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A

Deyve Redyson*

Revista de Filosofia
Ludwig Feuerbach e o jovem
Marx: a religião e o materialismo
antropológico dialético

RESUMO

Este trabalho tem como principal intenção demonstrar o pensamento de Ludwig Feuerbach
como o criador do materialismo antropológico que leva as noções de cristianismo e de fé
às últimas conseqüências. Somado a este materialismo antropológico Feuerbach ainda traz
outro elemento, a formulação de um meio antropológico que seja dialético. Percebe-se que
o jovem Marx é profundamente influenciado por este materialismo de Feuerbach, principal-
mente na “Ideologia Alemã”.

Palavras-chaves: Materialismo; Antropologia; Marx; Feuerbach; Dialética.

ABSTRACT

This work has as main intention demonstrate the thought of Ludwig Feuerbach as the creator
of the anthropological materialism that carries the christianity and faith notions to the last con-
sequences. Summed to this anthropological materialism, Feuerbach still brings other element,
the formulation of an anthropological way that is dialectic. It realizes that the youth Marx is
profoundly influenced by this Feuerbach’s Materialism, mostly in the “German Ideology”.

Key words: Materialism; Anthropology; Marx; Feuerbach; Dialectic.

* Doutor em Filosofia, Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPB..

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É inevitável perceber a influência que Engels só faz confirma isso em sua
o filósofo alemão Ludwig Feuerbach exerceu clássica obra “Ludwig Feuerbach e o fim da
sobre o pensar de Karl Marx. Acredita-se que filosofia clássica alemã” afirmando:
este herdou daquele outro o sentido do ma- Foi então que apareceu A Essência do
terialismo. Feuerbach foi um contestador do Cristianismo, de Feuerbach. De repente,
cristianismo e o fundamentador do materia- essa obra pulverizou a contradição criada
lismo filosófico, sofreu uma influência casual ao restaurar o materialismo em seu trono.
de Hegel, em sua juventude e, em seguida foi A natureza existe independentemente de
um dos mais críticos pensadores do sistema toda filosofia, ela constitui a base sobre
hegeliano, sofreu também influência, no final a qual os homens cresceram e se desen-
de sua obra, pelo também filósofo alemão volveram, como produtos da natureza
que são; nada existe fora da natureza
Arthur Schopenhauer e finalmente exercendo
e dos homens; e os entes superiores,
uma influência no pensador cristão dinamar-
criados por nossa imaginação religiosa,
quês Søren Kierkegaard (Cf. REDYSON, 2007, nada mais são que outros tantos reflexos
p. 17-18), que deseja fazer uma reintronização fantásticos de nossa própria essência
do cristianismo na cristandade. [...] O entusiasmo foi geral e momenta-
Marx é o único dos jovens hegelianos1 neamente todos nós nos transformamos
que faz referência a Feuerbach quando se trata em feuerbachianos. (MARX; ENGELS,
do materialismo para manter uma relação 1977, p. 177).
crítica e estruturada do pensamento hege­ Por isso Marx afirma:
liano. A extrema simpatia com que Feuerbach
é tratado nos “Manuscritos econômicos-filo- A grande façanha de Feuerbach é: 1.
sóficos” e em seguida na “A Sagrada Família” ter demonstrado que a filosofia nada é
senão a religião em forma de idéias e
expressa o reconhecimento que Marx tinha
desenvolvida pela pensamento; que nada
de Feuerbach, que pela primeira vez, insistiu é senão uma outra forma e um outro modo
na necessidade de se fazer uma inversão de existência da alienação do homem;
materialista da filosofia de Hegel. Marx se ou seja, que é tão condenável quanto;
apropria dos aforismos de Feuerbach com 2. ter fundado o verdadeiro materialismo
uma certa liberdade, atribuindo-lhe outras e a ciência real, fazendo igualmente da
conotações que não eram as expressas por relação social ‘do homem ao homem’ o
Feuerbach conferindo-lhe uma entoação fora princípio básico da teoria; haver oposto
do ideário de Feuerbach. à negação da negação, que se pretendia
Marx foi influenciado por Hegel e em o absolutamente positivo, outro positivo
baseado em si mesmo e fundamentado
seguida pelas críticas de Feuerbach, isso é
positivamente por si mesmo. (MARX,
claramente visível desde os “Manuscritos eco- 2003, p. 173).
nômicos-filosóficos” de 1844 onde revela:
Feuerbach é o único a ter tido uma atitude Ao equiparar a religião com a filosofia
séria, crítica, com a dialética hegeliana, especulativa de Hegel, interpretando am-
tendo feito verdadeiras descobertas nesse bas como formas de alienação, Marx está
domínio; ele, em suma, é o verdadeiro
se referindo às diversas passagens em que
vencedor da antiga filosofia. A grandeza
Feuerbach faz essa aproximação como nos
com que a executou e a simplicidade dis-
creta com que Feuerbach a entregou ao “Princípios da filosofia do futuro”: “A essên-
mundo criam um contraste surpreendente cia da filosofia especulativa não é senão a
com a atitude inversa dos outros. (MARX, essência de Deus racionalizada, realizada,
2003, p. 173). presentificada. A filosofia especulativa é a

