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Belém-Pa
2021
DA APERCEPÇÃO PURA E APERCEPÇÃO EMPÍRICA NA CONCEPÇÃO
DE SUBJETIVIDADE EM KANT
INTRODUÇÃO
1 Doravante chamada de CRP. Como referência para as citações da CRP utilizarei a tradução de Fernando Costa
Mattos, publicada em 2012 pela editora Vozes, indicando a paginação das edições originais de 1781 e 1787, A e B
respectivamente e o número da página na obra traduzida acima referida.
2 Yovel, em seu Short to the critique of pure reason, destaca que o desenvolvimento da temática do eu penso em
Kant é a âncora que mantém coesa, não só acabamento da dedução transcendental, mas, também, de toda a série
de argumentos e conceitos que Kant dispõe para justificar e consolidar a proposta crítica da construção de uma nova
e futura metafísica, na senda de sua revolução copernicana, e assim fundar consistentemente uma nova fórmula de
um sistema de idealismo filosófico. (2018, p. 55-62)
determinação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, no qual a razão (com a
constatação do eu penso) fornece os princípios do conhecimento a priori.3
Kant assim, inaugura um conceito inédito de subjetividade, assim como de
realidade, entendida como idealidade ou fenômeno, uma vez que este só existe ou é
verdadeiro, para nós, e nunca como realidade autosubsistente (coisa em si). A realidade,
assim, na concepção de Kant a realidade ou fenômeno é uma verdade para o sujeito, ou
seja é o subjetivo que torna possível a verdade, para nós homens, seres racionalmente
finitos do saber, no qual a autoconsciência, expressa no eu penso, se soergue como o
princípio de todo o saber.
DA APERCEPÇAO OU EU PENSO
Essa passagem é repleta de informações fulcrais, já que ela desenrola todo o fio
justificatório de uma argumentação progressiva que Kant vai perfazendo na dedução
transcendental, a qual por fim vincular a validade objetiva de todas as representações à
estrutura do puro sujeito cognoscente, expressa no eu penso, em outras palavras, Kant
procura estabelecer a premissa inicial de que o eu penso, como produto da
autoconsciência ou subjetividade, é uma condição originária da existência de
representações em nós.
E a este respeito, o eu penso se erige como o principal elemento que irá engendrar
a constituição do mundo possível a partir da determinação do homem, por meio do seu
eu cognoscente.
Dessa maneira, o eu penso, nada mais é do que a unidade analítica e originária da
consciência, e que possui no interior de sua estrutura não uma substância ou uma
entidade material, mas sim uma funcionalidade ou autoatividade, ou se quisermos, uma
3 A respeito dessa virada cognitiva na relação entre a subjetividade (pensamento) e o ser (experiência em geral), é
sugestiva a passagem da CRP na qual se assevera que ‘[…] a razão só entende aquilo que ela mesma produz segundo
seu projeto, […] [a] forçar a natureza a responder às suas perguntas em vez de apenas deixar-se conduzir por ela’ (CRP,
B XIII, p. 28). É a proposição da validade objetiva da realidade, a partir da determinação da realidade pelo sujeito.
espécie de dynamis ou espontaneidade, que potencializa a possibilidade de um
movimento que pode acompanhar todas as representações em geral (ou dados do
diverso das intuições sensíveis). Esse movimento potencial do eu penso de
acompanhamento de todas as representações em geral, implica em uma atividade de
síntese ou ligação do diverso em uma unidade que irá conferir validade objetiva aos
fenômenos, entendidos sempre como fenômenos.
Em outros termos pode-se afirmar que: as intuições (que são representações
imediatas) se não forem acolhidas pela autoconsciência ela não são absolutamente nada
para nós. Esse acolhimento só se torna possível por um atividade discursiva e
espontânea do eu penso; uma autoatividade guiada por regras, a qual constituirá a
realidade, e nos tornará simultaneamente consciente da própria consciência das
representações,
É importante ressaltar que essa consciência, enquanto intencional, é
acompanhada pela espontaneidade do eu penso, mas o eu penso em si não pode ser
acompanhado por nenhuma representação, pois, dessa maneira, a própria unidade da
consciência se objetificaria, e perderia, assim, a sua condição de sujeito da
representação, assim como de fato originário, simples, o qual não pode ser mediado por
nenhuma outro estrutura representacional.
É nesse sentido que o eu penso é denominada igualmente por Kant de apercepção
pura, ou seja, como uma consciência da própria consciência, na qual se reconhece a
denominada unidade originariamente sintética da apercepção
Nestes termos o eu penso, é o princípio fundante (Ursatz4) de toda a experiência
em geral, se explicitando, assim, como um eu transcendental, como o ‘pressuposto do
conhecimento a priori a partir dele [do eu penso]’ (CRP, B 132, p.130) 5 e não um objeto
suscetível de uma intencionalidade por parte da consciência. O eu penso kantiano,
ademais, não seria uma substância, tal qual o cogito cartesiano, substância esta que, a
partir da luz divina da razão, derivaria toda espécie de conhecimento racional. O eu penso
na verdade é o pressuposto originário que através de um movimento de síntese
constitutivo de todo o conhecimento em sentido amplo e que simultaneamente se
constitui e toma consciência de si no próprio movimento espontâneo dirigido ao diverso
das intuições sensíveis.
Kant ainda assevera que não é necessário que sempre haja um
acompanhamento ou uma autoatividade sintética do eu penso em face da multiplicidade
6 Allison , em seu Kant’s transcendental idealism, destaca que a passagem kantiana de que as representações não
acompanhadas pelo eu penso não seriam ‘nada para mim’ não implicaria a asserção de que essas representações não
existiriam, mas tão somente que não estaríamos conscientes delas. Nessa ordem de idéias, Allison faz uma
distinção entre representações ‘em mim’ (conscientes e inconscientes) e ‘para mim’ (conscientes). (2004, p. 164)
7 A expressão apercepção está presente em Leibniz, a qual ele define como consciência de si, em oposição a uma
consciência de um determinado objeto exterior à consciência.
Na edição A da CRP, Kant, em uma nota acrescentada em A 117, faz uma
diferenciação esclarecedora entre a consciência transcendental (que nada mais é que a
apercepção pura) e a consciência empírica (ou seja: apercepção empírica), o qual vale a
pena reproduzir textualmente: