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Luís Otavio Pereira Nicodemos - Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ)
Resumo: O campo político no Brasil vem passando por momentos de turbulência, principalmente após
o ano de 2013. Diante disso, os fenômenos de agressividade e intolerância política vêm ganhando no-
toriedade e, no intuito de analisar tais questões, nos utilizaremos da psicanálise freudiana e de alguns
conceitos da metapsicologia, como narcisismo, bem como do Lacan do imaginário, em textos como O
Estádio do Espelho como formador da função do Eu (1949/1998), para tentar lançar luz sobre algumas
dessas questões, como a contribuição dessa imaginarização dos fenômenos de intolerância política no
país, nos últimos anos, em especial até o ano de 2018.
A
psicanálise é tradicional- Vladimir Safatle, em Pensamento Binário
mente pensada como um (2015) e Por uma crítica da economia li-
campo de investigação e de bidinal (2008).
tratamento psíquico que pri-
Com esse referencial de pensa-
vilegia a clínica. Entretanto, desde Freud,
mento, propomos discutir a agressivi-
nos seus mais de 30 anos de prática e de-
dade pautada na intolerância política que
senvolvimento teórico, outras áreas de
se desenha no Brasil nos últimos anos,
aplicações da psicanálise já foram se de-
principalmente a partir de 2013, com as
senhando. Podemos citar, por exemplo,
grandes manifestações nas ruas e suas
os ditos textos sociológicos de Freud,
consequências no cenário político.
como Psicologia das Massas e Análise do
De acordo com Secco (2013), essas
Ego (1922/2011) ou o Mal-Estar na Civili-
zação (1930/2010), onde o autor traba- manifestações não eram marcadas ideo-
logicamente, mas tinham em comum o
lha as relações sociais e seus paradigmas,
bem como as relações dos processos psí- fato de serem contra a política tradicio-
quicos do indivíduo com o campo social nal de modo geral, com 84% das pessoas
se declarando sem partido. Um indicativo
em que está inserido.
Tal tradição de pensamento da psica- plausível da crise de legitimidade que a
política enfrentava e que, possivelmente,
nálise dentro do social se expandiu e se
encontra cada vez mais articulada com culminou nos resultados dos dois últimos
lhos do teórico esloveno Slavoj Zizek, Vi- As eleições que se seguiram em 2014
olência (2007/2014) e Pensar o Atentado já colocaram em evidência situações re-
ao Charlie Hebdo (2015) e, no Brasil, os lacionadas a esse tipo de agressividade
trabalhos feitos por pesquisadores como com motivações políticas que até então
Christian Dunker, em Mal-Estar, Sofri- não se mostrava com tanta evidência.
mento e Sintoma (2015), ou como Uma notícia veiculada em 2014 pelo site
1 odio-em-redes-sociais-disparam-no-periodo-eleito-
Uol (2014). Crimes de ódio em redes sociais dispa-
ral.shtml>. Data de acesso: 13 ago.2017.
ram durante período eleitoral. <http://www1.fo-
lha.uol.com.br/poder/2014/10/1530211-crimes-de-
lado. O autor então foi em casa, pegou a e 2017, segundo levantamento do Grupo
faca, voltou e fez o que fez" 2. Gay da Bahia (GGB), em reportagem do
jornal O Globo em 2018. De acordo com
A própria facada sofrida pelo então
a notícia, “a cada 19 horas um LGBT é as-
candidato à presidência Jair Bolsonaro,
sassinado ou se suicida vítima da ‘LGBT-
amplamente noticiada pela mídia no pe-
fobia’, o que faz do Brasil o campeão
ríodo, pode ser citada como um dos
mundial desse tipo de crime. ” O número
exemplos do clima político intenso que
se torna ainda mais impressionante ao se
atravessa o país nesses últimos anos, em
levar em conta outro trecho da notícia:
conjunto com outros dados.