1
Hegel morreu em 1831 e após sua morte uma grande massa de discípulos dividiu-se em dois troncos: os de direita e os de esquerda.
De direita poderíamos citar: Karl Göschel, Kasimir Conradi, Johann Erdmann e Karl Rosenkranz que enfocavam com relevância a reli-
gião. Os de esquerda citaríamos: David Freidrich Strauss, Bruno Bauer, Max Stirner, Arnold Ruge e posteriormente Feuerbach e Marx
que tinham como ponto de discursividade a dialética.

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teologia verdadeira, conseqüente, racional.” um pensador importante para a formação de
(FEUERBACH, 1990, p. 266). A inversão ma- Marx e Engels.2 Naquela fase precedente à
terialista de Feuerbach propõe, no lugar da Ideologia Alemã e d’As teses sobre Feuerbach,
teologia racionalizada, um pensamento que o próprio Engels confidencia:
seja do homem mesmo, isto é uma filosofia Quem tem descoberto o segredo do sis-
de verdade, assim um projeto de uma nova tema? Feuerbach. Quem tem aniquilado
filosofia feita em nome da emancipação dos a dialética dos conceitos, a guerra de
sentidos e do homem. Marx afirma que Feuer- deuses que só os filósofos conheciam?
bach é o criador do verdadeiro materialismo Feuerbach. Quem tem posto o homem
nos fazendo pensar que a uma diferença no lugar da velha especulação, e tam-
substancial entre a dialética hegeliana e o bém da autoconsciência infinita? Feuer-
antigo materialismo o qual Marx se dedica bach e só Feuerbach. (MARX; ENGELS,
2003, p. 111).
em “A Sagrada Família” de que o materialis-
mo humanista de Feuerbach distancia-se do Portanto, eis o valor de Feuerbach: como
antigo materialismo por ver a religião não transição de um materialismo mecânico para
como um erro, um desvio de intelecto em um materialismo prático. Compreender
relação com a verdade, e sim, como uma Feuer­bach é compreender o materialismo
produção da consciência humana, sendo numa fase onde se combatia tanto a espe-
assim um fenômeno ideológico. culação filosófica, quanto o materialismo
Segundo Feuerbach, o movimento da proveniente da tradição do Iluminismo. Em
dialética hegeliana inicia-se com o infinito, Feuerbach o materialismo tem seu funda-
idéia abstrata (a religião, a teologia), para ser mento no homem, é um materialismo que
negada em um segundo momento (aquele gira em torno do humanismo.
infinito ao sensível, do real ao particular) O erro do antigo materialismo foi con-
e finalmente em um terceiro movimento a ceber o homem como indivíduo passivo, mo-
filosofia é quem deve reafirma a teologia delado unicamente do exterior. Era, assim,
enquanto pensamento racional. Feuerbach, um materialismo mecanicista que reduzia
por sua vez, diz Marx, interpreta a negação o homem às circunstâncias; neste materia-
da negação como um movimento do pensa- lismo, a presença do mundo esmagava o
mento que quer superar-se com seus próprios homem nas suas determinações: tínhamos o
meios e, contra este, propõe como ponto de imperativo das circunstâncias. É contra esse
partida o verdadeiro positivo anunciando modelo (de materialismo) que Feuerbach se
o projeto da história real do homem, dessa posiciona, ou como o próprio Marx declara:
forma Feuerbach é deixado para trás, já que diante dos materialistas “puros”, Feuerbach
sua filosofia contemplativa em nada pode tem a grande vantagem de se dar conta que
colaborar para o estudo da autoformação do o homem também é um “objeto sensível”.
homem pelo trabalho. Outro ponto a ser destacado em Feuer-
É nessa direção que indica a idéia de bach é sua crítica à filosofia especulativa. A
Alfred Schmidt; no final de seu trabalho, negação da filosofia empreendida por Marx
ele conclama para uma nova leitura de já se encontra em Feuerbach: a filosofia, para
Feuerbach, que significa redescobrir uma este último, converte-se num jogo escolás-
abertura para se compreender Marx. Não é tico. O espiritual (tão comum no idealismo
um empreendimento descabido. Feuerbach é alemão) é substituído pelo sensível; a es-

