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Esta é uma tradução livre e sem fins lucrativos.


Se você gosta da série, apoie o projeto, compre o episódio ou a
temporada completa em:
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Serão 10 episódios, um por semana. É extremamente importante
que os fãs $contribuam$ para que possam criar mais temporadas.

Narrado por Tatiana Maslany.


Escrito por Malka Older, Madeline Ashby, Mishell Baker, Heli Kennedy, E.C.
Myers e Lindsay Smith.
Traduzido por citro.
Episódios

01 – Nossas necessidades de nos moldar

02 – Obstinado em negação

03 – Pães e caldos

04 – Ignorar o óbvio

05 – Toda criança expulsa do paraíso

06 – O que o mundo real pede

07 – Melhor aprender a lidar

08 – Colheita de sobreviventes

09 – Que aspecto adotamos

10 – Abrace a diversidade
Episódio 01

Nossas necessidades
de nos moldar

‘Já faz oito anos que o Projeto LEDA se


foi, mas nem tudo está bem.’
Vivi Valdez colocou um ursinho de goma em sua boca
enquanto se preparava para a quarta tarde de vigilância
tranquila. Era uma de suas partes preferidas do trabalho:
estava sozinha, livre para prosseguir como quisesse. Em
seu primeiro dia, ela identificara um escritório de trabalho
em frente ao seu alvo que ficava vazio às 6 da tarde. Desde
então, ela passara as tardes deitada sobre o carpete
industrial, em frente à janela panorâmica com vista para a
entrada do Instituto de Pesquisa Genética de Toronto. Ela
havia hackeado o sistema de câmeras de segurança do
lobby, para que pudesse assisti-las de seu celular, e havia
feito notas de cada entrada e saída, cruzando informações
com sua lista dos funcionários e associados do Instituto.

Em sua segunda noite, ela havia invadido o lugar.


Fora uma tarde divertida, descobrindo os pontos fracos em
cada nível da segurança de alta tecnologia. Uma vez
dentro, no entanto, Vivi achara os laboratórios
arrepiantes. Ela já roubara informações sigilosas de,
desde sua última contagem, quatro nações hostis, e se
sentia muito confortável esgueirando-se no escuro. Mas o
laboratório estava lotado com coisas que ela não conseguia
interpretar.

Equipamentos zunindo à noite; telas mostrando o que


deveriam ser ou screensavers muito elaborados ou então
imagens ampliadas de minúsculos organismos se
reproduzindo enquanto ela assistia; líquido brilhante —

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brilhante mesmo! — o qual ela imaginava que faria coisas
terríveis a qualquer coisa que o tocasse. Ou possivelmente
a transformaria em um super-herói movido pela raiva. A
primeira visão do laboratório fora vaga demais para que
ela descobrisse para o que estava olhando naquele
pântano, então ela colocara uma escuta no escritório do
Dr. Nathaniel Sturgis, Diretor de Pesquisa, e saíra de lá,
com planos para retornar assim que tivesse mais
informações.

Agora ouvia a voz mecânica de Sturgis em seu fone,


enquanto ele ditava um registro: “... os mecanismos de
distribuição parecem ter sido efetivos. Evidências indicam
que o processo se iniciou pouco após seis horas, gerando as
respostas esperadas...”. Vivi não sabia dizer se ele falava
sobre uma ameba ou uma pessoa, mas soava sinistro,
então ela marcou o tempo do áudio, para os analistas de
Langley. Agora a voz de Sturgis era o suficiente para fazê-
la querer vomitar. Dois dias a escutando a haviam
convencido de que ele era um porco: humilhando
graduandos, fazendo bullying com assistentes de
pesquisa, um prepotente, metido a importante com
qualquer um que ele achasse que poderia se aproveitar.
Mas seu nome era mencionado na diretiva de vigilância de
nível 2, e ele era irritantemente cauteloso com grande
parte de sua pesquisa. Vivi apostava que, assim que
recebesse mais ordens, elas incluiriam enquadrá-lo para
descobrir algo mais interessante.

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Vivi decapitou outro ursinho — ela não deixaria nem
uma migalha —, se sentindo preguiçosa, mas produtiva, o
que era mais relaxante do que quando estava em suas
férias obrigatórias. Ela amava a sensação de estar no
trabalho. Mesmo se o Canadá fosse tecnicamente uma
nação amigável — talvez especialmente por isso —
qualquer erro teria consequências.

Seu telefone tocou, uma vibração sem som que a dizia


ser Arun. Ela rolou para longe da janela, se levantou e
colocou o código.

“Valdez, ligação de segurança mínima.” Respondeu.

“Ei, pequena. Como está o Canadá?”

Vivi sorriu, mas manteve a voz séria.

“Um pouco frio demais para mim e educado até


demais.”

“Não está tendo problemas com a língua?” A voz de


Arun soava inocente demais, mas Vivi mordeu a isca.

“Aqui é Ontario.”

“Mesmo assim.” Arun comentou suavemente. “Nunca


se sabe quando você pode se esbarrar com um francês.”

Vivi revirou seus olhos. Sua dificuldade com línguas


era uma piada recorrente dentro de sua unidade: se ela
aprendesse a fingir falar uma língua estrangeira tão bem

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quanto podia fingir ser outra pessoa, ela seria o camaleão
perfeito.

“Pelo menos eu não tenho sotaque australiano


quando tento falar inglês britânico.”

“O que você quer dizer, colega?” Ele disse. “Meu


sotaque britânico é brilhante, oras.”

Era uma piada idiota que eles faziam, com variantes,


há vários anos, desde o incidente na Cidade do Cabo. Mas
toda vez Vivi ainda sentia vontade de rir. Ela escondeu
esta vontade.

“Eu vejo as câmeras do lobby e coloquei uma escuta


no escritório do diretor.” Disse e, porque soara súbito
demais, adicionou: “E ainda não ouvi nenhum francês.”

Arun ficou sério imediatamente.

“Alguma pista até agora?”

“Sturgis estava ao telefone ontem, garantindo a


alguém que o projeto estava dentro do cronograma e que
estava observando resultados como esperados do teste
vivo.”

“Pode ser qualquer coisa.” Arun comentou.

“Claro, mas Sturgis tomou todo o cuidado para não


dizer o nome do projeto. Ele até perguntou se não
poderiam designar um código.”

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Arun gargalhou e Vivi permitiu-se sorrir ao telefone,
sabendo que ele não poderia vê-la.

“Que os céus nos proteja de amadores.” Ele disse.

“Sim.” Vivi continuou, e desta vez ela não conseguiu


conter o tom de felicidade conspiracionista de sua voz. “Ele
mandou a secretária passar a ligação, então eu sei que ele
estava falando com Greg Kurzmann, Oficial de Ligações
Civis no Escritório de Protocolos para Armas Não-
Convencionais.”

Houve silêncio do outro lado da ligação.

“Ministério de Defesa.” Disse Arun, por fim.

“É disso que se trata?” Um arrepio desceu pelas


costas de Vivi. “Algum tipo de bio-arma?”

Arun limpou sua garganta. “Como lhe disse segunda,


me passaram isso de outra agência que queria investigar
essa instalação o mais rápido possível, então eu não tinha
detalhes. Uma hora atrás, tive uma reunião, mas ainda
estão protegendo parte das informações.” Ele pausou. Vivi,
se apoiando em seus calcanhares enquanto esperava,
mordeu seus lábios para não o interromper. “Houve um
incidente biológico em Boston essa semana. Algumas
pessoas ligadas à agência adoeceram. Até agora, não
houve fatalidades—”

Vivi estava chocada.

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“Eles ordenaram um ataque aos EUA? Em agentes?”
Isso estava errado. Não em seu turno.

“Agentes não.” Arun parecia desconfortável.


“Famílias.”

Aquilo era, se qualquer coisa, pior ainda. Os pais de


Vivi estavam mortos — a trabalho, os dois — e ela não
possuía parentes próximos, mas as consequências ainda
eram terríveis. Se alguém estava disposto a atacar civis
para afetar a agência...

“Isso talvez explique outra coisa.” Vivi respirou


fundo, se recompôs e restaurou sua calma competência.
“Essa manhã, Sturgis deixou a instalação em um horário
incomum. Eu segui seus passos, esperando chegar em
algum café, mas ele foi direto a uma estação de metrô.”
Ela fez uma longa pausa dramática. “Para usar um
orelhão.”

“Realmente suspeito.” Concordou Arun. “Mas difícil


de investigar.”

Vivi sorriu satisfeita.

“Eu tinha um microfone direcionável.” O aparelho


parecia um grande brinco preto e, se ela o apontasse para
a direção certa, era capaz de captar sons graváveis de uma
incrível distância. “Claro que eu só captei o lado dele da
conversa, mas ele estava agitado.” Vivi andou pela sala
escura, mexendo em seus cachos avermelhados enquanto
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falava. “Ele disse que havia observado melhor os genomas
e agora ele entendia, e ele estava furioso e, eu acho, com
medo. Talvez desesperado. Ele repetia ‘Eu não me inscrevi
para isso’ e ‘Eu confiei em você’ e ‘O que estava pensando?
E ele disse algo sobre uma etiqueta.”

“Como marcadores genéticos, talvez?” Arun


perguntou, pensativo.

“Talvez.” Vivi concordou rapidamente, querendo


pular a parte a qual ela não havia escutado direito. “Mas
a melhor parte foi o final. Ele disse ‘Se alguém vier atrás
de mim, você jamais conseguirá pôr as mãos em meu
trabalho.’”

Arun estava em silêncio do outro lado da linha.

“Nós sabemos alguma outra coisa sobre o que


aconteceu?” Vivi perguntou. “Se atacaram famílias,
porque não temos toda a maldita cavalaria invadindo o
lugar?”

“É... complicado.” disse Arun. Vivi podia o imaginar


passando as mãos pela nuca. “Como eu disse, ainda não
houveram fatalidades e eles não tem nem 100% de certeza
de que foi um ataque. Para falar a verdade, você sabe...
quando meu amigo pediu à agência para observar as
doenças, o chefe disse que não havia provas suficientes.
Este inquérito é ilegal, um favor.” A voz de Arun soava

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triste agora. “É por isso que não temos tantas
informações.”

“Porque seu amigo estava tão certo que foi um


ataque? Ele é médico?”

“Ela não tem certeza, mas disse que tudo foi suspeito
demais para ignorar. Aparentemente, um pequeno grupo
adoeceu de repente, quase ao mesmo tempo, com uma
doença que ainda não foi identificada. O curioso é que só
pessoas relacionadas à agência adoeceram. Ninguém
mais. Médicos, colegas de quarto, colegas de trabalho,
ninguém... Eles ainda não entendem quais são os vetores,
mas a combinação de uma doença desconhecida e um
grupo tão preciso de pessoas afetadas está chamando
muita atenção.”

“Está bem...” Vivi respondeu. “E este lugar?” Mesmo


sabendo que ele não a enxergava, ela apontou a grande
caixa de vidro que era o Instituto do outro lado da rua.

“Nada muito claro, e é por isso que você está aí os


vigiando escondida.” Ele fez uma pausa. “Você está
escondida, certo?”

“Até agora sim.” Vivi resmungou. “Neste momento,


estou inclinada a agitar um pouco as coisas.”

“Se o diretor está falando daquele jeito com o Ministro


de Defesa, então eu também estou. Quero você lá dentro
hoje à noite.” Vivi sorriu.
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“Lembre-se, isso ainda é circunstancial.” Arun disse
com firmeza. “É possível que tenha sido um acidente, uma
coincidência, outra coisa que não um maldito ataque à
comunidade intelectual de uma nação amiga.” Uma
pausa, talvez para que ele contivesse suas emoções. “Se
não foi um acidente, precisamos saber quem está por trás
disso. Eu pensei que pudesse ser algum agente aleatório
ou agente estrangeiro infiltrado dentro do grupo de
pesquisa, mas a ligação para o Kurzmann sugere que o
governo canadense pode estar andando em corda bamba.
E se Sturgis está com o pé atrás, ele provavelmente tem
algo a esconder.” Arun fez uma pausa. “Descubra o que é.”

“Com prazer.” disse Vivi, com um sorriso. “Devo


enquadrar Sturgis para uma interrogação?”

“Ainda não.” Disse Arun. “Devido à relação amigável


entre as nações, queremos deixar isso baixo por agora.
Descubra se estamos lidando com uma arma ou o quê, e
qualquer coisa sobre o antídoto.”

Antídoto, pensou Vivi, era uma daquelas palavras


que você nunca gostaria de usar.

“Entendido.” Disse, seu pulso acelerando enquanto


ela se preparava para a ação.

“Tome cuidado, ok?”

“O quê?” Ela perguntou. Ela não sabia se gostava que


Arun se preocupasse com ela ou se se sentia incomodada
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que, após todas as missões que eles fizeram juntos, ele
achava que ela não sabia se cuidar.

“Só estou dizendo... Eu não gostaria de me meter com


esse tipo de coisa.” Respondeu ele. Na tela de Vivi, alguém
correu no lobby do Instituto até a mesa da recepção.
“Micróbios, germes, doenças e—”

A escuta de Vivi ganhou vida, capturando a ligação


para o escritório do Sturgis e sua voz irritada ao
responder: “Sim? Ah, sim, claro. Deixe ela entrar! ”

“Tenho que ir.” Vivi sussurrou e desligou a ligação


com Arun para prestar atenção no vídeo.

A resolução das câmeras de segurança não era ótima,


mas algo sobre a mulher chamou sua atenção. Vivi não
sabia dizer o quê. A aborrecia ver alguém chegar ao
escritório tão tarde; já eram quase dezenove horas.
Baseado nas últimas noites de observação, a rotina da
equipe do Instituto parecia começar às 9h e terminar às
17h. Ela não esperava reuniões no fim da tarde e estava
ansiosa para que todos fossem embora, para que ela
pudesse entrar lá. Mas talvez esse encontro fosse parte do
projeto secreto. Seu coração ainda batia forte por causa do
que Arun dissera por último, mas ela queria mais do que
qualquer coisa acabar com a incerteza e descobrir contra o
que ela estava exatamente. Ela esperou impacientemente
até que a mulher chegasse ao escritório de Sturgis e foi
recompensada com o som da porta se abrindo — Sturgis
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indo até a antessala para recebê-la—, então suas vozes
surgindo ao entrar na sala.

“... uma honra, estive acompanhando sua pesquisa


por anos.”

“O prazer é meu, Dra. Niehaus. Estou bem


impressionado com o que sei de seu trabalho.”

Vivi rabiscou o nome com uma interrogação ao lado,


sobre como se escrevia.

“Hum... obrigada.” Niehaus soou surpresa, até


desconfiada. “Como acabei de terminar meu doutorado, eu
ainda não tive a chance de publicar tanto de meu trabalho
quanto gostaria.”

“Claro, eu entendo.” Vivi conseguia imaginar Sturgis


balançando suas mãos. “E estou certo de que o trabalho de
professora adjunta não a deixa com muito tempo. Por isso
estou feliz que tenha se candidatado para esta posição. Me
diga, por que está interessada em trabalhar no IPGT?”

“Estou buscando entrar em algo realmente mais


focado em pesquisas e engajado nas questões do mundo
real, sair um pouco da zona de conforto, sabe?” Disse ela.
Sua voz era interessante, soando um pouco mais velha do
que Vivi esperava, com um toque de rouquidão, como se
ela fumasse, e o que talvez parecesse ser um leve sotaque
da... costa oeste americana? Vivi sussurrou ‘zona de

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conforto’ no escuro, copiando com cuidado os sons das
vogais de Niehaus.

“Quero sujar as mãos.” Continuou Niehaus. “Quero


trabalhar em algo que importe.” Vivi a imaginou fazendo
gestos de ênfase.

“Claro, claro.” Disse Sturgis, animado. Vivi nunca o


vira sendo tão gentil e seus sensores de espionagem
apitaram de novo. Será que isto era mais um
recrutamento do que uma entrevista de emprego? “Posso
lhe afirmar que o trabalho que realizamos para o governo
canadense aqui no IPGT está dentro de sua área de
interesse e que você certamente sujaria suas mãos.”

Vivi conseguia ouvir a vibração em sua voz enquanto


ele enfatizava cada palavra. Talvez ele estivesse dando em
cima de Niehaus ao invés de recrutá-la? Nojento.

“Do que exatamente estamos falando?” Disse


Niehaus, de novo com cuidado. “O anúncio de emprego era
um pouco vago...”

“Temo que não posso te dar detalhes até que você


assine o termo de sigilo. Mas posso lhe dizer que o projeto
é muito bem financiado e lhe permite continuar seu
trabalho com mapeamento de genomas e vacinas baseadas
em genes. O trabalho importa, como você disse.
Potencialmente mudará o mundo.”

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Vivi conseguia imaginá-lo circulando sua mesa e
colocando sua pesada mão no ombro de Niehaus. Então
Sturgis tossiu uma fraca tosse falsa e a imagem mental
evaporou. Ele ainda estava em sua mesa e estava nervoso
com algo. “Então, ambos sabemos que mudar o mundo
pode ser para dois lados, não é? Afinal, você tem bastante
experiência útil que não aparece em seu currículo.”

Vivi levantou suas sobrancelhas com o silêncio


desconfortável, se perguntando se Niehaus passou a
faculdade como uma acompanhante ou dançarina exótica,
mas então ela respondeu.

“Eu não publiquei nada sobre meu trabalho em


vacinas baseadas em genes.” Ela disse, e Vivi a imaginou
virando levemente a cabeça, à espera de que Sturgis
explicasse porque ele esteve a investigando.

“Exatamente!” Sturgis respondeu. “Excelente


trabalho, com verdadeiro potencial positivo, mas pelo qual
ninguém se interessa. Esta é uma oportunidade para que
você possa continuar a pesquisa que você não publicou, o
trabalho que você não pôde compartilhar, as coisas que fez
que vão um pouco além do limite. Isso é exatamente o que
estive tentando fazer, para melhorar as coisas. No
entanto, claro que tudo que tem potencial para ajudar as
pessoas, pode também machucá-las. Mas ainda devemos
tentar, não devemos? Pela ciência. Mesmo que seja

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terrível. A ciência da qual as pessoas têm medo. E você
tem experiência com isso.”

Enquanto escutava, Vivi segurou sua respiração.


Esta estava sendo a pior tentativa de recrutamento que
ela havia escutado, mas a ciência da qual as pessoas têm
medo soava exatamente com o que ela precisava saber.

“Não sei o que quer dizer com isso.” Disse a moça. Vivi
estremeceu. Se Niehaus estava sendo recrutada para
trabalhar em um projeto sigiloso, ela precisaria aprender
a mentir melhor.

“Vamos.” Disse Sturgis. Ele soava frustrado pelo fato


de que ela não estava o acompanhando. “Não precisa
fingir, não estou tentando colocá-la em apuros, eu quero
sua ajuda! Na verdade, estou surpreso de que não colocou
seu trabalho na DYAD em seu currículo. Para qualquer
um na área, seria uma credencial impressionante. E bem
rara. Estamos particularmente interessados em sua
experiência com—”

“Eu só estive brevemente lá.” Disse Niehaus,


cortando-o. “E foi há muito tempo. ” Alguma coisa havia
mudado no clima da sala, Vivi pensou, tentando pensar
em termos para pesquisar junto a ‘dyad’ para conseguir
resultados. Genética, talvez?

Se o clima havia mudado, Sturgis continuou sem


perceber. “Poderíamos realmente usar sua ajuda — eu
poderia aproveitar sua perspectiva em alguns dos, ah,
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problemas que surgiram. Existem... dilemas éticos que,
hum, sua experiência na DYAD ajudaria a entender. E é
um trabalho importante, muito importante. Acredite em
mim, Dra. Niehaus, se você quer causar impacto, essa é a
maneira certa. Afinal, nada desperta avanço tecnológico
como uma clara e presente ameaça.”

Vivi escutava tão intensamente que ela se inclinava


para a frente, apertando o fone em seu ouvido, não
querendo perder a menor das nuances da conversa.

“Que tipo de ameaça?” Perguntou Niehaus. Ela soava


como se acreditasse na real possibilidade de perigo. Vivi
se perguntou porquê. A essa altura, ela já havia
encontrado o perfil de Niehaus no diretório da
Universidade de Toronto. Não havia foto, mas, com base
em seu currículo, Cosima Niehaus parecia uma
pesquisadora comum. Talvez comum até demais. Seria ela
era algum tipo de agente estrangeiro infiltrado que
Sturgis, de alguma forma, ouviu falar?

A voz de Sturgis se tornou alta e Vivi o imaginou se


inclinando sobre o peso de papel de DNA cartunesco no
qual a escuta estava escondida. “Tenho certeza de que você
pode imaginar. Tenho certeza de que já imaginou. A
tecnologia na qual DYAD trabalhava, mas uma década
depois. Imagine o que poderíamos fazer com isso. Imagine
o que outros governos podem já estar fazendo com isso.”

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Vivi ouviu o som da cadeira se afastando, como se
Niehaus tivesse se levantado abruptamente. Ela
tagarelava algo, mas Sturgis falava por cima de sua voz
“Sua experiência a faria única para o projeto—”

Ele ainda falava quando a voz da mulher se tornou


clara. “Estou retirando minha aplicação para a vaga.”

“Desculpe-me?” Sturgis soava como se não


acreditasse o que ouvira.

“Você está tentando me recrutar para algum projeto


financiado pelo governo que você diz ser capaz de mudar o
mundo, mas não me diz nenhum detalhe. Ou existem
detalhes acima de seu pagamento?” Em seu escritório
deserto do outro lado da rua, Vivi levantou seu punho,
aprovando a fala.

“Bom, mas, é bastante... eu tenho um papel


importante.” Que comemierda, pensou Vivi. Apesar de ser
filha de imigrantes cubanos, Vivi não foi capaz de
aprender totalmente o espanhol, mas com certeza ela
internalizou de forma sólida alguns palavrões.

“Estou certa de que é muito importante, mas estou


fora. E — eu sei que você não irá dar ouvidos, mas,
acredite em mim, a DYAD não é um modelo a se seguir.”

“Espere!” Disse Sturgis. Vivi ouviu passos e


resmungou silenciosamente enquanto essa fascinante
conversa estava prestes a deixar a sala. “Pense sobre o
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assunto! É uma oportunidade incrível para você! Ou você
quer ser uma simples professora para sempre?”

“Há coisas piores.” Uma pausa elegante. “E eu


suspeito que você possa ter algumas delas crescendo neste
laboratório.” A porta se fechou.

Vivi ainda não havia descoberto nada sobre a DYAD,


mas aquela última frase chamou sua atenção. Aquela
mulher não era a pesquisadora comum que aparentava ser
em seu perfil. Ela claramente não sabia o que se passava
no IPGT, mas se ela podia fazer um palpite educado, então
talvez fosse interessante investigá-la. Com um fraco
julgamento pelo qual ela era (por alguns grupos limitados)
considerada famosa, Vivi se levantou e correu para as
escadas. Ela desceu aos pulos três lances de escada, então
atravessou a rua, diminuindo sua velocidade enquanto
enrolava um lenço ao redor da parte inferior de seu rosto.
A mulher abriu as portas de vidro da entrada do IPGT e
se retirou do lugar. Vivi passou silenciosamente por trás
dela, olhando rapidamente para conseguir uma
visualização da aparência de Niehaus. O que ela viu a
chocou tanto que ela tropeçou, trombando com o ombro da
moça. Incapaz de sussurrar um pedido de desculpas,
andou mais rápido, sua mente girando com confusão.
Niehaus a chamou, mas Vivi continuou andando. Virou ao
fim da rua e então, assim que estava fora da linha de visão,
parou, respirando com dificuldade.

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Niehaus era exatamente da altura de Vivi,
provavelmente cinco quilos a mais, com óculos e cabelos
escuros formando dreads. Ela não se parecia com ninguém
da lista de observação, mas a pele de Vivi formigava.
Olhar para seu rosto havia sido como se olhar em um
espelho.

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Cosima olhava para a moça que esbarrara nela. “Ei!”
Ela gritou, mas a moça a ignorou, e a raiva de Cosima
rapidamente se desfez enquanto ela apalpava seus bolsos
para ter certeza de que não havia sido roubada. Ela tinha
problemas maiores do que grosserias triviais. Droga! O
pulso de Cosima ainda estava acelerado, químicos de luta
ou fuga ainda correndo em suas veias, junto com
desapontamento. Ela esperara ansiosamente por essa
entrevista, realmente esperançosa de que seria a deixa
para a ciência de ponta que ela tanto desejava. E em vez
disso...

Ainda sentindo seus bolsos, Cosima encontrou um


baseado perdido — ela sentiu seu cheiro —,
provavelmente do tipo Paladin Brew. Era algo, pelo
menos. Ela o acendeu e inalou a fumaça enquanto
caminhava para onde estacionara sua bicicleta, tentando
se acalmar. Como ele poderia saber sobre DYAD? Ela
nunca havia colocado informações em seu currículo, nunca
havia tornado público seu envolvimento através de sua já
escassa presença escassa em mídias sociais. Delphine
havia admitido, claro — seu envolvimento havia sido

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muito público para se negar —, mas ela manteve as coisas
baixas. E Cosima nunca mencionava nada em lugar
algum.

Ela inalou a fumaça, pensativamente. Sturgis


pareceu pensar que seguir os passos da DYAD fosse uma
coisa boa. E — Cosima sentiu uma faísca da antiga
animação — claramente havia muita ciência ainda a ser
feita. Talvez... mas então ela se lembrou de como ele falava
sobre isso. Cosima não sabia o que era mais assustador: a
ideia de que outras nações poderiam estar usando
tecnologia genética para o mal ou o fato de que o Canadá
tinha um projeto secreto estudando a mesma tecnologia.

Não. Ela evitava a parte realmente assustadora — de


que eles tentavam torná-la parte disso.

Se eles sabiam sobre a DYAD, sobre o que mais


poderiam saber?

Nada. Não havia motivo para pensar que sabiam


mais do que isso. Talvez houvesse um antigo arquivo de
algum funcionário da DYAD online, ou—

Cosima deu um pulo quando seu celular tocou. Seu


celular de clone.

“Ei.” Disse Cosima, dando outro profundo trago em


seu baseado enquanto tentava se recompor. “Como vai?”

“Ei.” Sarah soava, como sempre, exasperada e com


pressa. “Kira está a caminho da cidade para te ver.”
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“O quê?” Qualquer vestígio de calma que a maconha
trouxera evaporou. “Nós estamos com a Charlotte hoje à
noite, realmente não é o melhor momento...”

“Eu não posso lidar com ela agora, Cos. Ela briga
comigo por tudo. Ela queria ir para a cidade, de qualquer
jeito, e—”

“Para a cidade? Onde você está?”

O tom de Sarah mudou. “Cal e eu estamos tentando


consertar as coisas de novo...”

Cosima quase riu. “Ah, entendo porque Kira quer sair


daí. Mas ela não pode ficar com Felix ou Alison?”

Sarah suspirou. “Os pais do Colin estão de visita,


então Felix está fora e a casa da Alison é tão difícil de
chegar. Kira odeia Bailey Downs. Então tem que ser você.
Vocês têm aquele belo lugar com o porão—”

“Mas Charlotte já está lá...”

“É importante, Cos. E é só por alguns dias.”

Cosima hesitou e, como sempre, Sarah sabia que


havia ganhado.

“Valeu, Cos, te devo uma.”

“Escute, Sarah, algo aconteceu—” Cosima começou a


dizer de forma hesitante, mas a ligação já havia sido
desligada.
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Com algo entre um rosnado e um suspiro, Cosima
apagou o baseado em seu sapato e terminou de andar até
sua bicicleta.

Cosima travou a bicicleta com sua digital e se


apressou a subir os degraus para entrar na casa vitoriana
que ela e Delphine estavam reformando. As luzes estavam
acesas no porão, então Charlotte já devia estar lá. A clone
mais nova vivia com seu pai adotivo, Art. Charlotte o
adorava e Cosima pensava que o relacionamento dos dois
fora bom para ele e o resto de sua família, mas Charlotte
sempre buscava saciar seu interesse pela ciência com ela
e Delphine. Este laço aumentara quando Charlotte
entrara na faculdade um ano mais cedo e, quando ela
tinha aulas à noite ou um problema muito difícil, ela
passava a noite com elas. Cosima havia passado duas
horas ajudando Charlotte a estudar para sua prova de
química orgânica na noite anterior e sabia que devia
descer e perguntar como havia sido, mas, neste momento,
ela precisava falar com sua esposa.

22
Ela encontrou Delphine na cozinha, dando os toques
finais ao que parecia ser alguma versão francesa de
ensopado de carne.

“Está cheirando bem.” Disse Cosima, fungando


enquanto entrava na cozinha. Na verdade, seu estômago
estava embrulhado demais com a ansiedade para que
qualquer coisa parecesse apetitosa, mas, agora que a
reforma na cozinha havia terminado, Delphine se
esforçava para tirá-las do hábito de Uber Eats que haviam
desenvolvido no primeiro estágio da mudança e Cosima
era totalmente a favor disto.

“Você acha?” Delphine perguntou, sorrindo para


Cosima do jeito que, mesmo após seis anos de casamento,
acelerava seu coração. “Como foi a entrevista?”

Cosima respirou de forma trêmula. “Acho que


podemos assumir que não vou conseguir a vaga.”

“Ah, não, sinto muito, chérie.” Delphine abaixou a


colher de pau e se virou para sua esposa. “Não foi bem?”
Ela passou para Cosima uma taça de vinho, ao mesmo
tempo em que envolvia suas bochechas e a puxava para
um beijo rápido.

“Ah, eles ofereceram a vaga para mim.” Cosima disse


ao tomar um gole do vinho. “Eu os mandei se foder.”

Delphine piscou para ela. “O que... O que aconteceu?


IPGT é um instituto muito respeitado... espere, o Dr.
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Sturgis te fez algum tipo de sugestão inapropriada? Eu
ouvi rumores...”

“Ha!” Cosima soltou uma risada de alívio. “Não. Bom,


talvez, mas não do tipo que você está pensando.” Ela
respirou fundo. “Eles estão aprontando alguma coisa lá.
Ele disse...”

Delphine esperou, então a disse para continuar


quando ela parou.

Cosima ainda hesitava. “Podemos falar sobre isso lá


fora?”

“Claro, só me deixe terminar...” Enquanto Delphine


mexia no fogão, Cosima permitiu que seus olhos
rondassem a cozinha. Este havia sido o primeiro cômodo
que elas reformaram quando iniciaram a mudança para a
originalmente dilapidada casa e ainda era o cômodo que
mais a fazia se sentir em casa.

Era mais quente do que as salas ainda em reforma.


Os pequenos detalhes tirados das caixas assim que a
cozinha ficara pronta lembravam Cosima das viagens
compartilhadas com Delphine, quando trabalhavam para
vacinar as clones pelo mundo afora: uma prateleira de
temperos do Brasil; um vaso suspenso do Japão, agora com
um único crisântemo crescendo em seu interior; os
descansos de pano que Delphine havia trazido de sua casa
em Paris. Na parede da mesa, estava sua foto favorita de
seu casamento. Estavam ambas rindo —a foto fora tirada
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durante o discurso de Felix— mas Cosima estava
ligeiramente fora de foco, atraindo a atenção para
Delphine, forte e brilhante em sua beleza.

A foto despertou um alerta na mente de Cosima, um


que se tornava mais alto enquanto seus olhos desciam
para a mesa, onde um cavalete de madeira que haviam
trazido de Québec estava adornado de... flores num vaso
e... velas?

Ah, droga.

“Delphine! É nosso aniversário de casamento!”

“Isso mesmo.” Concordou Delphine, olhando sobre os


ombros com um sorriso enquanto tirava seu avental.

Aquele olhar sobre os ombros sempre matava


Cosima.

“E eu cheguei atrasada e agora está acontecendo toda


esta merda...” Delphine ainda sorria e Cosima parou.

“Está tudo bem, chérie. O jantar pode esperar. Venha


e me conte o que aconteceu.”

O mesmo olhar por sobre os ombros de novo. Cosima


seguiu sua esposa através da porta lateral para a varanda
de vidro, que até agora havia sido o maior projeto na
reforma da casa. Nessa época do ano o tempo estava frio,
mas ainda não insuportavelmente frio, e o brilho
esverdeado das luzes da rua passando pelo vidro tinha um
25
efeito calmante. Ela ligou o interruptor do filtro de ar
interno e trocou sua taça pelo bong em cima da mesa. Ele
já estava carregado com Wookie, seu tipo preferido de
dentre todas as últimas linhagens de maconha criadas
com manipulação genética. Ela o acendeu e inspirou
fundo, enquanto Delphine se ajeitava na rede de balanço.

“Então, me diga.” Delphine começou. “O que ele disse


que te chateou tanto?”

Cosima expirou a fumaça devagar. Ela não queria


estar chateada, não queria ser a que pirava o tempo todo
e esquecia a porra do aniversário enquanto Delphine era
sempre calma, em controle e cozinhando. “Ele sabia que
eu trabalhei na DYAD.” A frase soou, ela pensou enquanto
aprovava, bem casual, quase como se ela mesma não
pensasse que era grande coisa.

Delphine franziu a testa. “Como ele poderia saber?”


Ela pausou, pensando. “Nós fomos tão cuidadosas.”

Elas foram mesmo. Parte do porquê Cosima estava


presa a esse trabalho sem futuro que ela odiava era pois
ela havia tentado apagar tudo que poderia ligá-la, de
alguma forma, à DYAD, neoevolução, Brightborn ou
clones. Ela não podia contar a ninguém sobre as vacinas
que ela criara ou sobre toda a ciência maluca em que ela e
Delphine haviam trabalhado juntas, caso isso a ligasse a
clones. Ao fato de que ela era um clone.

26
“Diga-me exatamente o que ele disse.” Disse
Delphine, balançando levemente na cadeira.

“Primeiro, ele me perguntou porque a DYAD não


estava em meu currículo — Como ele sabe sobre isso? —
E então ele falou algo sobre ‘a tecnologia em que a DYAD
trabalhava, mas uma década depois’. Delphine, não é só o
nome DYAD! Ele sabe em que eles trabalhavam!” A
maconha não parecia ter efeito e ela começava a entrar em
pânico de novo.

“A DYAD trabalhava em diversas tecnologias


genéticas, algumas das quais eles tornavam bem
públicas.” Disse Delphine, acalmando-a. Ela estremeceu
de repente e Cosima percebeu que ela vestia só um vestido
fino.

“Você deve estar congelando!” Cosima tirou seu


casaco e o apoiou na rede perto a ela, puxando-o sobre as
duas. “Hummm, agora está melhor.” Elas balançaram em
silêncio por um momento.

“Eu fico pensando...” Disse Cosima, finalmente. “E se


eles tivessem alguém que trabalhou na DYAD? Talvez
alguém que contasse segredos em troca de imunidade...”

“Mas se algo assim aconteceu...” Disse Delphine,


virando gentilmente o rosto de Cosima para ela. “Nós já
teríamos descoberto.”

27
“Talvez.” Cosima balançou a cabeça. “Ou talvez eles
estejam esperando o momento certo de agir ou...”

Delphine envolveu a esposa em seus braços. “Cosima.


Vai ficar tudo bem.”

Cosima se aninhou em seus braços, tentando se


sentir segura. “Não podemos voltar ao que era antes.
Fugindo, se escondendo, sempre com medo...”

“Escute.” Disse Delphine firmemente, soltando-a de


forma a olhar Cosima nos olhos. “Eu tenho uma reunião
com aquele grupo BioThreat amanhã...”

Cosima apertou o nariz, se afastando de seus braços.


“Que grupo?” Oficialmente, Delphine era professora
titular na Universidade de Toronto, mas ela era conhecida
por ser uma expert em Ética Genética. Cosima podia
afirmar que ela passara ao menos metade de suas horas
de trabalho em comitês, grupos de trabalho, conselhos
editoriais de jornais e outras armadilhas para estrelas
acadêmicas.

“O.. qu’est-ce que c’est? Força tarefa. Sabe, a de


segurança? Eles me convidaram para que pudessem
garantir que tinham uma cientista de ética envolvida?
Posso lhes perguntar, ver se alguém sabe no que o IPGT
trabalhava. Okay?”

Claro que ela participa de uma força tarefa do


governo. Cosima afastou a pontada de inveja. Trabalhos
28
interessantes como esse pareciam cair nos colos de
Delphine. Ela estava feliz pela esposa, mas também era
difícil. Elas trabalharam juntas desenvolvendo a vacina
das clones e Cosima sabia, na maior parte do tempo, que
ela era tão boa cientista quanto Delphine era. Mas com o
tempo que ficara afastada de seu diploma para
implementar a vacinação e a necessidade de esconder cada
camada de conexão com a DYAD, ela nunca conseguiria
ser tão reconhecida.

“OK, claro, isso talvez ajude.” Cosima acenou,


levemente esperançosa. Delphine sempre pensava em
soluções práticas, passo a passo. “Mas claro que, caso haja
um projeto secreto, Sturgis irá garantir que continue...
você sabe, secreto.”

“Você sabe algo mais sobre o que é esse projeto?”


Delphine brincava com os cabelos de Cosima ao balançar
a rede.

“Ele disse que era em resposta a uma ameaça. Disse


algo sobre como coisas que poderiam ajudar pessoas
poderiam também ser usadas para machucá-las.” Cosima
bufou. “Acho que ele faltou à introdução das aulas de ética
científica, se ele só está descobrindo isso agora.” Cosima
pensou no resto da conversa com ele e a graça passou. “Ele
disse ‘imagine o que outros governos podem fazer com a
tecnologia.’” Cosima pegou novamente o bong e o aspirou,
então tirou os óculos e esfregou seus olhos. “Eu realmente

29
pensei que trabalhar para pesquisa financiada pelo
governo seria uma boa mudança. Que talvez eles
tentassem mesmo usar a ciência para algo bom. Mas é só
a mesma merda.” Mesmo com sua miopia, ela conseguia
enxergar um sorriso irônico no rosto de Delphine.

“Mais oui, ma chérie.” Ela respondeu calmamente.


“Ils sont tous comme ça.”

“Tão cínica.” Cosima provocou, virando sua cabeça e


sorrindo para Delphine. “Vamos, eles não podem todos ser
assim.”

“Tão esperançosa.” Brincou de volta Delphine, se


abaixando para beijar Cosima.

“Hum...” Disse Cosima. “Você não acha que


deveríamos fazer uma pausa para o, ah, jantar?”

“Jantar?” Delphine murmurou de algum ponto do


pescoço de Cosima.

“Sabe, aquele que você estava cozinhando?” Cosima


deixou escapar uma risada decadente enquanto Delphine
despertava arrepios por suas costas, mas ela ainda
hesitava. “Charlotte pode subir aqui a qualquer
momento.”

“E o quê? Ela vai ficar chocada?” Delphine também


riu baixo. “Além disso, ela não vai. Ela sabe que é nosso
aniversário.”

30
“Nesse caso...” Disse Cosima, virando-se para
assumir o controle.

“O bolo!” Delphine se pôs rapidamente de pé,


balançando a rede, e correu para a cozinha.

Cosima levantou-se de forma mais devagar, passando


a mão para ajeitar seus dreads e abaixando sua camisa.
Agora que Delphine havia citado, ela sentia um fraco
cheiro de queimado e, ao chegar na cozinha, Delphine
tirava do forno um bolo levemente chamuscado.

“Está tudo bem.” Disse Cosima, tentando não rir.


“Passe bastante cobertura e ninguém vai ficar sabendo.”

“Eu queria que ficasse bonito!” Delphine disse, então


se recompôs. “E se a gente cortasse as partes queimadas?”

“Pode ser.” Concordou Cosima, finalmente deixando


escapar uma risada. “Eu te amo.”

“Eu também te amo.” Disse Delphine, seu sorriso


surgindo de novo. Ela se virou e usou uma colher para
provar o ensopado, então ofereceu um pouco a Cosima.
“Está um pouco frio, vou esquentar de novo.”

“Humm...” Disse Cosima. “Está, tipo, muito bom.” Ela


pensou se deveria se atrever a dizer que um pouco mais de
alho seria bom. Delphine podia ser bem sensível com suas
receitas. Ela se lembrou de que havia deixado sua taça na
varanda e, ao invés de buscá-la, pegou uma nova no

31
armário sobre a pia e se serviu do vinho que estava ali.
“Essa tecnologia da qual ele falava...”

Delphine se virou exasperada, mas se distraiu com o


vinho. “Esse é o que eu estava usando para cozinhar,
chérie! Aqui, beba este.”

“Estou buscando eficiência, não qualidade.” Disse


Cosima, mas aceitou a substituição e bebeu um gole. Como
de praxe — pelo menos quando se tratava de vinhos —
Delphine estava certa. Era diferente. Ela suspirou. “Eu
deveria ter fingido para descobrir o que eles estão
tramando lá.”

“Algo terrível, tenho certeza.” Disse Delphine,


fazendo uma careta enquanto tomava um gole da taça.
“Você fez certo em não se envolver.”

“Não sei...” Mesmo que agora a ideia de trabalhar com


Sturgis a arrepiasse, Cosima não sabia se gostava da ideia
de não se envolver. “Se eles estão tramando algo terrível,
talvez eu devesse me envolver. Ignorar isso não significa
que não vá acontecer.” Lembrando-se mais da entrevista,
agora que estava mais calma, ela quase não percebeu o
olhar de advertência de Delphine. “Ele mencionou meu
trabalho com o mapeamento de genomas e vacinas à base
de genes! Delphine, eu não publiquei este trabalho ainda.
Como ele poderia saber?”

32
“Eu não ligo!” Resmungou Delphine, levantando a
colher de pau. “Eu não o quero mapeando seu genoma! Eu
não o quero nem perto do seu genoma!”

Cosima não conseguiu segurar um sorriso. Ela se


aproximou. “Você é bem protetora com meu genoma.”

Delphine tentou manter a compostura, mas desistiu.


“Eu sou.” Sussurrou. “Eu gosto muito do seu genoma.”
Seus lábios se encontraram. Cosima se inclinou para beijá-
la, sentindo a raiva e a frustração se dissiparem. Ao
terminar, ela apoiou sua cabeça sobre o ombro de
Delphine. “Falando do seu genoma...” Disse Delphine,
calmamente.

Cosima fechou os olhos. Ela sabia do que se tratava.

“Você pensou mais nisso?” Perguntou Delphine.

Cosima se afastou. “Delphine, toda vez que penso


sobre ter um bebê, nosso bebê, toda vez que penso sobre o
que teríamos que fazer, eu me lembro...”

“O quê?” Perguntou gentilmente Delphine, quando a


pausa começou a ficar muito longa.

“Eu me lembro de quando estávamos no loft do Felix


e decodificamos aquele pedaço de DNA que dizia... que
dizia...”

33
“Que dizia que você era patenteada.” Delphine apoiou
sua mão sobre a de Cosima. “Eu me lembro. Mas chérie,
isto não se parece em nada com o que fizeram com você...”

“É exatamente como o que fizeram comigo!” Rugiu


Cosima. “Criar uma pessoa—” Ela parou.

“É uma tecnologia comum.” Disse Delphine, com a


irritação de alguém dizendo algo óbvio e não pela primeira
vez. “É feito o tempo todo e você não—”

“Não é comum.” Disse Cosima, puxando um de seus


dreads, frustada. “Criar um embrião viável a partir do
DNA de dois óvulos é totalmente experimental!”

“As técnicas que compõe o processo são comuns.”


Delphine rebateu. Ela falava mais rápido agora, seu
sotaque se pronunciando mais com sua frustração. “Não
tem nada de perigoso. E você não permitiria que ninguém
dissesse que alguém com essa origem seja menos
humano!”

Cosima sorriu involuntariamente. “Origem


geralmente é uma palavra usada para super heróis.” Ela
disse.

“E você acha que nosso filho seria algo menos do que


um super herói?”

Cosima tentou sorrir novamente, mas aquela frase,


nosso filho, a aterrorizava. “Eu sei que você quer isto.” Ela
sussurrou. “Mas eu ainda não tenho certeza.”
34
“Tudo bem.” Disse Delphine, virando-se para pôr a
mesa. “Você precisa de tempo.”

Cosima abriu e fechou sua boca. Elas faziam 7 anos


casadas hoje, mas ela não sabia se mais tempo faria
qualquer diferença sobre como se sentia.

35
Charlotte Bowles trabalhava em um artigo, então ela
não podia evitar ouvir Cosima e Delphine no piso superior,
seus passos e suas vozes abafadas traçando um caminho
de discussões e reconciliações. Não parecia que o jantar de
aniversário ia como planejado. Charlotte ficaria ali
embaixo hoje.

Ela seguia uma trilha complicada de pesquisas na


internet, quando seu telefone tocou.

“Ei, Kira.” Disse.

“Charlotte!” Kira parecia irritada com algo. No posto


compartilhado como as duas ‘isoladas’ no círculo fechado
de sestras clones — Charlotte por ser tão mais nova, Kira
por ser uma filha —, Charlotte assumiu o papel de filha
equilibrada, de boas notas, comportada. Kira era brilhante
também, mas tinha dificuldades na escola, culminando em
um incidente na última primavera que a levou a se afastar
um pouco este ano. E ela podia ser uma montanha russa
de emoções. “Estou fugindo de casa!”

Tipo assim.

“O que aconteceu?” Perguntou Charlotte, mais


curiosa do que alarmada. Ela não imaginava como seria
querer fugir de casa, mas a situação de Kira era diferente.

36
“Ah, só minha mãe.” Kira respondeu, com desgosto.
“Eu não aguento ficar aqui com ela o tempo todo.”

“Achei que você estava tentando voltar pra escola?”

“Eu estava. Mas fomos falar com o Diretor Fraser e


ele me chamou de inapropriada—”

Charlotte bufou.

“Eu sei, certo? Mas isso irritou a Mãe e ela disse que
era muito mais inapropriado que ele dormisse com a Sra.
Evans, professora de ciências...”

“O quê?” Charlotte engasgou.

“Eu sei que ela queria me proteger, mas agora não


tem mais jeito de eu voltar. Pelo menos não para essa
escola. Enquanto isso, ela e meu pai estão tentando reatar
de novo, então você imagina como vai ser.”

Charlotte preferia não imaginar.

“Então agora estou presa em casa.” Kira ainda dizia.


“E ela é tão protetora, eu não posso fazer nada! Ela não
me deixa trabalhar, quer saber sobre todos meus amigos,
não posso colocar fotos em redes sociais. Não posso nem
sair pra jogar hóquei!”

“Kira, você odeia hóquei.”

37
“Não é esse o ponto! O ponto é que não posso fazer
nada porque alguém talvez pudesse descobrir nossos
preciosos segredos ou tentar roubar meu DNA.”

“Bom...” Disse Charlotte. “Poderiam mesmo.”

“Claro que poderiam.” Kira concordou. “Mas ficar


constantemente imaginando isso significa que não posso
viver minha vida! Eu simplesmente não suporto a Mãe
agora.”

Charlotte, que havia perdido sua mãe quando tinha


8 anos, não disse nada.

Kira suspirou. Charlotte não precisava dizer nada.


Elas já haviam tido conversas assim antes. “Eu sei, eu sei,
ela me ama e faria qualquer coisa por mim e eu deveria
ser grata por tê-la. Eu sou grata por tê-la. Mas às vezes
preciso de uma pausa.”

“E para onde você vai?” Perguntou Charlotte, seus


dedos ainda navegando de forma ausente pelas páginas de
pesquisa.

“Eu consegui esse estágio super maneiro.” Kira


respondeu, sua animação borbulhando em seu tom. “Eu
farei algo que literalmente faz diferença ao invés de me
esconder em casa enquanto Mãe tenta me ensinar álgebra
que nem mesmo ela entende!”

Charlotte inspirou ar para perguntar como


exatamente ela faria diferença, mas Kira continuou sem
38
parar. “Mas você não pode contar para minha mãe! Ela
odiaria essa ideia, tipo, odiaria mesmo!”

Claro que isso, pensou Charlotte, fazia parte do


charme da ideia. Ao fundo da ligação, ela ouviu o que
parecia um anúncio público. “Você está em um ponto de
ônibus?”

Kira riu. “Olha para você, a pequena detetive! Art


ficaria orgulhoso. Sim, estou no ponto, a caminho da
cidade. Então, você pode me dar cobertura?”

“Uh, o quê?” Charlotte deveria saber que acabaria


sendo envolvida nisso.

“Eu deveria estar com a tia Cos e tia Delphine para


me afastar um pouco, mas eu consegui esse estágio e é
perfeito, eu só preciso de um tempo sozinha. Só fale para
elas que eu vou ficar com uns amigos e peça para não
contarem para minha mãe. Por favor? Ela nunca me
deixaria fazer isso, mas é muito importante!”

“Eu não tinha percebido que você estava fugindo da


minha casa.” Charlotte disse secamente.

“Assim ela não vai se preocupar tanto.” Disse Kira.

“Humm.” Disse Charlotte. “E quem são esses—”


Então ela se interrompeu, quase gaguejou, enquanto
voltava à imagem que acabara de ver na tela. Ela a
encontrou e clicou, então rastreou a página da qual ela

39
vinha. “Kira? Tenho que ir. Me ligue mais tarde, OK? E
cuidado!”

Charlotte agarrou seu notebook e correu degraus


acima o mais rápido que sua prótese articulada — ela
preferia o termo exoesqueleto — permitia, o que era até
bem rápido. Delphine usava seus contatos no campo
biomédico para conseguir as próteses de última geração
assim que eram lançadas.

Ultimamente, Charlotte andava pensando sobre


como os exoesqueletos melhorados a faziam cada vez mais
se parecer e andar como todo mundo. Ela se sentia triste
que uma parte tão importante de sua identidade se
tornava gradualmente mais difícil para as pessoas
enxergarem. Ela entrara para o clube de políticas e
ativismo para desabilitados na universidade, onde muitas
das discussões eram sobre o que Charlotte pensava sobre
o problema óculos vs lentes de contato. Havia também
discussões interessantes quanto a natureza vs criação —
deficiências resultantes de problemas genéticos contra
àquelas adquiridas em acidentes —, mas Charlotte, como
uma clone de 16 anos, mais nova do que centenas de suas
cópias idênticas, tinha uma visão não muito comum sobre
esta questão, que ela preferia guardar para si mesma.

Ela entrou na cozinha e parou de repente. Cosima


estava de um lado, olhando para a rua escura fora da
janela, enquanto Delphine colocava a mesa, o ar carregado
de tensão. “Estou interrompendo algo?”
40
“Não, claro que não.” Garantiu Delphine. “Na
verdade, íamos te chamar agora para o jantar.”

“Bom...” Disse Charlotte, colocando o notebook entre


elas na mesa. “Porque vocês precisam ver isso agora.”

Cosima se inclinou para ver o notebook de Charlotte.


A tela mostrava a página DoeUmaMoeda de uma mulher
que sofria de uma doença não diagnosticada em Boston.

“Charlotte.” Disse Delphine. “Eu entendo porque isso


te chateia, mas não é algo incomum para pessoas que
moram nos EUA.”

“Eu entendo sobre saúde pública nos EUA, Tante


Delphine.” Disse Charlotte, se esforçando para não revirar
os olhos. “Eu estou escrevendo um trabalho sobre
financiamento coletivo para custos de saúde para minha
aula de sociedade e medicina. Foi assim que encontrei isto.
Olhe para a foto!”

Cosima focou novamente na imagem na parte


superior da tela. Era uma foto clara, sombras caindo sobre
a face sorridente. Mas o arrepio de reconhecimento foi
instantâneo: a mulher era uma clone. Uma clone
desconhecida que não estava na lista LEDA de Rachel.
41
E ela estava doente.

Vivi já vestia roupas escuras. Ela puxou o capuz preto


sobre seus cachos vermelhos e atravessou a rua, indo para
a porta lateral do IPGT. Aquela deveria ser uma saída de
emergência, mas o alarme estava desativado;
provavelmente por ser a porta mais próxima do
estacionamento de funcionários. Ela já havia aberto a
porta da última vez, então sabia o que esperar. Já a
segurança interna que isolava a área de pesquisa sigilosa
era um pouco mais complicada e Vivi travara uma vez
enquanto andava no laboratório, ao avistar uma face
borrada na luz baixa, somente para perceber que era um
reflexo seu em um painel de aço de um dos refrigeradores.
Depois disso, ela havia se escondido ao lado da mesa de
Sturgis por uns bons vinte e três minutos mesmo após a
saída do último funcionário do IPGT (sim, ela havia
contado).

42
O escritório de Sturgis projetava uma estranha
combinação de burocrata e cientista. Claramente, ele
trabalhava mais à mesa, onde um computador estava
cercado de papéis e arquivos. Mas as prateleiras na parede
estavam preenchidas de vidrarias com fluidos, modelos
helicoidais, pequenos ossos e béqueres com líquidos
brilhantes e coloridos que poderiam ser ou decorações ou
experimentos em andamento. Havia o que parecia ser um
pequeno, porém funcional laboratório em um dos cantos,
com um microscópio eletrônico, várias placas de Petri e
pipetas e até um chuveiro de segurança. A coisa toda
lembrava Vivi de que talvez ela estivesse lidando com algo
bem fora de sua liga, então ela tomou a incomum
precaução de calçar um par de luvas antes de folhear os

arquivos sob a luz da pequena lanterna que ficava sobre


sua orelha. Seu hard drive + autohacker, com formato de
brinco para fácil e rápido transporte, atacava
sistematicamente o computador dele via USB, copiando os
arquivos à medida que os decodificava.

Os dedos de Vivi pararam, apesar de parecer se


passar alguns segundos até que seu cérebro captasse o que
chamara sua atenção. Ela voltou um arquivo e viu o título
Agente de Direcionamento Genético. Era provavelmente a
palavra agente que chamara sua atenção, mas enquanto
Vivi folheava o documento, mais frases se destacavam:
‘direcionamento de genoma de atalho’, ‘manipulação viral’,
‘sistema de entrega de refino’. Vivi sabia apenas o básico
43
sobre genética, mas ela conhecia muitos sistemas de
armas e ofuscantes descrições dos mesmos. Este — a ideia
de usar genética para direcionar algum tipo de bio-arma
— era particularmente aterrorizante. A possibilidade de
ter sido um ataque intencional parecia cada vez mais
clara. Era assim como eles tinham atacado as famílias de
agentes de forma tão precisa? O que exatamente a doença
causara a eles? Vivi tentou imaginar como seria se seu
DNA... mudasse. Ela olhou à sua volta novamente,
notando um fragmento de osso que parecia uma mão com
garras. Com um arrepio, ela olhou de volta para o título
do documento e notou: TAG1. Era sobre isto que Sturgis
falara no orelhão. Ela puxou o arquivo e o abriu,
registrando fotos de cada página.

44
Enquanto Vivi examinava as descrições de
experimentos meticulosos e notas sobre a depuração de
código para algum tipo de equipamento especializado
emmanipulação biológica, ela pensava no rosto da mulher
com que cruzara no IPGT. Quem era ela? Ela não parecia
uma agente, mas, ainda assim, havia algo de estranho
sobre seu encontro com Sturgis, repleto de insinuações e
duplos sentidos. Vivi tinha uma regra sobre não obstruir
sua escuta durante uma operação, mas ela colocou um
fone em um de seus ouvidos mesmo assim, dando replay
na conversa enquanto continuava examinando os
arquivos. Ela poderia jurar que Niehaus e Sturgis não
tramavam algo juntos. Niehaus agira como se estivesse
em choque, talvez assustada com o que fosse que Sturgis
tentara sugerir. O que era DYAD? Sem querer, ela se
lembrou do relance daquele rosto: seus olhos como os de
Vivi, caso Vivi usasse aquele tanto de rímel; o nariz como
o de Vivi, se ela não o tivesse quebrado aquela vez em
Bukhara; a mesma boca, a mesma orelha. Se Vivi soubesse
que uma pessoa tão parecida com ela tinha acesso ao
IPGT, ela poderia ter apenas a personificado.

Vivi teve uma súbita visão, uma memória que ela


tentara enterrar por anos. Ela estava numa sala de estar
que não era dela, fingindo ser alguém que não era, alguém
que se parecia exatamente como ela. Elas haviam trocado
suas roupas e penteados e ido à casa uma da outra. Seu
cabelo caía em desajeitadas tranças que a outra garota
havia feito nela. Ela lembrava-se da emoção e do medo de

45
que alguém descobrisse. Era o tipo de emoção do qual ela
estava atrás desde então.

Vivi balançou sua cabeça. Não era uma memória de


verdade, era apenas uma das histórias que ela contara a
si mesma quando era uma criança enquanto brincava de
‘Finja ser Vivi’, uma brincadeira com amigos imaginários
que eram exatamente como ela. Seus pais eventualmente
ficaram preocupados com o quão agarrada ela era àquela
fantasia, então eles arranjaram sessões não oficiais com
um psicólogo — não oficiais pois não queriam estragar
suas chances com a agência. Quando ela estava no ensino
médio, determinada a entrar em operações clandestinas
assim que seus pais permitissem, Vivi ficara
desesperadamente com medo de que a memória fosse
indicação de algum distúrbio mental que a impediria de se
tornar uma agente. Mais recentemente, ela pensava nisso
com uma pontada de vergonha: parecia um claro sinal de
narcisismo. Agora ela se lembrava vividamente da
sensação de ver o próprio rosto sorrindo de volta para ela.

A porta se abriu do lado de fora do escritório. Vivi


estava achatada na parede ao lado da porta antes que as
luzes se acendessem na antessala, lançando uma fraca
iluminação através do painel de vidro. Ela mal respirava.
Como pudera ter se distraído tanto?

A maçaneta da porta girou e Sturgis entrou


rapidamente, sem hesitação ou qualquer suspeita de que
alguém pudesse estar ali, sem carregar nenhuma caixinha
contendo germes mortais. Vivi soltou a respiração, apenas
46
para descobrir um tipo diferente de pânico. Ela não podia
ser pega — e especialmente não no maldito Canadá!
Mesmo que ela não se metesse em encrenca, ela morreria
de vergonha. E se ela se metesse em encrenca, ela perderia
toda sua vida, sua identidade... ela calculava as chances
de deslizar e escapar pela porta quando Sturgis, após ver
os arquivos na mesa, se virou.

Ele se assustou, então relaxou. “Dra. Niehaus, o que


você—”

Ele parou. A encarou. Não havia como ele se enganar,


elas não se pareciam tanto assim, mas Vivi sentiu-se
vestindo a personalidade de Niehaus mesmo assim,
porque era o que ela fazia. “Diretor Sturgis! Me desculpe,
eu deveria ter ligado, mas eu estava pensando sobre o que
você disse e queria reconsiderar.”

A boca de Sturgis estava aberta e Vivi percebia que


ele estava à beira de acreditar nela. “Eu tenha essa
totalmente impulsiva reação a pesquisas sigilosas, tipo,
‘fuja!’” Ainda bem que ela havia escutado a conversa
novamente. O sotaque de Niehaus ainda estava fresco em
sua mente, assim como suas palavras. Ela se arriscou.
“Mas você pode entender.”

O rosto de Sturgis floresceu com cumplicidade. “Acho


que faz sentido, sim, depois do que aconteceu com a DYAD.
É exatamente por isso que... eu pensei... que você talvez
pudesse dar uma luz ao... meu atual...”

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Ele foi diminuindo a velocidade das palavras, seu
cérebro captando o que estava acontecendo. Ela tinha que
mantê-lo ocupado. “Então, talvez você possa me dizer
mais?” Vivi sugeriu, dando um passo à frente como que
para se sentar na cadeira em frente à mesa. Ela estava na
crista uma onda de adrenalina. “Estou realmente curiosa
sobre como posso ajudar.” Ela adicionou um elemento de
tímido flerte ao seu sorriso. Tudo que ela sabia sobre
Sturgis, desde seu histórico de trabalho ao seu terno sob
medida e seu caro corte de cabelo, a diziam que ele
morderia uma isca de admiração.

“Bom, eu não posso falar sobre os detalhes agora.” Ele


disse, molhando seus lábios. Ele não havia andado para
trás, de forma que eles estavam a um palmo de distância
agora. “Tem toda a papelada, claro, o termo de sigilo, a
oferta exata...” Tradução: ele não deve contar nada a
ninguém, Vivi pensou. “Mas talvez possamos trocar
algumas informações. Eu posso te dar as linhas gerais.”
Ele se inclinou para a frente. “Se você puder me falar sobre
a—” Então ele parou, subitamente.

Vivi esperou com uma expressão de inocente


expectativa que já a servira bem no passado. “Dr.
Sturgis?”

O olhar dele não vacilou. Vivi não sabia nem se ele ao


menos a escutara. O pânico caiu sobre ela. Ela não podia
se encrencar, não aqui, não agora. Seu trabalho era tudo
em que ela era boa, a única coisa que importava. Ela não
tinha relacionamentos duradouros, ela mal tinha amigos
48
fora da agência, ela nunca ao menos tivera um maldito
hobby. Seu trabalho a permitia ser quem queria ser,
durona e competente, enquanto ajudava a manter sua
nação a salvo. Ela não perderia tudo aquilo por causa
deste imbecil.

“Você não é Cosima Niehaus.” Vivi manteve sua


expressão ligeiramente surpresa enquanto respirava
fundo, se preparando para a violência, mas o que Sturgis
disse em seguida a deixou sem ar. “Você é uma delas, não
é? Meu deus. Meu deus. Você tem que entender, eu não
sabia— eu não tinha percebido —” Ele se afastava dela
agora, tentando chegar atrás de sua mesa.

Vivi tentou puxar algum ar. Do que ele estava


falando? Uma delas?

Sturgis continuou tagarelando. “Eu pensei que eram


apenas— eu não sei, talvez genomas modelados no
computador, eu sei que não é realístico— os marcadores
epigenéticos — acho que vi apenas o que queria enxergar,
eu estava tão desesperado para testar a tecnologia.
Entenda, isso pode ser algo realmente positivo, realmente
importante. Mas Davis me disse—” Vivi o acompanhava
com passos cuidadosos. Sturgis continuou. “Você
realmente se parece com ela. Acho que faz sentido.” Ele
riu de maneira realmente assustadora e Vivi se aproximou
até que pudesse alcançá-lo. “Incrível. Muito incrível.”
Sturgis levantou uma mão como se quisesse tocar seu
cabelo e Vivi o chutou.

49
Ela o acertou fortemente, logo acima de seu joelho.
Ele se curvou com dor, o que deu a ela a chance de o
segurar de forma submissa. O que quer que fosse que
estivesse acontecendo ali, ela tinha que saber. “Do que
você está falando? O quê faz sentido? Quem é Niehaus?”
Ela sibilou seu ouvido.

“Eu não— AI! — eu mal a conheço! Eu não sei nada


sobre aquele programa! Foi há décadas atrás! Você
provavelmente sabe mais do que eu!”

Que infernos ele queria dizer? Ela torceu seu braço


mais forte.

“AAAAAH! Eu juro, eu não sabia! Era— Era pra


ajudar! Eu não estava nem...” Ele choramingou enquanto
respirava. “Eu não estava nem tentando justificar os
meios, sabe, eu não sabia o quão ruim eram os meios! Ele
mentiu para mim e agora o programa inteiro está
comprometido!”

Sua voz estava envolta em horror e a palavra


comprometido abriram um abismo na boca do estômago de
Vivi. Ela se lembrou de que ela deveria perguntá-lo sobre
o ataque, não sobre a misteriosa Dra. Niehaus. “A arma
genética.” Ela sussurrou. “Este projeto TAG. Me fale sobre
isto.”

“Era pra ser uma tecnologia que curaria as pessoas.”


Ele gaguejou. “Eu não confiava neles o suficiente e eu
precisava de uma maneira de testar...”

“Neles?” Vivi rosnou em seu ouvido. “Neles quem?”


50
Mas Sturgis estava até incoerente de tanto terror
agora. “Você é dos EUA, não é? Meu deus. Ouça, poderia
ter sido fatal, eu só— Eu não posso confiar em ninguém
agora! Você e Niehaus, estão trabalhando juntas? Por
favor, acredite em mim, eu não— eu não poderia—”

“O que você fez?” Vivi gritou, o balançando com pura


frustração, mas o braço dele estava suado e, de alguma
forma, ele girou para longe dela, fugindo para o pequeno
laboratório na quina da sala. Vivi mergulhou até ele,
atingindo seu quadril e o prendendo no chão. Ela o tinha
sob controle de novo, mas enquanto eles mergulhavam, ele
conseguiu havia pego algo nas prateleiras. A mão dele a
empurrou, líquido voando em seu rosto e, de repente, Vivi
estava cega e com uma dor cortante, lágrimas correndo
inutilmente de seus olhos. Vivi sentiu Sturgis se afastar e
se jogou para a frente, mãos esticadas. A dor quase a pôs
de joelhos, mas ela encontrou a parede e se apoiou nela,
ciente de que chorava, até que sua mão encontrou o frio
alívio da alavanca do chuveiro de segurança e a puxou.

Ela e a dor que sentia foram imediatamente


encharcados com uma quantidade de água digna de um
pequeno lago caindo do alto. Engasgando e fungando, ela
conseguiu piscar os olhos e abri-los. O mundo estava
desfocado, mas estava lá. Ela não estava cega e o alívio foi
o suficiente para limpar os vestígios de dor. Ainda
ofegando por uma cachoeira de lágrimas e catarro, Vivi
correu para a porta.

51
Ela não podia deixar Sturgis escapar.

52
Cosima andava de um lado para o outro, esquecendo-
se do jantar. “Eu sabia que devíamos ter anunciado tudo
publicamente!” Era o que ela temia por anos e era real. “A
lista de Rachel estava incompleta. Pode haver centenas de
clones por aí, precisando de tratamento e não temos como
encontrá-las!”

“Os riscos...” Começou Delphine, mas Cosima se


virou, interrompendo-a.

“O risco é que pessoas morreram! Nós não as


vacinamos porque não estavam na lista e elas morreram
sem nem saber o porquê, do que estavam morrendo, ou o
fato de que elas eram...” Cosima parou. Apesar de tantas
noites acordada e envolvida em pensamentos, ela nunca
fora capaz de decidir se seria eticamente mais correto
contar às clones ignorantes que elas eram clones ou deixá-
las sem saber.

“Anunciar o projeto de clones em nossos próprios


termos poderia ter sido muito mais fácil...” Charlotte
começou a dizer em seu tom discreto, mas Delphine a
cortou.

“Já discutimos isso, é muito perigoso.” Ela disse, com


afinco. “Pessoas vão reagir com medo e raiva. E além
disso...” Delphine se virou para Cosima. “O que isso fará à
sua carreira?”

“É isso o que os brilhantes e superpremiados


professores de Ética dizem para fazer?” Cosima

53
respondeu, agora furiosa. “Pensar em nossas carreiras
enquanto pessoas morrem?”

“Você não sabe—” Começou Delphine.

“Não, você não sabe!” Cosima gritou. “Você não sabe


o que é descobrir que sua identidade está em xeque e ainda
se sentir extremamente só nesse momento! Se dar conta
de que se alguém algum dia descobrir, é tudo que verão de
você.” Ela avançou para mais perto de Delphine. “Você
acha que é ruim que eu não possa colocar toda minha
experiência no currículo. Que eu não possa conseguir um
trabalho melhor? Eu morro de medo de falar em
congressos. Eu não uso fotos de perfil em lugar algum. Eu
não posso aparecer na TV, como você faz.”

Delphine recuou, sua expressão se tornando fria e


Cosima percebeu que a última frase soara amarga demais.

“Você já pensou...” Ela disse, e Cosima se preparou,


pois era o tom gélido que Delphine usava quando estava
realmente com raiva. “Que talvez você queira que as
pessoas saibam das clones por que combater a DYAD era
mais empolgante do que sua vida é agora?”

“Isso não é—”

“A vida, devo acrescentar...” Delphine falou por cima


dela. “A qual você uma vez me disse que era tudo que
queria?”

“Isso é injusto!” Ferida, Cosima tentou encontrar um


jeito de responder. “Só porque eu odeio esconder minha
54
identidade e o que isso significa para minha carreira não
significa que eu não ame nossa vida e—” Você. “Não. É
sobre as mulheres que estão doentes e eu estou aqui
bebendo Merlot enquanto não faço nada.”

“Mas você fez algo!” Delphine estourou. Ela suspirou


e continuou num tom mais calmo. “Você venceu, Cosima.
Nós vencemos juntas. E ajudamos todas que pudemos
encontrar. Duzentas e quarenta e nove mulheres, Cosima.
Salvamos elas, juntas. E isso aí é Burgundy.”

“Nós devíamos ter ajudado todas.” Disse Cosima, mas


ela já não conseguia gritar. Sua atenção caiu sobre
Charlotte, que estava pressionada contra a parede como
se ela quisesse apenas desaparecer para o porão. “E agora
essa mulher está passando por isso e está sozinha!”
Cosima sentiu seus olhos e nariz vazarem
embaraçosamente e esfregou as costas de sua mão no
rosto.

“Você não pode se culpar.” Delphine continuou. Ela


envolveu o rosto de Cosima. “Eu sei que está sendo uma
época estressante para você. Eu sei que é infeliz no
trabalho.” Cosima balançou a cabeça, olhando para longe.
“Mas você tem de perceber que existem riscos dos dois
lados. Se você tornar tudo público, você não poderá
controlar o que vai acontecer. Essa situação, ela faz as
pessoas terem raiva, ou ambição, ou medo. Eu sei.”
Delphine pousou a mão sobre sua barriga, onde se
encontrava a cicatriz que a lembrava de quando fora
ferida. “Nenhuma de vocês estaria a salvo.” Ela continuou,
55
se virando para Charlotte agora. “A identidade de todas
seriam públicas, querendo ou não.”

“Nós poderíamos pelo menos ter contado a todas as


clones que vacinamos.” Disse Cosima. “Explicado a elas o
que fazíamos... o que elas...” Mas ela não tivera certeza na
época e não tinha agora.

“Isso não teria ajudado essa clone desconhecida,


chérie.” Delphine apontou, gentilmente.

“Quem sabe quantas mais podem ter por aí.” Cosima


não suportava a ideia das mulheres sofrendo, talvez
morrendo, enquanto ela possuía a cura e não tomava
atitude alguma.

“Podemos tentar procurar por meio de


reconhecimento fácil.” Disse Charlotte avidamente. “Eu
posso montar um algoritmo para procurar em redes
sociais.”

“Talvez haja uma maneira de eu usar meus contatos


na área médica.” Disse Delphine. Ela acariciou as costas
de Cosima. “Vai ficar tudo bem. Nós daremos um jeito.
Sempre damos.”

Cosima deu um pequeno sorriso. “Me desculpe se eu


perdi o controle. É só que— é exatamente do que eu tinha
medo.”

“Eu sei, chérie.” Delphine puxou Cosima para outro


abraço.

56
“Ei.” Charlotte disse subitamente, surpresa demais
para esperar as tias se afastarem. “Olhem isto!” Cosima e
Delphine olharam por sobre seus ombros. Cosima focou no
nome. Dana Emmet. “Olhem a idade.” Charlotte incitou.

Cosima franziu a testa. “Vinte oito?” Seis anos mais


nova do que ela, dez anos mais velha que Charlotte. “É
possível que ela não seja LEDA?”

“Não é da neoevolução?” Perguntou Delphine.

O som da geladeira vibrando ressoou no silêncio do


choque.

“Como é possível?” Perguntou Cosima, finalmente.

“Não sei.” Respondeu Delphine. “Com certeza a


DYAD não sabia sobre isso ou então existiriam ao menos
registros...”

“Minha mãe tentou por anos.”

Cosima sentiu seu rosto enrubescer enquanto ambas


se viravam para Charlotte. Ela era tão quieta, tão
comportada, então em casa com Art ou com elas era fácil
se esquecer de sua infância na DYAD com Marion Bowles.

“Ela finalmente conseguiu comigo.” Ela continuou.


“Mas... talvez alguém tenha acertado antes."

Cosima manteve o olhar firme no rosto de Charlotte


para que não o desviasse para onde a garota, sem
perceber, apertava sua perna. “Então o que estão dizendo?

57
Alguém estava replicar o trabalho dos Duncan fora da
DYAD?”

“Talvez...” Charlotte ofereceu, com esperança.


“Exista outra geração. Talvez quem quer que tenha
conseguido, tenha feito alterações e a doença—”

“Merda!” Cosima soltou. “Falando de gerações, Kira


deveria estar aqui agora.”

“Kira está vindo?” Perguntou Delphine.

Cosima balançou as mãos pedindo desculpas. “Sarah


me ligou enquanto eu saía do IPGT, mas com tudo que está
acontecendo, eu esqueci de avisar. Mas ela já deveria ter
chegado.” Cosima puxou seu telefone. “Espero que ela
esteja bem.”

“Uh, na verdade, ela não vem.” Charlotte disse.


Cosima e Delphine se viraram para ela. “Ela me ligou e
disse que ficará na casa de uns amigos.”

“Amigos?” Delphine perguntou.

“Sim, amigos.” Disse Charlotte. Ela sustentava seus


olhares, não o desviando ou fazendo olhinhos de filhote e
de repente Cosima se lembrou de Art. “E ela queria que
vocês não mencionassem isso para a mãe dela.”

Cosima suspirou. “Então estamos dando cobertura


para ela?”

“Está tudo bem.” Disse Charlotte. “Eu fico na casa de


amigos o tempo todo. E Kira realmente precisa passar um
58
tempo longe de...” Ela gesticulou de forma que não se
referisse somente à Sarah, mas a todo o mundo das clones.

“Sarah vai ficar brava se descobrir.” Disse Cosima.


Ela não sabia se queria entrar no meio daquilo. Por outro
lado, ela podia entender Kira. O seu relacionamento foi
ficando difícil com o passar dos anos, Kira pedindo mais
independência e Sarah ficando mais protetora.

“Você não pode contar para ela! Cosima, por favor!”


Charlotte deu um passo à frente. “Sarah vai pirar e só vai
piorar as coisas. Por favor? Kira só está tentando fazer
coisas normais para gente da nossa idade. E ela sabe se
cuidar, eu prometo!”

“Não sei...” O celular de Cosima vibrou contra sua


mão e ela quase o derrubou antes de virá-lo para ver a tela.

“O que é?” Delphine perguntou ao ver Cosima franzir


a testa.

“Um alerta da universidade.” Disse Cosima, com um


arrepio de medo. “Algo está acontecendo.” Delphine e
Charlotte a seguiram enquanto ela acelerava em direção
à sala e ligava a TV, mudando para o canal local. A tela
mostrava uma parede de chamas. Uma chamada no canto
inferior da tela anunciava:

Cientista local, Nathaniel Sturgis, presumido morto.

“O IPGT acabou de explodir.”

59
Episódio 02

Obstinado
em negação

‘O ex-policial Art Bell recebe uma visita


indesejável, Cosima descobre o que
acontecia no IPGT e Vivi mergulha mais
fundo na situação de suas sósias.’
Anteriormente, em Orphan Black: TNC:

A agente da CIA Vivi Valdez descobre algo estranho


em um laboratório de pesquisa genética em Toronto — e
que uma mulher que tentava uma vaga de emprego lá,
Cosima Niehaus, parecia exatamente igual a ela. Horas
depois, o laboratório explode. Charlotte encontra uma
clone em Boston que não deveria existir e Cosima e
Delphine discordam sobre o que fazer. Enquanto isso, Kira
convence Charlotte a mentir sobre onde ela está, para que
ela possa participar de um estágio o qual ela sabe que a
mãe desaprovaria.
O cheiro úmido de fumaça dos destroços do IPGT
lembrava à Sargento Jaysara Priyantha do whisky que o
pai costumava levar em ocasiões especiais. Como ele, ela
nunca fizera do álcool um hábito regular, mas, nessa
manhã fria, enquanto suas mãos enluvadas forçavam a
abertura de uma gaveta de metal retorcido para encontrar
dentro apenas cinzas, uma bebida forte cairia bem.

Ainda bem, pelo menos, que o RCMP1 entrara logo


após a explosão na última noite. Explosões, pela sua
natureza, possuem um jeito especial de espalhar
evidências, mas os policiais conseguiram encontrar
potenciais fragmentos de bomba e até mesmo um pouco de
sangue fresco, bem antes de o céu se abrir e a pesada
chuva da noite pudesse limpar a esperança de encontrar
quaisquer pistas. O sangue provavelmente era do Dr.
Nathaniel Sturgis, Diretor de Pesquisa, a única pessoa
registrada presente dentro da instalação na hora da
explosão. Não era claro se ele fora um alvo intencional.
Nem ele nem seus restos mortais foram encontrados.

Jaysara se levantou e se alongou, estalando suas


costas. Mesmo com toda sua altura, ela se sentia uma anã
perto dos destroços do prédio. Ela nunca fora a pessoa
mais imponente da equipe, mas nesta situação sinistra ela
se sentia particularmente pequena e mais do que apenas
perdida. Especialmente frente às evidências confusas.

59
1
RCMP: Polícia Real Canadense
Os fragmentos de tubos de aço recuperados sugeriam
uma espécie de dispositivo o qual um delinquente sem
recursos poderia ter montado após uma visita à loja de
suprimentos para casas. Mas, mesmo caso o RCMP não
houvesse já recebido um inquérito enigmático de um
oficial do governo dos EUA sobre o incidente, Jaysara
ainda teria dúvidas sobre o ocorrido, com base nas
evidências físicas.

Quando extremistas se irritavam o suficiente para


explodir coisas, eles geralmente buscavam apagar
pessoas. Essa bomba não fora enviada pelo correio ou
posicionada em uma área pública para explodir durante o
dia. Ela explodira no meio da noite, nos fundos de uma
área restrita perto de um laboratório. Além disso, o
impacto fora gigante e quente, quase metade da
construção fora danificada. Bombas de tubo caseiras não
funcionavam tão bem. E não houvera nenhum aviso,
nenhuma declaração.

A opção de que tudo talvez fora um acidente não fora


eliminada pelos engenheiros convocados. Quando se
tratava do tipo de ciência que conduziam ali, Jaysara se
sentia perdida. Ela nunca ouvira falar de algo biológico
explodindo de forma espontânea que causaria todo esse
dano, mas ela não tinha certeza de que químicos eles
poderiam usar para preservar espécimes ou limpar
equipamentos. Dado o quão deserto o lugar estivera
naquela hora, um vazamento químico inesperado não

60
estava fora de questão e os fragmentos dos tubos poderiam
ser apenas coincidências.

Para Jaysara, no entanto, as evidências apontavam


para expertise premeditada. Certas gavetas de arquivos no
centro da explosão pareciam ter sido esvaziadas antes da
detonação e a explosão parecia localizada de forma a
eliminar dados eletrônicos. Adicionado o fato de que eles
não conseguiram recuperar as gravações de segurança, ela
simplesmente não conseguia aceitar as ideias de que fora
só um acidente ou de se precipitar e jogar toda a culpa em
algum violento, porém amador extremista
antibiotecnologia.

O movimento do Policial Renaud na visão periférica


de Jaysara chamou sua atenção e ela girou em direção ao
magro homem e franziu a testa. “Onde estão suas luvas,
Renaud?”

Ele deu de ombros e apontou para os destroços


úmidos. “Pensei que já havíamos passado do ponto de
sermos delicados, Jay.” Ela pedira a todos da equipe para
chamarem-na de Jay, pois já estava cansada de ouvir seu
nome pronunciado de forma errada.

“Protocolo.” Ela lembrou a Renaud e, para crédito


dele, ele fez o máximo para disfarçar enquanto revirava os
olhos ao procurar pelas luvas.

Um baixo alerta do celular de Jaysara a avisou de


uma nova mensagem, então ela se afastou e removeu uma
de suas luvas para checar. O resultado da amostra de
61
sangue já estava pronto. Como o DNA de Sturgis
provavelmente não era registrado em nenhum banco de
dados criminal, ela não esperava nem ao menos receber
resultado algum, então era uma boa notícia.

Ou não.

“Quem diabos é Katja Obinger?” Ela disse em voz alta


para a tela.

62
O tinir de chaves atravessou o som das notícias na TV
na outra sala e desviaram a atenção de Cosima das notas
que fazia em trabalhos de alunos na mesa da cozinha.
Delphine se dirigia à porta, atrasada para a reunião da
BioThreat, da qual ela participava como consultora de
Ética em meio a um monte de gente de paletó do governo.

“Tchau, né.” Disse Cosima, abaixando sua caneta


vermelha vintage.

“Ah!” Delphine despertou de quaisquer devaneios em


que ela se perdera e voltou em direção à cozinha.
“Desculpe. Pensei que já tivéssemos nos despedido.”

“Não.” Disse Cosima. Ela não se levantou da cadeira,


só para fazer Delphine voltar e se inclinar para beijá-la.
Delphine cheirava tão bem que a irritação de Cosima
vacilou. No último momento, ela a abraçou de volta.

Delphine hesitou. “Eu prometo que vou tentar


descobrir algo sobre o IPGT na reunião. Você está bem?
Estou preocupada com o quão calmamente você está
lidando com tudo. Me faz pensar que você tem algum tipo
de... plano.”

“Plano?” O celular de Cosima apitou — uma nova


mensagem de texto —, mas ela ignorou, olhando nos olhos
da esposa.

“De se envolver.” Disse Delphine. “Não é de sua


natureza se sentar e ficar parada no meio de uma crise.”

63
Cosima deu um rápido sorriso. “É isso que você quer
que eu faça, não é? Ser uma boa menina e deixar os adultos
cuidarem de tudo?”

“Isso não é o que eu—”

“Está tudo bem. O único plano maligno que tenho é


ficar de olho nas notícias enquanto corrijo trabalhos. Se
divirta lutando por justiça ou o que seja.” Ela não
conseguia olhar para Delphine. Delphine puxou um pouco
de ar como que para responder, mas, ao invés disso,
apenas suspirou e passou a mão pelo cabelo de Cosima
antes de sair para a porta.

Cosima pegou o telefone. A mensagem era de Kira.

To bem, pfvr não conte para a mãe que não estou com
vc, explico dps

Cosima suspirou e respondeu de volta: Que tal


explicar agora?

A resposta foi quase imediata. To fazendo um negócio


importante e seguro, pfvr fica de boa

Cosima se lembrava bem o suficiente de como era ser


adolescente para saber que se ela não ficasse ‘de boa’, Kira
pararia de confiar nela, então ela enviou um OK. Havia
um novo e-mail, também: um aluno com um pedido de
desculpas por precisar de mais tempo para um trabalho.

Estaria tudo bem se eu fizesse outra coisa que não o


tópico que você mandou? Eu tive uma ótima ideia noite
passada
64
“—enquanto estava chapado.” Cosima terminou por
ele, fechando o e-mail sem responder. Especialmente
nesta manhã, ela não precisava do lembrete de que talvez
ela estivesse condenada a um constante e devagar
respingo deste exato tipo de irritação pelo resto da vida.
Sturgis tentara oferecer algo mais e ela recusara, com
razão. Mas isso não tornava a pilha de notas à sua frente
menos entorpecente.

Ela afastou os papéis e se levantou da cadeira para


andar um pouco pela cozinha, telefone na mão, antes de
passar para o escritório. O escritório era um dos cômodos
mais bagunçados agora, então ela preferia trabalhar na
cozinha quando não precisava do computador. Ela puxou
um suéter nas costas da cadeira e o vestiu, enquanto abria
o navegador e clicava no link para a página do
DoeUmaMoeda que Charlotte encontrara na noite
anterior. Ela não podia fazer nada em relação ao que
acontecera no IPGT, mas ela podia doar alguns dólares
para uma clone doente enquanto ela e Charlotte
descobriam uma maneira melhor de ajudá-la.

A página se fora. Estava vazia.

Cosima voltou ao site principal e procurou, mas não


encontrou nenhum resultado. Era como se a página nunca
estivera lá.

Um sentimento incômodo subiu pela espinha de


Cosima. Talvez Charlotte soubesse como encontrar a
página. Cosima estava no meio do caminho para a porta
do porão antes de parar. A última noite fora difícil para a
65
garota, seria melhor deixá-la se vestir e ingerir um pouco
de cafeína antes de jogar mais coisas em cima dela.

Ela começou a digitar uma mensagem: Ei, me


encontre quando você—

Mas uma chamada apareceu na tela do celular antes


que ela pudesse terminar. Ela não reconhecia o número,
mas algo a fez atender. “Sim?”

“Cosima Niehaus?” Disse uma voz masculina. Cinco


sílabas não foram o suficiente para que Cosima o
identificasse.

“Posso ajudar?”

“Sou eu.”

“Eu, quem?”

“Nathaniel Sturgis.”

Puta merda. Cosima se virou, voltando para a sala


onde haveria mais espaço para andar. “Todos pensam que
você virou mil pedacinhos carbonizados.” Ela disse. Ela
olhou para a TV, mas eles estavam falando sobre a
próxima tempestade tropical que estava para devastar os
EUA.

“Era melhor que todos pensassem que estou morto,


por agora.”

É, era definitivamente Sturgis. Ele havia apostado no


drama quando se encontraram no escritório dele, também.

66
“O que diabos aconteceu?”

“Eu não posso te dizer por telefone. Não é uma linha


segura. Eu preciso que você me encontre o mais rápido
possível.”

“E como vamos combinar um encontro numa linha


não segura? Você literalmente acabou de dizer nossos
nomes completos.”

Houve silêncio. Então: “Me encontre no meu lugar


feliz.”

“O seu o quê?”

Pelo menos Sturgis se prestou a parecer


desconfortável ao repetir. “Você sabe... Meu, hum, lugar
feliz. Feliz. Perto de onde eu trabalho— trabalhava. Não
deixe que te sigam.” E desligou.

Cosima encarou o celular por um momento, então


chamou o número de volta. Ela recebeu uma mensagem de
que não havia caixa postal.

“Droga, Sturgis, como que eu vou—”

Espere. Não tinha um bar logo na esquina do IPGT


que se chamava A Hélice Feliz? Devia ser isso. Não tinha
como ele esperar que ela soubesse o lugar feliz dele. Ela
tinha que ao menos checar o Hélice.

Era exatamente isso que Delphine temia que ela


fizesse e saber disso não melhorava seu humor. Fácil para
Delphine falar sobre ficar fora de perigo, quando não era
67
ela cujo genoma atraía confusão como moscas. Sua esposa
teria que perdoá-la, porque agora ela com certeza não
estava disposta a pedir permissões.

68
Delphine mal conseguiu chegar à reunião da
BioThreat a tempo, mas todos já estavam no meio de uma
discussão enfurecida. Todos os nove membros da força
tarefa se viraram para olhá-la como se ela estivesse
atrasada.

Ela sentou-se na agradável sala de conferências e


tentou ser discreta, ouvir e acompanhar, mantendo-se
plenamente consciente de seu papel como consultora
recém-contratada e pouco tolerada pela força tarefa de
longa data. Ela mal dormira e, mesmo que inglês fosse
como uma segunda língua para ela agora, a privação de
sono tornava mais difícil acompanhar os jargões que iam
e vinham na conversa.

O melhor que conseguia entender era que os


membros mais antigos da força tarefa — um grupo
predominantemente composto por homens brancos velhos
cujos nomes e rostos Delphine tinha dificuldade em
guardar — queriam seguir a agenda original da reunião,
uma discussão sobre a ameaça representada pelo grupo
separatista quebequense de Gilles Sauveterre. A outra
metade parecia querer focar totalmente na explosão do
IPGT e, quanto aos propósitos de Delphine, isso era mais
promissor.

“Não é nem uma mudança na agenda.” Disse um


homem careca cujo nome Delphine esquecera, mas que
representava o RCMP. “Até onde sei, o incidente é
atividade recente de Sauveterre. Ele tem um histórico de
ódio contra o IPGT e sabemos que ele esteve em Toronto
69
ao longo da última semana, mesmo que seja raro que ele
deixe o Québec.”

“Quão certo você está?” Chiou um homem velho que


parecia já ter um pé na cova. “Certo o suficiente para que
eu tenha desperdiçado duas semanas de minha vida
aprendendo tudo que tem pra saber sobre salmão para
essa reunião?”

“O incidente na fazenda de salmão ainda é relevante.”


Cortou a voz turva da Tenente-General Eloise Thibault.
Ela era uma grisalha e durona veterana franco-
canadense, que parecia sempre cheirar levemente a
fumaça de charuto. Delphine sabia disso pois, como as
únicas duas mulheres na sala, elas tendiam a se sentir
próximas. “Sei que faz tempo, mas não se esqueçam de que
foi o IPGT que ajudou a desenvolver a linhagem de peixes
geneticamente modificados que invadiu o precioso córrego
de Sauveterre e o deixou louco, para começo de conversa.
Tudo nisso aponta para ele.”

A mesa pareceu considerar a informação por um


momento. Delphine viu o breve silêncio como uma
oportunidade de colocar sua questão.

“Tem alguma nova informação sobre o Dr. Sturgis?”

A Tenente-General Thibault se virou para Delphine,


franzindo a sobrancelha. “Quem?” Ela disse, sem rodeios.

“O Diretor de Pesquisa Nathaniel Sturgis.” Disse


Delphine. “O homem presumidamente morto no ataque.
Parece possível que ele tenha sido o alvo, então eu estava
70
curiosa para saber se alguém imagina o porquê.” Pelos
olhares que recebia, ela justificou: “Se o trabalho dele
representa uma potencial ameaça biológica, então claro
que é relevante para os assuntos da força tarefa.”

“Você foi longe em sua linha de raciocínio.” Disse


Greg Kurzmann. O jovem graduando do MIT do outro lado
de Thibault raramente falava em reuniões, mas ele
parecia ter antipatia de Delphine desde o início, nunca
resistindo à chance de prejudicá-la. “O que a levou a esta
teoria?”