“Segundo agências internacionais de di-
As posições que o Brasil ocupa no reitos humanos, matam-se mais homos-
ranking de crimes contra minorias nos úl-
sexuais no Brasil do que nos 13 países do
timos anos é outra informação relevante Oriente e África onde há pena de morte
nesse contexto. Em 2013, nosso país foi
contra os LGBTs” 4
responsável por 44% das mortes LGBT no
A intolerância religiosa se faz pre-
mundo, além de ocupar o primeiro lugar
sente também dentro desse cenário. De
no ranking mundial de assassinatos de
acordo com notícia do Correio Brasili-
transexuais no mesmo período.3
ense5, o Brasil apresenta pelo menos 200
Tal tendência se agravou nos anos se-
casos desse tipo por semestre, sendo as
guintes, sendo registrado um aumento religiões de matriz africana as que mais
de 30% nos assassinatos LGBT entre 2016 sofrem esse tipo de violência.
Tal constituição do Eu pode ser re- Ideal e o Ideal do Eu, como proposto por
montada ao nosso primeiro momento de Freud no texto Introdução ao Narcisismo
relação com nossa imagem, no narci- de 1914. De modo sucinto, o Eu Ideal se-
sismo primário, quando o indivíduo passa ria a imagem da criança que ainda des-
a ter uma organização das suas pulsões, fruta de plena satisfação libidinal e ocupa
passagem pelo narcisismo, a criança se objeto dos outros que a circundam. Po-
torna capaz de identificar sua própria rém, a passagem pelo processo do narci-
Se agora o Eu tem uma imagem de si, mada num segundo momento do pro-
de substituição das nossas referências, sua relação com o contexto político naci-
como os pais ou outras figuras que admi- onal.
ramos e tentamos ser iguais, no decorrer
Ainda sobre o processo de constitui-
da vida. No entanto, aquilo que tomamos
ção do Eu, Jaques Lacan realiza, em sua
como nosso Ideal do Eu é, portanto, um
releitura da obra freudiana, um retorno a
lugar inalcançável e mutável em nossa
esse conceito do narcisismo e faz alguns
constituição e traz outras implicações.
apontamentos sobre a nossa constitui-
Dentre tais implicações, podemos co- ção imaginária, em referência ao que fi-
mentar em que medida, no relaciona- cou marcado no ensino de Lacan como
mento com os outros, o Eu é atravessado registro Imaginário. Esse registro corres-
pelas escolhas narcísicas, ora sendo influ- ponde a um dos três aspectos da reali-
enciado por essa tentativa de retorno a dade humana – os outros dois registros
essa imagem perfeita que ocupava na são o Simbólico e o Real – e diz respeito
fantasia e expectativa dos pais e da soci- à nossa relação com a construção da
edade, ora influenciado por essa instân- nossa imagem e a constituição do Eu,
cia que o direciona a ser como com a identificação e a nossa relação
determinada pessoa, ideia ou valor que com a imagem dos outros, com nossos
toma como referencial. Desse modo, po- afetos de amor e ódio e também com
demos destacar que, nas formações gru- tudo que tem uma representação imagé-
colocam a mesma determinada figura ou com aquilo que não reconhecemos como
ideia nesse lugar de Ideal do Eu. Há ainda semelhantes e, ainda, o território da ên-
lei em nosso processo de subjetivação, criança de sua própria imagem. Tais fases
do inconsciente estruturado como lin- se dariam por um reconhecimento de sua
guagem, visto que Lacan, baseado na lin- imagem do reflexo no espelho ou na ima-
guística de Ferdinand de Saussure, gem de um outro semelhante.
introduz na psicanálise o conceito de sig- Num primeiro momento, a criança
nificante e sua cadeia. O Simbólico é, não tem a representação de uma ima-
por excelência, a intermediação dos con- gem daquilo que a representa, enxer-
elas, enquanto o Real é tudo aquilo que pelho, ela não reconhece o reflexo como
que sobra na realidade, mas que ainda apresenta, mas sim como a imagem de
assim ajuda a dar forma a todo o con- um outro que é real. Daí vem o fenômeno
junto dos três registros, revelando as re- das crianças pequenas que, quando se
aparentam carecer de sentido, mas ainda espelho para verificar se tem alguém ali.
