilheiro seja como
capitão, Lamarca também vivenciou a dicotomia herói/traidor, como apresentado por
Jefferson Gomes Nogueira, em seu texto Carlos Lamarca no imaginário político
brasileiro: o papel da Imprensa na construção da imagem do “Capitão Guerrilheiro”,
evidenciando as duas maneiras de ler os atos de Lamarca. No primeiro momento o autor
nos mostra que “A imagem de Carlos Lamarca é reproduzida como ex-capitão do
exército, traidor que se transforma num terrorista e criminoso comum.” (NOGUEIRA,
2008, p.14) e logo em seguida ele apresenta que
Sendo assim, nota-se que por mais que houvesse essa divisão entre traidor e
herói na imagem de Lamarca, ele ainda assim ficou marcado pela alcunha de traidor.
Toda essa análise da aproximação histórica torna-se relevante na medida em
que, ao colocar Tiradentes (herói/mártir) e Lamarca (traidor para uns e herói para
outros) dentro do mesmo personagem – Calabar –, os autores de Calabar: o elogio da
traição, de certa forma, acabam propondo essa dicotomia traidor/herói, deixando assim
um pouco mais transparente essa polarização atribuída ao personagem principal, pois
como aponta Mariana Rodrigues Rossel em seu artigo “Chico Buarque: dramaturgo
(1967-1978)” ao falar sobre Calabar a historiadora aponta:
De degredado pela história oficial, ele passa a herói na revisão feita por
Buarque e Guerra, exemplo a ser seguido no momento em que a peça foi
escrita. E embora seja bastante nítida a identificação entre Calabar e Carlos
Lamarca, é interessante observar que o personagem-título nunca aparece em
cena, sendo apresentado pelo olhar de outros personagens e pelos pedaços de
seu corpo mutilado que surgem no palco. Ao não apresentarem um rosto para
Calabar, os autores permitem a identificação do personagem com qualquer
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Como nos textos históricos só o conhecemos pelo que outros falam dele.
Neste sentido a peça reproduz o discurso histórico no qual várias vozes falam
sobre Calabar tentando interpretar suas ações. A peça gira em torno do debate
travado entre as personagens sobre o significado das atitudes do mestiço.
Essa discussão aparece desde o início da peça, quando Mathias de
Albuquerque se interroga angustiado “Por que é que ele foi para lá?” E
continua até o segundo ato, onde Nassau se coloca como realizador do sonho
de Calabar.
Portanto, a peça não opera simplesmente a transformação do vilão em
herói. O que há é um registro dos diversos julgamentos em torno de Calabar.
Por exemplo, se Dias e Camarão consideram-no traidor por ter abandonado
as fileiras portuguesas, Bárbara considera Calabar um idealista. Cada uma
dessas visões sobre Calabar é fundamentada na concepção de mundo de cada
personagem. (NUNES, 2002, p. 93)
[...] Calabar foi submetido a uma junta por crime de alta traição. Decidiu-se
que o castigo de seus crimes deveria ficar à mercê do rei, resolvendo-se, ato
continuo, que Matias era o legítimo representante da Coroa espanhola ali. E,
assim, esquartejado como traidor, aleivoso à sua pátria e a seu rei, “e por
muitos males, agravos, furtos e extorsões que havia feito aos moradores de
Pernambuco”. (VAINFAS, 2008, p. 90)
21
Tal alcunha recebida por Calabar dentro da história oficial também fica evidente
na maneira que ensinamos a história do país nas escolas. Elzimar Fernanda Nunes em
sua dissertação também se preocupou em olhar para esse fator, isto é, de como a história
oficial cristalizou Calabar como traidor até mesmo nos livros didáticos. A autora
estudou o livro História do Brasil escrito por Joaquim Silva e J. B. Damasco Penna. Tal
livro, segundo a autora, era recomendado pelo MEC e publicado pela Companhia
Editora Nacional, o exemplar analisado era de 1969. Sobre a obra e como ela descreve
Calabar a autora diz
Observamos, então, que desde o início da peça Calabar já tinha em seu horizonte
a alcunha de traidor, mas ao longo do enredo notamos que ele ganha um valor maior, ou
seja, o traidor passa a ser mártir, vira exemplo/herói. Pois, como assegura Ruy Guerra:
22
“Nós não tínhamos nenhuma informação rigorosa que nos permitisse pôr o personagem
em discussão, num nível que não fosse simplesmente o sentimental: é um traidor, então
vamos colocar como herói.” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 6).
Sendo assim, no que diz respeito a Calabar, tanto historicamente falando quanto
na obra de Chico Buarque e Ruy Guerra, percebe-se que por trás de sua traição perpassa
uma questão social, como é apontado por Fernanda Botton em seu texto “Calem-se as
Bárbaras: as traições discutidas em Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra”: “Calabar
foi considerado traidor, não porque lutou contra os portugueses, mas sim porque ousou
ir contra a elite que estava no poder”. (BOTTON, 2012, p. 109). Logo, questiona-se: até
que ponto ter ideias contrárias “a elite que está no poder” é traição e não apenas a
expressão de uma opinião contrária?
Para essa pergunta, tomamos outra fala de Ruy Guerra como o início de uma
resposta possível, quando o autor aponta:
O presente trecho, retirado de uma entrevista que os autores deram aos alunos da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC – RJ), apresenta a fala de Ruy
Guerra de maneira entrecortada, no entanto, por mais que o autor não conclua seu
pensamento, ele nos dá a dica direta para responder nossa dúvida a partir do próprio
texto literário, através da fala de Mathias, quando ele se confessa com o Frei
completando a frase do mesmo que está lhe dando o perdão de Deus: “Me perdoe. Caso
contrário eu não seria digno de enforcar um homem, brasileiro como eu, que se atreve a
pensar e agir por conta própria.” (BUARQUE & GUERRA, 1974, p. 32; 1975, p. 51).
Ou seja, o próprio personagem que seria visto como quem representa a coroa portuguesa
defende que o único “erro” de Calabar foi “pensar e agir por conta própria”, como
defende Fernanda Botton.
No entanto, por mais que ao longo de nossa pesquisa nós venhamos a nos
debruçar sobre as diferenças textuais existentes entre edições, é importante ressaltar
também que após a modificação que os autores fizeram no texto por volta de 1979, essa
fala de Mathias sofre alterações, pois o personagem passa afirmar: “Me perdoe. Caso
23
contrário eu não seria digno de enforcar um homem, brasileiro como eu, mas tão
insensato quanto os meus devaneios.” (BUARQUE & GUERRA, 1985, p. 39; 2017, p.
55).
Dito isso, e tomando o subtítulo da peça “o elogio da traição”, cabe de imediato
observar que no trabalho de Chico Buarque e Ruy Guerra percebe-se, ao primeiro olhar,
como a “traição” passa por uma inversão de valores ao ser “elogiada”, assim, ela ganha
uma conotação positiva que está para além de seu uso no senso comum, como diria Ruy
Guerra:
Esta inversão é importante na medida em que ela traz à tona o valor irônico
existente na peça; afinal, elogios de atitudes controversas como a loucura e a traição são
deliberadamente irônicos, ainda mais na época em que a peça em questão foi escrita,
pois, como aponta Elzimar Fernanda Nunes
Podemos dizer, então, que o elogio da traição em Calabar tem início com a fala
de Mathias, e que a partir de então esse elogio se desenrola na peça através de vários
conflitos entre os personagens. Entretanto, se a peça tem como tema central a traição,
nota-se que, ao longo do enredo, Calabar, que seria o principal traidor, começa a perder
gradativamente esse título para então começar a passar a ser visto como herói, o que fica
evidenciado através do diálogo entre Bárbara e Souto no momento em que a viúva
confronta Souto, Camarão e Dias:
Souto: Já estou arrependido do que vou fazer, sem saber por que faço, e por
que me arrependo a cada instante. Queria que as coisas fossem mais
imediatas. Queria saber do certo e do errado. Queria não ter dúvidas.
Bárbara: Como Calabar.
Souto: Sim, como Calabar.
(BUARQUE & GUERRA, 1975, p. 65)
Bárbara
V. está arrependido do que fez.
Souto
Eu estou sempre arrependido, sem saber por que me arrependo a cada
instante. Eu queria não ter dúvidas.
(BUARQUE & GUERRA, 1985, p. 53; 2017, p. 64)
Posterior a essa cena, Calabar vai ter sua traição elogiada através da voz de
Nassau, o personagem que é visto como representante da Holanda, quando ele dialoga
com os soldados em sua primeira aparição. Entretanto, ao terminar sua fala, em todas as
versões do texto, Nassau se auto intitula como “um holandês sem palavras”, deixando
uma dica de como é a sua índole e sua fama, pois até mesmo dentro da história oficial
ele também divide muitas opiniões. Enquanto para alguns autores, como Pieter Marinus
Netscher, Nassau seria extremamente admirável, para outros autores, como o Frei
Manoel Calado, ele seria apenas um narcisista. É tomando consciência dessa
polarização a cerca da figura de Maurício de Nassau que Chico Buarque e Ruy Guerra
montam o Nassau de Calabar, pois como diria Elzimar Fernanda Nunes
Diante disso, lançamos então o seguinte questionamento: será que esses elogios
a Calabar, a sua traição e ao seu heroísmo são válidos quando partem de um alguém
sem palavra? Observamos que, como já dito anteriormente, Nassau usa da imagem de
Calabar para legitimar seu governo, sendo assim, esse seu elogio não é em vão e nem
gratuito.
NASSAU (off)
Tu não morres em vão.
Eis um estranho epitáfio
dirigido a estranha gente
de um estranho continente
de contorno incerto.
Tu não morres em vão
repito-o, porém, deste meu porto,
como um grito de conforto
a algum estranho herói
de contorno incerto
no porto de um povo de imaginação.
SOLDADO 1
Calabar.
SOLDADO 2
Alles dat?
NASSAU
[...] Eu, Maurício simplesmente,
sem nenhuma testemunha
e sem Bíblia nas mãos,
duvido firmemente,
em nome dos Santos Mártires,
que algum dia algum homem
tenha conhecido morte
que não fosse vã.
NASSAU (off)
Mas tu não morreste em vão.
Embora seja difícil dizer isso
agora que avisto teu mundo
no horizonte verde e vivo
e a paisagem definida
sem qualquer ressentimento
da tua ferida.
