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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ:

“REFORMA GERENCIAL E NOVOS DESAFIOS


PARA A GESTÃO DO TRABALHO ESCOLAR”
José dos Santos Souza1

RESUMO: Texto de apresentação do Dossiê Temático intitulado "Reforma gerencial


e novos desafios para a gestão do trabalho escolar". Parte do pressuposto de que
vivenciamos ampla reforma do Estado que combina reconfiguração de mecanismos de
mediação do conflito de classes com implantação de renovado modelo gerencial de
administração pública, pautado na competitividade e na racionalização de recursos
materiais e humanos como critério de qualidade para o serviço público. Argumenta que,
nessa mesma perspectiva, mudanças substantivas vêm sendo promovidas pelos
governos para garantir qualidade e produtividade do trabalho escolar, tendo no novo
modelo gerencial sua referência, impondo nova dinâmica à gestão do trabalho e da
produção escolar, o que merece análises mais aprofundadas. A partir desta perspectiva,
os artigos que compõem o dossiê temático são apresentados.
Palavras-chave: Recomposição Burguesa; Reforma do Estado; Gerencialismo; Gestão
Escolar.

MANAGEMENT REFORM AND NEW CHALLENGES FOR THE


MANAGEMENT OF SCHOOL WORK

ABSTRACT: This article is a presentation of the thematic dossier entitled


“Management reform and new challenges for the management of school work”. Part of
the assumption that we are experiencing broad state reform that combines
reconfiguration of mediation mechanisms of class conflict with implementation of
renewed managerial model of public administration, based on the competitiveness and
rationalization of material and human resources as a criterion of quality for the public
service. It argues that, in that same perspective, substantive changes have been
promoted by governments to ensure quality and productivity of school work, having in
the new managerial model its reference, imposing new dynamics on the management of

1 Doutor em Sociologia pela UNICAMP. Atua como professor de Economia Política da Educação e de Política
Educacional do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ; é Coordenador do
Programa de Pós-graduação em Educação Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc/UFRRJ) e
líder do Grupo de Pesquisas Sobre Trabalho, Política e Sociedade (GTPS). E-mail: jsantos@ufrrj.br

RTPS – Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. I, nº 01, p. 09-20, Jul.-Dez./2016.


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school work, which deserves further analysis. From this perspective, the articles that
make up the thematic dossier are presented.
Keywords: Bourgeois Recomposition; State Reform; Management; School
management.

Mudanças substantivas vêm sendo promovidas pelos governos para garantir a


qualidade e a produtividade do trabalho escolar, tendo no novo modelo gerencial sua
referência para implementação de estratégias de controle de resultados e de
racionalização de recursos humanos e materiais, impondo uma nova realidade à gestão do
trabalho e da produção escolar. Esta conjuntura demanda a necessidade de uma análise
mais aprofundada acerca do impacto dessas mudanças na gestão do trabalho e da
produção escolar, tomando como referência empírica o novo modelo de gestão
educacional implementado por inúmeros governos municipais, estaduais e pelo governo
federal. Um propósito pertinente de uma análise desse porte seria verificar a existência de
relação entre a implantação desse novo modelo gerencial na gestão do trabalho escolar e
a intensificação da precariedade do trabalho em sistemas públicos de ensino. Nessa
perspectiva, reunimos aqui um conjunto de cinco artigos que se propõem a esse papel.
Uma abordagem acerca dos desafios atuais para a gestão do trabalho escolar deve
tomar como referência o conceito de precarização social do trabalho. Só assim podemos
ter uma visão mais clara das transformações sofridas em diferentes redes de ensino e suas
implicações no trabalho escolar. Outra questão que emerge dessa reflexão é a urgência em
se explicitar os aspectos que caracterizam o trabalho docente realizado nas instituições de
ensino de diferentes redes e como eles materializam a expressão concreta da precariedade
social do trabalho, mesmo se tratando de um tipo de trabalho de caráter intelectual, de
natureza imaterial, que se desenvolve predominantemente em condições formais de
trabalho, distinto de outras formas de trabalho mais vulneráveis existentes na sociedade 2.
Nossa compreensão acerca da precariedade social do trabalho segue na linha analítica
de Antunes (2011), que aponta a intensificação da precariedade social do trabalho como
decorrência de certo processo de estranhamento e/ou de alienação do trabalhador, o qual
promove seu embrutecimento e perda da sua dimensão humana, tanto no segmento
considerado estável do mercado de trabalho, quanto nos segmentos mais vulneráveis –

