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Thomas Piketty: O coronavírus

resultará em sociedades mais justas?


Por Laura Spinney / The Guardian / Tradução Bruno Mattos - 28.05.2020

O que podemos esperar em termos de


soluções para a sociedade após a crise de
covid-19? Em entrevista ao The Guardian, o
economista francês Thomas Piketty fala
sobre os possíveis efeitos da pandemia na
economia, na sociedade e na globalização.
Pikkety é autor das obras O Capital no Século XXI e Capital e Ideologia, e em seus
livros ele aborda, por exemplo, a relativa autocorreção social após tragédias como
as guerras mundiais, a revolução russa e a pandemia de 1918.
A pandemia descortina algumas mazelas, como a desigualdade social. Mas quanto
ao que esperar após este período, se formos nos basear em outras catástrofes da
história do mundo, a conclusão será de que nunca houve uma solução única. Além
disso, existem as ideologias, que também influenciam nas mudanças, pois não
acontecerão exclusivamente pela pandemia. Thomas Piketty faz uma análise
voltando ao passado.

Qual a dimensão dessa pandemia, se comparada a outras ocorridas ao longo


da história?
Thomas Piketty: O modelo mais pessimista estima que o número total de mortos
ao término da pandemia – isto é, se não houver nenhum tipo de intervenção – será
de cerca de 40 milhões de pessoas a nível global. Isso corresponde a mais ou menos
um terço do número de mortos pela epidemia de gripe de 1918, se corrigido ao
tamanho da população. Mas o que não figura nesse modelo é a desigualdade, o fato
de que nem todos os grupos sociais são atingidos da mesma maneira e, muito
importante, também existem diferenças entre os países ricos e pobres.
Isso foi revelado pela gripe de 1918, quando entre 0,5 e 1% da população de Europa
e Estados Unidos foi a óbito, contra 6% na Índia. O chocante nesta pandemia são os
níveis muito elevados de desigualdade que ela traz à tona. Também estamos sendo
confrontados com o aspecto violento dessa desigualdade, porque o lockdown dentro
de um apartamento amplo não é a mesma coisa que o lockdown para um morador
de rua.
As sociedades ocidentais são mais desiguais hoje do que eram em 1918?
Thomas Piketty: Os níveis de desigualdade que vemos hoje são muito, muito mais
baixos do que eram um século atrás. Em certo sentido, essa é a mensagem que busco
transmitir. Sou um otimista. A história que conto trata de aprendizado e progresso
a longo prazo. Houve progresso porque movimentos políticos e intelectuais se
dedicaram à construção da seguridade social e de sistemas de taxação progressiva,
bem como à transformação de nosso sistema de propriedade. A propriedade era
sagrada no século XIX, mas foi gradualmente secularizada. Hoje, temos um equilíbrio
muito melhor entre os direitos de proprietários, trabalhadores, consumidores e
governos locais. Isso representa uma transformação completa de nossa noção de
propriedade, que veio acompanhada de maior acesso à saúde e à educação.

Mas a desigualdade é maior hoje do que era nos anos 1980. Sendo assim, é
necessário corrigi-la?
Thomas Piketty: Sim. A resposta certa para essa crise seria resgatar o estado social
no norte global e acelerar o desenvolvimento no sul global. Esse novo estado social
exigiria um sistema justo de taxação e a criação de um registro financeiro
internacional que permitisse a ele atrair as maiores e mais ricas empresas para o
seu sistema. O regime atual de livre circulação de capital, estabelecido nos anos 1980
e 1990 sob influência dos países mais ricos (sobretudo da Europa), estimula a
evasão por parte de milionários e multinacionais. Ele impede o desenvolvimento de
um sistema justo de taxação nos países pobres, o que, por sua vez, sabota sua
capacidade de construir um estado social.

Em Capital e Ideologia, você descreve como momentos de choque, como


guerras e pandemias, podem levar a correções desse tipo. É possível que a
desigualdade extrema possa chegar ao ponto de provocar esses choques – em
outras palavras, que a igualdade seja capaz de se autocorrigir no longo prazo?
Thomas Piketty: Eu acho que há alguma razão nisso, sim. No livro, argumentei que
as duas guerras mundiais foram em grande parte resultado da extrema
desigualdade existente nas sociedades europeias antes dos conflitos, tanto dentro
de cada uma delas como internacionalmente, fenômeno causado pelo acúmulo de
bens coloniais. Essa desigualdade era insustentável e levou à sublevação daquelas
sociedades, mas isso se deu de diferentes maneiras: a Primeira Guerra, as revoluções
russas, a pandemia de 1918. A pandemia devastou os estratos mais pobres da
sociedade, com acesso precário ao sistema de saúde, e foi exacerbada pela guerra. O
resultado desses choques cumulativos foi um achatamento da desigualdade ao longo
do meio século seguinte.

Em seu livro, o principal exemplo de pandemia que motivou algum tipo de


correção se refere à peste negra no século XIV. O que aconteceu depois dela?
Thomas Piketty: Há muito tempo, existe uma teoria segundo a qual o fim da
servidão foi mais ou menos uma consequência da peste negra. O raciocínio é que a
morte de até 50% da população em algumas regiões tornou o trabalho um recurso
escasso e, com isso, os trabalhadores lograram assegurar mais direitos e um status
melhor, mas na realidade a coisa foi mais complicada do que isso. Em alguns lugares
os regimes de servidão acabaram fortalecidos pela peste negra. Justamente por ser
escasso, o trabalho se tornou mais valioso para os proprietários de terra que, assim,
motivaram-se ainda mais para a prática da coerção.
A lição, que também é relevante para os dias de hoje, é que choques de grande
impacto como pandemias, guerras e quebras financeiras têm um impacto na
sociedade, mas a natureza desse impacto depende das teorias que as pessoas têm
acerca da história, da sociedade, do equilíbrio de poderes... Para resumirmos em
uma palavra, de sua ideologia, que varia de lugar para lugar. Uma grande
mobilização política e social é sempre imprescindível para que uma sociedade trilhe
o caminho da igualdade.