2
Consultar textos como: Arndt, Andréas. “Unmittelbarkeit”. Zur Karrier eines Begriffs in Feuerbach und Marx Bruch mit der Spekulation;
Thom, Martina. Die produktiv-kritische Verarbeitung von Feurbach “Grundsätzen der Philosophie der Zukunft” in den “Ökonomisch-
philosophischen Manuskripten” von Karl Marx; Lefèvre, Wolfgang. Das Feuerbach-Bild von Friedrich Engels in Braun, Hans-Jürg;Sass,
Hans-Martin; Schuffenhauer, Werner; Tomasoni, Francesco (Hrsg.) Ludwig Feuerbach und die Philosophie der Zukunft. Berlin. 1990.
Além das seguintes obras: Sampaio, Benedicto A; Frederico, Celso. Dialética e Materialismo Marx entre Hegel e Feuerbach. Rio de
Janeiro. Editora UFRJ. 2006; Schuffenhauer, Werner. Feuerbach und der junge Marx. Zur Entstehungsgeschichte der marxistischen
Weltanschauung. Berlin. Deutsche Verlag der Wissenschaften. 1972; Arvon, Henri. Engels´ Feuerbach kritisch beleuchtet. In Atheismus
in der Diskussion. Kontroversen um Ludwig Feuerbach. München/Mainz. 1975.