2 Se bem que, a cada dia mais, novas formas de contratação tem surgido no ambiente escolar que diferem da forma
tradicional de contrato de trabalho por tempo indeterminado, estabelecido pelo ingresso por meio de concurso público
de provas e títulos, configurado como quadro efetivo do serviço público. Trata-se de contratos temporários de trabalho,
estágio, bolsa etc. A legislação tem sido bastante flexibilizada para viabilizar essas formas inusitadas de contrato de
trabalho, de modo a aferir caráter legal a elas, mesmo que os contatados não pertençam ao quadro efetivo de servidores
públicos. Apesar disso, acredita-se, o trabalho escolar ainda é desempenhado majoritariamente por profissionais da
educação pertencentes ao quadro efetivo de servidores públicos, embora esta realidade esteja em constante mudança.

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obviamente, muito mais penalizados por esses efeitos da recomposição do capital. A esse
respeito, Antunes (2011, p. 128) afirma:
[...] se o estranhamento permanece e mesmo se complexifica nas atividades de ponta do ciclo
produtivo, naquela parcela aparentemente mais “estável” e inserida da força de trabalho que
exerce o trabalho intelectual abstrato, o cenário é ainda mais intenso nos estratos precarizados
da força humana de trabalho, que vivenciam as condições mais desprovidas de direitos e em
condições de instabilidade cotidiana, dada pelo trabalho part-time, temporário, precarizado, para
não falar nos crescentes contingentes que vivenciam o desemprego estrutural. Sob a incerteza
e a superfluidade dadas pela condição da precarização ou de risco do desemprego, o
estranhamento pode assumir formas ainda mais intensificadas e mesmo brutalizadas, pautadas
pela perda (quase) completa da dimensão de humanidade [...].

Inúmeras são as mudanças promovidas no trabalho e na produção desde os anos 1970


para atender às demandas de produtividade e competitividade das empresas em um
mercado globalizado. A inserção cada vez mais intensa de ciência e tecnologia na
produção, combinada com a adoção de novos modelos de gestão empresarial, tem
propiciado redução substantiva do trabalho vivo, diminuição dos tempos mortos e maior
flexibilidade nos processos produtivos. Pautadas no paradigma da produção enxuta e nas
apologias do receituário neoliberal mediado pela terceira via, essas mudanças
proporcionam maior produtividade das empresas, ao mesmo tempo em que corrompem
a dinâmica das relações de produção, na medida em que aperfeiçoam os mecanismos de
subsunção real do trabalho ao capital, dando materialidade ao fenômeno que Alves (2000)
denomina de “captura da subjetividade operária”.
Em sínteses, esse fenômeno consiste na capacidade que as empresas adquirirem para
incorporar os conhecimentos, a capacidade criativa e a capacidade volitiva dos
trabalhadores ao processo de valorização do capital, a partir da adoção de novos modelos
de gestão do trabalho pautados no paradigma da produção enxuta. A captura da
subjetividade operária poderia ser explicada como uma forma contemporânea do
trabalhador “vestir a camisa” da empresa sem, contudo, ter da empresa qualquer
contrapartida de proteção social, bastando-lhe apenas prêmios e vantagens efêmeras, de
caráter individualizado, como recompensa ao seu êxito na competição entre seus pares.
Isto explica o potencial das empresas em obter o consentimento ativo de seus empregados
na busca incansável do aumento de produtividade e de qualidade dos produtos e serviços
em um ambiente altamente competitivo, fazendo com que os trabalhadores incorporem
valores empresariais para dar direção à própria vida pessoal, perdendo inclusive a noção
de limite entre o tempo do trabalho e o tempo da vida particular, entre trabalho e ócio.
Nesse caso, muitas vezes a empresa assume o papel de família.
Embora esse renovado regime de acumulação de capital comporte inúmeras
inovações beneficiadas pelo avanço da informática e da microeletrônica, ele também
conserva vários elementos típicos do moribundo regime de acumulação de capital adotado