NASSAU
Não, não morreste em vão.
Ou será em vão que rasguei esses trópicos,
será em vão que adivinhei a terra nova,
será em vão que piso a terra nova,
que beijo a terra que beijavas,
26
Se ainda olharmos esse trecho nos textos modificados, como veremos a seguir,
perceberemos que não há mais diálogo entre Nassau e os Soldados, apenas haverá um
grande monólogo de Nassau que agrupa todas as falas do holandês existentes na citação
acima e sem marcações evidentes da referência a Calabar. No entanto, fica evidente a
questão de Calabar ser um herói, pois, dentro de seu monólogo, ele aparentemente se
refere a Calabar como um “estranho herói” – por mais que tal referência ao mestiço seja
apenas um artificio usado pelo governante para validar a sua posição política.
NASSAU
(Off)
Tu não morreste em vão.
Eis, talvez, um estranho epitáfio
dirigido a estranha gente
de um estranho continente
de contorno incerto
num mapa de imaginação.
Tu não morreste em vão, repito,
aqui deste meu porto como um gesto de conforto
a algum estranho herói
de contorno incerto
no porto de um povo de imaginação
NASSAU
Eu, Maurício de Nasau-Siegen, conde holandês de mui nobre casa dos
Orange, que tantos reis e guerreiros tem dado ao meu país, embarco neste ano
de 1637 a caminho de Pernambuco, em terras do Brasil, como Governador-
Geral plenipotenciário a serviço e mando da Companhia das Índias
Ocidentais, carregando títulos, armas, idéias e um compromisso tácito com o
sangue derramado por desconhecidos.
[...]
Eu, Maurício simplesmente,
sem nenhuma testemunha e sem Bíblia na mão
e sem porra nenhuma na cabeça
duvido firmemente,
em nome dos Santos Mártires,
que algum dia
algum homem
nalgum lugar
tenha conhecido morte que não fosse vã.
Mas tu não morreste em vão.
Embora seja mais difícil dizer isso
quanto mais avisto o teu mundo no horizonte verde e vivo
e a paisagem definida
sem qualquer ressentimento
da tua ferida.
Não, não morreste em vão.
Ou será em vão que rasguei esses trópicos,
27
Não é. Tudo isso aqui em volta, tudo continua a rodar sem eles. Tudo isso fez
Calabar trair... Sebastião enlouquecer... Não valia a pena morrer por isso.
Holandeses, portugueses, não valia a pena morrer por nada disso. Ah...
Calabar... Queria que Calabar estivesse vivo, só para ter uma idéia do que se
chama traição. Porque Calabar se enganou, mas nunca enganou ninguém.
Sebastião, sim. Tudo o que Calabar disse e fez foi de peito aberto, às claras,
sem mentiras. Sebastião; não. Se é necessário chamar Calabar de traidor, que
chamem Sebastião do Souto de herói. (BUARQUE & GUERRA, 1975, p.
125)
Ou seja, o que queremos propor aqui é que, no caso de Calabar, essa inversão é
proposta de forma gradativa e não imediata. No início da peça você entende que existe
algo de errado na definição de Calabar como traidor, mas isso não fica completamente
evidente, o processo de inversão em Calabar se dá ao longo da peça através dos
pequenos diálogos, para que, paulatinamente, o público se dê conta de que Calabar
realmente não é traidor, ele seria apenas alguém que seguiu suas convicções e acabou se
tornando herói.
Todas essas questões ficam ainda mais evidentes ao fim da peça quando Bárbara
se dirige ao público e afirma que não gosta de espectador que tenha memória boa
demais – “A História é uma colcha de retalhos. Em lugar de epílogo, quero vos oferecer
uma sentença: odeio ouvinte de memória fiel demais. Por isso, sede sãos, aplaudi, vivei,
bebei, traí, oh celebérrimos iniciados nos mistérios da traição.” (BUARQUE &
GUERRA, 1974, p. 93). Tal trecho (existente em todas as edições analisadas aqui com
leves modificações gráficas ou com adição de algumas palavras, mas que não alteram o
sentido) sublinha um pouco as questões levantadas até aqui, pois se lembramos de
Calabar apenas como traidor, a transformação dele em herói talvez não seja
28
Um dos pontos que Benjamin deixa transparecer nesta passagem é uma espécie
de crítica ao labor historiográfico tradicional. Quer dizer, no seu entender, o “historiador
de orientação historicista” tende, a partir de uma peculiar empatia, a escrever sempre a
história através da perspectiva dos vencedores. Decerto, essa crítica é conhecida e
possivelmente colocada por muitos outros autores e pensadores, afinal, não é preciso
uma pesquisa extensa para se perceber que na maioria das vezes a história que já se
tornou canônica é justamente a história vista pela perspectiva dos vencedores. Contudo,
o que chama a atenção é a sua proposta para se fugir dessa perspectiva tradicional:
Benjamin nos diz no mesmo parágrafo, um pouco mais adiante, que para evitarmos uma
historiografia que se apresenta apenas pela perspectiva dos vencedores devemos
“escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 2019, p. 13) – ou seja, deve-se contar a
história pela perspectiva contrária. Em suma, o que ele nos diz é basicamente que a
história é normalmente escrita pelos vencedores ou por aqueles que detêm o poder
político e, em prol da criação de novas possibilidades interpretativas, devemos escovar a
história a contrapelo para escrevê-la pela ótica dos vencidos.
29
...o historiador Evaldo Cabral de Mello não teve dúvidas em afirmar que a
execução de Calabar, sobretudo do modo como ocorreu em grande parte foi o
que hoje chamamos de queima de arquivo. “A verdade” diz Evaldo, “é que
sua execução não se deveu apenas ao colaboracionismo, mas igualmente ao
conhecimento que adquirira dos contatos comprometedores mantidos por
pessoas graúdas da capitania com as autoridades neerlandesas.”. (VAINFAS,
2008, p. 90-91)
Dessa forma, podemos concluir que o que Chico Buarque e Ruy Guerra
apresentam com seu elogio a traição é, mutatis mutandis, o preceito benjaminiano de
escovar a história a contrapelo. Tal preceito é transformador, pois visa inverter a ordem
de construção e interpretação da realidade – exatamente como Brecht apontava, ao
escrever Estudos sobre o teatro, que deveria ser a forma épica de teatro, ou seja, fazer
com que o espectador consiga transformar não só a si mesmo, mas também o seu
ambiente social, pois como aponta o autor alemão nesta mesma obra, “...creio que o
mundo de hoje pode ser reproduzido, mesmo no teatro, mas somente se for concebido
como um mundo suscetível de modificação” (BRECHT, 2005, p. 21).
Diante disso, tendo a ideia de que é necessário trazermos uma nova forma de
ver o mundo, podemos também tomar a proposta de análise dos textos parodísticos feito
por Marcia Elizabeth Bortone, onde a autora diz:
Isto é, o fato de Calabar ser uma obra escrita como uma espécie de mosaico,
onde várias vozes são refletidas – questão essa que aprofundaremos mais a frente – e
pelo fato dos autores usarem de textos históricos para recontar a história, possibilitam a
interpretação da peça como uma paródia. Quer dizer, pode-se interpretar a peça Calabar
como uma paródia na medida em que ela é uma releitura cômico-crítica de
acontecimentos e textos fundadores da historiografia brasileira. Diante disso, podemos
concordar com Elzimar Fernanda Nunes quando ela nos diz que
Por fim, notamos então que a peça é construída de tal modo que, de fato, o
personagem Calabar também se tornou protagonista do seu próprio destino – assim
como Ribeiro propõe que o público deveria fazer – ao optar pelo lado dos holandeses.
Sendo assim, o mestiço permitiu que o seu ato não fosse apenas interpretado como uma
mera traição, mas sim como um emblemático ato de desobediência.
fazendo, de certa forma, com que a peça seja censurada (como veremos de maneira
esmiuçada mais a frente no capitulo em que analisaremos as questões históricas que
envolvem o contexto de produção da peça).
Como já dito, a peça Calabar: o elogio da traição nos aponta a traição nos
vários âmbitos que tal ação permite interpretações, ou seja, denuncia a deslealdade em
todas as suas camadas, seja ela a coroa/regime que governa o país cenário do enredo,
seja as suas origens, entre amigos e casais ou até mesmo ser desleal a si mesmo e aos
seus princípios e ideais – o que fica evidenciado através de alguns discursos e ações dos
personagens Sebastião Souto e Mathias de Albuquerque e até mesmo no amor existente
entre Bárbara e Anna, questões que discutiremos com mais profundidade ao longo do
próximo capítulo. É a partir dessa temática central que se pode então questionar o
estatuto da traição, isto é, sobre o que é ser traidor ou ser traído.
O que podemos perceber no que diz respeito a esse assunto é que o próprio
texto de Calabar evidencia a maneira pela qual se deve analisar a traição: através do
diálogo de Bárbara com o Frei ao fim da peça – “Para se ver o traidor é preciso mostrar
a coisa traída” (BUARQUE & GUERRA, 1974, p. 87). Ou seja, para esse tipo de
análise é necessário que se olhe para a coisa traída, pois só há traidor, só há traição, se
houver a coisa traída. Tendo esse ponto em mente podemos traçar a ponte com os
argumentos de Aldo Carotenuto
Tal tipo de conceito nos mostra que o significado de traição é algo subjetivo,
algo que depende de um ponto de vista para ser comprovado. Assim, como aponta Ruy
Guerra, a traição pode ser apresentada em diversas camadas e ser lida de diferentes
maneiras:
(...) E a traição é um negócio que a gente pode bater em muitos níveis. Pode
bater num nível inteiramente circunstancial. Pode bater num nível ideológico.
E é evidente que, para nós, não interessa discutir a traição de uma forma
absoluta, porque a traição é um tema filosófico. (BUARQUE & GUERRA,
1973, p. 24)
34
Conhece mais alguém que tenha conhecido Calabar? Não. É claro que não.
Pois se Calabar nunca existiu... Pode perguntar por aí... Alguém vai dizer que
ouviu falar de um alguém que um dia viu uma alucinada gritando um nome
parecido. Então fica provado que Calabar nunca existiu, para descanso de
todos. (...) Sebastião do Souto... é a mesma coisa. Está ali o defunto, ainda
quente, e não se fala mais no assunto. (BUARQUE & GUERRA, 2017, p.
