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CARLOS BORROMEU

ANGELO BIANCOTTl
Título do original italiano
SAN CARLO BORROMEO

BORLA Editore, Torino


Via Andorno, 31

1965

Todos os direitos reservado■ à


Editôra VOZES Ltda.
Petrópolis, RJ.

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CARLOS BORROMEU

A RENOVACAO VEIO DE MILAO

Texto
ANGELO BIANCOTTI

Tradução
REDOVINO RIZZARDO

1
EDITORA VOZES LIMITADA
PETRóPOLIS, RJ
1965

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I MPRIMATUR
POR COMISSÃO ESPECIAL DO EXMO. REVMO. SR.
DOM MANUEL PEDRO DA CUNHA CINTRA,
BISPO DE PETRôPOLIS.
FREI WALTER WARNKE, O.F.M.
PETRôPOLIS, 7-12-1964.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS


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*
prêsa colocam tôda a fôr­
ça da própria convicção,
tôda a energia da própria
vontade, tôda a integridade
de seu caráter, tudo o que
são. E triunfam!
S. Carlos! Exemplo mara-
vilhoso de impávida cons­
tância, de generosa paciên­
cia, de ardente caridade, de
zêlo iluminado, incansável,
magnânimo, de tôdas aque­
las virtudes que transfor­
mam o homem num verda­
deiro apóstolo de Cristo.
Êle tem sêde de almas. Não
deseja senão almas, não pe­
de senão almas, não quer
senão almas. Da mihi ani­
mas, coetera tolle !
S. Carlos! E' um nome
êste que o missionário ca­
tólico não deveria nunca ou­
vir sem deixar-se inflamar
pelo mais nobre, mais vi­
vo entusiasmo, sem sentir­
se profundamente comovido!
Caríssimos filhos, espe­
lhai-vos nêle, recomendai­
vos a êle, colocai nêle vossa
confiança, e estai seguros
de sua proteção! »
(De uma carta do Santo
Bi�po a seus missionários
esparsos pelo mundo).

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*
CARLOS BORROMEU
E O SERVO DE DEUS
JOÃO B. SCALABRINI

«. E' chegado o momen •


to de confiar definitivamen­
te a nossa Congregação à
proteção de um Santo, cujo
nome, conforme vosso de­
sejo já tantas vêzes expres­
so, sirva para distingui-la,
e seja como que vosso lá­
baro e brasão.
Depois de ter rezado e in­
vocado as luzes do Espírito
Santo, apresentou-se-me à
mente, radiosa e suave co­
mo jamais acontecera antes,
a figura do grande S. Car­
los', Pareceu-me de ouvir
uma voz que me repetia:
«Eis o patrono, o amparo,
o modêlo de teus filhos!»
E naquele dia deliberei co­
locar a vós, vosso futuro e
tôdas as vossas coisas em
suas mãos.
Chamar-vos-eis, de ho­
je em diante, portanto, os
Missionários de S. Carlos!
S. Carlos! Êle era, como
já foi dito muitas vêzes,
um daqueles homens de
ação que não hesitam, não
se dividem, não recuam ja­
mais, que. em qualquer em-

*
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A Virgem Imaculada,
pelo carinho com que dirige nossa vida,
e
a ti, meu irmão,
quP, trabalhas pela renovação do mundo.

O Tradutor

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APRESENTANDO ...

Leitor, "A Renovação Veio de Milão".