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no período pós-guerra. Exemplo disso são as evidências de que, mesmo em um contexto


de mudanças tecnológicas no trabalho e na gestão da produção, as estratégias de extração
de mais-valia absoluta se intensificaram, bem como, a complexificação da divisão social do
trabalho, de modo que o regime de acumulação na atualidade comporta impressionante
flexibilidade para a convivência de formas “arcaicas” de organização produtiva com
formas absolutamente inovadoras em um mesmo ramo produtivo. Empresas que se
destacam no mercado como aquelas de alta tecnologia de produção, como as montadoras
automobilísticas, por exemplo, por meio da terceirização, comporta em sua linha de
produção a materialidade de diversas formas de trabalho – inclusive trabalho escravo em
alguns casos –, se observarmos a fabricação de cada item particular que compõe seu
produto final.
Como dimensão estrutural do modelo de desenvolvimento hegemônico, esse regime
flexível de acumulação de capital exige um modo de regulação social a ele coerente, de
modo a conferir-lhe institucionalidade. Isto significa um Estado mais racional na gestão do
fundo público, de modo a desonerá-lo gradativamente de gastos com políticas sociais,
garantindo-lhe maior potencial para estabilizar a moeda, controlar a inflação e atender
demandas imediatas das grandes empresas. Para isto, é resgatada de modo mais agressivo
a cultura do individualismo, da competitividade e do mérito individual como fator de
desenvolvimento social e econômico. O fomento ao empreendedorismo e a apologia ao
desenvolvimento sustentável são acionados como ideologias capazes de dar validade ao
argumento da lógica do mercado como elemento suficiente para a regulação da sociedade.
Nesse contexto, o Estado combina ações de uso do fundo público para a garantia da
estabilidade das grandes empresas, controle da balança cambial e estabilização da
inflação, com o fomento a iniciativas de arranjos produtivos locais capazes de gerar
emprego e renda sem ônus público – fomento à geração de capital social. Para os
segmentos mais vulneráveis que se encontram em risco social, em lugar de políticas de
pleno emprego e de assistência social consistentes, o Estado dispensa programas sociais
compensatórios que, a pretexto de garantir-lhes empregabilidade, assumem a função de
ofuscar a percepção dos trabalhadores da causa real do desemprego estrutural e da
condição de vida precária a que são submetidos. O protagonismo social, a participação
cidadã e solidária e a concertação social são ideias acionadas para promover maior
participação da sociedade civil nas decisões estatais, sem que isto implique maior controle
social sobre tais decisões, mas simplesmente garanta maior consenso em torno das
diretrizes do modelo de desenvolvimento hegemônico legitimadas pelo Estado. Nesse
aspecto, o Estado renova sua pedagogia política para educar a sociedade civil para o
consenso, conformando-a ética e moralmente ao conjunto de mudanças em curso. Assim,
sob condições renovadas, o Estado media o conflito entre as classes sociais, combinando
consenso e coerção, embora nessas condições prevaleça seu potencial persuasivo.

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Diante do processo de reestruturação produtiva em curso, combinado com a


renovação dos mecanismos de mediação do conflito de classes por parte do Estado, o
empresariado brasileiro passou a empreender esforços para ajustar a formação para o
trabalho no Brasil3, com vistas à formação do trabalhador de novo tipo, mais adaptado às
demandas do mercado. A preocupação é redimensionar o sistema educacional brasileiro
para atender de modo mais imediato às demandas de produtividade e competitividade das
empresas instaladas no país. Mas, além disso, há também a necessidade de ajustar o
ambiente escolar, seus currículos, sua estrutura organizacional e seus profissionais aos
códigos atuais de conformação ética e moral da sociedade civil, mais coerentes com a
reconfiguração dos mecanismos de mediação do conflito de classes em curso. Isto implica
promover ampla reforma na Educação Básica, na Educação Superior e na Educação
Profissional brasileira, diante do surgimento de novas demandas de qualificação tanto
para o trabalho simples quanto para o trabalho complexo.
A reforma educativa promovida para atender às novas demandas de
formação/qualificação do trabalhador brasileiro ganha contornos mais nítidos a partir dos
anos 1990, especialmente no decurso do governo de Fernando Henrique Cardoso. Trata-
se de um conjunto de mudanças no planejamento e gestão educacional e nos processos
pedagógicos que se estendeu desde esse governo, passando pelo governo Lula da Silva,
tendo continuidade no governo Dilma Rousseff. Este processo atinge de modo
contundente o trabalho educativo realizado por instituições de ensino da Educação Básica
e da Educação Profissional. Percebe-se certo esforço do empresariado e do Estado,
mediado por inúmeros intelectuais orgânicos seus, para conferir ao trabalho pedagógico
das diversas redes de ensino estaduais e municipais, bem como da Rede Federal de
Educação Profissional, Científica e Tecnológica, um caráter mais “interessado”, mais
preocupada em atender de forma mais imediata às demandas de produtividade e
competitividade das empresas.
Assim, a concepção da relação entre ciência e vida, entre trabalho e educação, entre
empresa e escola que passa a predominar na gestão do trabalho escolar ganha um caráter
mais pragmático, mais de acordo com a lógica mercantil, mais coerente com os princípios
neoliberais de competitividade como fator de qualidade, conforme as indicações de
Friedman (1985) e de Mello (2005), dentre outros. Obviamente, essas ideias, na medida
em que passam a dar direção à vida cotidiana das escolas, reforçadas por campanhas
ideológicas e programas de qualificação docente, provocam certo reordenamento dos