Delphine se encolheu internamente. Ela estivera


muito focada em conseguir informações para Cosima.
Deveria ter sido mais sutil. Teria sido, anos atrás. Este
tipo de manobra tinha deixado de ser parte de sua rotina
há muito tempo.

“Por que ela está inventando teorias, em primeiro


lugar?” Disse outro representante do Ministério de Defesa
do outro lado da mesa, antes que ela pudesse responder.
Mais velho do que Kurzmann, branco e grisalho como
tantos deles. “Ela não está aqui só para ser nossa mocinha
da Ética?”

De novo a tentativa de Delphine de falar foi cortada,


por outro homem à sua direita. “A óbvia preocupação da
minha agência...” Disse ele como se ela nunca tivesse
falado. "É o elemento de segurança nas fronteiras. Sei que,
supostamente, Sauveterre se importa apenas com seu
pequeno clã de caipiras francófonos — sem ofensas,
Tenente-General... ”
71
Thibault o encarou. “O pedido de desculpas é mais
ofensivo do que o comentário, Jones.”

“De qualquer forma...” Jones continuou. “Temos


evidências de que Giles esteve em Toronto três dias atrás,
se encontrando com agentes conhecidos do grupo
extremista antibiotecnologia 46Pure. Se você não conhece
o 46Pure...” Bufou Jones, mirando Delphine. “Eles tem
membros em ao menos três países. E eu soube que o
sangue de uma alemã foi encontrado no local. Isso é um
incidente internacional, senhoras e senhores. A
implementação imediata da triagem biométrica nas
fronteiras é a única maneira de acompanhar essas pessoas
e garantir que mais delas não entrem — e as que aqui
estão não escapem.”

O representante careca do RCMP disse algo irritado


a Jones, que Delphine não ouviu. Ela se sentia como se
alguém derrubara água gelada em suas costas ao ouvir a
frase triagem biométrica. Segurança biométrica era uma
notícia muito, muito ruim para clones.

“Eu acho...” Disse Thibault. “Que biometria também


seria um jeito excelente de identificar qualquer membro
do grupo de Sauveterre que tente se esconder em nossa
cidade. Estão todos meio relacionados entre eles.”

“Desculpe interromper de novo...” Disse Delphine,


“Mas vocês estão mesmo considerando parar cidadãos
canadenses nas fronteiras para testar seu DNA? E eu me
perdi em como a Alemanha entrou nisso.”

72
“Aí que está o problema em sair do planejado.” Disse
o mais velho com sua voz chiante. “A agenda original era
aprovada para todos os convidados. Agora estamos
discutindo abertamente detalhes sensíveis sobre uma
investigação criminal na frente de uma... consultora?”

O jeito que ele dissera consultora enquanto apontava


Delphine fazia a palavra soar como substituta para outra
bem menos educada.

“Exatamente o que pensei.” Disse Kurzmann. “Eu


digo que mantenhamos a agenda original por agora e
marquemos outra reunião para discutirmos as
informações mais sensíveis.”

“Não.” Disse Thibault. “Uma única vez, Jones e


Valcout se prestaram ambos a comparecer. Vamos discutir
tudo agora.”

“Pelo amor de Deus.” Disse o homem careca —


Valcourt? “Só mande Cormier para casa para que
possamos terminar.”

Delphine aguardou para que alguém interferisse,


mas todos se viraram para olhá-la com expectativa. Ela
corou.

“Não é pessoal.” Disse Jones, seu tom sugerindo que


ela fosse uma criança ameaçando fazer birra. “Mas o
tempo é curto. O assunto é urgente e não é apropriado
para civis.”

73
“Tudo bem.” Ela disse rigidamente. Ela se levantou
da cadeira, tentando suprimir sua onda de frustração. Ela
precisava estar ali para isso. Mas se ela não obedecesse,
ela podia ser permanentemente retirada da mesa tão
facilmente como eles a colocaram lá. “Vocês sabem como
me contatar caso surja alguma questão que possa se
beneficiar de minha avaliação.”

A sala permaneceu em silêncio enquanto ela se


retirava. Seus sapatos soavam barulhentos no piso
laminado e brilhante. Deixando a porta se fechar atrás de
si, ela cortou o hall para ir até o elevador. Era um prédio
velho e com maquinário lento. Ela ficou esperando o que
parecia ser uma eternidade no corredor escuro até que foi
surpreendida pelo eco de passos se aproximando.

“Est-ce que vous allez bien?” Disse Thibault do outro


lado do hall. Francês não era necessário, mas Delphine
ficou agradecida.

“Oui.” Respondeu, então continuou em francês, na


esperança de cultivar um sentimento de solidariedade.
“Eles não te expulsaram da reunião também, não é
Tenente-General?”

Um dos lados da boca de Thibault se curvou para


cima no que quase parecia um sorriso. Na meia dúzia de
vezes em que ela comparecera a reuniões da BioThreat,
ela não se lembrava de ter visto o rosto da mulher fazer
aquilo.

74
“Me chame de Eloise.” Ela disse. O francês dela tinha
um aspecto agradavelmente rural e antiquado aos ouvidos
de Delphine, ainda mais forte do que da maioria dos
canadenses. “E eles que tentem fazer isso. Não, eu saí para
provar um ponto. Eles ainda estão lá discutindo em
círculos. Ainda bem que te alcancei, queria falar sobre o
elefante na sala.”

“Que é?”

“Pelo menos três dos homens que estão lá dentro não


querem uma consultora de Ética nas reuniões.
Especialmente não uma mulher.”

“E você? O que quer?”

“Eu votei para trazê-la.” Disse ela. “Podemos nem


sempre seguir seus conselhos, mas isso não significa que
não precisemos deles. Francamente, a maioria de nós já
viu tantas coisas sinistras em nossas vidas que é difícil
lembrar o que é certo e o que não é metade do tempo.”

“Obrigado por dizer isso.” Disse Delphine.

Eloise abaixou a voz para que não reverberasse no


hall. “Quando eu tinha sua idade...” Ela disse, ainda em
francês, seus olhos cinza-escuro firmes nos de Delphine.
“Eu não tinha alguém como eu nas reuniões. Se eu puder
ajudar, me avise.” A mão dela pousou sobre o ombro de
Delphine.

Ajudar? Interessante uso de palavras, especialmente


acompanhado do contato físico, o que sempre era arriscado
75
no contexto profissional. O elevador deu um suave apito,
mas Delphine não se mexeu.

“O que poderia me ajudar...” Ela disse, estudando


Eloise com cuidado. “É uma vaga naquela mesa esta
manhã.”

Eloise soltou um leve suspiro, se de arrependimento


ou irritação, Delphine não sabia. “Temo que eles estejam
certos sobre o acesso à investigação. Sinto muito. Por mais
que eu te dê valor, você ainda é uma civil. Mas olhe, se
você puder me esperar no café do outro lado da rua, eu lhe
farei um resumo assim que eu puder, assim que acabar.”

“Obrigada.” Disse Delphine, calorosamente.


“Agradeço muito.” Ela deu um rápido e profissional aperto
de mãos e se encaminhou para o elevador, os pensamentos
vagando. O sorriso, o toque no ombro... agora um encontro
no café? Estaria Eloise flertando com ela? E se sim, será
que ela poderia de alguma forma se aproveitar disso em
meio a essa bagunça?

Assim que percebeu sua linha de raciocínio, ela


balançou a cabeça, consternada. Aparentemente, não era
só Cosima quem parecia retornar aos antigos hábitos de
épocas mais sombrias.

76
A Hélice Feliz, um ótimo ponto de encontro para
funcionários do IPGT, ficava a cinco minutos do que
sobrara do instituto. Cosima só conseguia pensar na ironia
da placa alegre e colorida enquanto se aproximava do bar
recém-aberto, o capuz de seu casaco cobrindo seus
característicos cabelos. O cuidado extra provavelmente
não era necessário, mas era melhor ser cuidadosa em
excesso do que não ser. Ela não se incomodara em passar
maquiagem e encontrara um par de lentes de teste
antigas, o que significava que talvez nem Sturgis a
reconheceria de primeira.

O meio da manhã não era um horário muito cheio


para o bar. Talvez o horário fazia Sturgis se sentir mais
seguro, mas Cosima considerava um erro: eles se
destacariam muito mais num bar semivazio do que se eles
apenas entrassem num horário normal e se misturassem
à multidão.

Assim que entrou no interior aquecido e escuro do


bar, ela se deu conta de que ‘se misturar’ não seria uma
opção. Sturgis sentava-se em um dos cantos, sob uma foto
emoldurada e em preto e branco de Rosalind Franklin.
Vestia roupas desgrenhadas e surradas, um par de óculos
baratos e parecia ter pintado seu cabelo com um tom opaco
e não natural de tinta preta comprada na farmácia. Ele
não havia feito um trabalho muito bom: enquanto Cosima
se aproximava, ela podia enxergar manchas escuras em
suas orelhas e nuca. Ele também tentava deixar crescer
um pouco de barba rala que devia ser dois tons mais clara
do que seu cabelo atual.
77
“Ai, cara...” Disse Cosima enquanto ela se sentava no
lugar em frente a ele. “Eu odeio ter que te falar isso, mas
você é péssimo nisso.”

“Abaixe sua voz.” Ele murmurou, mal movendo os


lábios. “Eu desconfio que o casal do outro lado esteja me
vigiando. Eu soube que não deveria ter vindo assim que
entrei.”

“Relaxe, Nate.” Disse Cosima, desfrutando da forma


como os ombros dele se enrijeceram com a familiaridade.
Qual era o nível apropriado de formalidade num encontro
clandestino com alguém que fingira a própria morte,
afinal? “O motivo pelo qual todos—”

“Se vamos usar o primeiro nome...” Ele interrompeu.


“Eu prefiro Nathaniel.”

Claro que preferia. “Ok, Nathaniel, o motivo pelo qual


todos estão te encarando é que você está parecendo um
Elvis Zumbi. O que diabos está acontecendo?”

Sturgis ficou inquieto. “Eu pensei que você ficaria


mais feliz em me ver vivo.”

Ah, por favor. Cosima deixou escapar um longo


suspiro por entre os dentes. “Eu estaria mais feliz...”
Disse. “Se você tivesse me deixado de fora disto.”

“Não posso.” Ele disse. “Você é a única conexão que


tenho com tudo isso que tenho quase certeza de que não
vai me matar.”

78
“Ah, vamos.” Cosima relaxou no assento e fixou um
olhar murcho em Sturgis. “Primeiro de tudo, eu não sou
uma ‘conexão’. Eu não estava envolvida em nada disso até
que você ligasse e estava bem com isso.”

“Mas você está envolvida. Por que pensou que eu


queria contratá-la?”

“Eu não sei, mas me deixe pedir desculpas por não ter
entrado de cara nisso.”

Uma garçonete se aproximou da mesa com um


sorriso. Cosima deu um aceno da forma mais indiferente
possível. Ela esperou a mulher sair do alcance da voz
antes de continuar.

“Segundo, presumindo que não foi um maldito


acidente, o que te faz achar que a explosão foi por sua
causa?”

“Eu—” Ele ficou inquieto novamente, roendo uma


unha. “OK, quem sabe porque o lugar explodiu? Mas eu
sei que logo antes disso, uma espiã quase quebrou meu
braço me interrogando.”

Cosima piscou. “Um espião? Uau, isso está ficando


bom. Ele se apresentou, tipo James Bond? Ele te mostrou
a carteirinha de espião?”

“Era ela.” Disse Nathaniel. Algo em sua expressão,


uma mistura de animação e inquietação, incomodou
Cosima. “Ela era... igual você. Era uma de vocês.”

79
O humor de Cosima mudou como se ela fora pega
numa corrente de ar gelado.

324B21. O número flutuou na superfície de sua


mente como um cadáver num lago. O número de
identidade dela, codificado em seu DNA. Cada célula de
seu corpo a marcava como propriedade intelectual
patenteada.

Sturgis respirou fundo. “Ela era—”

“Não me diga.” Disse Cosima. “Só me conte como você


sabe e quem mais sabe.”

Sturgis arranhava um sulco na mesa de madeira. “As


pessoas que eu trabalho não sabem, eu acho. Eu— quando
comecei a duvidar das motivações deles, meio que fiquei
por conta própria, eu diria. Eu contatei um... um amigo,
um amigo bem importante.” Sturgis fez uma pausa para
tomar um gole de sua caneca. “Pensando melhor agora...”
Continuou. “Talvez isso tenha sido um erro.” Ele balançou
sua mão, como que para afastar o pensamento. “O que ele
me mostrou me levou a pesquisar sobre a DYAD. Eu
comecei a suspeitar, mas eu não tinha certeza até que ela
apareceu. Sua sósia louca.”

O estômago dela afundou. Não podia ser Helena,


claro. Ela estava em Yucon fazendo treinamentos de
sobrevivência com os gêmeos. Mas que outra clone louca
tentaria quebrar o braço de Sturgis? A boca de Cosima
estava quase que seca demais para falar. “Ela tinha...
muitos cachos loiros?”
80
“Não. Cabelo vermelho. Nariz quebrado, eu acho. Foi
assim que percebi que não era você.”

A mente de Cosima acelerou. “Não conheço ninguém


assim. Eu não— eu não tenho contato com todas.”

“Eu nunca quis machucar ninguém.” Disse ele, tenso.


“Eu tentava fazer um avanço médico. Você tem que
acreditar em mim. Existe alguma forma de chamar
todas?”

“Não somos todas uma grande—” Cosima rangeu os


dentes, suspirando. “Olha, você está lidando com um único
indivíduo aqui e eu não a conheço. Quem quer que ela seja,
ela tem os próprios assuntos dela. Nathaniel... você disse
que não queria machucar ninguém— o que você fez?”

“Não fui eu! O meu, er, amigo— acho que ele não é
bem meu amigo — ele mentiu sobre o que ele faria com o
que dei a ele. E o pior é que isso não é nada perto do que
as pessoas que financiavam minha pesquisa fariam.” Ele
esfregou uma das mãos no rosto. “Por favor, tem que ter
algum jeito de você entrar em contato com ela, algo que
você possa—”

“Em que você trabalhava, Sturgis?”

Ele parou, olhando para ela com incerteza. O idiota


tinha pedido ajuda a ela e agora estava realmente sentado
ali, pensando sobre o quanto ela era digna de saber. Ela
sentiu a pressão subir.

81
“Fale logo.” Disse. “Agora, ou vou embora. Se precisa
da minha ajuda, melhor fazer eu me importar.”

“Cosima, falar demais é o que me meteu nisso—”

Ela começou a deslizar pelo assento.

Sturgis rugiu com frustração e segurou seu pulso.


“Espere.” Disse.

Cosima hesitou. “É melhor que o que diga a seguir


seja motivador.”

Por um momento, os olhos deles pareceram febris.


“Imagine encontrar uma maneira de personalizar fagos
para qualquer amostra de bactéria.”

Isso era motivador. “Você tornaria os antibióticos


obsoletos.” Ela cuidadosamente se sentou de volta na
cadeira.

Os olhos dele brilharam. “Sim! Eu sabia que você


entenderia!” O êxtase em seu olhar se apagou. “Agora
imagine que a mesma tecnologia poderia ser usada não
aplicada somente a fagos, mas a quaisquer vírus... os
quais você poderia direcionar para qualquer marcador
genético...”

“Meu Deus.” Cosima se apoiou lentamente no encosto


do assento, como se a distância pudesse de alguma forma
diluir o horror do que ela havia escutado. “Como uma
arma?” Cosima percebeu que ela quase gritava, mas o que
ele sugerira era terrível. Ela abaixou o tom. “Uma arma

82
que poderia almejar pessoas pela sua genética? Pragas
projetadas?”

Sturgis parecia consternado. “Eu desenvolvi essa


tecnologia para salvar vidas.”

“Me diga que não é tão ingênuo assim.”

Ele abaixou os olhos para suas mãos por um


momento, então disse de maneira fraca: “Não mais.”

“Merda. Sturgis, esse seu ‘amigo’—”

O som de um copo se quebrando desfez a atmosfera


calma do bar e fez Sturgis dar um salto. Quaisquer poucas
cabeças que ali haviam àquela hora se viraram em
uníssono da garçonete envergonhada para ele.

“Relaxe.” Chiou Cosima. “Sente-se.”

“Eu não devia estar aqui.” Ele disse, pegando de


dentro da sua bolsa um gorro ridículo, escondendo o cabelo
que dera tanto trabalho para pintar. Ele realmente era
muito ruim nisso. “Eu manterei contato.” Disse. “Se eles
me pegarem antes disso...” Uma risada tensa e nervosa
escapou dele. “Eu guardei o que você precisa perto do meu
peito. Basta procurar o platinado debaixo do meu braço.”

“Platinado? Isso é um código para alguma coisa?”

Mas ele já ia embora.

Cosima nem tentou pará-lo, só levantou o braço em


um irônico e leve aceno, então apoiou sua testa sobre as
costas de sua mão. Por mais que odiasse admitir que ele
83
pudesse estar certo, ele realmente poderia estar em
perigo.

Um pensamento passou pela sua cabeça: agora havia


duas clones não-identificadas — a moça doente e a espiã,
e Cosima não sabia qual das duas era mais estranha. Ela
pegou o celular — era hora de comparar as descobertas
com Charlotte.

“Cosima?” Charlotte soava tensa ao responder. “Onde


você está? Quando eu subi as escadas, você não estava
aqui...”

Cosima olhou à sua volta no bar. Ninguém prestava


atenção a ela, mas ela abaixou a voz mesmo assim. “Eu
vim encontrar Sturgis, que aparentemente não está
morto.”

“Oh!” Disse Charlotte, surpresa. “Isso é bom, não é?”

“Não muito. Ele está me envolvendo um monte de


coisa. E eu estava pensando— você viu que a página do
DoeUmaMoeda da Dana Emmet sumiu esta manhã?”

“Sim. Mas eu me lembro que lá dizia que ela estava


no Hospital Lydia Folger Fowler.”

“Deve ser exatamente por esse tipo de coisa que eles


retiraram a página.”

“O que quero dizer é que você e Delphine podem ir lá


e vaciná-la. Estou pesquisando voos agora e os preços são
bem razoáveis.”

84
Cosima tomou um momento para pôr os pensamentos
em ordem. “Os voos estão baratos porque estamos no meio
da semana, no início de novembro.” Ela disse. “Adultos
trabalham, Charlotte, incluindo eu e Delphine. Além
disso, acho que nossas vidas acabaram de ficar mais
complicadas ainda.”

“Eu poderia ir.” Disse Charlotte.

“Está chapada?” Disse Cosima. “Eu não vou deixar


você ir a Boston sozinha. Art me mataria.”

“Então mande alguém comigo. Cosima, essa moça


pode estar morrendo. Somos as únicas que sabemos como
salvá-la.”

Cosima sentiu-se enjoada. Ela odiava concordar com


Charlotte nisso. “Delphine não vai aceitar isso.” Ela disse,
esfregando a nuca.

“Tem um voo com assentos livres em poucas horas.


Até a Delphine descobrir sobre isso, eu posso já estar a
caminho.”

“Você tem mesmo muita confiança no meu


casamento, pequena.”

“Coloque a culpa toda em mim, se quiser.” Disse


Charlotte. “Eu não sou casada com Delphine. A fúria dela
não me assusta.”

Cosima apertou um de seus dreads sob o capuz. “Só—


não compre o bilhete ainda.” Ela disse. “Me dê uma chance
de achar um acompanhante para ir com você, OK? Me
85
prometa que você não vai tomar nenhuma atitude
sozinha.”

“Eu prometo.”

Cosima desligou a ligação e deitou a cabeça em seus


braços. Será que ainda era muito cedo para uma bebida?
Nah, o bar não estaria aberto, caso fosse. Ela beberia algo
e fumaria um pouco e, assim que seu coração parasse de
bater tão forte, ela começaria a lidar com tudo isso. Porque
mesmo que as pessoas pudessem ir até Delphine para
aulas de Ética, quando uma conspiração assustadora
precisava ser desvendada, era a hora de Cosima brilhar.

86
Art Bell, extraordinário jóquei de mesa, estava no
escritório da CBSA2 preenchendo a papelada para fechar
um caso de contrabando de fentanil quando seu telefone
tocou. Não o telefone que estava em seu bolso, mas o que
se encontrava em cima de sua mesa. Era uma situação tão
rara que Art esperou o telefone tocar algumas vezes, para
ver se quem quer que estivesse ligando iria perceber ser
um erro e desistir. Finalmente, suspirou e atendeu.

“Alguém do RCMP está aqui para vê-lo.” Veio a voz


sonolenta do assistente administrativo.

Art sentou-se ereto na confortável cadeira giratória


em que antes estivera de maneira desleixada. Anos e anos
como policial haviam afiado seu pessimismo ao ponto de
uma navalha, mas, mesmo para um otimista, os oficiais
aparecerem no que ele havia escolhido deliberadamente
como um trabalho tranquilo de mesa não era um bom
presságio.

“Deixe entrar.” Disse Art. Ele refletiu se teria tempo


de improvisar uma corda com os elásticos em cima da
mesa e escapar pela janela.

A calamidade desta manhã veio na forma de uma


pequena moça asiática, com um uniforme impecável e
cabelos cuidadosamente puxados para trás. Ela avaliou a
sala de forma inteligente e então pousou os olhos em Art,
se acendendo como se estivera louca para conhecê-lo.

“Sargento Jaysara Priyantha, do RCMP.” Ela disse.


“Pode me chamar de Jay.” As mãos dele envolveram as
87
2
CBSA: Agência de Serviços de Fronteira do Canadá
dela quando se cumprimentaram e ele se viu
devolvendo o sorriso involuntariamente. Ser desarmado
tão facilmente o deixou nervoso.

“Me chame de Art.” Disse, tentando não demonstrar


o desconforto. “Como posso ajudá-la?”

“Estou investigando a situação no IPGT. Tenho


certeza de que ouviu falar. Suspeitamos de terrorismo,
mas nenhum grupo se manifesta. Mas havia sangue no
local, que me levou a um de seus casos de quando ainda
era policial.”

O estômago de Art começou a afundar de forma


familiar.

“Por algum motivo...” Ela continuou, de forma


amigável. “Os arquivos são confidenciais. Tudo o que
consegui descobrir foram os nomes de algumas pessoas
que trabalharam no caso que, além de você, estão mortas
ou tem algum tipo muito específico de amnésia. E você? Se
lembra de Katja Obinger?”

Seu estômago parou de afundar e mergulhou direto


para as fundações do prédio. Para o quão longe ele tinha
que correr para deixar aquela bagunça para trás?

“Olhe.” Disse, correndo uma mão pelo cabelo. “Eu


realmente quero ajudá-la como posso, mas... eu não estou
na polícia mais, não tenho autoridade. Se eles selaram os
arquivos, eu não tenho direito de dar palpites.”

88
Pela primeira vez, Jay pareceu desconfortável,
trocando seu apoio para outra perna. “Não estou pedindo
que quebre nenhuma regra.” Ela disse. “Mas se tiver
alguma coisa, qualquer pista que pudesse me dar... algum
contato antigo que poderia me passar, alguma coisa que
lembre sobre Katja e a morte dela?”

Art podia sentir o sangue escapar de seu rosto, suas


mãos geladas. O corpo de Obinger na pedreira fora o que
desenrolara tudo. O levara a descobrir que sua parceira se
suicidara e que sua clone, Sarah Manning, havia a
substituído. As clones que o arrastaram buraco abaixo em
uma conspiração da qual ele pensou que não sairia vivo.
Mas ele saíra, droga.

Jay ainda falava. “Ela tinha algum contato com


grupos terroristas alemães ou histórico de violência contra
instalações de pesquisa?”

Art se apoiou na beira da mesa e tentou organizar


seus pensamentos. Se resistisse demais, faria ela insistir
mais. Era o que faria se fosse ela. Mas ele tinha que
enrolar até que descobrisse como exatamente lidar com
isso.

“Eu sei que deve ser difícil para você.” Ela disse em
um tom gentil, surpreendendo-o com contato visual. Ela
era boa nisso. “Você deve ter mudado de trabalho por um
motivo. Mas um cientista está desaparecido e pode ter sido
morto. O arquivo diz que Katja Obinger está morta há
anos, mas o sangue dela estava fresco no local da explosão.

89
Estou tentando entender algo que não faz sentido e a
evidência só me confunde mais.”

“Merda.” Disse Art, esfregando seus olhos. Culpa e


medo dançavam em seu estômago. Havia muitas mulheres
vivas que tinham o sangue de Katja Obinger, incluindo
sua filha.

“Se alguém almejou esse cientista...” Jay continuou.


“Eu preciso saber o porquê. Tudo que tenho é o sangue de
uma mulher morta e a esperança de que isso me leve a
algum tipo de justiça. Você deve se lembrar de como é
isso.”

Art se lembrava bem. E não era culpa dela esbarrar


nessa bomba. Mas qualquer coisa que ele dissesse agora,
qualquer palavra errada e seria ele a pessoa jogando
bombas bem no meio da vida de pessoas com quem ele se
importava tanto.

“Posso te retornar?” Ele disse, com cuidado. “Isso é de


uma época da minha vida que fiz o melhor que pude para
esquecer e acho que fiz um ótimo trabalho. Você está me
bloqueando aqui. Se pudesse me dar talvez uma hora para
me recompor e tentar me lembrar? Eu te ligo.”

Por um momento, ele tinha certeza, pela sua


expressão tensa, que ela recusaria. Mas ela relaxou.
“Claro.” Ela disse. “Sabe o quê? Vou falar com seu
supervisor, ver se ela deixa você ir ao meu escritório e
trabalhar comigo nisso.”

Ótimo. Perfeito.
90
“Não temos total certeza de que foi um incidente
internacional.” Ela disse. “Mas a Inteligência dos EUA já
está nos questionando por alguma razão, fora o
envolvimento de Obinger. Mesmo que não fosse uma
potencial questão de segurança nas fronteiras, algo me diz
que seu antigo caso será crítico. Eu preciso de sua ajuda.”
Ela pausou, algo apelativamente sério em sua expressão.
“Se estiver disposto.”

“Claro.” Ele disse com um sorriso forçado. “Vejo você


daqui a pouco.”

“Obrigado, de verdade, Art.”

Ele acenou, mantendo o sorriso no rosto enquanto


observava ela ir embora. Assim que ela saiu, ele puxou o
celular de seu bolso e enviou uma mensagem para
Charlotte.

Precisamos conversar. Agora.

Vivi discretamente preparou um novo curativo para


sua coxa no banco da frente de seu Sedan, enquanto se
91
perguntava quanto a companhia de aluguel cobraria pelas
manchas de sangue. Apesar do corte limpo (parecia ter
sido estilhaços de vidro) e da magistral sutura da noite
anterior, a ferida estava a incomodando mais do que ela
podia explicar, como uma mulher já acostumada a dores
no trabalho. Talvez fossem somente os hormônios de
estresse correndo em suas veias, mas era melhor prevenir
do que remediar. Os pontos de hoje não estavam tão
elegantes quanto os da última noite, mas ela tinha certeza
de que matara todas as bactérias no carro inteiro.

Quanto à explosão, Vivi estava perplexa. Poderia ter


sido o pessoal dela, sem saber que ela estava lá? Se sim,
ela estava ansiosa para dizê-los que a explosão — e não a
desajeitada fuga do pesquisador — fora o motivo pelo qual
ela perdera sua presa.

Ela não escolhera qualquer local ao acaso para fazer


mini cirurgias em si mesma: ela estava de olho no bairro
onde Dra. Niehaus morava, já que ela era bem mais fácil
de se localizar do que o Dr. Sturgis, no momento. Vivi
achara que essa vigilância seria como assistir à tinta
secar, mas enquanto ela examinava suas suturas mais
uma vez para descobrir a fonte da sensação estranha, uma
minivan lustrosa diminuiu a velocidade ao se aproximar
da entrada da casa da mulher. Vivi rapidamente apertou
o curativo sobre sua coxa para liberar as mãos e alcançar
seus binóculos.

Como esperado, a van se aproximou da casa e


estacionou. Uma mulher com franjas castanhas saiu do
92
lado do motorista. Vivi se virou em seu lugar e levantou os
binóculos enquanto Franjinha parava para mexer em sua
bolsa.

Aquele rosto. O mesmo rosto. Algo dentro dela se


retorceu.

Outro flash de memória: ela tinha cinco ou seis anos,


sentada numa cama em frente a uma de suas ‘Vivis’ e
brincando de espelho. A outra garota tentava copiar seus
movimentos, então ria e tirava suas franjas da frente dos
olhos quando não conseguia.

No presente, Vivi assistiu enquanto Franjinha


encontrava o que procurava em sua bolsa — seria um
cartão de embarque? Fora visível apenas por um
momento, mas Vivi tinha certeza. Ela moveu o olhar do
documento de volta para o rosto da mulher.

Para a maioria das pessoas, ver uma cópia de si


mesmo faria sua pele arrepiar, já ver dois deles as faria
pensar que perderam a cabeça. Para Vivi, era mais
complicado. A sua fantasia de infância havia sido
reconfortante, ou pelo menos era isso que o seu psicólogo
a ajudara a compreender. Ela se sentia diferente de outras
crianças e isolada de seus pais obcecados com trabalho.
Ela ainda não tinha percebido que se encaixar não
importava, que a diferença dela era uma força. Então ela
inventara um mundo povoado por mais versões de si para
que não se sentisse tão sozinha.

93
Franjinha subia a sacada da casa agora. Logo antes
de chegar, uma outra moça jovem saiu: uma adolescente
com um caminhar ligeiramente irregular, como se
mancasse. Vivi notou o contorno de uma cinta em seu
leggings cinza. Franjinha deu para Manca o documento
que ela procurara — definitivamente um cartão de
embarque — e Manca foi para o lado de passageiros da
van.

Mas espere — Vivi levantou novamente os binóculos


brevemente e sentiu uma explosão de adrenalina. De
novo! O rosto! Mesmo que Manca fosse facilmente vinte
anos mais nova que Franjinha, ela claramente tinha a
mesma genética. Uma filha? Às vezes, filhas podiam ser
assustadoramente similares às mães. Mas as duas se
pareciam com Vivi, que não tinha a mesma idade que
nenhuma das duas, e todas as três se pareciam com
Cosima Niehaus.

Vivi tentou limpar sua mente. Seu coração pulsante


e sua perna latejante não importavam. Apenas os fatos. A
minivan arrancava. Será que uma delas ou as duas estava
se mudando de repente? Vivi iniciou o carro. Sua perna
teria de esperar.

Outro desvio que ela não havia contado para Arun.


Ela precisava atualizá-lo, mas sua justificativa até agora
fora que não tinha novas informações sólidas sobre o
IPGT. Sua intuição sempre a direcionava a caminhos
diretos, mas, enquanto refletia, ela percebia que desta vez
as pistas que seguiam a levavam por um caminho espiral.
94
As sósias pareciam a conexão mais fácil de se seguir agora,
mas talvez sua curiosidade pessoal estivesse
influenciando suas prioridades? Ela sempre evitara
trabalhar em Cuba para ter certeza de que o contexto
pessoal não interferisse no profissional e agora aqui ela
estava, literalmente vendo seu próprio rosto a cada
esquina.

Ela manteve ao menos três carros entre ela e a


minivan o tempo todo, mesmo tendo tomado o cuidado de
alugar um Civic prata, que se parecia com cada um de três
carros na estrada. Uma vez que elas entraram na via
expressa, Vivi iniciou uma ligação no viva-voz.

“Gemstone, soluções de Marketing.” Disse uma voz


alegre em sua orelha.

“Estou ligando para saber sobre o plano safira.” Disse


Vivi.

“Um momento.” Disse a atendente.

Uma SUV preta se colocou entre Vivi e a minivan,


bloqueando sua visão, então ela cuidadosamente mudou
de pista. Ela tinha quase certeza de para onde suas presas
iriam, mas era melhor mantê-las à vista.

“Eu sabia que você não se deixaria explodir, Valdez.”


Murmurou Arun em seu fone. Sua voz deu a Vivi um
arrepio bom. “O que aconteceu aí?”

95
“Então os fogos de artifício não eram seus?” Disse
Vivi, secamente. “Então mais alguém entrou no jogo. Eu
saí de lá logo antes de explodir.”

“Descobriu algo lá dentro?”

Sim, Arun, estou bem, só quase perdi minha perna


enquanto saía de lá, obrigado por perguntar. Mas claro,
ele sabia que ela estava bem. Ele não gostava de perder
tempo.

“Descobri muita coisa. A arma se chama TAG. Pelo


que vi nos arquivos, é uma arma que usa a genética para
seu direcionamento, de alguma forma.”

“Direcionamento para quê?”

“Talvez aquela doença?”

Arun ficou em silêncio por um momento. “E a


explosão?”

“Nem ideia. Talvez alguém mais esteja querendo o


controle dessa arma. Mas tem outra coisa. Niehaus, a
professora que ele entrevistou não muito antes—” Ela
hesitou. Será que devia contar a ele sobre as sósias? Seria
possível que ela estivesse em algum tipo de surto psicótico,
baseado em suas fantasias suprimidas na infância?

“Valdez?”

Se eu estiver ficando louca, é melhor para a segurança


nacional que Arun saiba, certo?

96
“Ela parece exatamente igual a mim, Sanghera.” Ela
disse. “Assim como duas pessoas que estou seguindo até o
aeroporto, acho.”

Arun ficou em silêncio do outro lado da chamada.

“Sanghera? A ligação caiu?”

“Estou aqui.” Ele disse, caloroso como sempre. Ela


suspirou de alívio. “Eu tenho zero respostas para isso.
Você está bem? Isso deve ser— uau.”

Isso era o mais próximo de agitado que ela já o vira,


mas ele não parecia estar se distanciando como fez quando
ela estragara as coisas. Muito pelo contrário.

“Estou tranquila.” Ela disse. “No momento, seguindo


minhas sósias até o aeroporto. Vou procurar um bom lugar
para ouvir para onde vão sem ser vista.”

“Vou tentar descobrir algo sobre essa coisa das


sósias.” Disse Arun. “Tenho bastantes pistas para
investigar isso. Te aviso assim que eu descobrir algo.”

“Está bem.” Ela disse. “Desligando agora.”

Ela teve que desligar, pois de repente se viu tremendo


de cima a baixo e não queria que ele percebesse pela sua
voz.

97
Kira chegou à sede da organização GeneKeep depois
do almoço para fazer check-in em seu primeiro dia de
orientação. Se ela quisesse ter qualquer chance de entrar
em uma faculdade de ponta após ser forçada a aprender
sozinha por correspondência em seu último ano do ensino
médio, ela precisaria de algo espetacular para sua
aplicação. Um estágio de TI em uma empresa voltada à
genética e sem fins lucrativos era tão bom quanto um
convite com seu nome. Havia muito a aprender lá sobre
ela mesma, também, sem revelar o porquê ela estava
interessada nisso e sem se colocar em perigo de virar um
rato de laboratório de novo.

Entrando no recém-lavado lobby da GeneKeep,


sabendo que ela era a pessoa mais nova no prédio, ela não
conseguia decidir entre orgulho e pânico. Arrastar a mala
atrás de si trazia outro nível de constrangimento: ela não
sabia exatamente onde passaria a noite. Ela não podia
confiar que Cosima e Delphine não contariam cada um de
seus passos para sua mãe e de forma alguma ela ficaria
naquele hostel sinistro de novo.

Ela se surpreendeu ao ver uma garota chique e


enfeitada, não muito mais velha que ela, na mesa de
recepção. Seu cabelo era castanho com mechas douradas,
penteado em complicadas tranças, e ela tinha sardas e
olhos negros e vívidos. Sua maquiagem e suas joias eram
demais. Kira de repente percebeu o quão pouco tempo ela
passava em frente a espelhos. Então a garota notou Kira
e seu rosto se acendeu como se um cavaleiro em armadura
brilhante houvesse entrado pela porta.
98
“Você está aqui!” Ela disse.

Kira parou, constrangida. Será que ela tinha


entendido o horário errado?

A garota riu imediatamente e adicionou: “Você está


aqui há trinta segundos e eu já estou te enlouquecendo.
Desculpe, fico um pouco animada de ter outra pessoa
jovem aqui, para variar. Os outros são legais, mas... Acho
que você entende.”

“Oi.” Foi tudo que Kira conseguiu dizer.

“Olá! Eu pulei essa parte, né? Desculpe. Sou


Emmaline Francis, assistente júnior de contato com a
comunidade. Pode me chamar de Em. E você é Kira.”

“Isso mesmo.”

“Você está pronta para a tour? Vamos achar um lugar


para você guardar a mala.” Ela então parou, uma ruga
aparecendo entre suas sobrancelhas feitas. “Você não
conseguiu passar no lugar onde está ficando ainda?
Precisa de mais tempo?”

“Está tudo bem.” Disse Kira. “A, uh, a casa de meus


amigos está trancada até o anoitecer. Eu posso só enfiar
minha mala em algum lugar por agora, se for OK.”

“Tudo bem!” Disse Em, caçando algo nas gavetas. “Eu


sei um lugar ótimo para isso, se eu conseguir achar as—
ah, aqui!” Ela puxou uma pequena chave e a entregou à
Kira. “Me siga!”

99
Kira a seguiu por um corredor bem iluminado, cheio
de fotos de cientistas famosos e fotos em grupos de pessoas
sorridentes que Kira não conseguia identificar. Havia
pequenas janelas que davam para dentro de algumas das
salas, embora a sala cuja porta tinha o nome do fundador
— Dr. Parker Bai — não possuía nenhuma. Kira olhou
para dentro de algumas delas enquanto passava. Uma
variedade diversa de pessoas — todas vestidas melhor do
que Kira, ela percebeu — trabalhavam ocupadas. Ela não
ouvia o que discutiam, mas as expressões eram animadas.
Kira aprendera a ler a linguagem corporal por necessidade
e tudo que ela via ali transmitia bons sentimentos.

“Então...” Ela perguntou a Em. “Há quanto tempo


trabalha aqui?”

“Este é meu segundo ano.” Ela disse. “Eu amo. Espero


que você fique também. Eu não acreditei quando li sua
redação. Como você aprendeu tanto sobre genética no
colegial? Eu estou indo super bem na aula de genética
humana e mesmo assim tive de pesquisar sobre algumas
das coisas que você escreveu.”

“Meio que um hobby, acho.” Disse Kira. “Sou uma


nerd.”

“Sério? Você parece durona.” Disse Em, então


imediatamente deu um tapa na própria testa. “Uau, eu
tenho quase certeza que ‘não comentar a aparência de
colegas de trabalho’ está na primeiro página do manual do
trabalho.”

100
“Tudo bem.” Disse Kira, satisfeita, porém confusa
com a coisa do ‘durona’. Seria aquilo um código para quem
tem cabelo bagunçado e não usa maquiagem? “Eu vivo
metendo os pés na boca também.” Ela assegurou.

“Ótimo! Seria bom não ser mais a garota problema.


Então o que te fez decidir trabalhar na GeneKeep?
Certamente não foi o salário.”

Por algum motivo, talvez por estar muito cansada,


Kira quase contou a verdade. Porque não existem muitos
lugares que contratariam uma alegada delinquente
autodidata de dezessete anos. E também porque eu posso
ser atropelada por um carro em alto velocidade e sair
andando do hospital no mesmo dia, então queria saber se
isso pode ajudar alguém que não eu mesma.

“Amei a visão por trás de tudo.” Ela disse ao invés


disso. Meias verdades eram como um velho hábito agora.
“Quando vi o site da GeneKeep foi instantâneo.”

“Foi o lema brega ou a declaração de missão


sentimental do Dr. Bai?” Em riu. “A propósito, ele é assim
mesmo. Não é atuação ou para aparecer. Ele é
hilariantemente idealista e, sinceramente? É contagiante.
Digo, ele acabou de convencer as pessoas de Nasgwine’g a
doar material genético. Você tem ideia do quão hostis eles
foram com a gente? Por anos! Dr. Bai se encontra
pessoalmente uma vez com o líder deles e de repente são
melhores amigos.”

101
“Não estou surpresa.” Kira disse. “Por mais brega que
fosse, o pequeno texto de Bai sobre preservar genomas
raros realmente fez sentido para mim. Penso que genomas
raros são meio como espécies ameaçadas ou culturas,
linguagens. Coisas frágeis que demoram milhões de anos
para evoluir e não se deveria permitir que apenas
sumissem antes mesmo de as compreendermos.”
“Oh.” Em parou e colocou a mão no coração. “Queria
falar tão bem quanto você. É exatamente como me sinto.”
Ela sorriu timidamente para Kira. “Sou Métis3 e, por mais
que eu ame a cultura popular e tudo mais, sempre foi
importante para mim manter contato com a linguagem
tradicional e costumes da minha família, porque não
existe outra herança exatamente como a nossa e, se
deixarmos as coisas sumirem— Estou falando demais de
novo. Desculpe.”

“Na verdade...” Disse Kira. “Eu estava interessada


em saber o que você ia dizer.”

Para a surpresa de Kira, ela pensou ter visto um leve


rubor surgir por baixo das sardas do rosto de Em. Ela
esperava não tê-la envergonhado. Não estrague as coisas,
Kira.

“Podemos nos conhecer melhor depois.” Disse Em,


virando para continuar no corredor. “Aqui você pode ver,
uh, alguns dos diferentes escritórios. Óbvio. Ah, e aquela
porta ali sem janelas, é nossa academia. É só uma esteira
e um chuveiro, mas é incrível. Realmente ajuda o cérebro

102
3
Métis: etnia de nativos canadenses
a sair da rotina. E no final do corredor: seu escaninho!
Deve ser grande o suficiente para sua mala. Eles deixam
trancado agora, porque ano passado dois funcionários
foram pegos fazendo sacanagem ali. Hum, ex-
funcionários. O Dr. Bai é tranquilo, mas nem tanto.

“Vou tentar evitar nudez no trabalho.” Kira disse


secamente enquanto tentava destrancar o armário. Ela se
arrependeu de imediato das palavras. Ela estava cansada
demais para estar falando. Em apenas sorriu. “Você
também não odeia quando acidentalmente fica pelada
num armário do trabalho?” Disse. “É horrível.”

“Totalmente.” Disse Kira, aliviada. Ela abriu a porta


para revelar um incrivelmente espaçoso armário. Na
verdade, ela já havia dormido em lugares menores. O que
a fez pensar... Será que Em notaria se ela não devolvesse
a chave no fim do dia?

“O que você acha?” Disse Em. “Está bom para sua


mala?”

“É perfeito.” Ela disse. E, pela primeira vez em muito


tempo, ela sentiu um enorme e atrapalhado sorriso se
abrir em seu rosto. “Tudo neste lugar é absolutamente
perfeito.”

Desta vez, Em definitivamente corou.

103
A fila de segurança no Pearson nunca fora
exatamente rápida, mas pela experiência de Charlotte,
aquilo era pior do que o normal. Havia algumas telas que
diziam de maneira confusa quanto tempo faltava, mas
parecia que ainda ia demorar. Infelizmente, Cosima
teimou com a necessidade de um acompanhante e a única
pessoa disponível era a tia Alison.

Alison era uma boa pessoa, mas, para colocar as


coisas de forma diplomática, ela ficava extremamente
desconfortável quando não tomava as decisões. Ela
insistira em organizar a bolsa de Charlotte no carro e,
naquele momento, ela parecia particularmente
presunçosa, pois o notório atraso na fila de segurança
servia como justificativa para o quão ridiculamente cedo
ela insistira em pegar Charlotte na casa de Cosima.

O celular de Charlotte vibrou. Ela o checou e


estremeceu. O pai dela de novo. Estava chegando ao ponto
em que, se ela continuasse ignorando-o, ele daria uma de
policial para cima dela, então ela tinha de dar um jeito de
despistá-lo por alguns dias.

“Ei, Pai, como vai?” Ela disse casualmente, torcendo


para que os autofalantes do aeroporto não começassem a
anunciar coisas no meio da conversa. Era isso que ela
merecia, por não responder as mensagens dele.

“Onde você está agora?” Ele disse.

“Saindo com a tia Alison.” Respondeu.

104
“Alison?” Ele disse, incrédulo. “Porque você— ah,
esqueça. Olha, eu preciso que você não volte para a casa
por um tempo.”

Oras, isso não seria um problema. “O que está


acontecendo?” Charlotte disse. “Está tudo bem?”

“É essa coisa da bomba no IPGT.” Ele disse.


“Aparentemente, eles encontraram sangue no local e, que
um raio caia em mim se eu souber como, mas é de uma
clone.”

“O quê?”

“Eu não sei. Katja Obinger apareceu quando eles


rodaram o DNA, o que os levou até mim. Tem uma oficial
que decidiu que sou seu novo melhor amigo e eu tenho que
entrar na onda. Ela talvez apareça na casa do nada.”

“Vou ficar fora.” Disse Charlotte. “Eu devia avisar às


outras, também.”

“Apenas fiquem fora de encrenca, vocês todas.” Ele


disse. “Deus e o mundo estão procurando pela Katja e, por
ela ser alemã, está ficando internacional. Os oficiais estão
buscando meus arquivos antigos, estão tirando amostras
de saliva nos aeroportos e Jay— uh, a oficial — acabou de
me dizer que ela pensa que as medidas de segurança
podem aumentar ainda mais.”

“Amostras de saliva?” Charlotte repetiu, seus olhos


se voltando para as telas de espera.

105
“Sim, nos aeroportos, checando se algum DNA bate
com o de Katja ou com algum daqueles separatistas
quebequenses que eles querem capturar.”

“Oh, merda.” Disse Charlotte, o sangue gelando.

Alison levantou a cabeça ao ouvir o palavreado, mas


seu olhar de irritação mudou para alarmado ao ver o rosto
de Charlotte.

“Merda mesmo.” Disse Art. “Me prometa que você vai


evitar policiais até que a investigação esfrie.”

“Eu prometo.” Ela disse, fracamente.

Charlotte colocou o celular no bolso e se virou para


Alison. Mantendo a voz o mais baixa que pôde, ela disse:
“A fila está demorando pois estão testando o DNA das
pessoas. Para ver se bate com o DNA de alguém de um
caso antigo do meu pai. Sabe, o caso que ele trabalhou
com Beth.”

Os lábios de Alison se tornaram uma fina linha,


enquanto ela tomava fôlego pelo nariz. “Bom...” Ela disse,
formalmente. “Merda.”

Quando tia Alison começava a falar palavrões, você


sabia que estava prestes a entrar no apocalipse.

“OK.” Disse Alison rapidamente, colocando as mãos


nos ombros de Charlotte. “Está tudo bem! Não entre em
pânico!” Por um momento, Charlotte temeu que Alison
começaria a sacudi-la, mas, ao invés disso, ela a soltou
abruptamente. “Vamos só— com licença, senhor. Com
106
licença!” Ela começou a abrir caminho através do
labirinto de pessoas, puxando sua bolsa atrás dela.

“Maravilha.” Sussurrou Charlotte, enquanto as


pessoas se afastavam delas, fazendo caretas.

“Agora tem umas cinquenta pessoas que vão se


lembrar de nós por horas.” Ela tentou ficar invisível.

“Você tem uma ideia melhor, espertinha?” Alison


chiou por entre os dentes.

Uma vez que estavam finalmente livres da fila,


Charlotte fez de tudo para não sair correndo o mais rápido
que seu novo exoesqueleto permitia. Mas isso atrairia
mais atenção, então ela se forçou a ficar atrás da tia
enquanto ela marchava até uma esquina e—

Alison parou tão abruptamente que Charlotte


esbarrou em suas costas. Parados na frente delas
estavam um guarda de segurança, agarrando o braço de
uma mulher ruiva e suada, branca como um fantasma.
Uma clone que Charlotte nunca vira em sua vida.

Era difícil saber se o guarda estava detendo a mulher


ou impedindo-a de cair no chão. Talvez ambos— uma de
suas pernas estava manchada com sangue escuro. Que
diabos?

O guarda estava tão surpreso com a chegada delas


quanto Charlotte e a clone ruiva tomou proveito da
distração para libertar seu braço e decolar para a saída
em uma corrida manca. Charlotte ficou parada por um

107
momento, se sentindo entorpecida e chocada, então Alison
levantou um dramático e acusador dedo em direção à
ruiva.

“Minha irmã roubou minha identidade!” Ela disse no


tipo de tom agudo que impulsionava guardas como
flechas. O guarda de segurança disparou atrás da
fugitiva. Alison agarrou o pulso de Charlotte e a puxou
em direção à saída oposta.

“O que está acontecendo???” Charlotte ofegou


enquanto tentava manter o passo da tia em fuga.

“Eu! Não! Tenho! Ideia!” Alison sussurrou


dramaticamente e sem fôlego, enquanto puxava
Charlotte com uma mão, sua bolsa na outra.

Enquanto elas irrompiam da saída do aeroporto e


iam em direção ao estacionamento, Charlotte sentiu como
se fosse vomitar. Por mais chocante que fosse esbarrar em
outra clone aleatória, isto não era o pior. O que elas
fariam agora? Como ela seguiria com sua vida, salvaria a
clone doente, se agora agentes federais estavam atrás de
seu DNA?

108
Episódio 03

Pães e caldos

‘Vivi se aproxima da verdade. As sestras


convocam uma reunião de emergência e
Charlotte faz uma proposta ultrajante.’
Anteriormente, em Orphan Black: TNC:

A sargento Priyantha do RCMP investiga o


bombardeio. Cosima descobre que alguém está tentando
criar uma arma com a biotecnologia desenvolvida no
laboratório e que uma clone desconhecida pode ser a
responsável pela explosão. Delphine encontra um aliado
no conselho da BioThreat no Departamento de Defesa
Canadense. Vivi começa a investigar suas sósias.
Alison Hendrix tamborilou os dedos no volante
enquanto a minivan se aproximava da pequena marcação
que indicava a fronteira Canadá/EUA. Por que estava
demorando tanto? Ela só queria acabar logo com isso. Por
que todas essas pessoas estavam viajando para os EUA
no final da tarde, afinal? Não podiam todas estar
tentando salvar a vida de uma estranha.

Não, essa tal de Dana Emmet não era realmente


uma estranha. Era outra clone, então basicamente ela era
família que Alison ainda não conhecera. Ela olhou para
Charlotte, que cochilava no assento de passageiros. Uma
vez, Charlotte — e Cosima, Sarah, Helena e tantas mais
— haviam sido estranhas também, mas agora elas eram
sestras. Família era família, fosse por DNA ou pelas
circunstâncias. Você está preso à sua família, não importa
quão bagunçado e inconveniente isso seja —
especialmente quanto eles mais precisam de você. Dana
tinha aquela horrível doença de clone e elas tinham a
cura, era isso.

Mas e aquela clone ruiva em quem elas se


esbarraram no aeroporto Pearson? A mulher não ficara
surpresa em ver Alison e Charlotte, o que sugeria que ela
estivera as seguindo, até que um guarda a havia parado.
Provavelmente por causa do sangue pingando de sua
perna. E do que se tratava aquilo? Alison pensou que ela
devia ser a clone espiã que Cosima mencionara, mas o que
ela queria com Alison e Charlotte agora?

111
O que quer que fosse que a espiã estivesse tramando,
foi bom que ela tivesse aparecido lá. Sua fuga precipitada
fora a distração perfeita para que Alison e Charlotte
fugissem da segurança do aeroporto, assim como elas
também deram a ela uma chance de fugir. Pelo menos
estavam quites.

Charlotte se agitou e se arrumou no banco,


esfregando os olhos. “Oh, estamos quase na fronteira.”

“Estamos quase lá faz meia hora.” Alison disse. A


demora a fazia se preocupar se já era tarde demais. Se
estivessem checando DNA aqui como no aeroporto, elas
estariam encrencadas.

“Por que não me acordou?” Charlotte bocejou.

Alison segurou seu próprio bocejo e alcançou sua


bolsa térmica, desejando que o chá desse um pouco mais
de ânimo. “Você não perdeu nada. Eu quase cochilei
também.”

Elas estavam a alguns carros de distância da


checagem na fronteira e um largo espaço se abriu entre
elas e o carro da frente. Ela mudou a marcha e arrancou
o carro. Tamborilou os dedos no volante de novo.

“Não fique nervosa.” Charlotte disse.

“Não estou nervosa, sou uma profissional.” Alison


disse. “Eu sei o que dizer. Só estou trabalhando minha
motivação.”

112
“Sua motivação não vai nos fazer ir presas.”
Charlotte disse. “Isso não é uma peça, tia Alison. Apenas
aja naturalmente.”

“Isso que você disse: ‘aja naturalmente’. O que é


natural, afinal? Charlotte, ‘o mundo é um palco e nós
somos meros atores.’”

“Você odeia Shakespeare. E é ‘todos os homens e


mulheres são meros atores.’”

“Ah, ninguém liga.” Alison disse. “Shakespeare é


superestimado.”

A van era a próxima na fila. Alison sorriu ao ver que


o oficial da fronteira era um belo jovem. Oh, eu consigo,
ela pensou.

Ela abaixou o visor e se checou no pequeno espelho.


Arrumou o cabelo. Estava cansada do undercut, talvez o
deixasse crescer um pouco e pintasse tudo de vermelho.
Ela fechou o visor. “Hora do show.”

“Ah, não.” Charlotte suspirou.

Alison abaixou sua janela.

“Passaportes.” O guarda pediu. Não havia sinal de


nenhum daqueles kits de análise do aeroporto. Era um
alívio.

Charlotte passou seu passaporte para Alison e ela


entregou os dois ao guarda.

113
“Viajando hoje aos EUA a trabalho ou por prazer?”
Ele perguntou.

Alison tentou manter contato visual com ele.


“Prazer.” Ela levantou suas sobrancelhas. “Não, espere.
Negócios.” Ela se endireitou em seu assento e ajeitou
levemente a gola de seu vestido. Charlotte soltou um
gemido.

“Estamos olhando faculdades, mas tipo, vai ser


divertido, né?” Alison disse. “Então mais prazer do que
negócios, mas definitivamente negócios. Minha sobrinha,
Charlotte, é tão inteligente, mas às vezes ela tem
dificuldade de se inscrever nos lugares, sabe? É
importante que achemos o ambiente certo para ela, mas
não sei se tem que ser um outro país!”

“Está tudo bem com seus olhos?” O guarda


perguntou.

Alison parou de piscar. “Não.”

O guarda mirou Alison mais atentamente. Ele olhou


para os passaportes, então se inclinou para ver Charlotte.

“Whoa.” Ele disse. “Vocês podiam ser gêmeas!”

“Ouvimos muito isso.” Alison riu. “É lisonjeador,


muitas pessoas dizem que não envelheci nada desde a
faculdade.”

“Tia Alison.” Charlotte disse.

“Alguns são abençoados com genética boa.” Ele disse.


114
“Sim.” Alison disse. “Exatamente.”

O garoto fechou os passaportes. “Bom, tudo parece


estar certo...”

“Sabe, azul é a sua cor.” Alison disse. “Eu amo um


homem de uniforme. Até uniforme de Serviços de
Fronteira.” Ela arregalou os olhos. “Eu quis dizer
especialmente de Serviços de Fronteira!”

Charlotte tossiu.

“Obrigado. Tenho orgulho de usá-lo.” Ele devolveu os


passaportes para Alison.

“Tem que ter mesmo. Você é a última linha de defesa


entre o Canadá e os EUA.” Ela disse.

“É bom quando o público aprecia o que fazemos. Vai


ficar muito tempo?”

“Só uns dois dias.”

“Se divirta.” Ele deu uma piscadela.

Alison afastou o carro devagar, mantendo o olhar no


guarda pelo espelho. Ele se virava para o próximo carro
na fila. Então ela ouviu o walkie talkie dele dizendo algo.
Ela apertou o pé no acelerador e o carro balançou para a
frente, os pneus chiaram, derrapando. Charlotte chiou
também.

“Foi ótimo, não acha?” Alison disse.

Charlotte bufou.

115
“Bom, estamos nos EUA.” Alison disse, ligando o
rádio. “Pare de reclamar.”

116
Para Art, ser convocado ao quartel do RCMP era
como ser chamado para a sala do diretor — ou talvez para
o escritório do tenente Gavin Hardcastle, seu antigo
chefe, que estava sempre tentando descobrir o que ele
estava aprontando. O que Art estava aprontando era
ajudar sua parceira, Beth, então Sarah, depois as outras
clones, até cobrindo seus crimes — então sim, isso era
exatamente como nos velhos tempos.

“Art!” Jaysara Priyantha se levantou de sua mesa ao


vê-lo entrar.

“Olá, Jay.” Ele disse.

Ela apertou suas mãos calorosamente e sorriu.


“Obrigado por vir. Estou feliz que conseguiu, ainda mais
em tão pouco tempo.”

“Você disse que era urgente.” Ele disse. “Estou feliz


de ajudar. Se eu puder.”

Ela acenou. “Tenho algo interessante para te


mostrar.” Ela lançou olhares para os dois lados e se
inclinou para perto, de forma conspiratório. “Acho que
descobri o que você não pode compartilhar sobre sua
investigação super secreta.”

Art sentiu a dor de cabeça vindo. “Oh?”

“Me siga.”

Ele a seguiu até uma porta marcada como UCT.

“UCT?” Ele perguntou.

117
“Unidade de Crimes Tecnológicos. Os techies.” Jay
abriu a porta. “Esses caras fazem milagres todos os dias.”

“Só parece um milagre porque você não entende.”


Uma mulher baixa e pálida, com cachos selvagens e
óculos grandes e redondos, girou na cadeira para
cumprimentá-los, enquanto entravam. “E não somos
todos caras.”

“Claro.” Jay disse. “Natasia Fortin, esse é Arthur


Bell.”

Art estendeu a mão. Natasia a encarou sem fazer


nada até que ele a recolheu, constrangido.

“Natasia é investigadora forense digital.” Jay disse.


“É aí que todo o trabalho divertido de detetive acontece
hoje em dia.”

“Um dos motivos pelos quais eu saí desse trabalho.”


Art disse.

“Uma pena. Ouvi dizer que você era muito bom.” Jay
disse.

“Muito bom não é o suficiente.” Art disse. “Mas eu


adoraria saber com quem você tem falado.”

“Todos.” Jay disse.

Ele viu as telas atrás da cabeça de Natasia, se


perguntando no que ela trabalhava — no que Jay achava
que ele podia estar interessado. Parecia algum tipo de
videogame. Ele apertou os olhos.
118
“Isso aí é só meu screensaver.” Disse Natasia. “Eu
ligo sempre que alguém entra sem avisar. Nunca se sabe
quem está entrando ou o que eles estão autorizados a ver.”

Ela apertou a tecla de espaço no teclado e o


screensaver desapareceu. Foi substituído por Minecraft—
que Art definitivamente sabia que era um videogame, já
que sua filha Maya fora obcecada com isso por anos.

“Nat.” Jay disse.

“Você acredita que eu estava reconstruindo uma


cena de crime por, uh, razões forenses?” Natasia disse.

“Ei, não sou sua chefe. Mas você acabou o negócio?”

“Relaxe, está bem aqui.” Ela apertou algumas outras


teclas e mudou para uma janela mostrando uma gravação
em preto e branco de portas duplas de vidro com o nome
“IPGT”.

“Antes que você faça uma daquelas piadas de CSI


sobre melhorar o vídeo, esse é o vídeo melhorado.
Recuperamos meticulosamente as gravações de
segurança dos destroços. Fogo não faz bem para as mídias
de armazenamento. Ou para qualquer outra coisa, na
verdade.” Ela inclinou a cabeça para trás. “Ah, apenas
diga quando.”

“Quando.” Jay disse. Ela encontrou o olhar de Art e


deu de ombros.

O vídeo rodou, um mosaico deslizante de pixels e


imagens fraturadas. Pessoas em jalecos e ternos
119
passavam pela entrada do IPGT e a rápida imagem
ocasionalmente pulava quando o relógio no canto inferior
avançava. As luzes do lobby se apagaram na tela e
Natasia avançou o vídeo. Então a gravação ficou preta.

“Boom.” Natasia disse. “Você viu?”

“O quê? Eu não vi nada.” Art disse.

Natasia riu. “Exatamente!”

Art passou a mão pelo cabelo. “É uma piada?”

“Desculpe.” Jay disse. “Algumas das pistas mais


importantes desta investigação — OK, as únicas pistas —
são coisas que nós não vemos. Não tem cinzas ou resíduos
nos gabinetes de arquivo, então o que isso significa?”

“Não havia arquivos.” Art disse.

“Certo. Então para onde foram? Alguém os tirou de


lá antes que o laboratório fosse destruído. Então temos
esse vídeo. Pensamos que tinha sido completamente
apagado na explosão, mas quando Natasia fez sua
mágica... mostre de novo, Nat.”

Natasia voltou a gravação e a rodou com um quarto


da velocidade. A tela tremeu e se estabilizou. “Aí. Bem aí.”
Ela olhou com expectativa para Art.

“Não, me desculpe. Não vejo nada.”

Natasia estalou os dedos. “Uma falha! Primeiro eu


pensei que o vídeo estava só pulando um quadro, o
arquivo estava bem degradado. Mas então eu percebi que
120
na verdade é um vídeo em loop. Os mesmos dez segundos
de vídeo se repetem nessa câmera de segurança deste
momento até quando ela é destruída na explosão,
quarenta e dois minutos depois.”

“Alguém hackeou a gravação.” Art balançou a


cabeça. “Parece exagero se estavam planejando também
explodir o laboratório.”

“Eu também achei.” Jay disse. “Foi um ataque


sofisticado. Talvez sofisticado demais para Gilles
Sauveterre.”

“Sauveterre? O nome é familiar, mas não sei


porque.” Art disse.

Jay levantou as sobrancelhas. “Você realmente saiu


de jogo ultimamente. Gilles Sauveterre é o líder de um
grupo de perturbadores quebequenses de Nagswine.”

“Separatistas.” Natasia interferiu. “Eles querem se


separar do Canadá.”

Art assobiou. “Por que?”

“Querem ficar com suas terras e manter o resto de


nós fora delas.” Jay disse.

“E o que isso tem a ver com o IPGT?”

“Eles são fortemente anti-genética em tudo e fazem


muito barulho sobre esse assunto desde um incidente que
aconteceu envolvendo peixes geneticamente modificados
invadindo um de seus rios. Até agora foi só isso: barulho.

121
Comícios, cartas de ódio, cartas editoriais, esse tipo de
coisa. Mesmo que a evidência incendiária aponte para
eles, não parece certo para mim. Digo, já é forçar demais
assumir que eles conseguiriam se infiltrar naquele andar
em específico, ainda mais plantar explosivos em áreas
altamente sensíveis.”

“Áreas marcadas especificamente para destruir os


sistemas de computador, onde quase ninguém trabalha—
especialmente fora do horário de trabalho.” Natasia
acrescentou.

Jay colocou um dedo em seu nariz.


“E... Não só é improvável que o pessoal de Sauveterre
conseguiria hackear um sistema de segurança de ponta,
mas eu também não sei porque eles se dariam o trabalho.
Eles sempre foram bem vocais sobre seus ideais e
ansiosos demais ao tomar créditos de seus atos de
protesto.”

“Terrorismo.” Natasia disse. “Sabotagem.”

“Claro. Mas desde que o IPGT explodiu? Silêncio. Os


separatistas sumiram. Eles não querem tomar partido
nisso.” Jay disse.

“Ou eles estão com medo, pois sabem que foram longe
demais.” Natasia disse.

“Talvez vocês estejam pensando demais.” Art disse.


“Na minha experiência, algumas vezes a resposta mais
simples é a verdade.”

122
Jay inclinou a cabeça e torceu o nariz. “Sério? Parece
o oposto do que acontece nos casos que você tem, não que
eu consiga detalhes, já que todos os interessantes
parecem estar trancados. Soa meio complicado para
mim.”

Art riu. “Você me pegou. Mas o que te incomoda


sobre Sauveterre como suspeito?”

“O IPGT não parece o tipo de lugar que eu almejaria


se eu quisesse fazer uma grande declaração política ou
qualquer dano real. Não importa o porquê da briga deles.”

“Salmão.” Natasia disse.

“O quê?” Jay disse.

“Era salmão. Salmão geneticamente modificado.”

“OK. Salmão. Mas não é só isso. Sauveterre parece


um culpado perfeito até demais para esse crime — na
teoria.”

“E porque isso é um problema?” Art perguntou.

“Não podemos nem confirmar que ele ainda estava


em Toronto. E apesar disso, é para ele que meus
superiores estão direcionando a investigação. Então estou
seguindo essa pista, porque é meu trabalho, mas também
estou explorando outras opções” Jay disse.

Art sorriu. Ela era uma boa policial, com um bom


instinto. Mesmo se essas qualidades estivessem
dificultando sua vida naquele momento.

123
“Além disso, mais nada sobre esse caso faz sentido.
Nenhum. Então não vejo porque isso seria diferente.”

“Justo. Era isso que queria que eu visse? Ou não


visse?” Art escondeu o alívio em sua voz.

“Não, tem mais uma coisa.” Jay disse. “É isso que é


grande. Já que o autor do bombardeio teria que estar
familiarizado com o laboratório e a segurança, pensei que
ele tinha que ter estado lá antes— provavelmente
recentemente. Nós reviramos todas as gravações antigas
que pudemos achar e comparamos o rosto de cada pessoa
que visitou o laboratório no último mês com os dados de
funcionários, criminais e de justiça.”

Art sentiu seu estômago afundar.

“Só teve uma pessoa que se destacou.” Jay cutucou


Natasia no ombro com excitação. A techie apertou alguns
botões e rodou outro vídeo. Uma mulher entra no
laboratório. Art se inclinou para frente. Ela se vira para
a câmera, o bastante para que ele veja seu rosto. Seus
olhos se arregalaram quando ele a reconheceu.

Cosima.

Ele se afastou e viu Jay o observando.

Ela sorriu, triunfante. “Você conhece ela!”

“Não.” Art disse. “Acho que não.”

Ela apertou os olhos. “Vamos, Art. Eu vi sua reação.


Você tem que me dar algo. Olhe, se eu acertar o nome
124
dela, você poderia me contar algumas coisas sem quebrar
protocolo, certo?”

Art apertou seus lábios. Suor surgiu em sua testa.


Ele acenou.

Jay respirou fundo. “Vivi Valdez?” Ela o observou


atentamente, então ela percebeu sua genuína confusão.
Aquele nome não significava nada para Art, mas ele podia
usar essa informação para acompanhar Jay.

“Nunca ouvi esse nome. O que sabe sobre ela?” Art


disse.

A sobrancelha direita de Jay se levantou. “Ela é uma


agente americana da CIA.” Ela acenou com satisfação
quando o queixo de Art caiu. “Alguém lá da CIA nos
contatou sobre uma agente que eles procuravam. Não
mencionaram a explosão, mas enviaram uma foto e estou
quase certa de que é ela.”

“CIA?”

“É uma espiã. Um agente sob disfarce.”

“O que ela estaria fazendo no Canadá?”

“Eles não disseram. Lendo as entrelinhas, acho que


ela está por conta própria. E parece que ela vem
planejando isso por um tempo, provavelmente sob um
pseudônimo ou dois. Como, por exemplo... Katja
Obinger?”

125
Art deu de ombros. “Eu te disse, não posso discutir
esse caso.”

“E que tal...” Jay pegou uma pasta e a abriu. Ela a


passou para ele e ele viu uma lista de nomes e horários.
Um nome estava traçado com marcador amarelo: Cosima
Niehaus.

Dessa vez, Art disfarçou melhor sua reação. “O que é


isso?” Ele perguntou.

“Um registro de visitas do laboratório. Os registros


eletrônicos foram destruídos, mas conseguimos achar a
lista de assinaturas e traçamos de volta para a mulher do
vídeo. Ela estava lá na tarde da explosão. Então agora
temos outro nome, outro pseudônimo, para ser precisa. E
temos um rosto.”

“Parece que você tem alguns nomes para um rosto.”


Art disse.

“Você pode me dizer algo sobre ela? Eu sei que você


sabe de algo.”

A garganta de Art apertou. Ah, não, pensou. Era


apenas questão de tempo até decidirem chamar Cosima
para um depoimento.

Ela era sua família. Todas as sestras eram— ele


mesmo estava criando uma clone. Mesmo que a ameaça
de descoberta estivesse sempre pairando sobre elas, o
perigo imediato de exposição — de sua própria existência
— tinha acabado há dez anos. Neoevolução. DYAD.
126
Aquela vadia Dra. Virginia Coady e P. T. Westmoreland.
Todos mortos, enterrados. Enterrados como todo esse
caso. E tudo estava se desenrolando na sua frente.

Não.

“Você a conhece?” Jay perguntou, a voz tensa. Ela o


observava com atenção. “Cosima Niehaus.” Ela
pronunciou ‘co-ssai-ma’ ao invés de ‘co-ssí-ma’ e ele aderiu
a isso.

“Nunca ouvi falar dela.” Ele se inclinou para a frente.


“Você pode dar zoom no rosto dela?”

Natasia resmungou. “Claro, mas não vai ficar mais


claro.” Ela aumentou o vídeo.

Os olhos de Art queimaram enquanto olhava


Cosima, congelada na tela. Seu estômago revirou. Tinha
de haver uma saída. Ele tinha que avisar sua família. A
proteger.

“Arthur?” Jay perguntou.

Ele a encarou e ele sabia— ela estava começando a


suspeitar dele. Ela sabia que ele estava segurando
informações, mas isso era um teste. Ela estava
aprendendo a lê-lo e decidindo se ele era alguém em que
se pudesse confiar ou alguém que devesse ser investigado.

Ele tinha de dar algo a ela.

Ele suspirou, esfregando os olhos. “Desculpe. Você


me pegou de surpresa. Eu não sei quem é essa, mesmo.

127
Mas ela parece muito com alguém que eu conhecia...” Ele
respirou fundo. “Minha antiga parceira, Beth Childs.”

“Sua parceira.” Jay disse. “Você está dizendo que


essa é ela?”

Art balançou a cabeça. “Impossível. Ela está morta.”

Jay deu um tapa na mesa. “Claro que está! Aposto


que Valdez mata seus pseudônimos quando acaba de usá-
los. Mas eu adoraria saber como ela se infiltrou na força
de polícia canadense sem ser pega.”

Dar o nome de Beth a ela era um risco, mas se ela


perguntasse à pessoa certa — e era claro que ela estava
investigando o passado de Art — alguém eventualmente
teria mencionado Beth se ela mostrasse esse vídeo por aí.
E seria muito estranho se ele não fosse o primeiro a citar
a conexão.

Então ele não havia dado a ela algo realmente útil,


mas pelo menos pareceria que estava cooperando.

“Tem algo muito estranho nesse caso.” Jay disse.

Bem-vinda ao meu mundo, pensou Art.

Ele estivera onde Jay estava, uma vez. Juntando as


pistas, como um quebra-cabeça em que as peças eram
todas as mesmas e não se encaixavam bem. Jay
Priyantha era inteligente, talvez mais do que ele próprio,
e tão teimosa quanto. Era apenas questão de tempo antes
que ela descobrisse tudo.

128
“Como ela supostamente morreu?” Jay perguntou.
“Beth.”

“Suicídio, dez anos atrás.” Art disse. “Se jogando da


plataforma na frente do metrô.”

“Me desculpe. Deve ser difícil para você, trazer


velhas memórias.” Jay disse. “Descobrir quem ela
realmente era.”

Você não tem ideia. Art acenou. “Tem outra coisa...


Beth e eu— ela era mais do que uma parceira de
trabalho.”

“Wow.” Natasia disse.

As sobrancelhas de Jay estavam levantadas, mas era


difícil entender o que ela achara daquela confissão. A
chave era fazê-la se sentir como uma confidente, para que
ela confiasse nele o mesmo tanto que ele aparentemente
confiava nela e para explicar qualquer comportamento
errático de sua parte por causa de sua conexão pessoal
com tudo isso. Enquanto isso, ele precisava avisar às
sestras o que estava acontecendo.

Art puxou seu celular, como se acabasse de receber


uma mensagem. “Desculpe, é minha filha. Ela quer saber
que horas saio do trabalho.” Ele disse.

“Você tem duas filhas, certo? Maya e Charlotte?”

Art acenou. Ele não se lembrava de ter mencionado


o nome das meninas antes. Jay estava mandando uma
mensagem: ela o observava. E se ela cavasse mais fundo,
129
se ela se interessasse demais por Charlotte, as coisas
ficariam bem mais difíceis.

Bom, Art podia mandar mensagens também.

“O que o perfil que está montando sobre mim te diz?”


Art perguntou.

Jay olhou solenemente para ele. “Que preciso de


mais informações.”

Natasia riu.

Jay lançou um olhar a ela. “Obrigado novamente por


ter vindo até aqui, Art. Eu só queria te mostrar isso, ver
o que você achava.”

“Sinto muito não poder ajudar mais.” Art disse.

“Eu também.” Jay sorriu. “Mas pelo menos ainda


tenho uma pista. E quando o governo expandir os novos
protocolos de reconhecimento facial, poderemos buscar o
suspeito numa base de dados muito maior. Se essa coisa
da Valdez/Niehaus não funcionar.”

“Você acha que isso vai longe?” Art perguntou.

“Explodir um laboratório que fazia trabalhos para o


governo, matar um cientista— isso é sério, Art.
Precisamos achar as pessoas por trás disso, antes que
fique pior.”

“Estou surpreso que você apoie uma violação dessas


ao direito das pessoas à privacidade. É demais.”

130
“A essa altura, aceito qualquer coisa nesse caso. E
sabe o que dizem: você não tem que se preocupar, se não
tiver nada a esconder.”

“Todos tem algo a esconder.” Art disse. “Então, você


vai trazê-la? Niehaus ou Valdez ou quem seja?”

“Se ela é mesmo da CIA, não quero assustá-la e


perdê-la— ainda tem o risco envolvido em trazer uma
agente estrangeira para custódia. Deixarei nosso contato
saber desse vídeo e veremos se podemos encontrá-la.
Ficar de olho nela.”

Ele acenou. “Bom. É o que eu faria.” Aquilo ganhara


algum tempo para eles, pelo menos, mas o cerco estava se
fechando.

Ela deu um tapa no braço de Art. “Sei que o coloquei


numa situação estranha e aprecio sua ajuda. Não o
incomodarei de novo. A menos que precise. Só deixe isso
para lá.”

Até parece. Ele tinha que avisar Cosima que ela era
uma suspeita agora, não apenas da explosão, mas de ser
uma agente estrangeira hostil. Ela precisava passar
despercebida, se afastar da casa dela. Ele precisava
avisar todo mundo; assim que o governo começasse a
procurar o rosto de Cosima em todos os lugares, não seria

131
só uma mudança radical — seria o fim de todas as sestras
e suas clones, em todo o mundo.

132
Vivi Valdez observava, em meio a uma visão turva,
através da janela aberta de seu carro alugado, a charmosa
casa de três andares do outro lado da rua em Bailey
Downs. Ela olhou para seu celular e, quando o borrão em
sua mente se desfez, ela confirmou o endereço que
obtivera ao correr a placa do carro da Franjinha no banco
de dados do Centro de Informações da Polícia Canadense.
Ele, de alguma forma, a levara até aqui, à casa de Alison
e Donnie Hendrix. Ela mal se lembrava de dirigir do
aeroporto até aqui.

Mas ela se lembrava claramente do momento em que


suas sósias a viram.

Ela teria passado despercebida, caso aquele guarda


não a tivesse detido em sua tentativa mal orientada de
ajudá-la. Maldita perna sangrando. Quando elas o
distraíram, ela conseguiu fugir. Após evitar a segurança
do aeroporto e voltar ao seu carro, ela havia dirigido até
não suportar mais a dor, então estacionara em uma
antiga rua abandonada. Pegara o kit de primeiros
socorros no porta-malas e fora até o banco de trás para
examinar a ferida que sangrava.

Mastigar pastilhas de Vicodin havia rapidamente


diminuído a sensação a um distante e latejante incômodo
ao invés de uma dor ardente — até que ela reabrira os
pontos e cutucara a ferida com seus dedos enluvados.

Tudo ficara vermelho e suave nas bordas de sua


visão, mas ela eventualmente achara o culpado: um
pequeno estilhaço de vidro remanescente da explosão. Ela
133
apertara os dentes e enxercara a ferida com álcool
isopropílico 99% — e desmaiara.

Ela acordara depois do anoitecer, tonta e enevoada,


e começara o horrível e torturante trabalho de se costurar
de novo com seus dedos trêmulos. Ela limpara e colocara
bandagens na ferida e então vestira uma calça limpa e
larga. Finalmente, ela cobrira o assento coberto de sangue
com o coberto solar de emergência do kit. Ela
definitivamente perderia seu depósito de aluguel.

Agora, ela mastigava outro Vicodin enquanto


observava a casa. Com Alison e sua companheira idêntica
fora, era o único jeito que Vivi tinha de descobrir quem
elas eram, para onde elas haviam ido — qualquer coisa
sobre elas. Era a única pista que ela tinha. Ela não havia
feito progresso algum em descobrir quem bombardeara o
IPGT ou quem tinha acesso à arma biológica e, caso ela
não desse algo a Arun imediatamente, mais pessoas
podiam estar em risco.

Se, durante o processo de investigação, ela


descobrisse algo sobre porque outras três mulheres
tinham seu rosto, isso seria ótimo. A menos que a resposta
fosse que ela estava ficando louca.

Ela afastou o pensamento desconfortável.


Infelizmente, as luzes na casa estavam acesas. Alguém
estava lá. Ela teria que esperar um pouco mais para
entrar sorrateiramente e encontrar as respostas das
quais precisava.

134
Meia hora se passou — então ela finalmente
identificou uma brecha. As luzes se apagaram e a porta
da garagem se abriu. Um carro azul e empoeirado saiu,
Donnie Hendrix no volante, duas crianças atrás. A porta
da garagem se fechou e o carro foi embora. Talvez eles
fossem jantar, o que daria a ela uma hora ou duas para
fazer seu trabalho. Era sua chance.

Esperou mais cerca de cinco minutos antes de sair do


carro. Ela se levantou muito rápido e se apoiou na porta
enquanto o mundo girava. Ela precisava maneirar nos
remédios para a dor se quisesse manter sua mente
aguçada.

Ela atravessou cuidadosamente a rua até a casa


escura.

“Ei, Alison!”

Merda. Vivi congelou e se virou lentamente para ver


uma mulher branca e loira caminhando em sua direção
na calçada com um grande pastor alemão. Vivi projetou
um sorriso falso em seu rosto e casualmente chegou seu
gorro. A precaução de se disfarçar para parecer mais com
as pessoas as quais ela personificava tinha se provado
muito boa. Pelo menos essa mulher a reconhecendo como
Franjinha colocou em xeque sua teoria ‘ficando louca’.

“Oi.” Vivi disse.

A moça franziu a testa e estudou o rosto de Vivi.


“Você está bem?”

135
“Na verdade, não estou muito bem. Preciso me
deitar.” Ela lambeu os lábios, mas sua boca estava seca.

A moça pareceu desapontada. “Oh, Alison. Você está


chapada?”

“Tomei uns comprimidos. Para enxaqueca.” Vivi não


estava nem mentindo. Ela estava com uma enxaqueca
latejante e pensava que ia vomitar.

A moça fungou. “Cadê o Donnie?”

“Ele levou as crianças para jantar.”

“Bom. Elas não precisam ver isso, né?” A mulher


disse. “Eu te ajudo a entrar.”

“Não preci—”

O cachorro de repente mergulhou em direção a Vivi,


rosnando e latindo. A mulher fez uma careta e cravou os
calcanhares enquanto ele puxava a coleira.

“Pare, Keanu!” A moça gritou. “Eu não sei o que deu


nele! Ele geralmente te ama. Melhor eu ir.”

“Boa ideia.”

“Me ligue se precisar de algo.”

“Obrigado! Boa noite!” Vivi acenou e subiu de forma


instável o caminho até as escadas na frente da casa.

A moça arrastou para longe o cachorro que rosnava.

136
Foram algumas tentativas até que Vivi conseguisse
abrir a fechadura, mas não foi totalmente culpa do
Vicodin. Era uma fechadura bem mais complicada do que
ela esperaria de uma casa suburbana em um bairro quieto
— o tipo de fechadura que alguém usava quando tinha
algo a esconder.

“Muito bem, Alison Hendrix. Quem é você?” Ela disse


para a casa vazia.

Ela puxou uma pequena lanterna e começou a


explorar. Na sala de estar, ela se sentou pesadamente no
sofá e fechou seus olhos com força para tentar parar o
latejamento em sua cabeça, respirando com calma até o
enjoo passar. Ela se sentiu adormecendo e se sacudiu,
dando tapas no rosto para afastar a sonolência.

Mova-se, Vivi!

Deixando de lado o fato de que ela estava


investigando uma mulher que se parecia exatamente
igual a ela, ela continuou a confortável rotina de procurar
pistas e informações. Devagar, ela montou o perfil da
família, que consistia no marido de Alison, Donnie, e seus
filhos, Gemma e Oscar. A garota mais velha era da
mesma idade que Vivi tinha quando seus pais morreram
em uma missão e ela perdera tudo isso — a casa
suburbana, os pais sorridentes, a ilusão de uma vida feliz
e normal em família.

No quarto, a escrivaninha preenchida com


brinquedos eróticos sugeria que Alison e Donnie não eram

137
um casal tão comum quanto pareciam. Mas ela estava
mais interessada na foto no armário de Alison com outra
moça usando delineador, nem Niehaus nem a garota mais
nova, mas que tinha o rosto de Vivi.

Ela agarrou a foto e se apoiou no armário. Ela se


sentiu repentinamente sem ar, suas palmas das mãos
coçando.

Quantas delas havia por aí? Ela podia acreditar que


fossem quadrigêmeas, mas isso não explicava porque Vivi
se parecia com elas. E ainda havia essa garota mais nova
que ela vira no aeroporto com Hendrix. Poderiam elas
estar todas relacionadas, de alguma forma?

“Quem é você?” Ela sussurrou para um dos rostos


familiares com cabelos descoloridos e ondulados e olhos
sombreados.

Qualquer que fosse sua relação, de onde fosse que


vissem, essas mulheres claramente eram parte da vida
uma da outra. Elas saíam juntas, cuidavam dos filhos
uma da outra, comemoravam feriados como uma... bom,
uma família. Vivi sentiu uma pontada de algo — inveja?
Ela não tinha pais mais e, graças a eles, ela não tinha
conexão alguma com essas pessoas que compartilhavam
seu rosto. Agora, mais do que nunca, ela desejava poder
falar com eles, perguntá-los como puderam fazer isso com
ela. Por que eles a deixaram acreditar que havia algo
errado com sua cabeça, quando as Vivis imaginárias eram
todas reais e viviam a vida delas juntas, sem ela?

138
Ela balançou a cabeça. Foco. Ela colocou a foto de
volta no lugar e deixou o quarto. Ela estava aqui para
descobrir como Alison e Cosima estavam ligadas à
explosão e possivelmente também ao ataque em Boston.
Aquelas respostas tinham de vir primeiro, então talvez
ela pudesse pensar em todas as outras questões que
giravam em sua cabeça.

O gabinete de arquivos no escritório era mais fácil de


abrir do que a porta da frente e estava cheio de pedaços
de suas vidas pessoal e profissional: formulários fiscais,
faturas, recibos, boletins, desenhos escolares e até a
senha do computador, num Post-it, claro.

Donnie era dono de um negócio de construção que era


especializado em renovações de casas, que tinha sido
apresentado em um daqueles reality shows de TV. Alison
tinha uma loja online de artesanato e era, sobretudo, uma
super mãe. Gemma era um brilhante perdedora, Oscar
tão mediano e normal em tudo quanto seu pai. Mas o
instinto de Vivi dizia que havia algo mais em relação aos
Hendrix do que parecia e raramente seu instinto estava
errado. Ela iria descobrir algo, se cavasse fundo o
suficiente.

Vivi encontrou outro computador na lavanderia, que


também estava abarrotada de caixas de plástico cheias de
botões, alfinetes, barbante e feltro. Essa coisa de mãe e
artesanato não era, afinal, uma cobertura para outros
feitos nefastos, era apenas o estilo de vida de Alison. Ela
tinha também um teclado Korg, um violão elétrico, uma

139
bateria — e claramente algum tipo de crise de meia idade.
À primeira vista, a coisa mais ousada que ela fazia era
chá kombucha caseiro.

Ela ligou o computador e viu a tela de senha. Tentou


as senhas do Post-it do andar de cima, mas nenhuma
funcionou. Ela pegou um driver USB portátil do bolso, o
plugou e reiniciou o computador. Ela sentou para
descansar sua perna e bebericou kombucha enquanto
esperava o algoritmo descobrir a senha. Num computador
militar ou do governo, poderia levar horas, mas a maioria
das pessoas escolhia palavras simples e comuns e eram
suscetíveis a tentativas no dicionário ou chutes.

Não demorou muito para acessar o sistema. Vivi


verificou a senha: “SESTRA”, a palavra para irmã em
diversas línguas eslavas.

Ela instalou um script de registro e um programa e


acesso remoto a partir do pen drive, que permitiriam a ela
acessar o computador novamente, se necessário. Então
ela começou a copiar os arquivos de Alison. A maioria dos
quais eram previsivelmente indutores de sono, assim
como seus registros financeiros detalhados da casa e do
negócio, mas havia um arquivo na área de trabalho que
parecia interessante, intitulado “Orphan-Black-
Manuscrito6_Helena.”

Ela clicou para abri-lo e começou a ler: Minha


história é um emaranhado de vários princípios e nenhum
final. Mas vou começar com a história da minha sestra

140
Sarah, que, um dia, desceu do trem e se encontrou com ela
mesma.

Vivi respirou fundo. O início dessa história soava


como a vida dela nas últimas semanas, desde que ela
viera para Toronto. Seria possível que fosse também a
história dela?

Por mais que Vivi quisesse continuar lendo o


manuscrito, ela não tinha tempo para isso — para
nenhum desses pensamentos elaborados. Ela tinha um
trabalho a desempenhar. Mais tarde, quando vidas não
estivessem em perigo, ela mergulharia mais fundo.

Ela copiou o arquivo e continuou explorando. Ela


abriu o calendário de Alison e deu uma olhada. Essa
mulher era incrivelmente organizada. Cada hora de cada
dia estava agendada com reuniões de negócios, reuniões
da associação do bairro, treinos de futebol da Gemma,
aulas de piano do Oscar e até mesmo o sexo com Donnie.

E as noites de sábado estavam reservadas para algo


chamado ‘Chamada das Clones’.

“Clones?” Vivi disse em voz alta. Seu coração


disparou.

Mas clones não eram reais.

Clones eram impossíveis.

Não eram?

141
Vivi abriu o agendamento para ‘Chamada das
Clones’ da última semana e encontrou um link para o site
de chat criptografado Hush e um número de conferência.
Ela clicou no link e inseriu o número na janela do chat,
esperando que houvesse um arquivo transcrito que ela
pudesse baixar, mas ela se surpreendeu ao ver que aquela
sala virtual de conferência estava sendo usada naquele
exato instante, com quatro pessoas já logadas.

Ela encarou a tela. Se Cosima e Alison estavam


envolvidas com o incidente de Boston, então fazia sentido
que as pessoas mais próximas delas também fossem parte
disso. Essa era uma chance de conseguir informações
sobre elas e secretamente observá-las — suas expressões,
padrões vocais, maneirismos, no caso de ela precisar
personificar alguma delas de novo. Isso se tratava de
segurança nacional, não importando a estranha e pessoal
conexão que Vivi tinha com isso.

Vivi se assegurou de colocar o microfone no mudo e


desligar a webcam. Então ela logou na Chamada das
Clones.

142
Charlotte estava exausta depois da longa viagem e
sua perna doía em seu exoesqueleto. Ela queria apenas
desabar na cama do hotel, mas se Cosima tinha
organizado uma chamada das clones de emergência,
devia ser importante. Ela se sentou perto de Alison e
logou no software seguro de chat com vídeo.

Sentar apertada no carro por cinco horas não foi tão


cansativo quanto ouvir a tia Alison o tempo inteiro. A
clone mais velha parecia não suportar silêncio.

Por outro lado, o monólogo inconsciente de Alison


fora uma distração de seus pensamentos, que tendiam a
entrar em loop. Ela não conseguia esquecer uma ideia ou
desistir de um quebra-cabeças que a incomodava. Se
tinha um traço que todas as clones LEDA
compartilhavam, era a teimosia.

Isso e uma doença autoimune que ataca seus tecidos


epiteliais e se manifesta como uma enfermidade
respiratório que, se não tratada, leva à morte. Não se pode
ganhar todas as batalhas genéticas, mas, felizmente, o
inóculo estava na mochila de Charlotte neste momento e
estaria com Dana em Boston amanhã. Tudo que elas
tinham que fazer era entrar no hospital escondidas e
aplicar a dose da cura dela, sem revelar suas identidades
ou a existência de clones... fácil.

Cosima e Delphine já estavam no chat e Sarah


acabara de entrar. Ela parecia ter acabado de sair da
cama, seus cabelos emaranhados e bagunçados e ela
vestia uma camisa larga de algum show de rock.
143
Outra pessoa entrou no chat. A câmara estava
desligada e o microfone mudo, mas estava marcada como
‘Alison’. Charlotte apontou e levantou uma sobrancelha
de forma questionadora para Alison, que se sentava ao
seu lado, dividindo o mesmo computador.

Alison mutou o microfone. “Ah, provavelmente é o


Donnie.” Alison disse. “Ele tem um pouco de dificuldades
com tecnologia.”

Ela mandou uma mensagem privada para Donnie:

Está aí, Donnie?

Um momento depois, veio a resposta.

Sim!

Por que você não está usando a webcam? Alison


digitou.

Estou desarrumado. Ele respondeu.

Ah. Me manda uma foto! ;) Ela enviou.

Charlotte balançou a cabeça, desejando poder desver


a troca de mensagens.

“OK, acho que podemos começar.” Cosima disse. “Eu


não consegui entrar em contato com a Helena. Alguém
sabe se ela ainda está onde deveria estar?”

“Ainda está naquela coisa selvagem com os meninos.


Fee não vai conseguiu entrar também. Os sogros estão de
visita essa semana.” Sarah disse.
144
“E Donnie está escutando de casa.” Alison disse.

“E o Pai?” Charlotte perguntou. “Eu pensei que ele


ia estar na chamada?”

“Ele mudou de ideia. Disse que era muito perigoso.”


Cosima disse.

“Claro que disse.” Charlotte riu. Art sempre fora


superprotetor com seus filhos, mas enquanto Kira se
irritava com o mesmo tipo de tratamento por parte de
Sarah, Charlotte não se incomodava com isso se o fizesse
se sentir melhor — ele queria que ela soubesse que ela
estava segura e ela não queria preocupá-lo. Ela odiava o
fato de não poder ter contado para onde ia — e que quase
fora presa por isso — e que não podia ligar e pedir
desculpas.

“Ele tem quase certeza de que essa oficial do RCMP


— Priyantha é o nome dela, caso ela tente contatar
alguma de vocês — está de olho nele.” Cosima disse. “Mas
a boa notícia é que ele também está de olho nela. Eles não
sabem nada definitivo — ainda. Art está tentando
garantir que continue assim.”

“É só por ele ter feito um trabalho tão bom cobrindo


todos nossos rastros que eles ainda não bateram na nossa
porta.” Sarah disse.

“Ele e a DYAD.” Delphine disse. “Se o RCMP


continuar mexendo nisso, se eles esbarrarem nas clones
LEDA, o castelo de cartas que tanto protegemos pode
desmoronar.”
145
“Eles estão indo bem nisso.” Cosima disse. “Mais
tarde falamos mais disso. Vocês já estão em Boston?”

“Não, paramos em Chicopee para passar a noite.”


Alison disse. “Eu mal conseguia manter os olhos abertos
à noite.”

“Chicopee? Onde fica isso?” Delphine perguntou.

“No meio do nada, Massachusetts.” Charlotte disse.

“Vocês estão nos EUA? Pra que?” Sarah perguntou.


“Eu pensei que essa chamada era sobre a explosão e a tal
da clone espiã, Cos. O que está acontecendo?”

“Nós esbarramos na clone espiã no Pearson.”


Charlotte disse. “E—”

Alison a interrompeu e rapidamente deu ao grupo


uma descrição do que se passara entre elas e a ruiva no
aeroporto e como escaparam. Sarah se tornou mais
agitada a medida que ouvia sobre as triagens de
segurança se tornarem mais rígidas. Alison não pôde
evitar embelezar sua viagem angustiante pela fronteira.

“Você está bem, Charlotte?” Sarah perguntou.

“Bem. Só cansada e preocupada com amanhã.”


Charlotte disse.

“Ei, vocês conseguem.” Sarah disse.

“Obrigada, tia Sarah.”

146
“Por quanto tempo esse aumento na segurança nos
aeroportos vai valer?” Perguntou Sarah.

“Sobre isso.” Delphine se ajeitou ao lado de Cosima.


“Eu tive um encontro com Eloise Thibault essa manhã.
Tudo fora do radar.”

Cosima fez uma cara confusa quando Delphine


mencionou a palavra ‘encontro’.

“Ela me disse que eles vão expandir o programa de


triagens para as fronteiras.” Delphine disse. “Estão
preocupados que haverá outro ataque e, apesar do
principal suspeito ser daqui, achar o arquivo de Katja os
fez acreditar que talvez seja internacional. Isso e também
a desculpa conveniente para implementar checagens de
segurança antiéticas que estavam tentando há anos.
Tudo em nome da segurança pública.”

“Como vamos voltar para a casa?” Alison disse.

“Vai demorar um pouco até que implementem em


todas as fronteiras.” Delphine disse. “Eu aconselharia que
vocês tentassem voltar antes que fizessem isso.”

“Se eles capturarem o responsável pela bomba, a


segurança volta ao normal de novo?” Sarah perguntou.

“É o que recomendei.” Delphine disse. “Mas temo que


esse nível de segurança se torne o normal. É difícil voltar
este tipo de projeto, coitados dos direitos humanos.”

147
“E tem o pequeno problema de que qualquer uma de
nós daria positivo para um teste de DNA do sangue de
quem eles estão procurando.” Alison disse.

“Sem mencionar que eles talvez notem DNA idêntico


em duas pessoas diferentes.” Charlotte murmurou.

“Mas ainda é tudo muito circunstancial, não é?”


Sarah disse. “Se eles não conseguirem ligar nenhuma de
nós à explosão.”

Cosima fez uma careta. “Infelizmente, não mais. Art


disse que o RCMP recuperou gravações da explosão e que
sabem que eu estive no IPGT. Eles vão começar a me
vigiar.”

“O que? Por que não me disse isso?” Delphine disse.

“Estou dizendo agora.” Cosima disse. “A boa notícia


é que eles acham que na verdade sou uma espiã
americana chama Vivi Valdez. Priyantha acha que minha
identidade é apenas um de seus pseudônimos.”

“Isso é uma boa notícia?” Sarah disse.

“Cosima, se te prenderem pelo ataque—” Delphine


começou.

“Eu só vou conseguir provar que não sou uma espiã


internacional revelando que sou um clone.” Cosima disse.

“Então devemos tornar tudo público antes.”


Charlotte disse. Como eu sempre venho dizendo, ela
pensou. Eles deveriam ter feito tudo em seus termos há
148
muito tempo, sem suspeitas ou intrigas criminais, quando
tinham uma chance de controlar toda a narrativa.

“Isso seria um tiro no pé.” Sarah disse.

Delphine suspirou. “Não é hora pra isso, Charlotte.”

“Seria uma péssima ideia por muitos motivos.”


Cosima disse.

Alison olhou para Charlotte com culpa. “Eu


concordo.” Ela disse.

Charlotte enrijeceu sua mandíbula. Ela claramente


não iria ganhar essa luta hoje, não com tudo mais
acontecendo. Talvez ela nunca ganhasse, já que as clones
mais velhas não davam o mesmo valor a opinião dela que
umas das outras. Ela talvez fosse mais nova, mas ainda
era uma clone LEDA e sua vida importava o mesmo tanto.
Ela estava cansada de todos esses segredos ditando o que
ela fazia.

Sarah passou a mão pelos cabelos, frustrada. “Bom,


qual a situação com esse tal de Sturgeon?”

“Sturgis.” Cosima disse. “Boas notícias, na verdade.


Ele está vivo.”

“Yay?” Alison disse. “Isso é bom? A gente gosta dele?”

“Eh.” Cosima disse.

Sarah bufou.

149
Cosima atualizou todas sobre a conversa com Sturgis
e tudo que ele lhe contara sobre o IPGT trabalhar em uma
arma biológica que poderia almejar genomas específicos.

“Ele é estranho, mas acho que é do bem.” Cosima


disse. “Ele apenas passou os pés pela cabeça e tentou
fazer a coisa certa — mas era muito tarde. Acho que ele
tem algo que pode nos ajudar a parar esta arma. Acho que
ele esconde algo importante em seu apartamento — algo
que a polícia deixou passar. E ele quer que eu encontre.”

Delphine lançou um olhar a Cosima.

“Não se preocupe, vou ser cuidadosa.” Cosima disse.

Delphine suspirou.

A chamada das clones começou a se despedir.

“A propósito, Cos. Como está a Kira?” Sarah


perguntou.

Os olhos de Cosima se arregalaram levemente. “Ela


está bem!”

“Bom.” Sarah disse. “Só é estranho que ela não está


respondendo minhas mensagens.”

“Será que é?” Alison perguntou. “Ela precisa de um


tempo. Dê espaço a ela.”

“Bom, ela está por aí?” Sarah perguntou.

“Ela não está em casa agora.” Delphine disse.

150
“Só diz pra ela... diz que eu disse oi.” Sarah se virou
quando Cal apareceu na chamada atrás dela. Ele colocou
uma mão em seu ombro e se abaixou para beijar sua testa,
provocando um sorriso nela. Ele acenou para a câmera e
depois se afastou.

“Posso voltar pra cidade, se quiserem.” Sarah


continuou numa voz mais baixa. “Ajudar na situação.”

“As viagens são complicadas agora com tudo que está


acontecendo, você não devia arriscar.” Delphine disse.

Sarah estava quieta. “Claro. É, você está certa. Eu


vou ficar por aqui, então. Mas se precisarem de alguma
coisa — ou a Kira precisar —, me avise e estarei aí.”

“Obrigada, nós vamos.” Cosima disse, tímida.


“Alison e Charlotte, tenham cuidado amanhã no hospital.
Não podemos chamar mais atenção para nós do que já
temos.”

“Teremos.” Alison disse.

Quando Cosima saiu, Alison disse “Tchau, Donnie.”


A janela duplicada de Alison desapareceu.

Alison ficou quieta por um momento. Quando


finalmente olhou para Charlotte, a garota parecia
esgotada e triste.

“Você tinha que tocar no assunto de tornar tudo


público de novo?” Alison disse.

151
“Não vou deixar pra lá. As coisas seriam muito
melhores para nós.” Charlotte disse. “O RCMP está perto
demais e ninguém pode nos proteger mais. Nem o Pai,
nem Delphine. Se falássemos a verdade sobre as clones
LEDA, todos os problemas sumiriam.”

“E nós teríamos um monte de novos problemas. E


todas as mulheres por aí que não tem consciência de tudo
isso? Nem todo mundo ficaria feliz de descobrir que são
clones dessa maneira ou mesmo de qualquer jeito.” Alison
se sentou na cama. “A vida delas nunca mais seria a
mesma. Tem uma razão para que Cosima e Delphine
tenham sido tão cuidadosas em manter segredo quando
inocularam todas da lista. E amanhã teremos que ser
cuidadosas também, para que Dana não desconfie de
nada quando nós dermos a cura a ela.”

“Você não está cansada de se esconder?” Charlotte


perguntou.

“Estou apenas cansada, ponto.” Alison bocejou e se


deitou na cama. Ela vestiu uma máscara para os olhos e
se virou. “Boa noite.”

“Boa noite.”

152
Kira Manning se serviu de outra xícara de café da
máquina do escritório e voltou ao laboratório da
GeneKeep. Trazer comidas ou bebidas ao laboratório era
tecnicamente contra as regras, assim como permanecer lá
depois do horário — ou dormir no armário de suprimentos
à noite.

Ela também definitivamente não deveria estar


processando seu próprio DNA nos equipamentos da
GeneKeep.

Kira quebrava todos os tipos de regras ultimamente,


o que deveria ser assustador, mas de certa forma era
emocionante. Ela podia entender porque a mãe tinha
tanta dificuldade em fazer coisas que mães normais
fazem, mas isso era o máximo de crédito que Kira daria a
ela. Era hipócrita ficar incomodada com a filha não fazer
o ensino médio, quando você mesma não havia se
formado. De qualquer forma, ela planejava não só
terminar o ensino médio através dos cursos online, mas
também se formar mais cedo.

Sua mãe pensava que estava dando a ela uma vida


normal, uma vida segura, mas essas eram palavras
diferentes para chata e sufocante. Se ela pudesse escolher
entre mais um dia sob a guarda protetora da mãe ou ter
que lidar com bullies, ela escolheria bullies a qualquer
hora.

De qualquer forma, ela não sentia falta da escola.


Ela tinha dificuldade para fazer amigos e parecia que ela
não estava necessariamente disposta a fazer o que ‘devia’
153
também. Talvez tivesse um gene para isso. Ela apenas
não era do tipo de pessoa que ligava para bailes de escola
ou dormir na casa de colegas — como se sua mãe a fosse
deixar fazer isso — e ela queria mais da vida do que
apenas notas altas e um trabalho de meio período fritando
hambúrgueres ou algo assim. Ela queria coisas maiores e
estava convencida de que seu destino estava em seu DNA.

Kira bebeu do café morno e checou as horas. Duas da


manhã. Ela precisava descansar, mas ela não podia ir
dormir enquanto o sequenciador Adspectra Nanofibra
não terminasse de sequenciar seu genoma. Então ela
estava passando tempo na web — pena que a velocidade
da internet era muito lenta.

Uma nova mensagem de Charlotte chegou: uma


imagem preta com alguns pontinhos brancos.

O que é isso? Fantasmas? Kira digitou.

Os EUA! Pelo menos o que posso ver dele da janela


do meu hotel, pelo menos. Charlotte respondeu.

É exatamente como pensei. Por que ainda está


acordada? Preocupada com amanhã?

Não. Tia Alison me chuta enquanto dorme. Qual sua


desculpa? Ainda pensando na Emmaline? ;)

O rosto de Kira enrubesceu à menção da assistente


júnior de contato com a comunidade, que a estivera
ajudando a se adaptar ao estágio. Estou processando meu
DNA.
154
‘Processar DNA’? É assim que falam agora?

Para!

Ao contrário das unidades móveis que estavam


sendo utilizadas nos aeroportos — que poderiam
processar rapidamente uma amostra de DNA a partir de
um cotonete e selecionar identificadores específicos — o
equipamento mais pesado e comercial da GeneKeep
exigia que as amostras de sangue e saliva fossem
processadas manualmente, o que consumia muito tempo,
mas resultava em uma análise muito mais completa.

Mesmo que Kira ainda não fora treinada para


processar amostrar em seu mero estágio, era fácil achar o
passo-a-passo online. Além disso, você não crescia perto
de mulheres brilhantes como tia Cosima e tia Delphine
sem aprender como se virar em um laboratório. Elas
ajudavam Kira a gerenciar as próprias linhagens de rato
desde que ela estava no fundamental, antes da Mãe se
mudar e afastá-la — de tudo e todos.

Kira estava genuinamente animada pela missão da


GeneKeep de preservar e estudar genomas únicos e
potencialmente recuperar mutações raras e perdidas —
mas ter acesso aos equipamentos e recursos era um ótimo
bônus também. No entanto, ela estava se arriscando
muito pessoalmente. Ser pega significaria mais do que ser
despedida. Se eles vissem suas mutações genéticas,
perguntas surgiriam e ela começaria a se sentir um rato
de laboratório de novo.

155
Uma vez na vida, Kira estava cuidado de seu próprio
futuro, fugindo de casa para trabalhar aqui e então se
analisando no microscópio. Talvez fosse um erro, mas
seria um erro dela. Escolha dela. Ela não seria uma
ferramenta de ninguém ou alguém para se proteger ou
cuidar. Ela estava cheia disso.

Por falar nisso. Charlotte enviou, por mensagem.


Teve uma chamada das clones de emergência hoje.

Como foi? Kira digitou.

Tem muita coisa acontecendo... eu sugeri que


tornássemos tudo público de novo, mas...

Não adiantou.

Me cortaram de novo.

Claro.

Apenas se lembre do que concordamos.

Com certeza. Kira respondeu.

Além disso, sua mãe parece estar bem. Ela está


preocupada com você, mas está bem.

Kira sorriu. Obrigada.

Mesmo que a superproteção e paranoia de sua mãe


fossem um saco — e eram o motivo de ela ter que se
afastar um pouco —, ela a havia ensinado a ser
inteligente e cuidadosa. Kira sabia que precisava de um
lugar seguro na rede para armazenar um arquivo de
156
200GB contendo seu genoma, então apagou todos os
dados do sistema assim que terminou a análise. Até que
ela pudesse decidir se confiava ou não no Dr. Bai e na
GeneKeep.

Ela também gostava da ideia de enterrar a análise


em meio aos outros dados, de forma anônima, para que
um dia outras pessoas pudessem se beneficiar de sua
mutação salva-vidas sem ter que torná-la um objeto de
estudo.

Até lá, ela queria comparar seu genoma com todas as


outras centenas de milhares de sequências de DNA que a
GeneKeep possuía armazenadas. Claro, Kira sabia
exatamente onde procurar: um gene chama Lin28A, que
agia como um interruptor molecular para
desenvolvimento embrionário que regulava o
metabolismo de células-tronco.

Normalmente, Lin28A era desligado após o


nascimento, mas, em Kira, o gene permanecera ligado,
permitindo reprogramar e reativar suas células-tronco —
e assim promover a regeneração de tecidos danificados.
Kira rapidamente se recuperara de grandes danos
quando criança e, no passar dos anos, ela havia
metodicamente testado suas habilidades de cura
acelerada que pareciam ser, na falta de outro termo
melhor, milagrosas. Ela sabia que suas células-tronco
carregavam a promessa de curar todos os tipos de
doenças, então ela estava determinada a encontrar uma

157
maneira de ajudar os outros, preferencialmente sem ter
que se expor ou expor sua família de clones.

Ela também esperava descobrir se alguma outra


pessoa possuía uma mutação similar do Lin28A ou algum
gene relacionado. Ela não queria ser um floquinho
especial, ela queria achar outros como ela.

Kira pesquisou no diretório da rede, procurando por


uma pasta na qual ninguém esbarraria.

“Ugh, por que essa rede é tão lenta?” O som de sua


voz no laboratório vazio a surpreendeu. “Ótimo, Kira.
Agora você fala sozinha.” Ela provavelmente adquirira o
hábito de Emmaline. Ela falava tanto sozinha, que às
vezes Kira não sabia se era com ela. Ela meio que se
acostumara com pessoas falando perto dela e não com ela,
pra falar a verdade.

Mas sério, por que era tão lenta? Um lado ruim de


operar com um orçamento apertado sem fins lucrativos —
onde todo o seu financiamento era direcionado para
estudos de campo, células de fluxo de nanofibra que
custavam R$2000 (ela se sentia um pouco culpada de ter
usado um pouco do estoque limitado do laboratório) e
fazendo divulgação para convencer pessoas a dar um
pouco da informação mais privada que elas tinham — era
depender dessa infraestrutura de internet compartilhada
que contava com um software de gerenciamento de banco
de dados barato e não intuitivo.

158
Kira estivera ajudando a reorganizar os dados da
rede da GeneKeep — o banco de dados vinha crescendo
tão rápido que tudo ficara desorganizado — e ela sabia
que havia certos horários durante o dia em que a rede
ficava simplesmente travada por um longo tempo de
tanta gente a utilizando, geralmente no meio da manhã
ou bem depois do almoço. Além disso, a rede se tornava
lenta quando chovia ou mesmo qualquer tipo de mau
tempo. Mesmo comandos simples faziam o sistema travar
por longos períodos enquanto ela tentava armazenar a
coleção de Primeiras Nações e outras linhagens de
genoma canadenses raras. Tipo, ela entendia que os
genomas eram ridiculamente pesados para algo que
caberia na ponta de uma agulha, mas isso era trabalho
deles, os servidores não tinham que aguentar?

Mas ninguém mais estava ali agora e era uma noite


limpa e fria, então por que demorava tanto enquanto ela
tentava armazenar um único genoma?

Ela consultou o banco de dados a partir do console


sysadmin e estudou o tráfico de dados. Considerando que
não deveria haver nenhum tráfico na rede, era fácil de ver
onde o problema estava: servidor 4, um espelho de 24
terabytes do servidor 3, experienciava altas cargas de
processamento.

Você acha? Kira abriu a lista de processos e


encontrou um cliente VPN que puxava muitos dados.
Como se baixasse uma grande parcela dos arquivos do
sistema — nesse caso, os raros pacotes de genoma

159
canadense — para um site remoto. Ela checou o endereço
IP ao qual o cliente VPN estava conectado: um lugar
qualquer em Saskatchewan?

As palmas de Kira começaram a suar e seus dedos


formigavam. Um orçamento apertado significava uma
segurança precária. Eles não tinham nem mesmo
câmeras na GeneKeep, tornando-o talvez o lugar menos
vigiado da cidade. Ela queria finalizar o processo,
inicializar o servidor e reportar o que poderia ser um
grande vazamento de dados. Mas aquilo revelaria sua
presença quando ela não deveria estar lá, o que levaria a
muitas outras questões e sua provável demissão. Além
disso, poderia haver um bom motivo pelo qual alguém
precisava daqueles dados, como um pesquisador
trabalhando em campo... nas primeiras horas da
madrugada.

Kira balançou a cabeça. Ela estava pensando demais


nas coisas, mas ela definitivamente não iria armazenar
os dados de sua sequência genética em quaisquer dos
servidores da rede da GeneKeep. Ela os transferiria
direto do sequenciador para seu notebook até que ela
resolvesse este assunto.

160
“Não tem nenhum paciente aqui com este nome.”
Disse a jovem moça Desi na recepção do hospital. Ela
sorriu rapidamente, de forma não muito convincente,
antes de sua expressão voltar ao normal.

“Não pode estar certo.” Charlotte disse. “Você pode


checar de novo? Dana Emmet.” Ela soletrou o sobrenome
devagar.

As sobrancelhas da mulher se curvaram, mas ela


digitou o nome novamente. Charlotte notou que ela vestia
um crachá de voluntária e seu nome era Asha Agarwal.

“Ela não é uma paciente aqui.” Asha disse.

“Ela era uma paciente? Ela saiu recentemente?”


Charlotte perguntou. E se eles não a registraram?

Os olhos da mulher se voltaram para a tela. “Não


posso compartilhar essa informação.”

Charlotte olhou para o teclado de Asha. Ela só


precisava de trinta segundos no sistema.

“Posso te ajudar com mais alguma coisa?” Asha


perguntou.

Você não me ajudou em nada, Charlotte pensou.


“Não, obrigada. Vou ligar para minha tia e checar minha
informações.”

“Tenha um bom dia.” Asha disse.

161
Charlotte se virou. Ela puxou seu celular enquanto
passeava lentamente pela área de espera do hospital. Ela
ligou para Alison.

“Já acabou?” Alison disse ao atender. “Ótimo!


Teremos tempo de passar em Harvard para você
conversar com eles sobre os programas de pós-
graduação.”

“Eles disseram que ela não está aqui.” Charlotte


sussurrou.

“Bobagem.” Alison disse. “Certeza que estamos no


lugar certo?”

“A página do DoeUmaMoeda mencionava que ela


estava sendo tratada no Hospital Folger.” Charlotte
sentou-se em um dos cantos da sala, onde ela podia falar
com calma sem ser ouvida — e onde ainda podia ver a
mesa de recepção.

“A página caiu.” Alison apontou. “Talvez tenha sido


um erro.”

“Ou alguém quis encobrir alguma coisa.” Charlotte


disse.

“O que é mais provável? Um erro ou uma


conspiração?” Alison perguntou.

“Em nossas vidas?” Charlotte disse.

Elas falaram juntas: “Conspiração.”

162
“Viemos até aqui e temos que entregar a cura a
Dana. Não podemos desistir.” Disse Charlotte.

“Ela pode ter sido transferida. Ela pode ter tido alta.
Ela pode ter...” Alison não ousou dizer.

“Vou dar uma olhada por aqui, só para ter certeza. É


uma coisa esconder um nome em uma base de dados,
outra esconder uma pessoa real e doente. Se ela está aqui,
eu a encontrarei.” Charlotte disse.

“Espere, vou com você.” Alison disse.

“Não. Uma clone bisbilhotando já ruim o suficiente.


Dois clones é pedir encrenca.” Charlotte disse. “Eu
encontrarei Dana, a inocularei e sairei antes que você
saiba.”

“Ótimo. Então vou esperar no carro.” Alison


suspirou. “Me mande mensagem se arrumar alguma
encrenca.”

Charlotte enviou rapidamente uma mensagem a


Kira contando o que estava acontecendo e pedindo para
desejar boa sorte. Kira respondeu imediatamente:

Boa sorte! Então um momento depois: Como dá pra


saber se alguém está flertando com você?

Charlotte sorriu. Pelo menos alguém estava tendo


um bom dia.

163
Charlotte baixou o mapa do hospital e localizou o
escritório de voluntários. Era do lado oposto do lobby,
perto da loja de presentes.

Charlotte aguardou até que Asha estivesse ocupada


com um grupo pequeno de visitantes, então avançou até o
escritório e passou pela sua mesa, abrindo a porta, como
se o fizesse todos os dias. Ao entrar, se aliviou ao ver que
não havia mais ninguém lá. Ela checou todos os
escaninhos até encontrar um que estava destrancado.
Dentro, havia uma jaqueta de voluntários cor de salmão
igual à de Asha, com um crachá de identificação.

Charlotte não se parecia em nada com Nina Small,


uma garota de 16 anos com cabelos curtos e negros e um
piercing no nariz, mas a jaqueta coube razoavelmente
bem sobre a blusa branca e a saia preta de Charlotte.
Charlotte desfez seu rabo de cavalo e amarrou o cabelo
em um coque. Ela agarrou um par de óculos da vasilha de
achados e perdidos e os vestiu.

Ela virou o crachá ao contrário e se virou para abrir


a porta. Então ela viu um carrinho de biblioteca ao lado.

O carrinho era a oportunidade perfeita de visitar


todos as salas de paciente do hospital. Se Dana estivesse
ali, Charlotte a encontraria — eventualmente.

Após visitar cinquenta e oito salas, jogando conversa


fora e trocando livros usados, Charlotte estava cansada e
impaciente. Era o andar mais alto, o último com

164
pacientes, e ela ainda tinha a outra unidade do hospital
para procurar.

Charlotte se dirigiu à asa leste o mais rápido que o


carrinho e seu exoesqueleto permitiam. Mas ela foi pega
de surpresa por um guarda de segurança que estava
sentado na entrada do corredor leste. Ela decidiu ir em
frente, até que ele a parou.

“Essa asa está fechada, senhorita.” Ele disse, nem se


dando o trabalho de tirar os olhos de seu telefone. Ele
jogava algum joguinho com coloridas frutas brilhantes.

“O que?” Charlotte perguntou. “A asa inteira? Desde


quando?”

“É, o lugar todo. Desde uns dias atrás. Alguém lá


dentro não está em condições de ficar lendo.”

O coração de Charlotte acelerou. Tinha de ser ali. A


página de Dana tinha desaparecido apenas há alguns
dias também.

“OK, obrigada.” Ela disse. Ela deu meia volta com o


carrinho e se afastou.

“Ei, posso ver sua identidade?” O guarda pediu.

Charlotte fechou seus olhos, apertando os dentes,


então balançou para o lado com um grito de dor,
derrubando o carrinho e todo o seu conteúdo no corredor.
Ela apertou sua perna e desabou no chão.

165
“Senhorita? Você está bem?” O guarda correu para
se aproximar.

“É... minha perna.” Charlotte disse, com a


mandíbula travada. “Você pode buscar ajuda?”

“Claro, claro. Só não vá a lugar algum.”

“Não poderia— nem se quisesse.” Charlotte respirou


fundo. “Ai!”

Se tia Alison me visse agora, Charlotte pensou. Mas


não, ela só ficaria preocupada com as circunstâncias da
performance.

O guarda pegou um walkie talkie e começou a


chamar por ajuda enquanto descia o corredor. Ele se virou
para olhá-la uma vez, mas assim que ele desapareceu pela
esquina do corredor, Charlotte estava de pé e correndo
pelo hall. O lado ruim era que ele traria muita gente e
eles procurariam por ela. Mas se ela fosse rápida, ela
poderia estar no quarto de Dana, dando a vacina a ela, e
estaria fora antes que a capturassem. Ela anotou
mentalmente as saídas de emergência e alcançou a
pequena bolsa contendo a seringa carregada com uma
dose da cura para a doença das clones.

A maior parte das salas estava aberta e escura,


exceto uma, no final no corredor. A porta estava fechada
com a palavra PARE em grandes letras vermelhas,
seguidas de TRANSMISSÃO PELO AR/ISOLAMENTO
DE CONTATO.

166
Aquilo era estranho, considerando que a doença das
clones não era contagiosa, mas talvez esses médicos
americanos estivessem ainda mais perdidos do que
pareciam estar na TV. Um quadro tinha vários desenhos
de pessoas seguindo um passo-a-passo.

1. Pare e consulte a equipe antes de entrar.

Ela meio que fizera aquilo.

2. Lave as mãos antes de entrar e ao sair.

Charlotte passou um pouco do conteúdo do


higienizador de mãos ao lado e esfregou as mãos
vigorosamente.

3. Vista máscara, luvas e roupão de isolamento.

Charlotte olhou à sua volta e agarrou um roupão de


um carrinho próximo, assim como luvas e máscara.

Ela hesitou. Isso não parecia certo. Se era Dana ali,


por que ela estava em isolamento — e sob guarda? Mas
Charlotte havia visitado cada outra sala de paciente,
então se ela estivesse no hospital, tinha de ser ali. A
doença das clones era assustadora, então talvez eles
estivessem exagerando um pouco, tomando precauções.
Mesmo assim, ela se sentiria melhor se prosseguisse com
mais calma.

Ela ouviu gritaria vindo do final do corredor,


dirigindo-se à asa leste. Eles iriam dobrar a esquina a
qualquer momento e vê-la.

167
Acabou o tempo. Charlotte vestiu a máscara e abriu
a porta. Ela entrou no quarto e fechou a porta suavemente
atrás de si, segurando a maçaneta para baixo e
lentamente a soltando. Ela virou a fechadura, por
precaução. Havia uma escada de saída logo fora da sala e
ela poderia sair dali rapidamente. Tudo que precisava
eram trinta segundos com Dana.

A sala era pouco iluminada, uma cortina no meio


dividindo-a em dois. Cheirava a antisséptico. Bips,
gotejamentos e zumbidos preenchiam o espaço fechado. O
som de uma irregular, superficial respiração. Charlotte se
aproximou da cama de hospital, reconhecendo a mulher
ali deitada, mesmo do outro lado da sala, mesmo com
tubos subindo por suas narinas. Porque ela era
exatamente como Charlotte e as outras clones LEDA.

“Olá, Dana.” Charlotte sussurrou.

Ela olhou preocupada para a porta enquanto puxava


o cobertor de Dana e subia a manga de seu fino avental.
Ela atrapalhou-se com o zíper de sua bolsa por causa dos
dedos enluvados, então retirou as luvas e as deixou cair
no chão. Alcançou o interior para pegar a seringa. Uma
rápida picada da agulha e ela estaria fora dali. Então ela
olhou para baixo e soltou o braço de Dana. Charlotte
engasgou e se afastou, levando as mãos à sua boca
coberta.

Um hematoma púrpuro e agressivo, não, uma


erupção cutânea áspera e que escorria— filamentoso,

168
espalhado no bíceps de Dana com veias que se estendiam
pelo antebraço, ao redor do pulso.

Charlotte pegou seu celular e digitou rapidamente


para Alison:

NÃO é a doença das clones. FIQUE LONGE DO


HOSPITAL!

Então Charlotte viu suas mãos descobertas, que


haviam acabado de tocar o braço doente de Dana. As luvas
estavam caídas no chão, perto da cama.

E ela achara que sairia rápido dali.

169
Episódio 04

Ignorar o óbvio

‘O clube das clones percebe que há um


infiltrado, Charlotte descobre algo
chocante e Cosima entra em perigo.’
Anteriormente, em Orphan Black: TNC:

Alison e Charlotte vão até Boston para descobrir a


verdade sobre Dana, a clone desconhecida. Art interfere
na investigação do RCMP. Kira descobre uma falha de
segurança na rede da GeneKeep. Vivi se disfarça para
descobrir quem são as sestras e descobre mais do que
esperava.
Charlotte olhou para a mulher — a clone — na cama
de hospital. Era assustador: a mancha escura rastejando
por debaixo de seu avental, como algo vivo, o chiado em
sua respiração. Esta não era a doença das clones, cuja
cura estava na cintura de Charlotte. Isto era algo
totalmente diferente.

Em sua mão, o telefone de Charlotte vibrava


incessantemente, como um mosquito, enquanto Alison
enviava uma dúzia de mensagens, sem parar:

Do q está falando????

Não é a doença das clones??

Mas ela esta doente??

CHARLOTTE O QUE ESTA ACONTECENDO

MOCINHA, VOCÊ NÃO ME RESPONDE, PQ N


VEJO VC DIGITAR?

Dana, a clone, respirou fundo ao acordar assustada.


Charlotte deu um passo para trás, enfiando seu celular no
bolso de trás de seu jeans, enquanto Alison continuava o
ataque. Ela se virou para a proteção plástica na sala, as
mãos se atrapalhando ao procurar o zíper, mas se
interrompeu. Agora todos os procedimentos de
quarentena faziam sentido. Para uma doença que, ao que
parecia, não tinha mesmo uma cura. Ela estava presa ali,
pelo menos até obter algumas respostas ou,
esperançosamente, tratamento. Respostas que essa

172
mulher, provavelmente ignorante de seu status de clone,
não deveria poder dar.

“Ei.” Dana murmurou, seus olhos ainda pesados.


“Você acordou.”

Pânico arranhou a garganta de Charlotte, como uma


irritação. Quem ela pensava que Charlotte fosse?
Charlotte cerrou suas mãos em punhos e torceu para que
a óbvia sonolência de Dana a desse alguma cobertura.

“Eu...” Sua voz saiu arranhada, então ela tentou de


novo. “Eu queria... ver como você está.”

Pronto. Uma resposta agradável e suave. Ela podia


ser qualquer uma. Charlotte mentalmente se deu
tapinhas nas costas.

“Eu— ah, desculpe. Pensei que fosse Bridget.” Dana


fechou seus olhos enquanto afundava de volta nos
travesseiros e Charlotte soltou ar pelo nariz. Rápido,
antes que Dana acordasse de novo, ela alcançou a ficha
pendurada na parede ao lado da cama de Dana e a
examinou. Informações, ela precisava de mais
informações—

Seu olhar pousou sobre a data de nascimento da


mulher, escrita no topo da página, confirmando o que elas
suspeitavam. 1993. Essa clone não viera do Projeto
LEDA.

“Espere.” Dana se levantou novamente, piscando


para afastar o peso sedativo em seus olhos. “Você não é...”
173
O cérebro de Charlotte saltou com as palavras que Dana
quase disse: Você não é uma de nós. Ela sabe que é uma
clone. Ela conhece outras. “Como você...”

Com uma rapidez inesperada, Dana se jogou para a


frente para alcançar o botão de emergência no painel
próximo da cama.

“Por favor! Não!” Charlotte gritou. “Eu posso


explicar tudo—”

O braço de Dana pairou no ar, tremendo, enquanto


ela lançava a Charlotte um olhar aguçado.

“Tá— OK, eu posso explicar algumas coisas.” Ela


admitiu. Dana bufou com a frase. “Mas também preciso
de respostas.”

“Você é jovem.” Dana disse, sem rodeios.

Charlotte piscou. “Todo mundo fica me lembrando


disso.”

A cabeça de Dana se virou enquanto ela estudava


Charlotte, fazendo algum tipo de cálculo que Charlotte
podia só imaginar. Sua surpresa não surgira do rosto
idêntico de Charlotte, afinal. Só do fato de que ela não era
essa tal de ‘Bridget’. Seria Bridget uma clone também?

Finalmente, a mão de Dana descansou, sem apertar


o botão, e ela se encostou na cama. “Pensei que
soubéssemos de tudo.” Dana disse. Ela apontou para si
mesma, balançando o fio do oxímetro em seu dedo. “Então
veio isso...”
174
“É contagioso?” Charlotte perguntou. Mais uma vez,
o celular chacoalhou em seu bumbum.

“Parece só afetar a mim e às minhas, hum...” Dana


franziu a testa. “Primas.”

Ela estava blefando com Charlotte. Desafiando-a a


admitir o que ela sabia.

Charlotte arrastou a frágil cadeira de visitantes até


o lado da cama e se sentou. “Que tal eu começar?”

175
“Entende o que eu digo? Ela se parece e age
exatamente com a Alison.” Donnie disse, seu rosto
pixelado na chamada em grupo de emergência. Ele
compartilhou um vídeo da câmera de frente da casa,
mostrando uma clone que poderia muito bem ser Alison
se aproximando da porta e entrando. Só que não podia ser
Alison, pois Alison estava em sua minivan nos arredores
do hospital em Boston. Donnie apertou os olhos ao se
aproximar mais da tela. “Na verdade, eu acho ela... um
pouco...”

Cosima e Delphine trocaram um olhar por cima do


notebook, fora da vista das sestras.

“Menos arrumada?” Alison perguntou, narinas


dilatadas.

“Mais em cima.” Donnie terminou.

“Mais nova.” Cosima disse, falando por cima dele o


mais rápido que pôde.

“Tem de ser ela. A agente da CIA cujo sangue o


RCMP encontrou no local da bomba.” Art murmurou.

“E provavelmente a ruiva que abordou a gente na


fila de segurança do Pearson.” Alison bufou. “Mostre ela
subindo as escadas de novo. Ela está mancando, né? Como
se estivesse machucada?”

“Sim, tem razão!” Donnie deu replay na gravação da


Não-Alison se aproximando da porta. Havia uma fraca

176
dificuldade em seu caminhar. “Ela deve ser a que entrou
na chamada das clones fingindo ser eu. Que bizarra!”

Cosima resmungou. “Por que ela está invadindo a


casa da Alison, em primeiro lugar? Por que ela seguiu
Alison e Charlotte até o aeroporto? Ela pelo menos sabe
que é uma clone?”

“Se antes da chamada ela não sabia...” Alison disse.


“Sabe agora.” Ela soprou, afastando a franja. “Que
bagunça. Charlotte está presa lá dentro—” Ela gesticulou
para além da minivan na direção do que Cos assumiu ser
o Hospital Lydia Folger Fowler. “Com uma clone doente e
temos uma outra enfiando o narizinho torto em nossos
assuntos.”

“Hum...” Cosima apoiou a caneta em sua boca. “É


torto mesmo, né?” Ela apertou os olhos para assistir à
gravação de novo. “Quebrado. Sturgis mencionou isso
sobre ela, de quando ela o abordou no IPGT. Logo antes
de explodir.”

“Bom...” Art disse. “Alguma chance de que o Sturgis


preencha algumas lacunas sobre o que ela queria no IPGT
e com a gente? Você teve alguma sorte em contatá-lo?”

“Não. Está provavelmente ocupado fazendo um


sotaque falso para algum balconista inocente ou algo
assim. Ou isso ou ele acha que vou estragar o ‘disfarce’
dele agora.”

“Droga. Ele é a peça chave para descobrir o papel do


IPGT nisso tudo— e talvez o da CIA.”
177
“OK. OK. Vamos nos dividir, certo? É o que fazemos
melhor.” Cosima respirou fundo. “Alison, nos atualize
sobre qualquer progresso que Charlotte faça com a clone
doente. Art, qualquer coisa que você descubra sobre a
investigação do RCMP e a direção para a qual vai seria
útil. Aí poderemos planejar o melhor jeito de desviá-la.”

“Não tenho muito o que fazer por agora.” Ele disse.


“Mas vou tentar.”

“E você, Cos?” Alison perguntou.

“Eu tenho que investigar a situação do Sturgis o


melhor que puder. Talvez ela esteja nos seguindo por
achar que eu esteja envolvida, de alguma forma, já que eu
também estava no IPGT aquele dia. Isso e a óbvia loucura
do negócio de clones. Se eu descobrir no que ele estava
trabalhando ou o que quer que seja que ele quisera dizer
com ‘platina debaixo do meu braço’, talvez isso me leve a
ela.”

“Soa perigoso.” Alison disse.

Cosima deu de ombros. “É o melhor que temos.”

“Por favor, tome cuidado.” Alison disse.

Art lançou um olhar a ela. “E fique fora de encrencas.


Sério.”

“Sempre fico.” Cosima respondeu.

Após algumas despedidas rápidas, eles deslogaram e


Cosima fechou o notebook com um gemido e viu o rosto de
178
sua esposa diretamente atrás dele, uma sobrancelha
levantada.

“Você tem uma opinião.” Cosima disse.

Delphine levantou a mão livre em sua defesa.

“Por favor. Você sempre tem opiniões. Vamos ouvir.”

“Como você disse, você é a pessoa que visitou o


instituto logo antes de... disso.” Delphine balançou a taça
de vinho ao seu redor, o líquido se mexendo em seu
interior. “A investigadora sabe que Katja Obinger e Beth
Childs estão mortas. De acordo com Art, isso deixa você
como a principal suspeita, a menos que eles acreditem em
fantasmas.”

“Não temos certeza disso. Eu não tenho nenhum tipo


de ocorrência— no Canadá.” Cosima rapidamente
emendou. E tipo, posse realmente contava?

“Sim, mas essa oficial pensa que são todos


pseudônimos para uma espiã americana e que você é a
única persona ainda viva. Você foi registrada ao visitar o
IPGT. A entrevista de trabalho... Você acabou de passar
lá, pelo amor de Deus. Eles têm seu currículo, seu registro
de visitante na recepção. Cosima.” Delphine envolveu seu
rosto com ambas as mãos— bom, com uma mão e com a
grande taça de Zinfandel. “Deixe-me te ajudar. A general
Thibault da força tarefa da BioThreat me ajudou muito
até agora. Nos encontramos após aquele desastre de
reunião.”

179
“Ceeeeerto.” Cosima disse de forma arrastada. “Seu
‘encontro’ no café.”

Delphine revirou os olhos. “Ela gosta de mim porque


eu a lembro de si mesma quando ela era mais nova. Não
acho que seja mais nada além disso.”

“Certo. Só vou ser adoravelmente possessiva ao invés


de ciumenta fervorosa, então.”

“Realmente adorável.” Delphine deu um tapinha em


seu nariz. “Acho que ela está disposta a compartilhar
mais informações do IPGT comigo, se souber de algo. Por
favor, quero ajudar.”

Normalmente, Cosima pegaria os pulsos da esposa


em suas mãos e os abaixaria lentamente enquanto a
cobria de beijos. Mas —deus, ela odiava admitir isso—
Delphine tinha razão. Mesmo assim, a ideia de colocar a
esposa em perigo, de envolvê-la com agentes da CIA e
bombardeios de laboratórios de genética e merdas desse
tipo, a fazia se sentir tão nervosa que nem mesmo o
melhor baseado de Wookie a acalmaria.

Então Cosima tomou a taça das mãos de Delphine e


deu um grande gole. Delphine sorriu levemente e
caminhou em direção à recém-reformada sala de estar,
tomando cuidado ao pisar nos plásticos antes de
desmontar na cadeira.

Cosima se aninhou em cima dela e apoiou a cabeça


em seu ombro. Delphine tentou dar a ela um olhar de
repreensão, mas falhou, então moveu um braço para
180
acariciar suas costas. Cosima derreteu-se com o toque,
deixando escapar um longo suspiro. “Eu não quero que
você se envolva com nada que poderia machucá-la, OK?”

Delphine estreitou os olhos. “Então você entende o


que estou falando.”

Cosima rolou para o lado, ainda envolvida em sua


esposa. “Vamos pensar racionalmente. Afinal, somos
cientistas ou algo assim, né?”

“Algo assim.” Delphine disse, com um leve sorriso.

“Sturgis sabia sobre a DYAD, então talvez ele saiba


sobre a clone com quem Charlotte está em Boston.”
Cosima levantou as sobrancelhas, esperando para ver se
Delphine perceberia onde ela queria chegar.

“Sturgis disse que seu trabalho era relacionado ao


direcionamento a genomas específicos.” Delphine disse.
“E clones são exatamente isso. Mas você não mencionou
esse detalhe na chamada.”

Cosima suspirou. “Não queria que todos entrassem


em pânico. Já está terrível do jeito que está, certo?”

“O quê?” Delphine murmurou. Então acrescentou


com suspeita: “Eu conheço esse olhar.”

“Se ele estava envolvido em algo sério e tinha


dúvidas sobre isso, então talvez ele estivesse trabalhando
em um jeito de impedir isso. Se eu o encontrar ou
encontrar suas anotações... Ah, e talvez encontrar a

181
verdadeira clone responsável pela explosão, desviando a
atenção de mim...”

Delphine suspirou e afundou mais na cadeira. “Nada


disso os impediria de te prender se você der motivo a eles
e aí não teria jeito de te provar inocente sem expor todo
mundo. Talvez eu possa pedir gentilmente para receber
acesso aos arquivos do IPGT.”

“É...” Cosima disse com um suspiro. “É, acho que


você está certa.”

“Então você vai me deixar cuidar disso?” Delphine


pressionou.

Elas se encararam. Sua esposa era muito boa em


projetar um exterior calmo e tranquilo não importa o que
acontecesse — o que às vezes era como uma maldição,
especialmente quando elas se conheceram e Delphine
mentira consideravelmente. Isso a ajudou bastante como
expert em ética médica, garantindo um lugar na força
tarefa da BioThreat. Mas Cosima podia enxergar traços,
fracas sombras, do que estava sob a superfície. Delphine
tinha medo de que faria algo drástico que só pioraria as
coisas. Cosima queria que ela estivesse errada. Mas
querer era o suficiente? Se um pouco de risco agora as
poupassem de um monte de drama clone mais para a
frente, será que não valia a pena?

“Eu prometo.” Cosima levantou o dedo mindinho.


Quando Delphine não o pegou, ela o bateu levemente em
seu nariz. “Não vou piorar as coisas.”
182
Ela torcia para que isso fosse verdade.

183
Dana deixou ar escapar, surpresa. “Uau. Duzentas e
cinquenta? Isso é... muito.”

“Minhas tias inocularam o máximo que puderam —


quase todas, no final. Mas você— você não é do mesmo
projeto, é? Você é mais nova.” Charlotte olhou além da
sala para os corredores da ala de isolamento. Ela foi direto
para o espaço marcado como sendo de Dana, mas se
houvesse outros... “Todas as suas, ah, primas, também
estão—?”

“Estão.” Dana disse, rispidamente o suficiente para


que Charlotte fizesse uma pausa. Ela esperava que
compartilhar sua história fizesse Dana se abrir mais do
que isso. OK, ela deixou de lado as corporações malignas,
a miríade de conspirações e muito mais, mas telas não
tinham muito tempo. Ela precisava entender o que estava
acontecendo ali e rápido.

Charlotte pausou, uma coceira surgindo em seu


pescoço. Ela já tentava coçá-la antes que pudesse
perceber. Estava acontecendo. O que quer que fosse essa
doença, a incubação era extraordinariamente rápida.
Charlotte enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta de
voluntário e tentou não pensar sobre o leve chiado que
surgia em sua respiração.

Dana suspirou, afundando nos travesseiros. Sua pele


estava cheia de manchas escamosas de cinza e vermelho
que se destacavam do nítido branco da roupa de hospital;
seus cabelos, castanhos com um leve toque de dourado, se

184
aglomerava com o suor. “Desculpe, eu... Eu só pensei que
fôssemos as únicas. Não faz sentido.”

“Você também as encontrou por acidente?” Charlotte


perguntou, se inclinando para a frente. “Suas primas.”

“Não. Eu— nós sempre nos conhecemos. Crescemos


juntas. Meio bizarro para pessoas de fora, tenho certeza,
mas nunca nos pareceu estranho. Todos os nossos pais
trabalham em diversos departamentos do governo; cada
um recebeu um bebê. Um experimento social, eu acho.
Todas morávamos no mesmo bairro, íamos à mesma
escola do fundamental — éramos as únicas estudantes,
claro —, apesar de terem nos mandado para diferentes
escolas espalhadas pelo país no ensino médio. A essa
altura éramos maduras o suficiente para saber que aquilo
não era normal— que não devíamos falar sobre aquilo.
Não nos impediu de manter contato, no entanto. Vivíamos
na mesma cidade, pelo menos algumas de nós. Mas nada
perto do drama do que você teve que lidar.” Ela sacudiu a
mão. “Acho que é menos interessante, né?”

“Menos interessante é bom às vezes.” Charlotte


disse. Não que ela tivera muitas oportunidades de testar
essa hipótese.

Dana sorriu calorosamente, um eco mais jovem do


sorriso materno que Charlotte já conhecia de Alison,
Sarah, Helena. Por um momento, seu coração se retorceu,
uma espécie de sofrimento que ela não conseguia definir.
Ela tivera mais sorte do que a maioria— sua ‘mãe’ nunca
escondera o que ela era e ela fora apresentada às outras
185
LEDA quando ainda era bem nova. Elas a acolheram, a
amaram como a uma filha. Mas ela não era uma filha, ou
mesmo uma irmã. Ela sempre estivera fora do círculo.
Como seria se ela tivesse tido esse conforto de Dana e seu
grupo, sobre quem eram e o que significavam uma à
outra?

“Você disse que me achou no DoeUmaMoeda?” Dana


perguntou, interrompendo seus pensamentos. “Deve ter
sido coisa dos meus amigos do trabalho— eles não sabem
das minhas primas, obviamente.”

Charlotte deu um meio sorriso. “Eu nem estava


procurando mais clones na hora. Mas derrubaram a
página bem rápido.”

Dana apertou os lábios ao acenar. “Eles fazem isso.


Qualquer tipo de post não autorizado em redes sociais...”

“Eles?” Charlotte perguntou, uma sobrancelha


levantada.

Dana afastou o olhar. “Nossos pais. É o... trabalho


deles. Temos nossas próprias vidas, separadamente,
mas... existem regras.”

Charlotte aguardou que ela continuasse, mas aquela


linha de raciocínio não chegaria a lugar nenhum.

“No início, pensamos que era só algum tipo de virose.


Parecia ser altamente contagioso, mas nós éramos as
únicas que se infectavam. Foi quando eles começaram a
186
pensar que talvez fosse um ataque. Algum tipo de doença
direcionada.” Dana olhou diretamente para Charlotte.
“Claramente alguém sabe quem — o que — somos. E se
realmente era direcionada a nós, então provavelmente
você vai pegar também.”

187
Kira acordou com seu celular vibrando em seu peito,
onde ele havia ficado desde que ela dormira. Ela acordou
assustada e tentou esticar seus braços, mas ao invés disso
bateu seu cotovelo com força nas paredes apertadas ao
seu redor. Um pânico momentâneo — salas escuras,
instrumentos afiados —, antes que ela se lembrasse.

Ela dormira de novo no armário de suprimentos na


última noite.

Ela lutou para se levantar, esbarrando numa pilha


de cartuchos de impressora ao seu lado, e abriu a porta.
As luzes sensíveis a movimento do hall da GeneKeep se
acenderam, uma a uma, enquanto ela ia em direção ao
banheiro.

Deus, Kira, o que você está aprontando? Ela podia


praticamente ouvir a voz de sua mãe enquanto ela se
enxaguava no chuveiro da academia e escovava os dentes
na pia. A ansiedade persistente em relação aos estranhos
picos de dados que ela identificara na noite anterior ainda
estava presente. Mas só porque sua mãe tinha (e com
razão) traumas sobre o DNA das pessoas sendo usado
para o mal, não significava que era o único jeito de se
usar, certo?

Ela ficou pelo menos uma hora em sua mesa,


limpando vestígios de sua atividade anterior de
sequenciamento, antes que mais alguém aparecesse.
“Uau, você chegou mais cedo. De novo.” Emmaline disse,
colocando um copo descartável com café próximo ao
mouse de Kira. “E você não foi a última a sair ontem?”
188
Kira deu um chute para esconder mais a mochila
com suas coisas por debaixo da mesa. “É, bom... eu tenho
dificuldades pra largar as coisas depois que me envolvo.”

A cabeça de Em se inclinou para o lado e o estômago


de Kira revirou. Às vezes, Em era a suave,
impossivelmente sofisticada, jovem de vinte e poucos
anos, mas às vezes — como agora — os poucos anos entre
elas desapareciam, deixando para trás uma garota tão
sobrecarregada e insegura quanto a própria Kira. Kira
não sabia decidir de qual Em ela gostava mais.

“Você é realmente dedicada. Como o Dr. Bai.” Um


sorriso irônico surgiu nos lábios de Em (atualmente de
uma cor forte de ameixa). “Seu trabalho não é, tipo, só
para preencher suas aplicações para a universidade.
Gosto disso.”

Seu coração tremulou. “Nós, hum... nós não podemos


construir um futuro melhor se não entendermos o que faz
de nós... nós.” Por favor, Kira. Falou igual um panfleto da
Nova Era.

Mas Em bufou e disse. “Talvez devessem usar essa


frase como novo slogan da GeneKeep.”

“Haha, é.” Hesitantemente, ela tentou pensar em


alguma resposta rápida, alguma coisa para manter a
conversa — para manter Em olhando para ela daquele
jeito, como se estivesse realmente impressionada. Mas
Em se afastou com um sorriso e um aceno, tranças
brilhando na luz fluorescente.

189
Kira olhou para o café que Em deixara ali e tomou
um gole. Leite de amêndoa, com um tanto de xarope de
baunilha. Sem pensar, ela tomou outro gole.

Depois de terminar suas primeiras tarefas


administrativas, Kira checou de novo o console sysadmin
para ver se conseguia descobrir mais alguma coisa sobre
a estranha conexão VPN que encontrara na noite
anterior. Mas a conexão já estava fechada, não deixando
nenhum log para trás. Como se ela tivesse imaginado
tudo. Kira mordiscou a borda de papel do copo enquanto
fuçava mais um pouco, mas não conseguia encontrar
nada. Mesmo assim, aquilo dava arrepios a ela. Só pra ter
certeza...

“Em?” Ela perguntou por sobre os ombros. “Tem


alguém fazendo trabalho de campo em Saskatchewan?”

“Vamos ver...” Em se aproximou e abriu o calendário


em seu tablet enquanto olhava por sobre os ombros de
Kira. “Não, não vejo ninguém. Sanjay está em campo no
Vietnã esse mês inteiro, tentando reconstruir os dados
das vítimas do Khmer Rouge, Ngozi está fazendo
pesquisas em populações Cajun perto de Baton Rouge...”
Ela desligou o tablet. “Por que pergunta?”

“Tentando entender a fonte de alguns picos de dados,


só isso. Alguém estava baixando dados recém adquiridos
da vila de Nasgwine’g.”

190
Em deu de ombros. Ela se afastou, claramente
pronta para voltar para sua mesa, então Kira balançou a
cabeça.

“Que seja. Vou descobrir o que é.”

Com Em longe, ela ativou um dispositivo de busca


mais uma vez e investigou mais sobre o IP misterioso.
Pertencia a um provedor genérico canadense de rede
corporativa, um que ostentava contratos com Fortune 500
e clientes do governo. Em outras palavras, podia ser
literalmente qualquer um.

Alguém que quisesse baixar os genomas de


populações raras canadenses, nesse caso de uma pequena
e isolada vila de descendentes franceses.

Alguém que quisesse isso e não trabalhasse na


GeneKeep, mas que de alguma forma possuía acesso
VPN.

Kira se levantou e se forçou a andar até o escritório


do Dr. Bai.

“Senhorita Manning.” Dr. Bai era alto e seu rosto era


bem definido, com o tipo de expressão que te fazia sentir
como se ele sempre estivesse pensando em alguma coisa
importante. Agora ele olhava para ela com uma
sobrancelha levantada e seu celular na mão, como se
estivesse no meio de algo. “Alguma coisa em que posso
ajudá-la?”

191
“Sim, senhor. Eu...” Ela sentiu as palavras
evaporarem. Toda a confiança que ela sentira antes sobre
o que presenciara na noite anterior sumiu, deixando a
sensação de que ela estava cometendo um erro. “Eu,
hum... só queria verificar uma atividade na rede que eu
vi.”

“Bom. Verificar a atividade da rede é parte do que


você foi contratada para fazer, não é?” Ele sorriu, do jeito
que os adultos sempre sorriam para ela — como se
procurassem o caminho mais rápido para não ter de lidar
com ela. “Vou ajudar como puder, mas...”

“Era uma conexão não-autorizada com um centro de


dados em Saskatchewan.” Ela soltou. “Estavam baixando
enormes quantidades de dados da coleção Nasgwine’g,
fora do horário normal. Foi muito estranho, então pensei
que devia...”

“Claro. Não, agradeço sua verificação.” O Dr. Bai


arrastou seus dedos pela tela do celular por alguns
segundos. “Agora que você mencionou, acho que é um
novo serviço de backup de dados que contratamos. Logo
antes de você chegar. Estou tentando achar o contrato...
Bom. Você sabe a bagunça que está a minha caixa de
entrada.” Ele sorriu daquela forma de novo. “Desculpe, eu
deveria ter te avisado—”

“Ah, não, me desculpe, eu só não— eu não vi nenhum


registro sobre isso e pensei—”

192
“Sim, claro. Não, você fez certo de vir até mim. Não
se preocupe.” Ele se levantava, já indicando a ela a porta
da sala. “Não foi documentado porque, francamente,
precisávamos de alguém como você gerenciando as coisas
há meses. Mas por isso você está aqui agora. Uma coisa
boa.”

“Obrigada, Dr. Bai.” Kira abaixou o olhar para seus


sapatos enquanto ele a guiava para fora da sala.

“Vou enviar os detalhes quando encontrá-los.


Obrigado novamente, Kira.” Ele disse, então fechou a
porta.

Kira piscou para a porta de madeira. Engoliu a


resposta que ela estivera prestes a dar.

Então pegou seu telefone.

Antes que ela pudesse o desbloquear, a tela já estava


lotada com mensagens de sua mãe e de suas tias.

Sarah: Precisamos conversar. Algo sério está


acontecendo.

Cosima: Menina, talvez um update ou dois? Não


estou brava, não vou tagarelar, só preciso saber que você
está bem.

Charlotte: Estou em Boston com a tia A. Temos uma


encrenca de clone

Muito bom.

193
Mas Charlotte era a única pessoa com quem ela
precisava falar. Ela lançou outro olhar para a porta
fechada do Dr. Bai e saiu à procura de alguma sala vazia.

“Kira! Graças a deus. Ouça, eu não sei se isso te


afeta, mas estou em Boston. Estou com um tanto de você-
sabe-o-quê e elas estão muito doentes—”

“Tem mais de uma? Bom, você não pode dar o


antídoto a elas?” Kira fechou a porta com o pé atrás dela.

Ela se sentou em cima da mesa da sala e examinou


os pertences de seu dono: uma roda de oração tibetana
movida a energia solar, fotos brilhantes em frente a
vastas montanhas. Seu estômago doía com um desejo de
correr para ainda mais longe e ainda mais rápido. De
qualquer drama clone que estava prestes a ser jogado em
seu colo agora.

“Não é tão simples. Elas não... você sabe... elas não


são como suas tias. Digo, elas são, mas—” Charlotte
bufou. “Está tudo uma bagunça. Eu contei pra elas mais
cedo, então suas tias estão sabendo, mas é... é estranho.
Nada sobre isso soa muito certo. Me desculpe, vou ter de
explicar mais pessoalmente ou em um chat seguro...”
Charlotte respirou alto. “Eu tenho que ficar aqui por
alguns dias, para ter certeza de que também não fui
infectada.”

“Ei, espere um minuto. Você vai ficar bem?”

“Eu— eu acho que sim. Sim, vou.” Ela podia


praticamente ouvir a careta de Charlotte. “Mas se alguém
194
está almejando nosso genoma — que é o que as mulheres
aqui acham—”

Kira pegou a roda de oração de plástico e parou o


ponteiro com seu dedo. “Ei, ei, ei. Como um ataque?”

“Algo tipo isso, sim? Mas só que não é fatal. É uma


doença, com certeza, mas como um caso severo de
mononucleose. Provavelmente não mata ninguém
saudável.”

“Acho que temos que ser gratas a isso, então.


Ninguém está tentando matar vocês todas dessa vez.”
Disse Kira.

“Dessa vez.” Charlotte disse, soando cansava.


“Sabe...” Charlotte disse as palavras, testando o terreno.
“De certa forma, é uma pena que os genomas devam ser
algo secreto assim. Não consigo deixar de imaginar o quão
mais rápido poderíamos desenvolver antídotos ou outros
tipos de curas para situações como essa.” Charlotte
suspirou. “Eu fico cansada de todo esse sigilo, eu acho.”

“É... se você não se importa com sete bilhões de


pessoas, de repente, vendo você como uma espécie de
aberração.” Kira não pôde evitar a amargura que surgiu
em seu tom. Ela já estava farta de ser tratada como algo
entre um milagre médico e um monstro.

Charlotte respirou fundo, como se estivesse prestes


a dizer algo mais — então parou. “É melhor eu ir. Estou
recebendo uma ligação da tia Alison...”

195
A ligação ficou muda.

A garganta de Kira apertou. Almejando nosso


genoma. Como uma população de clones.

Como uma vila repleta de franco canadenses


geneticamente interessantes.

Kira disparou de volta à sua mesa, uma dúvida


queimando em sua mente, enquanto ela puxava os
conjuntos de dados: os que seu misterioso downloader
tinha roubado deles.

Direcione para uma cura. Ou uma arma.

E foi com esse pensamento que as estações de


trabalho da GeneKeep começaram a zumbir
freneticamente, uma a uma.

“Que diabos—” Em gritou do outro lado da sala,


saltando de sua mesa. O computador de Kira travou, seu
mouse não respondendo e então, com um último chiado no
disco rígido, o monitor ficou preto. Tudo o que ela podia
ver era o reflexo sombreado de seu próprio rosto surpreso
olhando de volta para ela.

Em volta dela, o escritório fervilhava com o pânico.


“O computador de mais alguém travou?”

“Eu estava no meio de um negócio—”

“Ah, para, eu tinha acabado de começar a sequenciar


as amostras Nasgwine’g!”

196
“OK, quem esqueceu de alimentar o hamster da sala
de servidores?” Alguém brincou.

Uma arma. Kira se afastou da mesa. Ou talvez... um


vírus.

197
“‘Legais’?” Alison chiou para o telefone, as aspas
simbólicas com os dedos audíveis em seu tom. “Você acha
que essas outras clones são ‘legais’?

“Elas cresceram juntas. Sempre souberam quem ou


o que eram.” Charlotte disse. “Na verdade, tenho um
pouco de inveja.”

“Bom, estou mais do que um pouco desconfiada. E se


elas foram algum tipo de... culto de clones? Elas podem
estar te infectando de propósito. Tentando te— te
doutrinar, te tornar dependente delas. Não ria! Poderia
acontecer!”

“Você tem uma imaginação e tanto, tia Alison.”

“Não vá a lugar algum. Vou descobrir um jeito de


tirá-la daí—”

“Mas tia Alison, estou doente—” Charlotte parou


abruptamente. Ao fundo, Alison ouviu batidas na porta.
“Tenho que ir.” Charlotte adicionou num sussurro.

“Char? Charlotte?” Alison gritou, mas o celular já


sinalizava o fim da ligação. Alison se inclinou para a
frente, encostando a testa no volante. Ela odiava ficar
assim sem saber as coisas. Mesmo se ela ficasse doente,
talvez seria melhor se ela fosse até lá, resolver as coisas...

Mas logo após um momento, seu celular bipou com


uma mensagem de Charlotte.

198
Me escondi debaixo da cama. Tem um homem aqui
interrogando Dana. Ele parece saber muito sobre o
programa de clones.

Alison digitou uma resposta e rezou para que


Charlotte tivesse colocado o telefone no silencioso. Como
ele é?? Ele está ameaçando ela?

Um pouco depois, outra mensagem veio. Uns 40


anos, alto, acho que asiático. Você acharia ele bonito ;)

SOU UMA MULHER CASADA.

Ela deu alguns toque com a unha na lateral do


celular. Me avise quando ele sair. Vou segui-lo.

TIA A, NÃO FAÇA ISSO

Mas ela fez.

O problema de Boston era que as ruas não faziam o


menor sentido. Pelo menos era nisso que ela iria colocar a
culpa mais tarde. Alison uma vez ouvira em um podcast
que estas ruas eram caminhos de vacas pavimentados, o
que explicava um pouco da bagunça, mas não explicava
como ela havia começado a seguir um (sim, muito bonito)
alto e moreno asiático em uma BMW cinza, só para que
ele a contornasse e terminasse atrás dela nem cinco
minutos depois. Ela apertou o acelerador — o máximo que
alguém podia acelerar em uma minivan com uma
avaliação de segurança cinco estrelas — e tomou a
próxima curva o mais repentinamente que ela pôde.

Mas ela se encontrava presa em uma rua sem saída.


199
O homem estacionou na entrada da rua e desceu da
BMW com suas longas pernas. Se encostou no carro com
um sorriso debochado, pelo o que ela podia ver pelo
retrovisor. Como se ele estivesse esperando ela sair.
Droga. Alison pegou seu telefone e fingiu verificar o mapa
(enquanto também realmente tentava encontrar alguma
saída).

O homem bateu na janela de motorista.

Alison bufou. Bom, não adiantava fingir de sonsa


agora. Ele a havia pegado no flagra. Ela abriu a janela
com uma careta.

“Sou certificada em Precisão de Tiro na escola de


Bailey Downs.” Alison anunciou, alcançando o porta-
luvas. “E sou mestre em Tae Bo—”

“Ah, sim, não duvido disso. Mas não estou querendo


levar um tiro nem, ah, o que quer que seja Tae Bo.” Sua
voz era como um café bem torrado, do tipo que ela tentara
e falhara em fazer na máquina chique em sua casa. “Meu
deus. Você é mesmo igual a ela.” Seus ombros relaxaram.
“Podemos tentar conversar?”

Alison abaixou a mão que ia para o porta-luvas.


“Igual a quem, exatamente? O que é que você quer
conversar, senhor...?”

“Me chame de Arun.” Ele abriu um sorriso. “E


acredite ou não, quero te ajudar. E todas de... vocês.”

Alison estreitou os olhos.


200
Ele inclinou a cabeça, dando a ela um sorriso
vencedor. Parecia bem vencedor nos finos raios de sol que
serpenteavam no beco. “Acredito que alguém talvez esteja
tentando machucar vocês, incluindo uma amiga minha de
quem gosto muito. Gostaria de ajudá-la. E ajudar você.”

“Estamos acostumadas e sabemos nos cuidar, muito


obrigada.” Alison respondeu.

“Não.” Sua expressão irônica desapareceu,


substituída por algo vazio. Assustador em quão vazio.
“Não assim. Receio que você esteja em grave perigo.
Todas vocês. E se não agirmos rapidamente, tudo ficará
ainda pior.”

“É, bom...” Alison olhou para ele, avaliando a


situação. Podia confiar nele? Ele parecia saber muito, mas
os tipos errados de pessoa sempre pareciam. “E cadê a
novidade?”

Arun sorriu mais uma vez. “Talvez possamos ir a


algum outro lugar e eu possa explicar.”

201
Cosima rangeu os dentes enquanto dirigia a scooter
alugada por mais um grupo de pedestres entupindo a
ciclovia. Suas palavras para Delphine ainda estavam
ecoando em sua cabeça — não vou piorar as coisas —,
mantendo uma brasa quente de culpa ardendo em seu
peito. Tipo, OK, talvez ela estivesse atrás de algo
excitante, aquele entusiasmo que costumava sentir ao se
envolver em todo tipo de merda estranha com suas
sestras. Mas quem poderia culpá-la? (Além de Delphine.
Delphine obviamente poderia culpá-la e foi o que ela fez,
prontamente.)

Mas alguém tentara matar Sturgis naquela explosão


e os policiais pensavam que tinha sido ela. Sem
mencionar que ela agora tinha um forte palpite de que
esse projeto secreto estava ligado à doença misteriosa das
clones em Boston.

Ufa. Respire fundo, Cos. Ela seguiu a ciclovia em


direção a Yorkville e revirou os olhos ao ver o bairro
completamente previsível que se desenrolava em seu
caminho. Nathaniel Sturgis com certeza moraria em um
lugar que tivesse dois diferentes mercadinhos de luxo em
sua entrada. A ciclovia acabou em uma passagem de
pedestres de pedras, cheia de fios amarrados
diagonalmente acima. Um verdadeiro país das
maravilhas das fadas, só que as fadas eram gentrificação.
Ou algo assim.

Ela estava sóbria demais para tentar decifrar essa


metáfora em particular.
202
Ela estacionou a scooter na seção especial para
scooters (pois claro que havia uma) e percorreu o caminho
em meio à multidão modesta, em busca do condomínio
Intaglio. Era um risco que o RCMP ainda estivesse por ali
investigando o endereço conhecido de Sturgis, mas dado o
fato de que acreditavam que ele estava morto, não
haveria muitos motivos para isso. Diferente dela. Ela só
torcia para que eles não tivessem identificado tudo o que
lhe poderia ser útil como conectado ao caso deles e levado
embora com eles na busca inicial.

Entrada feita de um material que imitava tijolos


industriais, espalhafatosas luminárias Geigeresque
fixadas nas paredes, SUV pretas contratadas com luzes
de emergência paradas na frente, check, check eeeee —
ainda bem que ela vira de longe — montes de câmeras de
segurança. Merda.

Cosima vestiu o capuz de seu casaco e observou as


câmeras por alguns minutos, avaliando seu alcance.
Então, assim que passou alguém alguns centímetros mais
alto do que ela para que ela pudesse se esconder atrás, ela
o seguiu em direção à porta. Vitória.

Você, Cosima Niehaus, está de volta com tudo.

E a sensação era ótima.

203
“OK, todo mundo, não precisa entrar em pânico.” O
rosto do Dr. Bai não parecia em pânico. Na verdade, Kira
achou que parecia calmo até demais. Como se ele estivera
esperando isso. De novo, um alarme soou no fundo de sua
cabeça, mas ela tinha identificação para ele, não sabia
direito o porquê. “Tenho certeza de que em breve
estaremos de volta e funcionando normalmente.”

“Isso ou o nosso sistema fritou totalmente.” Em


disse, pairando sobre a mesa de Kira. “Isso é um saco.
Ainda mais pois tínhamos acabado de começar a executar
o processo de sequenciamento do genoma Nasgwine’g.”
Em continuou. “Se perdermos esses dados, Dr. Bai vai
ficar bravo. Eles estiveram relutantes em se envolver
conosco por anos, mas eles são uma comunidade tão
isolada que seu DNA é fascinante. Sabe, eles tem uma
expectativa de vida 20% maior do que o resto do Québec e
ninguém sabe o porquê.”

“Bom, ainda bem que eles tinham tantos backups.”

“Backups, aham, tá. Até parece que podemos pagar


isso.”

“Parece que podemos.” Kira disse, seu estômago


apertando.

“Sério? Hum. Novidade para mim.”

204
Personificar alguém era mais do que aparência. Vivi
aprendera isso cedo, com suas amigas imaginárias (ou
talvez não tão imaginárias). Eram os detalhes, as coisas
às quais ninguém prestava atenção, mas cuja ausência ou
má execução a entregariam na hora.

Sua amiga Susanna, por exemplo. (Susanna? O


nome parecia tão fixo em sua cabeça, mas o psicólogo...)
Susanna fora sempre tão lenta em confiar, relutante em
concordar com o que fosse, mesmo se fosse um dos
esquemas de Vivi (justo) ou seus próprios pais a
persuadindo a fazer algo. Seu longo e arrastado
‘Okaaaaay...’ sempre fora a chave da personificação bem-
sucedida. Quando a mãe de Susanna instigava Vivi a
experimentar suas batatas assadas, as quais Vivi teria
prazer em devorar, havia sido o ‘Okaaaaay...’ que
mantivera o ardil vivo.

E, bom, Vivi não podia exatamente personificar


Jaysara Priyantha, sargento da Polícia Real Canadense
— não pessoalmente —, mas a tecnologia oferecia
diversas outras oportunidades para se descobrir quem
estava atrás dela, explodindo prédios bem no momento
em que seus alvos estavam prestes a dar a informação que
ela queria.

Priyantha ficara estacionada nos arredores do


campus da faculdade pelo que pareceram horas na noite
anterior, conduzindo uma emboscada, sem dúvidas. A
universidade de Toronto tinha um considerável programa
de pesquisa genética vinculado ao IPGT, por isso parecia

205
improvável que sua escolha para uma emboscada não
estivesse relacionada à explosão. Qualquer que fosse a
ameaça que Priyantha estivesse investigando, Vivi queria
seguir também.

Ela só precisava saber o que era.

Priyantha eventualmente precisaria ir ao banheiro.


Mesmo a bexiga de Vivi estava começando a doer
enquanto ela observava a SUV, esperando Priyantha
abandonar seu posto por meio segundo. Finalmente,
finalmente, às oito horas em ponto, Priyantha pulara do
carro, olhara para os dois lados e passeou pelo quarteirão
abaixo até um bar chamado A Hélice Feliz, para obter
cafeína e alívio. Pontualidade. Pessoas que seguiam
regras e amavam horários eram um presente de deus a
ela.

Vivi a seguia de uma distância segura, vestindo um


capuz e com seus ombros curvados contra o frio agudo
canadense. No banheiro, ela só precisava estar a uma
cabine de distância de Priyantha para que seu chip
scanner de radiofrequência colhesse informações de seu
crachá do RCMP — criptografado, mas nada que seu
notebook de campo não pudesse decifrar. Ela esperou até
que Priyantha fosse lavar as mãos, então, enquanto a
porta se fechada atrás dela, Vivi saiu de sua cabine com o
gel de balística em mãos. Ela o esfregou contra a
maçaneta da porta, agradecendo aos céus que Priyantha
não era uma daquelas neuróticas que usavam toalhas de
papel para abrir portas, então guardou o gel dentro de um
206
estojo para proteger a digital até que ela tivesse uma
oportunidade melhor de duplicá-la.

Uma noite de volta ao quarto do hotel e um saquinho


de ursinhos de goma depois e Vivi tinha um crachá de
segurança do RCMP funcional e um dedo prostético
prontos para o emocionante dia da invasão.

Essa era a operação mais arriscada que ela


empreendera até hoje. Não arriscada como andar em meio
a uma troca de tiros entre chefões da máfia, mas
arriscada como em ‘estrague as coisas e sua foto estará
espalhada pelos canais de notícias do mundo inteiro’, com
um aspecto saudável de completa desaprovação de
Langley. Não que ela estivesse preocupada com isso, após
as mulheres idênticas que se chamaram de clones haviam
discutido abertamente sobre ela e sua afiliação à CIA
como se ela fosse mais uma figurinha para colecionar...
Com uma careta, ela checou o celular com que mantinha
contato com Arun uma última vez antes de sair do hotel.
Nem um sinal. Bom, sem ordens diretas, ela dificilmente
poderia ser culpada por assumir a iniciativa de investigar
mais a fundo a questão das sósias. Especialmente se isso
estivesse tão relacionado à bizarrice do IPGT quanto
parecia estar.

Vivi sacudiu sua cabeça. Se ela quisesse fazer algum


progresso, ela precisava tirar a palavra com C de seus
pensamentos. Não importava agora. Ela se olhou no
espelho, respirou fundo, ajustou o terninho que vestira e
saiu.

207
Os quartéis da RCMP de Toronto eram
extremamente simples e também suspeitosamente vazios
para uma manhã. Seu crachá replicado, completo com sua
foto e um nome falso, apitou alegremente ao deixá-la
passar dos portões de segurança. As outras pessoas que
entravam também mostravam seus crachás ao guarda de
segurança, então ela fez o mesmo, sorrindo educada, mas
superficialmente o suficiente para se misturar.

O cubículo de Priyantha era fácil de encontrar. Era


o detestavelmente arrumado e limpo, um vazio em meio a
um mar de caixas de arquivos mal protegidos e canecas
de café sujas. (OK, o nome na placa ajudou.) Vivi se
permitiu relaxar na cadeira e recuperar o fôlego por um
momento antes de se recompor. As paredes do cubículo
eram baixas demais, mas vestindo óculos e com uma caixa
confusa cheia de chaves e pen-drives, ela parecia uma
panaca da equipe de TI que viera consertar o computador
de um funcionário ausente. Ninguém precisava saber que
um daqueles ‘pen-drives’ era um decodificador de senhas
à força, que corria ciclos de milhares de permutações
possíveis por segundo, enquanto tentava quebrar a
informação do login de Priyantha, então limpava
quaisquer evidências de todas as tentativas falhas dos
registros de Controle de Autenticação de Usuário.

Questão de minutos e ela deveria descobrir tudo que


o RCMP sabia sobre a explosão — com o benefício extra
de confirmar ou negar as suspeitas de Langley sobre o
IPGT. O único motivo pelo qual ela fora enviada ao norte
em primeiro lugar — para descobrir se aqueles membros
208
das famílias de agentes que estavam doentes haviam sido
atacados e se o IPGT era responsável por isso. Algo que
parecia ter uma estranha conexão com o passado da
própria Vivi, com garotas que se pareciam com ela, com...
com...

Vivi apertou o mouse, o plástico rangendo em sua


mão. Devia haver uma explicação para isso tudo. Alguém
saberia conectar todos esses pontos. E se não fosse
Priyantha, pelo menos suas informações apontariam a
Vivi o caminho certo.

Vivi examinou o espaço ao redor da mesa de


Priyantha, notando quanta bagunça Priyantha parecia
fazer enquanto comia, apesar de todo o resto do espaço de
trabalho estar vazio. Ela guardou essa informação para
depois.

Finalmente, o computador apitou ao fazer o login


com sucesso, então a direcionou para uma autenticação
secundária. De repente esses canadenses realmente
estavam levando segurança a sério. Apenas alguns dias
após a explosão, havia patrulhas em cada esquina e novos
cartazes espalhados pelo escritório do RCMP pedindo que
seus funcionários ficassem de olho uns nos outros. Vivi
sorriu, balançou seu dedo prostético e o pressionou,
completo com a camada de gel balístico que carregava a
digital de Priyantha, contra o recém-instalado scanner de
verificação.

209
A luz verde se acendeu e a tela finalmente
desbloqueou. Direto para a recompensa de várias
informações relevantes para o caso.

Vivi examinou as abas o mais rápido que pôde e


levantou uma de suas sobrancelhas. Nathaniel Sturgis
ainda estava vivo e bem segundo Priyantha. Nathaniel,
seu demoniozinho ardiloso. A emboscada que ela conduzia
era em frente ao campus da universidade pois,
aparentemente, fora ali que ele fora visto pela última vez.

Bom, claro que a doninha idiota sobrevivera. Pelo


menos ele ainda poderia ser útil a ela se ela pudesse fazê-
lo tossir a verdade sobre o trabalho do IPGT. Vivi filtrou
o arquivo de notas aberto de Priyantha, que parecia ser
em sua maioria descrições cronológicas de seus esforços
para localizar Sturgis. Bom, talvez Vivi pudesse fazer um
trabalho melh—

“Ei, onde está Jay?”

Um homem surgiu do outro lado da parede do


cubículo, mordendo um croissant e deixando chover
migalhas até as mãos de Vivi sobre o teclado. Talvez a
sujeira da mesa não fosse culpa de Jay, afinal.

“Ainda na emboscada. Estou tentando consertar o e-


mail dela.” Vivi ajustou os óculos em seu nariz. “Ainda
não tive sorte.”

“De novo? Uau. Ela dá muito trabalho pra vocês,


juro.”

210
“É, bom...” Vivi trocou para a caixa de entrada do e-
mail de Priyantha. SARGENTA PRIYANTHA, seu pedido
de acesso aos dados do arquivo ELIZABETH CHILDS foi
recusado. Se achar que isso foi um erro, por favor, contate
o Banco de Dados de Aplicação da Lei Canadense em...
Vivi sacudiu a cabeça. “Se algum dia nos deixarem trocar
o sistema operacional, não teremos mais esse problema.”

“Uhum, boa sorte com isso.” Ele engoliu um pedaço


de croissant. “Meu verificador tem dado problemas, por
falar nisso. Acha que pode resolver isso pra mim depois?”

“Sim, eu te encontro quando acabar aqui.”

Ele agradeceu e foi embora e Vivi deu um suspiro de


alívio. Ela clicou nos próximos e-mails. SARGENTA
PRIYANTHA, seu pedido de acesso aos dados de registro
de pesquisas no IPGT foi recusado... Seu pedido de acesso
aos arquivos do caso DET. ARTHUR BELL
(APOSENTADO) foi recusado.

Ela soltou um pouco de ar pelo nariz. Bom, pelo


menos Priyantha estava dando de cara com tantos becos
sem saída quanto ela.

Seu pedido ao Ministério da Defesa de acesso a


informações sobre VIVIENNE VALDEZ foi recusado...

Ela já ouvira na ‘chamada das clones’, mas ainda


acelerou seu coração ver este austero lembrete de que
Priyantha sabia quem ela era. O Ministério da Defesa
canadense e a CIA eram amigáveis, mas ninguém era
TÃO amigável assim. Merda. O disfarce que ela usara
211
para entrar no país estava totalmente exposto, o que
significava que ela já não tinha mais tanto tempo.
Pouquíssimo tempo. E se ela tivesse que se retirar do
país, sem respostas, sem ideia do que estava acontecendo
— de quem ela realmente era—

Vivi engoliu em seco, com dificuldade, tentando fazer


descer a ansiedade agarrada como cacos de vidro em sua
garganta. Ela ainda tinha tempo. Ela podia fazer isso. Ela
só precisava agir. Agora.

E então o próximo e-mail: STURGIS, NATHANIEL.


Vivi levantou uma sobrancelha, mordeu seu lábio
inferior, desejando que ela pudesse decapitar um ursinho
de goma agora. Ela clicou para expandir o assunto e deu
uma lida rápida.

Foi avistado no ou perto do campus da U Toronto, de


acordo com o disque-denúncia. Gravações das câmeras de
segurança em seu local de residência não denotaram
qualquer visita sua desde o dia do atentado. Pedido de
vigilância temporária autorizado, mas a busca inicial no
condomínio do falecido não apontou qualquer indicação
óbvia de adulteração após o momento da explosão.

Ah, Sturgis, Vivi pensou, seu desgraçado glorioso.


Vivi apenas precisava interceptá-lo antes que o RCMP
colocasse as mãos nele. Pois se alguém soubesse o
suficiente sobre a pesquisa do IPGT para saber porque
alguém mataria para encobri-la...

212
Vivi bloqueou o computador e foi em direção à rua.
Ela tinha uma doninha para capturar.

213
O homem que atravessava a porta da frente do
Intaglio, no momento repreendendo no telefone o que
devia ser algum pobre assistente pessoal, nem ao menos
vacilou quando Cosima esticou sua mão para segurar a
porta atrás dele. Ele continuou direto para o lobby, ainda
reclamando sobre suas milhas de passageiro, e entrou no
elevador. Infelizmente, ele devia ter apertado o botão de
fechar as portas quando entrou — babaca —, então
Cosima estava agora parada no lobby, câmeras
rastejando por toda sua pele.

Merda. OK. Ela podia fazer isso. Tipo, ela já


derrubara conspirações de corporações multinacionais,
certo?

Seu olhar foi em direção à câmera na quina mais


próxima da sala. Ela virou sua cabeça e mergulhou no
acesso de escadas. Se o RCMP realmente estivesse atrás
dela, como Art disse, eles estariam vasculhando cada
lente da cidade em busca de alguém que se parecesse
mesmo que remotamente com ela ou suas sestras.
Vagamente, ela tentou imaginar como seria a conversa se
alguém a interrogasse. Não foi eu, era minha gêmea do
mal! Espere— não, não essa gêmea do mal, essa é só a
Helena, ela tem boas intenções—

É. Beleza, Cos. Entrar no apartamento de Nathaniel,


achar literalmente... qualquer coisa que possa te
inocentar ou pelo menos que aponte o real motivo pelo
qual alguém iria querer explodir o IPGT e dar o fora dali.

214
Se ela fosse rápida, ela poderia voltar um pouco após o
jantar, tudo estaria bem e sua vida voltaria a...

A o que, exatamente? Esconder todas as suas


melhores pesquisas e deixá-las de fora dos seus perfeitos
e perfeitamente chatos artigos acadêmicos? Sua esposa
fazendo a babá o tempo inteiro, alheia às restrições de
Cosima? A longa e lenta dor de sua alma sendo amputada
enquanto ela e seus sestras se separavam sem ter mais
grandes conspirações para uni-las? Tudo correra de forma
tão fácil antes, por mais impossível que pareça — como
você lentamente se tornava uma estranha a si mesma, aos
seus reflexos genéticos?

Ela alcançou o quinto andar e engoliu suas dúvidas.


Quem podia saber o que Sturgis realmente estava
aprontando? Provavelmente, ela não resolveria todas as
coisas tão cedo. Só o suficiente para que ela ficasse livre
da prisão e mantivesse as coisas interessantes.

“O melhor dos dois mundos, sério.” Ela murmurou


para si mesma.

Finalmente, ela alcançou a porta para a casa de


Sturgis. Era do tipo porta de celeiro deslizante, uma
versão gentrificada daquela do velho loft de Felix. Ao
invés de uma chave de fenda a trancando, no entanto,
esta possuía um chique teclado digital. Sem dúvidas
possuía sua própria câmera de segurança, também. Ela
soltou alguns palavrões, mas se lembrou novamente de
como seria bom não ter uma acusação de terrorismo
pairando sobre sua cabeça. Ela se afastou para um dos
215
lados do teclado, só para ficar fora do alcance da câmera,
caso houvesse alguma, e pensou por um minuto...

E soltou um gemido com raiva ao pensar na solução


óbvia.

2248

A porta se destrancou com um assobio e deslizou


para se abrir. “Claro que você usaria A C G T, . Cosima
entrou no espaçoso loft feito de tijolos e fechou a porta
deslizante atrás de si. Ela examinou a vasta sala, que
possuía enormes janelas arqueadas do teto até o chão que
davam para a passarela de pedestres. O salário que o
IPGT pagava devia ser até melhor do que ela pensara. Ou
que outro alguém pagava, de qualquer forma.

“OK, Na-than-iel, no que você está metido?” Cosima


andou pela cozinha e pela sala de jantar até a área das
janelas, passando por pôsteres baratos de cenas de filmes
vintage nas paredes. “Sabia que você acharia um jeito de
se exibir...” O caminho se ramificava para quartos em
ambos os lados, assim como um— bingo. Um escritório.

Seu notebook não estava por lá, o que não era uma
surpresa, mas assim como em seu escritório no IPGT, ele
preferia trabalhar analogicamente. Montes de pastas de
papel pardo e impressões grampeadas amontoavam-se
em sua mesa de madeira. Parecia que o RCMP
considerara essas coisas irrelevantes, mas valia a pena
dar uma checada. Cosima apertou suas luvas e começou
a mexer nas pastas. Documentos de impostos para seu
216
contador... Contrato de alguma academia chique no fim
do quarteirão. Bilhetes de avião e recibos grampeados a
eles. Cinco cópias agrupadas de seu último artigo na
North American Genomics, seu nome destacado e
marcado com caneta nanquim.

“Sério mesmo?” Cosima murmurou, caindo contra a


parede. Nem mesmo um documento do IPGT? Ou o cara
era mais discreto do que ela pensara ou o RCMP já
confiscara as coisas interessantes antes dela.

Ela empurrou a parede com um grunhido e lançou à


sala um último olhar — ali. Alguma espécie de grande
pintura de nu objetificadora com seus cantos levemente
levantados. Ela os puxou e sim, havia um espaço
escondido atrás dela, com um cofre à prova de fogo
encaixado no chão.

Cosima sacudiu a cabeça, sorrindo, então caiu de


joelhos em frente ao cofre. “Certamente você não deve
usar a mesma para tudo...” Ela apertou 2 2 4 8 e
resmungou quando as portinholas se abriram. “Ah, fala
sério!”

A pasta superior estava marcada, às pressas, como


‘apólice de seguro’. Bom, pensou Cosima ao folhear seu
conteúdo, aquilo não era exatamente mentira. Eram
pesquisas do IPGT — algumas da coautoria de Nathaniel,
outras não, mas todas com cabeçalhos que diziam
CONFIDENCIAL: PROIBIDO LANÇAMENTO AO
PÚBLICO. “Seu idiota lindo.”

217
Ela se abaixou e alcançou seu celular, registrando
fotos de cada página o mais rápido que podia, não se
incomodando em fazer nada mais do que lançar um
rápido olhar aos cabeçalhos.

Uma ficha chamada “Teste Boston: TAG Proliferação


em População Gemini.”

“Os babacas realmente têm algum problema conosco,


não é mesmo.” Cosima murmurou. Então as clones em
Boston realmente eram o ‘teste vivo’ pelo qual Sturgis
estivera surtando. Cosima já sentia seu sangue ferver,
mas ela tinha que aguentar mais um pouco. Ela já
descobrira o ‘o quê’ — agora precisava entender o ‘como’ e
o ‘porquê’.

Esquemas para um sistema de injeções auto


administrado. Parecia ter algum tipo de sensor para
escanear e estimar massa. Bom truque, mas
completamente irrelevante.

Estratégias para codificação de malware em DNA de


folículos capilares? Bom, isso era... diferente. Você
poderia causar um estrago e tanto com algo assim.
Hackear um computador de sequenciamento, por
exemplo, e qualquer rede à qual estivesse conectado. Não
existia um ‘scanner de vírus’ para DNA ainda. E, OK,
agora ela via que Sturgis atirava para todos os lados —
algum tipo de patente de software para mini-drones?

Cosima guardou o celular e arrumou a pasta ‘apólice


de seguro’ o mais rápido que pôde. Ela já se arriscara mais
218
do que podia. Ela se afastou do escritório, dando uma
última olhada para conferir se deixara algo fora do lugar,
então foi em direção à entrada da frente.

Bem quando ouviu o distinto toque do teclado no


outro lado.

Puta que pariu—

Cosima examinou o loft idiota, seu grande espaço


aberto idiota, até que ela identificou uma porta fechada e
mergulhou até ela. Despensa. Uma luz acendeu acima
dela ao abrir a porta, mas quando ela se espremeu em
meio às prateleiras com caixas de macarrão e potes de
pimenta e puxou a porta até quase fechar novamente, ela
se apagou. Seu coração batia forte, soando como um
tambor em seus ouvidos. Não tinha como Nathaniel não
ouvi-la do outro lado da porta.

Mas ele fazia barulho demais — soava como


múltiplos pés se arrastando pelo piso de madeira—

Cosima arriscou um olhar através da abertura da


porta e reprimiu um palavrão. Aquela maldita clone de
novo. A ruiva, que havia personificado Alison antes da
chamada das clones, quem Nathaniel dissera que batera
nele.

Vivi Valdez. Uma agente da CIA.

A que, muito provavelmente, era a verdadeira


responsável por explodir o IPGT.

219
E ela pressionava uma arma contra as costas de
Nathaniel enquanto ele andava pela sala.

“Eu te disse, estou tão no escuro quanto você.”


Nathaniel protestou. “Sou só um de dúzias de cientistas
nesse projeto, nenhum de nós tem contato um com o
outro—”

Um estalo arrepiante quando Vivi bateu a coronha


da arma contra seu queixo. Cosima se encolheu. Deus, até
ela se sentiu mal por Nathaniel naquele momento.

“Tem certeza disso? Você me disse no beco que tinha


algo terrivelmente valioso escondido aqui e que estaria
feliz de me dar se eu te deixasse vivo. Vamos, querido.”
Ela levantou a cabeça e sorriu — um sorriso como uma
mancha de óleo. Cosima estremeceu, a visão como um
todo era Rachel Duncan demais para o seu gosto. “Não
seja modesto. O que é tão terrivelmente valioso?”

“Eu— eu vou chegar lá, prometo. Mas por que não


começamos por você?” Nathaniel perguntou. A coragem
desse cara, interrogando sua interrogadora.
Possivelmente o mais impressionante mansplaining que
ela já testemunhara.

Cosima pegou seu celular e colocou as mãos em volta


para esconder o brilho, enquanto ela ativava o gravador
de voz. Registre as observações antes, procure correlações
depois, Dra. Niehaus.

220
“De que porra você está falando?” Vivi perguntou.
Seu tom vacilara? Outra observação para analisar mais
tarde.

“Não precisa ficar tímida. Há quanto tempo sabe o


que você é?”

Bile subiu no fundo da garganta de Cosima.


Caramba, ele realmente sabia sobre as clones.

“Pare de trocar de assunto.” Vivi rosnou.

“Ahh, você não sabe, não é? Eu pensei que fosse o


caso dada a forma como reagiu no laboratório, mas eu não
tinha certeza de que você não estava fingindo.” A
presunçosa satisfação em seu tom de voz soava
inconfundivelmente como Nathaniel. “Você não tinha
ideia de que é um clone.”

Vivi demorou um pouco a responder. Dada a


indiferença tranquila que eles a viram mostrar até agora,
Cosima assumiu que aquilo era o equivalente a Vivi
Valdez, agente da CIA, tendo um ataque de pânico.
“Você— você está falando merda.”

“Suas irmãs estão em Boston, certo? É por isso que


está aqui? Escute, eu estava no escuro sobre isso,
também. Eu não criei a tecnologia para clones, eu juro!
Era para ser direcionada a curas, então eles perceberam
as aplicações militares e então— quando fiquei nervoso e
falei sobre isso... acho que ele pensou que clones seriam o
teste vivo perfeito. Não foi minha ideia!”

221
Cosima se sentia enjoada. As palavras de Nathaniel
no A Hélice Feliz a assombravam. Podemos almejar um
único terrorista em um prédio cheio de reféns. Ou
trezentas clones em um mundo cheio de outras pessoas.

“Teste de quê?” Vivi o pressionou. “O que é TAG? O


que está planejando?”

“OK, OK, Olhe, eu juro, eu não sabia que fariam um


teste vivo, certo? Por isso explodi o laboratório. Para
desacelerá-los. Para fazer minha fuga.”

“Você explodiu o laboratório? Comigo ainda dentro,


obrigado!”

Cosima recuou dentro da despensa com um grunhido


mal contido. Ela não podia discordar de Vivi. A audácia
desse cara... sério. E ele a deixara acreditar que ele estava
fugindo de atacantes misteriosos...

“Achei que você talvez estivesse com eles. Que tinha


vindo me pegar depois que falei que discordava do plano.
Ou talvez vingança do que acontecera em primeiro lugar.
Por isso fico te falando, não foi ideia minha. Eu nem sabia
nada sobre aquilo até que já tinha acontecido. Era para
ser somente simulação de modelos de teste, com a
população Gemini. Não um ataque real.”

“Real— continue falando.” Ela apertou o cano da


arma no queixo dele, trazendo o rosto perigosamente à
vista da porta da despensa. Cosima saltou de volta para
as sombras.

222
“Arma direcionada por genomas! Eu— Eu— OK,
olha, eu sabia que havia algo curioso nos genomas que ele
sugeriu que testássemos. Foi por isso que eu dei a ele um
vírus não-fatal! Eu não achei que fossem pessoas reais...
eu não sei. Eu não confiava nele. Mas o programa TAG
pode ser usado para combinar qualquer vírus com
qualquer marcador genético, você entende? Esse não foi
fatal, mas é possível fazer com que seja. Contagioso.
Customizado. É o que eles estão planejando.” A voz de
Nathaniel estava desgastada com histeria agora.

“Quem?” Vivi também perdera a tranquilidade,


gritando mais perguntas do que ele era capaz de
responder. “Quem ordenou o teste vivo? Em quem você
não confia? Onde é o programa? Quem está com ele
agora?”

Sturgis deixou escapar uma gargalhada alta. “Eu


não deveria ter confiado em ninguém! Mas ao menos eu
mantive o programa próximo ao meu—”

Então tudo aconteceu ao mesmo tempo.

Um ping no vidro, como uma pedra quicando nele,


mas de alguma forma atravessando-o. Um baque. Vivi
xingando— suavemente no início, então com mais
urgência—

“Merda— merda—”

Cosima espirou pela fresta da porta e viu o rosto de


Vivi coberto de sangue.

223
Cosima também deixou escapar um xingamento
enquanto se encolhia de volta na despensa.

“Droga, Sturgis!” Vivi gritou, seguido de um forte


baque que Cosima assumiu ser o som de Nathaniel — de
seu corpo — atingindo o chão quando Vivi o soltou. Merda,
merda, OK. Ela acabou de matar ele. Né? Julgando pela
reação dela, será que ela tivera intenção? Cosima estaria
condenada se ela colocasse a cabeça para fora agora—

Passos frenéticos e vidro quebrando. Vinha do outro


lado do loft— Vivi quebrava uma das muitas janelas
segmentadas. Meu deus, ela estava fugindo. Cosima
empurrou a porta da despensa e saiu bem a tempo de ver
o capuz de Vivi desaparecer enquanto ela caía pela janela
de sumia de vista—

Nathaniel olhava para cima, sem piscar, do chão,


enquanto o sangue borbulhava do lado de sua cabeça. Do
que restou do lado de sua cabeça, Cosima pensou. O dano
era extenso, completamente desproporcional ao nítido
som, como laser, do tiro. Tudo aquilo partira da pistola da
garota? Cosima se pegou estudando o retalhamento dos
lobos frontais e parietais esquerdos do córtex cerebral
dele com algo como admiração.

Cabelo. Está no cabelo.

Cosima olhou para o corpo de Nathaniel. E de


repente, a razão pela qual ela queria vomitar tinha a ver
com muito mais do que apenas o fato de ser um corpo.

224
Uma resposta a essa arma codificada em folículos
capilares, assim como o código legal criptografado em seu
próprio DNA.

Está no cabelo. Ela esfregou uma mão pelo rosto.


Tomara que não estivesse nos cabelos que estavam
espalhados, ensanguentados ou incinerados...

O que ele dissera? Perto do meu peito, foi o que ele


falara também no A Hélice Feliz.

Platinado. Debaixo do meu braço.

Cosima mexeu o braço de Nathaniel com a ponta de


sua bota. Graças a deus ele estava de manga curta. Tudo
o que ela precisava fazer era puxar a manga com seu dedo
e... ali. Ela viu. Aninhada entre os pequenos cachos de
pelos da axila, estava uma mecha de fios loiros.

Não coloque sua digital no cadáver, Cos. Não coloque


sua digital no cadáver.

Ela se agachou, suas botas rangendo, com atenção


para não chegar nem perto do sangue que se acumulava.
Era uma péssima ideia, mas se aqueles fios de cabelo
realmente continham os dados de que ela precisava — ela
se adiantou, tentando encontrar bom ângulo para—

O som da porta do celeiro sendo arrancada dos


trilhos a assustou.

Cosima se virou bem a tempo de ver a compacta


mulher asiática avançar contra ela, com uma pistola

225
encaixada no topo do outro braço. “RCMP! Mãos para
cima! Solte a arma e coloque as mãos para cima!”

Oh, inferno.

Enquanto os policiais se acumulavam à sua volta e a


algemavam, tudo que ela podia ouvir eram as últimas
palavras que dissera à esposa: eu prometo que não vou
piorar as coisas.

226
Episódio 05

Toda criança
expulsa do paraíso

‘Sarah conhece Vivi, a condição de


Charlotte piora e o maior medo do Clube
das Clones se torna realidade.’
Anteriormente, em Orphan Black: TNC:

O Clube das Clones descobre que foi infiltrado.


Charlotte e Alison descobrem uma geração mais nova de
clones americanas e conscientes. Charlotte contrai uma
nova doença. Nathaniel Sturgis é assassinado e Cosima é
presa pelo crime.
Delphine optara por sua roupa íntima de
apresentações.

A roupa vinha de um pequeno lugar em Paris. Não


tinha placa, somente um nome escrito em letras
maiúsculas ao lado do botão gasto de metal do lado de fora
da porta. Era como um rumor entre as mulheres do
círculo social de sua mãe: um lugar em que você só podia
entrar em certos dias, como visitar a terra das fadas em
uma noite de eclipse. O nome estava em algum lugar de
seu celular. A mulher que dirigia o local encarara
Delphine, dera um trago numa engenhoca que
provavelmente era um cigarro e estalara seus dedos para
uma assistente. Ela recitara as medidas de Delphine
como um cirurgião pedindo por sucção extra.

“Você não tem que me medir?” Delphine perguntara.

A mulher havia sacudido a cabeça. Suspirara e


dissera, em uma voz seca e envelhecida: “Você é bem
comum.”

Delphine, que nunca se considerara comum em toda


a sua vida, não gostara do veredito. Mas as peças serviam.
Serviam perfeitamente. Serviam melhor do que qualquer
outra peça que ela já tivera. Ela visitara a loja para um
lingerie de casamento e voltara com um cartão de crédito
pesado e sacolas dobráveis recheadas com papel de seda,
cada uma com um pequeno sachê de flores secas. Jasmim,
rosas, madressilva e outras flores, destinadas a atrair
amor e repelir traças. Dentro de uma destas sacolas
estava o Conjunto de Apresentações.
229
O Conjunto de Apresentações era feito com seda de
memória em um tom enganoso de avermelhado. Algumas
vezes parecia rosa, outras, marfim e outras, sob a luz de
velas, brilhava com uma estranha luminosidade dourada.
O fio de costura era de nível cirúrgico e não era realmente
um fio. A mantia firme como o toque de alguém
habilmente a conduzindo em uma valsa. A calcinha nunca
se afrouxara. A meia-calça era trançada com fios térmicos
inteligentes impregnados com ácido hialurônico. Eles
inchavam e encolhiam de acordo com a temperatura
ambiente.

“Fibras milagrosas da era espacial.” Cosima dissera


ao ver o Conjunto pela primeira vez. Seus dedos
pausaram a caminho de soltar as meias. “Acha que isso
deixaria marcas em seus pulsos?”

“Acho que teremos que conduzir um experimento.”


Delphine dissera. “Pela ciência.”

“Pela ciência.” Cosima respondera, então lentamente


começara a abaixar a primeira meia-calça pela sua coxa.

Delphine saboreava a memória enquanto preparava


sua apresentação. Ela ensaiara diversas vezes, em frente
ao espelho embaçado do banheiro, no assento de
motorista de seu Tesla e às vezes até enquanto observava
os guaxinins que escalavam descaradamente a cerca que
separava a propriedade de Delphine e Cosima de seus
vizinhos. Era uma família completa: a mamãe guaxinim
liderando seus filhotes e ensinando a eles o melhor em
urbanismo e furtos triviais.
230
“Estamos tornando-os mais inteligentes.” Cosima
dissera a ela, logo quando se mudaram para a casa na rua
Gavin. “Humanos, digo. A cidade tentava impedi-los de
abrir as lixeiras e comer o lixo orgânico. Então
contrataram uma grande firma alemã de design para
inventar uma lixeira à prova de guaxinins. Custou
milhões de dólares. Tinha uma trava giratória e tudo.
Mas também foi feita de modo a abrir assim que fosse
posicionada em certo ângulo, para que os garis dos
caminhões de lixo não precisassem levantar as lixeiras
até o caminhão para esvaziá-las. O que acha que
aconteceu?”

“Os guaxinins aprenderam a derrubar as lixeiras?”

“Isso. Começou em Bailey Downs. Sabe, onde a


Alison vive? Aparentemente, os guaxinins de lá
aprenderam primeiro. E aquela geração ensinou à
próxima. Enquanto isso, os guaxinins que não sabem
abrir as lixeiras são mais suscetíveis a passar fome. É a
evolução em ação, acontecendo diante de nossos olhos.
Agora a cidade enfrenta uma onda de guaxinins gênios,
tudo porque tentou limitar o crescimento de sua
população.” Cosima dera um trago em seu tipo preferido
de baseado. “A vida encontra um caminho.”

Delphine pensava bastante nos guaxinins. Sobre


como, mesmo sem querer, humanos podiam ter tido um
efeito tão grande em seu ambiente local. Que podiam
influenciar o desenvolvimento cognitivo de uma espécie
inteira no tempo de uma única geração.

231
“Estamos à beira de um precipício.” Ela dizia agora.
À sua frente, se sentavam membros de sua equipe, os
membros da força tarefa do IPGT e uma delegação
visitante de uma desenvolvedora de microdrones. Os
mesmos microdrones que coletariam amostras ambientes
de DNA por toda a cidade: chicletes, bitucas de cigarro, a
saliva deixada para trás nos copos descartáveis. O grupo
inteiro parecia satisfeito e abastecido de cafeína. Estavam
reunidos na mais impressionante sala de conferência que
o prédio tinha a oferecer: a sala com janelas que iam do
chão ao teto e com a melhor vista do lago Ontario. Era um
dia brilhante, exato tempo do final de outono, com o tipo
de céu que derretia na água até que fossem um único tom
de azul que parecia ondular no espaço como o soar de um
sino. Quando acordou naquele dia, Delphine pensara que
parecia ser o tipo de dia em que nada ruim poderia
acontecer.

Ela estava errada.

“Estamos à beira de um precipício.” Ela continuou.


“Enquanto o século 21 se desdobra, só agora começamos a
entender os desafios que enfrentaremos no futuro.
Mudanças climáticas. Crescente desigualdade.
Insegurança de comida e água. A volta de doenças que
pensamos ter extinguido e o surgimento de novas que não
podemos nem imaginar. É importante que, enquanto
lidemos com estes desafios com engenhosidade e
inovação, continuemos a manter uma forte compreensão
das lições do passado sobre a relação entre ciência e
ética.”
232
Ela mais sentiu do que viu o revirar de olhos de Greg
Kurzmann, sentado no centro da segunda fileira, atrás de
Eloise. As pessoas nesta sala não queriam ouvir o que ela
tinha a dizer, ainda mais porque havia tentado dizer
tantas vezes. Talvez uma apresentação não fosse o melhor
jeito de provar seu ponto, mas, em sua experiência, a
multidão diante dela só seria convencida por imagens e
gráficos e não teses e artigos de pesquisa. Eles odiavam
ler. Esta deveria ter sido a primeira pista sobre quem
realmente eram como seres humanos. Ela clicou e passou
para o próximo slide.

Mostrava um grupo de crianças de pé atrás de uma


cerca de arame farpado.

“Esse é o grupo de crianças gêmeas com o qual Josef


Mengele fez experimentos.” Ela disse. “Ele acreditava
que, pelas crianças judias e ciganas serem indesejáveis e
por isso descartáveis, não havia custo moral em amputar
os membros de ambos os gêmeos e trocá-los para testar
protocolos de transplante. Ou dar a um dos gêmeos tifo
para ver o que acontecia ao outro. Ou injetar clorofórmio
no coração de uma para ver se o outro sofreria.”

Várias pessoas da sala ajustaram sua postura. Seu


desconforto pairava na sala sob a forma de pernas
cruzadas, camisas puxadas e celulares checados.
Delphine passou para outro slide, este mostrando o
próprio Mengele.

“Ao mesmo tempo, Mengele era conhecido por ser


gentil com muitas das crianças de sua população
233
experimental. Ele construiu uma creche para elas em
Auschwitz e também um parquinho, garantiu que elas
recebessem porções extras de ração. Era conhecido por
dar doces a elas, algumas vezes dias antes de mandá-las
para as câmaras de gás. Foi exatamente essa fina camada
de civilidade que permitiu que a Cruz Vermelha
Internacional inspecionasse o campo de famílias em
Auschwitz-Birkenau e o considerasse adequado para
habitação humana.”

Ela passou para o outro slide. “Este é Wernher von


Braun.” Ela disse. “Era major na SS. Para os nazistas, ele
desenvolveu uma linha de mísseis que o próprio Hitler se
referiu como ‘arma da vingança’. Trabalhadores escravos
do campo de concentração de Mittelbrau-Dora eram
forçados a construir estes mísseis. Mais prisioneiros
morreram os construindo do que pessoas foram mortas
em combate.”

O próximo slide mostrada von Braun em uma


reunião do comitê especial de tecnologia espacial. “Depois
que o governo americano trouxe secretamente von Braun
e mais de outros 1.600 cientistas alemães para os EUA
como parte da operação Paperclip, von Braun continuou
a desenvolver o míssil V-2. Eventualmente, ele
desenvolveu parte do armamento usado na Guerra da
Coreia, o que resultou no foguete Redstone e o nascimento
do programa espacial americano.”

O próximo slide mostrava um grupo de agricultores


tendo seu sangue tirado no que então chamavam de

234
Instituto Tuskegee. “Mas antes mesmo de Hitler subir ao
poder, o serviço de saúde público americano já havia
começado a experimentar em pessoas de cor no Alabama,
numa tentativa de mapear a transmissão de sífilis. Em
1932, seiscentos homens negros foram informados de que
o experimento do qual participariam duraria seis meses.
Na realidade, o estudo durou quarenta anos. Muito após
o desenvolvimento da penicilina para tratar a sífilis, estes
homens e seus parceiros sexuais continuaram sem
tratamento e sem informação. O serviço de saúde público
permitiu que sofressem e morressem sem tratamento,
prometendo comida de graça e até caixões de graça em
troca da participação em um estudo do qual nunca
souberam a verdade.”

Greg mudou a posição em seu assento. Sua mão se


levantou. Ele não esperou que ela o desse a vez de falar.
“Conhecemos todas essas histórias.” Ela disse. “Onde você
quer chegar? Qual seu ponto?”

“Meu ponto é que a busca pelo conhecimento não é


uma troca justa para a liberdade e dignidade.” Delphine
disse. Mentalmente, ela se preparou para dizer o que
deveria ter dito há muito tempo. “O que estamos fazendo
é errado. Estamos coletando DNA sem obter
consentimento informado de verdade. Não podemos
explicar o que está sendo feito com os dados coletados,
nem podemos prometer com cem por cento de certeza de
que os dados ficarão seguros.”

235
“Mas não é essa a posição do cientista? Não seria
realizar pesquisas e descobrir a verdade mais importante
do que as circunstâncias em torno de algum momento
histórico?”

Delphine se sentiu tentada a apontar que Greg, não


sendo ele um cientista, não teria como saber a posição de
cientistas em nada. “Você está me perguntando se os fins
justificam os meios.” Foi o que ela disse, ao invés disso.

“Não tão simplificadamente assim, mas sim.” Greg


disse.

“Todos esses experimentos contribuíram para a


imagem do cientista louco na visão pública.” Delphine
disse. “Mesmo deixando de lado o sofrimento que essas
pessoas suportaram, o efeito a longo prazo foi diminuir e
minar a confiança no método científico. Nós agora
vivemos em uma era em que pais se recusam a vacinar
suas crianças contra o sarampo. E uma das razões pelas
quais eles fazem isso é por não confiar no cientistas que
desenvolveram as vacinas. Bem antes das redes sociais e
de fake news, os livros de história já estavam repletos com
experimentos.”

Greg começou a dizer algo, mas sua superior, Eloise,


o sufocou com um olhar. “Você está preocupada com nosso
uso de segurança biométrica em um contexto urbano.” Ela
disse.

“Estou.” Delphine disse calmamente. “Não quero que


nós repitamos o pior da história. Não quero que nós

236
sejamos tão otimistas com o potencial de fazer o bem que
esqueçamos do potencial de fazer o mal. Acredito que
exista sérios riscos a longo prazo de coletar essa
quantidade de material genético. Falsos positivos,
mapeamento de perfis raciais, vazamentos de dados—”

“Os dados são bem seguros.” Disse outro membro da


força tarefa.

“As famosas últimas palavras.” Delphine disse.

Escondido nos fundos de seu púlpito, o celular de


Delphine tocou. Ela esquecera de colocá-lo no silencioso.
Bom, sempre acontecia alguma coisa. Ela continuou. “Eu
sei que já estão cansados de me ouvir dizendo isso agora.
Mas eu sou sua cientista de ética. Me trouxeram aqui
para lembrá-los de seus momentos escuros na história da
ciência. E estou aconselhando vocês de que, a longo prazo,
essa forma de segurança melhorada só vai alienar a
população que vocês querem proteger.”

O telefone tocou de novo. Ela ignorou. Talvez fosse


sua mãe. Ela checou o tempo em seu relógio. Cinco
minutos. Ela conseguiria aguentar mais cinco minutos.
Assim como a pessoa que tentava falar com ela.

“Vejam como o enquadramento ou a escolha


aleatória funcionaram nas cidades onde fizeram isso. A
polícia pegou mais criminosos? Não. Eles só detiveram
mais gente. Eles — como é a palavra — enganaram as
estatísticas. Tudo que estamos fazendo ao abrir espaço
para vigilância biométrica diária é enganar nossas

237
próprias estatísticas. Estamos cavando um buraco para
um lago de dados que será inevitavelmente ser
envenenado.”

Agora o telefone da assistente de Delphine tocava.


Delphine a viu atendê-lo e franzir as sobrancelhas. Sua
assistente moveu silenciosamente os lábios dizendo a ela
uma única palavra: “Cosima”.

Os cabelos na nuca de Delphine se arrepiaram.


Debaixo de seu blazer, sua camisa e suas fibras
miraculosas da era espacial, suas costas se encheram de
suor. Cosima sabia desta apresentação. Ela sabia quem
estava na sala e o quão importante aquilo era. Ela não
ligaria, a menos que fosse uma emergência.

“Se, por favor, me dão licença, minha assistente


adoraria responder às suas questões.” Delphine terminou
e se retirou do púlpito. Ela estava no hall quando seu
telefone tocou de novo.

“Sou eu.” Cosima disse.

“Eu sei. Estou no meio da minha apresentação. O que


aconteceu?”

“Bom, Sturgis morreu.” Cosima disse. “E também,


acham que fui eu. Então estou presa. E provavelmente
vou de fiança. E, óbvio, sabe, um advogado.”

Delphine se conteve para que não vomitasse no vaso


de plantas mais próximo.

238
“Nós conhecemos alguém que trabalha com leis
criminais?” Cosima perguntava. “Talvez o advogado de
imigração conheça alguém.”

O advogado de imigração. Ah, Deus, ah, não.


Delphine olhou através de uma janela para a sala onde
ela estava apresentando. Ela sempre tivera a sensação de
que tudo era bom demais para ser verdade, de que, de
alguma forma, tudo desabaria: a bela casa, a bela esposa,
o trabalho significativo. E agora, de repente, o futuro que
ela imaginara para ela e Cosima se fora.

“Onde você está?” Delphine mordeu as palavras.

Cosima deu a ela o nome da delegacia. “Mas


provavelmente ficarei aqui por um tempo.” Ela disse.
“Acho que tenho quarenta e oito horas antes que tenham
de fazer algo comigo. E imagino que eles passarão essas
quarenta e oito horas tentando provar que fui eu quem
atirei nele.”

“Alguém atirou nele?”

“É, pois é.” Cosima disse. “Digo, se você está me


achando um pouco estranha e emocionalmente
entorpecida, deve ser por isso. Eu meio que vi a cabeça
dele explodir ou pelo menos algo logo depois disso. O que
foi, como pode imaginar, um pouco demais.”

Cosima soava como se estivesse à beira de lágrimas.

239
“Ma petite chérie.” Delphine sussurrou. “Não se
preocupe, nós resolveremos isso.”

240
“Oh, adorei seu chapéu.” A vizinha disse, quando
Vivi pediu pela chave.

Fora um chute, qual vizinho teria a chave. Um deles


tinha de ter. Qualquer engenheiro social que se preze
saberia escolher quem do bairro. Era quase sempre os
vizinhos do lado ou da casa da frente. E destes,
provavelmente aquele que passava mais tempo em casa,
o que geralmente eram pais que cuidavam da casa ou os
idosos.

Vivi decidira tentar a sorte com os idosos. Ou a mais


idosa, pelo menos.

A vizinha era uma vovó daquelas que fazia yoga, de


sessenta e poucos anos, que vestia uma mala1 azul
brilhante de cristal em seu pulso e leggings que custavam
mais do que a conta de supermercado de Vivi. Ela
definitivamente pensou que Vivi era Cosima. Pelo visto, o
gorro e os óculos haviam feito efeito.

“Fico tão feliz.” Vivi disse, apontando o grande gorro


que ela enchera com estopa de verdade para simular o
cabelo na cabeça de Cosima. “Acha que eu devia usar mais
vezes?”

“É bom variar.” A vizinha disse, diplomaticamente.


“Não que seu penteado antes era feio, de forma alguma,
claro!”

“Claro.”

241
1
Mala: Colar ou pulseira indianos feito de contas.
“É só que, bom, me perdoe por dizer, mas eu acho que
você já o tinha há tempo demais. Penso que já tinha
vencido sua utilidade.”

Se vencer utilidade era como essa mulher descrevia


penteados, Vivi começaria a pensar sobre como recrutá-la

para a companhia. Ela sorriu. “Obrigado.” Ela disse.


“Estou feliz que goste. Estava tão nervosa de trocar.”

“Sim, naturalmente.” A vizinha disse, então


seguiram seus caminhos.

Vivi manteve a cabeça baixa na sacada, então entrou


como se ela fora dona do lugar por toda sua vida. Dado o
quão pouco ela se lembrava de sua infância, isso não era
nenhum grande feito fantástico de suas habilidades de
atuação.

A casa tinha... algo mais.

Para começar, a reconheceu. O mesmo truque que


funcionara na vizinha também funcionou no algoritmo de
reconhecimento facial da casa: um par de grandes óculos
era o suficiente para ativar algo no fundo da programação
da casa. Assim que Vivi entrou, a casa se acendeu. Um
caminho de luz se abriu e a levou até a cozinha. Nina
Simone começou a tocar. Vivi sentia o cheiro de tinta
fresca. Ela pensou em seu apartamento, no Eastern
Market. Será que ela podia pintar lá? Ela mal lera o
contrato. Ainda havia caixas, fechadas e lacradas da
mudança, no armário do hall. Estavam lá há quase três
anos agora.
242
Vivi continuou a andar pela cozinha. Tudo parecia
novo. Coberturas de plástico estavam cuidadosamente
dobradas em um dos cantos. Dois candelabros estavam
pendurados sobre a área de cozinhar e a mesa principal
de mármore. Eletrodomésticos de marca alemã. Um
monstruoso forno a gás, do tipo que uma bruxa usaria
para cozinhar uma criança. Acima dele, algumas lisas e
obviamente antigas panelas de ferro fundido. Uma
coleção bem impressionante de facas japonesas e
francesas estava pendurada em uma faixa magnética ao
longo de uma das paredes, em escala de tamanhos até um
minúsculo bisturi.

Além da cozinha, havia uma sala de descanso, menos


formal que a sala de estar, com móveis que pareciam ver
uso real. Um teto detalhado. A música aumentou quando
ela entrou no cômodo. Nas prateleiras, amontoadas junto
aos diplomas e troféus e bugigangas esculpidas de lugares
distantes, Vivi as viu: as fotos. Estavam em prata
elegante e madeira.

Assim como na casa de Alison, cada foto era de si


mesma.

Em algumas, ela usava calça de yoga, cardigãs e


brandia pinças de churrasco. Em outras, ela usava uma
jaqueta de couro. Em mais outras, ela estava imensa e
grávida, uma nuvem de cabelos loiros coroava um rosto
pálido. E em algumas, ela era a cientista: esfregando bolo
na boca da Francesa ou abraçando duas adolescentes ou
posando debaixo de um grande pêndulo no que Vivi

243
achava ser um museu de ciência parisiense. E assim como
nas fotos da casa de Alison, ela não estava sozinha. Ela
tinha pessoas. Ela tinha esposa e possivelmente um
marido e crianças. Tantas crianças. Meninas e meninos.
Brancos e negros. Gêmeos. Ela tinha amigos. Ela tinha
toda uma maldita companhia de teatro.

Seu próprio rosto a encarava de volta das prateleiras


da casa dessa mulher: em todas sorridente, em todas
diferente, cada iteração refletindo uma possibilidade
distinta, um jeito diferente que a vida de uma mulher
poderia ser. De novo, Vivi pensou em seu apartamento
com um quarto e um banheiro em Eastern Market. Ela
pensou nas caixas que ainda tinha que desfazer. Fazia
tanto tempo que ela já nem lembrava mais o que havia
nelas. Ela não tinha ideia nem se valia a pena mantê-las.

244
“Quero te ajudar.” A sargento Jaysara Priyantha
disse. “Realmente quero. Entendo que é difícil. Acho que
você passou por um trauma. Você tremia quando lhe
demos roupas novas.”

“Advogado.” A suspeita disse, pelo que pareceu ser a


centésima vez.

“Se me explicar o que aconteceu, ajudará nós duas.”


Jaysara continuou, como se a suspeita não tivesse falado
nada. “Nossos dois países ainda tem uma relação
amigável. Se me ajudar agora, acho que sua agência vai
entender. Posso falar bem de você aos seus superiores.
Posso dizer que me ajudou a solucionar um assassinato.”

Niehaus — ou a agente secreta que fingia ser


Niehaus — levantou a cabeça de seus braços. Na
experiência de Jaysara, o que o senso comum dizia sobre
os culpados serem capazes de dormir nem sempre era
verdade. Mas o que ela via na agente a confundia. Ela
claramente estava traumatizada pela morte do Dr.
Sturgis: estivera coberta de sangue quando recitaram a
ela seus direitos. Jaysara se pegou pensando se Niehaus-
Vivi teria de tirar seus dreads, agora que sangue havia
secado neles. Dava para lavá-los? Será que a suspeita
ficaria mais disposta se dessem a ela um pano úmido?

“Do que diabos você está falando?” A suspeita


perguntou.

Jaysara tentou relaxar sua postura. Soltou um pouco


suas pernas cruzadas. Ajudava, às vezes, tentar espelhar

245
o comportamento o qual você queria ver nos suspeitos. Se
respirasse devagar, eles respiravam devagar. Se você se
acalmasse, eles ficariam calmos. Você dita o tom, um de
seus mentores havia dito. Em qualquer interrogação, você
define o território.

“Você sabe como isso tudo parece. Você é uma


estrangeira no Canadá. Teve acesso a laboratórios
incrivelmente especializados. É casada com uma mulher
que responde diretamente ao governo canadense em
questões de pesquisa científica de ponta. Suas publicações
são estelares e seu passaporte indica que voou por todo o
mundo. E agora um cientista com quem você falou
recentemente está morto e o laboratório dele sumiu da
face da Terra.”

A suspeita se fechou ainda mais. Ela estava


vulnerável. Queria se identificar com algo. Se conectar
com algo. Mas também não queria dar nenhuma
informação. Ela escondia algo e não fazia ideia que
Jaysara sabia o que era. “Do que está me acusando?”

“Seus superiores mandaram você começar a sair com


Delphine Cormier?”

Os olhos cheios de rímel da suspeita se arregalaram


notavelmente. “Oi?”

“Ela nunca havia namorado mulheres antes, não é


isso? Então de repente você aparece e tudo muda. De
repente, você tem acesso a pesquisas as quais pessoas
pagariam muito dinheiro para ver.”

246
O olhar que a suspeita lançou a Jaysara era de puro
desdém. “É isso que você acha?” Ela disse asperamente.
“Que sou uma maldita espiã?”

“Se o jaleco serve.” Jay disse.

“Amo minha esposa.” Niehaus disse. “Me entende?


Eu amo minha esposa. Ninguém pediu que eu me
apaixonasse por ela. E fico ressentida com a insinuação
de que—”

“Ela é bem rica, não é?” Jay perguntou. “Sua esposa,


digo. Ela vem de uma família rica. Isso pode suavizar
alguns traços ásperos de um casamento.”

A suspeita mirou a mão esquerda vazia de Jay.


“Como você saberia?”

“Sei para quem trabalha, Vivi.” Jay disse


estavelmente, ignorando as farpas. “Quanto mais cedo me
disser a verdade, melhor para você.”

A suspeita piscou. Seus olhos estavam turvos e


injetados de sangue por trás dos óculos que os
emoldurava. “Você fala sério.” Ela murmurou.
“Realmente acha que sou uma espiã.”

“Já falei com Davis.” Jaysara disse. “Ele me disse


tudo sobre você.”

247
A suspeita se inclinou para a frente. Suas algemas
tiniram. “Interessante. O que ele te disse, exatamente?”

248
Vivi trabalhava na fechadura do quarto quando ela
ouviu a porta da frente se abrir no andar de baixo. A
música da casa trocou para Elastica e um dos tablets ao
lado da cama mostrou ‘SARAH AQUI’.

Sarah. A inglesa. A que não usava óculos. A da


jaqueta. A que parecia sempre um pouco mais
desequilibrada do que as outras. Vivi se lembrava dela da
ligação. Ocorreu a ela que o sistema de reconhecimento
facial deveria ser bem avançado. Claramente, o machine
learning que Cosima programara na casa era capaz de
discernir até os menores detalhes que a diferenciavam de
suas irmãs. Vivi guardou a informação para depois.

“COS!”

Sarah soava bem incomodada. Seu sotaque era mais


forte do que parecera na sua pequena ligação do Clube
das Clones. Vivi se levantou, foi até o que obviamente era
o armário de Cosima e agarrou o primeiro manto indiano
que encontrou. Ela tirou sua camisa, jogou na cesta e
vestia a túnica de Cosima. Então pegou um par de óculos
de Cosima na mesa ao lado da cama e caminhou até o
banheiro. Encontrou um frasco de óleo perfumado sem
etiqueta que cheirava a algo que neo-pagãos fariam em
Burning Man e passou um pouco em seus pulsos e
pescoço. No espelho, ela treinou um olhar que parecesse
curioso a tudo, então sorriu para si mesma.

“COSIMA!”

“Já vou!” Vivi gritou.


249
Ela desceu cuidadosamente as escadas. Cosima
aparentemente era cega sem seus óculos. Usá-los parecia
com quando Vivi treinara em campo contra vertigem. Seu
estômago revirou. Ela se agarrou ao corrimão. Talvez ela
precisasse de um tempo extra no giroscópio, quando tudo
isso acabasse. Claramente ela deixara de lado certos
aspectos do treinamento.

Sarah estava no pé da escada. Parecia mal dormida


e surtada. Vivi reconheceu a visão — era a mesma em
ambas.

“Onde está Kira?” Sarah perguntou.

“Não sei.” Vivi respondeu honestamente.

“Bom, ela devia estar com você e não está. Eu já


chequei o porão. Ela não esteve lá hora nenhuma. Está
muito limpo.”

“Tenho certeza de que ela está bem.” Vivi tentou soar


expansiva, serena e casual, como Cosima. “Sabe como são
as crianças.”

“Não essa criança. Não a minha criança.”

Vivi viu Sarah se emburrar. A maçã não havia caído


longe da árvore, ela pensou. “Você só precisa dar espaço a
ela.” Vivi disse, chegando ao hall.

“Espaço para quê?” Sarah perguntou. “O que pode


ser tão grande, importante e assustador que ela não
poderia me contar? Eu sempre digo a ela, desde o primeiro
dia, que ela podia me contar tudo.”
250
“Você contava tudo a sua mãe?”

Sarah se enrijeceu. Ela franziu a testa. “Kira disse


algo a você? E Delphine?”

“Não.” Vivi disse. “Mas se ela disse algo, te aviso.”

“Obrigado. Ultimamente acho que a única com quem


ela fala é Charlotte. Elas digitam o tempo todo.”

“Sabe como é nessa idade.” Ao dizer as palavras, Vivi


tentou soar verdadeira. Havia algo importante sobre
conduzir uma conversa com alguém que você não conhece
— você tem de deixá-los dar suas próprias premissas,
permitir que eles direcionassem o diálogo aos lugares que
queriam ou precisavam que ele fosse. Em sua experiência,
banalidades ajudavam. No fundo, tudo que algumas
pessoas queriam de uma conversa era cartão de boas-
vindas vivo.

“Bom, lembro de algumas coisas.” Sarah soprou seu


cabelo. “Uma parte é meio que um borrão, se é que me
entende.”

“Aqui também.” Vivi disse. Talvez Cosima tivera sido


uma colegial tensa e obediente, mas ela duvidava disso.

“Falando nisso, posso pegar uma cerveja? Está sendo


um dia e tanto.” Sarah já ia em direção à geladeira.

“Claro.” Vivi gesticulou vagamente. “Não sei o que


temos aí, mas pode pegar o que quiser.” Ela lançou um
olhar para as fotos na varanda. “Então, como está todo
mundo?”
251
“Todo mundo?” Sarah se ocupava cavando um buraco
até a China via geladeira. Vivi nunca vira tanto suco
verde em um único lugar. Ou tanto champanhe. Ela fez
uma nota mental para procurar uma adega. “Todo
mundo, quem?”

“Você sabe, todo mundo.”

Sarah saiu da geladeira e trouxe duas cervejas e uma


tigela com uma tampa de plástico. Dentro estavam o que
pareciam ser bombons. “Está tudo bem se comermos essas
trufas, né? Delphine não está guardando para nada?”

“Não, pode comer.” Vivi retirou ela mesma a tampa


e ofereceu os bombons a Sarah. Sarah pegou dois e deu
um a Vivi. O de Sarah era recheado de coco em flocos, mas
o de Vivi era de cacau.

“Ouvi que Alison saiu da cidade...” Vivi continuou a


pressionar, mas Sarah parecia distraída.

“Adoro os de coco.” Sarah disse. “Delphine é um gênio


na cozinha. Acho que é por ela ser francesa, sabe?”

“Sou uma mulher de sorte.” Vivi disse, mordendo o


bombom. E realmente, o trabalho de Delphine tinha um
sabor e tanto. A trufa derreteu-se em algo suave e escuro
como a noite. No final, deixou um curioso sabor que Vivi
não soube identificar. Talvez algum tipo de licor. Ela
engoliu a outra metade e agradeceu a Sarah quando a
sósia usou um chaveiro para abrir as garrafas. Elas
brindaram. As garrafas tinham o infamo esquilo branco
local nelas. Sarah bebeu vorazmente, acabando com
252
metade da garrafa em um único gole. Em sua cabeça, Vivi
se perguntou se talvez esse fosse um dos motivos pelos
quais a filha de Sarah havia fugido.

“Então, como estão seus alunos?” Sarah ofereceu


outra trufa a Vivi. Vivi a mordiscou e mastigou enquanto
pensava em sua resposta.

“Ah, mesma coisa de sempre...” Ela limitou. “Ainda


não chegou a data final de saída, então talvez eu ainda
perca alguns.”

“E aquele que você pegou copiando os relatórios de


laboratório?”

“Ah, eu denunciei ele.” Vivi disse. “Temos um


software que ajuda a descobrir essas coisas, agora.
Podemos comparar dois documentos que supostamente
são de duas pessoas diferentes e ver se uma copiou a
outra.”

“Deveríamos tentar isso, qualquer hora.”

“Tentar o quê?”

“Correr umas amostras nesse seu software. Ver se


podemos contar uma história do mesmo jeito. Se o
programa pode nos diferenciar.”

“Acho que faria um trabalho melhor do que a maioria


dos humanos.” Vivi disse e se viu rindo. Ela franziu ao
olhar para a cerveja. Quanto ela já bebera? Parecia ser
uma weissbier bem leve, não algum tipo de belga tripla
densa que poderia derrubá-la mais rápido.
253
“Não é a cerveja.” Sarah disse, ajudando-a. “São os
bombons. Estão repletos de THC. É de uma linha especial
que a Cosima mesma criou, quando estava doente. Ela a
cruzou com uma variação de psilocibina que ela mesma
fez com os cogumelos dela. É de ação-rápida. Vai te
derrubar com tudo. O açúcar nas trufas faz isso entrar em
sua corrente sanguínea ainda mais rápido. E o álcool
também está confundindo os efeitos. Você saberia disso
tudo, se você fosse mesmo a Cosima.”

Sarah pegou sua garrafa pelo bico. Seu rosto mudou


completamente. Ela não estava mais emburrada. A
mulher diante de Vivi sabia exatamente quem ela era e
do que era capaz. Sarah arrebentou a garrafa na borda da
linda mesa de mármore de Delphine e Cosima. Ela
agarrou a blusa de Vivi e a puxou de seu banco,
pressionando a ponta quebrada da garrafa no pescoço de
Vivi.

“Quer me dizer quem diabos é você e o que fez com


minha irmã?”

254
A irritação na pele de Charlotte estava se
espalhando.

A irritação não era como algo que ela já


experienciara. Mas também, ela não experienciara muita
coisa. Sua criação havia sido protegida. Não, não
protegida. Enclausurada. Era a palavra melhor.
Charlotte olhou para a asa Levin e pensou sobre como a
descreveria, se fosse honesta: Sufocada. Limitada.
Cercada. Experimental. Monitorada.

Em sua idade, ela já deveria ter experienciado os


clássicos da juventude canadense comum: longas noites
de verão cobertas de picadas de pernilongos, tardes de
inverno breves demais repletas de bolas de neve e
tobogãs. Festas de aniversário. Noites de dormir fora.
Dividir uma caixa de donuts antes de um grande jogo.
Agonizar sobre apresentações finais com uma dupla de
projeto. Testar coisas, não ter coisas testadas em si.

Essas mulheres, essas clones americanas, elas


tinham exatamente esse estilo de vida. Talvez não
tivessem a mesma liberdade de alguém comum, mas
alguma versão disso. E mais importante, tinham umas às
outras. Como seria a vida, se ela tivesse seu próprio Clube
das Clones ao crescer? Como teria sido para as outras?
Sarah confiaria mais? Cosima seria capaz de levar algo
até o final? Alison seria menos... Alison? Certamente,
para Helena teria sido melhor.

Ela havia visto as cicatrizes de Helena, uma vez,


quando ela deixara os gêmeos correrem debaixo dos
255
aspersores do jardim de Alison. Helena ficara apenas com
um top de academia correndo atrás deles debaixo da água
e, quando ela deu as costas a Charlotte, Charlotte quase
deixara cair o frasco de protetor solar que Alison pedira a
ela para entregar. Foi bem ali que ela prometeu nunca
mais reclamar de sua própria infância perto de Helena.
Nunca mais.

Ela teve bastante tempo para refletir, se escondendo


debaixo da cama de Dana quando o estranho entrou na
sala.

Ele parecia triste e gasto, como uma versão brechó


em uma produção colegial de 12 Homens e Uma Sentença.
Ele fedia a cigarros. “Olá, quem quer que você seja.” Ele
disse.

Charlotte torceu para que os muitos cobertores de


Dana a escondessem da visão do estranho. Dana não
respondeu. Charlotte imaginou que ela pudesse estar
dormindo. Sono pesado era um dos sintomas da doença.
Mas era impossível dizer quando os sintomas começariam
a surgir. Talvez Diana estivesse apenas grogue de todas
as drogas em seu sistema.

“Não nos conhecemos.” O homem disse. “Eu assumi


o departamento que inclui o seu — experimento, podemos
dizer assim? — há pouco mais de um ano. Tenho de dizer,
fiquei horrorizado ao ver como meu predecessor —
predecessores, na verdade — havia lidado com seu caso.
Tanto desleixo com a segurança e com o sigilo! Vocês
levantam um incrível número de riscos, para não falar de
256
um desastre de relações públicas. E tudo por um
programa que nem ao menos traz benefícios. Era de se
esperar que houvesse alguma forma de aproveitar uma
população desconhecida de clones.” Debaixo da cama,
Charlotte estremeceu. “Alguém pensou que haveria, para
ter feito vocês, em primeiro lugar. Mas se não
encontramos uma forma sequer em vinte oito anos,
provavelmente não vamos agora. Tenho pensado em como
dar um final limpo a esse programa desde que me tornei
diretor deste departamento e, mesmo que essa jogada não
tenha funcionado como planejado, bom, é por isso que
improvisamos e acho que isso vai funcionar bem.”

Charlotte viu a sombra do braço do homem se mover.


Ele parecia fazer algo ao intravenoso de Dana. “Você é
bem resiliente, sabia.” Ele disse. “Você e suas irmãs.
Como as doze princesas dançarinas ou algum outro conto
de fadas.”

Os pelos no braço de Charlotte se arrepiaram.

“Mas todas as histórias tem de acabar.” O homem


disse. “E assim que eu encontrar Vivi, podemos fechar o
livro de vocês para sempre.”

257
Vivi recuou e bateu a testa no nariz de Sarah.

Sarah cambaleou. Sangue escorreu de seu nariz. Ela


não fez nada sobre isso. Claramente, ela havia aprendido
a aguentar um soco em algum lugar. Era tão bizarro, as
diferenças entre essas mulheres. Vivi tirou os óculos de
Cosima. Suas pernas já pareciam derreter; manter a
vertigem na mistura seria um erro. Ela colocou a mesa de
mármore entre ela e Sarah. Elas a circularam devagar. O
olhar de Vivi rapidamente caiu sobre a faixa de facas
penduradas atrás de Sarah.

“Quem é você?” Sarah rosnou. “Rachel te mandou?”

“Qual delas é Rachel?” Vivi perguntou.

Sarah esticou o braço para trás. O coração de Vivi


subiu até sua garganta. Mas Sarah buscava cegamente e
sua mão pegou não uma faca, mas uma das frigideiras de
ferro. Ela a brandiu no ar.

“Você são irmãs? Sério?” Vivi fingiu ir para a


esquerda. Sarah saltou junto. Vivi se dirigiu para as
facas. Sarah bateu em sua mão com a panela. Ela foi
esmagada na bancada. Dor subiu pelos braços de Vivi.
Junto com ela, veio uma sensação como sobriedade.
Adrenalina cortou a confusão e ela se recompôs.

“De qual geração você é?” Sarah perguntou.

“Muitas pessoas me perguntando isso,


ultimamente.” Vivi disse.

258
“Você é mais nova que nós. De onde você vem?
Existem mais de você?” Sarah segurava a frigideira como
uma raquete de tênis.

Vivi alcançou a faca mais próxima. Ela cortou pelo


ar audivelmente ao mirar no corpo de Sarah, sua mão
latejando com a dor. Sarah recuou, xingando. Vivi forçou
as pernas a se moverem. Ela passou a faca para sua mão
boa e se jogou para a frente. Sarah pulou para o lado.
Então ela agarrou um dos bancos de bar e o segurou por
trás, como uma domadora de leões de um circo.

“Sabe, essa reforma ficou bem bonita.” Vivi disse.


“Seria uma pena termos que estragá-la.”

“Tem outro Clube das Clones em algum lugar?”


Sarah perguntou. “Quem são? Cosima disse que ela e
Delphine encontraram todas vocês.”

Vivi se viu rindo. Talvez fossem os bombons. Ou


talvez a cerveja. Mas ela suspeitava que, no fundo, em
algum lugar, sua mente talvez estivesse realmente se
fragmentando um pouco. Ver tantas versões de si mesma
podia causar isso a alguém. Especialmente quando todas
essas outras versões de si estivessem tão bem e tivessem
vidas tão melhores que a sua.

“Está aqui por causa de Dana?” Sarah perguntou.


“Está procurando a cura?”

A faca quase escapou da mão de Vivi. Sua voz, ao


surgir, soava lamentavelmente jovem. “Dana?”
Perguntou.
259
Sua garganta fechou. Foi quando a música da casa
mudou. Edith Piaf. La Vie en Rose. Uma pequena picada
em seu pescoço.

“Esta é uma seringa vazia.” Delphine disse. “Sabe o


que acontece se eu injetar bolhas de ar em seu sangue?”

Vivi permaneceu congelada. “Eu tenho um derrame


e morro.”

“Sarah...” Delphine disse, num tom ríspido. “Vá até


a gaveta e pegue a fita adesiva.”

260
Jaysara estava prestes a perguntar à suspeita sobre
sua opinião quanto a um caso antigo e não solucionado de
desaparecimento de um geneticista chinês, quando
recebeu um sinal de fora da sala de que alguém queria
falar com ela.

“Talvez seja seu advogado.” Ela brincou, se


levantando da mesa. A sobrancelha da suspeita se
levantou até a linha de seus cabelos e ela deu de ombros.
Elas não tinham feito muito progresso.

O que foi exatamente o que ela disse a Greg


Kurzmann, o civilzinho de nariz em pé do Departamento
de Defesa, quando ele disse que tiraria a moça, conhecida
antes como Cosima Niehaus, de sua custódia.

“Ela é uma suspeita em uma investigação ativa de


assassinato.” Jaysara disse a ele. “E não podemos
conectá-la à explosão daquele laboratório.”

Greg sorriu ao ouvir isso. “Temos nossas próprias


perguntas para ela, especialmente se ela está sendo
investigada na conexão com um ataque terrorista. Não
temos ideia de qual grau de informações sensíveis sua
esposa pode ter dado a ela ou que dados ela possa ter
roubado. Precisamos descobrir o que ela sabe.”

“Estou ciente disso.” Jaysara disse. Ela mordeu os


lábios, considerando se devia ou não contar a ele que
suspeitavam que Niehaus fosse uma agente da
inteligência dos EUA, mas ele provavelmente usaria isso
como mais munição para ter posse da custódia dela. Além

261
disso, Jaysara não sabia se seu chefe havia compartilhado
aquela informação. “Mas ela tem informações
importantes sobre a vítima que trabalhava naquele
laboratório. Que inferno, esse assassinato em si pode
mesmo ter sido um ataque terrorista.”

“Só mais um motivo para que eu a tire de suas mãos.”


Greg disse. “Seu departamento não tem os mesmos
padrões do que os meus para custódio protetiva.”

“Mas—”

“Não tenho culpa se não conseguiram interrogar seu


próprio suspeito, oficial.” Greg acenou através da janela
de vidro até a moça que dizia ser Cosima Niehaus. “Não
se engane. Eu sei que ela se parece com algum tipo de
hippie rica que se casou para ter até mais dinheiro. Mas
ela é perigosa. Ela foi associada com alguns dos mais
cruéis grupos de bioterrorismo do planeta. Um culto
inteiro em uma ilha. Uma série de fazendas ao norte.
Pessoas com caudas. E não estou brincando.”

Não parecia que o Departamento de Defesa estava


ciente de que Niehaus era na verdade uma espiã
americana. Se aquela informação não estava sendo
compartilhada, devia ter motivo para isso. E talvez ela
pudesse de alguma forma usar aquilo mais tarde como
chantagem para trazer Niehaus/Valdez de volta à
jurisdição do RCMP.

“Eu não disse que você estava brincando, mas, se


esse é o caso, então talvez eu devesse ter acesso aos seus

262
arquivos.” Jaysara disse. “Talvez os contatos dela nestes
grupos terroristas saibam alguma coisa sobre a explosão.
Talvez ela trabalhou com ele. Talvez haverá outros
cientistas que serão atacados. Não acha que o RCMP tem
o direito de saber sobre isso?”

“Todos estamos servindo à Rainha e à pátria,


Sargento Priyantha.” Greg zombou. “Mas alguns de nós
estão fazendo isso com base em informações de verdade.”
Ele direcionou a atenção de seus oficiais para Cosima.
“Coloquem-na na van.”

Jay assistiu enquanto eles arrastavam Cosima para


fora da sala de interrogação. “Tem algo a mais para me
dizer?” Ela perguntou.

“Claro. Todos os policiais são idiotas.” Cosima disse.


Ela se virou para Jaysara. “Exceto Arthur Bell. Ele sabe
exatamente quem sou. Ele pode falar por mim.”

“Se gosta tanto dele, deveria ter se casado com ele.”


Greg murmurou. “Vamos. O 401 será um pesadelo.”

“Fale com Art.” Cos disse enquanto a afastavam.


“Sturgis realmente manteve platina perto de seu peito.”
Ela resistiu um pouco, tentando manter um olhar direto
com Jaysara. “Tipo, realmente perto. Leve até Delphine.”

263
Jaysara esperou até que eles sumissem no corredor
antes de sacar seu celular. Art atendeu no segundo toque.
“Você esteve escondendo coisas de mim.” Ela disse.

264
Alison estava ajoelhada no chão. Ela olhou para a
face de Charlotte. “Charlotte? Querida? Você está bem?”

Charlotte não estava bem. Sua pele ardia e sua


cabeça pulsava. Ela devia ter caído no sono. “Alguém
esteve aqui.” Ela disse, de maneira arrastada. “Tive que
me esconder.”

“Como ele era?”

Charlotte rolou de debaixo da cama de Dana. Em pé


ao lado de Alison estava o homem que questionara Dana
mais cedo, quando ela estava acordada. Mas, diferente do
cara bizarro que estivera ali há pouco, este devia ser o
cara mais bonito que ela já vira fora dos comerciais de
relógio da TV. “Oi.” Charlotte disse.

“Olá.” Ele respondeu. “Meu nome é Arun Sanghera.”

“Ele foi bem legal me ajudando a carregar isso tudo.”


Alison disse.

Só então Charlotte notou que Alison carregava duas


garrafas de café, do tipo usado em eventos
comemorativos. O homem chamado Arun também
carregava uma caixa que parecia ser de muffins e
cupcakes. Na caixa lia-se ‘PARA AS ENFERMEIRAS DA
ASA LEVIN’.

Alison obviamente estivera ocupada.

Charlotte se mexeu para se afastar da cama.


Estrelas explodiram em sua visão e ela sentiu Alison a
guiar até uma cadeira ao lado da cama de Dana.
265
“Chequem o intravenoso dela.” Ela murmurou. “Ele
mexeu aí. Ele disse que procurava por alguém.”

“Quem?” Arun perguntou. “Descreva-o.”

“Velho. Sombrio. Cheio de si. Disse que era a cabeça


do departamento de alguma coisa, o departamento que
controla o programa de Dana...”

Arun fez uma careta. “Tem certeza disso? A cabeça?”

Charlotte tentou se lembrar. “Tenho. O diretor. Foi o


que ele disse. E ele—” Lágrimas embaraçosas começaram
a rolar pelas suas bochechas. Ele odeia clones. Nos odeia.
Foi bizarro. E ele fedia. Ele fuma cigarros. Muitos.”

“Davis.” Arun disse através dos dentes.

“Você conhece essa aberração?” Alison perguntou.

Arun permaneceu focado em Charlotte. “O que ele


disse? Pense com cuidado. O que exatamente ele disse?”

“Que nós somos um risco e inúteis.” Charlotte tossiu.


Ele não havia falado especificamente dela, ela não sabia
de onde aquele nós havia saído, mas claro que ele
pensaria a mesma coisa dela se soubesse de sua
existência. Provavelmente o dobro disso, por causa de sua
perna; esse cara parecia ser o maior capacitista. “Ele disse
que este era o fim da história. E bem antes de sair, ele
mencionou um nome que eu não conheço. Violet? Viola?”

“Vivi.” Arun sussurrou.

“Isso.” Charlotte confirmou.


266
A postura de Arun mudou, com uma adrenalina
repentina. “Temos que ir. Agora.” Ele arrancou a linha de
intravenoso da agulha presa ao braço de Dana. “Alison,
preciso que me ajude a juntar cada clone nessa ala e me
ajude a tirá-los daqui. E aí... preciso mandar uma
mensagem para minha parceira assim que eu puder.
Senão ela estará em risco, também.”

“Se eu sobreviver até lá.” Charlotte disse.

“Ah, não seja boba.” A voz de Alison soou mais alta e


mais fina no que o normal. Distante, Charlotte percebeu
que Alison realmente parecia nervosa, não apenas
neurótica como o usual. Alison levantou sua bolsa.
Dentro, garrafas tiniram. “Comprei ginseng, açafrão e
óleo e orégano e—”

Arun a cortou. “A prioridade agora é tirar essas


mulheres daqui. Pode me ajudar? Todas juntas assim no
mesmo hospital são como patos caçados, em especial para
alguém com acesso à segurança.”

Alison ergueu a jarra de café. “Vou distrair as


enfermeiras.”

Então se foram, Alison para o hall, Arun


eficientemente trabalhando nos intravenosas das outras
clones.

O celular de Charlotte tocou em seu bolso. Ela se


assustou e o deixou cair. Quando ela se levantou, sua
visão ficou preta. Suor desceu pelas suas costas. Ela

267
estava muito mais tonta do que pensara. Seus ossos
doíam. “Oi, Kira.” Ela resmungou.

“Você parece horrível”. Kira disse. “Você está bem?”

Charlotte apoiou sua mão contra a parede. “Na


verdade, não. E você?”

“Eu também não. Cosima foi presa. Pensam que ela


matou alguém. Eles tem evidência. Você sabe o que isso
significa.”

O suor na pele de Charlotte gelou. “Deve ter sido


outra clone.” Ela disse.

“Temos de fazer algo.” Charlotte murmurou.


Estrelas apareceram na borda de sua visão.

“Sim, sério mesmo.” Kira disse. Ela soava tão igual a


Sarah. Às vezes, Charlotte se perguntava com qual das
sestras ela se parecia mais. Charlotte não era exatamente
como as outras — ela era a cópia de uma cópia. Isso a
separava. Mas mesmo assim, talvez houvesse alguma
clone por aí que fosse como ela, que gostasse das mesmas
comidas e das mesmas bandas e dos mesmos livros e as
duas nunca se conheceriam da forma como Dana e suas
irmãs se conheceram. Sempre ficariam por aí, sabendo
instintivamente que algo está faltando, mas sem nunca
entender o que ou quem era.

“Eu sei que pela compaixão de um único ser vivo...”


Ela começou. “Eu faria as pazes com todos.”

268
Houve um longo e terrível silêncio do outro lado da
ligação. Talvez Kira tivesse se esquecido das palavras. Ou
talvez não estivesse pronta. Talvez nenhuma delas
estivesse. Mas a hora havia chegado. Alguém almejava
Cosima. Alguém que precisava ser desmascarado.

“Tenho amor em mim que mal pode imaginar. E


fúria, que nem pode acreditar.” Kira disse, finalmente.

As estrelas na visão de Charlotte cresceram e


brilharam. Elas reluziam e giravam, uma luz como arco-
íris pululando em sua visão. Ela tinha de dizer as
palavras. Tinha de provar a Kira que ela estava falando
sério, que ela tinha certeza. Elas estavam em perigo.
Todas elas. E essa era a única maneira. “Se não posso
satisfazer a um...” Ela murmurou. “Então me entregarei
ao outro. Faça isso, Kira. Temos de fazer.”

Ela sentiu o chão ir até ela.

269
Jaysara exibiu seu distintivo e passou pelos
detectores biométricos na instalação federal da Rua
Victoria. Um funcionário bem nervoso a guiou através das
portas até um campo de cubículos cinzentos idênticos,
ocasionalmente agraciados com potes de plantas ou
parafernálias de hockey ou fotos de cachorros.

Art falava com alguém ao telefone. “Terei que ligar


de volta.” Ele disse, enquanto Jay caminhava até ele.

“Como você conhece Cosima Niehaus?”

“Oi?”

“Ou a pessoa que diz ser Cosima Niehaus. A pessoa


que finge ser Cosima Niehaus.”

As sobrancelhas de Art se levantaram. “O que você


quer dizer com finge?”

“Eu digo que recebi uma dica dos nossos vizinhos do


sul de que ela era na verdade uma agente federal que
trabalha para eles. E que aparentemente você, de todas
as pessoas, sabia disso e decidiu não me contar, mesmo
sabendo exatamente aonde minha investigação iria.”

A careta de Art se intensificou. Ele abriu a boca,


então a fechou. Ele levantou um dedo, então abaixou.
Finalmente, disse: “Temos que ir a algum lugar.”

“O quê, está com medo de que eu vá te envergonhar


como você me envergonhou?”

270
“Não tem nada de vergonhoso em você.” Art disse e,
mesmo com raiva, Jay sentiu-se quente. Ele tocou seu
cotovelo. “Vamos.”

Eles já estavam na escada quando Jay pensou


melhor e se afastou. As luzes de saída lançavam um
pálido sobrenatural sobre a pele de Art. Ele parecia
genuinamente assustado de um jeito que ela não
imaginava ser possível até agora. “Vai me dizer por que
Cosima Niehaus me pediu para te achar? Ou sobre as
outras coisas estranhas que ela disse?”

Art lambeu os lábios. Ele encarou o teto por um


minuto, então olhou para baixo. Ele brincou com um
pedaço de chiclete perdido com a ponte de seu sapato.
“Porque ela é minha amiga.” Ele disse.

“Você é amigo de um agente da CIA.”

“Não, não sou.” Ele disse. “Cosima não é da CIA. Na


verdade, acho que ela até acha que a CIA é lotada de
criminosos de guerra que deveriam ser processados n’A
Haia.”

“O que seria um excelente disfarce para uma agente


da CIA.” Jay disse, cruzando os braços. “Como a conhece?”

“Ela é irmã da minha antiga parceira.”

Jay estava prestes a perguntar a ele sobre a que tipo


de parceiro ele se referia, quando ela se lembrou de um
detalhe do arquivo de Niehaus. “Ela não tinha uma irmã
registrada.”
271
“Não. Ela não teria. Não tem nenhuma
documentação que a ligue a alguma de suas irmãs.”

Jaysara franziu a testa. “Espere, de quantas irmãs


estamos falando?”

Art estremeceu. “Muitas.”

“Muitas quanto?”

“Mais de duzentas.”

Jay bufou. Ela se apoiou no corrimão e olhou para


baixo da escada até sentir o tipo de vertigem na cabeça
que combinava com a que estava em sua mente. “Bom...”
Ela disse. “Você e ela claramente tem fumado o mesmo
tipo de coisa.”

“Deixa eu adivinhar.” Art disse. “Você tinha


evidência apontando para Cosima Niehaus, mas quando
a capturou, não podia ligar os pontos. Algo não se
alinhava. Certo?”

“Tenho gravações dela entrando na casa onde


achamos uma vítima de assassinato. Tenho o sangue dele
nos cabelos dela. Tenho—”

“Tem a arma?” A voz de Art estava letalmente calma.


“Tem vestígios de pólvora nas mãos dela?”

O queixo de Jaysara enrijeceu. Ela não tinha aquelas


coisas. Ela não tinha uma arma. Não tinha vestígios. E
ela não tinha a motivação. Tudo que ela tinha contra a
pessoa que dizia ser Cosima Niehaus era circunstancial.

272
“Não.” Ela disse. “Mas não tenho nem mesmo
Niehaus ou Valdez ou quem quer que ela seja. O
Departamento de Defesa a levou.”

“O Departamento de Defesa? Temos de fazer algo!


Não podemos que Cosima seja encaminhada a algum tipo
de processo extra judicial voltado a terroristas!”

Jay se virou para ele. “Vocês realmente são amigos.


E você realmente escondeu coisas de mim.”

Jay esperou que ele se desculpasse. Ela esperou que


ele explicasse. Mas ele não o fez. Ele permaneceu
inexpressivo, implacável e, como ela notava agora, muito
triste.

273
Vivi assistiu às duas mulheres discutirem sobre o
que fazer com ela.

“Temos de entregá-la à polícia.” Delphine sussurrou


laconicamente. Ela soava mais francesa quando estava
brava. Seu sotaque se tornava mais denso, mais cômico.
O mesmo com Sarah: ela soava mais sul-inglesa quando
estava frustrada com os absurdos versão Polyanna fofa de
Delphine. Vivi desejou que ela pudesse perguntar a Sarah
sobre seu tempo na Inglaterra. Ela havia visitado
Croydon a trabalho, uma vez. Ela havia feito uma aposta
de tudo ou nada de Crystal Palace contra Liverpool e
ganhara. Foi a maior sorte que ela tivera. Mais sorte do
que ela tinha agora.

“Sei disso.” Sarah dizia. “Mas também temos que


descobrir o que ela sabe. Com quem ela está. Para quem
trabalha. Você não quer saber essas coisas?”

“O que eu quero é libertar minha esposa.” Delphine


chiou. “Sua irmã. Sua carne e sangue.”

“Ela é minha carne e sangue também.” Vivi as


lembrou. “Aparentemente.”

“O que não te impediu de incriminá-la, não é


mesmo?” Sarah se irritou.

“Tenho minhas ordens.” Vivi disse. “Eu não sabia


sobre...” Ela deu de ombros. A fita adesiva a prendia às
costas de uma cadeira antiquada que era, sem dúvidas,
muito cara. “Vocês sabem. O Clube das Clones.”

274
Sarah atravessou a sala de jantar. Ela usou um dos
pés e derrubou a cadeira. Ela estatelou no chão. A cabeça
de Vivi bateu contra o piso de madeira. Ela estremeceu e
adicionou essa dor à lista de todos seus outros ferimentos.
Sarah passou uma das pernas por cima de seu corpo e se
abaixou sobre ela.

“Vou te perguntar mais uma vez.” Ela disse. “Você


sabe onde Kira está?”

“Não.” Vivi disse de imediato. “Não sei. E sinto


muito. Mas se me soltar, posso te ajudar a encontrá-la.”

“Para quem você trabalha?”

“Trabalho em uma fazendinha em Virgínia.” Vivi


disse.

Delphine xingou em francês.

“Foram eles que mandaram você matar o contato de


Cosima?” Sarah perguntou. “Eles que mandaram você
explodir o laboratório?”

“Não fiz nada disso.” Vivi disse. “Minha missão era


simplesmente observar e relatar.”

“Quantas de você tem por aí?” Sarah perguntou.

“O quê?”

“Clones americanas. Quantas? Por que Delphine e


Cosima não sabiam sobre vocês quando elas distribuíram
a cura LEDA?”

275
“Cura de quê?” Vivi engoliu em seco. “Não sei do que
está falando.”

“Projeto LEDA.” Sarah se abaixou mais. “Não se


finja de burra. Não minta para mim. Eu sou a única coisa
entre você e estregar o seu disfarce. Conte-nos tudo ou
nós—”

A campainha soou. Sarah se endireitou. Ela lançou


um olhar a Delphine. “Quem é?”

“Não tenho ideia.” Delphine disse. “Não estamos


esperando ninguém. Nem mesmo entregas.”

“VISITANTE DESCONHECIDO NA PORTA DA


FRENTE.” A casa disse.

A campainha continuava a tocar. Emitia um som


estranho, que Vivi depois reconheceu como as notas
iniciais de Pedro e o Lobo. As três mulheres escutaram
enquanto ela tocava de novo e de novo. Então alguém
bateu na porta dos fundos. Forte. Persistente. Como
policiais batiam. A campainha continuava a tocar.
Continuavam a bater na porta.

“VISITANTE DESCONHECIDO NA PORTA DOS


FUNDOS.” A casa disse.

O celular de Sarah tocou. Então o de Delphine. Os


celulares tocavam um para o outro como dois passarinhos
lutando por um pedaço de pão. Em algum lugar da casa,
um outro telefone, aparentemente um fixo, começou a
tocar também. E não parou. Assim como as batidas nas

276
portas. A casa percutiu com os sons da tentativa de
invasão.

Dentro de seu bolso, o próprio celular de Vivi


começou a vibrar e tocar insistentemente. Era um toque
distinto, o que ela reservava a Arun. Os cabelos da nuca
de Vivi se arrepiaram. Pela primeira vez, ela começou a
suspeitar que algo estava realmente muito errado.

“O que diabos....?” Delphine foi em direção à porta da


frente.

“Delphine, não!” Sarah foi até a outra mulher, mas


ela a dispensou.

“E se for sobre Cosima?”

Vivi assistiu enquanto Delphine abria parcialmente


a porta da frente. Lâmpadas de alta-definição
espalharam sua luz sobre a fina brecha aberta de espaço.
Delphine fez seu melhor para obscurecer o interior da
casa com seu corpo.

“Olá, sou do Maple Leaf Rag, o site de fofocas número


1 do Canadá!” A pessoa na porta disse. Era uma moça
asiática com um moletom cinza e uma micro câmera de
vídeo HD presa a um bastão. Ela esticou o bastão sobre a
cabeça de Delphine para filmar o interior da casa. “Estou
aqui para te perguntar sobre os clones? É um trote? É
algum tipo de campanha de marketing viral para algum
show de TV? Porque o kit de imprensa parecia isso.”

“Kit de imprensa?” Delphine perguntou.


277
“Puta que pariu.” Sarah sussurrou.

Vivi assistia enquanto um pequeno drone flutuou


pela sala através da porta aberta. Ele planou em círculos.
Uma luz verde piscava para ela. Ela reconhecia o modelo
do drone: era o popularmente usado para gravar vídeos
upskirt para o mercado negro de Seoul. Foi ali mesmo, no
chão de madeira da casa vitoriana absurdamente cara na
maior cidade do Canadá, que ela decidiu. O Clube das
Clones sabia de coisas que ela não sabia. Seu disfarce
estava quase certamente estragado. Ela provavelmente
se daria mal. Era cada clone por si, agora. E se ela não
podia sair dali sozinha, talvez ela pudesse ser levada dali.

“Me ajudem!” Vivi gritou. “Estou aqui! Ajudem! Elas


são loucas! Elas acham que sou um clone! Me ajudem!”
A mulher na porta forçou sua entrada na casa.
Delphine tentou fechar a porta, mas a mulher do Maple
Leaf Rag com o moletom cinza a segurou com um pé. “Ai,

meu Deus.” Ela se virou para as outras pessoas lá fora.


“Essa mulher precisa de ajuda! Estão prendendo ela ali
contra sua vontade!”

E foi assim que os repórteres, blogueiros, operadores


de câmera e paparazzi entraram na casa de Delphine e
Cosima. Entraram todos de uma vez, câmeras piscando e
luzes brilhando. Mais drones gravadores zuniram
entrando pela casa, se alojando no teto, como mosquitos.
Ela via isso quando dois câmeras corpulentos vieram até
ela e Sarah. Um segurou Sarah pelos ombros. O outro
puxou Vivi para cima e disse coisas para acalmá-la
278
2
Upskirt: Vídeos íntimos gravados sem o consentimento dos envolvidos.
enquanto utilizava uma multiferramenta para livrá-la da
fita adesiva.

“Muito obrigada...” Ela disse, terminando de tirar a


fita. “Meu Deus, que pesadelo. Ela é louca, as duas estão
completamente fora de si.” Ela franziu a testa e apontou
para algo em seu queixo. “Ei, você tem algo aqui.”

Ele apontou para seu próprio queixo. “Aqui?”

Ela acenou. “É, bem aí. Fique parado.”

Seu punho acertou o rosto dele. Ela já atravessava a


porta quando ele atingiu o chão. Atrás dela, todos
gritavam. Atrás dela, todos estavam distraídos. Vivi
correu.
Episódio 06

O que o mundo real


pede

‘O pior aconteceu. Agora é real.’

262
Anteriormente, em Orphan Black: TNC:

Sarah conhece Vivi, a condição de Charlotte piora e


um dos maiores medos do Clube das Clones se torna
realidade.
48 horas após a exposição

“Quem é a pessoa por trás deste rosto?”

A voz medida de Sally Winters fora desenvolvida


pelos anos de escalada na carreira da mídia corporativa.
Sua narração regular contrastava com o conteúdo caótico
e instável da tela que mostrava Sarah Manning e
Delphine Cormier se esforçando para segurar uma clone
dopada — a agente da CIA Vivi Valdez. Os vídeos
pausaram em mais uma narração pensativa:

“E quem está por trás deste rosto?”

O vídeo voltou à vida novamente. Os olhos


aterrorizados de Vivi focavam na lente da câmera que
invadira a sala de estar de Delphine. “Me ajudem!” Vivi
gritou. “Estou aqui dentro! Me ajudem! São loucas! Elas
acham que sou uma clone! Me ajudem!” Então repórteres,
blogueiros, drones e paparazzi invadiram a casa. Dois
operadores de câmera contiveram Sarah, libertando Vivi
que, em retorno, socou a mandíbula de um deles antes de
fugir.

“E este outro rosto?”

O programa mostrou uma clone com cabelo verde


espetado. A mulher nervosa tentava proteger seu rosto ao
correr pela rua de pedras. “Me deixem em paz, seus
cuzões!” Ela rosnou em um sotaque escocês, antes de
bater na câmera e a afundar a gravação na escuridão.
263
Sally Winters, a imaculada e arrumada âncora do
jornal de notícias Hindsight apareceu na tela. Ela parecia
relaxada, mas ainda com uma boa postura em sua cadeira
de couro. “A mulher que vocês acabaram de ver é
Mackenzie McCarthy, de Glasgow, na Escócia. Ela
machucou o operador de câmera que gravou o vídeo e não
foi vista desde então. A primeira mulher que mostramos
é Sarah Manning, de Toronto, no Canadá. A moça
claramente confusa ao lado da Srta. Manning ainda não
foi identificada. Um pacote de imprensa anônimo,
entregue a vários noticiários e jornais, afirma que estas
mulheres — e muitas outras — são clones. Seriam estas
estranhamente iguais mulheres cópias genéticas de
verdade, criadas em um laboratório? Se sim, o que isto
significa para o contexto do mundo e da ciência? Alguns
diriam que essa é uma realização científica
impressionante, algo a ser melhor estudado. Outros
discordam. Ou seria isso tudo apenas uma mera
coincidência extraordinária? Hindsight se apressou para
descobrir a verdade através da criação de uma ‘linha
direta de clones’, a qual já recebeu mais de três dúzias de
notificações sobre outras mulheres idênticas por todo o
mundo.”

Uma clone LEDA que vestia um terninho apareceu


na tela, sendo atacada por flashes de câmeras. Repórteres
gritavam “Zarin! Zarin!” enquanto ela tentava sair de um
enorme prédio de vidro e mármore.

“Por favor—” Ela pedia, se espremendo através da


multidão.
264
“Mutante sujo!” Latiu uma voz de fora da visão da
câmera, enquanto um líquido transparente jorrava sobre
o rosto da clone. Gritando, a mulher esfregou seus olhos.
Alguém vestindo um gorro sobre o rosto se aproximou
rapidamente, derrubando alvejante sobre a cabeça dela,
quase esvaziando a garrafa antes que a polícia intervisse.

“Zarin Silva, do Rio de Janeiro, Brasil, sofreu danos


permanentes em seus olhos neste ataque.” A voz de
Winters narrava. “Seu agressor, que foi capturado e
preso, faz parte do ‘46Pure’, um grupo internacional de
puristas genéticos que se opõem fortemente à modificação
de qualquer organismo. Apesar de o grupo afirmar não
ser conivente com o uso da violência, também não
penaliza membros extremistas por qualquer uma de suas
ações.”

Um homem que parecia um buldogue brotou na tela.


A chamada abaixo dele anunciava ser Bill Williams,
Diretor Executivo do 46Pure em Virgínia. “Vocês têm de
entender, as pessoas não se sentem seguras.” Williams
dizia. “Se existem clones humanos andando por aí em
segredo, o que mais cientistas podem ter feito a nossa
comida, nossa água? E se essas xerox humanas estão
procriando com pessoas naturais e normais? Se seus
genes alterados atingirem os nossos, quem sabe o que
aconteceria. Deficiências de nascença, novas doenças —
não há como saber. É esse o problema de manipular a
natureza. 46Pure não está aqui para usar a força.
Estamos aqui para ser uma voz para as pessoas que se
preocupam com essas coisas. E não descansaremos
265
enquanto o governo e as autoridades não nos derem
ouvidos e tomarem as medidas apropriadas para garantir
que essas mulheres não representam uma ameaça.”

A tela mostrou uma mulher em um jaleco, com um


olhar severo e intimidante. Era Ava Goddard, uma
reconhecida geneticista e autora. “Se a clonagem humana
foi alcançada com sucesso nos anos 80, precisamos aceitar
essas mulheres.” Ela disse. “Esse tipo de avanço
monumental é insondável. A comunidade científica
deveria ganhar acesso a quaisquer dados relacionadas a
essas pessoas — incluindo detalhes no processo de
clonagem. Deveria ser conhecimento público.”

O programa voltou a mostrar Sally Winters em sua


cadeira. “O público já se polariza sobre a ideia de clones
humanos. Mas como estas mulheres idênticas estão se
sentindo? A investigação do Hindsight dessa história
alucinante nos levou a um salão de unhas em Toronto, no
Canadá. E o que encontramos lá foi surpreendente.”

Lançando um olhar sensual à câmera, Krystal


Goderitch disse “Deixa eu me apresentar? Sempre gosto
de começar contando do meu vlog, ‘Kay-Bee’. Sou Krystal
Goderitch, grande ativista de cosméticos e advogada.
Bom, futura advogada. Faço meu exame ainda este ano e,
acreditem, vou fechar.”

“Senhorita Goderitch—” Sally Winters começou a


dizer.

266
“Por favor, Krystal.” A clone interrompeu. “Eu a
assisto desde que, sei lá, eu era criança.”

“Krystal, o que tem a dizer sobre a acusação de que


você e outras dúzias de mulheres são clones?” Winters
perguntou.

“Coisa de maluco.”

“Certo. E se vocês não são clones, são gêmeas


quádruplas? Quíntuplas? Sêxtuplas?”

“Sex-tuplas? O que você quer dizer?” Krystal


disparou, seus olhos se estreitando, suspeitos.

“Digo, existem muitas outras que se parecem com


você.” Winters fraseou novamente, inclinando um pouco
a cabeça para o lado como se examinasse uma obra de arte
desconcertante.

“Só existe uma de mim, Srta. Winters.” Krystal se


vangloriou.

“Nossa pesquisa mostra que existem muitas


mulheres que carregam uma semelhança incrível com
você. Até agora, identificamos mais de três dúzias.”
Winters explicou, levantando uma foto profissional de
uma clone LEDA cercada de uma coleção bolsas de moda.
“Esta é Tamiko Nakamura, uma empreendedora da
indústria japonesa da moda.” Winters mostrou outra foto,
esta de uma clone acompanhada de uma equipe infantil
de basquetebol. “Esta é Joanna Moore, uma professora de
educação física em Winnipeg, Canadá.” Winters puxou
267
outra foto de uma clone coberta de tatuagens, usando
grandes óculos. “E Anne Gentlemen é barista em
Portland, Oregon.” Por fim, Winters revelou a fotografia
de uma petulante Sarah Manning, aos vinte e poucos
anos, quando fora presa. “E esta é Sarah Manning, quem
você afirma conhecer.”

“Ah, essa aí é louquinha da cabeça.” Krystal disse,


revirando os olhos. “Ela acredita nessa coisa de clones.
Mas assim, isso aí não é uma foto presa? Srta. Winters,
você acreditaria em alguma criminal psicopata? Ou em
mim, uma estudante de Direito?”

Winters, em sua cadeira, voltou a ser focada na tela.


“Não apenas a Srta. Goderitch negou ser uma clone, ela
também não elaborou sobre sua relação com Sarah
Manning, quem não conseguimos localizar. No entanto,
pesquisas mais a fundo na história da Srta. Manning
mostraram que ela possui um histórico de assalto e
pequenos roubos. E, de acordo com alguém que conhece
outra destas supostas clones, talvez exista um padrão de
criminalidade entre elas.”

“Alison Hendrix era minha vizinha.” A atrevida


Charity Simms disse, brincando com seu colar de pérolas.
“Sua filha era a melhor amiga da minha. Planejávamos
festas juntas. Alison era a garota propaganda do nosso
bairro. Literalmente.” Um cartaz rosa e coberto de flores
apareceu na tela, em que se lia ‘Vote Alison Hendrix para
administradora da escola’. “Ela concorreu a
administradora da escola e ganhou. Teve grande

268
participação em nossa comunidade, por anos.” Charity se
inclinou, pronta para a fofoca. “Mas eu sempre tive um
mau pressentimento em relação a ela. E acabou que,
debaixo daquela fachada perfeita, Alison era alcóolatra e
viciada em drogas. Ela traiu seu marido com o marido da
melhor amiga, fez um inferno na vida das crianças dela.
Existiam até rumores de que ela distribuía drogas!” A
gravação parou, congelando na careta sarcástica de
Charity.

269
Um controle remoto se chocou contra a parede ao
lado da TV, cuja tela brilhava com o rosto contorcido de
Charity.

“Sarah!” Delphine brigou do sofá, onde estavam


sentadas assistindo ao programa.

“Minha maldita foto presa! Num programa


internacional!” Sarah berrou, procurando algo mais para
quebrar na sala estar de Delphine.

“E Ali? Charity Simms a afundou na lama.” Donnie


disse de um tablet na mesa de café. A chamada das clones
de emergência estava começando a esquentar.

“Alison vai ver isso e sangue vai ser derramado.”


Helena respondeu calmamente em um chat de vídeo no
celular ao lado de Donnie. Ela estava dentro de um carro
em algum lugar.

“Não temos espaço para outro corpo na garagem!”


Donnie guinchou.

“Sorte que eles não tem nada contra você, Helena.”


Sarah rosnou. “Você não tem que se preocupar com o
mundo inteiro sabendo que você é uma clone e uma
criminosa. Você provavelmente pode só ficar no Yukon e
ter uma vida seminormal com os meninos.”

“Não estou mais no Yukon.” Resmungou Helena.

“Como assim? Onde você está?” Delphine perguntou.

270
“Na estrada. Quero estar com minhas sestras nessa
hora difícil.” Helena disse.

O tom sombrio de suas palavras arrepiou Delphine.


Sim, Sarah fora culpada de assaltos, mas Helena fizera
coisas indescritíveis e violentas. E sim, uma pessoa de
fora poderia concluir que muitas LEDA tinham
tendências criminosas, mas essas mulheres foram
forçadas a cruzar as linhas. Foram levadas ao limite pela
DYAD, pela neoevolução, pelo culto dos Proletheans e
muitos outros que tentaram manipulá-las ou destruí-las.
Esse vazamento para a imprensa poderia reviver aquele
período infernal e Delphine não sabia se o Clube das
Clones sobreviveria a outro round.

“Que se foda. Vou achar a Kira antes que os tabloides


achem.” Sarah disse, pegando sua jaqueta de couro. “Vão
descobrir sobre o Lin28A. Aquela merda de ‘fonte da
juventude’ vai começar de novo. Vão querer pôr as mãos
nela. Não posso deixar isso acontecer.” Sarah marchou em
direção à porta e a abriu.

“Sarah, não!” Delphine se apressou a dizer. Mas as


lâmpadas de flash já disparavam lá fora, lançando
explosões estroboscópicas para dentro da casa. Delphine
correu e bateu a porta contra a horda de operadores de
câmera e repórteres que acampavam em seu jardim.

“Você não pode ir lá fora!” Delphine insistiu.

“Apenas se esconda em casa como o rato.” Helena


censurou do telefone.

271
“De jeito nenhum.” Sarah disse, se direcionando às
escadas.

Delphine agarrou sua jaqueta. “Onde está indo?”

Sarah se soltou dela. “Não se preocupe. Vou pular


pelos telhados das casas até o fim do quarteirão e depois
descer. Eles não vão me ver.”

“Você não é a única, Sarah. Estamos ferrados


também.” Delphine disparou. “Nossos rostos, minha
carreira — meu casamento, tudo foi exposto! Cosima foi
sequestrada da custódia da polícia! Todos vão descobrir
que ela foi acusada de terrorismo. E aí o quê? Ameaças de
morte. Vão lançar tijolos em nossas janelas. Mesmo se
meus advogadas a encontrarem, estamos presas....” Ela
começou a chorar. “Isso não é estaca zero. É pior. Mas
como da última vez, temos que ficar juntos. Não podemos
ser imprudentes. Estamos expostos. O governo está
aumentando a segurança biométrica. E aquela ligação
direta para clones é como uma caça às bruxas. Ficar longe
de Kira é o melhor que pode fazer por ela. Seu rosto
poderia levar vocês duas a serem presas em um
laboratório. Ou jogadas num poço pelo 46Pure.”

Sarah não podia negar o que Delphine falava. Ela


queria proteger sua filha, mas ela seria só mais um peso
agora. Kira estava melhor sem ela.

“Quem fez isso com a gente?” Donnie proferiu da


mesa de café.

“Rachel idiota?” Ofereceu Helena.


272
“Eu não sei.” Delphine não parecia convencida. “Por
que Rachel se prenderia de novo num aquário após viver
a vida inteira na DYAD?”

“Talvez aquela nova LEDA, a ruiva do aeroporto,


tenha feito isso.” Donnie ofereceu.

“Por que? Art contou que ela é da CIA. Um rosto


público é sentença de morto para espião.” Helena
argumentou.

“Nathaniel Sturgis, o geneticista que entrevistou


Cosima...” Delphine pensou em voz alta. “Ele sabia sobre
o programa LEDA, sobre a DYAD. Quem quer que tenha
contado isso a ele, pode ter contado à imprensa.”

A cabeça de Sarah girava mais e mais, um monte de


perguntas e emoções preso em sua garganta. Fora preciso
cinco anos de terapia e antidepressivos para começar a
apagar as cicatrizes da neoevolução. Ela finalmente podia
dormir à noite sem flashbacks e estava indo bem no
trabalho como operadora de empilhadeira. Ela e Cal nem
brigavam mais. Mas agora, a flor que ela estava virando
parecia murchar. “Preciso de uma cerveja.” Ela
resmungou.

Com uma garrafa e um punhado dos bombons


de THC de Cosima, Sarah se trancou no banheiro. Ela
engoliu os chocolates. Enquanto esperava o THC liberar
parte da tensão que sentia, digitou uma mensagem para
Kira.

Assista às notícias. Estamos em risco


273
Não é segredo mais

Não sabemos quem foi ou o que vai acontecer

Me diga que está a salvo e te deixarei em paz

Por favor

Sarah aguardou. Sem resposta. Nem mesmo


visualizadas. Era tudo sua culpa. Ela nunca ligara para a
Sra. S quando fugia. Talvez Kira estivesse imitando todo
seu comportamento de merda. Talvez estivesse em seus
genes. Talvez a estabilidade que ela falhara em fornecer
durante a infância de sua filha estivesse tendo
consequências. Uma pontada severamente atrasada de
arrependimento atingiu Sarah e um nó ainda maior se
formou em sua garganta. Se ela tivesse sido uma pessoa
diferente, nada disso estaria acontecendo. Ela não seria
um risco tão grande a sua filha. Ela sabia que Kira estava
mais segura sozinha agora e que ela deveria deixá-la em
paz. Só esperava que os bombons a acalmassem.

274
A fotografia de Cosima Niehaus apareceu na tela
onde o programa de Sally Winters passava.
“Ironicamente, ela é doutora em genética humana.” A voz
de Winters saiu de um pequeno autofalante. “E sua
esposa, Delphine Cormier, professora titular na
Universidade de Toronto, é uma expert no campo de ética
genética—” O vídeo pausou.

“E é nossa maldita consultora!” Um homem de cabelo


branco gritou do outro lado da mesa para Eloise Thibault.
“Você escolheu alguém cuja esposa é um clone e uma
suspeita em um bombardeio terrorista. Ótima escolha,
Thibault.”

“Da forma como me lembro, Drummond, nós todos


votamos por Cormier.” Eloise disse, exausta. Esse era o
vigésimo comentário de Drummond durante o repasse da
BioThreat sobre o programa do Hindsight. A ideia de
acertá-lo bem no meio da testa com uma semiautomática
era a única coisa que a mantinha na reunião de
emergência.

“Você a defendeu, influenciou a todos.” Drummond


rebateu.

“Por Deus, Drummond — Cormier era a mais


qualificada.” Disse Greg Kurzmann.

“E agora ela é a que mais tem conflito de interesses


— ela é casada com uma terrorista!” Drummond rugiu.

“E ela conhece nossa agenda.” Apontou um


representante careca do Ministério de Defesa.
275
“Como consultora, ela tinha que conhecer, senão não
haveria nada para consultar.” Greg zombou.

“Você é bem atrevido para alguém tão imaduro.”


Drummond disse.

“Imaturo, seu tolo.” Greg riu. “Imaturo.”

“Na minha época, merdinhas insubordinados como


você não podiam se sentar à mesa.”

“Ainda bem que não é mais sua época.”

Como se estivesse prestes a ter um infarto,


Drummond se levantou de sua cadeira. Estava louco para
atravessar a mesa e estrangular Greg. Se ele fosse uns
vinte cinco anos mais novo, talvez esta teria sido uma
opção.

“CHEGA!” Eloise explodiu. “Todo mundo, saiam,


peguem um maldito whisky e voltem com as cabeças no
lugar. Se não conseguirem fazer isso, não voltem.”

Devagar, os homens se levantaram de suas cadeiras


e saíram pela porta, muitos resmungando baixo. Apesar
do fato de que ela era Tenente-General, eles claramente
não gostavam de receber ordens dela. Mas Eloise não se
importava. Ela tinha preocupações maiores.

“Greg, fique aqui.” Ela ordenou. Ele parou enquanto


o homem mais velho revirava os olhos para sua
obediência. Eloise esperou até que estivessem sozinhos.
“Obrigada.” Ela disse, um sorriso aquecendo o rosto antes
frio.
276
“O prazer é todo meu.” Greg também sorriu. “É
divertido irritar esses velhos.”

“A exposição das clones foi um milagre disfarçado.”


Eloise pensou em voz alta. “Fez todos os bobões focarem
em outra coisa, em Delphine e sua esposa terrorista. E a
cobertura da mídia provavelmente vai matar essa força
tarefa. Dieu merci. Então não terei que lidar com esses
palhaços velhos. Posso focar em apenas passar meus
projetos. Falando nisso, em que pé estamos?”

“Devemos receber o sinal verde em vinte e quatro


horas.”

“Bom.” Ela disse, pegando um cigarro.

“Colocar os velhos para pastar, anunciar as clones


femininas.... é poético.” Greg refletiu, distraído.

Eloise franziu a testa. Ela odiava quando ele tentava


ser artístico. A preocupava un petit peu. “Certo.” Ela disse
no tom mais sóbrio que conseguia. “Relatórios regulares
quando estiver lá. Detalhes completos. Sem muito”

“Claro.” Greg disse, tirando seu isqueiro para


acender o cigarro para ela.

Puxando o cigarro apagado, Eloise o encarou. Ela


também odiava quando ele tentava ser cavalheiro. Era só
fachada. “Você sabe que não se pode fumar aqui.” Ela
falou enquanto se virava. “Relatórios, a cada trinta

277
minutos.” Eloise disse por sobre os ombros enquanto se
dirigia ao bar mais próximo.

278
Parado no escuro, Alexander Davis virou o copo de
bourbon e olhou para a mala na sala de jantar. Rhonda o
deixaria de verdade desta vez. Ela vivia desconfiada. E
por que não deveria? Seu trabalho era prejudicialmente
clandestino, o enviando em viagens as quais ele não podia
explicar. E depois de se tornar diretor do Departamento
de Vanguarda Científica e responsável pelo Projeto
Boston, tudo se tornou ainda mais clandestino. No
passado, ele compartilhara informações sigilosas com
Rhonda para salvar seu casamento, mas ele não podia
contar a ela que monitorava clones humanos. Era coisa
demais. Ele provavelmente desapareceria se a CIA
descobrisse que ele contara sobre o Projeto. O preço a se
pagar por esse segredo era seu casamento. Após
numerosas brigas, duas tentativas de separação e flagrar
Rhonda fazendo sexo de vingança com seu barista
preferido, Davis estava OK com isso.

Mas não era somente seu casamento problemático


que o forçara a pegar um voo para Toronto. Eram as
imagens de clones marcadas em seu cérebro, junto à voz
de Sally Winters narrando repetidamente: “Quem é a
pessoa por trás deste rosto? E este outro rosto?” Davis
odiava todos aqueles rostos e ver a cara de Vivi nas
câmeras despertava uma profunda raiva. Vivi deveria
estar contida sob seus cuidados, não mundo afora
atuando como agente da CIA. Que supervisão idiota.
Quem a deixara escapar? Por que ela não fazia mais parte
do Projeto Boston? Vivi deveria estar no hospital com
Dana e as outras, delirando com a febre e coberta de

279
erupções cutâneas. E ele deveria ainda estar monitorando
a eficiência do TAG, a nova bioarma do Canadá, que
deveria ter matado as clones. Mas agora nenhuma delas
estava morta ou no hospital. E o pior de tudo, Nathaniel
Sturgis ainda devia a ele informações sobre a bioarma,
mas o panaca havia sido morto. Davis quase acreditava
que o seu colega de faculdade morrera apenas para
impedi-lo de ser um verdadeiro herói americano. Com a
pressão do sangue subindo, ele arremessou seu copo, o
estilhaçando contra a parede.

“Querido?” Questionou sua esposa, se envolvendo de


forma protetiva em seu robe, enquanto o observava do
alto das escadas.

“Rhonda...” Davis sussurrou, sem saber o que dizer.


“Me desculpe, vou limpar isto.”

“O que está acontecendo?” Ela perguntou,


caminhando em sua direção. “Por que você está aqui
embaixo, bebendo no escuro? E por que suas malas estão
feitas?”

“Tenho uma viagem a trabalho.” Davis mentiu. Essa


viagem não era sancionada pela CIA. Ele não tinha ideia
de para onde estava indo. Mas era pela sua carreira. Seu
nome estaria nos livros de história por criar uma bioarma
genética. Ele, sozinho, alavancaria seu país até a linha de
frente da corrida armamentista. Então Rhonda se
arrependeria de ter transado com aquele barista.

280
“Serve de algo que eu pergunta para onde você está
indo?” Ela disse, apertando os lábios.

Ele não podia contar a ela. A exposição na TV


mostrara muitas clones em Toronto. Assim que ele
mencionasse a cidade, ela ligaria dois mais dois. “Eu... fico
sendo impedido.” Ele disse. Fora uma escolha ruim de
palavras, pois Rhonda imediatamente assumiu que ele
falava sobre alguma moça que não aceitava seus flertes.

“Isso foi o mais honesto que você já foi comigo.”


Rhonda fungou. “Não é triste?”

“Não, não é isso que quero dizer.” Davis disse,


voltando atrás. “Digo, eu quero fazer a diferença neste
projeto que supervisiono, mas o D.A.O. fica me
impedindo. Ele me faz monitorar contagens de células T,
perfis psicológicos, com que frequência pessoas pegam
infecções— sei que há mais que eu possa fazer pelo nosso
país.”

Era verdade. O Diretor Adjunto de Operações, quem


originalmente liderava o Projeto Boston, recusava todas
as propostas de Davis para reaproveitar as clones. O
velho era sentimental em relação às “suas garotas”
relegara Davis a tarefas banais. Tinham acesso a
humanos geneticamente idênticos e tudo que faziam eram
testes os quais qualquer médico regular podia fazer.
Poderia estar aprendendo mais sobre o câncer, doenças
degenerativas, ligando e desligando marcadores. Tramar
para que as clones de Boston fossem infectadas com a

281
arma TAG era o jeito de Davis para se livrar das amarras
do D.A.O. Ele tentaria aproveitar esse projeto ao máximo.

“Essa viagem...” Davis começou. “É para me ajudar


a subir. Vou fazer uma coisa que... me tornará um herói.”
Soara mais estúpido em voz alta e Davis se arrependeu
imediatamente de dizer aquilo.

“OK...” Disse Rhonda, desconfiada. “Você bebeu todo


o bourbon?”

“Sim. Mas é sério, Rhond!” Ele insistiu. “Estamos à


beira de outra guerra fria, uma secreta. E eu talvez tenha
uma chance de reforçar nossas defesas. De nos colocar par
a par com qualquer um. Essa viagem é imperativa para a
segurança nacional!”

Rhonda ainda não acreditava nele. Provavelmente


porque ela, assim como o resto da América, não sabia que
o governo canadense estava desenvolvendo uma arma
baseada em genes. O amiguinho idiota ao norte era agora
uma ameaça.

Rhonda fez uma careta sarcástica.

“Arriscar meu pescoço, superar limites, garrafas de


Lochtaig apenas para conseguir detalhes dessa merda—
e minha esposa zomba de mim?” Davis se irritou, pegando
sua mala. “Não, não aturarei isso.” Ele estava tentado a
acender um cigarro dentro da sala de estar apenas para
irritá-la.

282
“Lochtaig? Você só bebia essa droga de whisky com
aquele esnobe da faculdade.” Disse Rhonda, juntando as
peças. “Nathaniel Sturgis está envolvido nisso?”

Merda, Davis percebeu. Eu bebi demais e falei


demais. Uma rápida pesquisa no Google e ela verá que ele
era Diretor de Pesquisa no IPGT, onde a arma TAG foi
desenvolvida. Algum algoritmo identificará sua pesquisa,
marcará seu IP e nós dois desaparecemos para sempre.

“Não.” Davis mentiu, mal. “Não vejo aquele cara há


anos.”

Aquilo era a maior mentira. Ele tivera uma reunião


“improvisada” com o bom e velho Sturgey há apenas dois
meses e, após três garrafas de Lochtaig, Davis o
convencera a concordar com o teste do TAG em seus
clones de Boston, porque juntos eles poderiam se tornar
heróis. Mas acabou que o garoto Sturgey não queria de
verdade ser um herói. Ele administrara uma versão não-
letal do vírus da bioarma nas clones sem contar nada a
respeito. Apenas quando Davis o ameaçou com um
documento imenso sobre suas ‘imprudências’ ele
concordara em entregar os arquivos de design do TAG.
Então, convenientemente, o laboratório do IPGT e tudo o
que havia lá dentro fora pelos ares em uma explosão e
Sturgis desaparecera.

Rhonda olhava para ele, o que fez sua nuca queimar.


Ela descobriria o que estava acontecendo e arruinaria
suas chances de ascender da lixeira para a qual a CIA o
havia banido. Ele estava começando a odiá-la o mesmo
283
tanto que ele odiava aquele D.A.O. mole. Merda, ele
odiava aquele D.A.O. Ele não odiava tanto Rhonda.
Rhonda o preocupava. Assim como Valdez. Ela
desaparecera após a exposição das clones. Talvez
estivesse por conta própria. Ninguém sabia onde ela
estava. Nem mesmo aquela policial canadense para quem
ele ligara, Jaysara alguma coisa. Ela prendera o clone
errado por terrorismo. Até onde ele sabia, Valdez estava
por aí vendendo a bioarma para quem pagasse mais. Se
fosse este o caso, ele tinha de encontrá-la antes. Com
todos aqueles clones à solta em Toronto, não seria fácil
localizá-la. Ele teria de pisar na cara de alguns clones
para conseguir, o que não era um problema. Ele estava
farto de clones e queria coisas melhores.

“Preciso ir descobrir se essa vadia tem o que eu


preciso.” Rugiu Davis, indo para a porta. Ele não dava a
mínima sobre a escolha de palavras agora.

“E o copo, Alexander?” Rhonda se irritou.

“Ligarei para Estella para que venha limpar de


manhã.” Ele cuspiu, enquanto saía batendo o pé para
pegar um táxi até o aeroporto.

284
No início, Alison Hendrix achou o brilho da luz do dia
através do plástico branco confortante. Não era escuro e
sufocante, como ela esperava. No entanto, o que mais a
incomodava era o som constante do plástico. Tinha um
efeito oposto àquele dos vídeos ASMR que ela assistira
para se distrair da vontade de beber e se drogar. Cada
pequeno ruído e rangido a fazia querer pular para longe.
Ficar sóbria por oito anos não fora fácil e tentar
permanecer imóvel dentro de um saco para transporte de
cadáveres ameaçava essa sobriedade. Arun dissera a elas
para não se mexer e que ele as tiraria dali quando fosse
seguro. Mas e se ele é um mentiroso... Alison pensou
consigo mesma. Mal conhecemos o cara e ainda o
deixamos nos colocar aqui e atravessar o hospital com a
gente para deus sabe onde—

Então, quando ela estava prestes a tentar sair dali,


uma porta se abriu (ou fechou, ela não tinha certeza),
interrompendo suas paranoias. O zíper do saco se abriu
para revelar o rosto preocupado de Arun. “Você está
bem?” Ele perguntou.

“Eu estava bem há duas horas atrás.” Alison bufou,


se sentando. Ela estava em um depósito abandonado e
ficou aliviada ao ver os sacos de Charlotte e Dana ao seu
lado.

“Me desculpe.” Arun disse. “Levou um tempo até que


eu localizasse abrigos seguros e ajuda médica para as
outras... primas.”

285
“Ei, e eu?” Perguntou Dana, se levantando do seu
casulo mórbido como uma lagarta gigante. Arun libertou
a surpreendentemente ativa clone. Ela parecia estar
quase recuperada do vírus. As irritações em sua pele
estavam se acalmando e ela possuía uma cor vívida em
suas bochechas. Por outro lado, Charlotte estivera
estranhamente quieta por um tempo e surgiu pingando
suor e coberto de vergões que escorriam. Exausta, a
adolescente imediatamente se encolheu no chão.

“Caramba!” Alison arfou, se dirigindo para a


sobrinha.

“Não toque nela!” Avisou Arun. “Ela é contagiosa.”

Alison recolheu suas mãos. “Char, querida, você está


bem?” Charlotte apenas gemeu em resposta. Dana
caminhou para o lado da adolescente.

“Pare!” Disse Alison, sinalizando para que ela


recuasse.

“Provavelmente sou imune.” Dana disse, sentindo a


testa de Charlotte. “Ela está com febre alta. A minha
durou alguns dias, acho.”

“Dias?” Alison entrou em pânico. “Preciso levá-la


para a casa, agora.”

“Ela precisa de um médico.” Dana disse.

Alison pegou o telefone, ignorando a clone mais


jovem. “Char, querida, vou ligar para o tio Donnie e
vamos levar você para a tia Delphine. Ela saberá o que
286
fazer.” Antes que ela pudesse teclar os números, dúzias
de mensagens em pânico de seu marido, Sarah e Delphine
inundaram seu celular. Todos haviam enviado um link
para ela assistir — um episódio do Hindsight com Sally
Winters intitulado “A Questão Clone”. Enquanto assistia,
Alison mal pôde se conter. Quando terminou, ela
exclamou: “Vou socar a cabeça da Charity na parede!
Quem será que nos expôs?”

Do chão da fábrica, Charlotte sussurrou “Quem


será...”

“Não acredito que vocês viveram escondidas a vida


inteira. Três dúzias de vocês.” Dana murmurou, chocada.

“Duzentas e setenta e quatro de nós.” Alison a


corrigiu. “Das que sabemos. Mas a maioria delas não sabe
que são clones, então não é exatamente viver escondido.”
Alison notou Arun dando replay na parte da clone ruiva
sendo contida por Sarah. Ele pausou e observou o rosto
dela em pânico. “Arun, você conhece esta mulher?” Ela
perguntou.

O silêncio dele foi a resposta.

“Quem é ela?” Alison pressionou.

“Minha... parceira.” Arun confessou, hesitante.

“Caramba.” Alison disse, se aproximando dele.


Talvez ele fosse o responsável pela bomba. Pela prisão de
Cosima. Talvez Vivi explodira o laboratório de pesquisa.

287
Seriam eles quem expôs as clones LEDA? “Por que você a
mandou atrás de nós? O que você procura?”

“Eu não a enviei atrás de vocês.” Arun esclareceu.


“Vocês não tinham nada a ver com essa operação. Ela foi
enviada para recuperar informações não relacionadas a
isso. A coisa das clones foi uma surpresa e eu me preocupo
que isso tenha colocado Vivi no caminho do abate. Não dá
para ser um espião quando existem duzentas e setenta e
quatro de você andando por aí.”

“Como você disse que ela se chama?” Dana


perguntou.

“Vivi— Vivienne.” Arun respondeu, não querendo


revelar mais.

“Vivienne... Era o nome de uma das minhas primas.”


Disse Dana.

“Bom, sua prima me seguiu até o aeroporto? Algum


ideia do por quê?” Alison questionou.

“Não. Ela foi enviada para longe quando tínhamos


cerca de seis anos.” Dana explicou. “Era uma criança um
pouco problemática, agressiva. Mas era como uma irmã
para mim. Fazíamos tudo juntas. Ela fingia ser eu para
que eu não tivesse que comer batatas. E eu fingia ser ela
quando ela precisava se desculpar por socar uma das
primas. O que acontecia muito. O que provavelmente é o
motivo pelo qual ela foi enviada para longe. Já faz tanto
tempo, eu quase me esqueci.”

288
“Com base na reação dela à palavra ‘clones’ no vídeo,
acho que ela esqueceu também.” Disse Alison.

“Vivi nunca mencionou a família além de seus pais.”


Admitiu Arun. Alison notou que a voz dele se embargava
com tristeza e suspeitou que a relação de parceria entre
eles não era tão simples quanto ele fazia parecer. Mas isso
não era problema dela.

“Bom, isso é tudo muito interessante, mas não me


ajuda a levar Charlotte para a casa. Todos sabem que
somos clones e não posso nem tocá-la.” Disse Alison,
esfregando as mãos. Ela considerara mergulhar Char em
álcool e a colocar de volta no saco de cadáveres, mas isso
provavelmente não iria dar muito certo quando
chegassem na fronteira.

“Eu posso ajudar a levá-la para a casa.” Dana


ofereceu. “Não me importaria de conhecer mais das
LEDA.”

“Sério?” Alison não pretendia soar tão cética, mas ela


se questionava porque alguém entraria de boa vontade
naquela confusão de clones.

“Sim, sério.” Dana sorriu, tímida. “Sou etnógrafa e a


maior parte de meu trabalho é sobre mim e minhas
primas. Claro que...” Ela adicionou, o sorriso se
desfazendo. “Tive de disfarçar a maior parte dele como
sendo em gêmeos ou trigêmeos.”

Isso deixou Alison sem palavras. Ela vivera a maior


parte da vida dela sem saber e Dana falava tão facilmente
289
sobre tudo aquilo, meio que a enjoava. Ela trabalhara
bastante para ficar em paz com o fato de ser uma clone.

“Se você achar Vivi...” Arun hesitou, então


continuou. “Não posso nem imaginar o que ela está
passando. E não posso contatá-la. Eu não quero que a
agência saiba onde ela está — pelo menos até que isso
esteja melhor resolvido.”

“Bom, Vivi me encontrou.” Alison disse a ele. “Então


eu diria que existem grandes chances de a encontrarmos
de novo. Se a descoberta dela for parecida com a minha,
ela voltará com perguntas. Se responderemos ou não,
dependerá do quão amigável ela for dessa vez.”

“Ela é uma boa pessoa.” Arun garantiu. Mas o olhar


de Alison mostrava a ele que ela não acreditava muito
naquilo. “Ela pode ser meio difícil às vezes, mas Vivi é a
melhor parceira com quem já trabalhei. Só quero que ela
saiba sobre Davis, que ela não pode confiar em qualquer
um da agência. Por favor, conte a ela que estou em D.C.,
vigiando as coisas.”

“Vou contar.” Dana prometeu a ele.

Mas Alison não prometeria coisa alguma. Ela não


confiava em Arun e não sabia o que pensar de Dana. As
clones na mídia, a doença misteriosa, um suspeito agente
espião — tudo estava trazendo à tona um profundo TEPT
e ela estava tendo dificuldades em focar. Parecia que toda
a musicoterapia que fizera se desfazia. Se não fosse por
Charlotte, ela correria para longe. Mas ela precisava

290
voltar a sobrinha para a casa em segurança. Mesmo que
isso fizesse sua cabeça girar, Dana parecia ser a única
forma de fazer isso. Mergulhar a sobrinha em álcool fora
um plano risível... mas Alison começava a achar que
mergulhar em álcool não seria nem de perto tão ruim.

291
Clone. O rum queimava ao escorrer pelos cortes
irregulares e superficiais deixados pela garrafa quebrada
que fora pressionada em seu pescoço. Ela imaginou o
antisséptico substituto correndo junto ao sangue, a
limpando da palavra: clone. Não, aquilo não seria o
suficiente. Então ela bebeu um longo gole da bebida
barata que encontrara debaixo da pia de sua casa
alugada, sentindo o calor libertador descer pelo seu
esôfago.

“Quem é a pessoa por trás deste rosto?”

Hindsight passava na TV, de novo. Mostrava ela


sendo refém de amadores! Que vergonha. E aquela
palavra continuava a aparecer: clone. Vivi lutou contra o
controle remoto, mas a TV não desligava. Ela agarrou o
equipamento e o arremessou na mesa de café. Foda-se
aquilo. Ela precisava de silêncio. O que durou apenas dois
segundos antes que um pensamento surgisse de repente
em sua cabeça: talvez ela não fosse quem pensava ser.

Tudo fora uma mentira. Ela não era a maníaca


depressiva e narcisista que inventava ‘amigos
imaginários’ idênticos a ela, como seus pais afirmavam.
Suas amigas foram reais. E mesmo assim ela passara a
vida escondendo uma doença mental que ela não tinha
para que pudesse se tornar uma agente. Fora seu sonho.
Vivi dedicara cada pedaço de si para construir uma
carreira dentro da CIA. Ela não tinha filhos ou marido ou
mesmo hobbies, e até agora ela estivera OK com isso. Mas
ver todas aquelas mulheres que eram iguais a ela,

292
vivendo vidas completamente diferentes, a fazia se
questionar se ela tomara todas as decisões erradas. Será
que ela era realmente feliz trabalhando como uma
agente? Após anos de trabalho fingindo ser outras
pessoas, como ela poderia saber quem era de verdade, a
este ponto? Será que ela poderia ter tomado decisões
diferentes e sido mais feliz? Será que ela poderia ter
dreads e uma pequena casa vitoriana na cidade? Será que
ela poderia ter um marido bobão e duas crianças arteiras?
Será que ela poderia até mesmo voltar às operações
clandestinas agora? Uma clone não podia ser uma espiã.
Aquilo era ridículo. O que diabos ela faria? Ela precisava
de conselhos e apenas uma pessoa podia a ajudar.

Bebendo mais do rum, Vivi digitou o número de


Arun. Ninguém atendera mais cedo, mas agora uma voz
alegre e familiar respondia: “Gemstone, soluções de
marketing.”

“Estou ligando para saber sobre o plano safira.” Vivi


disse, seguindo o protocolo.

“Um momento.” A voz respondeu.

Vivi esperou pelo que pareceu um tempo


curiosamente longo. Arun não costumava demorar tanto
para atender. Estranho. Mas não seria estranho se eles
quisessem a ‘apagar’. Não, não podia ser isso. Arun
prometeu avisá-la se algum dia chegasse a esse ponto e
ele definitivamente ligaria para ela ao ver a coisa das
clones na TV. Então, por que ele não ligara? E se eles o
tivessem apagado, também? A CIA possuía uma agente
293
clone. Nunca deixariam isso vazar. Talvez já estivessem
apagando todos os traços dela, incluindo Arun.

Ou Arun estivesse envolvido. Nathaniel Sturgis fora


assassinado bem em sua frente. Será que estavam
tentando jogar a culpa nela? Infernos, eles podiam ter
planejado a explosão. Será que a operação não era sobre
colher informações? Será que o seu governo queria matar
um geneticista canadense o qual consideravam uma
ameaça e tentavam agora evitar repercussão política
fazendo dela um bode expiatório? Se esse fosse o caso, o
plano havia falhado com tudo. Agora, eles teriam de
localizá-la e matá-la. Localizá-la. Vivi desligou, então
arrancou o chip e a bateria de seu celular. Ela
provavelmente estava sendo rastreada.

Pegando uma mochila, a garrafa de rum e vestindo


um boné, Vivi correu para o metrô. Estava tarde e a única
pessoa além dela no trem estava mais bêbado do que ela
própria. Vivi não sabia para onde estava indo. Tudo o que
sabia era que ela tinha de desaparecer e, ao olhar seu
reflexo na janela escura do trem, ela percebeu que
conseguir isto agora seria bem difícil. Todos conheciam
seu rosto. Correr não a protegeria da CIA ou da polícia.
Eventualmente, descobririam que ela e Cosima Niehaus
não eram a mesma pessoa. Então o governo canadense
iria atrás dela pelo terrorismo. Isso é, se o seu próprio
governo não a pegasse antes. Ela precisava de proteção
real. E ela só conseguia pensar em uma coisa que ambos

294
os governos queriam o suficiente para trocar pela sua
segurança: a bioarma.

295
A sargento Jaysara Priyantha bateu na porta. Não
ligo se são três da manhã, ela pensou. Aquele FDP
corrupto vai contar a verdade. Quando Art Bell
finalmente respondeu, seu pijama com pequenas pizzas
estampadas o fazia parecer qualquer coisa, menos um
FDP corrupto. Ele parecia inofensivo, mas Jay
permaneceu alerta. Bell era a única pista que restava
sobre o caso da explosão do IPGT/assassinato, que fora
tirado dela. Se ela não o pressionasse, ela talvez perdesse
qualquer chance de o conseguir de volta.

“Eu poderia te acusar de obstrução da justiça.” Jay


ameaçou.

“Whoa, whoa, whoa!” Art balbuciou.

“Você mentiu para mim!” Ela continuou, tentando


evitar que sua voz ficasse estridente demais. Ela segurara
as lágrimas o dia inteiro. O governo havia levado Niehaus
embora sem nenhuma explicação. Era uma atitude
estranha por parte deles, a de enviar Greg Kurzmann, o
Oficial de Relações Civis no Escritório de Protocolos de
Armas Não Convencionais, para realizar a ação. Por que
dariam a ele autorização para obter a custódia de uma
suspeita de terrorismo e possível espiã americana? As
coisas não se encaixavam. E Art Bell também não se
encaixava. Ele contara mentiras e mais mentiras e ela já
não conseguia discernir o que estava acontecendo.

“Eu não menti. Eu disse duzentas irmãs.” Art


retrucou.

296
“O que parecia algum tipo de irmandade maluca, não
a verdade.” Ela disse.

“Você teria acreditado em mim se eu dissesse


‘clone’?” Ele a desafiou.

Ele tinha razão. Jay não teria acreditado.

“E eu te disse que Cosima não era uma agente da


CIA.” Ele adicionou.

“Claro, mas você parou aí. Você tem escondido


informações. Por que?”

Art fez uma careta.

“Não sei como, mas você está envolvido. Eu deveria


apenas prender você aqui mesmo—” Jay disse, se
movendo para pegar suas algemas.

“Minha filha é uma delas— uma clone.” Ele soltou.

“Sua filha? Essas mulheres estão na casa dos trinta


anos.” Jay respondeu, cética.

“Charlotte ainda é uma adolescente.” Art suspirou,


se rendendo. “Ela foi um milagre científico, o único clone
bem sucedido após a tentativa inicial, a qual gerou as
mulheres que você viu nas notícias. Ela nasceu em um
laboratório e foi criada pelos CEOs de uma empresa que
se desfez. Ela não tinha família, então a adotei. Não
contei a você pois eu a queria o mais longe possível do
alcance público. A mídia adora explorar garotas jovens.
Pensei o que eles fariam a uma clone adolescente.”
297
Jaysara devolveu a careta dele. O lado paternal de Art
estava a convencendo, bem quando ela estava pronta para
detê-lo. “Vi essas mulheres passarem pelo inferno—
lutaram contra corporações, contra os militares...” Ele
continuou. “Todos queriam algo delas. Elas mal
escaparam. Viver vidas despercebidas e normais é quase
impossível para essas mulheres. E agora, será que isso é
uma opção? O mundo sabe. Tudo pode acontecer.”

“Não se a lei está envolvida.” Jaysara disse, apenas


meio certa de que aquilo era verdade.

“A lei foi capaz de manter Cosima sob sua custódia?”


Art arguiu. “Se você quer acusar alguém de obstrução da
justiça, acuse quem quer que a tenha levado. Isto é, se
você puder.”

Era exatamente o que ela queria fazer — acusar


Greg Kurzmann, mas isso significava possivelmente
acusar o governo canadense. Eles capturaram uma clone
suspeita tanto de um bombardeio quanto do assassinato
de um geneticista. Uma clone que, de acordo com
Alexander Davis, da CIA, era uma espiã americana
agindo por conta própria. Jay conseguira essa informação
através de uma ligação pessoal. Não viera através dos
canais usuais e, agora com toda essa revelação confusa de
clones, ela duvidava daquilo. Na verdade, quando ela
pensava sobre toda a situação e todos os envolvidos, ela
não fazia ideia de quem acusar por obstruir a justiça.

“Você parece confusa.” As palavras de Art vieram até


ela. “Eu estive em seu lugar.”
298
“Só quero fazer a coisa certa, seja lá o que for.” Ela
disse.

“A coisa certa seria se afastar de um caso que já não


é mais seu. Mas não é isso que você realmente quer.” Art
sondou.

“Eu só quero descobrir quem explodiu o IPGT e


matou Nathaniel Sturgis.”

“E você quer ser promovida. Eu sei. Um cara como


eu na força décadas atrás? Fiz coisas horríveis para me
promover. Você está se arriscando, superando limites. Eu
respeito isso. Mas você está querendo mais do que
consegue lidar, sargento. Poderes bem acima de você vão
te bloquear a cada esquina. Se realmente quer entrar
nisso — encontrar a verdade —, precisa ser criativa.”

“Você quer dizer quebrar a lei.”

“Não foi fácil conseguir detalhes sobre Katja


Obinger, foi? Quão fácil acha que será conseguir
informações sobre uma agente clone americana e o
governo, que claramente tem ligação com algo que
desconhecemos? Não vai encontrar isso em qualquer
arquivo por aí.”

“Não significa que eu deva desistir.” Jay insistiu.

“Não pensei que desistiria.” Art disse. “Mas você


precisa de ajuda. E eu preciso proteger minha amiga.
Posso ser mais do que um informante para você. Posso pôr
a mão na massa.” Uma imagem de Art colocando a ‘mão
299
na massa’ invadiu a mente de Jaysara. Jogando a culpa
no fato de trabalhar demais, estar cansada e solteira há
muito tempo, ela afastou a imagem. “Já passei por isso
antes.” Art continuou. “Posso ajudá-la a achar o terrorista
de verdade e onde a corrupção se encontra.”

A sargento Priyantha considerou sua oferta. Ela


odiava manipular regras, mas elas já haviam sido
manipuladas— não, quebradas, quando tiraram Cosima
de sua custódia. Agora, parecia que todo seu trabalho
desapareceria dentro de um buraco negro de esquemas do
governo. Onde estava a justiça nisso? Desviar um pouco
seus valores para servir e proteger não parecia uma
grande violação comparado a isso. E apesar do que ele
escondera, ela começava a pensar que podia confiar em
Art.

“OK.” Jaysara disse. “Mas eu não tenho nada. Eles


levaram todas as evidências, me negaram acesso ao caso.
Tudo que tenho para continuar é o que Niehaus disse no
depoimento: que Nathaniel Sturgis ‘mantinha platina
perto de seu peito’ e que eu deveria ‘levar isso até
Delphine’. Mas eu não sei nem o que isso é.” Ela não
pensava que fosse possível, mas Art franziu ainda mais a
testa.

“Se conheço bem Cos, precisamos visitar Sturgis.”


Ele disse.

“Ele está morto.” Jay respondeu.

300
“Eu sei.” Ele disse e então, inesperadamente, sorriu.
“Bem vinda ao Clube das Clones.”

301
Squeech, squeech, squeech.

O som da calça de couro nova de Felix Dawkins


ecoava nas paredes do necrotério. Ele viu Art revirar os
olhos, mas não ligava. Fee adorava amaciar o rígido e
fresco couro novo.

“Parece até que essas calças realmente telegrafam


‘necrotério’.” Colin riu, balançando a cabeça constrangido.

“Sempre se usa preto em invasões.” Fee retrucou,


mas Colin estava certo. Couro provavelmente não era a
melhor coisa a se vestir para invadir lugares. Ele só o
fizera porque Colin adorava sua bunda naquelas calças.
Eles haviam caído na rotina nos últimos sete meses e ele
queria trazer de volta parte da magia. Aquela calça o fazia
se sentir jovem. Essa coisa de invasão toda fazia. Ele
esperava que a combinação das duas coisas lembraria
Colin do dia em que se conheceram. Quase uma década
mais novo, Fee flertara com o atendente sexy do
necrotério enquanto este o mostrava um cadáver idêntico
à sua irmã, Sarah.

“Isso meio que não é uma invasão. Eu liberei a


entrada de vocês.” Colin corrigiu. Agora que ele era o
gerente do necrotério, Colin fora capaz de manipular a
agenda de equipes para permitir que Art e a sargento
Priyantha secretamente inspecionassem o corpo de
Nathaniel Sturgis. Claro, Colin ajudara bastante, mas
Fee estava lá pois se sentia preocupado com Cosima e
desconfiava do ato de ajudar a policial que a prendera.
Como Colin ousava fazer parecer que ele estava ali à toa!
302
“Eu poderia ter usado a calça com a bunda de fora,
mas não estava limpa.” Fee disse, da forma mais casual
que podia.

“Ah, ela estava na pilha gigante de roupa suja? Que


pena.” Colin fungou.

“É melhor vocês não ficarem se estranhando o tempo


inteiro.” Art reclamou. Ao lado dele, Jaysara parecia bem
cética quanto a toda a situação.

Eles tinham apenas alguns minutos para


inspecionar o cadáver pálido de Sturgis, que estava
deitado sobre uma bandeja na unidade de refrigeração.
Jay e Art se aproximaram, avaliando seu torso. Com base
na mensagem críptica de Cosima, eles assumiram que
‘platina perto de seu peito’ era algum tipo de implante ou
marca, mas não encontravam cicatriz ou tatuagens em
lugar algum.

“Talvez ele fosse daqueles que tatuam debaixo do


braço.” Felix sugeriu. “Colin, amor, pode levantar o braço
dele para a gente?” Colin obedeceu e o que viram foi
extraordinário: um amontoado de pelos longos e
prateados em meio aos cachos negros e cacheados da
axila. E não eram exatamente loiros ou grisalhos. Os fios
pareciam genuinamente metálicos, como platina.

“Deus, eu estive por fora da cena de baladas


ultimamente. É isso que curtem agora? É tão baixo.” Fee
se encolheu.

303
“Ou talvez estejamos ficando velhos demais para
tudo isso.” Colin sugeriu, sério. Isso aterrorizava Fee.
Talvez a ‘rotina’ deles não era só por causa da roupa suja
ou familiaridade ou não reconhecer o valor um do outro.
Talvez ele fosse velho demais para Colin. De repente, ele
se sentiu desesperado e idiota por ter usado aquelas
calças. Era exatamente o que alguém ‘velho demais’ faria.

Art pegou um bisturi e um recipiente de amostra


estéril de seu bolso e apertou a lâmina contra a carne em
volta do amontoado de pelos prateados.

“Woah! O que você está fazendo?” Jaysara ganiu.


“Você não pode mexer nas evidências!”

“Estou apenas sendo criativo.” Disse Art, enquanto


cortava e puxava.

“Não podemos só tirar uma foto?” Jay perguntou.

“Novata.” Colin zombou.

“Obrigado, querido.” Fee sorriu. “Tirou as palavras


da minha boca.” Ele avistou um sorriso rápido no rosto de
seu parceiro e assumiu que era um progresso.

“Precisamos de uma perspectiva profissional nisso.”


Art disse, colocando um pouco dos finos fios dentro do
recipiente. “Normalmente, eu levaria isso direto para
Cosima, para ela analisar. Mas isto não é possível.”

“Graças a uma certa sargento.” Fee sibilou com


malícia.

304
“Então, o que faremos?” Perguntou Jaysara. “Não
podemos levar amostra roubada para nenhum dos nossos
laboratórios.”

“Ah, temos o nosso próprio, querida.” Felix disse,


condescendente. “Apenas nos siga e tente não
atrapalhar.”

Enquanto deixavam o necrotério, Jay murmurou


consigo mesma, confusa. “Isso é... estranho.”

“Apenas mais um dia quando se trata de clones.” Art


disse.

“Parece até os tempos antigos.” Felix acrescentou,


lançando um olhar a Colin, que abriu outro sorriso.

Durante a ida até a casa de Delphine, ele viu o olhar


de Colin se dirigindo à sua bunda. Seu coração palpitou.
Não, ele não era velho demais. A magia ainda estava ali,
debaixo de toda a roupa suja e das respostas passivo-
agressivas.

305
Bzzt, bzzt.

Outra mensagem vibrou no celular de Kira. Eram


quatro da manhã e sua mãe ainda estava mandando
mensagens, mas Kira estava determinada a manter
distância. Ela não responderia, nem mesmo para
confirmar que estava a salvo. Kira sabia que se ela
abrisse a enxurrada Sarah Manning, ela se afogaria.
Então, ela continuou a ler os sites de notícias, lendo cada
uma que cobria o caso dos clones.

Ela não conseguia acreditar que não era mais


segredo. Ela quisera aquilo a vida inteira e, agora que era
uma realidade, ela estava um pouco... assustada. Mesmo
que ela estivesse presa e desesperada para ir no banheiro,
o armário da GeneKeep parecia seguro. Ninguém sabia
que ela estava lá. Nem mesmo a equipe dos jovens
engenheiros de dados de vinte e poucos anos que
trabalhavam vinte e quatro horas no escritório para
recuperar os genomas deletados.

Após o hacking, quando os servidores da GeneKeep


voltaram a ficar online, Kira descobriu que todos os
genomas haviam sido apagados. Anos de pesquisa
genética mundo afora desapareceram no piscar de um
cabo de fibra ótica. Tentando consertar a situação, ela
pediu para contatar o serviço de back up em
Saskatchewan. Ao invés de fornecer detalhes sobre o
serviço, Dr. Bai de repente contratou uma equipe de
recuperação de dados para trabalhar dia e noite. Não
fazia sentido. Ou Dr. Bai havia mentido sobre o servidor

306
de back up ou cometera um erro profundamente idiota de
se esquecer de manter uma cópia dos preciosos dados.
Mas isso não parecia algo que ele faria. GeneKeep era
como um filho para ele. Ele faria de tudo para preservar
a empresa. Considerar tudo isto enquanto tentava não
mijar nas calças estava deixando Kira louca. Ela não
conseguia segurar mais.

Se arriscando, ela engatinhou debaixo de mesas até


os banheiros e deu uma gloriosa mijada. Mas a glória
acabou quando ela avistou um par de tênis em pé em
frente à porta da cabine.

“Ahem.”

Pelo som atrevido do ‘ahem’, Kira sabia quem era.


“Só um minuto.” Ela cantou, constrangida.

“Termine e venha aqui fora para que possamos


conversar.”

Kira saiu da cabine e viu Emmaline apoiada na pia,


aguardando com expectativa. “Oh, ei, Em.” Ela começou.
“Deve estar se perguntando porque estou aqui. Eu estava
meio que tenho um ataque de pânico na cama em relação
ao hacking, então—”

“Então você decidiu sair do armário de


suprimentos?” Em interrompeu. Ela tinha um olhar suas-
mentiras-são-um-insulto em seu rosto. É isto. Kira
pensou. Agora, não tenho chances com Emmaline. E perdi
o trabalho. Me dei mal. Deveria ter escondido minha mala
melhor e feito xixi num copo.
307
“Há quanto tempo você sabe?” Kira perguntou,
pronta para se encolher e morrer. Assim, que tipo de
perdedor dorme em armários para trabalhar?

“Uma semana.” Em revelou. “Encontrei sua mala


debaixo da impressora que nunca usamos. Então a sua
nécessaire debaixo desta pia. Eu ia falar algo, mas torci
para que você fosse me contar.”

“As piadas de Harry Potter debaixo do armário da


escada fazem sentido agora.” Kira resmungou.

“Por que você está dormindo lá?” Perguntou Em.

Kira não podia contar a Emmaline que ela usava o


software da GeneKeep no meio da noite para sequenciar
e armazenar seu próprio genoma sob o codinome ‘Mira
Kanning’. E que sua mãe, uma das agora famosas clones,
praticamente a deserdaria se soubesse disso. “Minha mãe
não queria que eu trabalhasse aqui.” Ela afirmou. Até que
aquela não era uma viagem total à cidade das mentiras.
Sarah não gostaria que ela trabalhasse lá, se soubesse o
que ela estava aprontando.

“E por que ela não queria que você trabalhasse


aqui?” Em estava perplexa.

Hum... porque eu venho de uma longa linhagem de


pessoas desconfiadas que foram dominadas e
manipuladas por corporações e cientistas malucos. Kira
pensou. “Ela é um pouco retrógrada.” Ela disse, ao invés
daquilo.

308
“Mas você é tão, tipo, o contrário disso.” Em disse,
confusa. “E você foi educada em casa.”

Kira se sentiu insultada. “Espere aí, eu terminei o


ensino médio pela internet em casa, mas não foi por
escolha minha. Eu sofria bullying na escola porque eu
pulei um ano e era mais nova. Não tenho orgulho disso,
mas eu briguei com eles e só piorei as coisas. Digamos
apenas que terminou com a cadeira do diretor sendo
arremessada— mas isso foi minha mãe, não eu. Ela odeia
injustiça.”

“Sua mãe arremessou a cadeira do seu diretor?” Em


disse, intrigada.

“Sim e me fez ser expulsa. Então tento manter o


envolvimento dela em minha vida no mínimo. Está indo
bem. Quero dizer, sim, eu estou dormindo em um
armário, mas posso trabalhar sempre que quero.” Kira
continuou e explicou que ela trabalhava a noite para
montar uma database mais intuitiva para a GeneKeep e
que, uma noite, quando todos já tinham ido para a casa,
ela havia reparado nos pacotes específicos de genomas
canadenses sendo baixados.

“Esses são os genomas Nasgwine’g.” Murmurou Em,


juntando as peças.

“Sim.” Kira disse. “Eu pensei que o download fosse


só algum jeito triste e antigo de fazer back up das coisas,
mas quando investiguei melhor, a conexão era fechada e

309
não haviam arquivos de log. Alguém cobria os rastros. E
alguns dias depois— boom, todos os dados são apagados.”

“Então alguém roubou os genomas Nasgwine’g e


apagou todo nosso trabalho. Você contou isso para o Dr.
Bai?”

“Claro. Mas ele, tipo, me dispensou totalmente.


Falou que o download era um serviço contratado de back
up.”

“Então por que temos essa gente toda aqui


recuperando dados se temos um back up?”

“Exatamente.”

“Estranho.” Em pensou em voz alta. “Nós estávamos


sequenciando os genomas Nasgwine’g quando os
servidores caíram.” Bingo. Kira conseguia sentir o
mistério a chamando. Talvez ela pudesse se conciliar com
Em. Para Em não achar que ela era louca.

Uma voz abafada comandando algo do lado de fora


do banheiro chamou a atenção delas. “Vão!” Ela mandava.
“Eu estou pagando o salário de vocês, posso mandá-los
embora!” Kira e Emmaline se encararam — Dr. Bai
estava no escritório às quatro da manhã e sua voz não
soava serena e calma como normalmente. Bisbilhotando
para fora, elas viram os engenheiros indo embora. Assim
que o último havia saído pela porta, Dr. Bai fez uma
ligação.

310
“Estou sozinho.” Ele disse para o telefone. “Agora
desça aqui e me explique o que diabos está acontecendo.”
Ele ouviu a pessoa na linha. “Por que não? Eu concordei
em autorizar seu acesso, não pensei que você apagaria
todos os nossos servidores...” Ele esperou de novo,
insatisfeito. Qualquer que tenha sido a resposta, ele
estava tendo dificuldades em engolir. “Em nossa
database? Por que ele faria isso?” Bai bufou no celular.
“Não dou a mínima para confidencialidade — vou resolver
isso.” Ele desligou e marchou para fora do prédio.

“Bai sabe quem nos hackeou.” Kira disse,


desacreditada.

“É e com quem será que ele estava falando?” Pensou


Em.

“Quem quer que fosse, parecia que ele deu acesso a


eles para a database de genomas — para a database
confidencial.” Kira acrescentou. “Por que ele faria isso?”

“Só tem um jeito de descobrir. Meu carro está lá


fora.” Em disse, pegando sua mochila. Antes que Kira se
desse conta, estava em um velho sedan seguindo de perto
um conversível preto e lustroso que ia para a autoestrada.

“O Dr. Bai está saindo da cidade.” Em disse.


“Seguimos ele? Sim ou não?” Elas se aproximavam da
entrada para a via e tinham de tomar uma decisão.

“Sim!” Kira disse, apressada. Em desviou para a auto


estrada, quase batendo na divisória. Enquanto seguiam
atrás de Bai, Kira estava preocupada. Perseguir um chefe
311
que se metera em coisas erradas não era o motivo pelo
qual ela viera à GeneKeep. E era exatamente o tipo de
coisa que faria sua mãe enfartar.

312
Para um cara ‘zen’ que gostava de yoga, Bai era bem
obtuso quando se tratava da consciência de seus entornos.
Ele não notou quando as duas garotas reabasteceram o
carro delas a duas bombas de distância. Mais tarde, elas
perderam o rastro de Bai na estrada por um momento e
acabaram indo parar bem ao lado dele. Kira cuspiu
chocolate quente na janela de susto, enquanto Emmaline
virava seu rosto e o carro, quase se chocando com a
barreira de segurança. Mas Bai nem percebeu. Seis horas
depois, ele as levou para fora da estrada até uma longa e
monótona pista em Québec e mesmo assim não percebeu
o único carro atrás dele. Kira começava a entender como
os dados deles haviam sido roubados tão facilmente.

Após quinze horas de viagem, Kira se sentia enjoada.


A quieta pista de duas mãos cortava através de florestas
e o sinal de celular não pegava direito. O GPS alegava que
elas se encontravam flutuando no meio do Golfo de São
Lourenço. Parecia o início de um filme de terror. Ela
estava prestes a enlouquecer quando a pista as levou
através de uma ponte nova em folha que se arqueava
acima de um rio turbulento. O pavimento abruptamente
mudou para cascalho e continuou até um bosque com
árvores estilo catedral. Um amontoado de construções
apareceu distante, onde uma placa dizia:

Bem-vindo a Nasgwine’g. População: 144.

“Não foi aqui que Bai convenceu todos a doarem o


seu genoma para a gente?” Kira perguntou enquanto elas
se aproximavam.

313
“Sim.” Em confirmou. “Os moradores não estavam
muito a fim no início, mas o Dr. Bai insistiu. Ele me pediu
para fazer alguns flyers alegres para divulgação, com
pessoas sorrindo num dia ensolarado e coisas assim.”

“Por que ele, tipo, não desistiu?” Questionou Kira.

“Só se podia chegar aqui a pé ou a barco, até quatro


anos atrás, quando o governo finalmente construiu
aquela ponte. Dr. Bai estava praticamente babando com
o quão isolado esse lugar é e com o quão baixo era o fluxo
gênico aqui.”

“Bizarro.” Disse Kira. As garotas estavam perplexas.


Aparentemente, o doador do genoma que estava sendo
sequenciado na hora do hacking e o hacker moravam os
dois ali naquela aldeia. Emmaline tentou se lembrar do
nome da amostra que passava pelo sequenciador quando
perderam todos os dados, mas não conseguiu. Elas
haviam viajado por mais de quinze horas e concordavam
que ir embora sem respostas seria uma vergonha. Então
estacionaram atrás de um arbusto e foram encontrar Bai.

O cheiro de lenha queimando pairava no ar enquanto


elas adentravam um agrupamento de cerca de cinquenta
casas de madeira. Tirando as luzes elétricas alimentando-
se de painéis solares, era como se elas tivessem voltado
no tempo. Nuvens de fumaça subiam das chaminés de
cabanas separadas por ruas largas o suficiente somente
para que uma carroça passasse. Elas passaram por uma
pequena e arredondada igreja (Kira achou que se parecia
mais um buraco de Hobbit), uma loja de conveniências
314
antiga e um correio/museu. Formada em 1700 por
comerciantes franceses que fugiam da expulsão violenta
dos militares ingleses, a colônia recebeu o nome de
Nasgwine’g, ou ‘dividida ao meio’, de pessoas nativas que
habitavam a área, pois se encontrava próxima a uma
península que se parecia com uma lança cortando o rio em
dois. O pequeno batalhão de exilados irritados que fugira
para a área havia escapado da deportação e morte, mas
não dos invernos severos e da influenza que lhes tirara a
tenacidade e os números. Os poucos que restaram e se
agarraram à vida eventualmente construíram cabanas de
madeira e muitos dos habitantes atuais eram
descendentes diretos destas pessoas.

“Cidadezinha pioneira sagrada.” Kira riu em


silêncio.

“Paraíso hipster sagrado.” Acrescentou Em,


apontando um moinho cuja placa dizia: Micro cervejaria
Poisson Frit. Localizada na ponta da península, a
construção era flanqueada por duas hidrovias que
giravam moinhos d’água em ambos os lados. Alguém
recolhia uma rede repleta de peixes cinzas da água —
provavelmente os poissons que seriam frit-os para a
cerveja. O conversível de Bai estava estacionado do lado
de fora. Se destacava como um polegar de metal caro em
meio às construções de madeira. Torcendo para que Bai
fosse tão desavisado de seus entornos quanto ele fora
durante as quinze horas de viagem, Em e Kira vestiram
óculos escuros, arregaçaram suas golas para cima e
entraram furtivamente na cervejaria. Para a sorte delas,
315
o lugar estava lotado com o que parecia ser toda a vila e
ninguém notou sua entrada. Parecia mais um ringue de
luta do que um bar e, como Kira nunca estivera em um
bar antes, ela não tinha certeza se aquilo era normal ou
não. Os nativos se juntavam em volta de um homem gordo
e de rosto vermelho cuja caneca de cerveja derramava
enquanto ele gritava com o Dr. Bai.

“Eu não vou com você a lugar nenhum!” O homem


berrou.

“Eu preferiria que conversássemos a sós.” Bai pediu.

“Essa coisa da sua biblioteca de genes? Eu já dei


minha doação. Cuspi naquele palito pra você. Quer passar
algodão na minha bunda também?” Este último
comentários levantou algumas risadas pelo bar.

“Nosso amado prefeito, gente. Quando a democracia


funciona, é brilhante, não é?” Comentou uma mulher
enojada. Claramente era happy hour.

“Aggie, eu sei que votou em mim, então nem faça


joguinhos.” O homem de rosto vermelho zombou.

“Até parece!” Aggie resmungou.

“Mr. Sauveterre, se puder, por favor...” Bai


continuou.

“Eu não posso.” Sauveterre disse de volta


rispidamente. “Vá. Fale. O que quer que tenha a dizer,
meu povo deve ouvir.”

316
“Certo.” Bai começou. “Quero saber porque vocês
deletou nossos dados.”

“Como assim?” Perguntou Sauveterre.

“Fontes seguras me afirmam que vocês hackeou


nossos servidores e apagou todos nossos genomas.” Dr.
Bai explicou.

“Não toquei na merda dos seus genes.” Disse


Sauveterre.

“Assim como você não tocou os pneus de todos


aqueles caminhões enviados pelo governo para a
construção da ponte?” Aggie o desafiou. “Talvez eles
tenham evaporado da noite pro dia. E talvez a ponte
tenha colapsado duas vezes por causa do vento? Quelle
chance!”

“Todos concordamos que uns encrenqueiros fizeram


aquilo.” Afirmou Sauveterre.

“E o instituto que acidentalmente liberou os


salmões?”

“Aquilo foram protestos legais!”

“Legais, coisa nenhuma. Você despejou um caminhão


de peixes mortos no lobby de entrada deles.”

“OK, é. Mas o IPGT não colocou acidentalmente


salmões geneticamente modificados em nosso rio...”
Sauveterre cuspiu como um cão com raiva. “Foi de
propósito. Era apenas questão de tempo até que viessem
317
atrás de nós por pescá-los. Eles criaram aquelas coisas e
elas estavam roubando a comida das nossas trutas.
Teríamos um rio cheio de peixes que não poderíamos
tocar. Cagaram em nossos rios pristinos. Nenhum
poluente feito pelo homem por centenas de anos. Nós a
mantemos assim! Minha família e a sua família, Aggie.”

“Agora você fala de preservação. Mas não queria que


nenhum de nós preservasse nossos genes. Não as famílias
originais— ninguém.” Aggie retrucou, sem nem olhar
para ele. “Tivemos que brigar com você nessa coisa da
GeneKeep. As pessoas têm direito de fazer o que quiserem
com seus corpos.”

“Meu povo pode fazer o que caralhos quiser...” As


palavras cortaram através dos dentes cerrados de
Sauveterre, enquanto ele se aproximava de Aggie, quem
o ignorou e apenas bebeu de sua bebida. “Mas meu povo
precisa entender que ninguém dá a mínima para nosso
estilo de vida. Nem o governo, nem esses cientistas.
Ninguém.”

“Eles não são seu povo, idiota.” Aggie resmungou,


baixinho.

O prefeito arrebentou sua caneca no chão e foi


em direção a ela. Ressurgindo em meio às pessoas, Bai
agarrou o colarinho de Sauveterre antes que ele
alcançasse a mulher. O prefeito girou e acertou um soco
em cheio no rosto de Bai. “É isso, seu bilho da mãe.” Bai
disse, sangue escorrendo de seu nariz até a boca. “Se eu

318
conseguir culpá-lo por be hackear, vou bandar te prender
por agressão.” Ele pegou o celular e começou a discar.

“Você acha. A polícia não vem tão longe assim.”


Sauveterre riu, virando-se para o bar. “OK, estou com
sede de novo!” Quando o barista recusou dar mais bebida
a ele, Sauveterre tentou roubar a caneca de alguém.

“Gilles, allons-y.” Disse um colega sóbrio enquanto


carregava o prefeito bêbado para fora.

Hálito quente na orelha de Kira a fez saltar de susto.


“Gilles Sauveterre.” Emmaline sussurrou para ela. “Era
este o nome na amostra que estávamos sequenciando
durante o ataque. Era o DNA dele!”

“Mas ele odeia a GeneKeep. E salmões


geneticamente modificados. E o governo. Por que ele nos
daria seu genoma?” Kira disse, confusa. Ela se perguntou
como Dr. Bai convencera alguém como Sauveterre a fazer
uma doação. O que Bai usara para convencê-lo?

“Não faz sentido.” Emma concordou.

Considerando o que aconteceu com os salmões, Kira


entendia por que Gilles Sauveterre pensaria que entregar
genomas à GeneKeep era algum tipo de esquema. Era
estranho, mas ela se identificava com o bêbado babaca.
‘Este organismo e todo seu material genético derivado é
propriedade intelectual restrita.’ Essa era a frase que fora
escrita diretamente no genoma LEDA, codificada num
marcador em ASCII. Os ‘organismos’ clones LEDA foram
propriedade da DYAD e, como ‘material genético
319
derivado’, Kira também. Aquela única frase gerara tanto
caos para sua mãe e suas tias. E aquilo fora escrito em
seus genomas lá em 1984. Foi há mais de três décadas.
Kira refletiu. Agora provavelmente podem fazer caber
todo um contrato hermético dentro de algum DNA. Então
uma hipótese bizarra e distante sobre o hacking da
GeneKeep passou pela cabeça dela. Ela queria contar a
Emmaline sobre aquilo, mas não queria parecer louca.
Ela precisava pesquisar um pouco antes de chegar a
alguma conclusão e isso envolveria fazer algo que ela
desesperadamente não queria fazer.

“Preciso fazer uma ligação.” Ela disse a Em.

320
Delphine se apressara vestindo apenas roupas de
baixo para atender a porta, torcendo para que Cosima
tivesse voltado no meio da noite. Quando ela atendeu, Art
e a sargento Priyantha a presentearam com um pedaço de
carne coberto com longos fios prateados e fios negros e
menores. Dizer que ela ficara desapontada seria pouco.

“Então, o que você vê?” Perguntou Jaysara.

“Cabelo.” Delphine disse, sem tirar o olho do


microscópio. Estava relutante em ajudar a mulher que
prendera e depois perdera sua esposa, mas,
aparentemente, Cosima queria que ela examinasse esse
estranho cabelo axilar. Delphine esperava que entender a
estranha mensagem de Cos a ajudaria a encontrar sua
esposa.

“Obviamente é cabelo. Mas o que te diz?” Jay disse,


impaciente.

“Me diz que essa pessoa pode ter tido poliose, a perda
de melanina nos cabelos. Ou algum tipo de modificação.”
Delphine respondeu friamente.

“Modificação genética? Como se Sturgis tivesse feito


isso?” Perguntou Art.

“Por que ele faria isso?” Jay questionou, confusa.

“Você não deve ter ido às baladas neovolucionistas


quando era jovem.” Art disse. “É como modificação
corporal. Pode ser um fetiche. Ou algo fashion.”

“Debaixo do braço?” Duvidou Jay.


321
“Havia outros pedaços assim?” Delphine perguntou.

“Não.” Art respondeu. “E eu procurei em todo lugar.”


As fendas e dobras de Sturgis estavam gravadas a ferro
na mente de Art, infelizmente.

Delphine queria testar a amostra, mas não queria


fazer isso com o RCMP fungando em seu pescoço. Ela
pensava como entregar resultados falsos a Jaysara
quando seu telefone tocou — era Kira.

“Onde você está?” Delphine perguntou


imediatamente. Um péssimo jeito de começar, pois tudo o
que recebeu em troca foi silêncio. “Kira? Kira, está aí?”

“Sim.” Chiou a adolescente, finalmente.

Pulando pela escada, Sarah surgiu na sala de estar,


assustando Jaysara. “Me deixe falar com ela!” Ela pediu.

“Por favor, diga à mãe que estou bem, mas não quero
conversar.” Kira implorou. “Só quero saber: se você pode
armazenar mensagens em DNA, como o da tia Cosima,
você pode armazenar outras coisas?”

“Uh, é possível.” Delphine disse, surpreendida pelo


assunto. “Tem certeza de que está tudo bem? Posso buscá-
la. Não farei perguntas.”

“Estou bem. Sério. Então, quanto você pode


armazenar? Tipo, você pode armazenar um vírus de
computador ou malware?”

322
“Claro. Esse tipo de coisa é só um programa. Pode
armazenar um livro, até um filme. Converta para
linguagem binária, compacte os dados e você pode
armazenar até cerca de 1,8 bits por nucleotídeo. A
complexidade do que você codifica depende do
comprimento da fita—”

Sarah arrancou o telefone das mãos de Delphine.


“Kira, onde você está?”

“Estou bem, Mãe. OK?” Ela disparou,


instantaneamente irritada.

“Kira, o vazamento para a imprensa— alguém está


nos atacando. Preciso que você volte para a ca—”

Beep, beep.

Kira desligou. Sarah ligou de volta, apenas para dar


de cara com a caixa postal. Ela discou de novo e novo,
ficando mais desgastada a cada ligação rejeitada.
Enquanto tentava acalmar a crise rompante de Sarah,
Delphine pensou sobre a pergunta de Kira. Em Istambul,
um grupo de geneticistas do mercado negro lucraram
milhões com implantes capilares codificados com
informações bancárias, papelada de empresas e qualquer
tipo de dados os ultra ricos queriam esconder. Sturgis era
bem o tipo que faria algo tão elitista. Ele poderia ter
implantado esses cabelos ele mesmo, para armazenar com
segurança suas pesquisas ou outro tipo de informação
importante conectada ao IPGT, talvez até à bomba.

323
Com isso em mente, Delphine confrontou Jaysara.
“Esse cabelo talvez contenha evidência que pode exonerar
Cosima. Talvez te ajude a capturar o terrorista real.”

“Ótimo. Você pode, uh, extrair a evidência?” Jay


perguntou.

“Posso, mas não o farei de graça. Minha prioridade é


Cosima. Quero informações sobre a prisão dela. Preciso
saber quem a levou.” Delphine insistiu, ignorando o olhar
incrédulo de Jaysara.

“Olhe, eu já estou quebrando várias regras estando


aqui.” Jay começou. “Mas não posso revelar detalhes
sensíveis de casos a civis.”

“Os genes de Cosima a colocam em risco de


exploração. Possivelmente de morte. Regras e leis não
significam nada para as pessoas que se aproveitariam da
minha esposa.”

Jay se lembrou de que estava lidando com uma


família. Ela não iria longe com este pessoal a menos que
desse algo sólido a eles. “Greg Kurzmann, do Ministério
de Defesa, a levou.”

“Por que?” Delphine perguntou, pronta para atacar


Jaysara para obter respostas.

“É o que estou tentando descobrir.” Jaysara admitiu.


“Ele afirmou que você talvez tenha vazado informações
sensíveis a Cosima. Ele queria determinar se isso era

324
verdade. Não faz sentido. Ele não foi direto até a fonte do
possível vazamento— ele não foi até você.”

Se sentindo tonta, Delphine afundou em uma das


cadeiras. Um membro da BioThreat — um que ela
particularmente odiava — levara sua esposa e usara ela
como motivo. Seria isso um esquema do governo para pôr
as mãos num clone? Delphine começava a acreditar que
ela pudera ter sido responsável pelo desaparecimento da
esposa. Não, aquilo não era totalmente verdade.
Nathaniel Sturgis tinha parte nisso também, de alguma
forma. Ele parecia saber sobre as LEDA, mas eles nunca
tiveram a chance de o questionar sobre isso. Talvez
Cosima o pudesse ter feito logo antes de sua morte. Talvez
fosse por isso que aquele pequeno e cabeludo pedaço de
Sturgis atualmente se encontrava em cima de uma
lâmina de microscópio em sua sala de estar. Delphine
agarrou a amostra. Ela precisava começar a sequenciá-la.

325
“Então Gilles Sauveterre tinha um vírus de
computador codificado em seu genoma...” Emmaline falou
devagar, ao recapitular o que Kira acabara de dizer a ela.
“E quando estávamos sequenciando seu genoma,
ativamos o vírus, que deletou todos os dados da
GeneKeep. Isso não soa sci-fi demais?”

Kira não achava demais. Aos nove anos, ela fora


arrastada para lá e para cá por uma corporação imensa
que desenvolvia clones humanos e, mais tarde, um
milionário louco usara seu gene Lin28A para criar uma
fonte de juventude. Em seu mundo, era totalmente
possível que Sauveterre houvesse manipulado sua
amostra genética com um vírus de computador. Se
bobear, a teoria de Kira podia ser até um pouco atrasada.
|Mas ela não podia explicar nada daquilo, não sem
revelar que ela era fruto de clones.

“Acredite em mim. Não é sci-fi.” Kira disse. “Vou


provar.” Ela começou a andar pelo campo iluminado pela
lua, forçando Emmaline a segui-la. O vento aumentara,
trazendo o frio para o que fora um morno dia de outono.

“O que vamos fazer?” Em sussurrou.

“Vamos conseguir provas de que Sauveterre é um


hacker-terrorista.” Kira explicou.

“Como?” Perguntou Em.

“Shh.” Kira ouvia algo ao caminhar. Ela podia ouvir


uma voz abafada. Estava ficando mais alta. Assim que
viraram a esquina, Kira puxou Em de volta para as
326
sombras — elas estavam a apenas alguns pés de Gilles
Sauveterre, que cambaleava ao entrar em uma das
cabanas. Quando ele entrou, Kira se esgueirou para uma
das janelas e espiou: o prefeito já roncava em seu sofá.
Circulando a cabana, ela procurou por um jeito de entrar.
Andava pelo jardim quando — crunch — algo se esmagou
sob seu pé. Ela o levantou para encontrar uma libélula
morta e seca, notando que havia outra dúzia delas à sua
volta. Estranho. Kira pensou. Ele protege os rios, mas
espalha pesticida nas flores do jardim? Dando de ombros,
ela tentou abrir uma janela que parecia promissora, mas
estava trancada.

“Não podemos invadir!” Emmaline insistiu, mas


Kira já ia até a porta da frente, que se abriu ao seu toque.

Ela sorriu ironicamente para Em. “Pronto, agora não


temos que invadir nada. Feliz?”

“Não vou entrar. Não tem como ele ter um vírus em


seus genes.” Em disse, se recusando a cooperar.

Kira odiava ter de usar aquela carta, mas era o


argumento mais forte em que ela conseguia pensar agora.
“Duzentas e setenta e quatro mulheres idênticas estão
nos noticiários. E mesmo assim afirmam que ninguém
nunca conseguiu clonar humanos.”

“Duzentas e setenta e quatro? Da última vez que


ouvi, eram cerca de quarenta.” Em disse, intrigada.

“Não é esse o ponto.” Kira insistiu. “Clonagem


humana existe, então por que não poderia existir um jeito
327
de esconder um malware em DNA?” Emmaline abriu a
boca, mas percebeu que não podia discutir isto. O único
jeito de descobrir se havia um vírus de computador no
DNA de Sauveterre seria sequenciá-lo e ver o que
acontecia.

Um minuto depois, elas estavam de pé ao lado de um


Gilles que roncava, assistindo à baba escorrer pela sua
bochecha e tentando decidir como colher uma amostra.
Incapaz de encontrar tesouras, Kira pegou uma faca da
cozinha e se aproximou do prefeito.

“O que está fazendo?” Em sussurrou, aterrorizada.

“Colhendo uma amostra.” Disse Kira.

“Você não pode cortá-lo!”

“Não vou! Vou só cortar o cabelo.”

“Mas ele está inconsciente. É uma amostra sem


permissão.” Em apontou.

Kira abaixou a faca. Emmaline estava certa. Então


foram ao banheiro para uma amostra. Como Gilles era
quase careca, sua escova de pentear era inútil, mas o ralo
do chuveiro não. Usando um garfo, elas pescaram um bolo
gordurento de cabelos embaraçados que cheirava a leite
estragado. Só após aquela horrível experiência notaram
alguns pelos acumulados em seu barbeador. Pegando os
fios de pelo e algumas garrafas cobertas de saliva,
atravessaram pela porta. Assim que passaram por ele,
Gilles acertou um tapa em seu próprio rosto enquanto

328
dormia. Então o repetiu cinco vezes, paralisando as
garotas que tentavam não rir. Mas suas risadas
silenciosas pararam ao perceber que ele estava coberto de
pequenos respingos de sangue. O inspecionando de perto,
Kira viu que ele estava sendo picado por mosquitos.
Estranho, não é época de mosquitos. Ela pensou, enquanto
assistia aos insetos. Eles voavam em um padrão bizarro
de zig-zag, rondando a cabeça do prefeito sem parar.

“Em, você tem que ver isto.” Disse Kira, hipnotizada


pelos sanguessugas.

“Não, vamos embora.” Em pediu, agitada.

Saindo da cabana, Kira foi surpreendida pelo que


viu: como mariposas brancas brilhando ao luar, flocos de
neve caíam de um céu escuro.

“Kira...” Sussurrou Emmaline, o medo aumentando


em sua voz ao apontar para uma forma estranha perto de
uma das janelas da casa de Gilles. Kira apertou os olhos,
a sombra tomando forma e crescendo até ficar de pé. Era
uma pessoa, andando em um silêncio expert diretamente
em direção a elas.

“Corra.” Kira se engasgou ao dizer.

329
Episódio 07

Melhor aprender a
lidar

‘Kira começa a compreender a


magnitude do que está acontecendo.’
Anteriormente, em Orphan Black: TNC:

O desenrolar da exposição pública dos clones se


inicia. O operante da CIA, Davis, em busca da bioarma,
se dirige à Toronto. Jay confronta Art e os dois concordam
em se ajudar. Felix ajuda a colher evidências no corpo de
Sturgis. Kira segue o Dr. Bai até uma comunidade remota
escolhida para o teste da bioarma.
Dois dias antes

Rachel Duncan assistia ao bater do relógio do


computador que usava para monitorar softwares. Três,
dois, um, zero. Um novo cronômetro que marcava quinze
minutos surgiu no lugar do antigo enquanto a tela era
bloqueada. Finalmente. Hora do almoço.

Ou pelo menos era disso que o Centro de Divulgação


da Wellspring Analytics chamava a pausa de quinze
minutos. Quinze abençoados minutos para si mesma após
horas repreendendo xingamentos grosseiros em
promoções de celular e evitando que farelos de bolinhas
de queijo caíssem no teclado da empresa. Completamente
distante de gerenciar uma corporação farmacêutica
multinacional, mas eram dela. Ela destrancou sua gaveta
pessoal e a abriu para pegar uma barrinha de cereais.
Não devia realmente contar como almoço, sendo que já
era meia noite, mas era o mais próximo disso que ela
tinha.

Rachel retirou o headset que usava para monitorar


as chamadas diretas de ‘divulgação’ e afastou-se da mesa
com um suspiro. Ela mordeu a barrinha, que tinha gosto
de pasta extrusada, deixando marcas de dente. Mas de
novo, nada tinha um gosto bom ultimamente. Ela andara
tanto para trás em sua vida que já não sabia direito onde
queria chegar.

332
Mais catorze minutos. A tela mostrava. Não se
esqueça de se alongar!

Wellspring era a última parada nas constantes


mudanças de trabalho de Rachel pelo inferno de
escritórios e gabinetes canadenses. Nunca deixava de a
surpreender o quão exausta ela ficava com este trabalho,
assim como a fixação com os mínimos detalhes das
métricas destes trabalhos, os procedimentos
intermináveis e formulários e protocolos a serem seguidos
para que a mínima margem de lucro não evaporasse. Era
tudo bobagem. CEOs não davam a mínima para quantas
vezes um atendente respondia ‘hum’ ao longo de uma
hora de ligações ou se ele atingia a meta de 0,03% a mais
de vendas em certa área escolhida do mês. Ela certamente
não havia dado, quando era uma.

Quando ela era rainha.

Rachel engoliu o último pedaço da barra de cereal,


que mais parecia argila, e colocou uma das mãos em sua
testa. Aqueles dias haviam acabado e por um bom motivo.
Este era o caminho tranquilo, aquele que a mantinha
longe daquelas que se chamavam embaraçosamente de
‘sestras’. Isto era sobrevivência. E, como um tubarão,
Rachel sempre soubera sobreviver. Tudo que precisava
fazer era continuar a nadar.

Mesmo se isso parecesse tão inútil como costurar


água. Como se seus pulmões já queimassem ao afundar
mais e mais. Como se a tranquilidade fosse um peso em
torno de seu pescoço, a impelindo para o fundo do poço.
333
Ela abriu o navegador — apenas doze minutos
restantes — e acessou um dos únicos sites de notícias que
não eram bloqueados durante os intervalos. Dramas da
corte real, dramas no congresso americano, cara
bilionário explodindo outro foguete—

Rachel parou, sua mão quase esmagando o mouse.

Ela olhou para si mesma em uma das manchetes.


Várias de si, na verdade.

Rachel puxou a bolsa de sua gaveta pessoal —


deixando para trás o resto das barras de cereal — e se
virou para sair do escritório.

“Ei! Duncan!” Stuart foi em direção a ela, o headset


balançando em sua careca. “Onde você está indo? Você
ainda tem quatro horas no turno da noite.”

“Eu me demito.” Rachel disse.

“Não, não. O protocolo exige um aviso de duas


semanas—”

Rachel já entrava no elevador, celular em mãos. O


mecanismo de busca exibiu o número que ela procurava e
ela apertou o botão para ligar.

“Linha direta de notícias.” A voz do outro lado da


linha disse.

334
Agora

O motor do carro roncava alto enquanto Em e Kira


aceleravam na via de mão dupla vazia no meio da noite.
“Aceleravam” sendo um pouco relativo ao se tratar do
carro velho de Em. Kira não podia confiar no retrovisor
para identificar carro algum que pudesse estar as
perseguindo com os faróis apagados, então ela lançava
olhares para trás, o que as desviou em direção à lateral
da estrada, então ela virou o carro rapidamente enquanto
Em gritava.

“O que está fazendo? É uma estrada reta!”

Kira pisava no acelerador o mais fundo que podia,


fazendo o motor sem carga roncar de forma ainda mais
patética. “Eu não tenho carteira!”

As duas haviam visto aquilo — o enxame de


pernilongos dentro da cabana de Sauveterre, no meio de
novembro. A figura sombria na cabana. O homem que
fora em direção a elas enquanto alcançava algo em sua
cintura. Kira já encontrara homens armados demais em
sua curta, mas sensacional vida, e parecia bem óbvio que
elas estavam prestes a tomar tiros por ter testemunhado
algo, mesmo que não pudessem entender exatamente o
quê. Ela só estava dirigindo pois, em sua fuga apressada,
Kira chegara primeiro ao carro.

“Apague os faróis e encoste.” Em mandou. “Não tem


ninguém nos seguindo.”
335
Kira virou o carro até um acesso empoeirado na via,
as árvores densas à volta delas instantaneamente
engolindo quaisquer resquícios de iluminação do céu
noturno. Ela apertou o freio, incapaz de dizer o quanto se
afastaram da estrada sem a luz dos faróis. Ela desligou o
carro e houve um fortuno momento de silêncio enquanto
ela lutava para recuperar o fôlego.

A luz interna no teto do carro se acendeu.

“Luz idiota.” Ela resmungou, apertando o botão para


desligá-la.

Então seu corpo derreteu no assento do motorista,


toda a adrenalina indo embora de uma vez.

“Que. Porra. Foi. Essa.” Em disse, vigiando a janela


traseira, mas a estrada estava completamente
obscurecida.

Kira afastou os cachos de seu rosto e puxou ar.


“Quem era aquele? Quem era aquele? Ele nos viu?”

“Acho que foi por isso que puxou uma arma.” Em fez
uma careta. “Mesmo que não tenha nos seguido, ele
provavelmente pegou nossa placa.”

“Isso não importa. O que ele vai fazer, ir até a polícia


e reclamar que nós o flagramos cometendo um crime?”

“Ele pode ser da polícia.” Em disse, despertando


arrepios nas duas. Kira sabia bem o quão frequentemente
oficiais adoravam ser cúmplices, senão a fonte definitiva,
da miríade de conspirações às quais ela sobrevivera.
336
“Vamos só... pensar por um minuto.” Kira respirou
fundo. “O que sabemos até agora?”

“Sabemos que o Dr. Bai é um imbecil mentiroso.” Em


disse.

“Certo.” Kira contou um dedo. “Também sabemos


que o DNA que Sauveterre deu à GeneKeep
provavelmente é o que fez os servidores caírem.”

“Então possivelmente é outro imbecil mentiroso.”

“Baseado no que vimos na cervejaria,


definitivamente é um imbecil.” Kira hesitou por um
momento. “E achamos que... o Dr. Bai deu a outra pessoa
acesso aos dados, alguém perigoso, antes que tudo fosse
apagado.”

“Mas o que isso tem a ver com Sauveterre?” Em


perguntou. “Por que ele daria acesso a outra pessoa
quando todo o objetivo da GeneKeep é proteger e
armazenar dados?”

“Droga. Não tenho ideia.” A mandíbula de Kira se


enrijeceu. “Mas não deve ser nada bom. Pessoas
determinadas a conseguir acesso a esse tipo de
informação, pessoas querendo escondê-lo e alguém que
assustou o Dr. Bai o suficiente para que ele viesse
confrontar Sauveterre assim...”

Sentaram em silêncio por um momento, sem som


algum exceto pelo vento que se agitava do lado de fora do
carro.
337
“Você soa como se tivesse algum tipo de experiência
pessoal com coisas assim.” Em disse, baixo.

“Hum...” Kira se ajustou em seu banco. “Olha, Em...


Tem coisas que você tem de saber. Sobre minha família.”

“Wow. Nem parece sinistro nem nada.” Em tentou


sorrir ironicamente, mas o sorriso sumiu ao olhar para o
rosto de Kira. “Desculpe. Estava tentando aliviar o
clima.”

Kira torceu seus dedos uns nos outros, entrelaçando-


os. Como uma espiral. “Sabe as clones nos noticiários? São
meio que...” Ela engoliu em seco. “Minha mãe.”

O queixo de Em foi ao chão, o olhar fixado em Kira.


“Oi?”

“Digo, uma delas é minha mãe. Mas suas clones,


suas ‘irmãs’, são todas minhas tias e...” Kira tentou
respirar fundo. O pequeno carro parecia menor ainda de
repente, contraindo-se em volta dela. “E minha vida
inteira tivemos gente nos perseguindo, tentando mexer
com nossos genes, ou usá-los, e eu queria trabalhar na
GeneKeep porque eu realmente me importo com a
proteção de genomas, claro, mas também por querer
entender meus próprios genes e eu... Eu só acho que
precisamos fazer algo. Certo? Ou alguém pode se
machucar.” Ela olhou para Em, seus olhos brilhando na
escuridão. “Eu não quero que mais ninguém se
machuque.”

338
“Uau. OK. É coisa demais para processar.” Em olhou
para ela com algo diferente em sua expressão —
admiração? “Mas isso explica totalmente porque você liga
tanto para a segurança de genes. O que é... bacana.” Ela
passou uma mão pelos cabelos. “Tenho tantas perguntas.”

Kira abriu um fraco sorriso.

“Mas ei, não fique se torturando.” Em disse,


estendendo o braço para apertar a mão de Kira. “Pessoas
perseguindo vocês, querendo mexer em seu genoma? Não
é sua culpa. Assim como não é culpa da sua mãe... uh, da
sua tia?... que nasceram clones. Fazemos o possível com o
que temos, né?”

Kira segurou uma risada selvagem. Se pelo menos


Em tivesse alguma ideia. Mas ela sorriu internamente
com o calor da mão de Em na sua.

“Bom, se tem uma coisa que aprendi, é que nos


saímos melhor enfrentando as coisas juntas.” Kira se
ajeitou no banco. “OK. Devíamos pelo menos tentar ligar
para o serviço de emergência primeiro para ajudar
Sauveterre, mas...”

“Por que?” Em perguntou, franzindo as


sobrancelhas. “Acredite em mim, em várias situações, de
onde eu venho, pelo menos... Eles só pioram as coisas.”

Kira estremeceu. Em apenas mencionara suas


experiências ao crescer em uma reserva indígena, mas
fora o suficiente para deixar claro sua desconfiança na

339
aplicação da lei. “Me desculpe. Sou uma idiota. Claro. Eu
não queria...”

“Relaxe.” Em balançou a cabeça ao se arrumar no


banco. “Eles podem ser um bando de francófonos
insulares, mas você está certa — para eles, pelo menos, a
polícia deve ser a opção mais segura.” A mão de Em soltou
a de Kira. “Só não quero estar lá quando vierem.”

Kira acenou, sua garganta ainda apertada, e


começou a digitar no celular. “Acredite em mim, eu
também não quero. Vamos ver se eu consigo fazer algo
com esse sinal.”

“Só fique no anônimo, OK?”

Kira levantou a mão para fazer um joinha para ela,


mas parou no meio do caminho, percebendo o quão besta
seria aquilo. Só que agora ela estava com a mão meio
levantada, tentando fazer algum gesto idiota. Felizmente,
ela foi poupada de mais constrangimento quando alguém
atendeu a chamada.

“Serviço de emergência, qual a natureza de sua


emergência?”

“Sim, eu, uh, queria denunciar atividade suspeita.”


Kira disse, a voz afetada em um tom desnecessariamente
profundo. “Na vila de Nasgwine’g, alguém está mexendo
com as linhas de gás.”

A atendente começou a rir.

“Bom, esse é um bom sinal.” Em murmurou.


340
“Desculpe, querida, você deve ser uma visitante.
Temo que Nasgwine’g esteja fora do alcance de nossos
serviços. A pedido do conselho da vila.” Claro que aqueles
francófonos mal-humorados insistiriam naquele tipo de
independência. Kira pressionou a testa contra o volante
com um gemido.

“Ok, uh, obrigado-tchau.” Kira desligou a ligação e se


virou para Em. “Em...”

“Não diga nada.”

“Precisamos...”

“Voltar. É, eu sei.” Ela cobriu o rosto com as mãos, as


pulseiras descendo até seus cotovelos. “Claro, vamos
voltar e confrontar o homem misterioso que está, sei lá,
apagando o prefeito ou algo assim.”

“Por mim, seria suficiente só avisar ao prefeito na


casa de quem ele está se metendo.”

“OK, tudo bem. Mas eu dirijo. E ao primeiro sinal de


encrenca, nós vazamos.”

“Combinado.”

Elas trocaram de lugar. Em deu ré até a estrada


deserta e Kira apenas torceu para que não estivessem
cometendo um grande erro.

341
Vivi se alongou em cima das folhas secas da encosta
e pegou seus binóculos. Com Sturgis morto e a policial
aparentemente contente em se esconder com as clones,
Vivi seguira a outra única pista que tinha: Greg
Kurzmann, o contato de Sturgis no Ministério da Defesa.
E, após uma longa e entediante tarde estacionada com
visão para o escritório do ministério em Toronto,
Kurzmann a levara até aquele grande prédio no desértico
norte da cidade, um lugar que acionava todos os botões de
alarmes de Vivi. Perto da cidade, mas não tão perto?
Check. Longe o suficiente da estrada para desencorajar
curiosidade inocente? Check. Longe o suficiente de
vizinhos para que eles não escutassem nenhum som
estranho e gritos? Check. Sinalização totalmente sem
significado (nesse caso, ‘Haras do Jefferson’)? Check. E —
Vivi cobriu o perímetro com seus binóculos — sistemas de
alarme e vigilância inexplicáveis? Check.

O que quer que fosse que Kurzmann fazia ali, ele não
queria que ninguém soubesse.

Vivi fez uma pausa ao detectar um movimento em


seus binóculos num morro próximo. Ela congelou e
apertou os olhos para enxergar melhor, então sorriu.
Parecia que a sargento Priyantha não gostava muito de
ficar escondida, afinal.

342
“Não se mexa.” A voz atrás de Priyantha era calma,
controlada e imediatamente familiar, tão familiar que fez
seu coração parar por um momento, na esperança de que
fosse Cosima, após escapar milagrosamente.

“Se estiver OK pra você, vou levantar minhas mãos


devagar.” Jaysara enunciou.

“Levante e então responda às minhas perguntas,


oficial. Como encontrou esse lugar?”

“Posso me virar?” Jaysara perguntou. “Sei que você


é uma clone.”

Um assobio. “Só responda a pergunta!”

“Fui capaz de encontrar uma referência a um local


de caixa preta usada pela equipe de Greg Kurzmann.”

“O que quer com Kurzmann?”

Jaysara se perguntou se o motivo pelo qual sua


interrogadora não queria que ela se virasse era por estar
desarmada, mas decidiu que não estava disposta a
arriscar. “Ele tomou minha suspeita, Cosima Niehaus, e
eu não confio mais nele ou no departamento dele quanto
ao que farão com ela.”

O tom do silêncio atrás dela mudou. “Cosima


Niehaus está ali dentro?” A voz soava... não incerta, mas
como se avaliasse possibilidades.

Jaysara limpou a garganta. “Eu a detive pela morte


de Nathaniel Sturgis.”
343
“Ela não é a responsável.”

Ah. “Mas também por espionagem. Pensei que ela


fosse uma identidade de disfarce para a agente da CIA
chamada Vivi Valdez.”

Uma mão áspera agarrou o ombro de Jaysara e a


girou. “Como conhece esse nome?” O rosto da clone estava
próximo ao seu e ela definitivamente segurava uma arma
pressionada contra seu corpo.

Jaysara respirou fundo. “Após a explosão do IPGT, a


CIA entrou em contato com meus superiores para dizer a
eles que havia uma espiã fugitiva à solta em nosso país.”

A arma não vacilou, mas algo na expressão da clone


cedeu. “Me apagaram...” Ela murmurou.

“Agente Valdez, eu presumo?” Jaysara disse,


cuidadosamente. “Talvez possamos nos ajudar.”

A intensidade voltou aos olhos de Valdez.

“Preciso tirar Cosima Niehaus daqui e descobrir o


que está acontecendo.” Jaysara continuou. “Parece que
isso poderia ser útil a você também. E, francamente...”
Ela disse, ignorando o fato de ter uma arma apontada
para si. “Eu poderia aproveitar alguma ajuda.”

Houve uma longa pausa e então, lentamente, Valdez


sorriu. Não era uma visão agradável.

“Combinado, oficial.” Valdez disse. “Mas acho que


sou mais adequada para infiltração e extração. E não

344
estou nem aí para mandados ou permissões. Então eu
entro.” Ela soltou o ombro de Jaysara para pegar algo em
seu bolso e entregou um fone a ela. “Mas eu gostaria de
ter sua perspectiva nos assuntos internos canadenses e...”
Ela olhou para a encosta onde Jaysara havia estacionado.
“Que você me avisasse se tivermos que sair de lá rápido.”
Ela se inclinou para mais perto. “Não me passe a perna,
oficial.” Então ela avançou e sumiu em meio à vegetação
rasteira.

Aeroportos, em um ponto entre a noite e a manhã,


eram carregados com uma aura cintilante e sublime que
sempre perturbava Davis, não importa quantas vezes ele
passasse por aquilo. O ruído de enceradores de piso ao
longe; os sons engasgados do sistema de autofalante
anunciando outro atraso; os outros passageiros de olhares
vazios que haviam deixado sua alma para trás a alguns
fusos horários de distância; e o tagarelar incessante de
canais de notícias 24 horas, que falavam em loop sem
parar, como se ninguém tivesse que dormir, como se
ninguém fosse estar mais tranquilo caso apenas
ignorassem o mundo que queimava além da pista de voo.

Davis certamente gostaria de estar. Mas quando


ninguém mais podia fazer o trabalho a ser feito, era
melhor que o fizesse ele mesmo. Especialmente agora que
a maldita coisa estava exposta. Qualquer janela que eles
poderiam aproveitar para manter o programa mal
supervisionado de clones fora de conhecimento público se
fechava rapidamente com o desastre nas mídias.

345
Ele apoiou sua mochila nos ombros ao atravessar
outro corredor interminável. O ciclo de notícias se repetia
de novo. “Dúzias, talvez centenas, de mulheres pelo
mundo, todas elas clones genéticas idênticas.” A âncora
dizia. Sim, pensou Davis, esse é o exato significado da
palavra clone. “Estou aqui agora com Rachel Duncan,
uma renomada ex-executiva de biotecnologia que não só
possui um extenso conhecimento acerca de clones, como
também é uma.”

A cabeça de Davis se virou em direção à tela.

“Obrigada, Linda. Estou tão feliz de estar aqui. Os


últimos dias foram uma tormenta, mas fico grata pela
chance de finalmente poder compartilhar minha
história.”

Linda se inclinou para mais perto de Rachel Duncan.


Esta parecia uma versão mais velha das mulheres do
hospital e de todas as fotografias das fichas as quais ele
avaliara ao assumir a supervisão do projeto. Mas havia
algo sobre ela, algo talhado e predatório em sua
expressão. Davis já vira mulheres assim nos altos
escalões da agência. Eram fortes aliadas a quem quer que
as apoiasse, enquanto os demais deveriam se afastar para
o mais longe possível.

“Então me diga, Rachel. Como reagiu ao descobrir


que suas ‘irmãs’ clones haviam sido expostas?”

“Bom, fui tomada de surpresa, claro.” Rachel forçou


uma risada leve. “Todos os outros clones com quem

346
trabalhei no passado sempre foram muito preocupados
com sua privacidade. Mas, honestamente, foi um alívio.
Pensei ‘finalmente... não tenho mais que esconder quem
ou o quê sou’.”

“E o que exatamente você é?” Linda perguntou. “Em


suas palavras.”

Rachel sorriu, como se soubesse que a câmera focava


em seu rosto. “O próximo estágio da evolução. Tantos
grupos misteriosos, como a infame Fundação DYAD e o
movimento neovolucionista, tentaram nos conter.
Tentaram nos fazer ser parecidos com eles. Mas ninguém,
a não ser um clone, consegue realmente captar o que
somos. E ninguém entende a complexidade e a ciência
como eu.”

Davis inclinou a cabeça para o lado. Ela estava


obviamente angariando algum tipo de emprego — em
algum lugar, de alguma forma. Mas ela não tinha como
saber sobre o programa do Departamento de Vanguarda
Científica.

“Está dizendo que tem contato com outras clones,


senhorita Duncan?”

“Já há algum tempo, sim. Eu sempre soube o que


era.” Os incisivos de Rachel brilharam em outro sorriso
afiado. “E agora que não somos mais barradas pelo
segredo que nos atava, sei que podemos ser algo bem
maior.”

347
Davis encarou a tela por mais um longo momento
antes de perceber que estava parado no meio do corredor
do terminal. Rachel Duncan parecia ser o tipo de pessoa
que poderia se tornar uma poderosa aliada ou uma
inimiga arriscada. Mas de uma forma ou de outra, se ela
se metesse nos negócios da Agência, ele a manteria em
rédeas curtas.

348
“Então, aquela coisa sobre duzentas e setenta e
quatro clones...” Em disse.

“É. Tínhamos o nome e endereço de todas elas.” Kira


apertou os lábios. “Minha tia— digo, para mim, é minha
tia, mesmo que ela e minha mãe sejam duplicatas
genéticas —, ela precisou encontrar uma cura para uma
doença que todas elas possuíam, então tem toda essa
coisa de cultos psicopatas e companhias que tentavam as
usar e...” Kira suspirou. “Digamos apenas que minha
infância não foi exatamente normal.”

“E agora você ainda nem é adulta e já mente para


entrar em empresas de pesquisa genética.” Em
tamborilava as unhas no volante, sua expressão ilegível.

“Você está... brava?” Kira perguntou. O que ela quis


dizer era ‘está desapontada comigo?’ Mas aquilo soava
como algo que uma criança diria.

“Não sei como estou. Impressionada? Tipo, você é


fruto de um clone e claramente sabe muito sobre toda a
ciência por trás disso. E, acredite em mim, entendo
porque você teve de manter segredo. Mas também não sei
qual é a sua.”

“Não quero nada.” Kira esfregou as palmas das mãos


em seu jeans. “Só quero ajudar as pessoas. Do melhor jeito
que sei.”

“E como exatamente seria isso?”

349
Kira respirou fundo. A voz de sua mãe gritava no
fundo da sua mente para que ela guardasse todos os seus
segredos. Mas se Kira não pudesse confiar em ninguém,
de que adiantava? Ela precisava decidir por si mesma.

“Meu genoma.” Kira disse suavemente. “Eu tenho


esse gene. Lin28A. É como um... gene de cura super
rápida. É o motivo pelo qual havia tantas pessoas nos
perseguindo, quando eu era mais nova. Pessoas que
queriam se aproveitar disso. Mas... também me parece
egoísta manter isso só para mim. Pensei que se
conseguisse estudar isso melhor, talvez eu descobrisse
alguma forma de ajudar os outros.”

Em riu baixinho — mas não havia crueldade alguma


naquilo, apenas um tom atônito que fez o coração de Kira
vibrar. “Como você existe?”

“O que— o que quer dizer?”