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peculação hegeliana é concebida como um deixemos a filosofia hegeliana de lado, pois
movimento do “puro conceito”, como uma es- ela representa o último refúgio da teologia,
pécie de teologia racionalizada. A filosofia de “Quem não abandona a filosofia de Hegel não
Hegel é alheia ao ser empírico, sensível; para abandona a teologia [...] A filosofia de Hegel é
Hegel, a realidade não vai além do pensa- o último refúgio, o último sustentáculo racio-
mento, sempre gira em torno do pensamento nal da teologia” (FEUERBACH, 1990, p.258).
lógico. Hegel nega o ponto de vista imediato, Neste ponto, Marx discorda de Feuerbach,
natural. A imediaticidade do mundo signi- pois não acha válido tomar Hegel com um
fica, em Hegel, uma nova determinação de “cachorro morto”. Numa segunda releitura
uma idéia que produz sempre. Feuerbach vê do filósofo alemão, Marx revê alguns pontos
na lógica hegeliana que as determinações do idealismo (hegeliano). Para Marx, Hegel
(simples) como “ser”, “nada”, “outro”, “finito captou a produção do homem por ele mesmo
e infinito”, dessa forma afirma Feuerbach: como um processo captando assim também
“Hegel parte do infinito; eu do finito; Hegel a essência do trabalho e concebeu o homem
coloca o finito no infinito, [...] eu coloco o in- objetivo, verdadeiro, visto que real, como o
finito no finito” (FEUERBACH, 1970, p. 231), resultado de seu próprio trabalho. Marx rea-
para Feuerbach as determinações hegelianas liza o confronto de Hegel com Feuerbach, ou
se confundem mutuamente, pois são em si seja, “quando Feuerbach sobe, Hegel desce,
determinações abstratas, unilaterais, nega- e vice-versa”.
tivas. Feuerbach no seu texto “Para a Crítica Lênin compartilha desta idéia ao afir-
da filosofia hegeliana” indaga: mar que Feuerbach é decididamente um
Deve o princípio do filosofar, como Hegel materialista que teve o espírito luminoso de
o concebe, ser o conceito abstrato do ser? não admitir a saída imediata de um mundo
Por que eu não devo começar com o ser dos fenômenos para um mundo em si, como
mesmo, isto é, com o ser real? Ou por que pensara Hegel:
não com a razão, já que o ser, na medida
Feuerbach explica luminosamente, com
em que ele foi pensado, tal como ele é
muito espírito, como é absurdo admitir um
objeto na Lógica [de Hegel], me remete
<transcensus> do mundo dos fenômenos
imediatamente a razão? (FEUERBACH,
para o mundo em si, uma espécie de
1970, p. 23-24). abismo intransponível imaginado pelos
Todo o problema, para Feuerbach, cen­ clericais e tomado de empréstimo a es-
traliza-se de que a própria crítica também tes últimos pelos professores de filosofia.
(LENIN, 1975, p. 103).
precisa de um pressuposto. Se a categoria
última da “Ciência da Lógica” de Hegel da Há em Feuerbach uma dimensão que é
idéia absoluta é a sustentação categorial, valorizada por Marx, ou seja, para ele foi mos-
precisamos descobrir o elemento de exterio- trada que a meta do homem é a de compreen-
ridade efetiva com relação ao pensamento der sua humanidade, sua natureza humana;
puro, este elemento é, para Feuerbach, a por essa afirmação, entende-se que seria
realidade sensível, o mundo empírico (FEU- preciso derrubar todas as construções que
ERBACH, 1970, p. 38). fazem do homem uma criatura rebaixada,
É por esse motivo que Feuerbach prio- escravizada e desprezível. Podemos enfatizar
riza a crítica à teologia. Sua antropologia que esse pensamento de Marx sofreu uma
reconhece que na religião as determinações forte influência de  Feuerbach. Mas Marx vai
são extraídas da realidade humana, contra a além do próprio Feuerbach, pois este “aceita”
lógica de Hegel onde o pensamento transcen- a realidade, deseja apenas estabelecer uma
dente está fora do homem. Na especulação consciência correta.
hegeliana não tocamos a realidade verdadei- Já em 1843, Marx demonstra sua incom-
ra, objetiva; trata-se de abstrações particula- patibilidade com Feuerbach e a descreve
res, de determinações privadas de concreção. em carta a Arnold Ruge: “Os aforismos de
É uma arbitrariedade especulativa. Daí, Feu- Feuerbach só deixam de agradar-me no
erbach propõe a superação da teologia, que ponto em que se referem de demasiada