3Talvez seja pertinente demarcar que, o que entendemos por “formação para o trabalho” seja a formação geral básica,
que no Brasil compreende a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio somada a formação
profissional dos mais variados níveis e modalidades. Trata-se, portanto, de uma concepção ampliada da formação para
o trabalho que ultrapassa a visão simplista de que a formação para o trabalho se restringe à Educação Profissional. A
propósito, nem mesmo o empresariado, tampouco o Estado partilha dessa visão restrita de formação para o trabalho.
Só mesmo os mais desavisados insistem em apreender a formação para o trabalho apenas como Educação Profissional.

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princípios éticos e morais que norteiam o trabalho escolar, dando novos significados às
relações pedagógicas e políticas ocorridas no cotidiano das escolas, de modo a instituir
certa mudança na cultura da escola com o intuito de conservar, em condições renovadas,
o potencial da escola como instituição privilegiada de mediação do conflito de classes e de
propagação do consenso em torno da concepção de mundo burguesa. Assim, em um
contexto de reestruturação produtiva e de reforma do Estado, a gestão do trabalho escolar
é reconfigurada de modo a garantir, nas condições objetivas e subjetivas da conjuntura
atual, a manutenção de seu papel como aparelho privado de hegemonia burguesa.
Nesse contexto, muitos profissionais da educação apresentam relativa conformação às
novas condições de trabalho emanadas dessas transformações, o que configura a
ocorrência no cotidiano das escolas daquilo que Alves chama de “captura da subjetividade
operária” (ALVES, 2000), ao se referir a essas mudanças no ambiente fabril. Não se
percebem ações organizadas de resistência às mudanças ocorridas na gestão do trabalho
escolar. As poucas manifestações de resistência perceptíveis partem dos sindicatos. Por
outro lado, é possível que existam outras manifestações de resistência não tão
perceptíveis, mas, justamente pela dinâmica instituída pelas reformas gerenciais do
Estado e da gestão do trabalho escolar, essas manifestações normalmente se deem de
forma fragmentada, atomizada, sem articulação coletiva, distanciadas do movimento
sindical. Entretanto, sejam essas resistências perceptíveis ou não, frequentemente, elas se
expressam de modo desconexo, sem qualquer vinculação ao estágio atual do
desenvolvimento do capital. O efeito mais perverso deste fenômeno é a intensificação da
precariedade social do trabalho desenvolvido pelos profissionais que atuam nessas
escolas.
À propósito, a precarização do trabalho muitas vezes é explicada a partir de sua
materialidade em forma de terceirização, de trabalho informal, de trabalho temporário
(HIRATA, 2011); ou em forma de atividades produtivas desenvolvidas em condições
insalubres e/ou degradantes (FERNANDES, 2011; LEMOS, 2011); ou mesmo em forma de
desregulamentação de direitos trabalhistas e de flexibilização das relações de produção
(KESSELMAN, 2010; CARELLI, 2011; THEBAUD-MONY, 2011). Outras vezes, a
precarização do trabalho é explicada a partir de fenômenos de ordem social, tais como:
redução de empregos (POSCHMAN, 2001; 2008), instabilidade laboral (MATTOS;
BIANCHETTI, 2011), vulnerabilidade social de massa (GUIMARÃES, 2011). Em busca de
uma tipologia da precarização do trabalho, Druck (2011) indica seis categorias possíveis
para classificar estas formas de materialização da precariedade do trabalho: 1)
vulnerabilidade das formas de inserção e desigualdades sociais; 2) intensificação do
trabalho e terceirização; 3) insegurança e saúde no trabalho; 4) perda das identidades
individual e coletiva; 5) fragilização da organização dos trabalhadores; 6) a condenação e
o descarte do Direito do Trabalho (DRUCK, 2011). Algumas vezes, estas características

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ocorrem combinadas, de modo que uma mesma realidade pode se enquadrar em mais de
uma dessas categorias indicadas por Druck; outas vezes elas ocorrem isoladamente. Isto
tem levado alguns autores a considerarem a ideia de que a precarização do trabalho não
está circunscrita ao universo do trabalho e da produção, mas atinge outras dimensões da
vida social, o que os leva à indicação da ideia de precarização social do trabalho:
Se comumente a noção de trabalho precário se reporta ao trabalho desqualificado e inseguro,
a noção de precarização aqui adotada remete a um processo social de institucionalização da
instabilidade. O conceito coloca em perspectiva um duplo processo: um de precarização
econômica que resulta da flexibilização salarial e das reestruturações produtivas, outro da
institucionalização da precariedade, procedente das transformações legislativas referentes ao
trabalho e à proteção social. Nosso argumento é que o conceito de precarização social permite
ainda definir a institucionalização da instabilidade e configurar a sua justificação como se fosse
um valor moral aceitável, a ser dirigido individualmente por cada ator na autogestão das
carreiras e de sua inserção social. O processo de precarização social alça o trabalho a uma
dimensão de valor moral, o que nos permite inserir as questões relativas ao trabalho em uma
teoria social de maior alcance (ROSENFIELD, 2010, p. 14-15).

Entretanto, independente da forma como a precarização do trabalho se apresenta, esta


tem sido explicada pela literatura da área, de modo geral, como consequência do processo
de reestruturação produtiva verificado no mundo capitalista a partir dos anos 1970, a qual
se tornou mais evidente ao final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Esta percepção
poderia ser assim sintetizada:
As transformações do trabalho inscritas no marco da globalização neoliberal e da reestruturação
produtiva nas últimas décadas podem ser sintetizadas nos processos de flexibilização,
desregulamentação e precarização social. Diversos estudos e pesquisas têm evidenciado a
consolidação da flexiprecarização e o seu caráter multidimensional – compreendendo as
dimensões econômica, política, social, cultural – que se realiza nos planos macro, microssocial
e do indivíduo (intra e interpsíquico), assumindo configurações específicas de etnia, gênero,
geracionais e de novas inter-relações entre família e indivíduo, redefinindo as relações sociais e
o tecido social. Trata-se de um processo mundial, com traços e características que perpassam
invariavelmente as diversas configurações do mundo do trabalho, apresentando, entretanto,
nuances e especificidades nacionais, regionais e setoriais (DRUCK; FRANCO, 2011, p. 09).

Esta compreensão predominante acaba por atribuir à precarização do trabalho um


caráter conjuntural, como se ela fosse mera consequência da recomposição burguesa
frente à crise de acumulação de capital desencadeada nas últimas décadas 4. Não obstante,
não se deve desconsiderar que a precarização do trabalho é um fenômeno imanente ao
processo de desenvolvimento do modo capitalista de produção e reprodução social da vida
material.
Assim, em cada estágio do desenvolvimento do sistema capitalista, a precarização do
trabalho se expressou de modo específico, de acordo com o patamar de desenvolvimento

4 Obviamente, críticas a essa visão fenomênica existem, a exemplo disso poderíamos citar Franco (2011); Antunes
(2011); Harvey (1992).

