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UFG

Módulo V – O Ensino de Literatura em Perspectiva Multicultural


Professor Responsável: Flávio Pereira Camargo

Goiânia - GO – Brasil
2021

Título: Formação Leitora Incerta de uma Leitora Devotada


Nome do autor: Graciane Cristina M. Celestino

O presente ensaio tem por objetivo analisar o texto “Cânon”, de Roberto Reis, em
relação com a formação de minha identidade leitora levando em conta os pontos fundamentais
que são: as autoras ou autores lidos, as personagens, a obra, o leitor e a história. Para tanto
analisarei em algumas indicações preliminares o repertório formativo de minha trajetória,
centrando meu ensaio no período que compreende desde os meus 9 (nove) aos 17 (dezessete)
anos.
Ao iniciar seu texto ponderando de que maneira a escrita ficcionaliza o ledor, Roberto
Reis vincula a reflexão de que o leitor acumula um repertório que lhe oferta pré-noções
relacionadas à significação do texto e seu aparato. Neste sentido toda cultura inculca um
conjunto de saberes constituídos, sejam eles históricos e/ou sociais, minha primeira memória
leitora de texto longo se constitui aos 9 (nove) anos, quando li o primeiro romance de que
tenho recordação, “Meu Pé de Laranja Lima”, de José Mauro de Vasconcelos, meu avô
contava com uma biblioteca em que estavam as obras completas de Graciliano Ramos, Jorge
Amado, José Mauro de Vasconcelos e Shakespeare, naqueles idos de minha infância não notei
que minhas leituras seriam predominantemente masculinas durante um tempo considerável.
O romance mencionado despertou em mim algo relacionado ao aspecto que Reis cita, o
de intercâmbio de saberes, pois me recordou – inconscientemente – da relação entre sujeito
humano e realidade social, sempre uma semelhança mediada pela linguagem. Eu só não
estava preparada para o segundo romance de José Mauro de Vasconcelos que eu leria, “Chuva
Crioula”, a personagem me impactou profundamente, eu contava então com 10 (dez) anos.
Roberto Reis especifica que a cultura comporta um conjunto de sistemas simbólicos, que se
metaforizam em códigos, e estes prescrevem ou limitam a conduta humana, traçando de certa
maneira as nossas compreensões referentes a ideologia, poder e dominação.
Foi Chuva Crioula a personagem responsável por, de maneira inconsciente, apresentar a
meu mundo ainda inocente as relações de poder que permeiam a escrita, quando Reis
estabelece em seu texto que a linguagem pode se constituir em “uma forma de violência
imposta”, suas reflexões me fazem recordar que a personagem que dá nome ao romance é
filha de uma mulher branca com um negro que a teria violentado, o padrasto de Chuva
também a violentou quando ainda era jovem, e após o estupro, se vê em um conflito íntimo,
então foge de casa e acaba por se prostituir nas ruas de Belém.
O nome civil de Chuva é Esmeralda, mulher de belos olhos verdes, longos cabelos
negros, beleza ímpar. Uma imagem reificada da mulher do norte brasileiro, o romance é
ambientado no Pará, comporta uma noção de poder do patriarcado em relação ao corpo
feminino que perpassa as noções de linguagem, cultura, escrita e literatura, e não apenas do
corpo feminino, há menções moralistas à homoafetividade do dono da casa noturna onde ela
trabalha. Após Chuva Crioula li “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, mais uma vez a
sensação de o corpo feminino em constante vigilância.
Em “Cânon”, Roberto Reis cita o fato de que um texto literário vem a se tornar uma
obra por meio do ato da leitura. Minha experiência leitora desde a infância sempre perpassou
as mais diferenciadas fontes, e fui constituindo uma identidade leitora que se estabeleceu
através da maneira como compreendia classe, gosto, lugar ocupado no tecido social. Ainda
com Reis, há que se observar a menção a Eagleton, enunciando a questão dos sentidos
humanos, em sua acepção profunda, sua historicidade e a maneira como o ato de interpretar é
uma atividade radicalmente histórica.
Capitu foi para mim a demonstração de como o prazer de selecionar um novo mundo no
qual eu poderia habitar perpassava principalmente as personagens, uma narrativa ambientada
no Rio de Janeiro das últimas décadas do século XIX, que comporta um narrador parcial, pois
sua maneira de contar é marcada pela subjetividade, além do teor emocional, me apresentava
uma mulher que não podia se defender daquilo que era acusada. A partir dos 15 (quinze) anos
iniciei leituras das narrativas ditas à margem, ficção científica, realismo maravilhoso,
fantástico, entre elas os contos de Clarice Lispector, primeira mulher a adentrar minha
experiência leitora. Nesse período minhas reflexões não se pautavam sobre questões de
tradição literária ou não, no texto Reis cita que o saber produzido está determinado por
condições históricas e ideológicas que constituem o solo do qual esse saber emerge.
Logo após comecei a perceber que a minha trajetória de leitura era perpassada por
personagens femininas que me encantavam, com 16 (dezesseis) anos li “A Muralha”, de
Dinah Silveira de Queiroz, ambientado em São Paulo, romance que narra as violências, a
ambiguidade de homens e mulheres. A personagem Cristina, vem para o Brasil encontrar seu
futuro marido. Narrativa que demonstra o que situa Reis ao elencar que toda interpretação é
feita a partir de uma dada posição social, de classe, institucional. Durante algum tempo
imaginei que os critérios utilizados por mim para a escolha do que lia eram de minha opção,
percebi algum tempo depois que um texto literário é dotado de circunstância histórica, e que
indivíduos dotados de poder atribuíram o estatuto de literário aos textos, no caso das minhas
leituras pude perceber que elas foram canonizadas.
Sendo a leitura uma interação entre o texto e o leitor, ao me relacionar com personagem,
a obra não se compõe de partes estanques, mas de todos os itens que devem ser levados em
conta na hora de analisá-la. Se ainda não temos uma teoria que possa ver a obra como um
todo cheio de significado, a noção de um multiculturalismo nos dá uma direção a seguir na
tentativa de abarcar senão todas (já que isso é impossível) pelo menos a maior parte dos
significados da obra, ajudando-nos a compreendê-la.
Por compreender que a literatura está envolta por uma redoma de a-historicidade, em
que muitos a pensam como algo do divino, e em outros casos como se houvesse traçado os
contornos do cânon, elegendo tais obras e autores e varrendo do mapa outros autores e obras,
elegi Jorge Luís Borges como objeto de meus estudos acerca da leitura. Segundo Bloom,
quando se refere ao “ser cânone”, a posição de Borges no Cânone Ocidental, se prevalecer,
será tão segura quanto a de Kafka e de Beckett. De todos os autores latino-americanos neste
século, é o mais universal.
Ninguém mais na tradição ocidental subverteu a ideia da imortalidade literária tão
implacavelmente quanto Borges. Ele leva seus leitores de volta a seu motivo inicial para
metáfora, desejar ser diferente, encontrar um outro lugar, escolher a profissão de escritor. Para
finalizar meu ensaio literário, gostaria de salientar que a própria noção de literatura é
ideológica, estando intimamente ligada ao poder, logo o conceito de literatura tem cumprido
uma nítida função social capaz de transitar como eixo para a reflexão sobre a história e a
sociedade contemporânea.

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