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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


PPGFIL -UFSCAR

DA APERCEPÇÃO PURA E APERCEPÇÃO EMPÍRICA NA CONCEPÇÃO DE


SUBJETIVIDADE EM KANT

Trabalho apresentado como avaliação na


disciplina TÓPICOS EM FILOSOFIA I
ministrada pelo Prof. Dr. Francisco Augusto de
Moraes Prata Gaspar, elaborada pelo
discente: Mauro Sérgio Souza dos Santos.

Belém-Pa
2021
DA APERCEPÇÃO PURA E APERCEPÇÃO EMPÍRICA NA CONCEPÇÃO
DE SUBJETIVIDADE EM KANT

INTRODUÇÃO

No §16 da analítica transcendental, introduzido na segunda edição da Crítica da


razão pura1, Immanuel Kant formula aquilo que vai ser a coluna central de todo o seu
empreendimento crítico, o qual se erigirá como o eixo arquitetônico de confirmação da
sua revolução copernicana, no que diz respeito a constituição da experiência em geral,
qual seja: a proposição, desenvolvimento e justificação daquilo que ele chamou do eu
penso2.
Com efeito, o tema do eu penso será o fio condutor que servirá de guia para a
construção de um revolucionário sistema filosófico idealista, inaugurando um novo sentido
de subjetividade na história da filosofia, marcado sobretudo por um deslocamento radical
na relação entre o sujeito que conhece e o objeto passível de ser conhecido, onde o
primeiro se elevará como o polo central e a fonte fundamental de onde emergirá toda a
constituição da realidade, enquanto fenômeno e representação.
A tópico do eu penso, para Kant, tem, assim, profunda relação com a questão da
fundamentação não só do conhecimento científico, mas também de todas as
representações em geral e com profundas implicações metafísicas, que surgem a partir
do problema geral do papel da razão pura na constituição da realidade.
O autor irá denominar de filosofia transcendental a esse novo modo de conhecer e
constituir a realidade, no qual ‘todo conhecimento que se ocupe não tanto com os objetos,
mas com o nosso modo de conhecer os objetos, na medida em que estes devam ser
possíveis a priori.’ (CRP, B 25, p. 60). Em outros termos, é aqui que se marca a
confirmação da revolução coperniciana em Kant, ou deslocamento do eixo de

1 Doravante chamada de CRP. Como referência para as citações da CRP utilizarei a tradução de Fernando Costa
Mattos, publicada em 2012 pela editora Vozes, indicando a paginação das edições originais de 1781 e 1787, A e B
respectivamente e o número da página na obra traduzida acima referida.
2 Yovel, em seu Short to the critique of pure reason, destaca que o desenvolvimento da temática do eu penso em
Kant é a âncora que mantém coesa, não só acabamento da dedução transcendental, mas, também, de toda a série
de argumentos e conceitos que Kant dispõe para justificar e consolidar a proposta crítica da construção de uma nova
e futura metafísica, na senda de sua revolução copernicana, e assim fundar consistentemente uma nova fórmula de
um sistema de idealismo filosófico. (2018, p. 55-62)
determinação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, no qual a razão (com a
constatação do eu penso) fornece os princípios do conhecimento a priori.3
Kant assim, inaugura um conceito inédito de subjetividade, assim como de
realidade, entendida como idealidade ou fenômeno, uma vez que este só existe ou é
verdadeiro, para nós, e nunca como realidade autosubsistente (coisa em si). A realidade,
assim, na concepção de Kant a realidade ou fenômeno é uma verdade para o sujeito, ou
seja é o subjetivo que torna possível a verdade, para nós homens, seres racionalmente
finitos do saber, no qual a autoconsciência, expressa no eu penso, se soergue como o
princípio de todo o saber.

DA APERCEPÇAO OU EU PENSO

É na primeira alínea do §16, introduzido na segunda edição da CRP, intitulada Da


unidade originariamente sintética da apercepção, que Kant expõe de maneira concisa,
porém densa, a noção do eu penso:

‘O eu penso tem de poder acompanhar todas as minhas representações; pois, do


contrário, seria em mim representado algo que não pode ser pensado de modo
algum, o que significa simplesmente que: ou a representação seria impossível, ou
ao menos não seria nada para mim.’ (CRP, B 132, p. 129)

Essa passagem é repleta de informações fulcrais, já que ela desenrola todo o fio
justificatório de uma argumentação progressiva que Kant vai perfazendo na dedução
transcendental, a qual por fim vincular a validade objetiva de todas as representações à
estrutura do puro sujeito cognoscente, expressa no eu penso, em outras palavras, Kant
procura estabelecer a premissa inicial de que o eu penso, como produto da
autoconsciência ou subjetividade, é uma condição originária da existência de
representações em nós.
E a este respeito, o eu penso se erige como o principal elemento que irá engendrar
a constituição do mundo possível a partir da determinação do homem, por meio do seu
eu cognoscente.
Dessa maneira, o eu penso, nada mais é do que a unidade analítica e originária da
consciência, e que possui no interior de sua estrutura não uma substância ou uma
entidade material, mas sim uma funcionalidade ou autoatividade, ou se quisermos, uma

3 A respeito dessa virada cognitiva na relação entre a subjetividade (pensamento) e o ser (experiência em geral), é
sugestiva a passagem da CRP na qual se assevera que ‘[…] a razão só entende aquilo que ela mesma produz segundo
seu projeto, […] [a] forçar a natureza a responder às suas perguntas em vez de apenas deixar-se conduzir por ela’ (CRP,
B XIII, p. 28). É a proposição da validade objetiva da realidade, a partir da determinação da realidade pelo sujeito.
espécie de dynamis ou espontaneidade, que potencializa a possibilidade de um
movimento que pode acompanhar todas as representações em geral (ou dados do
diverso das intuições sensíveis). Esse movimento potencial do eu penso de
acompanhamento de todas as representações em geral, implica em uma atividade de
síntese ou ligação do diverso em uma unidade que irá conferir validade objetiva aos
fenômenos, entendidos sempre como fenômenos.
Em outros termos pode-se afirmar que: as intuições (que são representações
imediatas) se não forem acolhidas pela autoconsciência ela não são absolutamente nada
para nós. Esse acolhimento só se torna possível por um atividade discursiva e
espontânea do eu penso; uma autoatividade guiada por regras, a qual constituirá a
realidade, e nos tornará simultaneamente consciente da própria consciência das
representações,
É importante ressaltar que essa consciência, enquanto intencional, é
acompanhada pela espontaneidade do eu penso, mas o eu penso em si não pode ser
acompanhado por nenhuma representação, pois, dessa maneira, a própria unidade da
consciência se objetificaria, e perderia, assim, a sua condição de sujeito da
representação, assim como de fato originário, simples, o qual não pode ser mediado por
nenhuma outro estrutura representacional.
É nesse sentido que o eu penso é denominada igualmente por Kant de apercepção
pura, ou seja, como uma consciência da própria consciência, na qual se reconhece a
denominada unidade originariamente sintética da apercepção
Nestes termos o eu penso, é o princípio fundante (Ursatz4) de toda a experiência
em geral, se explicitando, assim, como um eu transcendental, como o ‘pressuposto do
conhecimento a priori a partir dele [do eu penso]’ (CRP, B 132, p.130) 5 e não um objeto
suscetível de uma intencionalidade por parte da consciência. O eu penso kantiano,
ademais, não seria uma substância, tal qual o cogito cartesiano, substância esta que, a
partir da luz divina da razão, derivaria toda espécie de conhecimento racional. O eu penso
na verdade é o pressuposto originário que através de um movimento de síntese
constitutivo de todo o conhecimento em sentido amplo e que simultaneamente se
constitui e toma consciência de si no próprio movimento espontâneo dirigido ao diverso
das intuições sensíveis.
Kant ainda assevera que não é necessário que sempre haja um
acompanhamento ou uma autoatividade sintética do eu penso em face da multiplicidade