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das forças produtivas e do nível de organização coletiva e luta dos trabalhadores. O esforço
permanente do empresariado para ampliar suas taxas de lucratividade sempre implicou a
inserção cada vez mais intensa de ciência e tecnologia nos processos de trabalho e de
produção. O desenvolvimento científico e tecnológico da sociedade burguesa sempre
esteve diretamente ligado ao aumento da produtividade e da lucratividade das empresas,
ao mesmo tempo em que também esteve diretamente ligado à intensificação da
exploração da classe trabalhadora, de modo a promover sistematicamente a precarização
do trabalho.
Na realidade, a ordem capitalista de produção e reprodução social da vida material
sempre teve por característica a potencialidade para tornar precária a vida dos
trabalhadores. Justamente por isto, nem sempre a precarização do trabalho se dá pela
ausência de contrato de trabalho ou pela desregulamentação deste contrato. Existem
situações em que a precarização do trabalho se dá inclusive em condições formais de
trabalho.
Nesse aspecto, a contribuição de Sennett (2004) é fundamental para a compreensão
dos efeitos desorientadores do estágio atual do capitalismo. O autor faz uma análise
sociológica das transformações mais recentes do mundo do trabalho, a partir de
entrevistas com executivos demitidos da IBM em Nova York, funcionários de uma padaria
ultramoderna em Boston e outros trabalhadores. Sennett argumenta que o capitalismo
vive um novo momento caracterizado por uma natureza flexível, que ataca as formas
rígidas da burocracia, as consequências da rotina exacerbada e os sentidos e significados
do trabalho, o que provoca uma situação de ansiedade nas pessoas, que não sabem os
riscos que estão correndo e a que lugar irão chegar, colocando em xeque o próprio senso
de caráter pessoal.
A partir dessas considerações, Sennett (2004) aborda aspectos da subjetividade do
trabalhador no contexto da rigidez do fordismo, em contraposição à formação de uma
nova subjetividade no contexto atual. Assim, Senett nos leva à percepção de quão precário
é o mundo do trabalho em que prevalece a ideologia do “admirável mundo novo da
reengenharia das corporações”, com riscos constantes, onde predomina o trabalho
flexível, polivalente, desenvolvido em rede, a partir de equipes que trabalham juntas e se
autocontrolam durante um curto espaço de tempo, onde impera o individualismo, a gana
empreendedora, onde o que importa é cada um ser capaz de reinventar-se a toda hora.
Esta seria uma forma contemporânea da precarização do trabalho que tem sido muitas
vezes desconsiderada. Na maioria das vezes, a precarização do trabalho é explicada apenas
pela “desordem do trabalho” conforme foi caracterizada por Mattoso (1995).
Quando se trata do trabalho docente, muitas vezes se pensa precário apenas aquele
realizado em condições adversas, o que ocorre inclusive em diversas unidades escolares

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em diferentes Redes de ensino. Entretanto, deve-se considerar que, algumas vezes, na


atualidade, a precarização do trabalho se dá até mesmo em condições de contrato estável
de trabalho, com disponibilidade de condições aceitáveis para sua realização, mas que se
torna relativamente precário devido ao grau de captura da subjetividade operária pela
lógica renovada da racionalidade/irracionalidade da produção capitalista.
É nesse aspecto que as reformas gerenciais do Estado e seu impacto na gestão do
trabalho e da produção escolar, na medida em que traduzem para a Educação Básica os
princípios norteadores da produção enxuta, em busca do aumento de produtividade e de
competitividade das empresas no mercado globalizado, também promovem novas
condições de captura da subjetividade docente que configuram a precarização do trabalho
pedagógico nestas instituições de ensino. Isto é o que nos conduz, inevitavelmente, ao que
Senett (2004) chamou de corrosão do caráter, quando observamos as mudanças em curso
na gestão do trabalho escolar.
É nesse contexto em que se inserem os cinco artigos que compõem esse dossiê. O
primeiro deles apresenta uma reflexão sobre as influências dos modelos de gerenciamento
empresarial na gestão do trabalho escolar. Neste artigo, Elisângela Floro se baseia no
conceito de “complexo combinado de gerencialismo fabril” para designar como as empresas
combinam elementos fordistas e toyotista para atender novas demandas de produtividade
e competitividade num mundo globalizado. Com base nesses movimentos de
recomposição burguesa, a autora busca explicitar como a gestão do trabalho escolar sofre
uma contrarreforma, de modo que a crítica ao modelo de gestão escolar baseado na
centralização e hierarquização das decisões acabou sendo sufocado pelo surgimento de
um complexo combinado de gerencialismo educacional, dando novos significados à
participação democrática, restringindo-a ao mero cumprimento de metas estabelecidas
heteronomamente.
No segundo artigo do dossiê, Jussara M. Macedo, analisa a garantia do direito à
educação no contexto do desenvolvimento das políticas públicas educacionais no Brasil a
partir dos anos 1990, em plena estruturação da contrarreforma burguesa no país.
Tomando como referência uma análise bibliográfica sobre o tema, a autora aponta como
o processo de contrarreforma do Estado brasileiro, a partir de 1995, contribuiu para a
limitação do direito à educação pública, gratuita e de qualidade. Para Jussara M. Macedo,
embora a Constituição de 1988 tenha reconhecido esse direito, o avanço do modelo
gerencialista de gestão do trabalho escolar deixa uma dívida referente ao oferecimento da
educação básica que se configura em mais um dos componentes da dívida social para com
a classe trabalhadora.
No terceiro artigo do dossiê, Regis C. A. Costa argumenta que, desde meados de 1990,
as reformas educacionais determinam inflexões na gestão do trabalho docente. A partir