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forma a natureza e muito pouco a política. idéia que Feuerbach permanece na espe-
E sem duvida alguma esta é a única alian- culação, que empreende um materialismo
ça atualmente possível entre a filosofia teórico, contemplativo. E essa crítica de
para se chegar a verdade.”3
Marx a Feuerbach indica a seguinte postu-
Para Marx não se deve contrapor natu- ra: é preciso sair da filosofia. Outra falha de
reza e política de forma abstrata, unilateral Feuerbach, segundo Marx, foi o restabeleci-
da concepção histórico-filosófico. Mais serão mento do antigo dualismo sujeito/objeto. Ao
nas se destruir a identidade entre pensamento
Teses sobre Feuerbach” (redigidas em
e ser, introduziu-se este último no mundo
1845) que Marx procura indicar as fa- (sensorial). Caiu-se, assim, tanto no campo
lhas de Feuerbach, propondo uma outra do nominalismo (a ênfase no sujeito que
interpretação do materialismo. “Teses percebe) quanto do sensualismo. Para Marx,
..., juntamente com A Ideologia Alemã, Feuerbach permaneceu enclausurado no
representam uma virada decisiva na movimento especulativo, já que é uma so-
trajetória de Marx; em outras palavras, lução que não cabe à filosofia. O homem de
trata-se de uma verdadeira ruptura. Nas Feuerbach é um ser isolado, contemplativo;
palavras do próprio Marx, essa fase re- toma-se a “essência” do homem na solução
presentou um ajuste de contas diante da
dos problemas da religião, mas por outro lado
“consciência filosófica anterior. (LABICA,
1990, p. 38).
o homem real não é tocado:
A essência humana permanece, entre-
E essa nova visão marxiana se dá no tanto, prisioneira de uma antropologia de
próprio movimento da crítica a Feuerbach. fundamento naturalista. Ela é o resultado
Se este prioriza o “mundo sensível”, este de um duplo processo de abstração que
mundo não é algo dado, eternamente, mas conduz, por um lado, a supor de antemão
um indivíduo isolado e, por outro lado, a
um “produto da indústria e do estado da
recusar levar a história em consideração.
sociedade, e isto no sentido de que ele é um
(LABICA, 1990, p. 115).
produto histórico, o resultado da atividade
de toda uma série de gerações, em que cada Daí porque Marx vê uma queda no
uma ergue sobre as costas da precedente” idealismo, pois tanto o indivíduo  humano
(LABICA, 1990, p. 48). Desse modo, o culto isolado quanto a “comunidade” (em Feuer-
a uma natureza purificada é, em Feuerbach, bach) são abstrações, pressuposições sem
uma abstração do desenvolvimento social, fundamento real. E desse ponto de vista, o
pois mesmo a natureza já foi modificada humanismo de Feuerbach se converte em
pelo homem. ideologia do humanismo. No homem de
Para Marx erro que incidiu o pensamen- Feuerbach abstrai-se as relações sociais e a
to de Feuerbach foi ter priorizado a dimensão história, seu homem surge sem um “ser so-
teórica do homem. O caráter objetivo do cial concreto”, só apresenta uma consciência
homem se dissimula nessa ênfase ao teórico com uma base natural-sensitiva.
que, no fundo, ainda representa uma postura Marx retoma esse ponto onde Feuer­
filosófica (entende-se, especulativa). Marx bach havia estacionado, aplicando um hege-
acentua que embora Feuerbach se procla- lianismo sem sua forma mítica. A superação
me um crítico da filosofia especulativa, ele do materialismo contemplativo de Feuerbach
ainda permanece “idealista”: Feuerbach não é alcançado com a aplicação do “idealismo
conseguiu sair da filosofia. Na verdade, ele prático” de Hegel. Vemos, assim, que em
propõe uma nova filosofia, como “ciência da Marx as dicotomias homem/mundo, sujeito/
realidade” em sua verdade e totalidade, cuja objeto, teoria/ação, etc. desaparecem com
essência é a natureza. Mas Marx insiste na a descoberta de que o mundo (realidade

3
Este comentário de Marx é referente a publicação, por Ruge nos Anedocta, do texto de Feuerbach Tese Provisórias para a reforma da
filosofia. Carta de Marx a Ruge em 13 de março de 1843. Citado por. Barata-Moura, José. El materialismo de Feuerbach. Un estudio de
sus escritos. Anales del Seminario de Historia de la filosofia, 11. Madrid. Editorial Complutense. 1994. p. 96.