possível de ser nomeável na nossa reali- vismo na relação com o espelho, quando
do Eu, como Lacan indicou no texto Está- ocorre uma simbolização daquilo que ela
dio do Espelho Como Formador da Fun- é. Sua imagem unificada, então, se sus-
Assim como no ciclo eleitoral ante- mais de debate, mas sim de embate en-
rior, de 2014, as redes sociais efervesce- tre esses grupos opostos.
ram com o debate e o grau de mitificação
A política se torna, então, dominada
que os candidatos tomaram em 2018.
pela eterna disputa entre dois lados que
Um rápido exame nas redes sociais dos
se atacam e buscam subjugar o outro nos
candidatos já tornava possível ver a gran-
territórios de conflito, seja nas ruas, seja
deza e a força de suas bases de apoio,
na internet. A possibilidade de debate e
bem como a maneira como essas figuras
comprometimento entre as partes se
eram representadas: enquanto um apre-
mostra inerte e o foco se torna a vitória
sentava fotos de caráter messiânico e pa-
de um e a derrota do outro. As tentativas
ternas em relação ao povo, o outro era
de entendimento e diálogo com aquele
chamado pelos seus apoiadores como
que se mostra diferente é substituída
“Bolsomito”, num chiste criado pelos
pelo desejo da sua destruição. O próprio
seus apoiadores na junção do sobrenome
fato de se pensar a política com dois la-
do candidato e a palavra “mito”.
dos opostos já marca a dimensão imagi-
A agressividade que esses grupos ma- nária em que são organizados esses
nifestavam entre si também era evi- conflitos, em referência à própria duali-
dente. Não só envoltos numa figura dade da nossa relação com o outro,
política específica, mas também nas dife- quando passamos pelo processo do nar-
rentes opiniões que, devido a esse atra- cisismo.
vessamento político circulante na
Se, por um lado, os processos psíqui-
sociedade, esses grupos são identificados
cos fazem o indivíduo ser e agir de certa
como sendo do espectro da “esquerda”
maneira, por outro, a sociedade favorece
ou da “direita”. Inclusão, igualdade de di-
determinadas formas de ação e de pen-
reitos, políticas sociais, como o Bolsa Fa-
samento. Então, quais seriam as
mília6, e nível de controle do Estado na
economia são exemplos do campo não
temos uma figura que se considera trans- que gira primordialmente em torno de
cendendo as limitações da carne.7 quem se vê como semelhante.
violência entre os grupos, parece vir, en- laços, as consequências da pouca media-
tão, como uma representação das con- ção por meio da palavra, como forma de
tradições que não foram elaboradas e intermediar e sustentar as diferenças,
significadas propriamente pelos seus abre caminho para que a identificação
membros, possivelmente devido à inten- seja a principal amarração entre indiví-
sidade das formas de relações imaginá- duos e torne possível a deflagração de
rias centradas na dualidade do tantos fenômenos de intolerância e
semelhante/diferente que temos atual- agressividade no Brasil de hoje. Mais do
mente. que indivíduos em contato com a alteri-
dade, temos laços que se estruturam em
Desse modo, podemos concluir que a
torno do semelhante como igual e rival, e
formação do Eu – e sua realidade psí-
que são agravados pelas consequências
quica imaginária, de acordo com a meta-
da individualização advinda da subjetivi-
psicologia psicanalítica, associada a essa
dade neoliberal, tendo como destaque a
lógica social neoliberal focada na imagem
imaginarização do campo político.
e na hipertrofia do eu – conduz a um de-
sinvestimento na dimensão da palavra
como principal mediadora de laços. No
que se refere à estruturação desses
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