4 Ur (originário, fundante) + Satz (proposição, princípio).


5 É aquilo que o Fichte, e depois o Schelling vão considerar quando se referem ao eu penso de Kant, como o
puramente subjetivo, cuja pressuposição é necessária para se objetificar, ou conceder validade objetiva à natureza.
das representações sensíveis, para que se constitua uma representação em geral. O
autor que Kant está a dizer é que para reconhecer ou pensar essas representações como
objetivamente minhas, de maneira a constituir uma experiência possível, basta que se
6
tenha a possibilidade de, a cada momento, me tornar consciente dessas representações
De modo que a função da subjetividade no sistema crítico é tornar possível síntese de
diversas representações para mim, na unidade de uma consciência espontânea e idêntica
reconhecida pela apercepção pura, e não somente em mim.
Não havendo essa consciência de si, que se reconhece como movimento de
síntese ou unificação de diversas representações, tais representações existem de
maneira inconsciente, ou que o que ‘significaria simplesmente que: ou a representação
seria impossível, ou ao menos não seria nada para mim.’ (CRP, B 132, p. 129).

DA APERCEPÇÃO PURA E A APERCEPÇÃO EMPÍRICA.

O eu penso é produto de uma autoconsciência (ato reflexivo de si) nominada,


também, conforme visto, de apercepção 7 pura. A autoconsciência não pode ser nem
objetificada, nem representada, pois é a condição de possibilidade de toda consciência.
Por outro lado há também a apercepção empírica Em seus próprios termos:

Eu a denomino apercepção pura, para diferenciá-la da empírica, ou também


apercepção originária, pois ela é aquela autoconsciência que, por produzir a
representação eu penso que tem de poder acompanhar todas as outras e é
sempre a mesma em toda consciência, não pode ser acompanhada de nenhuma
outra. (…) essa identidade completa da apercepção de um diverso dado na
intuição contém uma síntese das representações e só é possível através da
consciência dessa síntese. (CRP, B 132 – 133, pp. 129-130).

Aqui nessa passagem, em primeiro lugar apresenta-se o eu penso como uma


forma da apercepção pura, no sentido de ser uma autoconsciência (autoreflexão)
originária do sujeito cognoscente em sua atividade discursiva, em oposição à apercepção
empírica, que são atos empíricos da consciência, os quais podem ser percorridos pela
apercepção pura.

6 Allison , em seu Kant’s transcendental idealism, destaca que a passagem kantiana de que as representações não
acompanhadas pelo eu penso não seriam ‘nada para mim’ não implicaria a asserção de que essas representações não
existiriam, mas tão somente que não estaríamos conscientes delas. Nessa ordem de idéias, Allison faz uma
distinção entre representações ‘em mim’ (conscientes e inconscientes) e ‘para mim’ (conscientes). (2004, p. 164)
7 A expressão apercepção está presente em Leibniz, a qual ele define como consciência de si, em oposição a uma
consciência de um determinado objeto exterior à consciência.
Na edição A da CRP, Kant, em uma nota acrescentada em A 117, faz uma
diferenciação esclarecedora entre a consciência transcendental (que nada mais é que a
apercepção pura) e a consciência empírica (ou seja: apercepção empírica), o qual vale a
pena reproduzir textualmente:

Todas as representações têm uma referência necessária a uma possível


consciência empírica: pois, se elas não a tivessem, e fosse impossível tornar-se
consciente delas, isto significaria simplesmente que elas não existem. Toda
consciência empírica, no entanto, tem uma referência necessária a uma
consciência transcendental (antecedente a toda experiência singular), qual seja, a
consciência de mim mesmo como a apercepção originária. E absolutamente
necessário, portanto, que em meus conhecimentos toda consciência pertença a
uma consciência (de mim mesmo). (CRP, A 117, p. 163).