Eis a melhor apresentação que lhe faço dêste livro, que
delineia os traços de uma figura providencial na Igreja de
Cristo: São Carlos Borromeu.
Foi êle preparado por Deus para renovar, de dentro,
não apenas a igreja de Milão, mas, com sua influência, a
Igreja Universal.
Surgiu no cenário da História num momento de tran-
sição para novos rumos.
Também nosso momento histórico é de transição.
Conservaremos ranços acumulados de todo o passado?
Sonharemos com miragens novas de cada presente?
Ou, conduzidos pelo Espírito de Deus, penetraremos no
eterno da mensagem evangélica, a fim de projetá-la em
cada instante do tempo?
Naquela situação histórica, qual foi a atitude do Santo
Arcebispo de Milão, do eminente Cardeal da Igreja, do mar­
cante Padre Conciliar de Trento?
Leigos, seminaristas, sacerdotes, bispos e Cardeais po­
derão ler com proveito esta obra que a Congregação dos
Padres Missionários de São Carlos Borromeu está oferecen­
do ao Brasil.
Hoje, outro Arcebispo de Milão está à frente da Igreja
Universal e da Igreja em Concílio. A Renovação, parece,
continua vindo de Milão.
São Paulo, 15 de agôsto de 1964.

D. ROMEU ALBERTI,

Bispo Titular de Belali.


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PREFACIO
Um rápido olhar sôbre as pagmas da História da Hu­
manidade leva-nos a uma observação bastante interessante.
Perdido no tempo e no espaço, o homem atravessa, quase
ininterruptamente, períodos de crises tremendas. Séculos que
parecem arrastá-lo à ruína total. Épocas de trevas e tem­
pestades. Tempos em que os valores ameaçam inverter-se.
Foi o que aconteceu em 1500. Século da Reforma, do Renas­
cimento, das Descobertas, de Filipe II, e da letargia da lgre­
já. Ondas de um mar revôlto a despedaçarem-se recipro­
camente.
A Igreja, segundo a opinião corrente, chegara a seu
fim. Estava superada. Necessitava-se de outras organiza­
ções e de outros ideais. A humanidade é uma eterna criança
- com todos os defeitos conseqüentes! - conduzida pelP.
mão carinhosa de Deus. Eis a nossa ventura. Temos um
Deus que esquece nossas rebeldias. E que compreende e
ama a nossa condição de criaturas miseráveis.
E assim, em meio da confusão e do desespêro que me•
dmvam no século XVI, Deus enviou um homem. Um ho­
mem para renovar o que necessitava de restauração. Um
homem para aquecer o coração frio e egoísta de tantas
pessoas. Um homem para colocar no devido lugar a Igreja
de Cristo. �sse homem chamou-se Carlos Borromeu.
É-nos quase impossível avaliar dignamente a importân­
cia do Cardeal de Milão para a vida da Igreja. Basta re­
petir que 1500 é têrmo e início de uma nova era. Fim do
relaxamento e da decadência de tantos membros da Fa-­
mília fundada por Cristo. Comêço da moralização dos cos­
tumes, do progresso espiritual e da renovação da Igreja.
O movirp.entq que hoje arrasta as almas generosas - restau­
rar tudo em Cristo - tem em São Carlos um precursor,
um iniciador, ou melhor, um exemplo. Porque, para refor­
mar, é preciso antes reformar-se.
Sua carreira foi simplesmente maravilhosa. Tanto no
mundo como na Igreja. Iniciou-a aos sete anos e acabou-a
aos quarenta e seis. Abade, Clérigo, Cardeal, Secretário de
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Estado da Santa Sé, Sacerdote e Bispo, - os triunfos su­
cederam-se rápidos. Eis, porém, que também para Carlos
aparece Cristo. E Carlos, como Paulo de Tarso, Francisco
de Assis e Inácio de Loyola, respondeu: Sim! Duas etapas
distinguem-lhe a vida. Períodos que se caracterizam pelo
ideal que os moveu: o mundo ou Deus. A carne ou o espírito.
O Carlos Borromeu da segunda fase está todo concre­
tizado em dois conceitos, os ideais por que a sociedade
sempre suspirou: A Renovação e a Caridade. Renovação:
Começou-a reformando a si mesmo. Para depois passar
aos outros. E o conseguiu. Clero e fiéis, todos sentiram sua
benéfica irradiação. Irradiação que está intimamente vin­
culada com o Concílio de Trento. Caridad , e: não saberia
defini-lo melhor do que com as palavras entusiastas dos
admiradores de Jesus: Bene omnia fecit! Carlos esqueceu
e crucificou a si mesmo pela vida e felicidade do rebanho
que Deus lhe confiara. "Uma só alma é diocese bastante
grande para um bispo!" Estas suas palavras deixam ver
qual o zêlo que lhe devorava a alma. Deu a vida pelas ove­
lhas. Lembremos quanto não fêz durante o terrível flagelo
que lhe entristeceu os últimos anos - a peste de 1576. "Vim
para servir e não para ser servido!"
É, por tudo isso, com suma alegria que entrego ao pú­
blico brasileiro a tradução da vida de São Carlos Borromeu.
Apresento-a como um exemplo para a concretização da re­
forma religiosa e pessoal - base das outras reformas. Co­
mo um exemplo de amor em nossa sociedade tão fria, que
confundiu o amor com o egoísmo. Como um exemplo de
constância entre as muitas dificuldades que tentam impe­
<iir a nossa vitória.
Sinto-me também na obrigação de agradecer, profunda
e cordialmente, a quantos colaboraram, de uma forma ou
de outra, para que o trabalho fôsse levado a têrmo. Que
Deus os recompense!
Sirva igualmente êsse modesto trabalho como singela
homenagem à Congregação dos Missionários de São Carlos
e a seu Fundador, o Servo de Deus Dom João Batista
Scalabrini.
São Paulo, 4 de novembro de 1964
Resta de São Carlos Bon-omeu
REDOVINO RIZZARDO.

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PARTE I

O MUNDO
DE CARLOS

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1.

NA FORTALEZA DE ARONA

Um tríplice círculo de muralhas, ornamentadas por do­


ze tôrre..., cingia o castelo que ostentava na parte mais ex­
celsa outra tôrre, maior que as demais. Portas com pontes
levadiças encontravam-se ao redor de todo o recinto; o cor­
po central formava uma pequena cidade com possibilida­
des de transformar-se, para qualquer eventualidade, em
poderosa praça de guerra, podendo resistir a longos sítios
e alimentar tôda a guarnição residente no quartel, aliás
bastante numerosa. Dentro dêsses muros estavam ainda os
depósitos de víveres e de munições, os fornos para o pão,
o paiol da pólvora, três cisternas e uma capelinha dedica­
da a Santo Ambrósio. Era êsse o castelo em que se esta­
belecera, desde 1440, Vitaliano Borromeu, tesoureiro do es­
tado de Milão; fôra investido por Filipe Maria Visconti com
o título de "Conde de Arona", título que podia transmitir
a seus descendentes.
O castelo dominava Arona, bela cidade banhada por
três lagos; por sua posição estratégica, era chamada "sen­
tinela do Verbano", e veio a ser a capital efetiva, senão no­
minal, de um pequeno território que se estendia por diversas
localidades da atual Lombardia. A tanto chegou seu reno­
me, que em 1503 ser,á firmada na praça da Igreja de Santa
Maria - a paróquia de São Carlos Borromeu - a paz de
Arona, entre Luís XII e os Cantões Suíços.
As fortificações não se limitavam, porém, às supramen­
cionadas. Da entrada principal do castelo descia um muro
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maciço, ladeado por poderosos bastiões; no sopé da monta­
nha, dividia-se, e, carinhoso, abraçava a cidade como a de­
fendê-la contra possíveis inimigos. No pôrto, as muralhas
terminavam em duas espaçosas e altas tôrres quadradas;
nelas estavam as bases militares. Fizera-se também uma
estrada subterrânea - a via secreta desde os cais até
a fortaleza.
O castelo - fortaleza de Arona foi destruído por
Napoleão; queria ver-se livre de todos os fortes que lhe
impediam o caminho para a Itália. A mesma sorte tiveram
outras cidades, como Cúneo, Turim e Ivrea. Uma compa­
nhia de mineiros franceses, no dia seguinte ao da batalha
de Marengo, destruiu completamente a cidade, lembrança
de tantas glórias passadas. E entre a colina e o lago, eleva­
ram-se aos céus densas nuvens de fumaça, entrecortadas
pelo fogo das explosões. Assim, tôdas essas fortificações,
que tão bem defenderam Arona desde o século XI, ruíram
para sempre, - fruto do orgulho e da ambição de um
homem.
Os Borromeus, de origem toscana, eram bastante ricos,
proprietários de bens e fazendas em tôda a região central
da Itália. Com o advento dos Médicis, tinham preferido o
exílio a servir ao tirano local. Chegando à Lombardia, de­
moraram-se em Milão, onde conseguiram acumular rique­
zas tais, a ponto de construir um magnífico palácio no
centro da cidade, diante da velha casa paroquial de Santa
Maria de Podone.
Pelo fim do século XIV, Filipe Borromeu era cidadão
digno de consideração em Milão, pois um de seus filhos fôra
chamado como tutor dos três filhos legítimos de João Ga­
leazzo Visconti, primeiro duque da cidade. A linhagem mas­
culina dos Borromeus, porém, desapareceu um século após
sua chegada à capital lombarda. João, último membro da
família, ligou nome e haveres a Vitaliano, filho de Marga­
rida, sua irmã, e espôsa de um nobre residente em Pádua.
Vitaliano aceitou de bom grado o nome dos Borromeus, re­
cebendo as riquezas e o pal-ácio do tio. E como senador
milanês e guarda da fortaleza de Arona, foi obrigado a di­
vidir o tempo entre o suntuoso edifício da cidade e o castelo
medieval. Seus descendentes, durante o século XV, torna­
ram-se parentes das famílias mais aristocráticas do ducado.