“Você vem dessa família sci-fi louca de clones, tem


genes assombrosos, já é, tipo, quase uma cientista gênia
e, mesmo assim, você realmente, genuinamente, se
importa com os outros. É... surpreendente.”

Os dedos de Kira se apertaram em seu colo. “Você


acha?”

“Você não acharia, se estivesse vendo isso de fora?


Não duvide de si, garota. Você é incrível. E eu não acho
que sejam apenas seus genes.” Em lançou um olhar de
lado para Kira por um momento. “É quem você é. Como
pessoa.”
350
“Eu.” Kira ecoou.

Ela deixou aquelas últimas palavras a aquecerem


durante todo o caminho de volta a Nasgwine’g.

A vila parecia exatamente igual a antes. Kira não


sabia o que esperara; explosões, caos, revolta? Mas seja lá
o que aquele homem aprontava, não parecia ter mudado
nada drasticamente. E mais adiante, enquanto
percorriam a rua de pedras até a cabana de Sauveterre,
não havia sinal da van preta e da figura sombria. Era
como se ele nunca estivera ali.

“Bom, isso é totalmente anticlimático.” Em disse.

“Olhe. As luzes ainda estão acesas.” Ela apontou


para a fraca iluminação que irradiava através das
cortinas puídas de Sauveterre.

Elas estacionaram em frente à cabana e escanearam


mais uma última vez a vila e os buracos entre as casas.
Sem figuras sombrias ali também. Haviam
provavelmente se assustado à toa, então. O que diabos ela
fazia ali? Era loucura, simples assim. Outra coisa que ela
devia ter herdado de sua mãe, provavelmente. Uma
necessidade desesperada de drama.

Mas não, ela estava fazendo exatamente o que


dissera a Em: ajudando pessoas. Não era algo para se ter
vergonha ou se desculpar, como Em havia dito. Elas
haviam visto algo potencialmente ruim acontecendo e,
caso ela não agisse e alguém se machucasse... Bom, Kira
não queria ter de viver com aquilo.
351
Ela marchou até a porta da frente com Em atrás dela
e torceu para que não fosse nada demais.

Mais luzes se acenderam. O tinir de diversas


fechaduras e correntes lá dentro. Bom, isso era novidade.
Paranoia demais? Então a porta se abriu, revelando
Gilles Sauveterre em uma roupa maltrapilha, num
humor ainda pior do que estivera algumas horas antes.
Em uma das mãos, ele segurava uma lata de... spray de
insetos? Kira não enxergava a outra mão, mas não se
surpreenderia se ele carregasse uma arma.

“Hum...” Ela disse.

“Qu’est-ce que vous voulez, les gosses?” Ele rosnou em


francês.

Cada sensível coisa que ela poderia dizer


imediatamente lhe fugiu à cabeça. “Nós, hum... Nós vimos
alguém rondando sua casa mais cedo e...”

Ele fez uma careta e coçou ferozmente seu braço com


sua outra mão (que carregava, de fato, uma pistola —
Kira deu um passo para trás). Ele murmurou algo que ela
não entendeu em francês, possivelmente algo sobre
pulgas. Agora que seus olhos estavam se acostumando à
luz, ela percebeu que as picadas haviam piorado, piorado
bastante, e que havia também um considerável vergão
rubro em seu pescoço, perto da gola de sua camisa.
Alarmes soavam em sua cabeça agora. Charlotte não
havia citado algo sobre comichão e erupções cutâneas?

“Senhor, está se sentindo bem?”


352
“Olhe...” Ele finalmente parou de se coçar, deixando
marcas de sangue em seu braço de tanto arranhar. “O que
foi desta vez? Você trabalha para o Bai? Quer acabar com
nosso rio? Vocês pirralhas acham que podem se
intrometer em nossa vila, corromper nosso estilo de... de
vida...”

Ele cambaleou para a frente, olhos tremulando. Se


apoiou no batente da porta. Seu rosto estava pálido, como
algum tipo de crise hipoglicêmica—

“Mas eu não... nós não...”

Ele caiu de joelhos, então desabou para a frente, o


corpo se debatendo em uma convulsão. Em gritou. Kira
chutou a arma da mão dele. “O que fazemos?” Ela bramiu.

“Me diga você! Você que está acostumada a lidar com


esse tipo de coisa!”

Ela se agachou e tentou virá-lo de costas, mas ele


fechou a porta em si com um dos joelhos. Kira tentou
desenterrar o treinamento rudimentar de primeiros
socorros que ela tivera. Passagens de ar estavam
desobstruídas. Ele estava deitado reto de costas. “Ele
precisa de uma ambulância, mas...”

“Mas não atendem a vila.” Em resmungou. “Teremos


de levá-lo.”

Foi preciso as duas para carregar Gilles até o assento


de trás do carro de Em, gastando um tempo precioso. Sua
respiração estava estável, mas ele lutava para ficar
353
acordado e aquele vergão parecia ficar mais forte a cada
momento. Em assumiu a direção desta vez, enquanto
Kira ia no assento de acompanhante, se virando
constantemente para checar o status de Gilles.

“O que acha que ele tem?” Em perguntou, quando


elas chegaram à estrada reta. “Não acha que tem a ver
com o que vimos mais cedo, acha?”

“Parece coincidência demais para não ter a ver.” Kira


estudou a irritação na pele dele que parecia se espalhar
diante de seus olhos. Aquilo era tão súbito, mais cedo ele
estava perfeitamente bem — mesmo que bêbado e irado
— na cervejaria.

Súbito. Assim como o que Charlotte experienciara


em Boston.

Com os mesmos sintomas.

“Em...” Kira disse. “Eu... Eu acho que o que quer que


ele tenha de errado, existe um fator genético nisso.” Ela
tentou pegar o celular para enviar uma mensagem a
Charlotte, mas ainda estava sem sinal. “Precisamos
mantê-lo longe dos outros habitantes.”

“OK. Ufa. OK.” Em respirou algumas vezes. “Bom, o


hospital é longe o suficiente para que nós—”

Abruptamente, a mão de Gilles disparou e agarrou o


pulso de Kira. Ela gritou quando as unhas dele se
enfiaram fundo; ele era surpreendentemente forte para
alguém em seu estado.

354
“A vila. Você tem que protegê-los.” Gilles disse com
uma voz áspera. “O vírus— eu o inseri na sequência.
Tentei apagar os dados deles. Mas não foi o suficiente
para pará-lo. Dr. Bai, o resto— eles não pararão. Eles não
pararão...”

“Pararão de que? Quem?” Kira se inclinou para a


frente. “O que o Dr. Bai está fazendo?”

Mas os olhos de Gilles se fecharam caiu de volta no


banco, o braço libertando Kira.

“O que acha que ele quis dizer?” Em perguntou.

Kira olhou para ela. “Que é mais sério do que a gente


imaginou.”

355
“Vou te dizer uma coisa.” Vivi disse de forma
descontraída, para testar a comunicação. “Esse lugar
definitivamente não é uma fazenda moderna. Tem
vigilância demais aqui.”

O suspiro de Priyantha foi ouvido de forma clara e


audível. “O que vai fazer? Tem algum tipo de aparelho
PEM ou tinta de rosto antivigilância ou algum disfarce
chique—”

“Não que eu não tenha, mas estou pensando em algo


mais simples.” Vivi tateou pela via de cascalhos. “Como
uma pedra bem pesada.”

“O quê?” Priyantha perguntou, mas Vivi já se


preparava para seu arremesso. Havia apenas uma
câmera com boa visão da trilha que levava até o complexo
principal e era baixa o suficiente para que ela pudesse
acertá-la sem muitos esforços...

Crack. A câmera se entortou quando a pedra a


atingiu, então se inclinou para a frente até ficar
balançando por pouco em seus fios. Então, quase que em
câmera lenta, caiu da árvore como a bolota mais suspeita
do mundo.

“Não vai machucar ninguém, vai?” Priyantha


perguntou, censurando-a.

“Desde que não tentem me machucar primeiro, não!”

“Isso não—”

356
Vivi esgueirou-se para dentro do bosque de sebes
perto da árvore que atingira. Se o lugar fosse como
suspeitava, enviariam alguém — ou, infelizmente,
alguéns — para checar a câmera imediatamente. Ela só
torcia para que, dada a cortesia e polidez canadense, esses
alguéns brandissem, no máximo, algum tipo comum de
arma pesada e não uma M16.

Claro que, apenas um minuto depois, Vivi ouviu o


baixo ruído de um carro elétrico de golfe se aproximar
vindo do complexo. Dois guardas, no máximo. Na neblina
pré-amanhecer, ela conseguia enxergar uma escada de
manutenção presa à traseira do carrinho. Perfeito. Vivi
agachou-se, segurando o cano de sua própria arma, e
esperou.

“Vou te contar. São esses malditos esquilos.” O


guarda mais baixo resmungou para o Grandão enquanto
pulava do carrinho. “Mastigam os cabos todos. De dois em
dois meses...”

“Não acredito. Não existe coincidência num local


desses. O Grandão cruzou os braços no peito e descansou
enquanto o Baixinho posicionava a escada. “Alguém está
derrubando nossas defesas ou...”

“Relaxe e segure a escada, Frank.” Baixinho o


repreendeu.

Com um grunhido, Frank segurou firme a escada


enquanto Baixinho subia nela. Vivi aguardou, ajustando

357
o aperto dela, até que Baixinho estivesse alto o suficiente
para que descer fosse demorar demais.

Ela surgiu dos arbustos e fez um arco com a pistola,


o cabo se chocando contra a mandíbula de Frank. Ele
grunhiu e caiu no mesmo instante.

“O que—” Baixinho tentou pegar seu comunicador,


mas Vivi puxou a escada de baixo dele, forçando-o a usar
as duas mãos para se agarrar à árvore, o walkie talkie
balançando inutilmente em sua cordinha. Vivi agarrou as
pernas que chutavam e o puxou para um mata-leão, então
esperou até que a pressão dele caísse e o deixasse
inconsciente.

“Por favor, me diga que apenas os dominou.”


Priyantha resmungou enquanto Vivi trabalhava para
amarrá-los e roubava a jaqueta, o boné e o crachá do
Baixinho para ela.

“Só um mata-leão, oficial, só um mata-leão.”

“Não me chame de oficial!”

“Só se parar de me chamar de agente. Sou uma


operante, muito obrigada.” Ela pôs o cabelo para dentro
do boné, tentando ignorar a banda úmida de suor que
havia ali, e zipou a jaqueta. Assim que Baixinho e Frank
estavam a salvo atrás da sebe e os comunicadores
trancados na caixa do carro de golfe, ela recolheu a
escada, subiu no banco de motorista e acelerou pela
trilha, mantendo a aba do boné cuidadosamente
posicionada para esconder seu rosto. Estacionou nas
358
vagas próximas e começou a andar pelo corredor após
usar o crachá para abrir a porta—

“Ei! Onde o Frank foi?”

Outro guarda espetou a cabeça para fora do que


parecia uma estação de monitoramento, uma sala escura
repleta com o doce, doce brilho das gravações de dúzias de
câmeras de segurança. Informação. Os dedos de Vivi
praticamente formigaram ao notar aquilo.

“Ele, hum... foi pegar uns...” Ela olhou para atrás do


guarda; não havia mais ninguém na sala. Frank e
Baixinho deviam ser os outros dois no turno. “Uns
donuts?”

A testa do guarda se franziu. “Espere, quem diabos é


vo—”

Ela acertou um golpe em cheio com seus dedos bem


no pomo de adão do guarda, o lançando para dentro da
sala. Entrou e fechou a porta atrás dela. Chutou os
comunicadores da mão dele quando ele tentou alcançá-
los. “Sério, não tenho tempo pra isso.” Ela resmungou,
pressionando o joelho sobre a barriga dele.

“O que você está fa—”

Finalmente, ele também ficou inconsciente. Vivi


suspirou e, com um encolher de ombros, se serviu de uma
xícara de café na mesa próxima à parede.

“Bom?” Priyantha disse.

359
“Estou dentro.” Vivi bebeu um gole. “Mas não por
muito tempo.”

360
Alison dirigia pela 91 pelo que pareciam eras, suas
mãos formigando no volante da minivan. Ela o estivera
apertando com força desde que fugiram daquele terrível
hospital em Boston, com Dana junto a elas. Dana. Outra
— mais nova! — clone, uma nova doença e um novo
pessoal do governo as perseguindo. Fan-tás-ti-co.

Ela deixara Charlotte e Dana, que usavam máscaras


para cobrir a boca e o nariz, no carro, enquanto ela
buscava alguns lanchinhos. Mas claro que a TV estava
ligada nos noticiários. Pastores evangélicos berravam
contra a mera existência de clones, chamando-os de
‘aberrações de Sua vontade’ e ‘torre de Babel científica
prestes a desabar no peso de si própria’. OK, talvez este
último fosse uma verdade desconfortável.

Então ela voltara à van para encontrar as duas


meninas discutindo sobre aquilo também.
Aparentemente, elas aproveitaram para assistir à
transmissão pelas janelas enquanto ela estivera lá
dentro.

“Você não pediu para ser algum tipo de experimento


científico, uma cobaia cujo objetivo é ajudar outros a curar
suas próprias doenças.” Dana olhou para suas mãos. “Não
mais do que nós. Eu não trocaria isto por nada, no
entanto. Minhas ‘primas’ e eu... não imagino como ter
uma família melhor.”

“Eu sei.” Charlotte disse. Ela ainda estava fraca e


suando muito, mas, apesar de ter cochilado grande parte
das primeiras cinco horas de viagem, ela parecia coerente
361
agora. “Mas eu entendo porque as pessoas estão
chateadas. Confusas. Isso desafia tudo que pensamos
sobre nossa identidade como pessoa e a ética da ciência
envolvida. Mas talvez seja melhor que eles passem por
essa fase de raiva agora...”

“Nós é que devíamos estar com raiva! Não somos


ratos de laboratório!” Dana gritou. “Somos só pessoas. Do
que importa o resto?”

Alison limpou a garganta. “Está tudo bem,


meninas?”

Charlotte abaixou a cabeça enquanto Alison as


levava de volta para a estrada. “Me desculpe, Dana. Eu
sei que é coisa demais para absorver, ser exposta assim...”

“Acho que eu... eu nunca pensei por esse lado. Que


fôssemos ratos de laboratório. Mas é isso, não é?” Dana
perguntou. Uma lágrima escorreu em seu rosto. “Nos
adoecer e nos curar para se aprender como curar todos os
outros. É isso que fizeram a você e suas irmãs?”

Charlotte mordeu seu lábio inferior. “Teve um


propósito—”

“Sabe, quando Vivi desapareceu, todos tentaram me


dizer que ela não existia. Que eu imaginara tudo ou
confundira ela com as outras. Mas eu sabia que isso
estava errado.” Ela respirou fundo. “Quando cresci,
pensei que talvez... talvez eles fizessem exatamente isso
com ela. Eu tinha essas imagens horríveis na cabeça deles
fazendo experimentos com ela. Eu tinha medo de ser a
362
próxima. Mas com o tempo, ninguém mais desapareceu e
eles sempre foram tão bons conosco. Tivemos uma ótima
educação, uma chance de seguir nossos hobbies, o que
quiséssemos. Nunca pareceu anormal. Para falar a
verdade, o mais chocante era ver como o resto do mundo
vivia.”

“Não te assustou que Vivi desaparecera por tanto


tempo?” Charlotte perguntou.

Dana acenou. “Eu realmente acreditei que sua


família apenas não queria mais fazer parte do programa.
Que talvez ela não gostasse tanto de nós quanto pensei.”

“Ei. Está tudo bem. Ela está viva, não é? E nós


também. Nós sobrevivemos.” Charlotte sorriu com
tristeza. “Mais do que qualquer coisa, somos
sobreviventes.”

“Fazemos mais do que apenas sobreviver.” Alison


cantou. “Nós mandamos na porra toda.”

No retrovisor, Alison podia ver Charlotte sentada na


parte mais afastada da van, o mais longe dela possível.
Mesmo por baixo da máscara que trouxeram de Boston,
ela podia dizer que Charlotte sorria de volta para ela. Que
alegria, ver outra de ‘suas’ crianças crescida e inteligente,
em grande parte pelo exemplo que ela representava para
eles.

“Está tudo bem, tia A?” Charlotte perguntou. “Seus


olhos estão cheios de água.”

363
“O quê? Eu não—” Alison piscou algumas vezes. “Eu
estava apenas pensando no quão orgulhosa sou de vocês.”

“Tia!” Charlotte bufou.

“É verdade! E você não pode me culpar. Somos todas


do mesmo sangue, não somos?” Ela sorriu. “Embora tenha
algo de gracioso que só vem com a idade.” Ela gostava de
pensar ter aquilo.

“Então qual o segredo para envelhecer bem como


uma sestra?” Dana perguntou, irônica.

Alison abriu mais um sorriso. “Geralmente, eu só me


pergunto ‘o que a Helena faria?’ e faço exatamente o
oposto.”

Charlotte levantou uma sobrancelha pelo retrovisor.


“Ah, sim, até parece.”

Alison inclinou a cabeça, aceitando a observação


sarcástica. “OK, mas só quando alguém merece muito.”

364
Vivi rangia os dentes enquanto a barra de progresso
na tela ia aumentando dolorosamente devagar. Ela
duvidava que os guardas de segurança teriam acesso a
quaisquer dados mais sensíveis (e por isso pertinentes) do
complexo, mas não doía pegar o que ela pudesse, não
quando os dados eram tão facilmente duplicados. Ela se
preocuparia em filtrar aquela bagunça mais tarde para
encontrar o que ela e Priyantha precisavam. Agora era a
hora da aquisição.

“Algo bom?” Priyantha disse em seu ouvido. “Algum


sinal de Niehaus?”

“Nada ainda. Deixa eu ver os canais de segurança...


hum... quem é esse palhaço?”

De uma visão alta e angulada, um homem gritava ao


celular em um corredor, curvado para a frente, furioso.
Mesmo com a imagem pixelada, seu rosto batia com a
descrição do homem que ela estava procurando. “Aqui
está ele.” Vivi deu zoom na imagem e aumentou o volume.

“... só preciso de mais tempo. Por favor. Foram só


alguns... contratempos.”

“Então não manda em tudo.” Vivi murmurou.

“Houve uma perturbação no plano.” Greg continuou.


“A cobaia foi isolada, não temos ainda dados sobre o
resultado. Talvez tenhamos de implementar o método de
distribuição de forma mais agressiva... Sim. Eu queria
fazer mais testes, de qualquer forma.”

365
“Está ouvindo isso?” Vivi perguntou. Ouviu um som
afirmativo de Jaysara junto ao discurso em andamento de
Greg.

“Sim. Tenho ela no local. O ataque da mídia é um


desafio, mas podemos fazer isso... Acho que ela sabe mais
do que ela parece, mas ela não fala.”

Vivi se aprumou na cadeira e começou a examinar as


gravações das câmeras, cada uma mudando em poucos
segundos. Onde estava Niehaus?

“OK, OK.” Greg passou a mão pelos cabelos,


puxando-o em cachos espetados para cima. “Vou me livrar
dela. Sem discussão nisto. É rápido preparar outra cepa
de testes. Então assim que obtivermos os resultados dela,
podemos ir para o plano B.”

Com um rosnado, ele disparou pelo corredor e sumiu.

“Você tem que encontrar Niehaus rápido.” Priyantha


soava preocupada.

“Não brinca? Me dê uns segundos.” Vivi acionou o


gravador de clipes e marcou o tempo da gravação para
analisar depois. “Me deixe descobrir onde pode haver
algum tipo de laboratório aqui e... oh, céus.”

Os olhos de Vivi pulavam pelo software de logística,


mapeando as rotas de transportes e requisições. “Greg
está online. Ele está fazendo um novo pedido, deve ser o
plano B que ele mencionou.” Vivi clicou nos detalhes de
uma das entregas. “Equipamentos criogênicos de

366
laboratório, dispositivos de dispersão aérea
encaminhados para Nasgwine’g... que porra é essa?”

“Nasgwine’g.” Ela podia quase ouvir o franzir da


testa de Priyantha em sua voz. “Separatistas francófonos
lá. Bando de encrenqueiros. Foram colocados como
possíveis suspeitos em relação à explosão do IPGT, mas
chegamos à conclusão de que havia sido algo sofisticado
demais para eles.”

“Meio engraçado que, esse tempo todo, tenha sido o


Sturgis, não é?”

A voz de Priyantha quase estremeceu. “Não me


lembre.”

Vivi franziu a testa. “Muita matemática rolando


aqui, mas não sei encaixar tudo.”

“Nem eu. Mas não acho que seja algo bom. Quero
descobrir como os separatistas de Gilles Sauveterre estão
envolvidos, mas primeiro você precisa encontrar Niehaus
e essa arma.”

“Estou tentando.” Vivi buscou mais dados, desta vez


esquemas de construção. Ela ainda se sentia
desconfortável de manter uma representativa do governo
estrangeiro envolvida, mas improvisar em campo sempre
fora seu forte. Isso valeria a pena. Mas se Kurzmann
testaria algo em Niehaus, seu tempo estava se esgotando.
Ela checou a identidade no crachá de sua jaqueta
emprestada, então entrou na database de gerenciamento

367
de acessos para ter certeza de que possuía o nível de
acesso que precisava. Ela viu que não, mas alguns cliques
e ‘Dale Masterson’ de repente fora promovido a
pesquisador de laboratório. “OK, estou indo para o
laboratório.”

O complexo estava misericordiosamente vazio para


um sábado (era sábado? Tudo começava a se misturar
numa merda sem fim). Ela usou o crachá de Dale para
acessar o laboratório principal, a outra mão em sua arma,
mas ninguém estava lá dentro. “OK, cepa VX24-B, por
que estão te levando para Nasgwine’g? O que querem com
você?” Aquilo tinha de estar conectado com a arma de
Sturgis, mas ela não fazia ideia como. Por que eles a
levariam para uma vila aleatória cheia de terroristas? A
menos que...

Vivi olhou para cima, pensando, e congelou quando


seu olhar focou num espelho que cortava por um dos
cantos do laboratório.

“Algo importante?” Priyantha perguntou.

Vivi encarou a mulher na cadeira da sala adjacente.


A mulher com seu rosto, seu nariz (sem a fratura), seu ar
determinado. Ela conhecia aquele olhar. Determinação
em face da derrota iminente.

E sentado oposto a ela, mãos cruzadas sobre a


cintura, um sorriso malicioso no rosto, estava Greg
Kurzmann.

368
“É.” Vivi disse, a boca de repente seca. “Pode-se dizer
que sim.”

369
Os dedos de Sarah tamborilaram contra a mesa da
cozinha do condomínio de Felix ao ouvir outra ligação
recusada. Felix levantou uma das sobrancelhas, olhando
com grande especificidade de suas unhas grossas para a
cerveja intocada em sua frente. Em um só movimento
rápido, ela conseguiu dispensá-lo com uma das mãos ao
mesmo tempo em que batia o celular na mesa com a outra.

“Sem notícias da passarinho rebelde?” Felix


perguntou, enquanto bebia seu café irlandês.

“Você sabe de alguma coisa, não sabe?”

Felix ocupou sua boca com outro gole de café.

“Droga, Fee. Isso não é piada. Ela ainda é uma


criança, ela pode estar seriamente ferida ou...”

Felix abaixou sua caneca e deu a ela um sorriso com


um bigode de leite.

“Você acha engraçado, não é?” Sarah tentou roer


uma unha já inexistente. “Que depois de toda a dor de
cabeça que dei para a Sra. S quando éramos menores...”

“A semelhança é curiosa.” Ele disse. “Mas não se


preocupe. Kira é bem mais comportada do que você algum
dia já foi.”

Sarah gemeu. “Nem me lembre.” Com outro olhar


amargo à cerveja, ela afastou um dos cachos de seu rosto.
“Nunca vou entender como pensei que poderia levar jeito
como mãe e agora—”

370
“Agora, agora. Não vamos falar nada disso.” Ele se
inclinou para a frente, envolvendo as mãos dela. “Você fez
um trabalho brilhante com ela. Ela é esperta, compassiva
e engenhosa; isso é tudo seu, sabia? Não dá nem para
culpar a genética nisso.”

Ela sorriu por trás de um dos cachos. “É?”

“É verdade. E fez isso tudo sem isolá-la da loucura


que tivemos que lidar. Ela já sabe como resolver qualquer
coisa que entre em seu caminho.”

“Deus, espero que você tenha razão.” Sarah


murmurou.

“Sempre tenho.” Ele sacudiu uma das mãos. “Além


disso, é mais a cara dela estar vacinando populações
vulneráveis do que estar se afundando em sexo, drogas e
rock ‘n’ roll—”

“Não estou preocupada com o que ela está fazendo,


que droga. É com o resto do mundo.” Sarah pegou a
cerveja e a estudou suspeitosamente. “Já é ruim o
suficiente ter esse circo de mídia nos perseguindo agora.
Mas com Cosima desaparecida e essa provação em
Boston—”

O monólogo de Sarah foi interrompido pelo toque de


seu celular. Felix sentou-se, olhando de novo para ela. Ele
sentira falta de sua irmã. Era engraçado o modo como a
dinâmica deles havia mudado quando ambos se
acomodaram (em diferentes níveis de sucesso). Ele nunca
pensaria que estariam de novo sentados em volta de uma
371
mesa de cozinha, sua própria habilidosa (e deliciosamente
egocêntrica) pintura de si e Colin sorrindo para eles da
parede. Era... reconfortante, perceber, ao mesmo tempo,
a familiaridade e a novidade da situação.

“E onde diabos é isso?” Sarah disparou, então fechou


os olhos por um momento. “Não, esquece. Já estamos
indo.” Ela olhou para Felix. “E se eu ver mais um carro de
notícias, vou furar os pneus.”

Ah, sim. Ainda era a Sarah que ele conhecia e


amava.

“Alison está de volta à cidade. Vamos encontrar com


elas agora. Eles tem uma pista sobre a Kira.” Ela fez como
se fosse arremessar as chaves a ele, mas então se
interrompeu por um segundo. “Como nos velhos tempos,
certo?”

“Deus, espero que não. Meu coração idoso não


aguenta a tensão.”

Ela apertou a nuca dele com um beliscão ao mesmo


tempo afetuoso e autoritário, o guiando em direção à
garagem.

372
“Tem certeza de que isso vai funcionar?” Art
perguntou, calçando as luvas de látex. Eles estavam no
laboratório do segundo andar da casa de Delphine, que
ainda não havia sido finalizado, mas que felizmente já
possuía os equipamentos que eles precisavam para o
teste.

Delphine posicionou com cuidado a amostra de


cabelo sobre a bandeja e a inseriu no sequenciador. “Não,
não tenho. Mas parece apropriadamente dramático para
o Monsieur Sturgis.”

Donnie os acompanhara, mais para que, Delphine


desconfiava, se distraísse do fato de que Alison estava
dirigindo a van com outras duas clones doentes através
da fronteira internacional. Ele rondava pelo laboratório,
ocasionalmente olhando para o equipamento quando não
estava obsessivamente checando seu celular por updates,
agora que Alison se dirigia para Toronto para encontrá-
los. Delphine lançou um olhar a ele, torcendo para que
parecesse simpático o suficiente, mas na verdade o que
ela queria era que ele ficasse parado. “Pelo menos é uma
amostra pequena. Não deve demorar muito até que—”

O sequenciador apitou com um leve som.

“Essa coisa parece um micro-ondas.” Delphine


gesticulou para que ele se aproximasse. “Hum... isso
parece...”

373
“Coordenadas de GPS?” Delphine questionou,
batendo de leve uma das unhas contra os números na
tela.

“É. E isso é parece ser aqui em Toronto.”

“Mas e os números aqui no final?” Delphine


perguntou. Ela abriu um site de mapas e digitou as
coordenadas. O marcador surgiu, flutuando sobre um
prédio específico em um shopping isolado nos arredores
de Toronto.” “Top to Bottom? O que é isso, um sexshop ou
algo assim?”

Ela e Art trocaram uma risada. “Bom...” Art disse.


“Suponho que já visitei lugares mais estranhos em busca
de pistas. E se isso explica do que se trata aquele projeto
TAG em que ele trabalhava...”

“Hum...” Donnie disse.

Art e Delphine se viraram para olhar para ele.

“Eu, hum, acho que os outros números podem ser


uma combinação para algum cadeado de armário.”

“E por que acha isso?” Delphine perguntou.

O rosto dele enrubesceu. “Porque Ali e eu já fomos


até lá para conhecer.”

Delphine piscou furiosamente. “Voc-vocês são


membros da Top to Bottom?”

“Não! Deus, não. Nós entramos para a Declassé. Nos


dê algum crédito.” Donnie murmurou.
374
Ela e Art trocaram olhares. “Bom, espero que você
possa se juntar a nós à tarde.” Art disse.

375
Os olhos de Cosima se abriram com dificuldade e, por
alguns abençoados minutos ela se agarrou aos
fragmentos de sonhos, onde ela estava enrolada em sua
esposa em uma cama suntuosa, com raios de sol dourados
que tentavam despertá-las do sono. Então uma pinçada
em seu pescoço e a fria dor em seus pulsos pelas algemas
a fizeram acordar. Ela gemeu e tentou se sentar, mas ela
estava presa de forma tão firme que mal podia girar no
lugar. Sua bexiga doía, seus ombros doíam e, pela deusa,
tirando toda a coisa de ‘presa e então arrastada por uma
série de cada vez mais sinistras instalações de detenção’,
ela mataria por um trago de Wookie naquele momento.

Ah, e haviam também os inquietos grunhidos e sons


que vinham de toda a parede de animais enjaulados ao
seu lado.

“Olá, senhorita Niehaus.”

A atenção de Cosima se voltou ao homem com ar de


gerente intermediário que entrava na sala de concreto.
Greg sei-lá-o-quê. “É doutora Niehaus.”

Greg balançou a mão com desprezo. “Repensou a


respeito de sua relutância em me contar sobre o que ouviu
de Sturgis antes de matá-lo?”

“Eu não o matei.” Cosima disse, cansada, com a leve


esperança de que ele acreditaria nela.

“Não foi isso o que perguntei.” Greg tentava passar


um ar de ameaçador, mas Cosima percebeu que ele estava
muito mais inquieto do que a última vez que a
376
interrogara. Será que algo tinha dado errado? Será que
isso era bom ou ruim para ela?

“Eu quero saber o que Sturgis te contou e mesmo


porque ele falava com você, em primeiro lugar.” O volume
da voz de Greg aumentava e agora ele se levantava de sua
cadeira. “E como você colocou sua esposa intrometida na
força tarefa, afinal? Vocês devem ter planejado isso desde
o início!”

Era ruim, Cosima pensou. “Olhe, não é bem assim.


Nós duas trabalhamos com genética e—”

“Me diga o que Sturgis te contou!” Greg berrou. “Ou


vou te ensinar algo sobre genética!”

Cosima não aguentou o trocadilho ruim e revirou os


olhos.

“Ah, acha engraçado, não é?” Greg se aproximou.


“Acontece que seu amigo Sturgis tinha seu genoma nos
arquivos dele. Não percebemos isso até que vimos seu
rosto espalhado nos noticiários, claro.”

“O quê?” Aquilo chocou Cosima. Se seu rosto estava


nos noticiários... qualquer coisa podia acontecer. Elas
podiam ser expostas...

“Mas aparentemente Sturgis já havia feito o


primeiro teste sem nossa aprovação. Em algumas
mulheres. Iguais. A. Você.” Greg deu leves batidas no
nariz de Cosima. “Era tão fácil fazer testes, afinal. Tudo
que tínhamos de fazer era inserir o genoma e então
377
inserir um vírus bem, bem desagradável. E aí... bom, se
não me disser o que Sturgis te contou, vai descobrir o quão
fácil é.”

Cosima sentiu suas mãos tremendo nas algemas. “A


arma de Sturgis, ele está falando da maldita arma
genocida de Sturgis. Merda—”

“Ele me contou sobre a arma.” Ela disse. Não havia


porquê esconder aquilo agora.

“Pronto. Foi difícil?” Greg sorriu para ela. “O teste


dele na população de clones de Boston não foi letal, no
entanto. Temo que a cepa letal ainda precise passar por
alguns testes.”

Cosima apertou os olhos com desconfiança. “Cepa


letal? Ele contou que ele queria que a pesquisa fosse para
o bem.” Ela apontou.

“Ah, não se preocupe.” Greg disse, sombriamente.


“Vai ser para fazer o bem. Vai fazer muito bem na vila
cheia de separatistas e terroristas depois de amanhã.”

Cosima abriu a boca em choque. “Você está


almejando o genoma deles com a arma. Uma população
inteira. Isso é genocídio, seu filho da puta.”

“Não se trata da raça deles ou de seu genoma


compartilhado. Isso é apenas uma coincidência. O ponto é
que são terroristas. Tentam se separar do Canadá há
décadas, usando bombas caseiras e revoltas para provar
seus ideais. Descuidados, mas já machucaram muita

378
gente.” Ele usou uma das mãos para apertar seu nariz. “O
que faz deles o grupo ideal para testes. As únicas pessoas
em risco são as que merecem. Que são uma ameaça às
outras. Isso é para o bem, não é, doutora boazinha?”

“Você fala como se você quem decidisse isso.”

“Claro que sou eu.” Ele sorriu, mostrando os dentes.


“Alguém tem que manter a ordem. Genética é o próximo
vetor de ataque e temos que garantir que estamos bem
defendidos.”

“Falando assim parece que é você quem está indo ao


ataque.”

“É apenas uma necessidade de testes. Agora, de volta


a Sturgis. Onde está a cópia de back up do programa
TAG?”

Em algum lugar na platina perto de seu perto. E, se


tudo deu certo, está com Art agora. Cosima tentou agir de
maneira inocente. “Eu não tenho ideia!”

Greg esperou, mantendo o olhar nela por um longo


momento. “Então você não serve de nada a mim.” Greg
disse. “Obrigado por oferecer a oportunidade de testes que
eu preciso.”

E com isso, ele se levantou e saiu da sala.

“Espere!” Cosima gritou.

Mas ele já havia saído. A porta encostou e se fechou


pneumaticamente atrás dele, deixando-a com o silêncio.
379
Até que um zumbido fraco começou a sair dos canais
de ventilação.

Cosima levantou a cabeça e viu: um enxame do que


pareciam mosquitos. “Que porra é essa?” Ela seria
torturada por mosquitos? Mas havia algo irritantemente
curioso no zumbido do enxame, como se fosse harmonioso
demais.

O enxame desceu sobre ela e o que mais tivesse de


vivo naquela sala. Os macacos rhesus uivaram de agonia;
os coelhos corriam furiosos em suas jaulas. Latidos,
guinchos e rosnados tocaram uma sinfonia caótica
quando os mosquitos chegaram mais perto. Perto o
suficiente para ver que não eram mosquitos, afinal.

Eram minúsculos drones. E onde deviam estar suas


probóscides, brilhavam as finas pontas de agulhas.

380
“Droga, droga, droga!”

Luz vermelhas piscavam em volta de Vivi enquanto


ela buscava no laboratório algum tipo de interrupção
manual. TESTE EM ANDAMENTO, anunciava cada
tela, uma variedade de sinais vitais expostos diante dela:
todos com um batimento cardíaco acelerado, mas apenas
um — COBAIA CLONE HUMANO — chamou a atenção
de Vivi. “Tenho que tirá-la de lá.” Vivi disse, tanto para si
mesma quanto para Priyantha. “Mas o sistema não me
deixa interromper. Diz que apenas Kurzmann tem
autorização para—”

“Esse laboratório deveria estar vazio.” As portas


deslizaram quando o próprio Greg adentrou a sala. Ele
imediatamente pegou os comunicadores em seu cinto.
“Segurança, preciso—”

“Ninguém virá.” Vivi correu para a frente e chutou


os comunicadores da mão dele. Talvez não fosse
exatamente verdade, mas ela torcia para que a maioria
da segurança estivesse amarrada ou desmaiada. Ela só
precisava de um pouco mais de tempo.

“Outra? Deus, vocês aberrações estão por todo


lugar.” Greg bloqueou seu próximo ataque, que ia direto
ao plexo solar dele, e conseguiu que ela perdesse seu
equilíbrio. “Eu já conseguir testar o que queria, mas não
machuca verificar de novo.”

Ela agarrou o béquer de vidro mais próximo e


arremessou contra ela. “O que—!” Ele limpou o líquido

381
morno. Droga. Ela estava torcendo para que fosse algo
perigosamente ácido.

“Chega.” Ele disse. “Você não vai foder as coisas para


mim.”

Ele puxou algo de seu cinto — uma espécie de


cassetete preto compacto — que, com um movimento, se
transformou em um longo tubo de metal com duas pontas
no final. Vivi já vira armas de choque antes — já se
defendera delas e já as usara —, mas aquilo era algo bem
mais sofisticado.

Greg tentou acertá-la, a eletricidade nas pontas


estalando ferozmente. Ela desviou de seu primeiro
ataque— do segundo— não havia tempo para esperar um
terceiro.

Ela usou o braço de um dos grandes equipamentos


médicos mais próximos dela e usou o momentum para se
balançar e chutar o peito dele com força. Ele caiu sobre
uma prateleira de frascos, que explodiram e se
quebraram em volta dele. Seus olhos se fecharam; sangue
escorreu das múltiplas lacerações em seu rosto e braços.
Mas Vivi não achara o suficiente. Ela tomou a arma
elétrica e o acertou com uma dose saudável de 120 volts.

Ele estremeceu, agarrando o próprio peito, então


caiu imóvel. Será que ela desencadeara um ataque
cardíaco? Vivi se aproximou para checar, mas o pulso dele
estava estável, apenas fraco, e suas mãos não estavam em

382
seu peito, mas sim segurando algo. Vivi abriu os dedos
dele e encontrou um USB num cordão.

“Vivi?” Priyantha perguntou.

“Estou aqui.” Vivi disse, puxando o USB para colocar


no bolso. Ela pegou o crachá de Greg em seu cinto e correu
de volta para a bancada de computadores. Ela o balançou
freneticamente e então socou o botão de INTERRUPÇÃO
até que, finalmente, as luzes piscantes se apagaram.
VENTILANDO AGORA A INSTALAÇÃO DE ENSAIO...

A porta que dava para a sala de testes finalmente,


misericordiosamente, se abriu com um clique pesado.

Vivi correu para dentro, um dos braços inutilmente


tampando a boca. Se essa coisa era feita para deixar
Niehaus doente, então ela era tão suscetível quanto. Com
uma careta, Vivi viu um enxame de insetos voar em sua
direção.

“Os insetos... drones...” Niehaus gritou. “Eles têm...”

Vivi balançou a arma elétrica contra eles, apertando


o botão lateral, assumindo que fosse para um ganho extra
de voltagem. Ela não tinha certeza do que queria que
acontecesse, mas não esperava aquilo.

Eletricidade arqueou da arma, acertando o primeiro


inseto, então quicou para os próximos. A luz brilhou numa
impressionante teia ao pular de um para o outro em
solavancos poderosos. Vivi piscou, o forte brilho ainda

383
gravado em suas retinas. Quando sua visão começou a
clarear, os pequenos pontinhos caíam do ar, um a um.

“Voc-você quis fazer isso?” Niehaus perguntou,


piscando furiosamente. Como se não tivesse certeza se
estava alucinando o show de luzes ou não.

Vivi deu de ombros. “Não tinha certeza do que ia


acontecer. Mas, hum, bom saber?”

Vivi largou o aparelho e avançou para soltá-la, mas


Niehaus afastou a cabeça. “Cuidado.” Ela grunhiu. “Eles
estão tentando me infectar. O... o teste TAG...”

“Você foi picada?” Vivi perguntou, parada sobre ela.

Cosima fez uma rápida avaliação de seu estado.


“Eu... acho que não. Não. Bom trabalho com aquela coisa,
a propósito.” Ela acenou em direção à arma.

Vivi suspirou e a colocou no bolso. “Vamos sair


daqui.”

Ela observou o rosto de Cosima, firme e determinado,


apesar do que quer que ela já havia suportado detida há
dias. Era o próprio rosto de Vivi; a determinação sombria
que Vivi possuía. Mas aquilo tornava fácil demais confiar
nela. Oferecia um atalho para um relacionamento
amigável que ela ainda não merecia. Havia tanto que ela
não sabia ainda sobre o que estava acontecendo, sobre as
clones, sobre a arma genética, sobre o que quer que havia
feito a CIA desaparecer...

384
Mas Niehaus tinha respostas — ao menos algumas
delas. Ela estivera próxima demais da verdade sobre o
que Greg e seus cúmplices estavam tramando. E ela já
sabia muito sobre os clones. Suas irmãs.

Irmãs de Vivi.

Cosima Niehaus era sua melhor chance de


compreender a verdade sobre Vivi Valdez. E só aquilo
bastava.

Um sorriso sem graça e cansado surgiu no rosto de


Niehaus.

Então os alarmes começaram a soar.

385
Episódio 08

Colheita de
sobreviventes

‘A missão secreta de Alison e Donnie


os leva a lugares tentadores e Vivi
conversa com as sestras.’
Anteriormente, em Orphan Black: TNC:

Rachel pró-clone identifica uma oportunidade, assim


como Davis. Jay e Vivi fazem uma aliança improvável.
Alison, Charlotte e Dana cruzam as fronteiras. Kira
começa a entender a magnitude do que está acontecendo.
Vivi invade uma instalação do Departamento de Defesa e
resgata Cosima.
Greg Kurzmann morava em um clichê. O clichê em
que ele vivia era um daqueles condomínios minúsculos,
com uma lasca de vista para um lago azul e o ruído sem
fim da Gardiner Expressway logo abaixo. O lugar não
devia ter nem quarenta metros quadrados. Os móveis e a
iluminação pareciam ter sido todos adquiridos de uma
mesma revista in-flight: eletrodomésticos de aço
inoxidável cobertos com marcas gordurosas de dedos, um
desconfortável sofá preto angular de couro, uma mesinha
de centro feita de vidro, uma TV widescreen 4K tão
grande que se curvava, como um satélite captador de
atenção. Janelas que iam do chão ao teto com isolamento
tão ruim que assobiavam e balançavam a cada vez que o
vento do lago Ontario passava por elas. O banheiro era
inteiramente feito com azulejos de um padrão grego.
Kurzmann tinha lençóis negros abaixo da cabeceira de
couro sintético, com algemas de couro falso para
completar. Era o zênite da banalidade. Claramente
apenas para tentar aparecer.

Alexander Davis estremeceu ao se sentar na


invenção ultramoderna que Kurzmann confundira por
uma cadeira. Era uma protuberância feita de ardósia
cinza que o segurava como que para um exame de
próstata. Cheirava a impressão 3D. Provavelmente era.
Provavelmente soltava gases petroquímicos que davam
câncer a ele naquele exato momento. Mesmo assim, era a
melhor peça de móvel com uma vista clara para a porta,
o que significava que Davis veria Kurzmann assim que
ele entrasse.

388
Quando Kurzmann finalmente chegou, sua
aparência estava horrível. Múltiplos cortes em seu rosto
e em seus braços, olheiras profundas em volta dos olhos
que demonstravam que dormira pouco. Ele tinha o olhar
de mil jardas de um homem que acabara de dirigir por um
longo caminho, abastecido por café e demasiados donuts.
Davis viu aquilo pela luz da geladeira de Kurzmann,
enquanto o homem procurava dentro dela uma garrafa de
uma insípida cerveja mexicana. Kurzmann não se
incomodara em acender as luzes da casa. Quando ele se
virou, Davis pegou seu isqueiro e acendeu um cigarro.

Kurzmann derrubou a garrafa, que se quebrou no


chão. “Merda!”

“Olhe o linguajar, Sr. Kurzmann.”

Kurzmann não disse mais nada, apenas puxou uma


arma: uma Glock 23, que parecia comicamente grande
demais em suas mãos.

Davis piscou devagar para ele. “Você ao menos sabe


usar uma dessas, Sr. Kurzmann? Pensei que não faziam
muito sucesso, aqui em cima.”

“É, bom, ao contrário do senso comum, não somos


todos maricas frescos e bonzinhos aqui. Alguns de nós
realmente sabe como fazer as coisas acontecerem. Agora
quem diabos é você?”

“Alguém que quer lhe oferecer um acordo.”

389
Kurzmann franziu a testa. “Que tipo de acordo?” Ele
piscou e balançou a cabeça. Parecia que algo havia
travado em seus processos cognitivos básicos. Talvez fosse
pela exaustão ou por causa de algum golpe forte na
cabeça. “Digo, como chegou até aqui? Como entrou?”

Davis balançou a mão. “Eu tentaria comprar uma


casa melhor, da próxima vez. Uma vista do lago Ontario
não substitui uma segurança decente e uma boa relação
com seu porteiro.” Ele apontou para a arma. “Pode atirar
em mim, mas fazer isso só vai aumentar seus problemas.
E você parece já ter demais deles.”

Kurzmann franziu ainda mais a testa, mas colocou a


arma no balcão da cozinha (pequeno, negro, feito de
mármore). Não que o espaço em que ele estava pudesse
realmente ser considerado uma cozinha. Era mais como
uma coleção de eletrodomésticos amontoados uns sobre os
outros com uma pia no meio. Kurzmann se voltou para a
geladeira, então olhou com cautela para Davis. “Quer
uma cerveja?”

“Não, obrigado.”

Kurzmann pegou uma nova garrafa, se desviou dos


estilhaços de vidro e das poças de cerveja derramada e se
dirigiu ao que era para parecer uma sala de estar decente.
Afundou-se devagar no sofá moderno falsificado. O couro
— ou mais provavelmente poliuretano — rangeu e
enrugou enquanto ele arranjava uma posição confortável.
Era impossível. Nada no condomínio era feito para se ter
conforto. Davis imaginou que a casa de Kurzmann em
390
Ottawa fosse muito melhor. Isso aqui era só um lugar
substituto para se ficar.

“Quem é você, de verdade?”

Davis cruzou as pernas. “Um emissário de seus


vizinhos do sul.” Ele disse. “Estou aqui por algo que foi
prometido a mim.”

“Por— o quê? Olhe, imbecil, eu nem sei quem é você.


Não te prometi porra nenhuma.”

“Sturgis prometeu. Me prometeu uma arma. E, até


onde sei, você é o único que pode me entregar isto.” Antes
que Kurzmann respondesse, Davis tirou sua própria
arma e a apontou para o rosto dele. Sem deixar que a mira
da arma vacilasse, ele casualmente apoiou o cigarro sobre
a ponta da cadeira, se levantou e foi até o balcão da
cozinha, então tomou posse da arma de Kurzmann com a
mão livre.

O rosto de Kurzmann estava tomando um tom


agradável de roxo avermelhado.

“E aí?” Davis perguntou, movendo a arma para mirar


no joelho esquerdo de Kurzmann.

“Eu— olhe, eu não estou com ela! Foi roubada!”


Davis assistiu o medo de Kurzmann mudar para raiva.
Não era nada intimidador, mas era o tipo de frustração
desesperada que sugeria honestidade. “Ei! Vizinho do
sul? Foi você quem enviou aquela clone espiã atrás de
mim?”
391
Davis ficou estático.

Kurzmann riu. “Bom, então você já tem a arma. Ela


a tomou de mim algumas horas atrás. Trabalhe melhor
na comunicação entre seus departamentos, cuzão.”

“Essa operante em particular não trabalha mais


para nós.” Davis disse suavemente. Mantendo a arma
focada em Kurzmann, ele escorregou de volta para a
cadeira. Era hora de retornar para uma conversa ao invés
de intimidações. “Ela é muito, muito perigosa.”

“Não precisa me dizer!” Kurzmann rosnou, indicando


seus ferimentos.

“Qualquer informação que você possa compartilhar


sobre aonde ela pode ter ido, o que quer que seja, pode ser
de grande ajuda para mim e bem vantajoso para você.”

“Não sei para onde ela foi.” Kurzmann disse, agora


relaxado o suficiente para tomar outro gole de sua
cerveja. “Mas eu posso te dizer com quem ela foi.” Ele
engoliu com um som alto, claramente valendo-se de seu
momento de vantagem. “Ela libertou uma das outras
clones, Doutora Cosima Niehaus, e fugiu com ela.
Provavelmente estão se juntando. Todas elas e aquele
amigo delas do Serviço de Fronteiras, o que tem a filha
clone.”

“Entendo.” Davis possuía um dossiê com todas as


clones publicamente identificadas, com um foco especial
naquelas na área de Toronto. Ele sabia exatamente quem
Cosima Niehaus era. Ele tinha algumas informações
392
sobre as outras, mas queria mais. Ter a posse da arma era
seu objetivo, mas ele precisava de mais dados sobre as
clones canadenses para conseguir eliminá-las.

“Não acho que tenho de enfatizar muito isso...” Davis


disse com calma, balançando levemente a arma para
enfatizar. “Mas se você recuperar a arma, espero receber
a cópia a mim devida.” Ele preferiria muito que o Canadá
não botasse as mãos em cópia alguma, mas ele poderia
cuidar disto uma vez que a arma estivesse em sua posse.

“Hum...” Os olhos de Kurzmann passaram pela arma


e ele claramente considerou sobre questionar a respeito
de Davis ter invadido em seu apartamento, mas então
tomou uma decisão. “OK, bom, eu tenho um plano.”

Davis levantou as sobrancelhas e acenou com a


ponta da arma como que para encorajar que ele
continuasse.

“Sturgis tinha uma cópia em back up, tenho certeza.”


Kurzmann lambeu os lábios. “Tenho pessoas no
apartamento dele, procurando no carro dele, no bar
preferido dele, no clube do qual ele era membro. Vamos
encontrá-la.”

“Excelente.” Davis disse, acendendo outro cigarro


com apenas a mão livre. “Então tudo que tenho de fazer é
vigiar você.”

Kurzmann ficou pálido e tossiu. “Você não pode


fumar aqui.” Ele disse. “Eu tenho cartuchos—”

393
“Vaping é para crianças, Sr. Kurzmann.” Davis deu
um bom trago em seu cigarro. “Verei o que posso fazer
sobre Valdez.”

“Sabe...” O rosto de Kurzmann se contorceu num


sorriso especulativo que Davis ainda não sabia se o
agradava. “Talvez eu possa te fazer um favor nisso.”
Davis franziu a testa com a palavra favor e Kurzmann
tossiu de novo. “Hum, o que quero dizer é que, se quiser
ir atrás das clones, tenho algo que pode ajudar. Sabe,
tenho o genoma delas, do teste que Sturgis fez.”

“Esse teste...” Davis começou, então fez uma pausa


para controlar sua raiva. Não havia necessidade de
Kurzmann saber que ele queria que o teste tivera sido
fatal, queria aquele jeito fácil de se livrar do irritante
problema de um programa inútil, arriscado e caro que
seria um desastre de relações públicas para a agência
caso vazasse. Clonagem humana se encontrava no mesmo
nível de experimentos psiônicos, até onde ele sabia. Ele
podia imaginar as manchetes: O HOMEM QUE VIGIA
CLONES. “Foi só um vírus brando. Todo mundo se
recuperou.”

“Sim...” Kurzmann concordou. “Mas essa é a


genialidade da arma TAG, não é? Seria fácil conectar o
genoma a um vírus muito mais fatal, extremamente
contagioso, e pessoas sem os marcadores genéticos — não-
clones — ainda seriam vetores.”

“Você fez isso?” Davis perguntou, com um respeito


relutante.
394
O sorriso malicioso de Kurzmann aumentou. “Tive a
sensação de que elas seriam um problema. E mais, eu
queria realizar mais testes e esse era um genoma
completo e fácil para se trabalhar. Corri várias amostras.
Tenho algumas naquele refrigerador ali, se quiser levar
com você.”

Algo na lógica de Kurzmann não se encaixava. “Se o


vírus é inofensivo a um não-clone, como você, por que não
apenas injetá-lo em si mesmo e sair pela porta sem que
ninguém soubesse?” Ele viu o sorriso de Kurzmann
começar a se desfazer. “Não me diga que tem medo de
agulhas, Sr. Kurzmann.”

“Ei, fique à vontade, OK?” Kurzmann gesticulou


para o refrigerador. “Tenho algodão e álcool no banheiro,
pode injetar essa merda em suas veias quando quiser.
Mas não venha chorando para mim se alguém fizer disso
uma arma antes de você. No instante em que outra pessoa
descobrir que você tem os marcadores, eles podem gerar
um vírus que almeje você. E então TAG, você está morto.”
Kurzmann tomou outro gole da cerveja. “Tem inimigos?
Por que essa seria uma fraqueza que eles adorariam
explorar.”

“Não muitos.” Davis disse. “Não mais.”

395
Top to Bottom era uma construção vitoriana
remodelada e situada no centro de Toronto. Tinha três
andares de diversão, dois bares, uma piscina interna e
sauna e um sistema simples de pulseiras para indicar
quem consentisse em participar. O funcionário que levava
Alison e Donnie até o vestiário explicava tudo enquanto
subiam as escadas. “Vocês estão com a pulseira branca,
então todos sabem que são prospects. Isso significa que
irão esperar até que vocês os abordem.”

Mas o homem que os seguia desde o foyer parecia


persistente. Estava começando a parecer estranho. “Ele
está seguindo a gente?” Ela perguntou a Donnie,
enquanto eles passavam por um workshop de Shibari e
nós japoneses seguros.

“Quem?” Donnie perguntou. Seus olhos estavam em


um casal de idosos parado na fila do swing, ambos falando
um pouco alto demais sobre a recente viagem para
esquiar em Blue Mountain e sobre como desejavam que
mais pessoas do clube se juntassem a eles na próxima vez.

“Aquele cara...” Alison disse. “O cara com as


tatuagens feias.”

“Todo mundo aqui.” Donnie disse. “Talvez ele te


reconheça.”

O estômago de Alison revirou. Claro.

Não bastava que seu retorno a Toronto aquela


manhã havia sido atrapalhado pela preocupação com uma
Charlotte que ainda se recuperava. Ou pela fascinação de
396
Sarah e Delphine com a mais nova clone americana,
Dana, que se juntara a elas na viagem através da
fronteira. Ou mesmo pela explicação de Donnie sobre
porque eles precisavam visitar a Top to Bottom de novo.
Mas o frenesi acerca da descoberta de clones não havia
diminuído.

Existia uma grande chance de que todos no clube


soubessem que ela era uma clone. Existia algum fetiche
de clone? Se não existia antes, com certeza existia agora.
Tinha um termo para isso, uma piada que Cosima fizera
uma vez, algo como Regra 69? Ela deu de ombros. Ela e
Donnie haviam entrado para o clube a mando do livro
best-seller de um conselheiro de casamentos francês,
apenas para esquentar as coisas, não por terem algum
desejo de serem objetificados.

Bom, não mais do que o razoável. Donnie atraía um


público um pouco distinto do dela. O homem quebrara
mais corações de ursos do que Christopher Robin.

“Acha que todo mundo aqui sabe?” Alison sussurrou,


enquanto entravam no vestiário. O homem os seguia.
“Sobre... você sabe o que?”

“Bom, estão todos encarando.” Donnie murmurou.


“Mas as pessoas tendem a fazer isso quando você... você
sabe.”

Alison arrancou as calças de yoga. “Todos aqui estão


pelados, Donnie.” Ela disse. “Aprender a se sentir
confortável com nossos próprios corpos é uma das

397
melhoras maneiras de lutar contra os padrões nocivos de
beleza que—”

“Tá, tá.” Donnie disse, tirando o suéter. “Qual


armário temos de procurar?”

“2194.” Alison disse.

“Aqui.” Donnie foi até o cofre de um jeito que Alison


achava ser apenas o jeito dele de tentar ser sutil. “Você
tem a senha?”

Alison acenou e se aproximou. O armário se abriu na


primeira tentativa. Dentro havia alguns apetrechos
habituais de clubes de sexo: camisinhas, lubrificante,
desodorante, um par extra de shorts de banho e
sandálias, um daqueles pentes de plástico inúteis que os
homens sempre pareciam carregar. Mas também havia
um molho de chaves e, junto a ele, um chaveiro que virava
um pen drive. Suas mãos se fecharam sobre aquilo e ela
fechou a porta do armário. Logo após, as mãos grandes de
um homem se apoiaram nele.

“E aí.” Disse o homem que havia os seguido.

“Boa noite.” Alison disse, levantando o queixo e


evitando contato visual. “Já conheceu meu marido, o
Donnie?”

O homem não respondeu, apenas bufou. “Tanto faz.


Vou facilitar as coisas para você. Me dê o que acabou de
pegar desse armário e eu não pinto as paredes dessa sala
com seu cérebro. OK?”

398
Ao lado dela, Donnie engasgou. Alison apelou para
seu treinamento em teatro para obter inspiração. Ela
respirou fundo, puxando ar até seu diafragma. O que
Sarah faria nessa situação? Sarah certamente não
deixaria esse bandido pegar o pen drive. Alison arriscou
um olhar a ele. Ele havia se despido, assim como eles,
possivelmente para evitar suspeitas.

“Você não parece bem equipado o suficiente para


causar nenhum estrago.” Ela disse.

As orelhas dele ficaram rosas, assim como outras


partes também. “Querida, você não é meu tipo.” Ele
acenou com o queixo. “Já ele? Eu cairia em cima como a
fúria de Deus.”

Em um só movimento, Donnie conseguiu recuar


envergonhado ao mesmo tempo em que estufou o peito
com orgulho.

“Bom, isso é algo que temos em comum, então.”


Alison disse. “Talvez possamos ser amigos, afinal.”

“Vou pensar. Tudo que tem que fazer é me dar o pen


drive. Amigavelmente. Então vou levar até o cara que
está me pagando e vocês dois podem curtir a noite como
preferirem.”

Alison assistiu ao casal de idosos entrarem no


vestiário acompanhados de duas mulheres maduras com
cabelos combinando em estilo rockabilly. O casal deve ter
se cansado de esperar o swing. Em qualquer outra noite,

399
Alison teria tomado isso por uma oportunidade de entrar
na fila.

“Ou o quê?” Alison perguntou, aumentando sua voz.

“Ou tomo de você à força.” O bandido disse, apesar


de seus esforços para soar densa e séria.

“À força?” Alison aumentou ainda mais sua voz. O


casal idoso, que passava por ali, parou e franziu a testa
para eles, então para o homem que se inclinava para cima
dela. Alison apertou o pen drive em seu punho fechado.
“Eu não consinto com sua oferta, senhor!” Ela gritou.
“Você está violando o meu espaço!”

As mulheres punk rockabilly que haviam entrado na


sala interromperam o ato de desfazer o nó de suas botas.
“Algum problema?” Uma delas perguntou.

“Sim!” Disseram Donnie e Alison, em uníssono.

“Esse homem está assediando minha esposa!”


Acrescentou Donnie. “Ele está violando as regras da
placa!”

Ele apontou para a grande placa na entrada do


vestiário, que dizia SEGURO, SÃO E CONSENSUAL,
24/7, 365. O casal idoso e as duas mulheres estreitaram
os olhos. Um cavalheiro muito bem aparado — em todos
os sentidos — com um cabelo curto cor de algodão doce
rosa entrou no vestiário. Seus arreios piscavam com LED
rosa ao ritmo da música lá fora e ele vestia uma pulseira

400
preta que indicava que ele era um membro que podia ser
seguramente abordado em caso de assédio.

Por um momento, todos se encararam intensamente,


como em algum tipo de duelo ao final de um filme
profundamente erótico de cowboys.

“Senhor, tem algum colega que possa falar por você


aqui?” O homem com arreios perguntou ao bandido.

“Hum...”

Alison decidiu aproveitar a chance. “Ele é um


pervertido com clones!” Ela apontou para o bandido e
recuou para perto de Donnie. “Ele disse que se masturbou
enquanto assistia minha irmã na TV e que fui feita em
laboratório para satisfazer as fantasias pervertidas dele!”

“OK, tá bom, já chega.” O homem de arreios disse, se


aproximando do bandido com as tatuagens feias.

O bandido pareceu perceber em que situação estava,


se esquivou para a esquerda e tentou correr para fora do
vestiário.

“Sem correr aqui dentro!” Donnie gritou, apontando


para outra placa na parede oposta da sala.

O homem de arreios agarrou o bandido e lutou com


ele no chão com uma eficiência brutal a qual, em outras
circunstâncias, Alison teria achado altamente erótica.

401
“Eu odeio noite dos solteiros.” A pequena idosa disse.
Então ela franziu a testa. “Espere, você disse clone?”

402
“Sabe, acho que me assumir clone para os meus pais
foi bem mais estressante do que propriamente sair do
armário.” Cosima disse.

A sargento Priyantha olhou para ela pelo retrovisor.


“Seus pais sabiam?”

“O quê? Que eu era gay? Ou clone?”

A sargento deu de ombros. “Os dois.”

“A coisa de clone é mais recente. Eu só disse a eles


depois que Delphine e eu tínhamos certeza de que iríamos
nos casar. Já eu ser gay já era coisa antiga. Tipo, acho que
sabiam antes de mim? Se é que isso faz sentido? Eles
sempre foram muito tranquilos e facilitaram as coisas.
Dizer a eles que eu era um clone foi bem mais difícil.”

“Em que sentido?”

Vivi reconhecia aquela técnica. A Sargento


Priyantha estava tentando manter Cosima falando. Se
continuasse falando, o trauma não tomaria conta dela.
Ela não se afastaria totalmente. Eles poderiam falar
sobre qualquer coisa, desde que fizesse Niehaus se sentir
mais confortável. Mas o rádio estava ligado e a exposição
dos clones estava em todas estações. Na verdade, aquilo
provavelmente era o que afastava Niehaus do trauma: o
choque de descobrir que as clones haviam sido expostas
foi maior do que o horror de ficar presa, das ameaças de
deportação e de ser tratada como uma cobaia de
laboratório. Ela comentara sobre como elas sempre
souberam que tinham de se preparar para aquilo, mas
403
que era tudo tão inesperado, ficara um pouco em silêncio,
então fizera alguns comentários sobre os avistamentos de
clones por todo o mundo, pois aparentemente ela conhecia
todas elas. Ao ouvir a entrevista de uma mulher esnobe,
a voz calma e ríspida descrevendo sua experiência como
uma clone, Niehaus dissera “É, você que se foda, Rachel.”
E então desligara o rádio.

Então agora elas falavam sobre o que fora até agora


o maior segredo de suas vidas. Um segredo que Vivi
apenas começara a processar, antes que o resto do mundo
descobrisse sobre aquilo. Bom, não o resto do mundo. Seus
pais deviam ter sabido a verdade. Havia participado do
programa com as ‘primas’ dela. Eles sempre souberam. E
sempre esconderam isso dela. Eles sabiam que ela sentia
falta das outras meninas. Eles sabiam o porquê. Eles
assistiram enquanto ela se isolava mais e mais, se
tornando cada vez mais resistente. E mesmo assim,
esconderam a verdade dela. Será que eles planejaram
algum dia dizer a ela? Ou a emboscada na Venezuela que
terminou suas vidas chegara cedo demais para que eles
planejassem qualquer coisa?

“Acho que me ajudou ter aprendido como manter


segredos.” Niehaus dizia agora, como se tivesse lido os
pensamentos de Vivi. Vivi refletiu sobre isso. O quão
próximo eram seus respectivos padrões de pensamento?
Existia algum tipo de conexão em rede mental entre as
clones? Ou se tratava apenas de um traço genético, como
o pedacinho de pele ressecada entre as sobrancelhas? “Eu
mantive esse segredo sobre mim por tanto tempo...”
404
Niehaus continuou. “Que esconder outro foi bem fácil. Foi
como se eu tivesse trocado um pelo outro. Mas eu já havia
saído do armário há anos quando descobri tudo isso, então
acho que não foi bem uma troca entre iguais.”

“Por assim dizer.” Vivi disse, antes que pudesse se


conter.

Ao lado dela, Niehaus se inclinou para trás e olhou


Vivi de cima a baixo. “Você acabou de... fazer uma piada?”
Niehaus cutucou seu braço. “Você está bem? Bateu a
cabeça? Deixe-me ver suas pupilas. Talvez tenha uma
concussão, se realmente está tentando ser engraçada.”

“Eu sou engraçada.” Vivi disse. “As pessoas


costumam me achar engraçada.” Arun achava.

“Sei.” Niehaus voltou a falar com Priyantha.


“Respondendo sua pergunta de antes, acho que eu me
preocupava de eles não acreditarem em mim, pensarem
que eu fosse louca ou pensarem que isso fosse algum
esforço louco de encontrar meus pais biológicos. Eu não
queria que pensassem que eu não fosse feliz com eles. Eu
não queria que eles pensassem que eu havia ido atrás dos
meus pais biológicos e então inventado essa teoria da
conspiração insana só para justificar minha existência.
Queria que fossem felizes por mim. Eu estava feliz por
mim.”

Agora foi a vez de Vivi encará-la. “Você estava?”

“Claro.”

405
Vivi franziu a testa. “Mas seu genoma foi patenteado
e você quase morreu.” Ela disse. “Múltiplas vezes,
inclusive agora há pouco. Tipo, duas horas atrás.”

“Bom, sim...” Niehaus disse. “Mas encontrei minhas


irmãs.”

“Aparentemente outros também as encontraram.” A


sargento disse, enquanto diminuía a velocidade até parar
no meio da rua.

“Uh...” Niehaus e Vivi tentaram ver a casa. Não era


fácil, com o enxame de caminhões de gravação, drones e
pessoas que tomavam o jardim. “Se esses bisbilhoteiros
matarem o meu bordo japonês, vou perder a paciência.”
Niehaus sussurrou.

“Vá pelos fundos.” Vivi sugeriu. “Você pode mostrar


seu distintivo para os vizinhos para que a gente pule a
cerca dos fundos.”

“Isso não é um uso apropriado do meu privilégio


como oficial.”

Vivi encontrou o olhar de Priyantha pelo retrovisor.


“Ei, pelo menos você tem a opção de usar o distintivo.
Deve ser bom, ter uma varinha mágica para te ajudar na
maior parte do tempo.”

“Pelo menos não trabalho para uma agência que


apaga minha existência quando as coisas ficam difíceis.”

Os vizinhos foram bem atenciosos. Se sentiam


terríveis, apenas terríveis, com esse ataque da mídia em
406
Trinity Bellwoods. “É péssimo.” A mulher que abrira a
porta para elas disse, enquanto as levava por uma galeria
de arte moderna que, por acaso, também era uma cozinha
e um solário. “Digo, deixamos o Brasil para fugir de coisas
assim, sabe?”

O sr. Afonso uma vez fora, de acordo com os vários


troféus na estante, a estrela de uma telenovela de
sucesso.

“Lembre-se de fechar as cortinas, OK? Eles mandam


essas câmeras pequenininhas pelas janelas... As
pequenas, que parecem insetos... Que parecem—”

“Mosquitos.” Vivi disse, para se distrair de Niehaus


estremecendo ao seu lado.

“Sim, como parasitas, sanguessugas, todos eles e as


câmeras deles também. Péssimo.” O sr. Afonso fez uma
pausa para dar dois beijos nas bochechas de Niehaus.
“Aqui, não estrague suas roupas, use essa escada.”

A porta dos fundos reconheceu Niehaus e as deixou


entrar. A porta mal abrira para elas quando um borrão
loiro agarrou Niehaus. “Cosima.” Era a mulher que havia
ameaçado Vivi com a seringa, um outro lado
completamente diferente dela. “Cosima, Cosima,
Cosima.”

A Francesa beijava toda a esposa: a nuca, as


bochechas, a ponta do nariz, até que Niehaus
redirecionou sua atenção e seus lábios se encontraram.
Vivi assistiu à tensão se esvair de seus corpos ao ficarem
407
juntas, balançando, seus braços e lábios se tocando. Então
o beijo acabou e elas encostaram as testas.

A outra psicopata, Sarah, surgiu da sala de estar e


entrou na cozinha. “Você está bem, Cosima?”

A clone alegre, Alison, entrou logo depois. “É, você


está bem? O que aconteceu? Precisa de alguma coisa? Fiz
uma sopa. Bom, é mais um ensopado— na verdade, é meio
que um curry, mas é livre de glúten e vegano e tem muito
açafrão e gengibre e—”

“Quero um banho.” Niehaus murmurou.

“Está bem.” A esposa disse, a levando pelas mãos até


as escadas.

Um homem vestindo jeans e um casaco Raptor


entrou na cozinha. Ao lado de Vivi, Priyantha se enrijeceu
e pareceu ficar mais alerta. Que interessante.

“Oi.” Ele disse.

“Olá...” Priyantha disse. “Bom te encontrar aqui.”

“Quem é essa mesmo?” Sarah perguntou.

“Sarah, essa é a sargento Jaysara Priyantha.” Ele


disse. “Ela quem prendeu Cosima. E, imagino, ela quem
a soltou.”

“Ela não fez isso sozinha.” Vivi disparou.

“E você é quem esbarrou em nós no aeroporto.”


Alison levantou uma sobrancelha.

408
“Vivi Valdez.” Vivi disse. “CIA. Ou pelo menos eu era.
Provavelmente não sou bem vinda lá a esse ponto.”

“Ah, você é a amiga de Arun!” O rosto de Alison se


acendeu. “Ele falou coisas tão boas de você em Boston.
Estava tão preocupado. Você não tem ideia. Ele tentou
disfarçar, mas acho que ele estava pirando. Vai ficar feliz
de saber que você está bem.”

Vivi pensou que o nível de mortificação que ela


suportara até agora devia ter um limite, de alguma
forma. Ela ainda precisava definir. Parecia não ter fim.
Era como se todos os limites em sua vida decidiram
abruptamente se desfazer: o limite entre seu passado e
presente, o limite entre o trabalho e sua desculpa
miserável para sua vida pessoal. Claro que as clones
haviam encontrado Arun. Claro que eles conversaram
sobre ela quando ela não estava lá para se defender. Era
de se esperar, àquele ponto.

Alison passou ao seu lado para apertar a mão de


Priyantha. “Oi, Jaysara, sou a Alison. Este é meu marido,
Donnie e minha irmã Sarah. Você conhece Art e a filha
dele, Charlotte, está dormindo lá embaixo agora. Ela não
está se sentindo muito bem.”

“Ela está um pouco melhor agora, na verdade.” Disse


uma nova voz. “A febre abaixou um pouco. Pode parecer
estranho, mas acho que aqueles bombons ajudaram
mesmo. Acalmaram o estômago dela e ela conseguiu
tomar um pouco de sopa e...”

409
Vivi congelou. O rosto da recém-chegada não tinha o
aspecto mais velho que o das outras. Exceto pelo nariz
reto, era exatamente como o dela. Os pelos de sua nuca se
arrepiaram. Não podia ser. Por que ela estaria aqui? Por
que uma das clones americanas estaria aqui? O que
poderia as ter trazido até aqui?

“Vivienne?” A mulher disse, hesitante. “É você?” Ela


adentrou mais o cômodo, fechando uma porta atrás dela.
“Sou— não sei se se lembra de mim, mas sou Dana. Nós
éramos...” Ela hesitou, então engoliu em seco. “Éramos
amigas?” Ela parecia abatida e cansada e sua pele um
pouco irritada. Algum tipo de pasta verde que certamente
encontrara um caminho desde uma farmácia parisiense
até o arsenal cosmético de Delphine estava espalhada nas
partes mais irritadas. Ela vestia sapatos confortáveis,
uma blusa, calças de yoga e um par de brincos clássicos
de pérola que combinavam com tudo. Vivi se
impressionou novamente ao perceber que, apesar de
todas as similaridades, cada uma daquelas mulheres
tinham uma vida que ela não tinha. Cada escolha que ela
havia feito, elas haviam feito diferente.

Só que não havia sido exatamente escolha dela,


certo? Eles a tiraram do experimento. A tiraram de suas
primas, da família que fizera essa outra clone se sentir
tão confortável consigo mesma. E, de alguma forma, todas
essas clones, até as mais velhas, conseguiram ser bem
sucedidas e criar famílias e viviam vidas perfeitas,
enquanto ela havia sido apagada pelos seus próprios
superiores. Por que ela tinha que ser a estranha? Por que
410
ela e não uma das outras? O que havia de errado com ela?
Por que elas tiveram umas às outras e ela havia tido
apenas a memória da mulher que estava parada em sua
frente, que ela aprendera a tratar como uma amiga
imaginária?

“Oi, Dana.” Vivi conseguiu dizer. Ela não havia soado


indiferente, como pretendia, mas sim quase que
ressentida.

“Vivi...” Dana fez um movimento para abordá-la


como se quisesse a abraçar e então se interrompeu ao
perceber a expressão de Vivi.

Ou talvez seu cheiro.

“Tem outro chuveiro?” Vivi murmurou, não fazendo


contato visual com ninguém. “Eu acabei de invadir um
laboratório secreto da Defesa Canadense cheio de animais
cobaias e vírus para dar uma surra em alguns caras,
então não estou exatamente passando uma boa primeira
impressão aqui.”

“Um pouco tarde para se preocupar com isso, não é


não?” Sarah Manning resmungou.

411
Rumores locais diziam que uma vez houve um bar
secreto naquele hotel, o qual possuía apenas vinte e
quatro assentos e era estilizado como um submarino.
Havia portinholas que davam para um azul profundo e
brilhante. Então mentes mais modernas haviam tomado
a direção e o submarino havia se tornado aquele
mezanino. Agora Alexander Davis se encontrava sentado
ali, encarando a enorme cabeça de alce que pairava sobre
a lareira perigosamente grande do lobby do hotel. Em
seguida, um garçom se aproximou com um dry martini
aproximadamente do tamanho de uma piscina de criança
e um telefone.

“Estamos carregando seu aparelho atrás do bar,


senhor.” O garçom disse. “Se preferir fazer sua ligação de
lá.”

“Não, é local e eu não tenho um plano de viagens.”


Davis disse. “Eu não tive tempo de contratar um antes de
pegar meu voo. Planejando um funeral, sabe?”

O garçom empalideceu. “Oh, senhor, me desculpe.


Deixe-me ver o que posso fazer por você. Está hospedado
no hotel?”

“Sim.” Davis disse e pegou o telefone. “Obrigado.”

Quando o garçom foi embora, Davis bebeu um gole


de seu martini e discou o número. Foi atendido no terceiro
toque.

412
“Como conseguiu este número?” O sotaque afetado
do outro lado da ligação era ríspido e azedo como uma
maçã verde. “Quem é?”

“Sou alguém que pode encontrar seu número real de


telefone, Rachel.” Davis disse. “E sou alguém muito
interessado em quaisquer informações que você possa
compartilhar sobre suas irmãs.”

“Não são minhas irmãs.” Rachel disparou.

Davis sorriu. Aquilo seria mais fácil do que ele


pensara. “Me perdoe. Não quis pressupor nada.”

“É um repórter?”

“Não.”

“É da polícia?”

“Não. Mas posso manter a polícia longe de você. Acho


que você talvez gostaria da minha ajuda com isso. As
coisas estão prestes a ficar muito interessantes para você
e seus colegas clones, Rachel, mas especialmente para
você. Todos os tipos de investigações encerradas devem
estar sendo reabertas agora. DYAD. Dr. Leekie.
Brightborn. Você deve ter um dedinho em cada uma
delas, não é?”

Rachel riu. “Meu deus, você desenterrou isso tudo


sozinho ou teve que se conectar comigo no LinkedIn?”

413
“Eu gostaria de te ajudar a navegar por essas águas,
se me permitir. Eu assisti à sua entrevista recentemente.
Realmente acho que podemos nos ajudar.”

Houve uma longa pausa, durante a qual Davis tomou


outro gole do martini. Ele olhou de novo para a cabeça de
alce sobre a lareira. Daquele ângulo, parecia estar
lançando a ele um olhar de julgamento.

“Você trabalha com comunicação durante crises?”


Rachel perguntou.

“Eu lido com crises, sim.” Davis disse. “Para dizer a


verdade, eu preferiria discutir minhas especialidades
pessoalmente.”

Outra longa pausa. Talvez ele havia forçado a barra


demais. Rachel tinha razão em ser cuidadosa. Sem
dúvida, devia haver todo o tipo de esquisitões surgindo
desde que as clones haviam sido expostas e agora esta
atraente mulher havia se revelado como uma delas.
Provavelmente ela tivera de filtrar as propostas. Davis
estremeceu ao pensar no número de diretores de pornô
que deviam estar analisando novos e terríveis cenários
baseados na revelação da clonagem humana.

“Me encontre amanhã de manhã.” Ela disse. “ No


Artichoke Room, no centro. Amanhã. Às nove.”

“Eu deveria saber onde é isso?”

414
“Se você conseguiu encontrar este número, então
certamente saberá encontrar o lugar.”

415
‘Coragem líquida’ parecia ser a única solução para o
tipo de constrangimento social que pairava ali. As clones
de segunda geração se encontrando após uma separação
prolongada; Cosima interagindo com a policial que a
prendera; a mesma policial despertando algum tipo
profundamente esquisito e provavelmente tóxico de
química em Art; Art bravo com Charlotte por ter fugido;
Charlotte doente com o que quer que fosse que a
americlone Dana tinha; Alison e Donnie tendo frustrado
alguém que havia tentado tomar o pendrive de Sturgis
deles no sex club do qual eles eram membros.

Sarah precisara de um pouco de alvejante mental ao


descobrir aquele último pequeno detalhe. O que explicava
porque ela estava bebendo algo de uma garrafinha a qual
Cosima havia rotulado como ‘vinho das fadas’. Sarah
suspeitava que fosse algum tipo de piada que ela já não
estava sóbria o suficiente para entender. Assim como as
trufas, o vinho de fadas era caseiro e seu gosto era como
se alguém tivesse misturado perfume hippie com cachaça.
Pequenos pedacinhos de ervas secas e gomos de frutas
nadavam no fundo do recipiente. Alquimia, Cosima havia
dito a ela ao vê-la tomando o primeiro shot, era a base de
toda a ciência.

Ainda não bêbada o suficiente para esquecer sobre o


pendrive, no entanto. “E aí?” Sarah disse, interrompendo
uma Dana que contava a Cosima e Alison como havia sido
crescer em um grupo consciente de primas clones,
enquanto Art e a oficial observavam do sofá como figuras
parentais benevolentes. Vivi estava encostada
416
sinistramente como a parede, como uma adolescente
carrancuda com habilidades assassinas. “Você já
decodificou o drive?”

“Oh, hum, deixe-me ver.” Cosima disse, levantando-


se de onde estava sentada no chão para abrir seu
notebook. “Sabe, você quase me faz querer ter optado por
ciências sociais.” Ela disse a Dana por sobre os ombros,
que riu.”

“E você me faz querer aprender mais sobre biologia


evolutiva.” A clone mais nova respondeu enquanto o
computador de Cosima apitava.

“E aqui estamos. Delphine!” Cosima gritou e sua


esposa veio da cozinha e se juntou aos outros atrás de
Cosima que olhavam para o notebook. Vamos ver o que
temos aqui... Algum tipo de programa de computador...
Vocês acham que devemos enviar para o Scott para ele
avaliar?”

“Não acho que devemos enviar isso para ninguém.”


Vivi disse, a voz dela cortando a de todos os outros.

“Ela tem razão, Cosima.” Delphine disse. “Olhe isto.


E isto. É um programa para junção de genomas.”

A ansiedade no rosto de Cosima lentamente se


transformou em horror. “É a arma de Sturgis!”

“Claro que é.” Vivi resmungou.

“Não entendo.” Alison disse. “O que é essa coisa?”

417
“Genocídio.” Delphine disse.

“Isso aí...” Cosima disse. Ela soava vazia. Sarah não


a ouvia falar daquele jeito desde que ela estivera doente.
Mas soava como se todas elas pudessem estar correndo o
risco de ficar bem doentes e logo. Talvez Cosima estivesse
percebendo algo. “É um programa— um programa de
computador, feito para computadores especializados em
manipular material genético. Você pode usá-lo para
adaptar vírus, qualquer vírus que quiser, para que
almejem marcadores genéticos específicos.” Cosima
continuou. “Como uma chave-mestra. Ou uma chave
inglesa com vários tamanhos que você pode colocar ou
tirar.”

“Não entendo.” Donnie disse, encostado na parede


com uma garrafa de cerveja. “Por que alguém iria querer
direcionar um vírus?”

Cosima trocou olhares do tipo como-explicamos-isso


com Delphine. “Em teoria, parece uma boa ideia. Uma
maneira de almejar marcadores genéticos em uma
população em risco de certas doenças e imuniza-la.”

“E algumas pessoas tem tentado utilizar vírus para


atacar outras doenças, ao invés de tecidos saudáveis.”
Delphine acrescentou. “Mas isso possibilitaria uma
precisão cirúrgica.”

“Mas claro...” Cosima disse, suspirando. “Isso foi


feito para o Ministério da Defesa. E o que eles fizeram
com isso — ou pelo menos o que Kurzmann ameaçou fazer

418
comigo, não sei dizer se o Ministério realmente sabe disso
ou não — foi customizar um vírus que afetaria apenas
clones.”

“Foi por isso que eu e minhas primas ficamos


doentes.” Dana disse, do sofá.

“Sim. Mas aquele era um vírus não-fatal. Usado para


um teste, aparentemente.” Cosima cuspiu a palavra.
“Kurzmann preparou outro que... bem...”

“Que mataria todas nós.” Vivi disse de forma crua.


Sarah estava começando a gostar da espiã; ela parecia ser
bem direta com tudo. Ela se afastou da parede. “E, pelo
que ouvi, não foi o único vírus que ele fez.”

“Não é bem fazer vírus, mas sim customizar—”


Cosima começou a dizer, mas felizmente Delphine a
cutucou.

“E foi isso que Sturgis fez ser possível?” Art


perguntou. “Ele criou uma coisa que pode responder a
certos aspectos de um perfil genético e...” Ele não
terminou a frase. Ao invés disso, olhou para Charlotte,
que dormia no sofá com a cabeça no colo de Dana. Ao lado
dele, Jay encostou brevemente os dedos em seu braço.

“Temos certeza de que ele está morto?” Sarah se


ouviu questionar. “Não tem como matar ele de novo,
tem?”

419
Risadas vazias e tristes. Não era a melhor piada que
ela já havia feito, sim, mas serviu para aliviar as coisas
um pouco.

“Acredite em mim, não estou pronta para a fase


Cosima Niehaus, animadora de cadáveres da minha
carreira.” Cosima disse. “Acho que eles confiscariam
meus diplomas.”

“Então...” Sarah disse, mas foi quando o celular de


Charlotte tocou. Sarah não queria parecer enxerida
olhando a tela de seu celular — era mais uma reação
instintiva baseada em anos de tentar bisbilhotar o que ela
pudesse. E também o toque, Lizzo cantando “I just took a
DNA test’, entregou de quem se tratava.

“É a Kira.” Sarah disse, a meio caminho do sofá antes


até mesmo de que Charlotte estivesse acordada. Ela não
tinha certeza de quem a havia segurado o suficiente para
que Charlotte atendesse.

“Olá?” Charlotte soava sonolenta, mas ela piscou


algumas vezes e se sentou ereta. “Hum...” Ela olhou ao
seu redor na sala. Cada clone e pessoa adjacente a clones
olhava para ela. “Hum, sim, você poderia dizer.” Uma
pausa. “Sim, acho que seria melhor. OK, espere.”
Charlotte afastou o celular da orelha. “Kira tem algo para
nos dizer, então vou colocar ela no viva-voz. Vocês todos
tem que ficar quietos e ninguém — não estou
mencionando nomes — pode perguntar nada a ela. Ela
está bem e vai voltar para a casa quando se sentir
confortável.” Charlotte esperou pelo inevitável protesto,
420
mas sua assertividade parecia ter surtido efeito. Ninguém
interrompeu.

“OK...” Charlotte apoiou o telefone sobre a mesa de


café em frente a ela e apertou o botão.

“Olá, hum... todo mundo.” A voz de Kira soava


metálica e baixa através do auto falante, mas, mesmo
assim, aliviou o nó que havia se formado na garganta de
Sarah desde a última vez que ela havia falado com sua
filha. Ela olhou à sua volta para ver quem a estava
segurando: era Alison, quem lançou um olhar a ela de
imensa simpatia. Sarah acenou e afastou a mão de Alison,
então se acalmou e se sentou no tapete. Alison sentou ao
seu lado e apoiou a mão na dela.

“Estou... nessa vila.” Kira disse. “É no meio do nada.


E o prefeito da vila acabou de... ele acabou de morrer, de
alguma doença terrível que ele pegou de picadas de
mosquitos, mesmo estando no meio do inverno—” Sarah
percebeu que apertava com força a mão de Alison e se
forçou a parar. “O que acontece é que... sabemos que o
genoma dele estava na GeneKeep, mas foi roubado e...”

“Kira...” Cosima disse. “É uma vila francófona, por


acaso?”

Houve uma longa pausa. “Como você sabia?” Kira


perguntou.

Sarah enterrou o rosto nas mãos.

“É Nasgwine’g?” Perguntou Jay, tensa.


421
“O que está acontecendo?” Kira lamentou.

“É uma longa história.” Cosima disse. “Em resumo,


essa vila corre perigo e você tem que sair daí.”

“Não posso.” Kira disse, soando com raiva e


desesperada. “Eu prometi que tentaria ajudá-los e, além
disso, o vírus não me afeta, de qualquer maneira.”

“Mas existe outro que poderia!” Sarah gritou,


incapaz de se conter mais.

Silêncio. Não desligue, não desligue, não desligue,


Sarah pensou. Foi assim que Siobhan se sentira quando
ela decidiu fugir quando era adolescente? Ela realmente
ficara tão assustada assim e, de alguma forma,
conseguira esconder?

“Alguém pode explicar essa coisa de mosquito?”


Jaysara perguntou. “É o método de transmissão do
vírus?”

“Se forem iguais aos que vimos no laboratório de


Kurzmann...” Vivi disse. “Eles não são orgânicos e sim
minúsculo drones que imitam insetos.” Ela encontrou o
olhar de Jay. “É um mecanismo de dispersão aérea. Como
mantas da peste do século XXI. Se você os liberar em um
campo, eles não serão notados até que seja tarde demais.
As pessoas pensariam que um mosquito de verdade havia
as picado e espalhado a doença.”

“Wow...” Kira interrompeu. “Bizarro para caramba.”

422
“É como eles estão fazendo isso.” Cosima parecia
enjoada.

“Faz sentido.” Vivi concordou. “Não é exatamente


sutil fazer isso no inverno de Québec, mas testá-los em
temperaturas extremas pode fazer parte dos testes de
design.”

“A população desta parte do Québec já foi o foco de


várias pesquisas genéticas.” Cosima refletiu. “É chamado
de Efeito Fundador. Colonizadores francófonos chegaram
à área e então permaneceram isolados. A região é
conhecida por um certo—”

“Se você falar je ne sais quoi, te dou um tiro.” Vivi


interrompeu.

Cosima franziu a testa. “Eu ia falar gargalo


genético.”

“Muito bem.” Sarah bebeu mais um pouco do vinho


de fadas. Ela ofereceu um pouco a Vivi também. “Parece
que Kira precisa de back up. Agente Valdez, o quão bom
é o seu francês?”

Inesperadamente, a espiã enrubesceu. Até mais do


que Charlotte, ela lembrava a Sarah de quando ela era
mais jovem. “Eu, hum, na verdade não falo nada de
francês.”

423
“Eu falo.” Dana se voluntariou do sofá. Todos se
viraram para olhá-la. Dana sorriu. “Eu fiz meu trabalho
de campo de etnografia no norte do Québec.”

424
Rachel Duncan chegou ao Artichoke Room quase
meia hora mais cedo. Ela entregou ao homem na porta
seu sobretudo e seu cachecol, mencionou seu nome e pediu
gentilmente para ser levada à sala de encontros agora, ao
invés de esperar no salão de entrada até que seu
convidado chegasse. Ela tinha ligações a fazer e e-mails a
responder, ela havia dito. O concierge concordou e a
guiou, através de pilares espelhados e um longo bar de
mármore, por uma escada curvada, até o segundo andar,
onde uma sala de jantar privada se encontrava, oposta à
sala de jantar principal.

“A madame gostaria de um café enquanto espera?” O


concierge perguntou.

“Eu gostaria de uma garrafa gelada de champanhe e


o jamón iberico.” Ela disse. “Vocês servem iberico no café
da manhã, certo?”

“Sim, servimos. Mais alguma coisa? Talvez um


melão junto ao presunto? O chefe acabou de retornar do
mercado de St. Lawrence.”

Rachel adentrou o cômodo. “É uma boa ideia...” Ela


se pegou fazendo as contas do preço em sua cabeça, então
franziu a testa. Esses dias estavam acabados. Ela estava
retornando à vida que ela sempre merecera. Seu tempo
no call-center era apenas um obstáculo incômodo, um tipo
de punição cósmica, como se seu olho, seu ventre e seus
pais já não tivessem sido o suficiente. Fazer conta dos
preços — fazer orçamento de qualquer coisa que não para
atrair profissionais talentosos para um projeto — era
425
para perdedores. Para se ser bem-sucedido, tinha de se
passar a imagem de sucesso. Pessoas bem-sucedidas se
preocupavam com a conta? Não. Pelo menos ela não se
preocupava, antigamente. E não havia motivo para se
preocupar agora. Não quando o sr. Voz Esquisita do
Telefone pagaria a conta.

E ele pagaria. Se quisesse chegar a algum lugar com


ela, pessoalmente ou profissionalmente.

“Talvez algumas ostras também, mais tarde.” Ela


acrescentou.

“Chimichurri ou mignonette?”

Rachel sorriu. “Me surpreenda.”

Ele acenou, fez um pequeno gesto quase como se se


curvasse a ela e partiu. Ao sair, fechou as cortinas
douradas da porta, parcialmente bloqueando o interior da
sala do corredor. Ainda era muito cedo; os
empreendedores lá embaixo estavam tomando café e
croissants, não tendo o tipo de reunião que justificava
ostras e champanhe. Não o tipo de reunião que reverteria
a vida de alguém ou, pelo menos, a colocaria de novo no
trajeto certo.