100-101)
(...) Toda guerra só interessa a quem a faz. (...) Eu me orgulho de ter traído
Calabar. Porque eu entendo melhor Calabar que ninguém. E talvez ele fosse
também o único que me pudesse entender. E se estivesse vivo diria o mesmo
que eu agora. Gritaria como eu: a paz é falsa. A guerra continua e vai
continuar e as pessoas vão continuar se matando, se torturando, se
endoidando. Se Calabar estivesse vivo, se eu não o tivesse assassinado com
as minhas falas e com os meus sorrisos e com a minha inveja e com tudo do
que me orgulho, Calabar ia encher a boca com as mesmas palavras, com as
minhas palavras. (BUARQUE E GUERRA, 1975, p. 114)
Ou seja, podem ter retalhado o corpo de Calabar, mas as suas ideias não. Ao
matar Calabar, eles o colocaram ainda mais em evidência, sendo assim “espalharam” a
ideia dele, o pensamento que ele seguia, o direito de pensar por si, ser fiel a si e
desobedecer o governo em questão. Como aponta Mariana Rodrigues Rosell “Ao
mesmo tempo, reitera-se que mesmo morto, o herói não pode ser esquecido, pelo
contrário, deve ser lembrado e tido como exemplo; matam-se os homens, mas não se
pode matar as ideias e ideais.” (ROSELL, 2017, p. 264).
Ao transformarem Calabar em exemplo, notamos então que ele pode servir tanto
como um exemplo ruim, do que não se deve fazer, e do destino de um traidor, bem
como um exemplo bom de um alguém que seguiu seus ideais com tanta firmeza, alguém
que foi tão leal a si próprio que acabou morrendo por essa fidelidade maior. Ao matar
Calabar eles permitem que os outros personagens pensem que poderiam ser como ele,
uma vez que é isso que sugere Souto ao dizer que só ele entende Calabar, ou que se
Calabar fosse vivo ele marcharia ao seu lado gritando que a paz é falsa. Matar Calabar,
de certa forma, foi um erro, pois ao assassiná-lo acabaram por transformá-lo em mártir
de uma causa e não um exemplo a não ser seguido. Pois como traz Elzimar Fernanda
Nunes ao falar da voz de Bárbara
desejava, mas também evidencia uma submissão existente nesses personagens, pois
como aponta Frédéric Gros:
Ser submisso é ser prisioneiro de uma relação de forças que subjuga, domina,
aliena no sentido literal. Submisso, estou sob a inteira dependência do outro,
o outro que comanda, decide, grita ordens, acaba com você e destrói as
vontades. O que faço então não é mais eu a execução passiva do que me é
pedido a partir desse outro, exterior, dominador.” (GROS, 2018, p. 38)
Para começarmos a nos debruçar nessa discussão de que vozes são essas que
mostram as dissonâncias existentes em Calabar devemos sempre ter em mente que os
acontecimentos da peça se passam nos anos de 1600 quando, durante o período colonial
brasileiro, os holandeses invadiram Pernambuco. Além dessa questão, devemos também
atentar para o fato de que todas essas personagens existiram na história do Brasil, exceto
Anna de Amsterdam; no entanto, entende-se que ela representaria todas as prostitutas
que migraram para o Brasil, sobretudo quando Pernambuco estava sob domínio
holandês.
Torna-se inevitável observar que as personagens da obra de Chico Buarque e
Ruy Guerra são majoritariamente masculinas, sobrando apenas duas personagens
femininas: Bárbara – viúva de Calabar – e Anna de Amsterdam – a prostituta. Entende-
se que é relevante fazer a distinção de gênero das personagens, pois, como
observaremos ao longo deste capítulo, esse é um fator marcante para como elas se
dirigirão ao público e como abordarão a temática da desobediência entre si. A diferença
de gênero implica muitas vezes em o que pode ser dito ou não por uma personagem,
sobretudo nos anos em que a peça se passa.
Para além da questão de personagem masculina e feminina, faz-se relevante aqui
abordar também as diferenças entre os papéis sociais que cada personagem ocupa, pois
isso também distingue o poder e o tipo de denúncia que cada uma delas faz. A peça nos
oferece dentre seus personagens uma prostituta, um índio e um negro ex-escravo, e
esses status sociais são relevantes na análise do lugar de enunciação de cada um, como
será possível observar no decorrer da pesquisa.
Tais questões quanto ao gênero e os papéis sociais das personagens da trama
ganham importância pelo fato dessas definições estarem atreladas as “condições sociais
de surgimento” desses grupos, o que cada um deles representa; e como aponta Judith
Butler em Relatar a si mesmo: crítica da violência ética:
não existe nenhum “eu” que possa se separar totalmente das condições
sociais de seu surgimento, nenhum “eu” que não esteja implicado em um
conjunto de normas morais condicionadoras, que, por serem normas, têm um
caráter social que excede um significado puramente pessoal ou
idiossincrático. (BUTLER, 2017, p. 18)
41
Isto é, a partir do momento que Chico Buarque e Ruy Guerra optam por colocar
dentro de seu enredo personagens que representem os mais diversos papéis sociais, eles
não têm como individualizá-los por completo, ou seja, os autores não teriam como
desassociá-los dos grupos e das minorias – como é o caso, sobretudo, das personagens
de Bárbara, Anna, Camarão e Dias – das quais eles fazem parte.
É notório no enredo de Calabar o fato de que todas as personagens traem; todos
eles são, de certa forma, traidores de algo, de alguém ou até mesmo de si próprio, e é
exatamente nessa diversidade de vozes e de traições que iremos nos debruçar a seguir
para poder entender como essa traição – que transmutamos em desobediência ao longo
do capítulo anterior – se constrói e se desenrola nesse enredo.
Percebemos que, assim como a traição/desobediência, o conceito de pátria
também é de extrema relevância; e todos esses conceitos se encontram, de certa forma,
atrelados na peça de Chico Buarque e Ruy Guerra. Sendo assim, todas essas ideias se
tornam importantes para discussão da construção de cada personagem, pois como
aponta Gabriel da Cunha Pereira em seu livro Imaginando o Brasil: o teatro de Chico
Buarque e outras páginas essas questões estão ligadas umas as outras:
Em vista disso, e tendo em mente que todas essas questões são pertinentes para o
discurso e análise de cada personagem, adentremos na discussão sobre as diferentes
vozes.
condições que as levam à desobediência do papel social que deveriam cumprir dentro
do momento histórico que a peça se desenvolve. Por exemplo, Bárbara expõe a traição
através de seu diálogo com Anna ou quando confronta alguns homens da peça; e Anna,
por ser uma prostituta, não cumpre com o papel social que se espera de uma “mulher de
bem” nos anos de 1600 – período no qual se passa a obra de Chico Buarque e Ruy
Guerra –, sendo assim, por ser uma voz a margem da sociedade, tem liberdade para
denunciar e apontar todas as traições sem pudor.
Sabe-se que, historicamente, a posição social da mulher sempre foi a de
submissão. Isso se dá devido ao fato de que quem detinha poder naquela sociedade
seriam somente aqueles que se encaixavam nas categorias: homem, heterossexual,
branco, cristão e europeu. Sendo assim, dentro dessa relação, cabia a essas mulheres
cumprirem determinadas regras sociais, como: ser obediente ao marido, cuidar da casa e
educar os filhos, ou seja, cabia a mulher o papel de submissão ao homem, fosse ele seu
pai ou seu marido. A mulher que fugisse dessas regras, desse padrão, era uma mulher
desobediente e que não estaria cumprindo, plenamente, seu papel social.
Aqui cabe então o questionamento que Maria Wollstonecraft traz e que nos foi
apresentado por Elaine Showalter, em seu livro The Female Malady, quando a feminista
pergunta “Was not the world a vast prison, and woman born slaves?”1
(WOLLSTONECRAFT, M. Apud SHOWALTER, E. 1987, p. 1).2 Diante de tal
questionamento, notamos que a história das mulheres pode ser aproximada como a dos
negros e índios – que foram escravizados ao longo da história – e assim, a situação de
enunciação da mulher também assumiria um papel de discurso que não se enquadra
como discurso competente apresentado por Marilena Chauí em Cultura e democracia: o
discurso competente e outras falas, uma vez que, como a autora aponta:
Exatamente por não ser “qualquer um que pode dizer qualquer coisa”, como
Marilena Chauí afirma, que as mulheres ao longo da história, e por terem um modelo
social que as colocavam em posição básica de submissão, estariam enquadradas na
1
Não era o mundo uma vasta prisão, e as mulheres nasceram escravas? (tradução nossa).
2
Uma vez que o arquivo do texto de Wollstonecraft que tivemos acesso não tinha paginação e as
informações para que indicassemos usar como referência bibliográfica; preferimos por fazer o apud para
que pudéssemos indicar corretamente as informações necessárias para formular a bibliografia.
43
condição dos “incompetentes sociais”, cabendo assim apenas aos homens (branco,
heterossexuais, europeus) a função de criadores do que seria apresentado como discurso
competente.
Em paralelo a essas questões, notamos então que, como aponta Daisy Aparecida
Nogueira em sua dissertação A figura feminina no teatro de Chico Buarque e Cia.,
caberia as mulheres ocupar apenas dois espaços dentro da sociedade: ou o da Virgem-
Mãe ou o da prostituta
3
Apesar de se tratar de um texto do século XVII, tivemos acesso a ele através de um arquivo em PDF
obtido através do site: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/18144
45
ANNA. Bárbara,
Bárbara,
Nunca é tarde,
Nunca é demais.
Onde estou?
Onde estás?
Meu amor
Vou te buscar.
BÁRBARA. O meu destino é caminhar assim
Desesperada e nua
Sabendo que, no fim da noite,
Serei tua.
ANNA. Deixa eu te proteger do mal,
Dos medos e da chuva,
Acumulando de prazeres
Teu leito de viúva.
AS DUAS. Bárbara,
Bárbara,
Nunca é tarde,
Nunca é demais.
Onde estou?
Onde estás?
Meu amor
Vou te buscar.
ANNA. Vamos ceder à tentação
Das nossas bocas cruas
E mergulhar no poço escuro
De nós duas.
BÁRBARA. Eu vou viver agonizando
Uma paixão vadia,
Maravilhosa e transbordante
Feito uma hemorragia.
(BUARQUE E GUERRA, 2017, p. 102-103)
Em um dos versos em que Anna canta, ela diz a Bárbara que irá acumular “de
prazeres teu leito de viúva” ou pede a amante que ela ceda “à tentação das nossas bocas
cruas” para que então juntas possam “mergulhar no poço escuro de nós duas”. Enquanto
isso, Bárbara responde que sabe que “no fim da noite serei tua”, ou seja, se entregará a
Anna.
Sendo assim, entremos na análise individual de cada uma delas. Foquemos
primeiramente em Anna de Amsterdam. Ela é a personagem que está ali exatamente
para rebaixar os outros personagens, para mostrar que todos se vendem, todos traem,
todos desobedecem. Basta a prostituta estar presente em cena que o episódio já ganha
outra conotação, já muda. Isso se dá pelo fato de que a personagem Anna teria a função
“bobo da corte” ao longo da peça, como analisa Elzimar Fernanda Nunes
Ou seja, Anna realmente está ali para sempre confrontar as outras personagens
mostrando que todos eles têm um lado traidor, um lado corrompido.
Anna representa um papel social que, para além do fato de ser mulher, é um
papel ainda mais a margem da sociedade por se tratar de uma prostituta. Dar a voz a
uma prostituta é assumir completamente que esta não cumpre de maneira alguma o
papel social esperado a uma mulher. Ela não será mãe, não cuidará da casa, do marido
ou dos filhos; ela sempre será aquela que está ali simplesmente para suprir os desejos
carnais dos homens. Anna chega a cantar sua profissão e seu papel social: “ANNA
(cantando) Quando perco alguma guerra, Eu não perco a profissão, Muda só minha
bandeira Como muda o rufião.” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 20) ou até mesmo
nos versos de “Anna de Amsterdã” quando ela diz: “Fiz mil bocas para Solano / Fui
beijada por Gaspar. Sou Anna de cabo a tenente, Sou Anna de toda patente das Índias”
(Ibid., p. 28).
Logo, tendo a ocupação que tem, pode-se dizer que Anna seria ainda mais
“rebaixada” por ser uma mulher que não cumpre o papel esperado de uma representante
do sexo feminino e, por conseguinte, que acaba desobedecendo à ordem social. No
entanto, isso tudo não é em vão, pois é exatamente o seu ofício que lhe permite a função
de duplo destronante como aponta Elzimar Fernanda Nunes
Fernanda Nunes, toda vez que Anna aparece na peça é para apontar algum erro e
destronar alguém ou alguma situação e é assim que Anna denuncia a traição em
Calabar. Isso fica evidenciado em trechos como quando ela canta “Só vence na vida
quem diz sim”. Nas primeiras edições da peça, essa canção só era cantada depois que
Anna encontra Bárbara chorando sobre o corpo de Souto, no entanto, depois da revisão
dos autores essa canção foi movida para o início da peça, logo depois de Souto,
Camarão e Dias se apresentarem. Contudo, independente do momento em que ela se
encontra na peça, essa é uma canção destronante dos personagens, pois o tempo inteiro
Anna afirma que só vence na vida quem diz sim, ou seja, só vence na vida quem aceita
seguir as regras que os outros impõem, quem é submisso:
Dito isso, é importante olharmos para a relação existente entre Anna e Bárbara.
Embora o cargo que Anna ocupe defina seu espaço/seu lugar, a personagem demonstra
amor e carinho por Bárbara. Nas primeiras edições esse apreço teria uma conotação
mais amorosa sugerindo a relação homoafetiva entre elas. Contudo, torna-se importante
apontar que é a prostituta quem ampara Bárbara nos seus momentos mais dolorosos. A
relação existente entre as duas é a que demanda uma análise ainda mais profunda, pois
dentro do seu posto de bobo da corte Anna destronaria Bárbara ao permitir que a viúva
descumpra seu papel social por completo diante do fato de amar outra mulher. No
entanto, para além disso, a prostituta também acaba servindo como o Sancho Pança de
Bárbara, assim como analisou Elzimar Fernanda Nunes
Nota-se também, a partir da análise feita por Elzimar Fernanda Nunes, que é
através da relação entre a viúva e a prostituta que ambas irão trair a si mesmas. Pois,
como define a autora, é pelo amor que Bárbara terá ao ceticismo de Anna que fará com
que ela traia todo o idealismo presente nos seus amores anteriores (Calabar e Souto) e
Anna se trai ao se apaixonar pelo inconformismo existente em Bárbara.
Anna em momento algum demonstra se sentir inferior ou pior que alguém por
ser prostituta. Ao que tudo indica, é exatamente por exercer tal ocupação que ela se vê
livre para desobedecer todas as regras impostas pelos homens. Pois como aponta
Gabriel da Cunha Pereira, em Imaginando o Brasil: O teatro de Chico Buarque e outras
páginas, ao falar da prostituta o autor aponta: “Ao mesmo tempo em que ela se trai, pois
vende seu corpo e o oferece como mercadoria, também trai o outro. É pela transgressão
muitas vezes de si mesma que encontra, paradoxalmente, meios de resistir à opressão.”
(PEREIRA, 2015, p. 100).
Sendo assim, percebe-se que Anna acaba sendo a mais humana dentre todos,
pois é a que se entrega para seu lado animal e deixa ele aflorar sem medo. Ela, assim
como aponta Gros sobre Antígona, “em sua desobediência, não afirma uma ordem
contra outra: ela abala a própria possibilidade da ordem.” (GROS, 2018, p. 90). E é
exatamente por abalar a possibilidade de ordem que Anna destrona todos os
personagens.
Por fim, dentro dessa análise do feminino, nos resta olhar para a personagem
Bárbara, que foi casada com aquele que era visto como traidor (Calabar), mas que
também foi traído, e posteriormente se envolve com aquele que traiu Calabar ao
denunciá-lo (Souto). Bárbara é a viúva que vive o luto dia após dia, que sofre com cada
lembrança de Calabar, e que faz questão de denunciar, a todo momento, os verdadeiros
culpados pela morte de seu marido.
Ainda assim, Bárbara também não cumpre seu papel de mulher – ou pelo menos
não cumpre com o que a sociedade espera dela – pois ela não se torna mãe e, ao mesmo
tempo, acaba traindo Calabar, ou a memória de Calabar, ao se envolver amorosamente
com Souto, o que, mais a frente na história, fará com que ela mostre explicitamente em
diálogo com Anna o quanto isso a tira do eixo e a confunde:
49
Anna: E daí? Você amou um, agora ama outro... Acontece que o
segundo traiu o primeiro... Não tem nada de mais. Os dois morreram.
Está tudo certo.
Bárbara: Não é bem assim. Eu me orgulho de um traidor e a traição do
outro me repugna.
Anna: Quem trai, trai. Não faz diferença.
Bárbara: Não?
Anna: Não.
Bárbara: Também já pensei desse jeito... Misturei Sebastião do Souto
e Calabar, traí um pelo outro, misturei as traições, misturei os corpos,
misturei tudo, fiz de tudo uma paçoca e mergulhei com prazer nessa
pasta toda... De um certo modo eu estava feliz e me sentia mesmo
vaidosa de estar traindo Calabar e a sua traição, como mulher, de todo
jeito, de estar dentro da traição, de viver dentro da traição e de amar
dentro, se tudo o que me davam era traição... Mas não é verdade,
Anna. É, Anna? (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 124-125)
Vem com a tua neguinha, vem. Ai, não, amor, assim você me faz dodói.
(BUARQUE E GUERRA, 2017, p. 84)
Mas a voz de Bárbara é a dos bufões, que insistem trazer à baila o que as
convenções recomendam não comentar em público. Ela não apenas questiona
as personagens da peça, mas, além disso, denuncia as máscaras de hipocrisia
que são necessárias para preservação de qualquer tipo de autoritarismo. Daí
ela encerrar o primeiro ato dizendo ao público: “Não posso deixar nesse
momento de manifestar um grande desprezo, não sei se pela ingratidão, pela
covardia ou pelo fingimento dos mortais” (NUNES, 2002, p. 98).
Para além desse papel de bufona, Bárbara também é a que mais traz a relevância
da memória de Calabar ao longo da peça, como aponta Evelina Hoisel ao falar da
personagem em seu texto “Fado Tropical”: Jogos de Ambivalência. A autora, além de
reafirmar a aproximação da personagem com as ideias dos autores, diz também que:
“ela é uma espécie de guardiã da memória e dos ideais de Calabar, e é ainda a voz que
traduz as ideias libertárias de Chico Buarque e de Ruy Guerra para falar sobre sua
época” (HOISEL, 2013, p. 138). Até mesmo por isso que reafirmamos que ser herói ou
traidor é apenas uma questão de ponto de vista, uma vez que para Bárbara, Calabar
sempre será herói, pois dentro de seu ponto de vista, ele que estava certo em se aliar aos
holandeses em busca de um bem maior para o Brasil.
Caminhando para o término do exame das vozes femininas de Calabar,
podemos concluir que, através da análise dessas personagens da peça, torna-se possível
traçar um elo entre desobediência e as mulheres da obra. Em suma, podemos afirmar
esse elo na medida em que Anna e Bárbara não cumprem o papel social delas esperado.
Ao fim, as duas mulheres, de certa forma, desobedecem às normas e convenções sociais
impostas por aqueles que detinham o controle de como contar a história, destronam e
criticam esses poderosos e criam seu próprio jeito de viver e entender esse mundo sem
serem submissas e transgredindo qualquer tipo de regra. Enfim, as personagens Anna e
Bárbara possibilitam a perspectiva do que é insólito e, por conseguinte, as suas vozes
possuem a capacidade da enunciação daquilo que é intempestivo.
“Em suma, tudo não passa de uma fresta de comodidade! Aquele que
acha mais cômodo não ter que pensar por si mesmo e ser seu próprio
juiz acaba por submeter-se às proibições vigentes. Acha isso mais
simples. Mas há outros que sentem em si mesmos sua própria lei...”
