O texto a seguir é de autoria de Douglas Barros, professor do curso “Sociedade do Espetáculo. Uma Introdução ao Pensamento Situacionista” e é parte do material complementar aos alunos do curso, que se inicia dia 14 de agosto. Trecho retirado do programa da segunda aula, o argumento do autor se desenvolve como parte da gênese do pensamento de Debord. Tendo passado por Hegel, Barros discorre sobre a influência de Marx, e do hegelianismo de esquerda, para o diagnóstico debordiano da sociedade contemporânea. DEBORD COMO UM MARXISTA? É fato que o sopro concei- tual de Hegel passou, tal qual um furacão, por sobre a tradição filosófica e seu espírito ainda paira, como um fantasma en- diabrado, na teoria crítica. Debord dedica uma sessão para falar sobre isso na Sociedade do espetáculo. Assim, podemos intuir que não foi em vão a proibição de sua filosofia, ou a substituição – logo após sua morte – por Schelling, que tinha como “missão” varrer o hegelianismo de Berlim.1 Ficou patente para as autoridades que a filosofia de He- gel havia interpretado a formação histórica
1 Como observa Sinnerbrink. (SINNERBRINK, R.
Hegelianismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.) Se o processo de trabalho é ele mesmo a vida do proletário e se o proletariado é de sua época que anunciava o sur- a negação das gimento do Estado moderno e da potencialidades sociedade civil burguesa. Hegel humanas, a havia compreendido a alienação e superação a formação do mercado circunda- revolucionária do pelo trabalho abstrato. só pode ocorrer Por isso, o pensamento hege- com a extinção liano, por ocultar em si grandes das formas sintomas de época, e erguer de produção uma forma de lidar com o obje- que geram to de investigação de maneira as classes originalmente assombrosa, antagônicas se converteria num campo e, portanto, de disputa política. Debord o próprio acompanha essas quere- proletariado. las porque tem como Virgí- lio o jovem Lukács, aquele de História e consciência de classe. Precisamos re- tomar rapidamente esse ponto para entendermos duas grandes figuras que circundam o pensamen- to debordiano: Marx e Lukács. Com efeito, o grau zero do concei- to de espetáculo reside numa história que excede as sínteses operadas por Debord e remonta a uma bre- ve história da filosofia que se inicia com a hipóstase da uni- versalidade, entendida à época como Estado prussiano. Para entender a posição de Debord, é preciso lembrar que o surgimento do hegelianismo de esquerda também se assenta, por um lado, na radical negação da uni- versalidade como uma revolta contra essa posição que reduzia a totalidade aos limites de uma ordem plenamente reacionária, posta e baseada na frag- mentação geral da vida. O elogio à indi- vidualidade e sua substancialidade ética por parte do hegelianismo de esquerda tem como ponto nodal a recusa de uma universalidade que se põe como manu- tenção do já existente. Desse ponto de vis- ta podemos especular que Debord seria um legitimo representante crítico desse hege- lianismo. Naturalmente, porém, essa postura terá problemas importantíssimos dos quais De- bord é plenamente consciente. O irracionalismo imerso na postura de negar a razão como aquilo que compreende o homem em sociedade se des- dobrará na exaltação de certas particularidades (como as de raça ou povo) e as elevará ao nível de valores supremos. Por outro lado, mas, do mes- mo modo, um hegeliano de esquerda famoso como Feuerbach, ao elevar o ser enquanto tal – e não a compreensão do ser-como-tal abs- trato –, abandona as mediações capazes de entender como essa mesma realidade está untada de idealismo. Dito de outro modo, a realidade enquanto tal não é um produto da coisa que aparece imedia- tamente, mas da relação entre a cons- ciência e o objeto. Isso significa que as próprias formas de compreen- são do objeto estão ligadas ao desenvolvimento da consciência e das formas de mediar esse mesmo objeto. Nesse sentido, o que vemos é que a inversão proposta por Feuerbach, todavia, retira a autodeter- minação do eu como me- diação concreta dessa relação. É contra essa perspectiva imobiliza- dora de Feuerbach que Marx se volta. Nesse ponto, Marx prefere os avan- ços providencias da filosofia hegeliana que colocam a certeza sensível e a natureza como envolvidos pelo movimento da vida de modo a mudarem e transforma- rem o seu conteúdo. Esse ponto é interessantíssimo. A adesão de Marx, já maduro, ao velho mestre se efetiva quando ele observa que tanto a certeza sen- sível quanto a natureza são supera- das pelo processo histórico através do trabalho. Essa importância do tra- balho na análise hegeliana tem como premissa fundamental a supressão da escravidão que o próprio trabalho exer- ce. Não nos iludamos: Debord ao tocar esse fio de Ariadne, soube que Hegel não era um protestante trabalhista. O trabalho, por um lado, refreia os impulsos e trabalha o desejo, mas, por outro, detém a capacida- de cumulativa, na qual a natureza deixa de ser o livre jogo de forças para adentrar a razão e franquear os caminhos para a liberdade efeti- va. Debord, que durante o letrismo pensava na possibilidade de jogos que libertassem nossa di- mensão subjetiva da natureza predatória do traba- o conflito de classes civiliza o capital, ao passo que a luta de classes consciente visa destruí-lo. lho, certamente estava a par desses processos: a liberdade aí só se torna efetiva quando o próprio trabalho de- votado à mercadoria deixar de existir. E é aqui que entra uma categoria que terá valor fundamental para Debord: a alienação. A alienação provocada pelo trabalho capitalista é o que constitui a ne- gação do indivíduo enquanto ser livre para exercer suas potencialidades. Por isso, a negação dessa negação só se tornará pos- sível quando for abolido o trabalho alienado. Quando Debord desenvolve sua crítica do es- petáculo e demonstra o desdobramento do fe- tichismo2, temos, por um lado, uma análise crí- tica que solapa os pressupostos do marxismo vulgar (materialista, positivista, feuerbachiano),
2 A esse respeito ver MARX, K. Grundrisse: manuscri-
tos econômicos de 1857-1858. São Paulo: Boitempo, 2011. a alienação provocada pelo trabalho capitalista é o que constitui a negação do indivíduo enquanto ser livre para exercer suas potencialidades. por isso, a negação dessa negação só se tornará possível quando for abolido o trabalho alienado. ao mesmo tempo que a ques- tão do fetichismo da mercado- ria ganha o centro do debate. Para Debord, a alienação tomou sua forma mais avançada nos desdobramentos do capitalismo tardio. Ele entendia com gravida- de as consequências de manter os modos de produção capitalistas inal- terados e já demonstrava que a explo- ração não se efetiva apenas pela pri- vatização dos meios de produção, mas pelas formas de produção desses mes- mos meios de produção. Desse modo, a crítica debordiana tornava claro como as forças constituidoras da totalidade do mer- cado tornavam o indivíduo apenas o apên- dice descartável do moderno sistema guia- do pelo capital e manipulado pelo espetáculo como força motriz. Essas formulações levaram Debord à con- clusão de que a superação do estado de coisas no capitalismo não é o alçamento de uma clas- se em detrimento de outra, mas o fim das clas- ses enquanto tal. Não é a constituição de uma sociedade proletária, mas de uma sociedade cuja associação seja de indivíduos livres. Esse pequeno deslocamento conceitual levará, sem dúvida, a uma reavaliação radical dos pressupostos do marxismo. E irá ver parte da tradição marxista como repre- sentante de uma ideologia revolucionária presa aos pressupostos daquilo que diz combater. Se o pro- cesso de trabalho é ele mesmo a vida do proletário e se o proletariado é a negação das potencialida- des humanas, a superação revolucionária só pode ocorrer com a extinção das formas de produção que geram as classes antagônicas e, portanto, o próprio proletariado. As classes existem em anta- gonismo para dinamizarem a própria forma de pro- dução e reprodução social mantida pelo capital. O conflito de classes civiliza o capital, ao passo que a luta de classes consciente visa destruí-lo.