Sem mais vinho barato, ela pensou. Sem mais


jantares de micro-ondas. Sem mais procurar cupons
descontos e juntar benefícios. Sem mais engarrafamentos
de trânsito. Pessoas como ela não eram feitas para andar
de ônibus.

426
Rachel olhou através das cortinas para se certificar
de que o hall lá fora estava completamente vazio, então
começou a examinar a sala. Ela começou passando os
dedos por debaixo das bordas da mesa, procurando
possíveis dispositivos de escuta. Então repetiu em cada
cadeira. Ela tirou uma pequena câmera e examinou os
cantos da sala. Nada. Sem vigilância, além do que o
restaurante já possuía. Isso não significava que o Sr. Voz
Esquisita do Telefone não teria seus próprios dispositivos,
claro. Na verdade, ela esperava que ele tivesse. Era por
isso que ela havia fixado uma câmera escondida e um
microfone ao seu blazer branco, na forma de um broche
que lembrava uma flor de crisântemo. O dispositivo
enviaria a gravação diretamente a um aplicativo em seu
celular, que a criptografaria e a armazenaria, na nuvem,
em um arquivo que só se abria com a chave dela.

Rachel poderia estar levando uma vida bem


diferente ao longo dos últimos anos, mas ela não se
esquecera do básico. Não se podia ser cuidadoso demais.
E sempre se deveria buscar por oportunidades de
vantagem. Sentada em uma das pontas da mesa, Rachel
ligou o dispositivo.

O concierge retornou alguns momentos mais tarde,


com uma garrafa de champanhe, duas taças e os
aperitivos. Atrás dele se encontrava um homem engurado
que fedia a cigarro. O estômago de Rachel se revirou.
Tudo sobre o homem gritava governo: o terno horrível, o
corte terrível de cabelo, o jeito suave e vazio.

427
“Olá, Rachel.” Ele disse, quando o funcionário se
retirou. Sua mão estava ressecada quando ela o
cumprimentou. A pele era quase como papel. Ele tinha
rugas como alguém que fumava há muito tempo. Isso
dificultava a determinação de sua idade. Ele poderia
estar próximo da aposentadoria ou poderia ser alguém de
meia idade que apenas envelhecia cedo. “Meu nome é
Alexander Davis.”

“Sr. Davis.” Ela disse.

“Não, por favor, Alex está bom.” Ele gesticulou para


a cadeira mais próxima a ela que ainda tinha vista para
o hall. “Posso?”

“Por favor.” Ela alcançou o champanhe. “Gostaria de


se juntar a mim?”

“Naturalmente.” Ele disse, assistindo enquanto ela


servia a ambos. Ela segurava as taças em um ângulo
perfeito para minimizar a espuma e finalizava o ato de
servir com um movimento de balanço ao final, para
capturar as últimas gotas. “Você faz isso muito bem.” Ele
adicionou.

“Meus pais pagaram uma fortuna em escolas de


etiqueta social.”

“Seus pais.” Havia ali um tom de questão que ele não


estava perguntando.

“As pessoas que me criaram.” Rachel disse.

428
Alex acenou. “Estou muito interessado em sua
história.”

Rachel espetou um pedaço de presunto e melão.


Desejou ter pedido também torradas de abacate também.
Seria tão insuportavelmente ubíquo que ela se sentiria
um estereótipo ao pedir. “Imagino que seria excelente
para a televisão.” Ela disse. “Eu poderia escrever uma
biografia dentro de seis meses, penso, e entregar para
produção.”

“É isso que você pensa que estou aqui para discutir?”


Alex tomou um pouco do champanhe. “Opções na mídia?”

“Não é?” Rachel sabia se fingir de burra, ou no


mínimo ingênua, se fosse necessário. Ela precisava que
ele admitisse para a gravação, quem ele era e o que
realmente queria. Assim, quando ele inevitavelmente
tentasse a passar para trás — esses homens enrugados e
tristes do governo sempre tentavam —, ela teria algo para
o impedir.

“Deixe-me mostrar a você o que estou aqui para


discutir.” Ele disse, alcançando algo em seu bolso. Por um
momento, Rachel teve a terrível sensação de que ele
estava prestes a se expor. Talvez ele fosse algum tipo de
agente. Talvez aquilo fosse um Teste do Sofá. Ela
descansou a mão sobre a mesa e usou a toalha de mesa
para puxar o balde de gelo e a garrafa de champanhe até
seu alcance.

429
Mas ele retirou um dispositivo e o colocou sobre a
mesa. Rachel não reconhecia a marca. Parecia grosseiro,
como algo a ser usado em algum tipo de campo de
combate. A sensação em seu estômago piorou. Ela assistiu
enquanto Alex acionava o dispositivo. Ela assistiu a ele
passando pelos menus. Então assistiu enquanto ele
revelava o rosto de Alison. Então Cosima. E, finalmente,
o rosto de Sarah Manning. Diferente das outras fotos,
aquela não era só dela. Era a fotografia de duas moças:
mãe e filha.

“É sobre isso que eu queria falar.” Ele disse. “Acho


que você conhece estas mulheres. Acho que sabe quem
são. E acho que você pode nos apresentar.”

Kira estava tão crescida. Ela estava alta, como o pai,


mas ela tinha os olhos de Sarah e o mesmo cabelo
bagunçado. Ela ainda tinha as covinhas. Parecia feliz.
Naquele momento, algo se abriu dentro de Rachel que não
se abria há anos, uma porta que ela mantivera trancada
há tanto tento que a fechadura enferrujara, tornando-se
tão fragilizada quanto o resto dela.

Ela machucaria aquele homem. Ela o mutilaria.


Permanentemente.

“Você parece bom o suficiente para se apresentar


você mesmo.” Rachel murmurou. “Não vejo porque
precisa de mim.”

430
“Preciso que você me diga o que sabe.” Ele disse.
“Quem são essas mulheres? O que as faz funcionar? Elas
cooperariam com pesquisas futuras?”

Rachel arrastou seu olhar para longe do rosto de


Kira. A foto claramente fora retirada da rede social de
outra pessoa, era uma foto em grupo, tirada em alguma
festa. Kira claramente ria de algo que alguém havia
falado. Quantas vezes, durante aquele período de sua
vida, Rachel realmente fora feliz? Ela se sentira
confortável, claro. Satisfeita, em seus dias bons. Ocupada,
em todos os outros. Havia cavalos e lições de dança e
piano e outras ‘realizações’ para jovens moças que
pareciam saídas de uma novela de Austen. Mas ela algum
dia já inclinara a cabeça para trás e gargalhara? Ela já
havia se soltado daquele jeito? Ela não conseguia se
lembrar. Mas ela duvidava muito.

Kira era diferente. Ela era feliz. Kira tinha uma


chance. Talvez não fosse a chance de ter uma vida feliz,
mas era a chance de ter uma vida completa. Uma vida
cheia. Uma vida longa. Tão longa que esse caçador
imbecil jamais colocasse as mãos nela.

Ela formulou as próximas palavras com cuidado. “O


quanto isso vale para você?”

Alex sorriu. “Tenho certeza de que podemos chegar a


algum acordo.”

431
“Não quero acordos.” Rachel disse. “Eu quero um
contrato. Quero uma nova vida. Quero a minha vida
antiga de volta.”

Era bom, dizer aquelas coisas em voz alta. E era


seguro admitir aquilo, pois ela estava prestes a acertar a
cabeça do homem com a garrafa de champanhe e então
pegar o próximo voo no aeroporto.

“Acredito que posso te ajudar a obter ao menos


algumas destas coisas.” Ele disse.

“Pode?” Rachel decidiu testar sua intuição. “O


governo americano está preparado para isso, para uma
clone canadense como eu?”

Se possível, Alexander Davis ficou mais pálido do


que já era. Então ele tentou disfarçar com um sorriso
pesaroso. “É tão óbvio assim?”

“Só para os experientes.” Rachel negou. Ela alcançou


o balde de gelo, encheu as taças e usou aquilo como
oportunidade para deixar tanto o balde como a garrafa
dentro de seu alcance. “Agora. Meus termos. Você tem
razão, eu tenho muita informação para compartilhar.
Sobre a DYAD, sobre o Dr. Aldous Leekie, sobre a
engenharia couture—”

“Couture?”

Rachel suspirou. “Design.” Seu filisteu maldito, ela


acrescentou, mentalmente. Ela limpou a garganta.
“Engenharia genética de design que acontecia nos

432
laboratórios de fertilidade da Brightborn, até as
atividades da Neoevolução e o destino final de P. T.
Westmoreland.”

Ela bebeu um gole da taça, para ganhar um pouco de


tempo. “Alguma destas coisas te interessa?”

Ela não precisava perguntar. A avareza escrita na


expressão de Davis era o suficiente. Suas pupilas e
narinas estavam dilatadas. Suas mãos contraídas sobre a
toalha de mesa, agarrando-a, como se ele pudesse puxar
os segredos dela com seus dedos velhos.

“Acho estas coisas muito interessantes, sim. Veja,


até recentemente eu não fazia ideia de sua existência. E,
para alguém em minha posição, isso é bem preocupante.
Eu quero saber o máximo possível sobre como todos os
envolvidos mantiveram esse segredo e sobre quem do seu
governo mentiu para quem do meu.”

Rachel acenou. “Em troca de informações sobre o


projeto LEDA, e minha cooperação em compartilhar, você
vai me ajudar a reestabelecer o estilo de vida ao qual
estou acostumada.”

Os lábios de Davis se contraíram. Um sulco começou


a se formar entre suas sobrancelhas rebeldes.

“Passei anos pensando sobre o que eu precisaria para


retornar à alta sociedade.” Rachel disse. “Eu quero uma
casa. Não uma casa grande. Algo de bom gosto. Na Bridle
Path. Talvez em Rosedale. Eu concordaria até com algo
em Scarborough Bluffs, se fosse a propriedade certa.
433
Existem opções modernas adoráveis por aí agora. Meu
ponto é, quero sair do meu apartamento e não vou me
contentar com algum condomíniozinho minúsculo no
centro.”

Alexander Davis pareceu particularmente satisfeito


com aquele pedido. Talvez ele fosse interessado em
imóveis. Rachel não desejava descobrir. O mais
importante era que ela saísse dessa sala. Mas não antes
de fazer Davis pensar duas vezes sobre seus planos para
Kira.

“Também quero que minha associação ao Clube de


Oxford seja restabelecida. E também minha associação ao
VeraCity, o clube exclusivo para mulheres.”

Davis piscou. “Isso parece... razoável. Claro, em


relação à casa, isso é um pouco—”

“Eu precisarei, claro, de uma linha de crédito na


Kasturi e Rowe.” Ela continuou. “Não tenho certeza se
Michael ainda dá esse tipo de consultoria, mas preciso
dele. Não posso me erguer das cinzas sem a ajuda dele.”

“Michael...?”

“Eles saberão de quem estou falando. Peça pelo ex-


estilista da sra. Duncan.”

Dois pontos de cor surgiram no rosto de Davis. “Isso


é um pedido complicado.” Ele começou a dizer.

“Bom, pense assim...” Rachel disse. “Você não é do


único governo interessado em décadas de pesquisa de
434
ponta sobre clonagem humana. Eu terei outras ofertas.
Estou te dando a chance de adoçar a sua.”

Davis esticou o braço para apertar sua mão. Ela fez


um movimento para apertá-la, mas ele a mantinha
estranha abaixada, como se seu pulso não estivesse
dobrando direito. Havia algo escondido sob sua manga,
como uma caneta esferográfica sem tampa.

Era uma seringa.

Rachel fez uma careta para a mão dele, então outra


para ele. “Sério, sr. Davis, isso é o auge da falta de modos.”
Ela disse, mudando o aperto na mão dele. Ela dobrou o
dedão dele para trás: lágrimas surgiram nos olhos dele e
ele caiu de joelhos quase que instantaneamente. Ele
emitiu um som estrangulado quase tão indignado quanto
doloroso. Era o som de um homem que há muito tempo
era estranho à agonia.

“Você pensa que, somente por sermos clones, somos


todas iguais. Ela disse, pegando a garrafa de champanhe.
“Eu cometi o mesmo erro uma vez. Subestimar minhas
irmãs. Você não é o primeiro e não vai ser o último. Mas
você vai se arrepender.”

Ela fez um arco com a garrafa e a chocou direto


contra o pulso dele. Ela sentiu algo se soltar dentro da
mão dele. Ele começou a guinchar, mas fechou os lábios
imediatamente, como se não quisesse lhe dar a satisfação
de fazer muito barulho.

435
“Essa cara não está muito legal.” Rachel disse,
agarrando-o pelos cabelos. Ela acertou a testa dele contra
a borda da mesa. Ele colapsou no chão. Uma parte remota
dela esperava que ele perdesse a consciência
completamente e se mijasse. Ela não teve tempo de ficar
para assistir, no entanto. Recuperando sua bolsa, ela
fechou as cortinas da sala e desceu as escadas com pressa.

“Tive um chamado de emergência para uma


reunião.” Disse ela ao concierge. “O cavalheiro no andar
de cima também recebeu um telefonema muito
importante. Por favor, não o perturbe.” Ela sorriu. “Ah, e
é ele quem vai pagar com a conta. Muito obrigado.”

Gansos canadenses grasnavam no céu. Os olhos de


Vivi se abriram para a luz fraca de inverno da manhã de
Toronto. À distância, ela ouviu o ruído de caminhões de
lixo passando. Ela escolhera o andar mais alto, o terreno
mais alto possível, literal e figurativamente. Ela deitava
estendida no futon do escritório de Cosima Niehaus, que
parecia mais um tipo de estufa de cultivo. Não era ruim
acordar com o cheiro verde de coisas crescendo à sua
volta, mesmo que algumas delas ainda fossem ilegais de
acordo com o governo federal dos EUA.

No colchão de ar do outro lado da sala, Dana se


mexeu. “Volte a dormir.” Vivi murmurou.

“Café.” Dana gemeu. Ela se curvou ainda mais, como


uma bola, e se enterrou debaixo da manta de lã. “Meu
deus, que ressaca.”

436
“É, bem, talvez você não devesse ter misturado
tequila com Tamiflu.”

“Alison disse que faria eu me sentir melhor.”

“Alison diz um monte de coisas. Você devia voltar a


dormir. Esteve doente e temos um longo dia pela frente,
dirigindo.”

Na noite anterior eles haviam decidido que Dana e


Vivi iriam juntas à vila, combinando seus talentos
linguísticos e de espionagem. Sarah brigara sobre ir junto
com elas, mas todos os outros eventualmente a
convenceram de que dois já era um número suficiente de
clones. Ela ficou mais calma quando foi decidido que
alguém chamado Felix — aparentemente o irmão dela —
iria dirigir junto com elas.

“Eu ficarei bem.” Dana disse. “Tudo que preciso é de


um pouco de café. E um bom e gorduroso café da manhã.
Charlotte diz que aqui existe algo chamado poutine. Com
batatinhas, ovos pochê e molho holandês. E bacon. Bacon
canadense.”

Vivi se levantou do futon, pulou em um par de calças


e vestiu seu coldre no ombro. “Verei o que posso fazer
sobre o café. Mas não vou trazer aqui. São três andares.
Você vai ter que descer e pegar.”

“Já vou descer.” Dana disse, bocejando.

Vivi passou pela Oficial e pelo agente do Serviço de


Fronteira Canadense, que conversavam baixo na sala,
437
afastando o olhar com educação e tentando ouvir o que
diziam. “Eu só acho que eu deveria ver o que ele pode nos
dizer.” Jay dizia. Art respondeu algo como “Não sozinha.”
Deixando eles para lá, Vivi continuou para a cozinha. A
máquina de café era como um tipo de maravilha da
engenharia feita de vidro e cobre. Ela ainda a encarava,
admirada, quando seu celular tocou.

Ela havia recolocado o chip em seu celular após


Alison dizer a ela que Arun estava preocupado com ela.
Mas ela não esperava que ele fosse ligar. Isso significava
que ela podia voltar? Ela levou o celular até a orelha.
“Valdez.” Ela disse.

“Você ainda está viva.” Arun disse.

Ela sorriu, apesar de tudo. “Sim, mas não por falta


de tentativas.”

“Deixe-me adivinhar.” Ela podia ouvir o sorriso dele


do outro lado da ligação. “Está lutando com ursos polares
ao norte do Ártico?”

Na sala de estar, Jay e Art se levantaram. Eles


espiaram pela janela da frente. Ou os paparazzi haviam
ficado lá a noite inteira ou estavam se revezando em
turnos. No chão, Sarah se sentou. No sofá, Alison se
sentou, também. Vivi também se virou em direção à sala
de estar. Por detrás das cortinas, ela viu uma confusão de
luzes piscando.

“É mais como se eu estivesse lutando com um monte


de mosquitos.” Ela murmurou.
438
Lá fora, uma buzina de carro buzinou: um longo som,
um curto e outro curto, em seguida. SOS. Das escadas,
Vivi ouviu a voz de Dana descendo. “O que diabos está
acontecendo lá fora?” Ela disse.

“O aquecimento global está mesmo descontrolado, se


mosquitos estão sobrevivendo no inverno canadense.”
Arun disse.

Sarah abriu as cortinas. Imediatamente, ela abaixou


a cabeça. “Puta que pariu...”

“É, sobre isso...” Vivi mudou a celular para sua outra


mão, para que sua mão boa ficasse livre para segurar sua
arma. “Acho que vou ter de te ligar de volta depois.”

Atrás dela, Dana veio correndo para a sala. “Quem é


aquela mulher? Ela parece doida!”

Sarah soltou um rosnado. Ela foi até a porta e a abriu


de uma vez. “CABEÇONA. DESÇA DAÍ, JÁ!”

Pela porta, Vivi conseguiu ver uma clone com cabelos


loiros desgrenhados. Tal clone estava em pé através do
teto de um veículo 4x4 salpicado de sal. E o veículo estava
mergulhando devagar pela multidão de repórteres. Vivi
não tinha certeza de quem dirigia o veículo; quem quer
que fosse, era alguém muito baixo.

“SAIAM DO MEU CAMINHO, OVELHAS!” A


mulher berrou. “OU EU TRANSFORMAREI VOCÊS EM
PANQUECAS!”
439
“Quem diabos é essa?” Vivi perguntou.

“Esta é nossa outra irmã.” Alison disse. “Helena.”

440
Episódio 09

Que aspecto
adotamos

‘Art está em perigo, Charlotte faz


uma grande revelação e Vivi confronta o
criador da arma.’
Anteriormente, em Orphan Black: TNC:

Alison e Donnie saem em uma missão secreta até um


sex club onde informações sobre a arma estão escondidas.
Vivi e as sestras fazem as pazes. Davis subestima Rachel.
Kira informa ao Clube das Clones o que ela descobriu e
um plano começa a tomar forma.
Kira se envolveu com os braços e afundou os pés na
neve. Ela não conseguia parar de tremer, mas não tinha
certeza se era mais pelo frio ou pelo nervosismo.

Ela e sua família haviam passado por muita coisa,


mas aquilo havia sido anos atrás. Kira era só uma criança
na época, praticamente sendo arrastada para lá e para cá
sem poder opinar no que acontecia ou no que acontecia a
ela. Protegida. Alguns dos detalhes pareciam turvos
agora e suas tias raramente falavam sobre aquela época.
No entanto, Kira sempre teve a sensação de que elas
provavelmente poderiam lidar com qualquer coisa que
viesse depois, desde que trabalhassem juntas.

O mundo sabia sobre os clones agora. Cientistas


desonestos planejavam destruir todos os habitantes da
pequena vila de Nasgwine’g apenas para testar uma
arma — a mesma arma que já matara um homem,
basicamente bem em frente à Kira e Emmaline. Aqueles
mesmos cientistas que pareciam dispostos a matar
qualquer um que entrasse em seu caminho.

Kira já havia falhado em salvar Gilles Sauveterre,


cuja morte horrível ainda apavorava Kira e Emmaline, e
agora elas estavam achando que podiam proteger todos
dessa vila?

Um braço pousou em seu ombro. “Com frio?”


Emmaline perguntou.

O rosto de Kira ficou vermelho. Ela parou de tremer,


mas agora seu coração estava acelerado. “Não mais.”
443
“Vai ficar tudo bem.” Em disse.

Kira apreciou a tentativa dela de reconfortá-la, mas


então Em acrescentou, de forma suave: “Não vai?”

Kira acenou. “Vai. Estão vindo nos ajudar.” Ela


checou o celular em suas mãos enluvadas.
“Eventualmente.”

Onde eles estão?

Como se fosse uma deixa, ela enxergou dois


pontinhos brilhantes na distância. Faróis. Kira apertou
os olhos, mas a neve e a escuridão tornavam impossível
identificar o veículo.

Em retirou o braço dos ombros dela. “Talvez


devêssemos nos esconder até termos certeza de que são
eles?”

Kira deu de ombros. “Quem mais seria, a essa hora


da noite, no meio de uma nevasca?”

Os faróis se aproximavam muito mais rapidamente


do que ela esperava, considerando a neve funda que se
acumulava. Também pareciam estar em um nível mais
alto que o normal — talvez fosse um limpa-neve limpando
as ruas?

Bruscamente, o carro chegou até elas e não era um


limpa-neve ou o Prius roxo que ela estivera esperando.
Não era nem mesmo um carro comum — era algum tipo
de veículo 4x4 pintado com uma camuflagem verde,

444
grande como um tanque, com pneus enormes cobertos de
neve. Parecia militar.

“Merda. Corra!” Kira agarrou a mão enluvada de Em


na dela e se virou para correr. Elas estavam a apenas uma
dúzia de passos quando ela ouviu uma voz familiar
chamando seu nome.

“Kira?”

Kira parou e, logo depois, um feixe de luz pousou


sobre ela e Em. Ela protegeu os olhos e piscou,
enxergando uma figura que acenava para ela da porta de
passageiro aberta do 4x4. A figura tentou descer do carro
e escorregou, caindo de bunda na neve, gritando
“Caramba!” E então Kira teve certeza de que era o tio
Felix.

Felix lentamente se levantou, batendo as mãos no


longo casaco preto para tirar a neve. Ela não percebeu que
estava correndo em direção a ele até que ele soltou uma
exclamação de susto e se encostou contra o enorme pneu
do veículo. Ela esquecera por um momento de que ela não
era mais uma criança. Ela o abraçou ferozmente e, para
seu constrangimento, seus olhos arderam com lágrimas.
Ela escondeu o rosto no casaco, torcendo para que Em não
visse.

“Ei...” Ele disse, dando tapinhas de apoio em suas


costas como ele fazia quando ela era menor. “Ei,
macaquinha. Está tudo bem.”

445
Kira deu um riso baixo. Ele meio que era a única
pessoa que ela não ligava de chamá-la pelo seu apelido
antigo.

Kira tomou fôlego, se recompôs e deu um passo para


trás quando duas mulheres pulavam da traseira do 4x4.
Vivienne Valdez e Dana Emmet. Ambas eram uma
combinação inquietante de familiares e estranhas, uma
com um cabelo médio vermelho que se agitava atrás de
seu rosto com o vento, a outra com cabelos do mesmo tom
marrom natural de todas as outras clones.

A aparição delas era ainda mais inquietante por


parecerem mais novas do que sua mãe e suas tias e mais
velhas do que Charlotte.

“Oi.” Kira acenou, se sentindo boba. “Sou Kira


Manning. Essa é a Em. Emmaline Francis.” Ela
acrescentou, quando Em chegou ao seu lado.

Em abaixou o cachecol e deu um sorriso vitorioso,


acenando timidamente, o que fez Kira sentir uma onda de
afeição. O olhar de Felix se voltou para o rosto de Kira e
uma de suas sobrancelhas se levantou. Ele sempre havia
sido muito perceptivo.

“Vivi.” Disse a clone ruiva. Então essa era a espiã


americana que estivera investigando a explosão do
IPGT— e tia Cosima. Agora ela supostamente estava
trabalhando junto com eles. Kira estreitou os olhos e viu
que Vivi a analisava também. A mulher não parecia
impressionada pelo que via.

446
A segunda clone as alcançou para apertar a mão de
Kira. “Olá, sou a Dana. Prazer te conhecer.” Ela apertou
a de Em em seguida.

“E esse é Felix Dawkins. Meu tio.” Kira se sentiu


curiosamente nervosa de os apresentar um ao outro.

“Oi. Carro monstro.” Em disse.

“Obrigado, mas não é meu.” Felix fungou. Claro que


ele nunca teria algo assim. Ele se virou e gritou para
dentro do veículo. “E aí? Desde quando você é tímida?”

Kira franziu a testa, se perguntando quem era o


motorista, e chegou à conclusão de que sua mãe
conseguira, afinal, se infiltrar na missão — contra os
desejos de Kira. Ela começou a se sentir tensa, com raiva
e ansiosa.

A porta do motorista se abriu e fechou do outro lado


do 4x4. E então alguém veio pela frente do veículo: uma
mulher usando uma touca de pele com abas de orelha que
não continha direito os cachos selvagens de cabelo loiro, e
um casaco parka branco. Kira não acreditava em seus
olhos ao ver a recém-chegada caminhar até eles devagar,
seu rosto mais pálido do que o usual nas luzes dos faróis.
Em engasgou.

“Olá, anjo de neve.” Helena disse a Kira, com um


largo sorriso.

“Tia Helena!” Elas se abraçaram. Helena dava os


melhores abraços — eram fortes e firmes, como ela, então
447
parecia que ela simultaneamente te protegia de qualquer
coisa que pudesse te machucar e te agarrava de amores.

“O que você está fazendo aqui? Quando você voltou?”


Kira perguntou.

“Quis fazer uma surpresa para você.” Os olhos de


Helena se abriram e ela fez uma dancinha Jazz com as
mãos. “Surpresa!”

Kira riu.

“Quando voltei da viagem, encontrei tudo uma


bagunça. Então vim direto para a casa para arrumar.”

“Mas por que você está aqui?” Kira perguntou.

“Quem melhor do que eu para sobreviver em um


lugar assim?” Helena bateu uma das mãos no peito. Ela
se inclinou e disse, não baixo o suficiente: “E entre eu e
você, achei que eu deveria ficar de olho nessas novas
sestras.” Ela piscou para Kira.

Kira olhou duvidosamente para Vivi e Dana.

“Ouvimos isso.” Vivi disse.

“Eu sei.” Helena cruzou os braços, um olhar irritado


em seu rosto. Kira teve a impressão de que a viagem não
tinha sido totalmente agradável.

“E também, eu não sou sua ‘sestra’.” Vivi disse.

448
“Eu sei disso também. Mas ainda somos família, você
querendo ou não.” Helena olhou para Kira. “E estou aqui
para manter minha família viva.”

“Ah, eu sei cuidar de mim mesma, obrigada.” Vivi pôs


as mãos na cintura e Kira notou a arma que ela
carregava.

Claro que Vivi possuía uma arma. Mas ver o coldre,


mesmo nas mãos de alguém que afirmava estar do lado
dela, de forma alguma a fazia se sentir mais segura. Pelo
contrário.

“Veremos.” Helena disse.

“Helena, essa é minha amiga Emmaline.” Kira disse.

O olhar de Helena revezou entre elas. “Mais que


amigas, não é?”

“Hum...” Kira disse. Quero morrer agora, pensou.

“Ei, Helena...” Felix disse. “Lembre-se do que nós


estivemos trabalhando... geralmente é melhor quando
não falamos a primeira coisa que vem à cabeça.
Especialmente no seu caso.”

“Essa não foi a primeira coisa que veio em minha


cabeça.” Helena deu um sorriso malicioso.

“Somos colegas!” Kira interrompeu. “Em e eu


trabalhamos juntas.”

“Bom te conhecer.” Helena puxou uma Em distraída


para um forte abraço.
449
“Oh, OK! Vamos abraçar.” Em riu. “Bom te conhecer
também!”

Isso era o maior ato de aceitação que Helena podia


demonstrar. Helena soltou Em, que agora parecia um
pouco tonta.

“Está bem, agora que as apresentações acabaram,


ouçam...” Vivi disse.

Dana revirou os olhos.

“Estamos aqui para impedir que Kurzmann use sua


arma em Nasgwine'g e mate todos os homens, mulheres e
crianças que nasceram lá. Se quisermos ter sucesso e não
morrer, preciso que todos façam exatamente o que eu
mandar.”

Vivi lançou um olhar duro a cada um deles, apenas


evitando Helena. “Não quase exatamente. Exatamente.
Sem improvisos, sem atos heroicos idiotas — a menos que
eu especificamente mandar vocês cometerem atos
heroicos idiotas.” Ela fez uma pausa e olhou preocupada
para Dana. Foi apenas por um breve momento, mas foi
bom ver um vislumbre de emoção humana vindo dela.

“Se seguirem minhas instruções, por mais estranhas


que algumas delas possam parecer, vocês todos ficarão
bem.” Vivi terminou.

Helena soltou uma gargalhada alta.

Kira começava a entender a expressão estressada no


rosto de Felix desde que ele chegara. Ela queria acreditar
450
quando Vivi disse que ‘todos ficariam bem’. Mas quando
ela era uma criança, a sra. S, sua mãe, seu tio e
basicamente todo outro adulto havia constantemente dito
a ela para não se preocupar. Que ela ficaria bem. Que
tudo daria certo. Ao invés disso, Kira aprendera os
diferentes graus do que é ‘ficar bem’ e que nem tudo dava
certo para todo mundo.

“Tem algo a dizer, Helena?” Vivi sorriu.

“Eu pensei sobre o seu plano e tenho uma ideia


melhor.” Helena disse.

“Sério?”

“Sério. Minha ideia é como a sua, só que mais


inteligente. E mais segura.”

“Mal posso esperar para ouvir essa brilhante


revelação.”

Helena esfregou as mãos. “Sim. Mas o mais


importante primeiro. Estou com fome.”

Felix suspirou.

Kira riu. Ela sentira falta de sua família perturbada.

451
Os planos de Greg Kurzmann não incluíam uma
tempestade. Ele só conseguia enxergar branco fora da
janela do helicóptero e duvidava que a cabine do piloto
estivesse muito diferente. Não estava muito esperançoso
de aterrissar tão cedo.

“Não consigo sentir meus pés.” Resmungou Evans,


um dos atiradores contratados, sentado atrás. O ruído dos
rotores era muito alto, mas infelizmente ainda dava para
ouvi-lo. Os outros quatro assassinos foram profissionais o
suficiente para viajar em silêncio, mas Evans não havia
calado a boca a viagem inteira. Se não fosse ruim para a
moral da equipe, Greg o teria chutado do helicóptero em
algum ponto acima do Lago Ontario.

Greg não deveria nem mesmo saber o nome de


Evans, ou o nome de ninguém dessa missão secreta, mas
o idiota havia se apresentado quando subiu no
helicóptero.

“Não podíamos estar fazendo isso na primavera?”


Evans continuou.

Greg fez uma carranca ao ser lembrado de que a data


original do teste da arma genética deveria ter sido na
primavera, antes das coisas, literalmente, explodirem
para cima dele. Maldito Sturgis.

“Pelo menos esses bebês não são tropicais.” Disse o


assassino no 1, dando tapinhas em uma das muitas caixas
de carregamento.

452
Evans se inclinou para a frente e levantou ainda
mais a voz, como se Greg não tivesse ouvido todas as
insípidas palavras que ele havia dito na última hora.
“Tem certeza de que não deveríamos usar equipamentos
de proteção? Se essas coisas conseguem atravessar todas
aquelas roupas de inverno...”

“Há menos que sua avó tenha vindo dessa vila e você
não nos contou isso, você vai ficar bem. Esse é o objetivo
da coisa toda de direcionamento genético.” Greg disse.

Greg colocou o fone de ouvido para silenciar Evans


por um tempo e falou com o piloto. “Como estamos?”

“Acho que estamos quase lá.” O piloto disse.

“Você acha?” Aquilo não inspirava muita confiança.

“Olhe lá pra fora, cara. Não dá para ver nada. É


perigoso demais até mesmo tentar pousar sem referências
do solo. Eu aconselho retroceder até que isso tenha
passado.”

“Essa não é uma opção.” Greg disse. “Temos só essa


chance.” É minha última chance de testar essa arma e
eliminar a ameaça de Nasgwine’g, Greg pensou. Com a
maldita clone fantasma roubando o software do qual ele
precisava para codificar os mosquitos até seus alvos
genéticos e o ex-chefe dela, Davis, fungando em seu
pescoço, Greg precisava fazer aquilo agora ou sua chefe
iria ferrá-lo. Era melhor não desapontar Eloise Thibault.

453
“Está bem, mas vou ter que aterrissar um pouco
afastado da vila. Estou vendo um bom ponto de pouso e
vou tentar lá enquanto posso. Segurem-se em algo!”

O ritmo e o zumbido dos rotores mudaram. De


repente, o helicóptero se lançou para a frente e deu uma
guinada para a esquerda, então o estômago de Greg foi
até a garganta quando eles mergulharam. Depois do que
pareceu uma eternidade, mas que foram apenas alguns
segundos, o helicóptero se endireitou.

Greg apertou os descansos de braço da cadeira


enquanto o helicóptero tremia e pousava no solo com um
baque. Os rotores diminuíram a velocidade e o helicóptero
deu um pulo para trás.

“Chama isso de pouso?” Evans gritou.

O piloto se virou em sua cadeira. “Ei, estamos vivos,


foi um bom pouso.”

“O quão longe estamos da vila?” Greg perguntou.

“Cerca de cinco quilômetros.” O piloto disse.

Evans rosnou.

“Hora de ir.” Greg disse. “Quanto mais cedo


resolvermos isso, mais cedo podemos ir para a casa.”

“Fácil para você falar.” Evans disse. “Não é você que


vai arriscar o pescoço.”

“Lembre-se de quem manda aqui.” Greg puxou sua


arma. “Você está recebendo uma quantia absurda para
454
abrir uma maldita maleta e calar sua boca.
Especialmente a segunda parte.”

Evans abriu a boca. Um de seus parceiros balançou


a cabeça. Evans fechou a boca.

“Boa escolha.” Greg disse.

Era a prerrogativa de Greg ficar para trás e


coordenar a missão. Além disso, ele não queria ser visto
na vila no caso de o teste não funcionar ou alguém que o
pudesse identificar sobrevivesse. Ele odiava atuar em
campo, mas ele precisava estar ali para garantir o sucesso
da missão.

“A vila é a nordeste daqui. Como planejamos, cada


um de vocês vai para sua seção na vila. Quando todos
estiverem em posição, darei o sinal para abrir as maletas
e liberar os mosquitos. Vou monitorar daqui.” Greg
mostrou sua própria maleta.

Os minúsculos pernilongos mecânicos não


suportavam muita carga em suas baterias, o que limitava
seu alcance. Por isso, era necessário liberá-los na área
mais ampla possível, para cobrir Nasgwine’g e infectar o
máximo de pessoas possível enquanto elas dormiam. E
então eles precisariam coletar todos os drones antes que
esgotassem suas cargas, para que ninguém pudesse
encontrar seus rastros. A neve não facilitaria nada disso.

Depois que Evans e os outros haviam partido com as


maletas, o piloto fechou a porta do helicóptero. Ele
começou a fazer a checagem do sistema para se preparar
455
para a partida deles, enquanto Greg abria sua própria
mala, que continha um display, um teclado e um receptor
de rádio. Ele assistiu aos quatro pontos verdes piscando
que representavam a equipe se afastando devagar de
onde ele estava. Cada maleta deles estava equipada com
um transceptor, que retransmitiria os sinais dos drones
de volta ao console de Greg.

Ele assistiu aos pontos se afastando ainda mais,


tentando se lembrar o quão largo era o alcance dos
transceptores de rádio. Se o sinal enfraquecesse a
caminho da vila, Greg teria de caminhar um pouco, para
diminuir a distância.

“Ei, chefe? Acho que tem alguém por ali.” O piloto


disse.

Greg checou a tela novamente. Se alguém estava por


ali, não era da sua equipe. Quem estaria rondando por ali
a essa hora da noite, tão perto da floresta? Greg entrou
na cabine para checar a situação.

“Acenda as luzes.” Ele disse, olhando pela janela.

O piloto ativou um interruptor e um holofote se


acendeu lá fora. Ele o conduziu devagar. Greg avistou um
flash de vermelho.

“Ali! Volte!” Ele gritou.

A luz balançou de volta.

“Não é possível.” Greg disse.

456
Uma mulher foi iluminada pela luz. Aquela vadia do
cabelo ruivo.

“Abra a porta.” Greg pegou seu revólver e puxou o


slide para carregar uma bala na câmara. Ele foi até a
porta e espiou para a escuridão. Vivi Valdez estava em pé
ali, uma das mãos levantadas para proteger seus olhos da
luz. Greg levantou a arma e mirou, mas, tão rápido
quanto ela havia aparecido, ela sumiu nas sombras. O
holofote se moveu para encontrá-la.

Ele pulou do helicóptero. A neve já estava na altura


de seu calcanhar. Um frio cortante atravessou seus tênis
Gore-Tex enquanto ele caminhava e tentava identificar
Valdez. Então algo acertou seu braço e ele derrubou a
arma na neve. O cano brilhou quando a arma disparou
com um barulho alto, iluminando brevemente o rosto de
Valdez.

“Como—?”

Ela passou a perna por detrás dele e o acertou com a


palma de uma das mãos no peito. Ele caiu para trás,
batendo a cabeça na carcaça do helicóptero.

“Te peguei.” Valdez disse.

Algo clicou acima da cabeça de Greg. “E eu te


peguei.” O piloto disse.

Valdez olhou para cima friamente. “Isso é um


sinalizador.”

457
“Machuca do mesmo jeito. Eu tenho uma mira muito
boa. Afaste-se dele.”

Valdez suspirou, dando alguns passos para trás.

“Não a mate. Ainda.” Greg se levantou com um


grunhido. Ele se abaixou e buscou na neve até que seus
dedos encontraram o metal frio e escorregadio de sua
arma. Ele não sabia se ela ainda funcionaria, molhada,
mas ele carregou outra bala e mirou em Valdez, de
qualquer forma.

“Onde está o meu drive?” Ele perguntou.

“Isso aqui?” Ela alcançou um dos bolsos.

“Ei, pode parar.” O piloto desceu do helicóptero e se


aproximou, ainda apontando o sinalizador para ela.

Valdez lentamente puxou sua mão de dentro do


bolso. O drive prateado brilhou entre seus dedos indicador
e médio.

“Pegue isso dela.” Greg disse.

Valdez soltou o drive na neve aos pés do piloto.

“Ops.” Ela disse.

“Fala sério!” O piloto lentamente se agachou e tentou


pegar o drive. Valdez tentou chutar sua cabeça. Ele se
inclinou para trás de forma que a bota dela apenas raspou
em sua cabeça, mas ele perdeu o equilíbrio e caiu na neve.

458
“Merda!” Greg atirou enquanto ela mergulhava,
pegava um tanto de neve e corria em direção ao
helicóptero.

Greg mirou de novo.

“Pare!” O piloto disse. “Você não quer atirar no meu


helicóptero.”

“Ela está fugindo.”

Valdez mergulhou atrás do helicóptero e então


desapareceu.

“Ela fugiu.” Greg disse. Ele procurou no chão perto


do piloto, mas claro que o drive havia sumido.

“Siga-a.” Ele rugiu. Ele gesticulou para que o piloto


desse a volta pela frente do helicóptero enquanto ele ia
por trás. Na fraca luz gerada pela luz de busca do
helicóptero, eles viram duas mulheres idênticas de
cabelos vermelhos.

“Que diabos?” O piloto perguntou.

“Clones, lembra?” Greg disse.

As duas Valdezes se separaram e desapareceram no


meio das árvores.

“Você pega a da direita. Eu vou atrás da da


esquerda.” Greg disse.

“Eu devia ficar perto do helicóptero.” O piloto disse.

459
“Não seja um covarde. Ande logo.” Greg trocou o
revólver por uma lanterna e correu atrás de uma das
clones, torcendo para que fosse a Valdez de verdade,
enquanto o piloto caçava a outra. Felizmente, suas
pegadas eram visíveis na neve.

Greg pegou seu walkie-talkie para se comunicar com


a equipe. “Tem ao menos duas clones por aí. Fiquem de
olho na vila. Não deixem ninguém interferir no plano.
Mantenham contato.” Ele tirou neve e suor de seus olhos
com as costas da mão. Pelo menos a nevasca estava
diminuindo. “Atirem à vontade. Mas não toquem em nada
até que eu esteja lá para investigar o corpo.”

460
“Eu realmente acho que você não deve fazer isto.” Art
disse, pela bilionésima vez.

Jay suspirou. “Você deixou isso bem claro.” Ela se


apoiou na bancada de granito da cozinha e olhou para a
porta, pensando quantas pessoas na sala de jantar
adjacente estavam tentando escutar o que diziam.

“Esse tal de Davis é perigoso. Alison disse que ele


tentou matar as clones no hospital, as clones doentes no
hospital, Jay! Incluindo minha filha Charlotte. Podemos
assumir que as intenções dele não são as melhores.”

“Sim, Art. Cara mal. Eu entendi. Mas Davis esteve


em contato com os meus superiores. Ele disse que quer
compartilhar informações. E precisamos de toda
informação que pudermos ter.” Jaysara olhou nos olhos
de Art. “Perigoso ou não, esse é o meu trabalho. E sou
muito boa nisso.”

A expressão de Art se suavizou. “Você está certa.


Você está totalmente certa. Mas, se você for, vou com
você.”

“Eu não estava pedindo a sua permissão e você não


tem direito de negociar nada.” Ela disse.

Ele foi pego de surpresa. “Me desculpe.”

“E eu aprecio a oferta. Mas seus amigos não precisam


de você aqui?”

“Eles estão bem. Você viu os paparazzi em volta da


casa. Não tem segurança melhor. E, você admitindo ou
461
não, você precisa de ajuda.” Ele deu um de seus raros
sorrisos. “Vou com você.”

Jaysara levantou a sobrancelha. “Oh, eu preciso de


ajuda, é?”

Ele riu e levantou as mãos. “Não tanto quanto eu


preciso de algo para me ocupar agora. Qualquer coisa que
ajude minha família. E se Davis é uma ameaça às clones,
eu gostaria de conhecê-lo.”

Talvez em outra pessoa toda aquela atitude de


macho seria irritante, mas em Art até que era fofo. Ela
estava surpresa de achá-lo tão atraente, mas
aparentemente o tipo sensível que cuida dos outros era
seu tipo; ela apenas não encontrava muitos caras assim.
Art tinha seus próprios motivos para se envolver — um
deles era se importar com Jaysara —, mas suas intenções
eram boas e ela sabia que ele queria justiça tanto quanto
ela. E, honestamente, ela não se importaria com um pouco
de companhia no longo caminho, especialmente se fosse
ele.

“OK.” Jaysara sorriu. “Então vamos.”

462
Kira, Em e Dana se amontoaram na neve atrás da
árvore e assistiram a Kurzmann e seu capanga
desaparecerem atrás de Vivi e Helena em meio às
árvores.

“Era para ser eu com a peruca, antes da Helena


aparecer.” Dana disse. “Eu poderia ter sido baleada.”

“Vivi não mencionou que Kurzmann queria ela


morta quando ela sugeriu fingir que fosse ela?” Kira disse.

“Pensei que eu conhecesse os riscos, mas...” Dana não


terminou a frase e olhou para a distância, na direção em
que Vivi havia corrido. “Eu achei que, se Vivi conseguia
lidar com isso, eu também conseguiria, já que somos
clones.”

“Só porque vocês são clones não significa que sejam


a mesma pessoa.” Kira disse.

“Eu sei! Minhas primas e eu, somos todas diferentes,


mas também temos muito em comum.”

“Vocês todas cresceram juntas?” Kira perguntou.

Dana acenou. “Sempre fomos melhores amigas. Nós


dividíamos tudo. Talvez por isso tenhamos tantas
similaridades. Vivi... ela foi embora. Ela foi levada
quando éramos pequenas. Ela cresceu sozinha, se
esqueceu de nós. Mas eu nunca me esqueci dela.”

“Vivi também teve treinamento de super espiã.


Talvez você até pudesse fazer as mesmas coisas, caso
tivesse tido o mesmo treinamento, ou talvez não. Eu
463
duvido que minha mãe um dia poderia ser uma cientista
como Cosima é ou uma musicista como Alison. Mas ela
tem suas próprias habilidades.” E falhas, pensou.

“Odeio interromper, mas...” Em se levantou, neve


caindo de sua jaqueta. Ela estivera observando as
interações entre Vivi, Helena e Dana com uma fascinação
estampada. Kira podia dizer que ela devia ter muitas
perguntas, mas haveria tempo para isso depois. Se tudo
desse certo. “Temos que investigar o helicóptero enquanto
os bandidos estão longe.”

Em continuava a impressionar Kira com o jeito com


que ela lidava bem com as coisas sob estresse,
acompanhando cada desenvolvimento maluco da
situação. A fazia acreditar que Em não decidiria que sua
vida era complicada demais para permanecer envolvida.

Kira também se levantou. “Cuidado: alguém pode ter


ficado para trás. E Kurzmann e seu comparsa podem
voltar a qualquer momento.”

Elas se aproximaram com cuidado do helicóptero,


evitando a iluminação da luz de busca ainda acesa. Kira
espiou através das janelas, mas parecia estar vazio lá
dentro.

“Sabemos o que estamos procurando?” Dana


sussurrou.

“Se estiver lá, saberemos quando vermos.” Kira


disse.

464
Elas abriram a porta e entraram.

“Ahh...” Em disse. “Que quentinho.”

“Mais quente que lá fora, pelo menos.” Dana disse.


“Talvez por isso Kurzmann queria ficar por aqui.”

“Talvez.” Kira disse. Mas Vivi insistira que


Kurzmann teria algum jeito de controlar os mosquitos de
longe, baseado no que ela havia visto na instalação que
invadira. Se aquilo fosse verdade, elas poderiam
interromper o ataque e salvar Nasgwine’g ali e agora.

Elas investigaram à sua volta. Foi Em quem


encontrou a maleta aberta com o display de cinco
polegadas e um teclado. Ela se inclinou sobre o teclado
enquanto avaliava as teclas. “Acho que encontramos.”

Kira e Dana se juntaram a ela. A tela mostrava


quatro pontinhos a nordeste de onde estavam, se
afastando uns dos outros.

“Não é lá que a vila fica?” Em apontou para os pontos.

“Será que são os mosquitos?” Kira questionou. “Achei


que eles teriam mais de quatro.”

Em clicou no teclado e conseguiu mudar para outro


tipo de leitura. A tela mostrava as palavras STANDY-BY.
STATUS DOS DRONES: INATIVO. AGUARDANDO
TELEMETRIA.

“Podemos parar os mosquitos com essa coisa?” Dana


perguntou.
465
“Acho que não. É só uma tela. Esse terminal não
consegue transmitir um sinal.” Em disse.

“Você não consegue... hackear isso ou sei lá?”

Em revirou os olhos. “Nem todos os adolescentes são


hackers, sabe.”

“Eu não sei hacker computadores, mas meu pai me


ensinou a construir coisas.” Kira disse. “Eu
provavelmente poderia fazer um dispositivo de pulso
eletromagnético de curta distância que fritasse os
mosquitos, caso eu tivesse as ferramentas, o material e
tempo.”

“Mas não temos nada disso.” Dana disse.

“Mas temos um jeito de rastrear os mosquitos que


estão atacando a vila. Podemos usar isso para avisar
nosso pessoal onde eles estão e interceptá-los.” Kira disse.

A tela piscou.

“O que foi isso? O que você fez?” Dana perguntou.

“Nada!” Em disse.

A palavra STAND-BY mudou para LIBERANDO. E


o status dos drones mudou para ATIVO.

“Não fui eu! Não estou fazendo isso!” Em afastou as


mãos do teclado.

“Faça alguma coisa!” Dana disse.

“Eu não posso. Eu nem sei o que está acontecendo.”


466
Mais pontos começaram a aparecer na tela, pequenos
pontinhos vermelhos que flutuavam para longe dos
pontos verdes como... um enxame de insetos. Uma
mensagem RECEBENDO TELEMETRIA apareceu.

Kira esticou o braço e apertou uma das nuvens de


pontos vermelhos. A tela deu um zoom e mostrou dúzias
de pontos se espalhando. Se espalhando para dentro da
vila.

“Merda.” Kira disse. “Esses são os mosquitos.”

Ela fechou a maleta e a segurou. “Temos que ir.”

“O quê? Para onde?” Dana perguntou.

“Para a vila. Os mosquitos foram liberados agora. O


que significa que alguém os levou até lá e os ativou. Então
talvez o que eles usaram para fazer isso sirva para
desativá-los também.”

Em estalou os dedos. “E sabemos onde eles estão.”

Era como se Kira e Em estivessem funcionando na


mesma frequência, como quando Cosima e Delphine
ficavam quando faziam ciência. Kira gostava de ter
alguém à sua volta que a entendia tão facilmente.

Elas foram para a porta do helicóptero. Kira


saboreou o último momento de calor antes que elas
pulassem para fora. Parecia ainda mais gelado após o
alívio, mas pelo menos a tempestade estava diminuindo.

467
“Vou mandar uma mensagem para Vivi.” Dana disse,
enquanto se apressavam em direção a Nasgwine’g.

“E eu vou ligar para o tio Felix.” Kira disse. “Sugiro


que nós corramos. Temos de conter os mosquitos antes
que seja tarde demais.”

468
Felix se irritou com o zumbido barulhento,
balançando sua raquete elétrica no ar. Vivi adquirira
algumas para eles na estrada — era o mais próximo que
teriam do bastão elétrico que fritara os mosquitos no
laboratório de Sturgis.

Mas o zumbido não vinha de mosquitos e sim do


celular em seu bolso. Ele o pegou, mas a tela estava preta.
Levou um momento até que ele entendesse o porquê: ele
levantou os óculos de lente polarizada que Vivi havia dado
a ele para tornar os pequenos insetos mais visíveis e voilá,
ele enxergava a tela de novo. Era Kira ligando.

“Os mosquitos estão soltos!” Kira disse assim que ele


atendeu.

“Eu notei, querida.” Um movimento prateado à sua


direita e ele balançou a raquete com sua outra mão.
Faíscas brilharam quando o minúsculo drone sofreu
curto-circuito e um arco de eletricidade passou pelo ar,
acertando outros dois como um mini relâmpago. Era bem
bonito. Ele abaixou os óculos e olhou para os lados,
buscando mais das pestes.

“Sabemos de onde eles estão vindo e talvez exista um


jeito de desativá-los ou mandá-los voltar. Estamos a
caminho de Nasgwine’g. Conseguiu acordar alguém?”
Kira parecia sem fôlego, como se estivesse correndo.

“Não sou a pessoa mais popular aqui agora, mas a


vila está acordada. E rabugenta.” Pessoas olhavam com
cuidado para ele de suas janelas. Ele andara pelas ruas

469
gritando para as pessoas saírem de suas camas e se
prepararem para um ataque, se sentindo como um Paul
Revere moderno. Só que, neste caso, ele era um inglês
avisando as pessoas sobre os canadenses, que
aparentemente os atacavam com mosquitos robóticos. É,
se fosse com ele, ele provavelmente mandaria se danar
também, então voltaria a dormir.

Felix agachou e pegou um dos mosquitos queimados


da neve. Isso talvez os convencesse de que ele não estava
inventando coisas. Então ele olhou para cima e viu o ar
tremulando em sua frente. Ele piscou. A tempestade
estava piorando de novo?

Não— era uma maldita nuvem de pernilongos, se


dirigindo diretamente para ele. O ar vibrava com o bater
de suas mini asas mecânicas.

“Kira, depois te ligo de volta.” Felix guardou o


celular, segurou a raquete elétrica com as duas mãos e
começou a desferir golpes de maneira selvagem contra os
insetos ao seu redor.

470
Jaysara dirigiu devagar até o colégio abandonado,
com os faróis do carro acesos. Deitado no banco de trás,
Arthur Bell levantou a cabeça e espiou pela janela.

“Lugar amigável.” Art disse.

“Abaixe a cabeça!” Jaysara disparou. “Você sabe que


tem que tomar cuidado.”

Art abriu a boca para dar alguma resposta, então


mudou de ideia e voltou a se deitar.

“Davis talvez veja você.” Ela disse.

“Eu pensei que a ideia de chegar aqui mais cedo era


chegar antes dele.”

“Não quero arriscar.” Ela disse.

“Se isso fosse verdade, não estaríamos aqui.”

“Nem me fale.”

Jaysara dirigiu devagar em volta do prédio escuro e


coberto de pichações.

“Como você sabe desse lugar, afinal?” Art perguntou.

“Pensei que todos soubessem. Eu cresci aqui perto.


Quando eu estava no colégio, as crianças costumavam
entrar de fininho aqui para tirar fotos e...”

“E?”

“Explorar.” Ela terminou de dizer.

471
“Hum, sei.” Ele disse. “Eu costumava pegar garotos
invadindo lugares assim. Não parece seguro ali dentro.
Você não parecer ser do tipo exploradora urbana.”

“Eu costumava gostar de aventuras.” Ela suspirou.


Até que ela e seu namorado foram pegos por um policial
como Art. Seus pais ficaram menos chateados sobre o que
ela estivera aprontando do que com quem ela estivera.
“De qualquer forma, não vamos entrar. Não lá dentro.
Vou encontrar Davis no antigo campo de futebol.” Ela
diminuiu o carro. “É aqui que você desce. As
arquibancadas devem te fornecer visão o suficiente.”

“OK.” Art disse. “Tome cuidado.”

“Vou tomar. E é por isso que você está aqui.” Ela


piscou para ele pelo retrovisor.

Art desceu, fechando a porta tão silenciosamente que


ela mal o ouviu. Então ele sabia ser sorrateiro quando
queria... Mas ela sabia disso, baseado em tudo que ele
escondeu dela durante a investigação— baseado em seu
histórico da força, também. Mas desde que as clones
haviam sido expostas, desde que ele contara a verdade a
Jaysara e começara a trabalhar com ela — realmente
trabalhar com ela —, ele esteve compartilhando tudo.
Provavelmente até demais, como se ele quisesse consertar
suas mentiras não escondendo mais nada. Ou talvez ele
só apreciava conversar com alguém que realmente
entendi como era uma vida de proteção da lei. Ela
apreciava. E ela gostava de ter vantagem, junto com Art.

472
Ela dirigiu em volta da escola mais uma vez. Quando
ela chegou à entrada de novo, um sedã preto estava
estacionado lá, no lugar onde ela deixara Art.

Ela olhou para as arquibancadas, mas não viu sinal


dele — o que provavelmente significava que Davis não o
veria também. Ela assumiu que Art estava exatamente
onde haviam combinado e que agora era a vez dela.

Ela caminhou através da grama alta do campo de


futebol, escorregando para vinte anos no passado quando
ela andou ali pela última vez. Na época, como uma jovem
rebelde, ela jamais se veria como oficial da polícia, mas
ela não tinha perspectiva alguma para si mesma, na
verdade. Ela não pensava muito em seu futuro.

Fumaça de cigarro manchou o ar da noite. E onde


havia fumaça, havia...

Mais à frente, ela viu a sombra de uma figura e a


ponta brilhante de um cigarro. Como Davis havia chegado
até lá tão rápido? Ele parecia ter mais de sessenta anos e,
branco e pálido, não parecia estar na melhor forma.

Seu instinto dizia que ela deveria sair, mas ela não
podia simplesmente se virar agora—

Art estava em algum lugar, tomando conta dela,


como ele havia prometido. Ela também tinha que tomar
conta dele. Ela estava apenas apreensiva. Ela conseguiria
lidar com isso. Eles conseguiriam, juntos.

473
“Alexander Davis?” Jaysara perguntou, quando ele
estava ao alcance de sua voz.

Ele jogou o cigarro no campo e cinzas brilhantes se


espalharam, em seguida ele pôs uma das mãos no bolso
direito de seu casaco. Os dedos de Jay foram até a arma,
mas ele puxou um maço de cigarros e um isqueiro, suas
mãos curiosamente estranhas. Ele acendeu outro cigarro,
a chama do isqueiro iluminando sombriamente as rugas
e linhas de expressão em seu rosto, como se ele estivesse
prestes a contar a ela uma história de terror. Talvez ele
estivesse mesmo. Ele possuía uma braçadeira em seu
pulso direito; Jaysara se perguntou se escondia uma
arma.

“Boa noite, sargento Priyantha.” Disse Davis.


“Obrigado por vir.”

“Estou aqui. Agora, o que você quer? Você disse


informação, mas é só isso?”

“Acho que sabe o que eu quero. Já que você e seus


colegas não conseguiram prender o espião desleal sobre o
qual eu os avisei, eu tive que me expor para lidar com ela
eu mesmo.”

Jaysara tinha certeza de que teria achado aquilo


estranho, mesmo que não soubesse o que sabia sobre
Davis. Por que alguém de tão alto escalão ficaria exposto
para procurar pessoalmente por um agente desaparecido?

474
“O que você pode me dizer sobre o seu caso até agora?
Alguma pista que possa me ajudar a localizá-la?” Davis
tragou o cigarro.

“Temo que não muito.” Disse ela, tentando parecer


simpática. “Na verdade, eu pensei que tinha a
apreendido, mas...” Ela tossiu em sua mão. “Certamente
você já sabe que a agente Valdez é uma das clones que
estão no noticiário.”

Os olhos dele brilharam. “Então você prendeu a clone


errada! Qual delas foi? Ela ainda está em cativeiro?”

Aquela fora uma palavra assustadora para se usar.


“Você quer dizer custódia? Não. Depois que percebemos
que ela não era sua espiã, a deixamos ir.”

“Entendo.” Ele se aproximou dela. “Sabe, eu estava


pensando se Valdez — que é, afinal, uma operante
treinada pela CIA — poderia ter se misturado a estas
outras clones para semear confusão. Para sumir no meio
delas, por assim dizer.”

“Faz sentido.” Jaysara concordou, com cuidado.

“Alguma ideia de onde essas clones podem estar?”


Davis perguntou casualmente, mas Jaysara se forçou a
acalmar a respiração. Era uma armadilha? Será que ele
sabia que ela havia vindo diretamente da casa de Cosima
Niehaus?

Ela conseguiu forçar uma risada. “Só seguir as


câmeras e os caminhões de gravação.”
475
Davis franziu a testa. “Vamos falar sobre outro
assunto.” Ele disse, se aproximando ainda mais.
“Descobriu algo sobre a explosão do IPGT?”

“Acontece que sua agente foi liberada desta acusação


em particular.” Disse Jaysara.

“Ah, é?”

“É, a história meio que se perdeu com toda a


cobertura imprensa sobre o assunto, a coisa dos clones e
tudo mais, mas foi Nathaniel Sturgis, o diretor do IPGT.”

“Sturgis!” Davis sibilou. “O que Valdez é de você? Por


que a está protegendo?”

O que era Valdez de Jaysara? Não era sua amiga,


com certeza. Ela foi fundamental no resgate de Niehaus e
se ofereceu para defender a vila de Nasgwine'g. Então, no
momento, ela era uma aliada. Davis, por outro lado,
tentou matar um monte de clones doentes, por isso,
mesmo que os dois fossem espiões estrangeiros em seu
território, Jaysara sabia do lado de quem ela ficaria.

“Valdez é um beco sem saída, até onde minha


investigação foi.” Disse ela, tentando parecer razoável e
destemida. “Eu não sei muito sobre ela. Por que ela se
afastou? Por que você a quer tanto de volta? Deve ser
importante, se enviaram alguém como você até aqui para
buscá-la.”

“Ninguém me enviou. Eu vim aqui por minha conta.


Não gosto de fios soltos. Toda a minha carreira foi

476
construída tentando amarrá-los e manter a agência e a
nação a salvo.” Davis largou o cigarro e, de repente, tirou
uma arma da manga, mirando-a em Jaysara. “E agora,
sargento, lamento lhe informar, mas você se tornou um
fio solto. Vou perguntar uma última vez. Você sabe onde
a Valdez está? Pense com muito cuidado antes de
responder.”

Um tiro foi disparado.

Davis girou, lançando olhares descontrolados até se


concentrar nas arquibancadas a cem metros de distância.

Jaysara correu para cima de Davis.

477
A melhor presa era aquela que pensava ser o
predador.

Helena seguiu silenciosamente o homem idiota do


helicóptero através da floresta. Era tão fácil, com todo o
barulho que ele fazia, pisando em galhos, xingando e, às
vezes, disparando a arma na escuridão para se sentir
melhor. A luz da lanterna dele balançava para os lados,
indicando seu nervosismo. Helena não precisava de luz
para enxergar seu caminho no escuro e, de qualquer jeito,
o céu já ia se tornando cinza com o aproximar da manhã.

Homem idiota do helicóptero me leva em círculos,


seguindo meus rastros enquanto eu sigo os dele. Como
minhoca comendo o próprio rabo. Era uma distração
divertida, mas nada complicado comparado a escalar no
Yukon — ou criar dois garotinhos selvagens sozinha.

Não realmente sozinha, com suas sestras por perto


para ajudar. Mas, nos últimos meses nas montanhas,
foram apenas os três contra a natureza. Eles costumavam
jogar jogos de sobrevivência como esse por dias e dias.
Helena estava orgulhosa de que, às vezes, Arthur e
Donnie a tivessem rastreado com sucesso para variar, e
eles traziam de volta e cozinhavam o jantar todas as
noites. Eles poderiam ter ficado lá para sempre, mas
esquilo assado não se comparava a comer besteiras, então
Helena havia decidido que era hora de voltar. E sentia
falta do resto de sua família — ela costumava preferir
ficar sozinha, mas era bom ter um lar acolhedor para
voltar. Partir por um tempo a fez apreciar mais ainda

478
tudo o que tinha quando voltou. É claro que, enquanto ela
estava fora desta vez, tudo tinha virado uma bagunça.

E ela estava aqui para ajudar a consertar um pouco


daquilo. Quanto mais cedo terminasse de brincar com
esse homem, mais cedo poderia voltar para seus meninos
e retomar sua vida em Toronto, com suas sestras. Helena
acelerou, diminuindo o espaço entre ela e o homem do
helicóptero.

Ela também queria ficar de olho na nova sestra, Vivi


Valdez. Ela os estava ajudando, mas também se
mantinha fria e distante, o que significava que
provavelmente estava escondendo alguma coisa. Talvez
ela só não confiasse ainda em outros clones, mas Helena
sabia como era isso e com Vivi Valdez era diferente. O que
quer que ela alegasse estar fazendo, estava fazendo por si
própria, e Helena não podia confiar nela até que soubesse
o que era. Ela não matava ninguém há muito tempo, mas
se a espiã americana sacaneasse suas sestras, ela se
arrependeria.

Helena surgiu atrás de sua presa e cutucou seu


ombro. Assustado, ele deu um pulo e girou. Ele ficou
boquiaberto ao ver Helena, congelado.

“Boo!” Helena levantou os braços e mergulhou até


ele. Ele tropeçou e caiu para trás, com a bunda na neve.
Ele se atrapalhou com sua arma, mirando nela com as
mãos tremendo.

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Helena golpeou a arma para longe. Ela cuspiu nele.
“Você quer matar os habitantes inocentes da vila?
Crianças?”

“Eu não! Eu só piloto o helicóptero!”

Ele era o pior tipo de assassino, aquele que nem ao


menos via suas vítimas. O tipo que atiraria nas costas de
alguém no escuro, ao invés de olhá-lo de frente.

Ele avançou para Helena. Ah, então ele ainda sabia


lutar um pouquinho! Mas foi um grande erro.

Às vezes, a melhor presa era aquela que vinha até


você.

Helena o chutou no peito e ele caiu para o lado


esquerdo. Ele rolou para longe dela. Ela estendeu a mão
até ele e ele jogou neve nos olhos dela. Ela rosnou.
Momentaneamente cega, ela tateou, o agarrando pela
jaqueta. Ela o arremessou contra uma árvore, de cabeça.

Ela não o mataria, provavelmente, mas ela se


certificaria de que ele não conseguisse segui-la — ou
pilotasse de novo um helicóptero.

480
Jaysara tentou golpear Davis, mas ele avançou
contra ela mais rápido do que ela esperava, acertando o
cabo da arma em seu rosto. Ela cambaleou para trás, se
ajoelhando sobre um de seus joelhos, mas, quando
superou a dor, viu Davis sorrindo e segurando seu pulso,
a arma pendendo de sua mão. Ela se preparou para outro
golpe, mas então Art chegou, mirando a arma para a
cabeça de Davis.

“Solte a arma e coloque as mãos para cima.” Art


ordenou.

Davis levantou as mãos devagar, a arma ainda


pendurada em um dos dedos.

“Solte!” Art repetiu.

Davis soltou. Jaysara soltou a respiração.

“Você está bem, Jay?” Art perguntou.

“Estou bem.” Ela disse. “Razoavelmente


impressionada com você.”

Art fungou. “Venha.” Ele gesticulou com a arma para


que Davis os seguisse até os carros. Davis suspirou, mas
obedeceu. Art pegou a arma do homem caída no campo
sem tirar os olhos e a arma apontada dele.

“Posso acender outro cigarro, pelo menos?” Davis


perguntou.

“Não.” Jaysara e Art disseram, ao mesmo tempo.

“O que vamos fazer com ele?” Art perguntou.


481
“Matá-lo?” Jaysara disse.

“Jay!” Art disse.

“Estou brincando. Vamos prendê-lo. Acusá-lo de


tentativa de suborno, espionagem...” Jaysara coçou o
queixo. “Tenho muito a esclarecer.”

“Me poupe.” Davis disse. “Você não tem nada contra


mim. Em fato, você nem mesmo me tem.”

“Ah é, como assim, grandão?” Art disse.

“Porque nós temos vocês.” Uma voz feminina surgiu


da escuridão.

Uma mulher branca e loira surgiu por detrás do


carro de Davis e apontou uma arma para Art. Jaysara
lentamente tentou alcançar a sua própria arma.

“Não se mova.” Outra voz disse, à sua esquerda. Um


homem negro com um corte militar e um terno preto
clichê saiu de trás do carro de Jaysara, com uma arma já
apontada para ela.

“Não pensaram que eu viria sozinho, pensaram?”


Davis riu. “Só que parece que eu trouxe mais ajuda.”

“Largue sua arma ali.” A loira disse.

“Merda.” Art soltou a arma perto dos pés dela.

Jaysara tentou aproximar os dedos da arma em seu


coldre, torcendo para que eles não vissem o que ela fazia.
Lentamente, ela levantou a alça e tirou a arma—

482
“Largue sua arma também!” O homem de corte
militar disse.

Jaysara fingiu mexer na arma por um momento,


então a arremessou para ele. Ele a pegou e guardou.

“Só queria uma troca inofensiva de informações.”


Jaysara disse a Davis.

Ela mantinha a voz calma, sob controle, mas suas


palmas estavam geladas e sua bochecha latejava onde
Davis a acertara. Ela pensara ter sido tão inteligente,
chegando lá mais cedo, testando o terreno. Não havia sido
o suficiente.

“Volte para os seus amigos e diga que se preparem


para fazer uma troca.” Davis disse.

“O quê?” Jaysara perguntou. “Que tipo de troca?”

“Eu quero a arma. Você sabe do que estou falando e,


caso não saiba, Valdez saberá. Diga a ela que a traga para
mim. Ou extraditarei o sr. Bell aqui para uma instalação
da CIA sob suspeita de terrorismo.”

“Não.” Jaysara disse. “Eu irei com você, se soltar ele.”

“Desculpe, sargento. Com o que aprendi, a ausência


do sr. Bell motivará as clones a cooperar comigo mais do
que a sua. Além disso, eu prefiro irritar a Patrulha da
Fronteira do que a polícia real canadense.” Ele balançou
a arma para ela. “E já que estou falando disso, eu saberei
se você tentar contatar autoridades. Tente isso e Art

483
estará num avião para algum país de terceiro mundo com
leis de interrogatório extremamente frouxas.”

“Não se preocupe comigo, Jay.” Art disse, enquanto a


loira prendia suas mãos. “Mantenha minha família a
salvo!”

“Finalmente, estou lidando com um adulto.” Davis


disse. “Coloque-o no carro.”

A loira o empurrou para o banco de trás e entrou


atrás dele, enquanto o outro homem se juntava a Davis
na frente, ainda em posse da arma de Jaysara.

Jaysara esperou um momento depois de que eles


foram embora, pneus guinchando. Então ela correu até
seu carro e os seguiu.

Não demorou até que ela os perdesse de vista. Ela


encostou e checou seu celular. O pequeno dispositivo GPS
que ela havia anexado à sua arma enviava um bom sinal.
Ela viu o ponto que indicava o carro de Davis dirigindo
para o sul, de volta a Toronto.

“Aguente firme, Art.” Ela disse. “Estou indo.”

484
Charlotte estava em seu quarto de brinquedos, seu
cabelo recém penteado, vestindo um vestido claro e
brincando com suas bonequinhas de papel. Uma longa
corrente, feita a partir de uma folha interminável de
papel branco, centenas e centenas delas. Ela sentava em
uma cadeira de seu tamanho com a tesoura na mão,
cuidadosamente libertando as pequenas garotas de papel,
uma de cada vez. Clip. Clip. Cada uma flutuava
silenciosamente até o chão de carpete enquanto ela
cantava.

“Um, dois, afivele meu sapato... Três, quatro, feche a


porta...”

A porta do quarto se fechou. Charlotte se virou na


cadeira, com um susto. A porta estava fechada, mas
ninguém estava lá.

“... Mãe?”

Ela se levantou, assustada, e hesitantemente deu


um passo em direção à porta. A porta pareceu diminuir
na distância. Ela deu outro passo e outro. A cada passo
que dava, a porta se afastava mais. Charlotte andou mais
rápido, mas não adiantou. Ela começou a correr, depois
lembrou que ainda tinha a tesoura na mão. Ela parou e
olhou para baixo, se sentindo culpada.

As lâminas da tesoura estavam vermelhas.

Se sentindo enjoada, Charlotte se virou para olhar a


cadeira em que estivera sentada. Lá, no carpete, mais
vermelho. As pequenas meninas de papel. Ela as cortara.
485
“Não, não, não... me desculpem...” Ela começou a
chorar, correu de volta para lá e se ajoelhou no carpete,
tentando juntá-las de novo.

“Está tudo bem.” Disse sua mão gentilmente, atrás


dela. “Não é sua culpa. Está vendo?”

Charlotte se virou e viu Marion Bowles em pé, um fio


interminável de bonecas de papel a envolvendo como
enfeites numa árvore. Mas o papel não era mais branco,
era vermelho e estava pingando, pingando, estragando o
vestido branco da mãe e o carpete.

“Não chore.” Disse a mãe. “Você vê, não vê? Elas


sempre foram vermelhas.”

Charlotte acordou subitamente.

Ela respirou fundo, se sentou e afastou o cabelo


suado de sua testa. Estava tudo bem. Ela estava melhor.
Aqueles eram apenas resquícios de pesadelo enquanto ela
dormia e se curava dos últimos traços do vírus.

“Isso foi angustiante.” Ela disse, testando sua voz na


sala vazia. Soava ríspida e rouca. Ela lembrou que havia
comido alguns brownies. Isso explicava aqueles sonhos
malucos; tinha que se tomar cuidado ao comer comidinhas
assadas na casa de tia Cosima. Sempre perguntar antes.

Ela estava no quarto do porão de Cosima e Delphine.


O ambiente familiar era reconfortante — um pouco frio,
ela notou, enquanto tirava as cobertas de cima do corpo,
ainda úmida de suor. Ela precisava muito de um banho,

486
mas precisaria comer algo primeiro se tivesse intenção de
ficar em pé tanto tempo.

Uma das roupas felpudas de tia Cosima estava


pendurada de forma convidativa sobre as costas da
cadeira, bem em sua linha de visão. Aquilo a aqueceu
antes mesmo de vesti-lo, dando um pequeno
estremecimento de alívio.

Havia vozes no andar de cima. Risos.


Cuidadosamente, apoiada no corrimão, Charlotte subiu
as escadas e seguiu o caminho para a cozinha. Quatro de
suas tias estavam apoiadas na bancada: Sarah, Alison,
Cosima, Delphine. Parecia uma venda de bolos lá; a
bancada estava coberta com muffins, biscoitos e mais
daqueles brownies. Seu estômago roncou.

“Ela acordou!” Cosima a viu e deu um de seus


clássicos e brilhantes sorrisos. Parecia uma eternidade
desde que ela a vira sorrir assim. Era outro sonho da
febre? Alguma situação assustadora de sonhos dentro de
sonhos? Não, por mais tonta que ela se sentisse, não tinha
como se confundir. Ela não cheiraria a suor em sonhos.

O que ela havia sonhado antes, mesmo? Alguma


coisa estranha. Arrepiante. Ela não sabia se queria se
lembrar.

“Como se sente?” Delphine perguntou.

“Bem...” Charlotte respondeu. “E, hum, com fome.


Com sede. Mais sede.”

487
“Eu cuido disso.” Disse a tia Alison, pulando para
pegar um copo. “Quer gelo?”

“Na verdade não, estou um pouco gelada. Só água


está bom.”

Charlotte sentia como se estivesse a anos luz dali,


enquanto todos se inclinavam sobre ela para observá-la,
comentando sobre como estava pálida, opinando sobre
que ela deveria comer primeiro.

“Foi por causa dela que eu fiz os brownies de


caramelo.” Delphine insistiu. Ah, então não tinha nada de
errado com aqueles brownies.

“Mas você não pode ir logo comendo esse tanto de


açúcar.” Cosima argumentou. “Ela precisa de proteínas.”

Charlotte abriu um fraco sorriso, dividida entre a


afeição por sua família maluca e o peso do que eles ainda
não sabiam. Delphine teria feito os brownies, se soubesse?

“Biscoitos com manteiga de amendoim.” Disse


Alison. Charlotte pensou que Alison estava dando mais
um de seus xingamentos ‘puros’, mas quando a tia se
dirigiu à despensa e começou a preparar o lanche, ela
entendeu que ela queria dizer literalmente.

Charlotte de repente se sentiu enjoada, o que não


tinha nada a ver com sua recente doença. E ela sabia que
aquela sensação não iria embora até que ela fizesse algo
horrível, algo que ela não queria fazer. Mas ela não tinha
escolha.

488
“Fui eu.” Charlotte disse. “Fui eu. Eu contei a eles.”

A cozinha ficou quieta, exceto pelo som da tia Alison


puxando biscoitos do pacote de plástico.

“Foi você que o quê, querida?” Disse Alison.

Cosima a encarava, sem expressão. “Oh... merda.”


Ela disse, baixo.

“Charlotte...?” Disse Sarah. Seu rosto se contraía


com o início de um ataque de raiva. “Explique. Agora.”

“Eu contatei a imprensa.” Charlotte disse. “Bom,


Kira contatou. Foi minha ideia, mas eu não podia, do
hospital, então foi ela quem—”

O pote de manteiga de amendoim caiu para o chão e


se abriu.

“Como ousa!” Ah, agora Alison estava com raiva. Ela


também tinha nas mãos uma faca coberta de manteiga de
amendoim, o que deixou Charlotte um pouco nervosa. “O
que estava pensando!”

“Ela não estava pensando direito.” Disse Delphine,


ríspida. Ela parecia ter mordido um limão. “Ela estava
delirante.”

“Não estava!” Charlotte protestou. “Bom, eu estava,


por isso eu tive coragem. Mas eu não estava errada.”

Todos os quatro adultos a encararam em choque


absoluto. Delphine respirou fundo pelo nariz, abriu a boca

489
como se quisesse dizer alguma coisa e depois soltou um
suspiro raivoso.

“Delphine...” Cosima começou a dizer.

“Eu sei.” Disse Delphine com firmeza. “Eu sei. Eu


não posso — essa não é a minha luta. Desculpe. Eu
preciso... ” Ela não terminou de dizer o que precisava
fazer, mas o que quer que fosse, aparentemente era no
escritório. Com a porta fechada.

Três, quatro, feche a porta... Ela perderia todas elas.

“Pensei que havia sido Rachel.” Tia Sarah disse, sua


voz tremendo de fúria. “Era a única pessoa que eu
imaginava capaz de ter um coração tão frio e ser tão
vingativa para—”

“Sarah...” Disse Cosima, se virando para encará-la.


“Se acalme. Pelo menos dê a ela a chance de se explicar.”
Cosima se virou para Charlotte. “Charlotte. Por que?”

“Você sabe o porquê. Já tivemos essa conversa antes,


não que alguma de vocês tenha prestado muita atenção.”

“Oi??” Alison interrompeu.

“Não, é minha vez de falar.” Charlotte disse. “Só


escutem, pra variar.”

Para sua surpresa, elas pararam para escutá-la.


Todas as três olhavam para ela como se tivesse chifres em
sua testa.

490
“Vocês têm alguma ideia de como é falar coisas
perfeitamente sensatas, de novo e de novo, e ser ignorada
simplesmente por causa da sua idade? Nenhuma de vocês
sequer se importou em me dizer porque o que eu estava
dizendo estava errado, vocês simplesmente se recusaram
a reconhecer o que eu dizia. Como se nada que saísse da
minha boca pudesse ser importante.”

“Charlotte...” Disse Cosima, gentilmente. “Nós


nunca—”

“Está fazendo de novo! Me dispensando, sendo


complacentes comigo, e por que? O que te torna mais
razoável do que eu? Você nunca me deu uma boa razão
para tanto sigilo, nunca me deu uma única vantagem
para ser assim. Tudo o que você dizia era que minha ideia
causaria problemas. Sério? Causar problemas?”

“Bom, para ser justa...” Disse Cosima, obviamente


fazendo um esforço hercúleo para se manter calma. “Meio
que causou. Não sei o quanto você se lembra, mas—”

“Eu lembro o suficiente. E sim, eu concordo, a


situação é péssima. Mas já não era ruim? Ser um clone é
uma merda! Nenhum contato com mídias sociais. Sem
amigos íntimos. Não apresente ninguém. Não fale sobre
isso. Não deixe sua foto ser publicada no jornal da escola.”
Ela olhou para elas, deixando seus olhos passarem de
Alison para Sarah, então para Cosima. “Eu sei que todos
vocês já se sentiram assim. É uma merda! Desculpe por
dizer isso, mas é verdade. E a resposta de vocês é apenas

491
fingir que não são clones e torcer para que o resto do
mundo finja também? Para sempre? Não vai dar certo!”

Ela estava gritando agora, com a garganta doendo.


“Mídias sociais crescendo. Acesso instantâneo a notícias
internacionais. Centenas de clones que nem ao menos
sabem que precisam supostamente ter cuidado com sua
imagem. Sem mencionar a nova tecnologia de segurança
biométrica. Você acha que eles vão reverter isso? Vocês
todos querem continuar se escondendo, mesmo que esteja
arruinando suas vidas! Arruinando minha vida e a de
Kira. Deveríamos ter uma opinião sobre o que acontece
conosco. É tudo o que sempre quisemos. Isso e um futuro
real para nós.”

Charlotte finalmente ficou sem fôlego e talvez sem


mais palavras. Houve um silêncio absoluto. Alison de
repente notou a faca em sua mão e foi até a pia para
começar a lavá-la.

“Merda.” Sarah disse suavemente. “Charlotte... Você


está certa.”

“Oi?” Alison perguntou.

Por um momento, Charlotte pensou estar alucinando


novamente. Um dos clones realmente havia dado ouvidos
a ela e concordado? E ainda por cima foi Sarah.

“Está brincando comigo?” Charlotte perguntou.

“Não, finalmente estou te ouvindo. Demorou muito,


me desculpe.” Sarah deu um tapinha no banquinho ao

492
lado dela. “Venha sentar. Vamos conversar. Conversar de
verdade.”

Sarah olhou para suas mãos. “Você pode não


acreditar nisso, mas eu sei como você se sente. Sra. S não
me tratar como adulta foi uma das razões pelas quais eu
fugi dela por tanto tempo. Claro, eu não estava
exatamente agindo como adulta também, mas esse não é
o ponto. Eu a empurrei para longe e agora...” Sarah
fechou os olhos e sua voz tremeu. “Kira está fazendo o
mesmo comigo.” Ela abriu os olhos e olhou para Cosima,
Alison e Charlotte. “Precisamos ouvir mais. Todas nós.
Você e Kira são de uma geração diferente, com sua
própria voz. E não podemos ditar como vocês vivem suas
vidas.”

Lágrimas brotaram dos olhos de Charlotte.


“Obrigada.”

“Mas assim como comigo fugir não foi a coisa certa a


se fazer, contar ao mundo nosso segredo também não era
certo.” disse Sarah.

“Ainda discordo. Embora isso piore tudo em curto


prazo, a longo prazo isso é a coisa certa a fazer. A única
coisa possível de se fazer.”

“E agora quem está parecendo um adulto


palestrinha?” Sarah sorriu.

“As coisas vão piorar antes de melhorar.” disse


Cosima.

493
“Sempre pioram.” Alison disse.

“Tia Cosima, você estava jogando fora sua carreira.”


Disse Charlotte. “Tia Sarah, você pode até gostar de viver
fora da rede, mas Kira não.” Sarah se encolheu.
“Eventualmente, precisamos reunir coragem e lidar com
o que somos. Então vão em frente, me castiguem, se
quiser. Como se o mundo já não estivesse dando o melhor
de si para isso.”

As outras ficaram em silêncio por um longo tempo.


Alison se virou, incapaz de olhar Charlotte nos olhos. Mas
Cosima se levantou e a alcançou para abracá-la.
Charlotte ainda estava tensa, ainda um pouco irritada,
mas se sentia tão exausta que cedeu.

O abraço foi ainda melhor do que deveria. Ela não


conseguia encontrar energia para abraçar de volta, então
apenas se inclinou até ela.

“Precisaremos conversar mais sobre isso.” Disse


Cosima. “Eu posso estar brava com você agora, mas isso
vai passar. E suponho que o resto dessa bagunça também
vá passar, de um jeito ou de outro. Mas prometo que
nunca mais vou ignorar o que diz, OK?”

“OK. E o que vão fazer comigo?” Charlotte


perguntou, cansada, por cima do ombro de Cosima.

“Bem, a primeira coisa que vamos fazer...” Disse


Cosima “É fazer você comer alguma coisa. Mas
imediatamente depois— temos que te colocar no chuveiro.
Você está fedendo.”
494
Charlotte ficou surpresa, soltando uma risada
trêmula.

Ela as amava, não podia evitar. Mesmo com todo


orgulho delas. Elas provavelmente nunca iriam admitir
que ela agira corretamente ao expor as clones, não em
tantas palavras, então aquela conversa provavelmente
seria o mais próximo que ela jamais conseguiria disso. E,
por enquanto, bastava.

495
Enquanto o amanhecer surgia em uma manhã
sombria, flocos de neve ainda caindo insistentemente,
Kira, Em e Dana chegaram a Nasgwine'g. As luzes de
energia solar da rua piscaram quando chegaram, o que
Kira esperava que não fosse um mau presságio.

Elas caminharam com a pasta de Kurzmann aberta


para que pudessem rastrear a localização dos quatro
pontos. Ela os observara convergir para o centro da
cidade, onde haviam parado de se mover.

Algo zumbiu perto do ouvido de Kira. Ela se abaixou


e procurou a fonte. Sentiu uma dor aguda na testa e
reagiu com um tapa. Algo pequeno se desfez sob a mão
dela.

Ela achou um mosquito de metal esmagado em sua


palma da mão. Aqueles pequenos drones eram mais
frágeis do que ela esperava. Ela avaliou o vergão
crescente na testa e examinou a mancha de sangue em
seu dedo.

“Vocês acham que eles infectam todos com a doença


ou que checam o DNA das vítimas antes de injetar a
carga?” Ela refletiu, em voz alta.

“É uma tecnologia maravilhosa, com certeza, mas


para onde estamos indo mesmo?” Perguntou Dana,
impaciente.

“Então você é um vetor da doença agora?” Em


perguntou. Ela deu um tapa na nuca. “Ai! Também sou

496
vetor?” Ela suspirou. “Eu já estou odiando essas
coisinhas."

“Você está dizendo que não devemos interagir com os


moradores, caso estejamos infectados?” Perguntou Kira.

Em encolheu os ombros. “A julgar pela telemetria, há


mais mosquitos do que habitantes, então duvido que
precisem de mais portadores humanos para espalhá-la.”

“Fascinante.” Disse Dana. “Mas esses pontos


rastreadores supostamente estão bem na nossa frente,
então onde eles estão? E o que são eles?”

Kira olhou à sua volta. Elas estavam em pé em uma


pequena praça ao lado de uma fonte desativada e coberta
de neve. Do outro lado, quatro homens vestidos com
parkas pretos, calças pretas e bonés pretos estavam de pé
ao lado de um gazebo branco. Eles carregavam maletas
de aço, como a que estava nos braços de Kira.

Ela fez contato visual com um dos homens. Os lábios


dele se moveram, dizendo algo. Então ele alcançou algo
em suas costas. Algo de um metal escuro brilhou em sua
mão.

“Protejam-se!” Kira gritou. “Eles estão no gazebo!”

Ela, Em e Dana correram em direção à fonte e se


esconderam atrás dela. Ela ouviu um ruído suave e um
pedaço da fonte se partiu e voou sobre suas cabeças.

497
“Bacana.” Disse Dana.

Nesse momento, um homem e uma mulher saíram


de um café e caminharam em direção à fonte, xícaras
fumegantes nas mãos.

“Abaixem-se!” Dana gritou. “Alguém está atirando


em nós!”

O casal ficou assustado. Eles encaravam Dana


boquiabertos, como se ela fosse uma alienígena.

“Ai, meu Deus. Essa não é uma daquelas clones?”


Disse a mulher.

Eles se afastaram um pouco. O homem largou o café


para tirar uma foto de Dana com o celular.

“É sério isso?” Dana apontou para o gazebo. “Eles.


Têm. Armas!”

Kira se sentiu abruptamente culpada. No fundo, ela


nunca esperara que as pessoas fossem ter medo ou ódio
das clones, mas esses dois estavam claramente alarmados
ao ver um deles em sua própria aldeia. Não importava se
Dana estivesse tentando protegê-los de uma ameaça real
à vida deles.

Os dois moradores se viraram e correram para longe.


Bom, pelo menos eles estavam indo embora dali.
Provavelmente para publicar a foto de um clone online.

“Saiam, saiam, onde quer que estejam!” Um dos


homens cantarolou, enquanto deixava o gazebo

498
brandindo sua arma. “Ah, deixa pra lá. Nós sabemos onde
vocês estão.”

Kira e Em se abraçavam enquanto Dana teclava algo


no celular.

“O que faremos?” Em sussurrou. Desta vez, era ela


quem estava tremendo.

“Vamos esperar pelos reforços. Acabei de enviar uma


mensagem para a Vivi.” Disse Dana. “Ela virá.”

“Talvez não precisemos esperar reforços.” Kira


acenou com a cabeça em direção à rua principal. Um
grupo de moradores se dirigia para a praça, incluindo seu
tio Felix. Seu rosto estava marcado com pequenas
manchas vermelhas e ele segurava sua raquete elétrica
como se fosse a coisa mais preciosa do mundo. “Eles com
certeza não vão atirar em nós na frente de todas essas
pessoas.”

“E eles não vão atirar em todo mundo?” Em


perguntou. “Eles estão tentando matá-los, afinal.” Outro
mosquito zumbia em volta de suas cabeças. Dana deu um
tapa nele.

“Todo mundo se afaste!” Disse o líder da equipe de


operação. “Nós rastreamos vários clones perigosos até
essa vila e precisamos prendê-los imediatamente.”

“Esse cara aqui está com eles?” Perguntou um dos


moradores. “Ele ficou andando por aí, gritando sobre uma
história louca de mosquitos assassinos.”
499
“Ah, é? Isso definitivamente faz dele uma, hum,
pessoa de interesse. Deixe-o conosco.”

“Você deixe o tio Felix em paz.” Kira murmurou. “Eu


preciso pegar uma das pastas no gazebo.”

“Você não chegará perto deles sem uma distração.”


Dana ficou em silêncio. “Bem, merda.”

“O quê?” Kira perguntou.

“Eu tenho que ser a distração.” Dana sorriu. “Faça


valer a pena.”

“Espere.” Disse Kira.

Dana levantou-se com as mãos sobre a cabeça. “Não


atirem!” Ela gritou. “Eu me entrego.”

500
Vivi estava ocupada desviando dos tiros de Greg
Kurzmann quando seu telefone vibrou. Era uma
mensagem de Dana: “Na aldeia. Cercadas por homens de
Kurzmann. Uma ajuda seria ótima.”

Vivi sentiu uma onda de ansiedade ao pensar que


Dana estivesse em perigo — e por causa dela. E não
apenas Dana, mas também Helena, que ainda estava lá
fora, sendo perseguida pelo piloto do helicóptero. E
provavelmente Felix, Kira e Emmaline não estavam
muito melhor, onde quer que estivessem. Todo o seu plano
de se dividirem e se espalharem estava indo para o
inferno.

Havia uma razão para ela geralmente trabalhar


sozinha. Ela era capaz de se livrar de problemas,
normalmente, mas outras pessoas eram pesos. Ela não
poderia fazer seu trabalho se tivesse que se preocupar em
cuidar deles também.

Vivi espiou por trás da árvore que estava usando


para se esconder e deu um tiro em direção a Kurzmann.
Ela duvidava que ele quisesse ser visto perto de
Nasgwine’g agora, ainda mais com uma arma nas mãos,
e ela precisava ajudar Dana, rápido. Ela decidiu tentar
fugir dali.