(Hermann Hesse)
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tiveraõ alguns traidores entre estas idas, & vindas ao Arrecife, lugar de
mandar avisos ao Olandes de tudo que entre nós se passava; neste tempo se
meteo com os Flamengos hum mancebo Mameluco, mui esforçado, &
atrevido, chamado Domingos Fernandes Calabar, o qual entre elles, em
breves dias, aprendeo a lingoa Flamenga, & travou grande amizade com
Sigismundo Vandsecope Governador da guerra (CALADO, 1668, p. 14)
53
Diante disso, e tendo o relato do Frei nas mãos, assim como aponta Elzimar
Fernanda Nunes, os autores de Calabar conseguiram aproveitar muito do que Calado
relatou para montar a sua própria versão dos fatos. Como apresentado pela professora
em sua dissertação, é possível perceber a interferência do texto do Frei “na construção
da personagem frei Manoel do Salvador, na construção de outras personagens (como
Mathias de Albuquerque, Nassau e o Holandês) e na elaboração de cenas e episódios da
peça (a ponte, o boi voador, a morte de Sebastião Souto e outros).” (NUNES, 2002, p.
99).
Não foram apenas essas questões que foram aproveitadas de O valeroso
lucideno, outro exemplo seria até mesmo algumas falas do personagem que teriam sido
tiradas do que o religioso escreveu; como aponta Elzimar Fernanda Nunes quando a
autora apresenta que o fato dos autores terem tido acesso à obra de Calado ter-lhes
poupado “a tarefa de imaginar o que o frei teria falado, mas lhe deu outra tarefa: a de ler
nas entrelinhas o que ele disse sem querer ou o que simplesmente deixou de dizer. Em
Calabar, a voz do frei não é reconstituída, mas profanada.” (Ibid., p. 99).
Em Calabar, diante da temática da traição, e no intuito de ironizá-la e questioná-
la o tempo todo, Chico Buarque e Ruy Guerra nos apresentam o Frei como um
personagem que também muda de lado com certa facilidade, mas que nunca é visto
como traidor. Isso, dentro do texto, é sublinhado ao fim da peça por Bárbara que, em
seu papel de bufão, encontra com o frade e diz:
Essa conversa entre Bárbara e o Frei se estende até o ponto em que Bárbara
compara o que o frade fez (ao mudar tantas vezes de lado) com o fato de Calabar
também ter mudado de opinião e se aliado aos holandeses. No entanto, quando
questionado do porquê que ele e Calabar terem destinos diferentes, o Frei continua
afirmando que isso se deu porque Calabar era traidor. Dentro desse diálogo Chico
Buarque e Ruy Guerra só comprovam o quanto todos são passiveis de serem traidores,
até mesmo (ou principalmente) os religiosos.
Elzimar Fernanda Nunes aponta que o comportamento do frade pode ser
equiparado com o comportamento da elite pernambucana da época, e ao finalizar sua
análise sobre o religioso também sublinha a questão de que apesar de tanto o Frei
quanto a elite pernambucana terem muitas vezes trocado de lado na guerra nenhum
deles “passou para a história oficial do Brasil como traidor da pátria. Essa incumbência
foi repassada ao mestiço Calabar, como que num alerta: “traidor é quem trai a vontade
dos detentores do poder”. (NUNES, 2002, p. 101).
Dito isso, seguimos para a imagem de Maurício de Nassau, personagem que
domina todo o segundo ato da peça. A personagem histórica, como discutido ao longo
do primeiro capítulo, teve seu papel defendido por alguns textos históricos e também
criticados por outros. Todos os feitos do governante holandês retratados na peça
realmente aconteceram, inclusive o episódio do boi voador que foi relatado em O
valeroso lucideno:
legitimar seu governo, pois também se Calabar não tivesse sido morto, talvez não
houvesse o governo de Maurício de Nassau.
No emaranhado de traições que a peça nos traz, Fernando Peixoto nos aponta,
em seu texto Uma reflexão sobre a traição, qual seria a traição cometida por Nassau ao
longo do enredo de Calabar quando autor diz que o governador holandês “chega ao país
afirmando que Calabar não morreu em vão. Mas, no final, trai o sonho de Calabar e
regressa à Holanda, com lágrimas nos olhos, carregado nos braços dos índios.”
(BUARQUE & GUERRA, 2017, p. 22).
Outro dado importante sobre o príncipe é o que aponta Elzimar Fernanda Nunes
ao dizer que, no período colonial, Nassau teria deixado o Brasil devido ao fato de ter
sido “chamado à Europa sob suspeitas de indisciplina ou alta traição.” (NUNES, 2002,
p 112). Ou seja, até mesmo dentro da história oficial houve uma certa traição cometida
pelo governante holandês. No entanto, novamente, por mais que houvesse suspeitas de
“alta traição” e por mais que as opiniões sobre o príncipe e seu governo sejam
divergentes, Nassau não ficou reconhecido como um traidor dentro da história oficial, e
sua traição continua sendo contada apenas como uma suspeita.
Colocando a traição da história oficial lado a lado com a traição que Fernando
Peixoto aponta que Nassau teria cometido, percebe-se que ambas tratam do mesma
coisa, um ideal libertário para o Brasil que não é concretizado.
Passemos à análise de Sebastião do Souto, personagem que também existiu
durante a guerra entre Portugal e Holanda nos anos de 1600. Apesar de ter existido e
poder ser analisado como herói dentro da história oficial – segundo o que relatam os
livros usados como bibliografia pelos autores – Chico Buarque e Ruy Guerra se
apropriaram da imagem do rapaz e lhe transformaram, dando a ele nova personalidade e
atitudes, como aponta Elzimar Fernanda Nunes: “Os dois autores agiram com bastante
liberdade na construção de Souto, atribuindo-lhe atitudes não constantes dos textos
históricos, como sua fixação por Calabar, seu relacionamento com Bárbara ou sua
atuação como guerrilheiro.” (NUNES, 2002, p. 104).
Pode-se dizer que, dentro do enredo de Calabar, Souto é um dos personagens
mais contraditórios, além de ser aquele que mais põe a traição em xeque. Ele começa a
peça cometendo uma traição, uma vez que dentro de sua “espionagem” dos holandeses,
acaba os traindo quando leva as informações que obteve dessa falsa amizade para
Mathias de Albuquerque e, posteriormente, trai o amigo Calabar duas vezes: ao entregá-
lo para os portugueses e ao se relacionar amorosamente com Bárbara. No entanto,
56
diante de todos esses atos, ele é o único que aponta que não tem certeza se está tomando
as atitudes mais corretas dentro da guerra, é Sebastião do Souto que diz que se
arrepende antes mesmo de fazer; é ele que não entende o porquê que faz o que faz – sua
fala sobre tal ponto é sintomática: “SOUTO – Já estou arrependido do que vou fazer,
sem saber porque faço e porque me arrependo a cada instante. Queria que as coisas
fossem mais imediatas. Queria saber do certo e do errado. Queria não ter dúvidas.”
(BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 40)
Por fim, Souto é o que consegue entender todo o jogo da guerra; e ao se tornar
guerrilheiro queimando as plantações de cana ele quebra as amarras que lhe prendiam
na submissão e compreende então que soldados como ele e Calabar são apenas uma
peça sem valor no jogo da guerra. Ao adquirir consciência e analisar friamente os
acontecimentos, o personagem percebe a absurdidade e arbitrariedade da situação, o que
faz com que as fronteiras entre traído e traidor percam o sentido para ele. Diante disso,
em sua última cena antes de morrer, ao dialogar com Bárbara, ele confessa seu papel de
traidor e brada que a “paz é falsa”:
oficial, quanto no enredo de Calabar. Ambos fazem parte de minorias sociais que foram
submissas ao reino de Portugal, no entanto, eles se destacam dentro de seus grupos por
serem vistos como os “capitães”.
Não obstante, esses personagens fazem parte de classes que se enquadram no
que Marilena Chauí, em seu livro Cultura e democracia: o discurso competente e
outras falas, chamaria de “incompetentes sociais”, pois não fazem parte dos grupos
sociais que produzem o “discurso competente”. A autora defende que esse tipo de
discurso seria “aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim
resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em
qualquer lugar e em qualquer circunstância.” (CHAUÍ, 1981, p. 7). Dessa forma,
entende-se que tanto Camarão quanto Henrique Dias, por se enquadrarem nesse grupo
de “incompetentes sociais” não poderiam nem mesmo escrever a sua própria história.
Sendo assim, tudo o que sabemos sobre o índio e sobre o negro foi escrito por aqueles
que detinham o poder para fazer a história.
A partir disso tudo, o que os autores souberam e conheceram sobre Dias e
Camarão veio através da biografia escrita pelo Frei Manoel Calado e pelas biografias
escritas por Gonçalves de Mello, que apresentam as atitudes do negro e do índio
atreladas, respectivamente, a um desejo de embranquecimento e a uma religiosidade.
Diante disso, e da submissão com a qual serviram à coroa Portuguesa, ambos alcançam
títulos e patentes de respeito, sendo reconhecidos historicamente como heróis,
independente da quantidade de negros e índios que, comandados por eles, morreram
durante a guerra.
Sendo assim, e tomando de empréstimo os fatos históricos, Chico Buarque e
Ruy Guerra lançam mão das imagens de Henrique Dias e Felipe Camarão para
interpretar as atitudes deles evidenciando seus interesses de embranquecimento e
religiosidade acima de tudo e todos; em nome disso valia a pena ver seus iguais
morrerem no combate, pois a vida dos negros e índios não era passível de luto, porque
nem mesmo poderiam ser consideradas vidas, uma vez que, como apresenta Judith
Butler em seu livro Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?:
Sem a condição de ser enlutada, não há vida, ou melhor dizendo, há algo que
está vivo, mas que é diferente de uma vida. Em seu lugar, “há uma vida que
nunca terá sido vivida”, que não é preservada por nenhuma consideração, por
nenhum testemunho, que não será enlutada quando perdida. (BUTLER, 2018,
p. 33)
58
Contudo, nota-se que Camarão, diferentemente de Dias, percebe que por mais
que os portugueses tenham lhe dado o título de “Governador e Capitão-Mór de todos os
índios do Brasil” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 36), para eles, os representantes
da coroa, a sua vida é indigna de luto, pois ele continua sendo índio. Isso fica evidente
quando em dialogo com Bárbara, no momento em que Calabar vai ser enforcado, e o
índio diz:
CAMARÃO – Esta é uma guerra dos brancos, dos dois lados. Por isso, tanto
faz.
BÁRBARA – E você vai morrer sem acreditar em nada...