O eu aparece, assim, a partir dessas passagens como uma forma da apercepção


pura, na qual deve ser integrada cada apercepção ou consciência empírica; enquanto as
apercepções empíricas recebem a multiplicidade de dados das representações
singulares, a apercepção pura integra tais apercepções , por meio de um ato de síntese
que as unifica na estrutura unitária e idêntica da consciência em geral (na sua forma).
Caimi (2012, p. 258), a esse respeito, explicita que a apercepção empírica poderia
ser descrita como saber algo, e a consciência transcendental, ou apercepção pura, é
saber que se sabe.
Mas pode-se questionar se essa consciência da consciência não poderia regressar
ao infinito, de modo a que a própria apercepção pura pudesse ser objeto de um outro e
diverso movimento de autoreflexão e assim sucessiva e indefinidamente: um saber que
se sabe que se sabe…numa progressão sem fim.
O sistema crítico-transcendental não nos permite afirmar essa regressão ao infinito,
pois Kant deixa claro que ‘[…] a representação eu penso que tem de poder acompanhar
todas as outras e é sempre a mesma em toda consciência’ (CRP, B 132, p. 129). Ou seja:
a apercepção pura se apresenta como o último nível da estrutura da subjetividade
humana, em sua dimensão racional. Assim, a teoria de uma autoconsciência que
regressaria ao infinito não é logicamente possível no sistema kantiano, pois existe uma
forma última da consciência que é sempre idêntica a si mesma. E a consciência dessa
identidade, nada mais é do que a apercepção pura ou consciência de mim mesmo: o
limite último e formal do eu transcendental.
Este é com verdade o princípio da autoconsciência, o fundamento de toda
experiência. Quando Kant formula na famigerada passagem que ´O eu penso deve poder
acompanhar todas as representações’ (CRP, B 131) nada mais está do que afirmando o
princípio da autoconsciência, antecedente lógico de toda experiência, o qual, em última
análise, se funcionaliza por intermédio de um movimento originário da apercepção pura o
qual procede a uma síntese ou unificação categorial das apercepções empíricas.
Ou seja: toda apercepção empírica tem que poder pertencer a uma consciência
única e idêntica a si mesma para que a própria experiência em geral seja possível, e
constituída a partir desse parâmetro universal, que permitirá legitimar a validade objetiva
dos fenômenos. Logo a identidade e unicidade da última camada da subjetividade é um
postulado originário (Ursatz) a priori, o qual por meio de regras categorias, também,
originárias, irão determinar a configuração da realidade, enquanto experiência
legitimamente objetificada pelo eu transcendental.
A apercepção pura, premissa originária do conhecimento objetificado pelo eu, não
se pode ser tomado como uma substância, ou ente real, mas sim como uma
funcionalidade, uma espontaneidade ou autoatividade imanente à subjetividade, e que
explicita por meio de atividades de sínteses do diverso das representações em geral
(apercepções empíricas) e se reconhece a partir dessa sínteses. Em singular passage
Kant nos diz que ‘A proposição sintética de que toda consciência empírica diferente tem
de ser ligada em uma única autoconsciência é o princípio sintético e absolutamente
primeiro de nosso pensamento em geral’. (CRP, n. 22, A 117, p. 163).
Kant nos fornece nessa contraposição entre apercepção pura e a empírica, o
princípio a priori transcendental de unidade de todo o conhecimento constituído a partir do
sujeito. Princípio que une por meio de regras universais e originárias todo o diverso das
intuições, representações, apercepções empíricas. É um princípio que fornece toda a
unidade do diverso em toda a representação possível.
Kant ainda irá desenvolver em linhas posteriores que essa síntese é produto da
função do entendimento, o qual ele nomina de imaginação (Einbildungskraft). A
imaginação esta que realiza o ‘ato de juntar uma às outras as diversas representações
possíveis.’ O que significa afirmar que a ligação entre diversos fenômenos se dá por meio
de sínteses que partem do sujeito cognoscente e não dos próprios objetos, confirmando
assim a sua revolução copernicana, e seu sistema idealista-transcendental.
REFERÊNCIAS

ALLISON, H. E. Kant’s transcedental idealism: an interpretation and defense. New


Haven: Yale University Press, 2004.
CAIMI, M. A versão definitiva da dedução transcendental das categorias na primeira
edição da crítica da razão pura. In: Comentários às obras de Kant: a crítica da razão
pura. Klein, J. T. (org.). Florianópolis: NEFIPO, 2012.
KANT, I. Crítica da razão pura. 4 ed. Tradução e notas de Fernando Costa Mattos.
Petrópolis: Vozes, 2018.
YOVEL, Y. Kant’s philosophical revolution: a short guide to the critique of pure reason.
Princenton: Princenton university Press, 2018.

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