Essa pandemia poderia induzir o tipo de socialismo participativo que você


recomenda?
Thomas Piketty: É cedo demais para dizer, justamente porque as pandemias
podem ter esses efeitos contraditórios sobre o pensamento e a mobilização de
caráter político. Acredito que, no mínimo, ela reforçará a legitimidade do
investimento público no sistema de saúde. Mas também pode ter um impacto
totalmente oposto. Historicamente, por exemplo, as pandemias desencadearam
ondas de xenofobia e fez com que nações se fechassem em si mesmas. Na França, a
política de extrema-direita Marine Le Pen tem dito que não devemos retomar muito
depressa a livre movimentação na União Europeia. Há o risco, principalmente se o
saldo final de mortos for muito elevado na Europa em comparação a outras regiões,
de que a narrativa anti-europeia de Trump e Le Pen ganhe fôlego.

Falemos do endividamento público, que vem sofrendo muito em consequência


da pandemia. Você acha que os governos serão forçados a agir para controlá-
lo?
Thomas Piketty: Sim, é bem provável. Quando se atinge um nível muito elevado de
dívida pública, como ocorreu nos EUA e em nossas nações europeias, é preciso
encontrar soluções não ortodoxas, simplesmente porque recomprar a dívida é um
processo muito lento e incapacitante. A história é rica em exemplos disso. No século
XIX, quando os britânicos tiveram que pagar a dívida do período napoleônico, o que
fizeram foi basicamente taxar a classe-média baixa para pagar os detentores de
títulos, pertencentes à classe-alta. Deu certo porque, ao menos no início do século
XIX, apenas os riscos tinham direito ao voto.
Não acho que teria dado certo nos dias de hoje… Após a Segunda Guerra Mundial,
por outro lado, Alemanha e Japão encontraram uma solução diferente e, a meu ver,
melhor. Eles taxaram temporariamente os ricos. Funcionou muito bem, e isso lhes
permitiu começar a reconstrução de seus países a partir de meados dos anos 1950
sem nenhuma dívida pública. A necessidade é mãe da criatividade. Por exemplo,
para salvar a zona do euro, talvez o Banco Central Europeu precise assumir
responsabilidade por uma parcela maior das dívidas de seus estados membros.
Vamos ver.

Então isso poderia transformar a União Europeia?


Thomas Piketty: Não devemos confiar em uma crise para resolver os problemas
que precisamos resolver, mas ela pode ser um estímulo à mudança. A União
Europeia começou a se fragmentar com o Brexit. Alegar que os pobres são
nacionalistas não é uma explicação satisfatória para o Brexit. O problema é que
quando você tem livre comércio e uma moeda única, mas nenhum objetivo social,
você acaba em uma situação em que a livre movimentação de capitais beneficia os
cidadãos de maior mobilidade e riqueza e acaba alienando as classes sociais média
e baixa.
Se quisermos conservar a livre movimentação, é preciso aliar um sistema comum
de taxação a políticas sociais comuns, o que também pode incluir investimentos
comuns em saúde e educação. A história também é muito instrutiva nesse aspecto.
Construir um estado de bem-estar social em um estado-nação já representava um
imenso desafio. Isso exigia um acordo entre ricos e pobres uma grande batalha
política. Acho que até é possível fazer isso a nível supranacional, mas antes
provavelmente seria preciso fazê-lo em um punhado de países. Os outros podem se
juntar mais tarde, se aderirem a essa ideologia. Espero que isso possa ser feito sem
implicar a ruptura da atual União Europeia, e espero que a Grã-Bretanha acabe
retornando.
Muito se falou em desglobalização após a crise. Ela acontecerá?
Thomas Piketty: Acho que acontecerá em algumas áreas estratégicas, como
suprimentos médicos, pelo simples fato de que precisamos estar melhor preparados
para a próxima pandemia. Para que isso ocorra indistintamente em todos os lugares,
ainda há trabalho a ser feito. No momento, nossa opção ideológica tem sido manter
as tarifas sobre o comércio internacional em 0%. Nosso receio é: se começarmos a
elevar essas tarifas, onde isso vai parar? É uma discussão semelhante àquela sobre
redistribuição de propriedade ocorrida no século XIX.
As pessoas preferiam defender até mesmo uma imensa desigualdade na
propriedade de terras – ou mesmo de escravos – a aceitar algum grau de
redistribuição por temerem que, uma vez desencadeado, esse processo levasse à
expropriação de todas as propriedades. É o argumento da bola de neve – o
argumento clássico dos conservadores ao longo da história. Hoje, acredito que
precisamos nos libertar dessa mentalidade de tarifa zero, nem que seja para
financiar o combate às grandes ameaças globais, como as mudanças climáticas e as
pandemias. Mas isso requer a criação de uma nova narrativa sobre limites tarifários.
E como a história nos mostra mais uma vez, nunca houve uma única solução.

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