CAMARÃO – Vou morrer porque sou índio e nós índios morremos todos no
primeiro dia que os brancos botaram o pé nas Américas. (Ibid., p. 39)
Para sentir-se pertencendo ao Brasil, quer ter uma vida que se assemelha a
dos fidalgos. Esta, a sua ambiguidade. Henrique Dias aspira o poder e se vê
59
Esse trecho, nas versões após a revisão dos autores ganha outra interpretação,
uma vez que eles retiram as duas últimas falas e a confissão é interrompida pela entrada
de um oficial. Além disso, a primeira fala de Mathias também é modificada, e no lugar
de dizer que “não seria digno de enforcar um homem, brasileiro como eu, que se atreve
a pensar e agir por conta própria” (Ibid., p. 32); ele passa a dizer “não seria digno de
enforcar um homem, brasileiro como eu, mas tão insensato quanto os meus devaneios.”
(BUARQUE & GUERRA, 2017, p. 55). Tal mudança no texto não deixa explícito o
paradoxo, a dúvida que rondava o governador de Pernambuco, impedindo assim a
60
interpretação de que Mathias de Albuquerque talvez tenha tido vontade de trair a coroa
portuguesa.
Diante disso, podemos perceber que em diversos momentos da peça Mathias
vive um impasse e questiona o que fazer. Evelina Hoisel ao analisar a canção entoada
por Mathias (Fado Tropical), em seu texto “Fado Tropical”: Jogos de Ambivalência,
aponta que:
capítulo anterior –, pois como aponta o autor: “a submissão é uma relação de forças que
torna a desobediência impossível, despropositada, demasiado custosa.” (GRÓS, 2018, p.
56). E, é assim que os personagens constroem suas relações, nunca desobedecendo às
ordens da coroa, pois caso desobedecessem, isso poderia não só custar-lhes a vida –
como no caso de Calabar – mas poderia também cancelar seu embranquecimento ou sua
conversão católica.
Conclui-se que falar de desobediência para as vozes masculinas de Calabar: o
elogio da traição se torna mais difícil, pois, diferentemente de Calabar, a maioria das
personagens masculinas não desobedece, porque estão completamente absortos em uma
relação de submissão que não permite a desobediência; como seria o caso de Mathias de
Albuquerque, Henrique Dias, Felipe Camarão e Sebastião do Souto. No que diz respeito
ao Frei Manoel, esse lida apenas com seus interesses, mudando de lado e jogando o
jogo. E por fim, Nassau que, como estrangeiro, apenas trai o sonho de Calabar e nada
mais.
Dessarte, e sendo notório a relevância da historiografia tradicional para a
interpretação de Calabar: o elogio da traição, nos debruçaremos ao longo do próximo
capítulo a compreender como esses objetos se entrelaçam e também sobre como as
várias edições, por apresentarem mudanças significativas, possuem sua própria
historicidade.
62
Calabar: o elogio da traição foi escrita no ano de 1973 e recebeu uma grande
atenção do público devido a forma que foi censurada – isto é, dias antes de sua estreia.
Por não ter sido encenada, coube ao vinil com as músicas da peça e ao livro com o seu
texto disseminarem a história escrita por Chico Buarque e Ruy Guerra. O livro, em
2017, já estava em sua 39ª edição pela Civilização Brasileira.
É de extrema importância ressaltarmos essas questões, ao longo de nossa
pesquisa percebemos que o texto de Calabar escrito em 1973 sofreu alterações ao ser
reeditado, não obstante, não fomos os primeiros a constatar tais mudanças, Elzimar
Fenanda Nunes aponta em sua dissertação de mestrado que essas modificações foram
feitas ao longo de algumas edições:
Não pudemos ter acesso a todas as edições Calabar, mas foi possível
constatar que há modificações profundas da 22ª para 23ª. Episódios foram
modificados, cenas foram invertidas, diversas falas foram condensadas e
outras suprimidas, resultando num texto mais enxuto. (NUNES, 2002, p. 9)
Assim como a autora, dentro de nossa pesquisa também não pudemos ter acesso
a todas as edições já publicadas do texto, no entanto tentamos aumentar o número de
edições a serem analisadas. Assim somamos o total de oito edições de Calabar: o elogio
da traição, a saber: a 1ª edição datada em 1973, a 5ª edição de 1974 – ambas da
Civilização Brasileira –, a 3ª edição de 1975 pela editora Círculo do Livro, a 12ª edição
de 1979 (Civilização Brasileira), 15ª edição de 1985 (Civilização Brasileira), 20ª edição
de 1995 (Civilização Brasileira), 21ª edição de 1996 (Civilização Brasileira) e a 39ª
edição de 2017 (Civilização Brasileira).
Sendo assim, percebemos que devido às transformações feitas no que diz
respeito ao textual, nota-se que, dependendo da edição que se tem em mãos, ela irá
permitir ou não algumas interpretações. Ou seja, se analisarmos somente o texto de
1973 chegaremos a algumas conclusões bem diferentes do que se tivéssemos focado
apenas no texto de 2017, pois partes textuais que seriam cruciais para algumas
interpretações propostas, existentes no texto da 1ª edição, foram removidas na nova
63
versão de 2017. O mesmo ocorre para espaços temporais mais curtos, como
exemplificado pela professora Elzimar em sua dissertação.
Uma hipótese para os diferentes registros nas edições diz respeito ao fato do
contexto histórico no qual a primeira versão foi escrita, ou seja, em plena ditadura civil
militar brasileira instaurada com o golpe de 1964; uma vez que a nova versão já não
compartilhava do mesmo cenário histórico, algumas críticas e interpretações possíveis
foram removidas ou reestruturadas, fazendo com que o novo texto ganhasse, por
conseguinte, um novo horizonte interpretativo.
Segundo Gabriel da Cunha Pereira, algumas das modificações também se deram
“de acordo com os mandos e desmandos da censura.” (PEREIRA, 2015, p. 76). A 15ª
edição (datada justamente do fim do período ditatorial [1985]) traz em sua capa a
informação de que o texto havia sofrido modificações feitas pelos autores, pois vem
escrito logo abaixo do número da edição que ali se tem o “texto revisto e modificado
pelos autores” – o mesmo se dá para a 20ª e 21ª edições. No entanto, as modificações
que ocorrem entre essas edições – e até mesmo na edição mais recente – não nos é
possível afirmar ao certo de quem partiu; se os autores revisavam e modificavam o texto
conforme as edições saiam, ou se partia das próprias editoras ao reeditarem a obra.
No que diz respeito a grande modificação textual que nos é apresentada logo na
capa de algumas edições, temos a explicação para elas dentro do texto Duas vezes
Calabar (datas), escrito por Fernando Peixoto, presente na 15ª, 20ª, 21ª e 39ª edição de
Calabar, quando ele aponta:
o texto da peça muda conforme mudam as circunstâncias. Quer dizer, não apenas as
circunstâncias históricas “externas” que, devido à censura, modificam o texto de forma
coercitiva, mas também os próprios autores modificam o texto com o passar do tempo
conforme aquilo que lhes convinha. Dito isso, olhemos então para as edições para
entendermos quais são as grandes diferenças existentes entre elas.
Ao olharmos para todas as edições, as dividimos em dois grupos, as anteriores e
as posteriores a revisão dos autores, pois, dessa maneira, é possível analisar mais a
fundo as diferenças no que diz respeito as possíveis interpretações do texto. No entanto
não podemos negligenciar o fato de que mesmo em edições do mesmo grupo existem
entre elas algumas diferenças; porém elas são menores, sendo mais voltadas a algumas
marcas de cena, às questões de diferentes formas de grafar uma palavra – como, por
exemplo, “d’El Rey” que aparece geralmente grafado com “y”, mas em outras aparece
grafado com “i” – ou a preferência por uso de letras maiúsculas para iniciar cada verso
de uma canção, enquanto em outra edição já há uma mistura entre maiúsculas e
minúscula – na primeira edição “Cala boca Bárbara” mescla maiúsculas e minúsculas,
já na 5ª todos os versos iniciam com maiúscula –, e também o fato de termos adição e
omissão de algumas palavras ou frases inteiras. Contudo, essas alterações não
modificam a interpretação do texto – na primeira edição na cena do banquete, quando os
moradores revezam suas falas com as falas de Anna, em determinado momento os
moradores dizem: “Ha ha ha! Rebola para cá, meu bem! Eu sou ateu! Me segura que
vou ter um troço!” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 9); a fala “Me segura que vou ter
um troço” foi removida das edições subsequentes.
A partir de tal análise decidimos contrapor a primeira edição com a 15ª.
Escolhemos essas duas por ser a primeira, a edição original da peça e a 15ª ser a edição
mais antiga – após a modificação e revisão feita pelos autores – que tivemos acesso.
Olhando para essas duas, temos diferenças maiores que implicam na interpretação
textual permitindo ou não algumas leituras e análises.
A primeira mudança se dá na cena inicial da peça, quando Mathias escreve uma
carta para Calabar, na edição posterior a revisão, o representante da coroa portuguesa já
nos indica que Calabar está na Vila de Porto Calvo ao pedir que o escrivão enderece a
carta para lá. Na primeira edição, essa informação ficava omitida, e só entendíamos que
Calabar já estava ao lado dos holandeses no desenrolar da cena. Posterior a isso, ao ditar
a carta para o escrivão, Mathias muda o tratamento de Calabar diversas vezes,
começando por Major, passando por Mestre-de-Campo e finalizando por coronel, após a
65
revisão textual feita pelos autores; ao olharmos para a edição de 1973, ele só o trata
como Major. Essa cena se alonga mais na 15ª edição, pois Mathias diz:
Tal trecho torna-se relevante uma vez que permite outra leitura da relação
existente entre Mathias e Calabar, posto que apresenta as memórias que o Governador
de Pernambuco tem quanto a bravura e lealdade de Calabar. A passagem evidencia
ainda o fato de que eles lutaram lado a lado, e que um dia Calabar viu os holandeses
também como inimigos.
Mais a frente no texto, temos praticamente toda a cena do banquete do holandês
modificada, todavia, as falas do holandês continuam mostrando ao Frei que o que eles
buscam ao colonizarem o Brasil é que esse seja um país mais liberal, onde ninguém será
expulso, tendo espaço para todos; no entanto na edição revisada ele se prolonga, e o que
antes o holandês dizia em quatro falas, ele passa a usar sete falas bem diferentes e mais
longas. Nessa mesma cena, no texto de 1973, Anna canta um trecho de “Anna de
Amsterdam” antes da entrada de Souto, esse trecho é removido pós-revisão. A retirada
da canção, bem como o prolongamento da cena não modificam tanto o que se pode
depreender sobre esse episódio.