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humana) é o homem, é sua realização no a natureza humanizada, objetivada. Mas nos
movimento (histórico). Portanto, em Marx Manuscritos Econômicos e Filosóficos Marx
temos uma tríade básica: Prática/história/re- vê, também, o oposto dessa tendência. Há
alidade (humana). Se no primeiro momento, trabalho alienado e um distanciamento do
Feuerbach sofre uma hegelianização por parte homem em relação à sua “vida humana”;
de Marx, no final Hegel é “materializado”. o homem (como trabalhador) está alienado
O mundo (humano) já é uma realização do dessas conquistas, pois o trabalho alienado
homem, mas de um homem que ainda não é uma prática que desumaniza o homem.
apreendeu (de forma prática) sua essência. Ao invés da mediação (trabalho consciente,
Nesse nível, a prática é consciência prática. espontâneo) que conduz ao desenvolvi­mento
Nos Manuscritos Econômicos e Filo- humano, o trabalho alienado promove a
sóficos, Marx nos dá mais explicações. Em abstração, com a conseqüente “reificação”
torno do fenômeno da alienação, deixa claro do homem.
sua visão de homem. No trabalho alienado, Como podemos notar, Marx vai além
o homem é um trabalhador, um objeto do das reflexões de Feuerbach, levando as
trabalho e um ser físico preocupado com últimas conseqüências (o fundamento so-
sua subsistência. Na perspectiva do capital, cial) o entendimento da tríade objetivação /
ele é um “capital vivo”, uma mercadoria no abstração /alienação. Daí a importância de
mecanismo de reprodução do capital. Mas estudarmos o materialismo de Feuerbach
independente dessa diminuição do homem através de sua concepção de homem. Entre
no sistema capitalista, Marx não perde de Feuerbach e Marx pode surgir um jogo, uma
vista o universo humano. O homem como relação rica em significados. Primeiro, ao
entidade-espécie participa da humanidade; mostrar que através de Feuerbach enten-
seu trabalho é “atividade vital, vida produ- demos de forma mais clara as posturas de
tiva”, algo que satisfaz suas necessidades Marx no período 1844-46; segundo, que atra-
e base de sua existência. A vida produtiva, vés da “ruptura” e posterior crítica empre-
prossegue Marx, é vida da espécie, vida endida por Marx aos escritos de Feuer­bach,
criando vida. Assim, essa “atividade vital apreendemos os limites do materialismo
consciente” promove a consciência humana, deste último.
sua objetivação. Em outras palavras, constrói Termino com a discutida frase que
um “mundo objetivo” para o homem: daí sua poderá ser de Marx ou mesmo do próprio
afirmação de que a natureza é o corpo inor- Feuerbach: E a vós, teólogos e filósofos es-
gânico do homem. É através dessa prática, peculativos, aconselho-vos: libertai-vos dos
dessa atividade, que o homem pode viver conceitos e dos pré-juízos da filosofia espe-
uma “vida humana”, nesse caráter positivo culativa anterior, se quereis chegar a outro
do homem ele se reconhece no mundo e caminho às coisas tais como são, isto é, à
sente a satisfação de sua atividade como verdade. Para a verdade e a liberdade, não
enriquecimento de seu “ser”. O trabalho es- tendes outro caminho a não ser o que passa
pontâneo, positivo, promove a mediação da pelo arroio de fogo. Feuerbach é o purgatório
dimensão individual com a “espécie”, com do presente.”4

4
Und Euch, ihr spekulativen Theologen und Philosophen, rate ich: macht Euch frei von den Begriffen und Voruteilen der bisherigen
spekulativen Philosophie, wenn ihr anders zu den Dingen, wie sie sind, d. h. zur Wahrheit kommen wollt. Und es gibt keinen andern
Weg für Euch zur Wahrheit und Freiheit als durch den Feur – bach. Der Feuerbach ist das Purgatorium der Gegenwart. In Luther als
Schiedsricher zwischen Strauss und Feuerbach. Trad. Espanhola. Lutero como árbitro entre Strauβ y Feuerbach. In Escritos en torno a
La esencia del cristianismo. Trad. Luis Miguel Arroyo Arrayás. Madrid. Tecnos. 2001. pg. 124. Na verdade existe uma polêmica sobre
a autoria desta frase, alguns afirmam ser de Marx, o que até um bom tempo perdurou, e outros acreditam ser do próprio Feuerbach,
encontram-se tanto nas obras completas de Feuerbach como de Marx. Ver também Schmit, Alfred. Feuerbach o la sensualidad eman-
cipada, p. 17 nota 23. Este texto foi escrito em 1842 e apareceu no n. 2 da revista Anekdota zur neuesten deutschen Philosophie und
Publizistik assinado por um pseudônimo “Kein Berliner” (o não berlinês) os editores da revista eram: Bruno Bauer, Feuerbach, Köppen,
Nauwerk e Arnold Ruge e um anônimo que era K. Marx. Ver também a introdução de Luis Miguel em Escritos en torno a La esencia del
cristianismo. Pg. xxxii-xxxv.

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