Vivi disparou outro tiro e depois correu na direção


oposta. Ela passou rapidamente por entre as árvores,
tentando colocar o maior número possível delas entre ela
e Kurzmann. Ela podia ouvir balas se chocando nos
troncos das árvores ao passar por elas.
501
Ela já estava perto da vila quando recebeu o SOS de
Dana, se encaminhando para lá para se encontrar com o
grupo, conforme o plano. Então ela chegou lá
rapidamente, observando as pitorescas lojas e casas de
madeira com desdém. Havia uma comoção na rua
principal, então ela se juntou à massa de pessoas que iam
para lá.

Uma pequena multidão, cerca de vinte pessoas,


estava de pé no que provavelmente era a praça principal
da vila. Enquanto Vivi se aproximava, ouviu outra porta
se abrir e um casal mais velho também se juntou ao
grupo. Voltem para dentro, ela queria gritar. Procurem
abrigo, idiotas! Vírus mortal no ar! Mas não tinha como,
pois todos assistiam ao capanga de Kurzmann, que tinha
pegado Dana.

O mercenário estava atrás dela, com um braço em


volta de seu peito, a outra mão segurando uma arma na
cabeça dela. Dana parecia absolutamente aterrorizada.
Então Vivi chegou perto o suficiente para escutar o que
ele dizia.

“...viram elas, você sabe o que ela é, ela é um clone!


Assim como eles enviaram salmões geneticamente
modificados para invadir o rio de vocês e deixaram os
pesticidas livres para serem carregados pelo vento e
corromperem suas colheitas, agora eles enviam humanos
geneticamente modificados para destruir sua aldeia!”

Ah, merda.

502
Os moradores murmuravam entre si. Alguns deles
erguiam celulares, gravando a coisa toda. Dana começou
a gritar algo em francês. Vivi desejou poder entender.

É isto, assim que nos livrarmos disso tudo, vou entrar


num curso de idiomas. E vou levar a sério desta vez, ela
pensou.

O que quer que fosse que ela estava dizendo, os


moradores estavam ouvindo, pelo menos. Eles olhavam
em volta inquietos agora, mas para o ar, e não um para o
outro. Dana havia contado sobre os mosquitos! Então uma
garotinha viu Vivi e apontou para ela. Jesus, havia
crianças ali. Vivi havia se esquecido por um momento de
que o vírus mataria todo mundo em Nasgwine’g, até
mesmo as crianças.

Aparentemente, “clone” tinha o mesmo som em


francês e em inglês, porque era isso que todos gritavam
quando a multidão se virou e se aproximou de Vivi.

“Vivi!” Kira gritou. “Atrás de você!”

Vivi se virou, esperando encontrar mais moradores


irritados, talvez munidos de forquilhas. Em vez disso, era
Greg Kurzmann, suado e sem fôlego, apontando a arma
diretamente para ela.

“Acabou.” Disse ele.

Vivi poderia tê-lo desarmado ou se esquivado


facilmente, mas sua rápida análise mental da situação
lhe dizia que existia uma boa chance de alguém na
503
multidão se machucar ao invés dela. Ela não queria mais
culpa ou sangue em suas mãos nesta missão.

“Jogue sua arma para cá.” Ele disse a ela, um sorriso


presunçoso no rosto. “Então vá se juntar à sua irmã.” Ele
apontou a arma na direção de Dana.

Ela olhou para Dana. Vivi poderia lutar, e


provavelmente conseguiria fugir, mas provavelmente
matariam Dana. E então todos os moradores de
Nasgwine'g morreriam com o vírus. Vivi não poderia
abandoná-los assim, mesmo que ainda soubesse como
poderia virar a situação ficando ali.

Ela jogou a arma na neve e caminhou em direção a


Dana.

“Me desculpe.” Vivi sussurrou enquanto tomava seu


lugar ao lado de seu clone.

Dana deu de ombros. “Eu tomei minha decisão. E


você veio quando eu precisei de você.”

“Não ajudou muita coisa.”

“Faz eu me sentir melhor, tendo você aqui— tendo


você de volta na minha vida. Ou o que resta dela.”

Vivi pensou que provavelmente deveria dizer algo no


mesmo estilo, mas ela não era assim. E ela não tinha
certeza de que realmente se sentia da mesma maneira. O
surgimento repentino de clones complicou demais a vida
de Vivi e efetivamente encerrou sua carreira, a menos que

504
ela pudesse se provar inteligente e valiosa o suficiente
para que a aceitassem de volta.

A multidão estava ficando mais irritada, agitada com


a visão de dois clones de pé lado a lado. Então Vivi avistou
algo que com certeza os deixaria mais agitados.

“Nós não somos o inimigo! Somos inocentes, assim


como vocês.” Dana tentou apelar novamente para os
moradores. “Nós também somos vítimas. A maneira como
a sociedade e o governo os trataram, os baniram e os
fizeram de bode expiatório... É isso que minhas irmãs e
eu estamos enfrentando agora. Não façam parte disso.
Não cedam ao ódio ignorante. Esses homens estão aqui
para acabar com vocês e estão nos usando para distraí-
los. Nenhum clone é uma ameaça para ninguém!”

Nesse momento, Helena saiu correndo de trás do


caminhão. Ela havia perdido o boné e seus cabelos
balançavam descontroladamente em volta da cabeça. Sua
boca estava manchada de sangue, mas Vivi estava
parcialmente certa de que não era dela. Pessoas gritaram.

Helena pegou Kurzmann de surpresa, puxando sua


arma e atirando contra um de seus homens. O joelho do
homem explodiu em sangue e cartilagem, e ele caiu,
enquanto seus amigos xingavam e recuavam, segurando
suas próprias armas, mas não atirando para não
atingirem seu chefe.

Kurzmann resistiu, mas Helena ainda segurava a


mão dele em um aperto tremendo, para que ele não

505
pudesse fugir. Vivi se moveu para ajudá-la. Ela deu um
soco no rosto de Kurzmann e ele caiu como um saco de
batatas. Tão satisfatório.

Ela assentiu para Helena. Helena sorriu. Sim, era


definitivamente o sangue de outra pessoa, como um
batom macabro. Bizarro.

A multidão explodiu em gritos, não por causa das


clones desta vez, mas devido à nuvem cintilante de
mosquitos pairando ao seu redor.

“Viram? Eu disse!” Felix girava com sua raquete no


que parecia ser um balé cômico. Ele acertou um golpe no
ar, então caiu em um monte de neve e se levantou
novamente para balançar a raquete. Desta vez,
funcionou. Faíscas estalaram quando o pequeno mosquito
fritou.

Vivi virou-se. “Kira! As pastas!” Ela tinha de recolher


os mosquitos imediatamente. Talvez eles pudessem pelo
menos salvar alguns dos moradores, se os que já estavam
infectados não fossem contagiosos. “Onde está Kira?”

Em se levantou da fonte em que ela se escondia. Ela


apontou para o gazebo. Vivi seguiu seu dedo e viu Kira lá
dentro, mexendo em quatro maletas abertas. Um
momento depois, tudo ficou quieto. Sem mosquitos
zumbindo. Sem gritos.

Ao redor deles, os mosquitos caíam na neve branca.

Vivi voltou-se para Kurzmann. “Agora acabou.”

506
Ainda caído de costas, Kurzmann sorriu
selvagemente para ela do chão. “Não tenha tanta certeza
disso. Eu tenho amigos poderosos e influentes.”

Vivi imitou a expressão dele. “Você vai precisar


deles.”

507
Vencemos, Kira pensou. Enquanto Dana explicava à
multidão atordoada o que havia acontecido, com a
evidência dos mosquitos à sua volta, o humor dos
moradores mudou— embora eles ainda mantivessem
certa distância dos clones.

A polícia local chegou logo para prender Kurzmann


e seus homens. Enquanto isso, cerca de uma dúzia de
moradores começaram a entrar em pânico porque tinham
picadas de mosquito. Eles precisavam de atenção médica
imediatamente, se já não fosse tarde demais. Eles
precisavam de uma cura.

Kira viu Vivi inclinar-se brevemente sobre a neve,


antes de se endireitar novamente e começar a caminhar
em direção ao gazebo.

“Boa.” Disse Vivi. “Você seria uma ótima espiã um


dia.”

Kira corou. “Estou feliz que acabou.”

“Quase acabou. Ainda há muito o que fazer.” Vivi


acenou com a cabeça em direção às pastas aos pés de Kira.
“Cuidado com isso. Os policiais provavelmente as
recolherão como prova.”

Kira olhou para as maletas. “Talvez você quem


devesse entregá-las.”

Vivi balançou a cabeça. “Provavelmente não é uma


boa ideia. Além disso, essa foi sua operação. Você merece
as honras. A propósito, sua amiga está olhando para cá.”

508
Kira se virou. Em encontrou seu olhar, e sua
expressão era tudo.

“Vá em frente.” Vivi a encorajou. “Eu já vou.”

“Obrigada, Vivi.” Disse Kira, antes de se afastar. Em


sorriu calorosamente ao ver Kira se aproximando e pegou
mão dela, enviando uma onda de emoção quente através
dela. Além de Em, ela viu Helena e Dana conversando
baixinho, Felix conversando animadamente com a polícia.
Tudo ficaria bem.

Mas quando Kira olhou por cima do ombro, Vivi


tinha desaparecido.

509
Episódio 10

Abrace a
diversidade

‘Cosima e Delphine confrontam o


verdadeiro responsável por trás de tudo.’
Anteriormente, em Orphan Black: TNC:

Felix, Vivi e Dana vão juntos ajudar Kira. Pensando


que o Clube das Clones pode ajudá-lo a obter a arma,
Davis captura Art e o usa como moeda de troca. Vivi
confronta o desenvolvedor da arma do Departamento de
Defesa. Charlotte revela que foi ela quem expôs os clones.
“Onde ela está?” Sarah andava pela sala de estar.
Todos sabiam da existência de clones, cientistas estavam
por aí criando doenças fatais e Kira não respondia
ligações. “Cadê a droga do Felix? Ele já deveria ter
ligado!”

Cosima, que não estava no mesmo humor


eletroestático de Sarah no momento, caminhou até a
cozinha e sentiu o cheiro no ar. “Hummm, o que é isto?”
Ela perguntou, se inclinando sobre a bancada até
Delphine.

“Alguns biscoitos.” Delphine disse, afastando uma


mecha de cabelos úmidos de sua testa com as costas da
mão e corando ligeiramente. “Não consegui falar com
ninguém da força tarefa e não penso em mais nada que
eu possa fazer para ajudar, então... É isso que chamam de
cozinhar por estresse?”

“Parece uma reação adequada ao estresse.” Cosima


brincou. “Quanto tempo até ficarem prontos?”

“Hum...” Delphine olhou para o timer. “Quinze


minutos?”

“Talvez pudéssemos—”

A sugestão de Cosima foi interrompida por um


guincho vindo da sala. Ela trocou um olhar exasperado de
preocupação com Delphine e foi até a sala ao lado.

“É lá que ela está, não é? É lá que ela está e estão


fazendo a porra de uma revolta anti-clones lá—”

512
Cosima desviou sua atenção dos gritos de Sarah para
a TV. A tela mostrava vídeos de baixa qualidade feitos
com o celular de alguém que filmava uma multidão de
pessoas raivosas no meio de uma nevasca e, pela deusa,
sim, havia uma clone, Dana, com uma arma apontada
para sua cabeça. “Ah, merda.” Alguém disse ao lado de
Cosima, mas ela não conseguia tirar os olhos da tela.
Então Vivi apareceu, andando devagar, e a multidão
parecia pulsar de raiva. Alguém gritou. A gravação deu
um pulo, balançou, então foi cortada. “Merda.” Cosima
disse.

“Quem sabe há quanto tempo foi isso?” Sarah gritou,


balançando os ombros de Alison. “E ela ainda não ligou.
Eu vou para lá.”

“Ei, ei, vai levar horas para chegar até—”

A tentativa de Cosima para acalmar as coisas foi


interrompida quando Delphine suspirou de surpresa e
agarrou seu braço.

“É Eloise! A general Thibault!”

Cosima voltou a olhar para a televisão, onde uma


mulher mais velha e robusta conversava com o âncora em
um set de gravação. “É aquela lá, da força tarefa
importante?” Ela perguntou. “O grupo que decidiu
reforçar a segurança biométrica?”

Delphine dispensou o sarcasmo com um aceno. “Ela


é praticamente minha única aliada dentro da força tarefa.
Ela é militar, então claro que não concorda totalmente
513
comigo, mas pelo menos ela é disposta a ouvir...” Ela
parou de falar, encarando a TV.

“Como eu disse...” A general explicava. “Enquanto


não descobrimos a história completa do que causou a
irrupção da violência nessa vila pacífica, é bem claro, pelo
vídeo, que as clones estão incitando inquietação—”

“Oi??” Sarah gritou para a TV.

“— e já passou da hora do governo canadense fazer


algo em relação a isso. Não podemos apenas ignorar estes
indivíduos desconhecidos, que podem até mesmo ter
alguma espécie de agenda estrangeira gravada em seus
DNAs...” Todos na sala gritavam agora. “Temos que
tomar uma atitude e investigar o que realmente está
acontecendo aqui!”

“Desliga isso!” Alison chiou.

“Não!” Os outros gritaram ao mesmo tempo.

“Precisamos saber o que está acontecendo.” Cosima


disse.

“Não entendo...” Delphine murmurou. “Ela parecia


compreensiva e disposta...”

Sarah andava de um lado para o outro de novo. “Kira


pode ter sido capturada no meio da rebelião. Cos...” Sarah
disse. “Cos, você tem que ligar para ela. Ela não vai
atender se for eu.”

514
Cosima pegou o telefone, ativou o viva-voz e discou o
número de Kira. Tocou apenas uma vez até que ela
atendesse.

“Conseguimos! Conseguimos!”

“Kira!” Cosima cortou os gritos de excitação dela.


“Você está bem?”

“Sim, tia Cos, estou bem.”

“Então fale com sua mãe! Não vou te dar mais


cobertura!”

Cosima passou o telefone para Sarah, que o pegou


como se ele pudesse explodir a qualquer momento. “...
Olá?”

“Oi, mãe.” Kira soou mais resignada do que


entusiasmada, mas pelo menos ela estava conversando.

“Kira.” Sarah suspirou o nome da filha, colapsando


no sofá. “Você está bem?”

“Estou bem, mãe.” O revirar de olhos quase foi


audível pelo celular. “Salvamos a vila e o genoma deles e
estamos a caminho de casa...”

Sarah tinha uma das mãos sobre os olhos, talvez por


estar muito emocionada ou talvez por estar tão
incomodada quanto Cosima por frases do tipo ‘a vila e o
genoma deles’. “Kira.” Ela disse. “Kira, me escute. Estão
exibindo gravações do que aconteceu na TV, com Dana e
Vivi no meio de tudo.”
515
Houve um momento de silêncio. “Sim, isso meio que
aconteceu, mas— mas elas estão bem. E...” Houve uma
pausa. A voz de Felix pareceu dizer algo indecifrável ao
fundo.

“Kira...” Sarah disse, sua voz falhando. “Você pode só


voltar para a casa? Por favor?”

Uma pausa mais longa. Cosima imaginou Felix


lançando um olhar a Kira. “Mãe. Já estamos indo.
Estamos na estrada há horas. Estaremos aí em...” Outra
breve pausa enquanto Kira e Felix pareciam discutir
sobre a precisão do GPS. “Talvez uma ou duas horas,
dependendo do trânsito. Aí a gente conversa sobre tudo,
pode ser?” Ela soava cansada e Cosima estremeceu. O que
será que tinha acontecido?

A ligação terminou. Alison se sentou ao lado de


Sarah e passou a mão pelas suas costas.

“Eloise deve ter obtido alguma informação errada


sobre a revolta...” Delphine disse.

Cosima a encarou, medo se transformando em raiva.


“Se ela não tinha informações confiáveis, ela não deveria
ir na TV falar sobre isso!”

“Eu a conheço.” Delphine protestou. “Ela não é


intolerante assim! Deve ter sido algum engano.”

“Bom, é um engano perigoso para caralho.” Sarah


soltou, com as mãos sobre o rosto.

516
“Vou falar com ela.” Delphine disse, indo em direção
à porta.

“O quê?” Cosima seguiu a esposa pelo hall, onde ela


pegava o parka mais quente. “Você vai falar com ela
agora?”

“Sarah está certa. Quanto mais tempo a acusação


que ela fez ficar por aí, vindo de uma oficial do governo,
mais perigosas as coisas vão ficar para vocês. Todas
vocês!”

“Você quer que eu vá?”

Delphine se virou, enrolando um cachecol em volta


de seu pescoço. “Não, chérie. Lembre-se, todos te
reconhecem como clone agora. Você realmente quer
entrar num estúdio de gravação ao vivo na TV?”

Cosima não queria.

“Além disso...” Delphine continuou, tirando o cabelo


de baixo do cachecol. “Eloise e eu nos conhecemos. Posso
falar com ela. Talvez eu possa até convencer o estúdio a
me colocar ao vivo para falar um pouco sobre a ética do
negócio e consertar as coisas.” Ela deu um rápido beijo na
bochecha de Cosima e abriu a porta.

“OK... Boa sorte, então.” Cosima disse.

517
Jaysara hesitou por um momento ao pé da porta do
que ela começava a chamar de ‘mansão clone’. Talvez ela
devesse ter ido direto ao RCMP e tentado direcionar todos
os recursos deles para recuperar Art.

Mas isso significaria convencê-los a acreditar nela ao


invés de em um oficial da inteligência americana de alto
ranking, que tinha todas as permissões de código corretas
e uma história plausível sobre uma espiã desertora (na
qual já tinham acreditado uma vez antes). Um oficial de
inteligência que já tinha uma conexão com seus chefes,
em quem eles não tinham motivo para não acreditar e que
poderia ameaçá-los com um embaraçoso incidente
diplomático, no mínimo, se eles decidissem agir pelas
acusações de Jay.

Por mais absurdo que isso parecesse, Jaysara estava


relativamente certa de que um grupo de clones civis teria
uma melhor chance de salvar a vida de Art.

Ainda assim, ela hesitava. Ela não queria encarar as


expressões em seus rostos idênticos quando ela dissesse
que Art havia sido levado.

“Vamos lá...” Ela sussurrou para si mesma. “Ficar


parada aqui não vai ajudá-lo. Além disso, essa casa para-
lá-de-inteligente provavelmente já detectou você aqui e
contou para elas.” Ela agarrou o fio da ridícula, porém
inegavelmente chique campainha de sino e puxou.

518
A porta se abriu para revelar Cosima, só que com
cabelo liso e franjinha. Não é a Cosima. Quando Jaysara
se acostumaria a isso? E qual era o nome dessa aqui?

“Ah, é você.” A clone disse. A mulher disse, Jaysara


se corrigiu. Seria ‘clone’ um nome estigmatizado ou só um
jeito de falar mesmo? Este tipo de pergunta talvez
representasse todo um novo monte de questões de
identidade pelas quais mundo agora teria de aprender a
navegar.

“Posso entrar? É importante.”

A mulher — era Alison o nome! — a deixou passar e


então fechou a porta. Na sala de estar, Cosima estava
sentada com outra moça também idêntica, aquela com o
sotaque inglês, que sempre parecia disposta a esmurrar
alguém. Sarah.

“Ah, oi.” Cosima disse. Ao menos ela não soava hostil.


Ainda. “O que aconteceu? Cadê o Art?”

Ela soava curiosa, não preocupada, mas ainda assim


pareceu uma acusação para Jay. “O Art foi capturado.”
Ela disse, tentando imaginar como se estivesse se
reportando ao seu chefe do RCMP ao invés dos amigos de
Art. “Ele estava me dando cobertura num encontro com
um cara da CIA, Davis, e o alvo levou a melhor sobre nós.”

As duas clones estavam de pé agora e Sarah se


aproximava rapidamente de Jaysara. “Espere um
segundo. Art estava te ajudando e você deixou que o
levassem?”
519
Cosima pousou uma das mãos no braço de Sarah,
mas Jaysara não se deixou afetar. Ela merecia aquilo. “Eu
pensei que fosse um encontro amigável, um jeito de
conseguir mais informações. Mas não era. Ele também
teve ajuda e enfiaram Art em um carro, eu não consegui
seguí-los.”

Sarah jogou as mãos para cima. “Então temos que


lidar com a merda da CIA agora?” Ela gritava mais para
o teto do que especificamente para Jay.

“O que você descobriu?” Cosima perguntou, mas


Jaysara fez um gesto com a mão para ela esperar.

“Não terminei. Davis quer que Vivi entregue a arma.


Em troca de Art.” As sobrancelhas de Cosima e Sarah se
levantaram juntas; Jaysara se perguntou se Alison fazia
o mesmo atrás dela. “Eu coloquei um rastreador no carro
deles. Eles estão em um condomínio a cerca de meia hora
daqui. Dez minutos atrás, ele me enviou uma mensagem
com o endereço e o número do apartamento, reiterando
que só Vivi deveria entregar a arma.”

O silêncio que se seguiu foi interrompido por um


alarme estridente.

“Que merda é essa?” Sarah gritou.

“É o alarme de incêndio.” Alison diagnosticou


rapidamente, indo para a porta. “Cosima, você deixou um
de seus baseados aceso por aí?”

520
Cosima revirou os olhos para ela. “Não. Deve ser—
ah, merda, os biscoitos de Delphine!” Ela se virou e correu
para a cozinha. Alison lançou um olhar exasperado a
Jaysara e Sarah e as três foram atrás.

A cozinha estava esfumaçada e acre. Sarah tratou de


abrir uma janela enquanto Cosima abria o forno, que
estava uma bagunça queimada. “Vamos torcer para que
os paparazzi não estejam aqui na casa ainda.” Ela disse
ao vestir uma luva de cozinha.

“Clones conduzem funeral Viking.” Alison brincou,


em meio à tosse. “Veja às onze.”

“Clones em batalha épica de armas flamejantes


imolam metade do bairro mais badalado de Toronto,
Trinity-Bellwoods.” Cosima respondeu.

“OK!” Sarah disse, se afastando da janela. “Podemos


voltar a falar de como Art—” Ela teve de fazer uma pausa
para tossir. Então continuou, os olhos cheios d’água:
“Como Art está encrencado e como exatamente vamos
ajudá-lo?”

“Estufa.” Cosima conseguiu dizer, então elas


escaparam para uma sala ao lado, quentinha e feita com
paredes de vidro.

Jaysara foi a primeira a falar. “Onde Vivi está


agora?”

“Você não vai entregá-la!” Cosima protestou.

521
“Não, claro que não.” Jaysara retrucou, apesar de ter
visto uma expressão no rosto de Sarah que a fez pensar
que, ao menos para aquela clone, espiã assassina em troca
de amigo próximo talvez parecesse uma boa barganha.
“Mas ela conhece este cara ou então pelo menos conhece
a organização. Ela terá uma ideia melhor do que nós
temos sobre o que ele quer e quais seus pontos fracos.”

As clones se entreolharam. “Vivi está voltando do


Québec.” Cosima disse, finalmente. “Eles devem chegar
aqui... logo. Se a estimativa de Kira estava certa...” Ela
acrescentou, olhando para Sarah, que se levantou e
começou a andar de um lado para o outro de novo.

“Não podemos esperar tanto tempo.” Sarah disse.


“Vocês sabem quantas vezes Art me salvou! Não podemos
apenas deixá-lo lá...”

“Bom, nós meio que temos certa experiência com esse


tipo de coisa, né...” Alison disse, tentando soar afetada.
“Eu posso acordar Donnie e...”

“Nós não temos nenhuma experiência em lidar com


a CIA.” Cosima disse. Ela estremeceu e Jaysara se
perguntou se ela estava se lembrando da mais recente
experiência com o lado negro do governo canadense.

“Me dê o endereço.” Sarah disse. “Eu vou até lá ver.”

“Sarah...” Alison disse com firmeza. “Lembre-se de


que somos as pessoas mais reconhecíveis da Terra no
momento.”

522
Cosima checou o relógio na parede, que imitava uma
TARDIS. “Vale a pena pelo menos consultar Vivi sobre
isso.”

“Vamos esperar.” Jaysara disse. Espião contra


espião era a melhor estratégia em que ela podia pensar.

Houve um momento de silêncio. Cosima pegou um


bong de vidro e o acendeu. “Então, como está indo a
investigação do assassinato pelo qual fui culpada e você
me prendeu?” Ela perguntou depois de um trago.

Alison soltou um riso contido.

Jaysara não se importou. Qualquer coisa que a


distraísse do que poderia estar acontecendo a Art era
bem-vinda. Ela lembrou dos arquivos mais recentes que
vira, da última vez em que esteve no escritório, antes
mesmo de saber que clones humanos existiam. Eras
atrás. “Você foi formalmente exonerada, se é que você se
importa. Não foi, uh, apenas a confusão de identidades. O
resultado da investigação forense saiu, com um exame
mais cuidadoso da cena do crime, e determinou que a bala
que matou Sturgis na verdade veio de fora do
apartamento.”

“Ah...” Sarah disse, sorrindo ironicamente. “Então se


tivessem feito o trabalho de vocês direito no início, vocês
nunca teriam pegado Cosima e ela não teria sido levada
da sala de interrogatório de vocês.”

“Ela estava no local do crime, coberta de sangue e nas


gravações das câmeras ela apontou uma arma para a
523
cabeça dele.” Jaysara respondeu calmamente. “Ela seria
interrogada de qualquer forma.”

Cosima balançou a mão no ar. “Espere, espere. De


onde veio o tiro?”

“Da cobertura de um prédio próximo.” Jaysara disse.


“O tiro foi de um nível sniper e a bala era típica dos
snipers militares canadenses, apesar de, claro, também
ser disponível por outros lugares.”

“Poderia ter sido Davis?” Sarah perguntou,


mordendo a lateral de seu dedão.

Jaysara balançou a cabeça. “Ele não chegou ao


Canadá até depois de Sturgis ser morto.”

“A menos que ele tenha feito alguma falcatrua com o


passaporte dele.” Sarah supôs, olhando em volta de si.
“Ele é um espião, não é?”

“Charlotte o viu no hospital nessa época.” Alison


disse.

“Então tem mais alguém atrás de nós?” Sarah


perguntou. “E vocês policiais ainda não descobriram
quem?”

Seu foco a laser estava direcionado a Jaysara, que


suspirou e pegou o celular. Já estaria na hora de checar,
de qualquer forma. “Aqui é Priyantha.” Ela disse. “Você
pode colocar Martinez na linha?... Martinez. Qual é o
status do assassinato de Sturgis, alguma novidade— o
quê? Espere, quem?” Ela ouviu, agradeceu Martinez,
524
então desligou e viu três expressões idênticas a
encarando. Bom, talvez não totalmente idênticas. Cosima
parecia um pouco chapada e Sarah um pouco mais
irritada. “OK...” Jaysara disse. Elas tinham direito de
saber e, caso contrário, ela já não ligava a esse ponto.
“Meu colega recebeu uma ligação uma hora atrás de
alguns policiais do Québec, os que responderam ao
incidente na vila.”

Sarah chiou, atraindo o olhar de Jaysara, mas não


interrompeu.

“Eles prenderam um monte de encrenqueiros —


palavras deles — com armas demais. O líder deles ficava
gritando sobre como ele trabalhava para o Ministério da
Defesa e que eles não sabiam quem ele era. Então ligaram
para o Ministério da Defesa, onde afirmaram que ele
havia sido demitido a partir desta manhã.” Jaysara olhou
para Cosima. “Ele disse que se chamava Greg Kurzmann.
E quando contaram que ele havia sido demitido?
Aparentemente, ele ficou furioso e começou a soltar tudo.
Ele contou que tudo tinha sido planejado por sua chefe.
Ele até...” Jaysara não conseguiu resistir e fez uma pausa
para suspense. “Tentou culpá-la pelo assassinato de
Sturgis. Claro, isso pode não ser verdade, ele pode apenas
estar tentando limpar sua barra. Precisamos interrogá-
lo, verificar os detalhes—”

“Espere aí...” Cosima se levantou, o bong se


estilhaçando aos seus pés. “Qual o nome da chefe?”

525
“A chefe dele é, era, a General Eloise Thibault. Ela é
uma condecorada—” Mas antes que Jaysara pudesse
terminar a apresentação cética que Martinez descrevera,
Cosima estava a meio caminho da porta.

“Cos, Cos.” Sarah segurou seu braço. “Você ouviu o


que Jaysara disse! Esse cara pode estar mentindo.”

“Além disso...” Alison opinou. “Não é como se


Delphine estivesse indo encontrar ela em algum beco
escuro qualquer. Ela está ao vivo na televisão, pelo amor
de deus!”

Cosima se livrou das duas. “Eu tenho que ir. Me


desculpem. Me liguem para contar o que decidirem fazer
quanto a Art, se eu puder ajudar... Mas tenho que ir.”

“Cosima!” Jay tentou correr atrás dela. “Deixe-me


ajudar.”

526
Quando chegaram ao tráfico de Toronto, a atmosfera
no Prius do tio Fee era... bom, “tensa” seria uma maneira
gentil de se colocar. Desde a chamada no celular, tio Felix
esteve dando bronca em Kira por não ter avisado à sua
mãe que estava bem desde que a confusão acabara. Após
um tempo, Kira perdeu a paciência e questionou porque
ele não ligara, agora ele estava de mau humor e ela se
sentia culpada por ter brigado com seu tio favorito. Toda
a sensação de triunfo que viera do sucesso deles na vila
havia evaporado. Enquanto isso, Dana sentava-se
aninhada no banco de trás, encarando a neve que caía lá
fora.

Pelo menos o tempo havia abrandado um pouco


quando chegaram à casa Cophine. Kira ficou por um
momento no frio, esperando que os outros fossem na
frente para que ela não tivesse de fazer a grande entrada,
mas o tio Fee pôs o braço em volta de seus ombros, deu
uma leve apertada e a acompanhou até a porta, com Dana
caminhando atrás deles.

A porta se abriu para ela, claro, e sua mãe estava lá


quase antes mesmo de ela se fechar novamente. Ela
envolveu Kira em um abraço.

Ela tinha de admitir, aquilo era bom.

Então foi durando tempo demais. Finalmente ela a


soltou, quando faltava apenas um pouco para que Kira
começasse a se contorcer. “Estou tão orgulhosa de você.”
Ela sussurrou, envolvendo o rosto de Kira com as mãos,
então fez uma pausa. “O que foi? Algo está errado?”
527
E toda a frustração e a confusão que Kira vinha
sentindo desde a rota interminável no carro se acumulou
e formaram uma bolha em sua garganta, enquanto sua
mãe os levava para a sala. “É só que... Deu tudo certo e
conseguimos, mas... Vivi...”

“O que aconteceu com Valdez?” A voz vinha de uma


mulher asiática que Kira não conhecia, que abriu
caminho passando por Alison. “Onde ela está?”

Kira engoliu em seco, consciente de que sua mãe a


observava intensamente, e foi Dana quem respondeu.

“Ela se foi.”

“Como assim, se foi?” Alison perguntou. “Ela foi—”

Claro que tia Alison não queria dizer a palavra


morta.

“Ela desapareceu após o tumulto.” Felix disse com


seu tom clássico de esclarecimento, enquanto tirava o
casaco. “A nevasca estava muito pior lá, então é possível
que ela tenha se perdido, mas tenho certeza de que ela
está bem.”

“Pensamos que tínhamos conseguido fazer tudo.”


Kira conseguia sentir as palavras escorrendo dela, quase
como um pedido de desculpas. “Vivi era incrível, ela...
sabia o que fazer, e eu até... Eu... Nós conseguimos
desativar os mosquitos e então olhei para trás e não notei
que havia partido...” Sua mãe a puxou para perto e Kira

528
estava lutando tanto contra as lágrimas que não se
importou.

“Querida, Vivi é uma espiã profissional e bem


treinada.” Sarah murmurou. “Ela sabe tomar conta de si
mesma.”

Kira se afastou, balançando a cabeça. “Ela pode ter


sido ferida ou capturada por alguém que não vimos ou se
perdido na neve. Não devíamos tê-la deixado para trás...”

“Não deixamos.” Felix interrompeu, sua voz como se


já tivesse discutido isso vezes e mais vezes no carro.
“Helena ficou lá para procurar por ela.”

“Viu?” Sarah ainda estava totalmente focada em


Kira, o que não era algo que acontecia muito
ultimamente. “Vamos encontrá-la. Ninguém consegue
fugir de Helena por muito tempo.”

Kira conseguiu, com esforçou, retribuir o sorriso de


Sarah, então Dana se pronunciou.

“Se Vivi sumiu, foi porque ela quis. E ela vai


continuar assim. Ela não quer nada com a gente.” Kira se
virou e viu que a jovem clone estava à beira das lágrimas.
“Me desculpem. Eu sempre me senti... bem em relação à
nossa criação, sabe? Tipo, era confuso, mas eu sempre tive
minhas primas e eu sempre soube porque era tudo tão
confuso. Eu pensava que nossos pais haviam feito um
trabalho decente. Mas Vivi... Vivi foi completamente
isolada de tudo isso. E agora é tarde demais. Ela não quer
nem nos conhecer mais.” As lágrimas brotaram dos olhos
529
de Dana. “Me desculpem.” Ela disse de novo. “Tem algum
lugar em que eu possa... só deitar? Estou exausta.”

“Claro!” Alison se prontificou, lançando um olhar às


outras a sua volta enquanto passava o braço por cima dos
ombros de Dana.

“Foi tenso lá?” Sarah perguntou, enquanto assistiam


a Alison subir as escadas com Dana.

“Dana passou por maus bocados.” Kira disse, então


tomou um fôlego trêmulo. “Mas eu estou bem mesmo,
mãe. E você tem razão, Vivi provavelmente também está.”

“Isso mesmo.” Sarah a puxou para outro abraço, um


bem rápido desta vez. Kira quase se sentia bem ao se
soltar.

Ela estava prestes a dizer que também iria para a


cama, mas Sarah a interrompeu com uma mão em seu
braço. “Kira... Charlotte está aqui. Ela nos disse o que
vocês fizeram.”

Kira congelou e podia sentir suas defesas se


erguendo novamente.

Sarah deve ter percebido, pois soou quase


desesperada ao continuar. “Você pode... só falar sobre
isso? Eu quero entender.”

“Mesmo?” A palavra acabou saindo mais cético do


que Kira planejara.

530
“Sim, mesmo.” Sarah disse com firmeza. “Eu sempre
quis te proteger de toda essa coisa de clones. Eu nunca
realmente pensei que podíamos ter feito... desse jeito.”

Kira se segurou para não retrucar nada.

“E não estou completamente convencida de que foi


uma boa ideia, sabe.” Sarah continuou. “Mas... quero
saber o que você acha.”

531
“É isto.” Jaysara disse. “Vou voltar para o RCMP.”
Ela passara os últimos trinta minutos, enquanto Felix
explicava direito o que aconteceu no Québec, tentando
pensar em algum plano melhor. Mas não conseguiu.

“Não!” Alison parecia horrorizada. “Por que?”

“Porque? Vivi está em algum lugar por aí. Eu não


tenho nada para barganhar e não tenho nenhuma
expertise em espionagem ou nada do tipo. E a vida de Art
está em jogo.”

“Espere, o quê?” Felix disse.

Jay rapidamente contou à equipe de Québec sobre


seu encontro desastroso com Davis e sua exigência de
entregarem Vivi em troca da soltura de Art.

“Temos de ir nós mesmas atrás do meu pai.”


Charlotte havia acordado de sua soneca e estava sentada
no sofá, com Alison e Donnie ao seu lado. Jay podia ver
que suas mãos tremiam, mas a voz estava firme.

“Charlotte...” Alison disse, tão gentilmente que Jay


pestanejou. “Você está se recuperando da doença, você
não vai—”

“Sim, eu vou!” Charlotte se retorceu em seu lugar.


“Eu pensei que já havíamos tido essa conversa! Vocês não
podem me deixar de lado por eu ser mais nova!” Alison
começou a dizer algo e Charlotte a interrompeu. “Ou por
causa de minha perna! Não me venha com essa de que

532
estou me colocando em perigo, tia Alison, porque estudei
artes marciais por oito anos! Eu luto melhor que você!”

“Ela está certa.”

Jaysara se virou e viu Sarah descendo das escadas


após ter levado sua filha ao quarto.

“Charlotte é adulta agora, por mais difícil que isso


seja de acreditar.” Sarah acariciou os cabelos da clone
mais jovem enquanto passava por ela para se sentar na
poltrona. “Ela tem uma voz nisso tudo.”

“Não que isso importe.” Jaysara havia decidido que


era hora de tomar controle da discussão. “Já que eu vou
ao RCMP sozinha e nenhuma de vocês vai fazer nada
estúpido.”

“Você acha que vão acreditar em você?” Sarah se


inclinava para a frente, os cotovelos apoiados no joelho,
olhos focados nos de Jaysara.

“Pelo menos não tenho de convencê-los que clones


são reais.” Jaysara apontou. “Vocês não estão se
escondendo mais, Sarah. Podemos recorrer às
autoridades.”

“Esse cara com quem estamos lidando é a


autoridade.” Sarah disse. “E qual a jogada dele? O que
Davis está falando para convencê-los de que ele é do
bem?”

“Que eles estão atrás de uma espiã americana


fugitiva aqui.”
533
“E ela é uma fugitiva agora, não é? Algum dos oficiais
conheceu Vivi fora você?”

Jaysara negou com a cabeça.

“Quanto tempo acha que vai levar para convencer


seus superiores de que o malvado é o oficial americano e
não o...” Sarah hesitou por um segundo. “... clone?”

Jaysara também hesitou e, antes que pudesse dizer


alguma coisa, Alison decidiu falar.

“Sarah, eu sei que você ainda está um pouco


chateada com o que Kira e Charlotte fizeram.” Alison
disse. Jaysara olhou para ela com surpresa e Sarah
começou a dizer algo, mas Alison cortou as duas. “Mas eu
estava meditando ontem à noite e eu realmente acho que
precisamos mudar o nosso mindset. Estamos
acostumadas a pensar como se o fato de sermos clones
fosse um fardo.” Alison acenou com firmeza. “É hora de
tirar proveito disso.”

534
A recepcionista do estúdio de TV foi bem
compreensiva quando Delphine explicou ser uma colega
da general Thibault trazendo novas informações para ela
para o próximo quadro. Era meio que verdade, pensou
Delphine, seguindo as direções dela através de um
labirinto de cubículos, salas verdes e sets vistos através
de vidros à prova de som. Eloise precisava de algumas
informações. Como a de que clones eram pessoas, que
liberdade civil ainda era válida e que não se deve tirar
conclusões baseadas em informações limitadas.

Mas ela não podia deixar de desconfiar que Eloise


sabia de tudo isso. O que ela estava tramando? E o que
Delphine exatamente diria a ela quando a encontrasse?
Não seja intolerante? Alguém te deu informações não
confiáveis e você precisa corrigir isso? Preciso de sua
ajuda?

Finalmente, ela encontrou a porta que dava para a


sala verde do estúdio C. Delphine parou por um momento
para respirar fundo antes de abrir a porta.

A general estava apoiada perto da porta, assistindo


a uma tela de TV que mostrava o eco de um talkshow de
ação que estava sendo gravado do outro lado da janela de
vidro. “Générale...” Delphine disse, mudando para o
francês automaticamente como uma camada extra de
privacidade.

Eloise se virou. “Dra. Cormier!” Ela disse surpresa,


então continuou em francês. “O que faz aqui? Tem alguma
entrevista marcada?”
535
“Na verdade... Vim aqui para falar com você sobre a
sua declaração mais cedo sobre o incidente no Québec.”

Uma jovem moça em um terninho passou por


Delphine e se inclinou para dentro da sala. “Dez minutos,
sra. Thibault!”

“É general.” Eloise disse, sem muita animação e sem


tirar seus olhos de Delphine, mas a moça já havia saído.

Eloise não pareceu disposta a dizer nada, então


Delphine tentou novamente. “O que quer que tenha
acontecido naquela vila, nós duas sabemos que não foi
instigado pelos clones.”

Eloise cerrou os olhos. “Como você sabe?” Ela disse.


“Sua... esposa era uma das clones que estavam lá?”

“Não.” Delphine sentiu uma pontada de medo e


tentou aliviar o clima. “Existem muitos clones, sabe. Nem
todos eles se conhecem, não mais do que cidadãos comuns
francófonos.”

As delicadas sobrancelhas de Eloise se juntaram.


“Pode ser que nem todos nos conhecemos, mas todo
mundo pensa que sim! Deixe-me te contar uma coisa
sobre aquela vila em Québec.” Ela rosnou. “Estava repleta
de terroristas traidores. Terroristas! Que cometem
violência contra o Estado, que nem mesmo querem ser
canadenses! Acredite, eles dão a todos os francófonos uma
reputação ruim. Eles tornam as coisas impossíveis para
todos nós que somos cidadãos leais!”

536
Delphine tomou um momento, tentando entender o
sentido do que ela dizia. “Ehhh... bien.” Ela disse, incerta.
“Mas se eles são tão violentos, isso só torna ainda menos
provável que os clones tenham instigado o tumulto...”

“Ah, sim.” Eloise acenou, como se ela acabasse de se


lembrar de um detalhe. “Bom, é isso que vimos na
gravação. E não sabemos exatamente o que estes clones
estão tramando. O que eles querem? Por que eles
continuam...” Ela buscou pelas palavras certas. “Se
envolvendo?”

“Générale...” Delphine disse, tentando despertar o


lado profissional de Eloise, lembrá-la da pessoa
competente e aparentemente sã que ela era nas reuniões
da força tarefa. “Você tem que entender que, ao dizer que
os clones são perigosos, você os põe em perigo.” Ela estava
errada sobre Eloise, Delphine percebeu. Muito, muito
errada.

“Mas clones são perigosos.” Eloise falava


suavemente agora, se aproximando aos poucos de
Delphine. “Claro que, como uma expert em ética, você
sabe disso.”

Delphine respirou fundo para dar uma resposta


elaborada sobre a distinção entre ter ressalvas éticas em
relação à origem de clones e os tratar como seres
humanos, mas Eloise não havia terminado.

537
“Você entende os riscos. Nossa segurança biométrica,
por exemplo. Pode encontrar os clones, mas não pode nos
dizer qual é qual.”

Delphine balançou a cabeça. “Você sabe que eu não


concordo com a biometria, em primeiro lugar.”

“Eles fogem do nosso controle!” Eloise disse, agora


cuspindo. “Eles vivem à margem da lei!”

“Pois foram forçados a isso!” Delphine respondeu.

“Assim como esses terroristas.” Eloise retrucou. “É


sempre a mesma desculpa. Atacam nosso país, não
trazem nada a não ser ódio a francófonos como nós, tudo
pelos seus motivos egoístas, então dizem que foram
forçados a isso!”

Atrás dela, através da grande janela do estúdio,


Delphine podia ver algumas das câmeras, lentas como
bestas primordiais, mudando de lugar enquanto o quadro
no palco terminava. Ela não podia deixar Eloise voltar ao
vivo para vomitar todo esse ódio. Como poderia estar tão
errada sobre ela, refletiu Delphine.

“O que você fez, Eloise?” Delphine disse em voz


baixa.

538
A neve finalmente havia parado de cair, mas a
camada no chão ainda era funda o suficiente para tornar
difícil a caminhada e as calças de Vivi estavam
encharcadas. Ela havia arrastado alguns galhos atrás
dela para dificultar que seguissem seu rastro, mas, após
cerca de cinco horas, ela duvidava que alguém ainda a
estivesse seguindo.

Ela estava errada.

Algo caiu em sua cabeça e Vivi recuou, puxando sua


faca em um movimento fluido enquanto olhava para cima
e via uma clone de olhar selvagem agachada nos galhos
acima de sua cabeça, outra pinha já em mãos.

“Você é boa.” Helena disse, como se conversassem.


“Mas acho que não ama a natureza selvagem.”

Vivi não abaixou a faca. “O que você está fazendo


aqui?”

“Vim ver se você está bem.” Helena não se moveu e


não tirou os olhos de Vivi. “Minha sobrinha está
preocupada.”

Vivi xingou mentalmente. Ela sabia que não devia


ter falado nada sobre Kira crescer e ser espiã. Não seja
legal, ela lembrou a si mesma. “Olhe...” Ela disse. “Eu só
preciso de espaço, OK? Tem sido tudo muito... chocante.”

“Hum...” Helena concordou. Ela ainda tinha um


pouco de sangue seco em torno da boca, Vivi notou com
um estremecimento contido. Seu cabelo solto tinha a
539
aparência selvagem e ela se equilibrava perfeitamente no
galho como a porra de um animal. “Sim, eu entendo. Eu
já fui como você.”

“Uh...”

“Eu também fui criada como uma máquina de


matar.” Helena disse.

“Eu não s—” Ela era, na verdade, e era algo que Vivi
geralmente até se orgulhava de certa forma, mas
certamente ela não era só isso.

“Eu também trabalhei para pessoas que me diziam o


que pensar, em que acreditar...” Helena continuou. Por
seu tom, ela podia estar discursando um monólogo,
contando às árvores distraídas sua história de vida,
exceto pelo olhar penetrante sobre Vivi. “Eu vim te
contar, você pode mudar.”

Vivi bufou com sarcasmo antes que pudesse se


conter, mas Helena continuou como se não houvesse
notado. “Eu mudo. Eu conheço minhas sestras. Agora
tenho família. Tenho... essa palavra eu gosto, au-to-no-
mi-a. Penso o que quero, faço o que quero.” Ela sorriu, as
manchas de sangue escuro como algum tipo de pintura
facial macabra. “Mas mais importante, família.” Uma
pausa. “Você é nossa sestra, também.”

Vivi engoliu em seco. Ela teve de esperar um


momento até que pudesse responder adequadamente.
“Eu... eu gostaria disso.” Ela disse. Foi tão difícil admitir.
“Mas, por agora, é demais. Eu tenho que... Tenho que ir
540
para a casa e ficar sozinha por um tempo. Não é sobre
meu trabalho, isso acabou, de qualquer forma.” Aquilo
também era difícil de admitir. “Não se pode ser uma espiã
quando todos conhecem seu rosto. Mas preciso de um
tempo sozinha para organizar a cabeça.” Ela fechou a
boca antes que falasse demais e ficou ali olhando para as
árvores acima, esperando que Helena acreditasse nela.

Pareceu muito tempo até que Helena se levantou,


facilmente se equilibrando sobre o galho robusto, como se
estivesse descalça e não vestindo botas de neve pesadas e
rosas, que Vivi acreditava pertencerem a Alison. “Vá
pensar, então.” Ela disse, graciosamente. “Nós estaremos
esperando.” Enquanto ela desaparecia de volta para a
floresta, um vulto rosa e branco desaparecendo por entre
as árvores, Vivi teve tempo para refletir se o que ela havia
dito se tratava de um convite ou uma ameaça.

541
“Uma excelente pergunta.” Uma voz disse atrás
dela. “O que você fez, general?”

Delphine se virou. Cosima se apoiava na parede, com


uma perna cruzada sobre a outra.

“É ela?” Eloise perguntou, a voz ameaçadoramente


perto do ouvido de Delphine. “Esta é sua esposa? Ou você
nem ao menos consegue diferenciá-las?”

Delphine tentou retrucar algo incoerente, mas


Cosima apenas fez um ‘tsc’. “Palavras bem feias para
alguém Delphine me disse estar do nosso lado. Mas você
não está, não é, general?” Ela inclinou a cabeça.

A mão de Eloise pegou com força o ombro de


Delphine e ao mesmo tempo a expressão afetada e
descontraída deixou o rosto de Cosima. Aquilo indicou a
Delphine que ela estava em perigo, antes mesmo de sentir
o metal frio de uma faca contra seu pescoço.

Cosima levantou as mãos devagar. “Escute...”

A porta se abriu de repente atrás dela e a assistente


de produção de antes apareceu. Delphine sentiu as mãos
de Eloise se afastarem rapidamente dela. “Sra. Thibault,
você tem dois minutos. Queríamos te preparar no set
agora.”

Houve um longo momento que pareceu durar para


sempre. “Certo.” Eloise disse. “Minha colega aqui pode
entrar para assistir de dentro do set, correto?”

542
“Claro.” A moça disse, levantando os olhos
rapidamente de seu iPad. “Mas precisamos ir—” Ela
parou, encarando Cosima. “Você é... é uma clone, não é?”

Cosima ficou parada com a boca aberta. Delphine


podia ver a luta interna dela contra todos os anos de
segredo. “Eu—” Cosima olhou em volta, seus olhos
brilhando ao ver Eloise, que estava se dirigindo à porta.
“Sim! Sim. Sou um clone. Em fato, vim aqui justamente
para fazer uma entrevista com você.”

Um brilho fanático surgiu nos olhos da assistente de


produção e ela começou a sussurrar no microfone preso ao
seu ouvido.

“Cos...” Delphine murmurou. “Você não tem que—”

“Ótimo!” A assistente disse. “Estamos prontos.” Ela


passou um olhar crítico sobre o rosto de Cosima. “Sem
tempo para maquiagem, então a sua vai bastar. Vocês
duas podem me seguir?” Com isso, ela se virou e marchou
para a porta, Eloise seguindo próxima e Cosima indo
atrás, os ombros tensos como se estivesse entrando em
uma arena. Com o pescoço ainda pinicando pelo toque da
lâmina de Eloise, Delphine as seguiu.

543
Art estava amarrado a uma cadeira em um
apartamento. Um apartamento de condomínio. Não um
armazém vazio, não uma sala dos fundos em algum bar.
O lugar parecia bem arrumado, com um vaso de flores no
centro da mesa. Como se houvesse sido preparado para
visitação ou algo assim.

Art sabia que ele estava apenas tentando se distrair


da confusão em que ele se encontrava.

O espião havia acendido outro cigarro e estava


mexendo em um pequeno cooler perto da TV plana.
Quando ele se levantou, segurava uma seringa
desajeitadamente em uma das mãos, estabilizando o
pulso com a outra.

Art se preparou. O que seria aquilo? Algo doloroso?


Algo fatal? Um soro da verdade, talvez? Suor escorreu
pelas costas de Art. A CIA devia ter algumas drogas
incríveis. Ele não queria contar a eles sobre Charlotte.
Sobre ninguém, mas especialmente Charlotte.

Davis andou até a cadeira de Art, sorrindo de um


jeito que talvez passasse um ar de gênio em um rosto
diferente.

“Eu pensei em apenas injetar logo isto em você e


deixar você descobrir o que é.” Ele disse, mantendo a
seringa próxima ao rosto de Art. “Isso que eu deveria
fazer.” Ele a manteve no ar por um longo momento. Art
tinha certeza de que a gota que saía da ponta da agulha
era intencional. “Mas...” Davis disse, finalmente,

544
afastando a seringa. “Eu preciso manter isso como moeda
de troca, no caso de Vivi dificultar a entrega da arma. Mas
não quero esperar tanto tempo para te contar o que é. Eu
acho que vai gostar de saber.” Ele pousou outro longo
olhar pensativo sobre Art e, de repente, Art entendeu a
situação: Davis estava gostando de fazer aquilo.

Art revirou os olhos. “Tanto faz.”

Davis riu. “Você não agiria de maneira tão


indiferente se soubesse o que é.”

“Escute, cara...” Art disse, continuando a agir de


forma indiferente. “Você sabe que eu era policial em
Toronto, certo? Sabe que eu fui um dos primeiros a
descobrir sobre os clones? O que quer que seja isso aí, eu
não acho que seja pior do que o cara que tinha um rabo,
ou do que as larvas robóticas, ou do que a motociclista
ucraniana assassina.” Ele enviou um pedido de desculpas
mental a Helena. Bem que ele adoraria ter uma
motociclista ucraniana assassina ao lado dele agora. “Sei
que, o que quer que você tenha aí, será horrível e bizarro.”
Ele deu de ombros, apesar das amarras. “Só me avise
quando decidir.”

O sorriso de Davis virara uma careta. Ele se ajoelhou


em frente a Art, esfregando a seringa em seu rosto de
novo. “Ah, este vírus não vai fazer nada a você. Você nem
vai perceber que o tem. Pelo menos, em teoria.” Ele deu
de ombros. “Você é meio que um teste. Pode ser que
existam alguns efeitos adversos não previstos. Mas uma
das certezas que tenho é que você se tornará altamente
545
contagioso. Assim que chegar perto de qualquer uma
daquelas clones de quem você gosta tanto, elas se
infectarão.”

Art tentava manter a expressão neutra, mas estava


se retorcendo por dentro.

“Haverá um longo período de incubação sem nenhum


sintoma, para dar a elas a chance de infectar umas às
outras. Então começarão a morrer.”

Isso não vai acontecer. Art disse, as mãos fechadas


nas algemas em suas costas. Cosima e Delphine
encontrarão uma cura. Elas entendem de protocolos de
isolamento e encontrarão um antídoto. Davis ainda o
observava, esperando alguma reação.

“Eu me mudarei daqui.” Art disse, como se não se


importasse. “Tenho certeza que meu serviço pode me
enviar para Calgary ou algum lugar assim.”

Davis riu com mais vontade desta vez; ele deve ter
percebido parte do horror de Art em sua voz. “Então você
passará o vírus a outros vetores não-clones, que o
passarão a outros, uma pandemia da qual ninguém
saberá ou se importará o suficiente, porque tudo o que
causará é a morte de clones.”

Art fingiu considerar. “Ótimo plano.” Ele disse,


acenando. “Parece que funcionaria. O que você está
esperando mesmo?”

546
Davis fez uma careta. “Destruir os clones é uma boa
vantagem da história. Vai fechar algumas pontas soltas
as quais não apreciei muito ao assumir este trabalho. Mas
você deve entender que isso seria de uma utilidade
limitada.”

Art levantou uma sobrancelha de forma


questionadora.

“Existem muitos clones por aí...” Davis disse, fazendo


um gesto no ar. “Mas quando se forem, este vírus em
particular se tornará inútil.”

“E?” Art disse, não tendo que fingir perplexidade.

Davis o observou. “Você não sabe da arma? Seus


amigos não encontraram a cópia de Nathaniel?”

Art deu de ombros da forma mais indiferente que


conseguiu. “Não entendo dessa coisa de ciência. Não é
minha área.”

Davis fez outra careta. “Tanto faz, você não precisa


entender! O ponto é que Valdez tem algo de que preciso e
espero que ela troque isso por você. É uma questão
imperativa de segurança nacional. Tenho certeza de que
você pode compreender.”

Art compreendia. Claro, os EUA iriam querer ter


acesso à ferramenta de origem para utilizar engenharia
reversa e prevenir ataques biológicos contra eles. Mas na
cabeça de pessoas como Davis, seria fácil justificar o uso

547
da arma de maneira ‘preventiva’. Ainda mais, e o horror
subiu pela espinha de Art, se aquilo fosse irrastreável.

“De qualquer forma!” Davis soava quase jovial,


dispensando o que restava de seu cigarro e pegando outro
de seu maço. “Caso sua vida não seja o suficiente para
convencer Valdez a me entregar a arma, espero que ela
reconsidere ao saber que você se tornará uma bomba viral
que destruirá todas suas ‘irmãs’.”

“Vivi não traria a arma para você de qualquer jeito?”


Art questionou, se perguntando onde diabos estava Vivi.
“Ela não trabalha para você?”

“Hipoteticamente, sim.” Davis refletiu. “Mas temo


que ela tenha tido algumas ideias perigosas nos últimos
dias. Até onde sei, ela deserdou. E mesmo assim, ela
tecnicamente não pertence ao meu departamento. Eu
preferiria demais que ela entregasse a arma a mim e não
ao superior dela.” Ele inalou fumaça e sorriu, deixando-a
escapar pelos dentes. Art tentou não engasgar. “Além
disso...” Davis disse, observando a ponta acesa de seu
cigarro. “A este ponto, Vivi se tornou um efeito colateral
irremediável, para mim e para a agência. Ela possuindo a
arma ou não, tenho de pegá-la.”

A campainha soou.

548
“Aí está ela.” Davis disse. Ele pousou o cigarro na
beira do cinzeiro e enfiou a seringa no bolso de seu casaco.
“Espere sentado aí.”

549
Cosima seguiu a figura militar de Eloise até o
estúdio, seu coração batendo forte. Ela pensou que iria
desmaiar, então forçou-se a contar suas respirações e
observar seus pés enquanto subia ao palco iluminado.

Havia muitas pessoas no estúdio. Muita gente


equipada com fones de ouvido e tablets e, agora, mais e
mais pessoas vindo de escritórios próximos para assistir.
Cosima quase podia ouvir a palavra clone nos lábios
delas, quase podia ver o sussurro se espalhando entre
elas. Ela puxou algum ar. Seus olhos, ao percorrer o
estúdio, se fixaram no rosto de Delphine, tenso de
ansiedade, e Cosima voltou a si mesma. À sua frente,
Eloise já estava falando.

“Sim, Karen, eu recebi mais relatórios sobre a


situação na vila no Québec, a fonte dessas imagens
perturbadoras que todos nós vimos. Parece que os clones
foram até lá para se encontrar com terroristas
separatistas e então instigaram a violência—”

“Isto não é verdade!” A voz de Cosima saíra mais alto


do que ela planejara. Ela congelou, mas sua mente
permaneceu ultra-consciente de cada pessoa que se
virava lentamente para olhar para ela. O comando
inaudível correu de fone em fone através da sala, então
todas as câmeras se voltaram em resposta, mirando o
brilho da lente para ela. Cosima sabia que ela não deveria
estar olhando direto para as lentes redondas, mas ela não
conseguia tirar os olhos delas.

550
“É isso mesmo, temos um clone — uma das poucas
que concordou a dar entrevistas públicas — aqui, para
discutir essas acusações.” A voz da apresentadora soou
clara, mas Cosima não se moveu. Todos estavam a vendo.
Aquilo era cem vezes pior do que sua defesa de doutorado.

De alguma forma, ela conseguiu virar a cabeça de


volta para a apresentadora, mas foi o brilho nos olhos de
Eloise que a despertaram de seu momento de pânico.

“Isto não é verdade.” Ela disse novamente, tentando


articular sua língua, que parecia pesada e estranha. “As
clones não instigaram o tumulto.”

“Então o que realmente aconteceu na vila?”

Cosima abriu a boca, mas Eloise já estava falando.


“Como eu disse antes, esta é uma vila povoada por
terroristas conhecidos e simpatizantes, incluindo o
suspeito pela recente explosão de uma das maiores
instalações de pesquisas canadense.”

Seria aquilo uma armadilha? Será que Eloise sabia


que ela fora acusada daquilo? Ela sabia que ela fora
exonerada das acusações? “A explosão na instalação foi
causada por um de seus funcionários.” Ela interrompeu.
“Pois ele estava horrorizado pelo projeto que o seu
departamento estava pagando para que ele executasse.”

Eloise riu. “Me desculpe, mas isso está um pouco


distorcido.”

551
“Ah, é?” Cosima voltou a si, começando a se esquecer
de todas as pessoas que assistiam à cena. “Distorcido
como um programa secreto de pesquisa em clones
humanos? Porque eu sou prova viva de que isso é real. Por
que vocês não nos diz no que o laboratório do IPGT
trabalhava com o financiamento do seu departamento?”

A entrevistadora se virou de volta para Eloise e, pela


primeira vez, ela parecia ligeiramente nervosa, mas se
recuperou rapidamente. “Trabalhamos em diversos tipos
de tecnologia relevantes à segurança nacional e para
manter canadenses seguros...”

“Canadenses como aqueles da vila de Québec?”


Cosima podia sentir a confiança fluindo de volta a ela,
junto à raiva. “Terroristas ou não, eles merecem um
processo justo, um julgamento, não uma epidemia
customizada!”

“Uma epidemia cus...” A apresentadora começou a


dizer, provavelmente pensando em alguma forma de
reformular o conceito para seus espectadores, mas Eloise
falou por cima dela.

“Isso é absurdo.” Ela disse. “Extremamente absurdo


e existem também questões de segurança nacional
envolvidas...”

“Claro que existem questões de segurança nacional


envolvidas se o departamento militar canadense está
desenvolvendo armas secretas e usando-as contra seus
próprios cidadãos!” Cosima respondeu.

552
“Aqueles separatistas nem ao menos queriam ser
considerados canadenses!” Eloise disparou, mas se
conteve. “Não que faríamos algo do tipo, claro—”

“Saberemos em breve.” Cosima disse. Ela pausou


para tomar fôlego e arriscou passar os olhos pela
audiência. Estavam em silêncio agora, esperando pelo
que ela iria dizer, e não encarando-a por ser um clone.
“Um funcionário do Ministério da Defesa foi preso na vila
de Québec, com a qual você se importa tanto, e ele já está
contando aos policiais tudo sobre seu envolvimento no
incidente.”

A expressão aterrorizada que passou pelo rosto de


Eloise foi breve, mas muito visível.

“Talvez você não devesse ter entregado seus aliados,


general.” Cosima sussurrou, se inclinando para a frente.

Eloise se levantou. “Eu sou uma condecorada general


do exército canadense!” Ela anunciou, com um brilho nos
olhos. “Acreditarão em mim ou neste... neste experimento
falho?”

Cosima quase riu. Ela já fora chamada de coisas tão


piores antes. “Melhor ser um experimento falho do que
uma fanática intolerante e nervosa.”

553
Alison alongou os ombros uma última vez, então
respirou fundo e entrou na personagem.

Bem a tempo, pois a porta do prédio se abriu.

“Ah.” Atrás da porta, estava um homem de meia


idade, com a pele cinzenta e fina de um fumante habitual,
com uma cinta em um dos pulsos e um grande machucado
na testa. “Srta. Valdez.”

“Apenas me diga o que você quer.” Alison disse,


ríspida. Ela considerou seu sotaque forjado dos EUA até
bom.

“Eu quero a arma. O programa. Você sabe que tem


de entregar de qualquer forma. Por que não entregar a
mim?”

“Quero ver o refém.”

“Ele está lá em cima.” Davis disse, inclinando a


cabeça. “Vamos? Aqui dentro será uma área mais privada
para nossa discussão.”

Alison cuspiu uma risada e deu um passo para trás.


“Entrar aí? Sem chance. Traga ele até aqui.”

“Isso seria muito pouco conveniente.” Davis a


persuadiu, dando um passo à frente. “E este, veja, é um
prédio digno e respeitado.”

“Você não sabe?” Alison respondeu. “Sou uma clone.


Não tem nada de digno sobre mim.” Ela pegou o celular.
“Você quer a arma? Desça com Art. Ou eu ligo para os

554
paparazzi para que eles bloqueiem esse apartamento e
contem ao mundo exatamente o que você está tramando.”

“Art, não é?” Davis inclinou a cabeça, então riu.


“Exótico que você pense que eu tenho algum medo da
mídia.” Ele suspirou. “Você não é Valdez. E você não tem
a arma, tem?”

“Tenho ela bem aqui.” Alison disse, recuando ao


mostrar um pendrive. “Vivi não está disponível, mas ela
deixou isso com a gente.”

Davis considerou. “Eu duvido muito disso. Não, acho


que você não tenha utilidade alguma para mim ou mesmo
para Valdez, senão ela estaria aqui para te proteger.
Bem... Vou ter de torcer para que ela tenha contato com
pessoas suficientes que tenham contato com você, para
que ela eventualmente receba meu presente.” Ele retirou
algo brilhante de dentro do bolso. “Devo lhe contar o que
isto fará a você?”

Alison gritou e Donnie saiu de trás da porta e acertou


Davis com uma pá de neve.

“Urggghhh...” Davis caiu de joelhos, a seringa ainda


na mão enfaixada, então mergulhou até os pés de Alison.
Alison pulou para trás de novo. Davis buscava algo no
bolso com a mão esquerda.

“Acerte-o de novo, Donnie!” Alison gritou.

Mas Davis havia pegado um pequeno revólver e o


apontava diretamente para o peito de Donnie.
555
“Não!” Berrou Alison.

Então alguém saiu do meio das sombras e agarrou o


braço esquerdo de Davis, o torcendo até que a arma
estivesse longe de Donnie, então aumentando a pressão
do golpe. Alison ouviu o estalo e o grunhir de Davis, depois
uma reação surpreendentemente silenciosa. A arma caiu
para o chão e Charlotte a pegou.

“A seringa!” Alison ofegou. “Cuidado, Charlotte—”

“Você está bem?” Donnie perguntou, correndo para o


lado de Alison.

“Claro que estou bem, Donnie, pegue ele!”

Mas Davis havia se levantado. “Qual é o problema de


vocês, clones?” Ele rosnou. “Aposto que todos vocês tem
um gene para a violência.”

“É você quem está com a arma e uma seringa, bro.”


Charlotte disse, se esquivando enquanto Davis investia
vertiginosamente contra ela, balançando a seringa. “Viu?
Mesmo se assumíssemos sua premissa de que temos uma
predisposição genética para a violência...”

“Charlotte...” Alison a cortou. “cale-se.”

Donnie avançou para pegá-lo, mas Davis se esquivou


e tentou acertar a mão dele com a seringa, forçando
Donnie a recuar embaraçosamente. “Eu não preciso de
vocês.” Davis arquejou, recuando para a porta. “Isso...”
Ele balançou a seringa para que a vissem. “Tomará conta
de vocês de um jeito ou de outro.” Ele abriu rapidamente
556
a porta, a abriu e entrou, a fechando antes que Donnie
pudesse impedir

“Está trancada.” Donnie gritou, balançando


inutilmente a maçaneta.

“Aperte todos as campainhas, vamos ver se alguém


nos deixa entrar.” Alison mandou, então virou sua
atenção para Charlotte.

“Você foi incrível, querida.” Ela disse. “Agora volte


para o carro!”

Três andares acima, Sarah se agachava em frente à


porta pela qual Davis saíra quando Alison chegou,
tentando abrir a fechadura.

“Art?” Jaysara disse baixinho, pressionando o rosto


contra a porta acima da cabeça de Sarah. “Você está aí?”

“Shhh!” Sarah disse. “Não sabemos se ele tem


capangas aí dentro.”

“Jaysara?” Eles ouviram um barulho vindo lá de


dentro.

“Art!” Jaysara sussurrou freneticamente. “Você está


bem?”

“Saberemos em alguns segundos...” Sarah disse,


dando uma última girada nos mecanismos e abrindo a
porta.

557
Art estava preso a uma cadeira, mas não parecia ter
sido torturado. Assim que Jaysara percebeu isso, ela
ouviu o som de uma porta aberta ecoando das escadas
abaixo.

“Ele está vindo.” Sarah disse, passando por ela.


“Vamos tirar Art daqui.”

“Tem algemas.” Art disse, enquanto ela ia até ele.


“Sarah, você tem que sair daqui.”

“Nós vamos conseguir, Art.” Sarah disse, tentando


abrir a algema. “Acha que vou desistir de você depois
desse tempo todo?”

“Sarah, esse maníaco tem um vírus que mata


qualquer um que tenha seu genoma, saia já daqui!”

“O maníaco ainda não está aqui, está?” Ela


perguntou, mas seus olhos se voltaram com preocupação
para Jaysara.

Nesta hora, ela ouviu passos na escada. “Ele está


vindo.” Jaysara chiou, tirando sua arma.

“Estou quase conseguindo.” Sarah murmurou.

“Tarde demais.” Art grunhiu. “Sarah, saia! Vá!”

Jaysara se colocou ao lado da porta enquanto os


passos de Davis se aproximavam, mas ao invés de ele
entrar, como ela esperava, ouviu-se um silvo, então o
mundo explodiu em um flash de luz e ruídos.

558
“Arrgh!” Jaysara se ouviu gritando, mas parou. Não
houvera impacto algum. Ela passou as mãos nas pernas,
só para ter certeza. Uma granada de luz, só isso. Ela
piscou o mais rápido que pôde e sua visão começou a
voltar através do brilho de superexposição, bem a tempo
de ver Davis se inclinando sobre Art, com a seringa em
sua mão, enquanto Art tentava se afastar o máximo que
conseguia.

“Não!” Jaysara gritou, mas Davis já aplicava a


injeção no ombro de Art quando ela atirou em sua cabeça.

“Ah , não.” Sarah sussurrou.

“Corra, Sarah!” Art gritou. “Diga a Charlotte que não


venha. Diga a ela para ficar longe de mim!”

559
“E... vamos para o comercial.” O diretor de notícias
disse, enquanto um par de oficiais escoltavam uma
raivosa Eloise algemada para fora do palco. Acontece que
nem todos que estavam no estúdio haviam entrado lá
para espiar a clone. Jay havia convencido o RCMP de que
as acusações de Kurzmann em relação à general eram
confiáveis o suficiente para posicionar oficiais à paisana
no estúdio até que Cosima fizesse Eloise mostrar sua
verdadeira face. O fato de que ela ainda havia feito isso
durante a transmissão nacional era apenas a cereja do
bolo.

O diretor de notícias nem ao menos esperou até que


os gritos nervosos da general sumissem atrás da porta do
estúdio para se aproximar de Cosima. “Aquilo foi incrível.
Eu sei que você passou por maus bocados, mas se
importaria em ficar mais alguns minutos aqui para nos
contar um pouco de sua história?”

Cosima abriu a boca para dizer não, então pensou em


Eloise mentindo sobre a revolta incitada pelos clones. Ela
lembrou-se de todas as vezes em que ela teve de pedir que
não filmassem suas apresentações, por ter medo de que
alguém a visse e percebesse que ela era idêntica a outra
pessoa. Ela viu Delphine na parte obscurecida atrás de
todas as luzes e seu aceno de incentivo. “OK.” Cosima
disse, passando as costas da mão para limpar qualquer
resquício de oleosidade de suas bochechas. “OK, por que

560
não? Mas você pode colocar minha esposa aqui também?
Ela sabe de tudo tanto quanto eu.”

561
“Sarah foi embora?” Art perguntou, assim que
Jaysara saiu do telefone que usava para reportar o
tiroteio.

“Eu acho que sim.” Jaysara disse. “O que significa


que teremos de esperar aqui até que os oficiais cheguem
e tirem essas algemas.”

“Eu não ligo para as algemas. Tem certeza de que ela


foi embora?”

Jaysara checou o celular. “Sim. Ela saiu assim que


viu que você havia sido infectado. Ela está voltando para
a casa com Alison, Donnie e Charlotte.”

“Charlotte esteve aqui?”

“Ela estava no carro, não passou nem perto de você.


Você tem que relaxar, Art. Você não quer deslocar o
ombro, acredite em mim. Os olhos de Art estavam ficando
vermelhos e escorrendo e Jaysara o olhou com
preocupação. “Você está começando a apresentar
sintomas do que quer que esse cara tenha injetado em
você? Você...”

“Estou bem.” Art disse de forma direta. “Não existem


sintomas, não para mim. Hum, provavelmente.” Ele
acrescentou, se lembrando do que Davis disse sobre ele
ser um teste. “Mas se eu chegar perto de algum clone, eles
morrem.”

“Meu deus...” Jaysara disse, involuntariamente.

562
“Me desculpe...” Art disse. “Você provavelmente está
infectada agora também. Você tem que ligar para seu
pessoal e dizer que precisamos de procedimentos de
quarentena, senão vai vazar de vetor para vetor até que
eventualmente infecte algum clone.”

“Você realmente acha que o período de incubação é


tão curto assim?” Jaysara disse, após desligar o telefone.
Ela se sentou no chão apoiada nas pernas de Art para
esperar até que a equipe de contenção chegasse.

“Não sei, mas não vou arriscar.” Art disse.


“Charlotte...” Ele parou e engoliu em seco. “Jay, hum...
Jaysara. Me desculpe. Eu sei que isso vai atrapalhar sua
carreira... bem, atrapalhar sua vida.”

Humm... talvez não atrapalhe uma coisa. “Tudo


bem.” Jaysara disse. “Nenhum dos clones foram
infectados. Vão encontrar uma cura ou vacina. Enquanto
isso, vamos ter de lidar com isso.”

Ela levantou a cabeça e viu Art a observando com


desconfiança. “Lidar com isso?” Ele perguntou. “Isolação
de longo prazo com uma doença transmissível
desconhecida?”

“Talvez não leve tanto tempo.” Jaysara disse, se


levantando. “Você não disse que Cosima e a esposa dela
são gênios nesse tipo de coisa? E, ei, talvez algum tempo
afastado do trabalho não seja tão ruim.”

Agora Art estava a encarando sem acreditar.


“Tempo... afastado... do trabalho?”
563
“Só acho que deve ter algum lado bom.” Jaysara
continuou. “Assim... desde que...” Estava sendo tão fácil
até agora. Ela suspirou. “Você acha que vamos ficar
isolados juntos?”

Assistir à expressão de Art mudando, devagar e


lindamente, valeu a pena. “Agora que você disse...” Ele
disse. “Até que algum tempo afastado seria uma boa.”

“Nesse caso...” Jaysara disse, com cuidado. “Talvez


devêssemos nos certificar de que eu estou realmente
infectada?” Ela se inclinou bem devagar, dando a ele
bastante tempo para recusar, se quisesse. Beijar alguém
que estava preso a uma cadeira era definitivamente
contra o protocolo do departamento. Mas o circo ia chegar
a qualquer momento e pode ser que levasse algum tempo
até que tivessem outra chance.

“Ah, dane-se.” Art murmurou, logo antes que seus


lábios se encontrassem.

564
Dois dias depois

“Ei! Como vai Art?” Kira perguntou, enquanto descia


as escadas para entrar no quarto do porão da casa
Cophine, onde estava ficando junto com Charlotte por
algumas semanas.

“Mesma coisa.” Charlotte disse, com um suspiro. “Ele


mandou oi.” Ela virou seu celular para que Kira pudesse
ver a ligação do Skype que mostrava uma câmara de
isolamento, então se despediu do pai e desligou. “Como foi
o trabalho?” Ela perguntou, enquanto Kira se deitava ao
lado dela no sofá.

“Ugh. Não é trabalho.” Kira disse. “É tipo limpeza.


Sei lá. Eu achei que a GeneKeep e Dr. Bai fossem tão
bons, o jeito perfeito de trazer algo de bom ao mundo,
agora o Dr. Bai foi preso e descobrimos que ele vendia
genomas ao Departamento de Defesa e que ele
pressionava pessoas a contribuir contra sua vontade,
tanto que eles modificavam o próprio DNA para destruir
o servidor dele. Sei lá.”

“Como está Emmaline?” Charlotte perguntou,


maliciosamente. “O que vocês tiveram ontem foi um
encontro ou não, afinal?”

Kira a acertou com a almofada de brincadeira e se


levantou, mas, com base na cor em seu rosto, tinha sido,
sim, um encontro. “Quer uma cerveja?” Kira perguntou,
em pé em frente à mini geladeira delas.
565
“Pode ser.” Charlotte disse. “Ei... você acha que sua
mãe já me perdoou por expor elas?”

Kira voltou com duas garrafas de cerveja que elas


haviam pegado escondido da geladeira Cophine. Ela
tomou um gole antes de responder. “Não acho que perdoar
seja exatamente a palavra...” Ela disse. “Ela
definitivamente ainda não me perdoou. Por nada, na
verdade. “Mas ela está tentando entender de verdade. E...
me escutando. Como uma adulta.” Ela deu de ombros,
envergonhada. “É meio que incrível.”

“Eu ainda não sei se foi a coisa certa a se fazer...”


Charlotte disse, olhando para baixo.

“Foi! Definitivamente foi a decisão certa.” Kira disse,


tocando o braço de Charlotte. “Talvez elas nunca aceitem
totalmente, mas mais cedo ou mais tarde elas vão
perceber que estão melhor agora.”

“Eu não sei...” Charlotte disse. “Todos aqueles vídeos


de pessoas que não sabiam, descobrindo de forma tão
súbita...”

“É...” Kira concordou. Alguns dos vídeos era


terríveis: pessoas perdendo o emprego, perdendo a
famílias, enquanto todo o seu senso próprio de identidade
era rearranjado.

“Eu só fico pensando como seria descobrir assim, sem


ajuda nenhuma, nos noticiários...” Charlotte afundou o
rosto nas mãos. “Eu devia ter pensado melhor nisso.”

566
“Ei!” Kira disse. “Você fez a melhor decisão que podia
na época. Lembra que Cosima estava prestes a ir para a
cadeia? E além disso, você estava aprisionada. Nossas
tias estavam aprisionadas, mesmo que não admitam. E
você não acha que estas outras clones ficarão felizes,
eventualmente, de descobrir mais sobre si mesmas?”

“Talvez.” Charlotte disse, com um tom de dúvida.


Criada consciente de sua condição de clone, era difícil
para ela imaginar este tipo de revelação. “Mas elas
deviam ter alguma ajuda.” Ela se levantou, de repente.
“Talvez é isso que devemos fazer! Digo, agora que seu
estágio acabou. Vamos criar uma organização que dê
suporte a todas as novas clones conscientes!”

“Incrível.” Kira disse, levantando o punho no alto.


“Sabe...” Ela disse, depois de uma pausa. “Eu estava
pensando se isso foi parte do que deu errado com Vivi.”

“Você diz sobre o fato de que ela descobriu tudo de


forma tão... complicada?”

Kira acenou. “Dana está muito chateada com isso. Se


sente culpada.”

“Helena nunca encontrou rastros dela, não foi?”

“Não...” Kira disse, triste. Dana não era a única que


estava chateada. “E se Helena não a encontrou...”

“Nenhum corpo?”

567
“Nenhum corpo. Mas havia muita neve e talvez
algum animal... Ou talvez ela só seja uma superespiã
mesmo e conseguiu escapar.”

“Talvez por querer partir. Ela não conseguia lidar


com isso.” Charlotte disse.

“É. Eu sei que minha mãe e muitas das minhas tias


descobriram tudo em circunstâncias difíceis, mas uma
coisa é circunstâncias difíceis, outra é estar exercendo seu
trabalho de espiã em outro país e descobrir que sua
agência te traiu.”

Charlotte acenou e tomou um gole da cerveja. “Bom,


espero que ela esteja bem...”

“Eu também.” Kira disse, então se levantou. “Vamos


nos juntar à festa?”

568
A festa já estava acontecendo quando elas subiram.
Charlotte foi em direção a Alison e Donnie, que contavam
a Delphine sobre o contrato que haviam assinado para
fazer um reality show chamado Clones em Casa, um
programa para mostrar como clones podiam levar uma
vida normal, suburbana e focada em suas famílias, como
qualquer outra pessoa.

“Vai ser tão importante, sabe, mostrar às pessoas


que também podemos ser normais!” Alison dizia animado,
enquanto Delphine concordava. Charlotte continuou
andando antes que ela tivesse de cortar a vibe da tia
Alison. Na porta da cozinha, Cosima acenava
entusiasmada junto a algo que Dana dizia.

“Acho que seria perfeito! Por que eu já publiquei


alguns trabalhos etnográficos sobre nossas experiências,
só que eu sempre tive de fingir que era estudos com
gêmeos.” Dana sorriu ironicamente e Cosima riu.

“Não sei porque eu nunca pensei nisso!”

“Mas agora que podemos dizer que são clones,


podemos fazer tantas coisas mais... E acho que seu
conhecimento em desenvolvimento e evolução junto à
minha abordagem em ciências sociais daria um artigo
super interessante.”

“Isso seria demais!” Cosima disse, enquanto


Charlotte passava por elas para chegar à cozinha, onde
uma bandeja de cupcakes se encontrava sobre a bancada.
Assim que ela esticou o braço para pegar um, Artie passou
569
por ela e o pegou antes dela, agarrando outro com a outra
mão livre, talvez para seu irmão gêmeo e não para si.
Charlotte gritou seu nome, mesmo que soubesse que não
adiantava nada, então pegou outro, torcendo para que os
bolinhos tivessem algum ingrediente especial, então se
dirigiu para a estufa.

“Você viu isso?” Sarah perguntava a Helena,


gargalhando ao mostrar um website em seu celular.

Charlotte olhou por sobre os ombros dela para ver o


que era. “O que é isso?” Ela perguntou, lambendo um
pouco da cobertura do bolinho.

“É o blog da Krystal, ou vlog, ou sei lá do que ela


chama isso. Ela finalmente decidiu que vale a pena
admitir ser uma clone, pelo hype da coisa agora.”
Enquanto Helena assentia concordando, Sarah passou o
celular para Charlotte, que viu um quiz ‘Qual clone você
é?”.

“Ew!” Ela disse, devolvendo o celular.

“Eu te contei?” Helena disse, casualmente. “Que eles


tem pedido o meu livro de memórias?”

“O que? Quem?” Sarah disse, se sentando ereta.


“Você não disse nada sobre isso, cabeçona!”

“Agentes...” Helena disse, acenando com as mãos.


“Editoras... Não sei o nome deles.”

570
“Isso é incrível, tia Helena.” Charlotte disse,
educada, se perguntando o que diabos devia ter naquele
livro.

“E você, pequena?” Sarah perguntou, se virando para


trás para cutucar a barriga de Charlotte. “Algum grande
plano para o futuro, agora que você pode finalmente
contar às pessoas a verdade sobre você e blá blá blá?”

Charlotte sorriu, feliz que Sarah tinha, de verdade,


superado aquilo. “Eu estou principalmente ajudando tia
Cosima e tia Delphine com o trabalho da vacina.”

“Claro.” Sarah disse, mais séria, pensando em Art e


Jaysara, que esperavam o tratamento.

“Ei, tia Helena...” Charlotte disse, aproveitando a


pausa. “O que você acha que aconteceu com Vivi? Será que
ela está bem?”

Helena encarou o horizonte. “Eu não sei.” Ela disse.


“Mas espero que sim.”

571
Vivi emergiu das árvores cobertas de neve e avistou
uma estrada com construções em volta. Era apenas uma
pequena vila, remota e praticamente fora da rede, mas
estava do lado Vermont da fronteira. A falta de sinal de
celular favoreceu Vivi, porque havia uma cabina
telefônica na loja de conveniências, e ela pôde comer um
lanche decente e um delicioso pedaço de torta enquanto
esperava.

Foi quase quatro horas após ela fazer sua ligação que
um carro singularmente limpo e novo estacionou no
centro da cidade, parando por tempo apenas suficiente
para que Vivi entrasse no lado de passageiros.

“Davis está morto.” Arun disse, antes de qualquer


coisa.

“Ótimo.” Vivi disse. “Comemierda.”

“Ah, então você aprendeu algum francês, afinal.”

Vivi queria abraçá-lo, mas revirou os olhos ao invés


disso.

“Você pegou?” Arun não olhava para ela, seu olhar se


alternando entre a estrada e o espelho retrovisor.

Vivi colocou o pendrive na mão dele, o qual ela havia


pegado do cordão de Kurzmann na vila. “Não apenas
isso...” Ela disse, com satisfação. “Mas estou presumida

572
morta.” Decidiu não mencionar que Helena sabia dela.
Ainda não. “Ser uma clone ainda pode ter suas
vantagens.”

573
Um mês depois

‘Nenhum ato de gentileza, não importa quão pequeno


seja, é desperdiçado.’

Fee encarou a citação de Aesop que pendia dourada


na parede em sua frente. Não restava muita gentileza na
ligação que ele estava fazendo. Enquanto a mulher
brigava com ele, ele estava focado em pintar as unhas de
azul marinho. Hoje era noite de encontro com Colin. Eles
estavam experienciando um renascimento da relação
deles, e ele se recusava a deixar que aquela vaca
fraudulenta estragasse as coisas.

“Como ousa!” A mulher no telefone gritava. “Você


não sabe se sou uma clone ou não! Você provavelmente é
só algum tipo de telemarketer fracassado!”

“Querida, você disse que nasceu em 1951. Isso foi


duas décadas antes.” Felix respondeu. “Fertilização in
vitro não existia em 51. E clones não existem sem in
vitro.”

“Bom, eu sou um milagre.” A mulher declarou.

“É, você e todos os outros boomers que nasceram


antes de contraceptivos orais chegarem no mercado.” Fee
disse, indiferente.

“O quê?!” A mulher disparou.

574
“Ah!” Fee exclamou. “Tenho outra ligação. Por favor,
aguarde.” Ele desligou e bloqueou imediatamente o
número da mulher. Felix deixou escapar um suspiro de
alívio, então observou à sua volta o escritório que
Charlotte e Kira haviam improvisado no porão de Cosima
e Delphine. Era repleto de citações inspiradoras e livros
de gestão de crises e autoajuda. As garotas estavam
tentando de verdade reparar as coisas por expor as clones
e ele sabia que elas não aprovariam o jeito que ele estava
trabalho em seu turno na ‘Clone Care’, a linha direta de
suporte que elas haviam criado para clones recém
conscientes e suas famílias. Mas como ele deveria lidar
com todas as fraudes que ligavam? Ou com aqueles que
ligavam só para criticar clones? A maioria das ligações
nas últimas quatro horas se encaixavam em uma destas
duas categorias. Não era à toa que as meninas haviam
pedido para ele assumir por um dia para que elas
pudessem assistir TV, séries e serem jovens por um dia.
A coisa era meio perturbadora e ele começava a se
preocupar com todo o ódio e insanidade que Charlotte e
Kira estavam absorvendo através daquela linha direta.

“Olá, Clone Care. Como posso ajudar?” Felix disse


mecanicamente, afundando o pincel em um pote de
esmalte ‘Blue Me Away’.

“Eu... sou uma clone.” Disse uma voz trêmula.

Dessa vez, realmente era uma clone. Felix podia


ouvir os traços de Cosima em sua voz. Ele olhou para
baixo, para o script de ligações que Charlotte e Kira

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haviam feito para ele, lendo a primeira linha. “Meu nome
é Felix. Minha irmã é um clone. Gostaria de me dizer seu
nome?”

Parecia que a mulher do outro lado da ligação estava


folheando pilhas de papel e bebendo um smoothie antes
que ela respondesse. “É X.”

“Só ‘X’?”

“Isso.”

“Certo.” Felix disse, avaliando o script para sua


próxima fala. “Gostaria de me dizer como você descobriu?”

“No noticiário. Como centenas de outras.” Disse X,


irritada.

Fee dispensou o script. “Pergunta idiota. Então, o


que te traz a essa linha direta?”

“Somos mais do que clones, sabe?” Ela disse.

“Claro que são. E não deixe que ninguém—”

“Não. Eu quero dizer que... tem mais história por


trás disso. Não somos apenas clones. Você não vai
acreditar em mim.”

Felix se encolheu, esperando que outro culto


Prolethean tivesse se formado na loucura midiática dos
clones. “Vá em frente. Você não acreditaria nas loucuras
que já vi.”

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“OK... estão dizendo que somos clones, mas, na
verdade, somos... aliens.”

“Por favor, me diga que você não fundou algum tipo


de culto com base nisso.” Felix grunhiu.

“Eu sabia que não devia ter ligado para essa linha
direta idiota.” X disparou, antes de desligar.

Felix se chutou. Ele havia estragado a única ligação


de verdade do dia. Ele queria que MK estivesse ali. Ela
seria a ajuda LEDA ideal para essa clone paranoica; ela
teria dado àquela mulher um discurso sobre as
conspirações reais e legítimas das quais ela deveria ter
medo, o que seria tanto uma benção quanto uma
maldição, já que foi o que assustara tanto MK que ela
passara a viver num trailer, cercada de bombas e se
alimentando de chá gelado.

O telefone tocou— Felix o atendeu imediatamente.


“X? Eu não quis—”

“Ah, número errado.” Disse uma moça confusa.

“Santo peitinho!” Arquejou Felix,


involuntariamente. Fazia oito anos desde que ele ouvira
a voz mal-humorada de Krystal Goderitch pela última
vez. Dessa vez, estava carregada de tensão e raiva.

“O que você disse?” Ela disse, no limite.

“Er... Linha direta Clone Care.” Felix disse, tentando


mantê-la na linha. Anos atrás, ele introduzira Krystal à
ideia de que ela era um clone, o que ela achou absurdo.
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Ela era a última pessoa que ele esperava que fosse ligar.
Se ela finalmente estava aceitando sua identidade
genética, ele não queria atrapalhar.

“Para referências futuras, você precisa ser mais


profissional. Uma pessoa instável piraria com o jeito que
você atendeu. E também, ‘santo peitinho’ é, tipo, assédio
sexual.”

“Você tem razão. Me perdoe.” Fee disse, de má


vontade.

“Eu conheço sua voz...”

“Provavelmente tenho uma daquelas vozes


comuns...”

“Não, eu tenho uma memória impecável de vozes e


mãos. Você... Você é aquele cara da Scotland Yard que eu
atingi com spray de pimenta.” Krystal se deu conta. “Ah,
não... Essa ligação é de longa distância para a Escócia?
Eu sou uma estudante, não posso pagar isso. Por lei, você
tem que me dizer se eu terei de pagar por isto.”

“Não, não. É uma ligação gratuita.” Fee disse, para


mantê-la na ligação.

“Espero... Até onde me lembro, você é um policial.


Por que a polícia está gerenciando essa linha direta?”
Krystal perguntou. “Está acontecendo algo? Está
acontecendo algo com aquelas mulheres que as pessoas
pensam ser clones? Elas estão desaparecendo? Ai, meu
deus, ai, meu deus. Isso explica tudo.”

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“Explica o quê?” Felix perguntou.

“Você não viu minha entrevista?” Krystal soluçou. “A


srta. Winters estragou minha vida. Eu recebo ligações,
centenas de DMs todos os dias— pessoas estranhas,
doentes. Tem esse...” Então, curiosamente, Krystal ficou
em silêncio.

“Krystal?” Fee disse.

Ela choramingou na linha. Algo a incomodava e Felix


queria descobrir o quê. “Krystal, você não está sozinha.”
Ele disse a ela. “Estou te escutando.” E, pela primeira vez
no dia, ele realmente estava.

FIM

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