Após a entrada de Souto, a cena também muda um pouco quando comparada a
primeira edição. Na 15ª, por exemplo, ao relatar para o holandês a chegada de Mathias e
quem o acompanhava, Souto diz: “Ah, sim, bois gordos e suculentos! E carruagens,
senhor, carregadas de muita riqueza! (Para o Frei) E homens armados até os dentes,
índios, negros, peixeiras, canhões... (Para o Holandês) Presa fácil.” (Ibid. p. 11). Nessa
fala não há apenas mudanças em como as frases foram escritas, mas também há adição
da informação dada ao Frei. Essas alterações só prolongam a cena e sublinham ainda
mais para o leitor a questão de que Souto realmente está agindo como infiltrado na
coroa holandesa, bem como deixa entrever que o Frei também é mais aliado de Portugal
do que da Holanda. Sendo assim, pode-se dizer que tais alterações também não
modificam substancialmente o que é possível compreender através da peça ou da
passagem.
66
Certo. Certo.
Não tem culpa arraia-miúda.
Não tem culpa arraia-miúda.
Arraia-miúda não muda,
Arraia-miúda está muda,
Carrancuda, tartamuda,
Bochechuda, barriguda.
Arraia-miúda, só ajuda.
A traição graúda,
chifruda e nariguda,
sisuda, trombuda e papuda.
Certo. Certo.
A culpa de todo é de Calabar.
A culpa de todos é de Calabar.
É bom, é cômodo, é fácil
Trazer o traidor dentro da manga.
Agora Bárbara não diz mais as duas primeiras estrofes que foram modificadas
por um texto que aponta que “O traidor se chama Calabar” (BUARQUE & GUERRA,
68
1985, p. 38) e compara o silêncio de Calabar por não ter entregue o nome de amigos,
que também traíram os portugueses, com os que delataram amigos, ou que receberam
propinas mas que continuarão vivos, ao contrário do seu amado. Tal mudança só
evidencia outro valor na traição, apontando a diferença entre a arraia-graúda e a arraia-
miúda de forma mais explícita do que era feito na primeira versão do texto.
Em seguida – na versão de 1985 – acontece a execução de Calabar e a cena que
relatamos anteriormente em que os heróis Dias, Camarão e Souto se apresentam
seguidos do confronto com Bárbara e Anna. E logo após Souto canta “Vou Voltar” e sai
de cena deixando Bárbara e Anna – essa cena das duas personagens femininas pós-
morte de Calabar ganha um novo diálogo que não permite mais entrever a relação
amorosa existente entre as duas, como era possível de interpretar através do dialogo e da
canção “Anna e Bárbara” existente na versão de 1973. A canção entoada aqui deixa de
ser a que leva o nome das personagens e passa ser a música “Cobra-de-Vidro” que
proporciona ao público o entendimento de que matar Calabar é ineficiente, pois a ideia
que ele perseguia continuaria viva independente de seu corpo não estar mais presente, e
assim começa então o segundo ato.
O segundo ato, na 15ª edição, começa com um grande monólogo de Nassau e
segue com os moradores encantados com o príncipe, fazendo perguntas a ele sobre o
que achou do Brasil, do Recife, e o governador responde a todos os questionamentos em
francês, fazendo com que os residentes daquela região ficassem ainda mais
maravilhados. Na primeira edição esse diálogo entre Nassau e os moradores só acontece
depois de Anna cantar “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”. A imagem do Consultor
que poda e aconselha Nassau também só passou a existir a partir da revisão e
modificação do texto feita pelos autores; e logo, todo diálogo existente entre os dois é
completamente novo e acentua o lado egoico do príncipe.
Todo o diálogo entre Bárbara e Souto antes e depois da canção “Você Vai Me
Seguir” é modificado na edição pós-revisão, deixando a relação entre eles menos
amorosa quanto o que é possível perceber no texto de 1973, uma vez que após a canção
no lugar da rubrica: “OS DOIS SE AMAM” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 60), a
direção de cena muda para: “Terminada a canção, Souto agarra Bárbara para beijá-la”
(BUARQUE & GUERRA, 1985, p. 80) e Bárbara o cobra o preço de dois florins, pois
seu turno já está acabando, deixando prever que ela se tornou uma prostituta, o que não
é descrito na primeira edição.
69
Paul Van Tieghem, diz que “por trás do livro você perceberá o homem que o
escreveu, e, em torno do homem, seu meio e seu tempo” (TIEGHEM, P.V. 1994, p. 89),
e é exatamente isso o que nos ocorre ao ler a obra de Chico Buarque e Ruy Guerra. Os
autores se apropriam do episódio histórico ocorrido durante o período colonial
brasileiro, e, a partir de uma paródia de um recorte histórico, apontaram e criticaram
firmemente a política do regime da ditadura civil militar brasileira, instaurada através do
70
golpe de 1964, que ainda governava o país na época em que foi produzido o texto;
deixando assim em sua obra as marcas históricas que vivenciavam no ano de 1973.
Toma-se como base para a obra a pouca bibliografia existente sobre Domingos
Fernandes Calabar que, pelo que se sabe, foi um mameluco que se aliou aos holandeses
na época que o Brasil era colônia de Portugal. Segundo os autores da peça, o tema
surgiu de repente, despretensiosamente, e acabou encaixando bem com o que eles
queriam e gradativamente foi evoluindo para a questão da invasão holandesa e outros
episódios da história brasileira que foram recortados e transferidos para Calabar. Em
uma entrevista para os alunos da PUC-Rio, os dois autores afirmam o seguinte:
Ruy: a história para nós era um pretexto. Nós fizemos um corte vertical na
história. Tanto que a linguagem é inteiramente descompromissada com
qualquer linguagem quinhentista. As músicas não têm nada a ver com as
músicas da época, porque tem calipso, valsa, fado...
Chico: exceto o soneto, que é recitado pelo Mathias, e tem um hino holandês
da época, tem o texto do Frei Manoel Calado, que é tirado “ipsis literis” do
livro O Valoroso Lucideno, de onde a gente tirou várias coisas.
Ruy: tem texto dele, assim como tem frase do Ibrahim, do Pelé, tem tudo. A
fala da condenação de Calabar é tirada, textualmente, da condenação de
Tiradentes. Há um corte vertical na história, a partir do qual se tem uma
compreensão. (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 5)
Médici vive seu mandato de 1969 até o ano de 1974. Sendo o terceiro presidente da
ditadura civil militar brasileira, tem seu período reconhecido pela história como “anos
de chumbo”, pois foi durante o seu mandato em que se acentuou a tortura, a repressão e
a censura no país.
Ao longo do governo de Médici, o Brasil também vivenciou a dizimação dos
focos guerrilheiros que já haviam se organizado antes da ascensão do presidente, e é
exatamente nesse período que o nome do Capitão Carlos Lamarca ganha espaço nos
noticiários. Entretanto, por mais que fosse um capitão do exército, seu nome não se viu
atrelado ao governo, mas sim à guerrilha. Lamarca “transforma-se num símbolo da
revolução junto à esquerda.” (JOSÉ & MIRANDA, 1989, p. 59). É relevante
apontarmos a imagem de Lamarca atrelada ao governo de Garrastazu Médici porque é
dentro desse regime que o capitão deserta do exército e se alia à guerrilha, bem como
em 1971 é assassinado por militares enquanto dormia.
Tendo em mente esse cenário, percebe-se que é possível depreender diversos
paralelos entre os fatos históricos e o enredo de Calabar. Sendo assim, podemos
também afirmar que os autores lançam mão da imagem do mameluco e, por
conseguinte, do episódio da invasão holandesa porque viram que, como aponta Carolina
Maia Gouvêa:
Diante disso, tendo em mente a crítica ao regime, bem como o desvelamento que
propõe Carolina Maia Gouvêa, é de se entender o porquê de a peça ter sido duramente
censurada às vésperas de sua estreia, não podendo ter nem mesmo seu nome divulgado
em nenhum meio. Até mesmo o disco que Chico Buarque gravou com as canções da
peça não pôde ter o nome Calabar na capa, sendo assim ficou apenas “Chico Canta”,
pois como relata Vavy Pacheco Borges em Ruy Guerra: paixão escancarada:
72
Ruy contou que queriam pôr na capa o título Chico Canta Calabar, com três
letras “C” grandes e destacadas, em alusão ao violento grupo da extrema
direita Comando de Caça aos Comunistas – o CCC –, que vivia aterrorizando
o mundo estudantil e cultural de esquerda. Entretanto, até a palavra “Calabar”
foi proibida e o disco intitulou-se somente Chico canta. Qualquer tipo de
apresentação pública das músicas foi controlado. Nos documentos do Dops,
há notícia de proibições a “Fado Tropical” e “Boi voador” em rádio, em TV,
até em alto-falantes de lojas, um documento registra como condenável o fato
de o Jornal do Brasil publicar a letra de “Vence na vida quem diz sim”.
(BORGES, 2017, p. 238-239)
Unidos da América tiveram em todo esse processo. Como aponta Gabriel da Cunha
Pereira: “Nosso regime ditatorial, aliado ao governo dos Estados Unidos desde a
Segunda Guerra Mundial, seguia à risca sua política e ideologia.” (PEREIRA, 2015, p.
92).
Uma das críticas que os autores deixam transparecer na peça sobre esse poder
que os EUA exerciam sobre o Brasil ao longo do regime militar, está presente ao longo
da peça dentro do conceito de pátria. Isso fica evidente na explicação que o autor citado
anteriormente nos traz ao analisar a peça contrapondo-a com o poder que os EUA
tinham sob o Brasil durante a década de 1970, poder esse que ia para além do fato de
terem patrocinado a ditadura civil militar. Usando novamente as palavras do autor,
depois de explicar o processo que levou os Estados Unidos da América a assumirem
uma política liberal, ele apresenta o quão paradoxal seria o Brasil assumir a mesma
postura, pois tal política não coincide com o que prega um regime ditatorial, e então
Cunha Pereira diz:
A partir de tal análise que o autor nos propõe sobre esse cenário brasileiro, onde
nossa política econômica se encontrava completamente atrelada aos desejos Norte
Americanos, percebe-se a crítica existente na cena final da peça quando todos os
personagens cantam “O Elogio da Traição”:
Atento às inúmeras referências aos anos da ditadura militar, ele não percebeu
o instigante diálogo que a peça estabelecia com textos clássicos da história do
Brasil. Não percebeu que – para além do ataque ao regime de 64 – Calabar
discutia o processo de elaboração dos mitos nacionais e o uso destes na
legitimação de estruturas sócio-políticas, terminando por questionar a própria
feitura do discurso histórico e da identidade nacional. (NUNES, 2002, p. 32)
Destarte, quando a peça vem a ser encenada, muito se perde da ideia original,
pois, como apontado, para além das modificações textuais que foram feitas, existe o fato
76
de que o mundo já está mudado, o Brasil já está passando pela anistia e muito do que
tinha para ser dito já não faz mais sentido. Logo, não só a crítica que os autores tinham a
fazer na época, mas também o efeito catártico que deveria gerar no público – devido a
um reconhecimento quanto ao seu papel político-social – já não era mais possível. A
peça abre-se para um novo horizonte interpretativo.