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deste argumento, o autor busca refletir formas como essas reformas se materializam em
seu próprio cotidiano de trabalho. Nessa perspectiva, Regis C. A. Costa analisa a
implantação do Programa Mais Educação pela Secretaria Municipal de Educação do
Município de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. O autor aponta, dentre
as características do Programa, a ausência de ações capazes de articular iniciativas da
gestão escolar local com as ações de gestão educacional estadual e federal. Para ele, as
soluções administrativas propostas pelo discurso que fundamenta a política pública
educacional não se materializaram em Duque de Caxias. Em vez disso, o autor observa a
manutenção de práticas improvisadas, que ampliam a precarização do trabalho docente.
No quarto artigo, Daniela Patti do Amaral apresenta um panorama sobre os caminhos
de consolidação da gestão democrática em escolas públicas no Brasil e em Portugal. Sua
análise se baseia em fontes documentais e toma como ponto de partida os argumentos de
que há forte associação teórica entre gestão democrática e eleição, colegialidade e
participação na tomada de decisão na gestão do trabalho escolar. Nesta análise
comparativa, a autora identifica que o exercício de poder na gestão do trabalho escolar
expressa diferentes compreensões acerca do trabalho do diretor escolar, das relações
políticas no cotidiano das escolas e do tipo de sociedade em que a escola se insere. Embora
Amaral reconheça que, do ponto de vista democrático, a eleição de diretores é a opção
mais coerente para as escolas públicas, ela pondera que só a eleição de diretores escolares
não garante a construção e consolidação de uma gestão democrática.
No quinto e último artigo do dossiê, Celia R. Otranto e Liz D. C. Paiva apresentam parte
de suas pesquisas sobre expansão da Educação Superior no período de 2009 a 2014. Neste
artigo, as autoras tomam como foco o financiamento e diversificação das instituições de
ensino superior no país. Nesta perspectiva, destacam os Institutos Federais de Educação,
Ciência e Tecnologia como recorte do processo de expansão da Educação Superior do país
no contexto da mercantilização da educação, em decorrência da hegemonia do receituário
neoliberal e de sua reforma do Estado. A partir desse recorte, as autoras analisam o
trabalho educativo desses Institutos Federais na formação docente. A análise de Celia R.
Otranto e Liz D. C. Paiva revela que a mercantilização da educação pode modificar
substantivamente o papel dos docentes e interferir nas ações governamentais frente às
demandas dessa categoria profissional.
Com metodologias diversas e com referenciais distintos, todos os artigos do dossiê
abordam aspectos que, de algum modo, são condicionados pela conjuntura explicitada
nessa apresentação. Todos eles reconhecem a evidência de que vivenciamos ampla
reforma do Estado, a qual combina reconfiguração de mecanismos de mediação do conflito
de classes com implantação de renovado modelo gerencial de administração pública,
pautado na competitividade e na racionalização de recursos materiais e humanos como
critério de qualidade para o serviço público. Também há, em todos os artigos, direta ou

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indiretamente, o reconhecimento de que a administração educacional não foge à regra


desta reforma gerencial. Afinal, as mudanças substantivas que vêm sendo promovidas
pelos governos para garantir a qualidade e a produtividade do trabalho escolar, tendo no
novo modelo gerencial sua referência para implementação de estratégias de controle de
resultados e de racionalização de recursos humanos e materiais, são responsáveis por uma
nova realidade imposta à gestão do trabalho e da produção escolar. Neste aspecto, este
dossiê cumpre papel importante na composição de um quadro teórico capaz de
fundamentar análises acerca do impacto dessas mudanças na gestão do trabalho e da
produção escolar.

REFERÊNCIAS
ALVES, Giovanni. O Novo (e precário) Mundo do Trabalho: reestruturação produtiva e
crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000. 365 p.
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