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Imprensa e História
Imprensa e História
1 As reformas contribuíram, sem dúvida, para a estandardização dos textos dos jornais, mas a linguagem
continuava a ser um fator determinante na diferenciação dos veículos e na segmentação do público. Era
uma instância essencial no estabelecimento de vínculos entre os jornais e os seus leitores (daquilo que
alguns semiólogos chamam de contrato de leitura).
O Diário Carioca foi também o primeiro jornal a instituir na sua redação o copy
desk: um grupo de redatores, cuja função era revisar e, se necessário, reescrever as
matérias para dar-lhes uma unidade de estilo. Tinha um papel essencialmente
disciplinador: fiscalizava se os textos estavam de acordo com as normas do manual.
Ao lado do moderno conceito de notícia, que ganhou forma com as novas técnicas
redacionais, também surgiu, na década de 1950, uma nova maneira de se conceber o
design, que estabeleceu novos padrões editoriais e gráficos para o jornalismo diário e
introduziu concepções de estilo formalmente em choque com as práticas vigentes no país.
O jornalismo brasileiro, também na perspectiva visual, seguira até então a modelo
francês: excesso de títulos, ausência de lógica na hierarquia do material etc. As reformas
gráficas dos jornais cariocas (principalmente a do JB e a da UH) impuseram um estilo
mais ordenado. As manchetes e títulos passaram a ser padronizadas e a ter uma coerência
interna. Recursos editoriais e formais, típicos de revistas, passaram a ser utilizados nos
jornais diários. Subtítulos, entretítulos, boxes, textos complementares movimentavam e
embelezavam as páginas, tornando a sua leitura mais agradável.
Foi nesse momento que nasceu o conceito de primeira página como vitrine, como
uma espécie de “cardápio atraente” de tudo o que estava no interior do jornal. Pequenos
resumos dos principais assuntos do dia passaram a ser impressos na capa dos periódicos.
Apresentação lógica, ordenação do material na página, disposição racional, essas
eram algumas máximas do jornalismo carioca, que passou a adotar como um valor
estético o princípio da funcionalidade. É o que se vê no comentário do Anuário de
Imprensa, Rádio e Televisão, publicado em 1959:
2 Autores como Gisela Tascher e Renato Ortiz utilizam o conceito de indústria cultural para sublinhar o
fato de que, a partir de um certo momento, a produção de determinados bens culturais passa a se subordinar
à lógica do mercado. A racionalidade da empresa (a busca do lucro, a tentativa de obtenção do maior público
possível) se impõe à produção da cultura, subordinando a mensagem a seus parâmetros. É nesta acepção
que utilizamos o termo neste trabalho.
A nossa pesquisa, no entanto, aponta para os limites e as contradições desse
processo. Nos parece que, pelo menos no período inicial, a modernização do jornalismo
nacional obedeceu a impulsos de outra ordem.
Concordamos com Gisela Goldenstein quando afirma que é possível um jornal
introduzir procedimentos da indústria cultural sem adotar integralmente a sua lógica. A
autora estudou o caso da Última Hora, que empregou as técnicas importadas e
desenvolvidas no processo de conformação dessa indústria nos Estados Unidos, mas os
colocou a serviço da política (no caso, do populismo varguista).
Isto não foi, no entanto, uma exclusividade da UH. O mesmo ocorreu com todos
os jornais pioneiros na modernização, que estudamos: Diário Carioca, Tribuna da
Imprensa e Jornal do Brasil. Todos, em graus variados, adotaram as técnicas modernas
como armas de luta política. O que não significa que interesses econômicos, ligados
diretamente ao mercado, não tenham igualmente impulsionado as mudanças.
É que não havia, nos anos 1950, (segundo acreditamos) nenhuma contradição
entre a lógica da empresa jornalística e a lógica da política. As duas se adequavam uma a
outra, às vezes de uma maneira perfeita, às vezes precariamente.
Isso não se deve, de forma alguma, a uma suposta mentalidade arcaica dos
produtores de notícia. Pelo contrário: se esse arcaísmo existia, não era a regra. As ideias
“modernas” já vinham, há tempos, influenciando os profissionais de jornalismo na forma
como eles se viam e entendiam a sua profissão. Como dissemos anteriormente, nos
lugares de autorreferenciarão jornalísticas já se encontrava menções a essa nova
mentalidade nas primeiras décadas do século3. A partir dos anos 1950, o volume desse
tipo de material era cada vez maior.
Os limites à indústria cultural diziam respeito não à mentalidade de seus atores,
mas às condições concretas do desenvolvimento do capitalismo brasileiro e, nesse
contexto, à conformação empresarial e administrativa do campo jornalístico.
É certo que depois da Segunda Guerra, como mostrou André Hons (1982), o
aspecto empresarial começou a prevalecer em relação às determinações políticas no
interior das empresas jornalísticas. Dados econômicos – como taxas cambiais, inflação,
desenvolvimento ou recessão, preço das matérias primas etc. –, que antes repercutiam
apenas indiretamente, passaram a influir diretamente nos jornais.