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No desenrolar-se da história dramática da Itália, suJeI­
ta à ambição das potências estrangeiras, Gilberto Borromeu
conseguira, em 1530, quase milagrosamente, conservar to­
dos os bens, podendo assim desposar Margarida Médicis,
pertencente a uma família milanesa de médicos e magistra­
dos que nada tinha que ver com a homônima de Florença.
Seu pai, empregado do tesouro, perdera o pôsto em 1515,
quando da terceira ocupação da cidade por parte dos fran­
ceses; e morrera cinco anos após, pobre e ignorado. A fa­
mília decaíra de tal maneira, que um irmão, estudante da
Universidade de Pavia, sentira-se obrigado a esmolar entre
os colegas a fim de poder continuar os estudos.
Entre os vários irmãos, distinguia-se Margarida, não
tanto pela cultura e pelo engenho, quanto pela gentileza
de alma e pela modéstia. "Muito piedosa e tôda entregue
aos afazeres domésticos", no-la descreve o biógrafo mais
antigo e fidedigno, o Cardeal Carlos Bascapé; e não po­
dendo pormenorizar-lhe mais a vida, fala-nos, um tanto
ingênuo e convencional, que atendia à família "depois de
ter assistido muito piamente, como costumava todos os dias,
à santa missa numa igreja vizinha; e, em seguida, permane­
cia sempre em casa, a não ser em certas ocasiões quando
se permitia um curto passeio até o mosteiro das monjas".
Gilberto, também êle profundamente religioso, era de
índole diversa. Não obstante o aparato guerreiro de tôrres
e fortes que lhe cercavam a moradia, exultava de ser o pai
da guarnição e dos pobres que viviam nos arredores. As
rendas não lhe permitiam gastos inúteis, e o futuro santo
sentirá as conseqüências dêsses apertos financeiros.
Narra o historiador acima lembrado que, às vêzes, ex­
probravam ao conde as liberalidades: "Pensasse nas filhas
- aliás numerosas - ainda por contrair matrimônio". "Se
me interessar pelos pobres, preocupar-se-á o próprio Cristo
por minhas filhas!" respondia Gilberto. Certamente não era
um raciocínio de cavalheiro ou nobre de 1500; contudo não
fêz muito mal os cálculos, pois poucos senhores de então
conseguiram casar tão bem as próprias filhas, ou gloriar­
se de homem tão santo e-ilustre como o seu segundo filho.
Dotado de caráter suave, não podia, porém, deixar impu­
nes os culpados de blasfêmias e expressões torpes. Tinha
tal inclinação e gôsto pelas coisas sagradas, que se teria

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podido tomar por um sacerdote encouraçado, principalmen­
te se considerássemos o recolhimento com que recitava o ofí­
cio divino; e essa piedade, com o passar dos anos, chegou
ao misticismo.
Conforme nos atesta Galeazzo Visconti, preferia a to­
dos os lugares e salões do castelo, uma grutinha situada
no jardim, onde passava horas em meditação, para agra­
decer a Deus os benefícios recebidos, revestido de hábitos
simples e depostas a espada e a couraça. Presságio das gló­
rias futuras do filho no campo da fé? Pode ser, mas a essas
glórias êle não assistirá; morrerá jovem ainda, como acon­
teceu com todos os Borromeus. Com somente quarenta e
seis anos havia-lhe falecido o avô, em 1508; em 1528, com
a mesma idade, perdera o pai; nasce-lhe o filho Carlos em
1538 e, em 1548, dez anos depois, expira a jovem espôsa.
Em 1558, tendo completado quarenta e seis anos - idade
fatídica para os parentes de São Carlos - falecerá tam­
bém êle.
A figura da mãe de Carlos perde-se completamente
nas sombras. O Cardeal Bascapé no-la apresenta, como dis­
semos anteriormente, muito piedosa e amada por todos os
vassalos, especialmente pelos pobres, doentes e abandonados.
O aposento em que habitava era conhecido como o "quar­
to dos três lagos", porque das três janelas descortinavam­
se três diferentes aspectos do Lago Maior, um dos mais be­
los e amplos da Península Itálica.
Transcorridos oito anos de matrimônio, haviam nascido
três filhos. Frederico, que recebera o nome do avô paterno,
nascido quatro anos após as bodas; Isabel, vinda à luz
quando o primogênito completara dois anos, e, logo a seguir.
Vitaliano, que morreu poucos dias depois do nascimento.
Margarida pouco ou nada se ocupava dos acontecimentos
políticos que envolviam o marido. Dedicada à família, en­
contrava a própria felicidade educando os filhos no temor
de Deus.
Nessa época Francisco I e Carlos V, atendendo ao pe­
dido do Papa Paulo Ili, haviam assinado uma trégua por
dez anos; trégua mais que necessária depois de tantas guer­
ras inúteis e funestas. Para Milão, a suspensão das hosti­
lidades significou a dispersão das tropas imperiais e a re-
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São Carlos
Borromeu.

Ruínas da Fortaleza de
Arona.

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l'a1111ra111r, de Como - co11c/w
colorida - cercn<ln r/e co!i11as,
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Dois 11w!J11Íficos as11eclos
do Lago Jlfoior.

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volta desesperada, na cidade e no interior, de homens esfo­
meados, semelhantes em tudo aos mais cruéis salteadores.
E para agravar mais a situação, preparava-se solene
recepção ao nôvo governador que viria ·da Espanha, - pois
Milão sofria então, humilhada, a perda da própria indepen­
dência. As festas e os gastos da nobreza levariam certamen­
te a plebe, privada há tempo do indispensável, à revolta
e à devastação.
Considerando o estado de Margarida, gr:ávida do quarto
filho esperado para o outono, o Conde Gilberto transferiu
a família da capital para Arona. Apesar do calor estivo que
o dominava, o local escolhido era mais tranqüilo e mais
seguro. Soprava, ao entardecer, procedente dos Alpes, be­
néfica aragem, suavizando os aposentos do castelo e acari­
ciando o lago que dormia na planície. A vida ali transcor­
ria ordenada por disciplina militar e fundamentada por pie­
dade verdadeiramente monacal.
Em tal clima e de tais pais, nas primeiras horas da
manhã de 2 de outubro de 1538, abriu os olhos à luz o quar­
to filho de Gilberto Borromeu: Carlos.

2.
E APARECEU UMA GRANDE LUZ ...
Preparando-nos para narrar as maravilhas que o Senhor
operou em Carlos Borromeu, apraz-nos lembrar a primeira
página do livro dedicado ao santo por seu primeiro e mais
importante biógrafo, o cândido Cardeal Bascapé: "Enquan­
to considero os valores e os diversos estados dos homens,
julgo sinceramente felizes somente aquêles que, por gra­
ça divina, levam vida virtuosa e excelente, e, com o exem­
plo, impelem os outros a agir bem e louvàvelmente ... Prou­
vera a Deus tivesse isso acontecido comigo! Como, porém,
me encontro muito longe de tão altos graus de felicidade,
é conveniente que, ao menos, me aplique a celebrar os
méritos e os fatos gloriosos dos outros, a fim de que todos,
se fôr possível, se movam a imitá-los".
Vida de s. carlos - 2 17
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Agrada-nos, outrossim, recordar que logo após sua mor­
te, Pedro Giussano, sem dúvida mais apologista que histo­
riador e hagiógrafo, dizia em tom de penegírico: "O cuidado
e a proteção que Jesus Cristo, Senhor Nosso, prometeu ter
de sua Igreja, manifestou-se sempre e em qualquer lugar,
mas particularmente na Igreja Milanesa, que foi fundada.
E neste século. não somente na cidade e na diocese de
Milão, corno também na Província e em outras regiões,
muito singular se pode chamar a graça e raro o favor que
Sua Infinita Bondade se dignou dar-lhe com o enviar a êsse
govêrno um arcebispo dotado de virtude, zêlo pastoral e
santidade tão sublimes ... "
Se imediatamente depois de seu trespasse se reuniu em
tôrno da grande figura do mais excelso dentre os Borrorneus
tão vivo interêsse por parte de escritores e penegiristas, não
nos admira que tenham embalado seu berço a lenda e o
maravilhoso.
Narra-se que, algumas horas antes de amanhcer o dia
2 de outubro, a obscuridade da noite foi interrompida, per­
to de Arona, por intensíssima luz, que iluminou o lago, as
moradias e as tôrres do castelo. Acorreram todos ao ar livre
para observar o esplendor tão misterioso, assaz vivo e bran­
co para assemelhar-se ao fogo, demais prolongado para
confundir-se com o relâmpago, e muito claro e luzente para
ser fosforescência. O processo de canonização lembra o pro­
dígio relatado por testemunhas oculares. Descreveram a luz
como algo parecido ao raio brilhantíssimo, da largura de um
metro e muito longo, que atravessou o castelo de oriente a
ocidente, da Tôrre menor à do Falcão, situada sôbre o "quar­
to dos três lagos". Poucas horas depois dêsse "signum gra­
tiae" nascia Carlos Borrorneu.
Os corações singelos dos habitantes viram no prodígio
indício de futura grandeza ou de tempo prolongado de paz,
e o menino foi logo considerado mensageiro do bem e da
felicidade. "Aparecer,á o arco da aliança entre as nuvens -
dissera Deus a Noé - e será o sinal da paz entre mim
e a terra".
Não queiramos diagnosticar o gênio e a grandeza do
menino, tocado pela graça, por um fenômeno atmosférico,
maravilhoso sem dúvida, mas talvez natural.