Ou seja, para trazer Lamarca para esse espelhamento, Chico Buarque e Ruy
Guerra apontam que, em 1973, durante a ditadura civil militar brasileira, era necessário
escondê-lo atrás de algo, usar uma “cortina de fumaça” para enganar os censores sobre
as verdadeiras intenções. Vemos que os autores tentaram discutir a traição usando a
imagem de Calabar para “representar” Lamarca. Sendo assim, podemos apontar que
havia um viés a mais na obra, e que fica ainda mais evidente ao olharmos na peça o
momento em que Bárbara diz
78
Certo, certo, certo. O melhor traidor é o que se escala, Corpo pronto para
bala, Se encurrala, se apunhala, Se amarrota e não estala, E cabe dentro da
mala, Se despeja numa vala. Se esquece espetado em tala Com que arraia não
se rala E não se fala na sala. (BUARQUE & GUERRA, 1975, p.49-50)
4
Esse texto de Gaspari faz menção à Ordem da Censura, de 22 de setembro de 1971, transcrita em Paolo
Marconi, “Perseguição e morte de Lamarca” Coojornal, agosto de 1979.
79
no fato de que não se deve criar uma imagem diferente daquela que o Estado deseja
sobre aqueles que eram vistos como traidores.
Dito isso, fica mais fácil também de entendemos a crítica que Chico Buarque fez
ao apontar que não tinha mais graça encenar a peça mais tarde, pois o paralelo com o
capitão da guerrilha não ficaria mais evidente. E, talvez, esse seja um dos traços que
tentaram “apagar” com as edições posteriores à revisão e modificação do texto, pois não
há mais proximidade histórica que nos faça enxergar imediatamente Lamarca através de
Calabar.
Para além de Lamarca, sabe-se também que há um possível espelhamento de
Calabar com Tiradentes, ao começar por ter trechos da sentença do inconfidente mineiro
sendo proferida pelo Oficial no enforcamento de Calabar, como apontou Ruy Guerra na
entrevista que os autores deram para os alunos da PUC-Rio em 1973: “A fala de
condenação de Calabar é tirada, textualmente, da condenação de Tiradentes.”
(BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 5). Além desse indicativo na entrevista, mais à
frente Chico Buarque ainda diz: “Interessa é que se, por acaso, os holandeses, tivessem
tido força para conquistar todo o Brasil, hoje a gente seria colonizado pelos holandeses
e Calabar seria Tiradentes mesmo, seria o maior herói...” (Ibid. p. 25), colocando
novamente Calabar e Tiradentes no mesmo patamar. Ademais, ainda há a questão
apresentada no Documento do Centro de Informações do Exército – citado
anteriormente – em que ele mostra que “os terroristas” tentaram usar Tiradentes como
personagem representante da publicidade “subversiva” e que posteriormente essa
imagem do inconfidente teria sido substituída por Calabar nessas propagandas,
confirmando assim mais uma possibilidade de leitura da imagem do personagem na
peça.
Refletindo ainda sobre os possíveis espelhamentos com os personagens
históricos, temos também a possibilidade de aproximar o personagem Nassau com
Juscelino Kubitschek, pois como aponta Chico Buarque na entrevista aos alunos da
PUC: “ele é meio Chacrinha. A personalidade dele, ele mesmo é um pouco Juscelino,
um pouco Chacrinha.” (Ibid. p. 13). Outra evidência que nos permite aproximar os dois
é o fato de que ambos pretendiam realizar governos de 50 anos em 5. Tal comparação
fica evidente na fala do personagem aos moradores quando ele aponta:
Para além da questão de os autores terem usado ipsis litteris a expressão usada
como slogan pelo ex-presidente do Brasil, podemos também colocar Kubitschek e
Nassau lado a lado devido ao fato de ambos terem realizado governos nos quais o Brasil
viveu um grande crescimento econômico. De um lado, teríamos o governante de 1956
construindo Brasília, rodovias, hidrelétricas e permitindo a entrada das grandes
montadoras como a Ford, General Motors, dentre outras. Entretanto, tamanho
desenvolvimento rendeu ao Brasil uma grande dívida externa. Do outro lado, teríamos o
holandês que trouxe a cultura, a tolerância religiosa, construiu canais, palácios, museus
e dentre seus grandes feitos construiu a ponte Maurícia e fez, até mesmo, um boi voar5.
Não obstante, o texto deixa entrever que esses grandes feitos de Nassau renderam
prejuízos, uma vez que a Companhia das Índias não viu com bons olhos os gastos
exorbitantes do governante:
5
Em o Valeroso Lucideno, o Frei Manoel Calado conta que no dia que Nassau fez a festa para inaugurar
a ponte Maurícia, diante da quantidade de pessoas que apareceram para o evento, o governador fez com
que enchessem um boi de palha e o trouxessem voando por cordas com um engenho (Cf. CALADO,
1668, p. 131). O episódio é recontado em Calabar: o elogio da traição.
81
Ainda olhando para a canção que Mathias de Albuquerque entoa percebe-se que
ao fim do trecho supracitado da canção “Fado Tropical”, ao focarmos na parte de que
esta terra vai cumprir seu ideal de tornar-se um imenso Portugal, podemos também
apresentar o espelhamento, uma referência familiar, que os autores trazem com a
ditadura do Estado Novo em Portugal. Dessa maneira, podemos entender que há uma
proposta de colocar a ditadura civil militar brasileira no mesmo patamar do
Salazarismo, uma vez que ambas ditaduras eram regimes autoritários, nacionalistas,
anticomunistas, apoiados na censura, na repressão e na perseguição de “inimigos
políticos”.
Para além desses personagens, temos Camarão, Dias, Frei Manoel, Bárbara,
Sebastião do Souto e Anna de Amsterdam que ainda não foram analisados aqui. Isso se
dá pelo fato de que esses personagens fazem apenas o espelhamento com os
personagens históricos que eles são. Sendo assim, todos eles só representam a si
mesmos ou vão um pouco mais além ao representarem o grupo social ao qual eles
pertencem – como já discutido anteriormente.
Devemos ressaltar que a análise dos espelhamentos é de extrema importância
para chegar ao fator traição, pois eles explicitam contextos e produções relevantes para
a temática central. Além disso, tal análise nos propicia outra investigação acerca da
questão do velamento e desvelamento, visto que ao tentar representar Lamarca através
de Calabar, notamos que os autores acabam fazendo um velamento dos próprios
personagens históricos que querem realmente retratar na peça no intuito de fazer uma
grande crítica ao momento, e para incitar o pensamento crítico do público, pois como
aponta Fernando Peixoto
diferentes. Cabe aqui considerarmos uma fala de José Mauro Barbosa Ribeiro, de que
Calabar é uma
Considerações Finais
para falar da censura, com esforço e a coragem comuns a seu feitio, vê-se na
contingência de referir-se a ela como “várias circunstâncias de ordem geral
que conspiram contra o progresso de nossa literatura dramática”. O máximo
que se podia fazer para se recusar o silêncio no dia-a-dia da vida
institucional. E para citar Calabar, escreve: “Uma super-produção musical
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Para que todas essas análises fossem possíveis era extremamente necessário
entendermos, mesmo que brevemente, o que fizeram os militares voltarem atrás na
liberação da peça e decidirem por censurá-la de maneira tão dura.
Além disso tudo, para compreendermos todos esses conceitos e possibilidades de
leitura que esse discurso cênico caleidoscópio nos oferecia, foi necessário que
colocássemos ele à luz não só do próprio texto dramático, mas também das teorias
trazidas por tantos outros nomes, os já citados Thoreau, Frédéric Grós e Aldo
Carotenuto, como também Judith Butler, Marilena Chauí, Elzimar Fernanda Nunes e
Gabriel da Cunha Pereira. Pois, por mais que o leitor interprete um texto através da sua
bagagem e experiência de vida; fazer essa pesquisa que propomos aqui demandava
novas leituras e novos horizontes para contrapor junto à literatura dramática que
analisamos.
É incontestável que, ao longo desse trabalho, muitas outras perguntas surgiram e
muitos outros autores foram visitados, entretanto, dentro do espaço de tempo que
tínhamos para estruturá-lo, acabamos nós mesmos criando novos recortes para um novo
mosaico. Quem sabe futuramente não venhamos a escrever mais sobre as dúvidas que
ainda surgem, uma vez que o texto dramático, dentro da sua perenidade, sempre estará
disponível para revisitarmos, ainda nos trazendo sempre reflexões possíveis para tanta
atualidade e críticas para o mundo. Pois, como já diria Heráclito em seus fragmentos
comentados por Alexandre Costa (2002)6, nós nunca nos banhamos duas vezes no
mesmo rio; por mais que na literatura a obra sempre seja a mesma, nós, enquanto
indivíduos, nunca o seremos.
Caminhando para o fim da nossa análise, entendemos que textos dramáticos
quando encenados no palco talvez tenham um impacto diferente se feito no momento
que foram escritos, como explicitado por Renata Pallottini. No entanto, preferimos crer
que é sempre importante revisitarmos a história. É exatamente por nos permitimos
observar e analisar grandes recortes históricos, colocando-os lado a lado com momentos
atuais, que podemos entender os caminhos que tomamos no passado e evitar repeti-los
no presente, caso nossas escolhas tenham gerado danos. É evidente que isso não é
6
No livro de Alexandre Costa é possível encontrar na página 205 o fragmento em que Heráclito diz:
“Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”
89
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