3 Essa mentalidade “moderna” tinha, entretanto, seus limites e trazia as marcas das idiossincrasias da nossa
formação social, como veremos no capítulo 4.
Defendemos, no entanto, a hipótese de que o aspecto político jamais desapareceu
totalmente, exercendo um papel fundamental – estrutural – na dinâmica das empresas
jornalísticas. Apesar de terem se afirmado imperativos de gestão e de administração, estes
ainda não eram suficientes para garantir a autonomia das empresas. Por isso, os jornais
jamais deixaram de cumprir um papel nitidamente político. O apoio a determinados
grupos que estavam no poder ou na oposição (dependendo da conjuntura) era essencial
para garantir a sobrevivência de algumas empresas, fosse através de créditos,
empréstimos, incentivos ou mesmo publicidade.
Como definiu muito bem Hélio Fernandes, proprietário do jornal Tribuna da
Imprensa desde 1962:
[...]
2. Identidade e Valores
“Sim, sou jornalista. Mas não tenho nenhum amor à profissão e
pretendo abandoná-la na primeira oportunidade. Porque a vida de
jornal serve apenas de experiência, e experiência que se deve
esquecer assim que for possível.” Carlos Castelo Branco
(PN, 01/7/1951).
4 É interessante observar que Genival Rabelo, que nos anos 1950 era um entusiasta da cultura norte-
americana, se tornaria nos anos 1960 o autor de uma campanha contra a americanização da imprensa e autor
de um libelo contra o capital estrangeiro.
imposição de inúmeras regras que fazem do jornalista, mesmo os mais
encanecidos na profissão, um terno aluno do seu ‘metier’ profissional.
Com isso, o jornal moderno (sobretudo os dos EEUU e de uma parta
da América Latina) ganhou uma grande perfeição técnica, mas – a
meu ver – perdeu muito sua espirituosidade.
Já os jornais europeus lutam por aliar a técnica à sua tradicional
finura literária e política.
Lendo-se um jornal novaiorquino – por exemplo – ficamos sabendo de
todos os acontecimentos do mundo, mas nos falta, com certeza, um
toque analítico, malicioso, uma interpretação emocional ou
descritiva do acontecimento.” (IPI, n.8, 1960, grifos nossos).
Esse mesmo tipo de crítica foi feita por Luiz Garcia, subsecretário da Tribuna da
Imprensa, que retornando dos EUA após um estágio de nove meses na Graduate School
of Journalism da Universidade de Columbia, afirmou ser o jornalismo brasileiro mais
vibrante do que o norte-americano:
A ideia que se tinha de objetividade não era ingênua, como se percebe pela citação
anterior. Havia, por parte de alguns, uma clara consciência dos condicionamentos
ideológicos que se impunham para além da intencionalidade dos profissionais. O próprio
Carlos Lacerda já defendia, na impossibilidade de uma objetividade total, uma
“objetividade possível”:
Danton Jobim (1992:56) assumia uma posição a este respeito parecida com a de
Lacerda. Afirmava ele:
César Luís Leitão (1960: 247), numa publicação comemorativa dos 30 anos do
Diário de Notícia, e Samuel Wainer, em entrevista ao CPDOC, confirmam esta opinião:
“... [A UH] era um jornal que utilizava a informação como ela era.
Mas a interpretava imediatamente dando ao povo a explicação da
informação. Então não deixava a informação solta na cabeça vazia
do povo. Dava-lhe a complementação.” (WAINER- CPDOC/FGV).
A Missão da Imprensa
O livro A Missão da Imprensa de Carlos Lacerda, publicado em 1950, era a
transcrição de uma palestra pronunciada, no ano anterior, em três instituições diferentes:
na ABI, no Conservatório de Belo Horizonte e na Faculdade de Direito de São Paulo.
Nesse texto, o autor discutiu o conceito de jornalismo, apontando o que considerava serem
suas qualidades e suas limitações.
Já no início definiu o caráter “missionário” da profissão, apontando seu
compromisso social. Afirmava, se apropriando da definição de Rui Barbosa, que o
jornalista era o “político do povo”, cujo objetivo era construir uma opinião pública bem
informada, atenta, vigilante e esclarecida. A imprensa encarnava, segundo ele, os sentidos
da nação: eram os seus olhos, a sua boca e até o seu nariz. Tinha a função de zelar pela
comunidade.
A autoimagem do jornalista aqui desenhada parece, à primeira vista, estar ainda
atrelada a um modelo arcaico de profissional (herdado do século XIX), não só porque
partia de uma definição de Rui Barbosa, mas porque apresentava o homem da imprensa
como orientador da política e como mentor da opinião pública, tal como haviam sido
Quintino Bocayuva, José do Patrocínio e o próprio Rui Barbosa (todos citados como
exemplo de grandes profissionais).
Há aqui, no entanto, uma diferença crucial. Se para Lacerda o papel social do
jornalista não havia mudado, a sua legitimidade agora se construía em outras bases, bem
mais “modernas”. Na realidade, o que permitia ao jornalista cumprir a sua missão de
informar a opinião pública e zelar pela comunidade era um conjunto de regras e normas
de comportamento (técnicas e éticas), que passam a definir a atividade jornalística não
mais como uma mera ocupação, mas como uma profissão.
Lacerda reclamava, diversas vezes, do baixo grau de profissionalização do
jornalismo. Segundo ele, o Brasil era:
O jornalismo não deveria, entretanto, ser julgado por esses profissionais, que não
passavam de suas “aves de luxo”. Eles se formavam nas salas de visita, enquanto os
verdadeiros jornalistas se faziam nas redações, “com as misérias que lhe são próprias,
mas não com essa que vem de fora”. Apesar de usar adjetivos fortes como “sarnoso” e
“perebento” para se referir ao mundo da imprensa, Lacerda não encarava a corrupção
como intrínseca ao jornalismo, mas como algo externo, que a contaminava.
“Mas escolher a notícia que vai e a que, já que não cabem num jornal
todas as notícias, não deverá sair, é uma tarefa delicada. Em suma, se
qualquer um pode dar uma notícia, uma notícia verdadeira só pode
dá-la um verdadeiro jornalista, que para isso seja também um homem
verdadeiro” (grifo nosso).
A verdadeira notícia era aquela que fornecia um quadro da realidade sobre a qual
os homens poderiam atuar. E o verdadeiro jornalista era aquele que, visando
constantemente a melhoria da sociedade, era capaz de fornecer aos leitores essa notícia
verdadeira. O jornalismo verdadeiro era, enfim, aquele que levava à ação, aquele que,
através da crítica, mobilizava a opinião pública e impulsionava a reforma da sociedade.
A noção de verdade estava aqui ancorada em uma ética (a do homem verdadeiro) e seus
princípios subjetivistas e relativistas não eram questionados.
Lacerda discutia a questão da fala autorizada. “Se qualquer um pode dar uma
notícia, uma notícia verdadeira só pode dá-la um verdadeiro jornalista” afirmava ele. A
linguagem jornalística sofria, aqui, uma restrição, que pode ser resumida pela famosa
máxima foucaultiana: qualquer pessoa não pode dizer qualquer coisa, em qualquer lugar
e em qualquer circunstância. Apenas alguns sujeitos, previamente reconhecidos, têm
direito de falar e ouvir, escrever e ler, em lugares e circunstâncias predeterminados, com
conteúdos e formas já autorizados.
Citamos, neste mesmo capítulo, um depoimento de Lacerda na revista PN, na qual
ele afirmava que só o profissional podia fazer jornalismo, porque só o profissional sabia
imbuir-se do espírito do jornal em que se encontrava. Mas o profissionalismo
pressupunha o compartilhamento de uma base cognitiva; pressupunha algum tipo de saber
formalizado. E tanto Lacerda sabia disto que, além de escrever um dos primeiros manuais
de redação do jornalismo brasileiro, criou uma “escolinha” na redação do seu jornal para
ensinar aos seus empregados as regras do jornalismo moderno.
A construção de uma autoimagem legitimadora se fazia necessária sobretudo em
um contexto de descrédito e desmoralização da imprensa. Lacerda procura chamar
atenção para este quadro, apontando casos de subvenção e corrupção. “Aqui a imprensa
é, quase sempre, temida. Respeitada ela é quase nunca. Chega-se a bater na barriga da
imprensa, aceitá-la à mesa – mas não se a estima”, afirmou ele.
Lacerda parecia perceber que a corrupção tinha um papel estrutural na imprensa
dos anos 1950, que estava associada a próprias limitações da sua dimensão empresarial e
que, portanto, algumas vezes, independia das escolhas pessoais de seus agentes.
“(...) nem tudo o que há de errado acontece por querer. Uma das
condições de fraqueza da nossa imprensa consiste em que ela ignora,
com as exceções de costume, os seus custos de produção. Tem, por
isso, tabelas de publicidade e uma economia toda ela cheia de
rombos.”
A idéia da responsabilidade social da imprensa (sua missão) parece ter sido tão
fundamental quanto a da objetividade na construção da identidade dos jornalistas. O
processo de profissionalização foi marcado por discurso tecnicista, mas também
essencialmente político, seja no sentido defendido por Carlos Lacerda, da intervenção na
realidade social, seja no sentido defendido por Jânio de Freitas (citado anteriormente), de
isenção frente os interesses partidários. De forma ou de outra, buscava-se ancorar a
atividade jornalística em algum tipo de deontologia que a tornasse uma profissão,
legitimamente reconhecida como tal.
Trabalhava-se com a idéia de uma possível harmonia ou de uma constante tensão
entre a lógica do jornalismo como profissão (objetividade e responsabilidade social) e a
lógica da empresa jornalística (busca pela audiência e lucratividade).