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O pai, impressionado pelo fato, achou conveniente re­
tratar o recém-nascido enfaixado; intitulou o quadro: "Di­
vi Caroli lactentis effigies" - imagem do divino Carlos
lactente; mais tarde foram reproduzidas várias cópias e
delas encontramos acenos preciosos nos registros da casa
Borromeu. Os olhos luminosos e a mão energicamente fe­
chada revelam-nos espírito vivo e vontade tenaz. Muitos ou­
tros retratos de São Carlos rapazinho, criança até, se con­
servam ainda hoje; em quase todos vemos o pequeno ajoe­
lhado e absorto em oração, encerrado em elegante hábito
de pajem.
E' preciso, porém, que chegue aos vinte e cinco anos
para podermos encontrar um medalhão que nos apresente o
purpurado sob o aspecto verdadeiramente "humano".
O Cardeal Frederico Borromeu, primo de São Carlos e
também êle arcebispo de Milão - e que só não subiu aos
altares por humildade, como já se disse! - erigiu-lhe um
enorme monumento nas alturas de Arona, - monumento
que, pelo menos. na parte artística, merece algumas reser­
vas. Lembrando o rio de dinheiro gasto por muitos para
obter, depois de sua canonização, imagens-lembranças, la­
mentava que "talvez ninguém tivesse pensado em retratá-lo
quando vivo".
A queixa é deveras comovente naquela alma que tanto
amou e tão bem imitou o santo predecessor; de fato, se al­
guém é honrado após a morte com a auréola da santidade
ou do gênio, retornamos com curiosa ansiedade a seu perfil
juvenil para surpreender-lhe a futura grandeza na atitu­
de do semblante, na expressão dos olhos e na posição da
pessoa. Muito oportunamente acrescenta Frederico aquêle
"talvez", porque os retratos do primo são discretamente nu­
merosos na primeira etapa da vida - da infância ao cardi­
nalato - que pode ser chamada "humana", e muito mais
abundantes na última vintena de anos, - que é justo seja
denominada "heróica".
Os dois filhos da família Borromeu diferiam sensivel­
mente entre si desde as !llanifestações da infância. Frede­
rico, já aos dez anos, saía-se bem em tudo; belo e atraente,
o primeiro nos jogos, audaz e excelente no cavalgar, na
esgrima e na ginástica - aquela que se praticava em tais
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tempos; demonstrava, porém, pouco ou nenhum apêgo aos
livro� e estudos.
Carlos não possuía nenhum dos atrativos do irmão.
Rapazinho em tudo semelhante aos demais, nada tinha de
extraordinário que pudesse atrair a atenção. Grave e sério,
talvez mais do exigido pela idade, reservado ao extremo e
taciturno. E a torná-lo mais silencioso, contribuía a balbú­
cie, que lhe dificultava o início da conversa, logo seguido
por um fluxo de palavras confusas que tornavam difícil a
compreensão do que dizia. O balbuciar desaparecia com­
pletamente, porém, quando entoava a plenos pulmões hi­
nos e cânticos em honra de Nossa Senhora - as músicas
por êle preferidas. Dessa inclinação nasceu-lhe verdadeira
paixão- pela música, de tal forma a ser, ainda jovem, exí­
mio violinista.
Não lhe pretendemos valorizar, como demonstração de
futura santidade, o gôsto em armar pequenos altares e
imitar as funções sagradas. Quem, em família educada com
sentimentos sinceramente católicos, não teve, na infância, o
seu altarzinho com candelabros dourados? e poucos dês­
ses meninos chegaram a ser São Carlos.
E' verdade, contudo, que a educação deveras religiosa
com que Gilberto modelava tanto sua vjda como a da fa­
mília, ajudou não pouco a formar a consciênc�a quase sa­
cerdotal em quem sentia espontânea atração para a vida
eclesiástica. A devoção do Conde para o Santíssimo Sacra­
mento era realmente sublime, e procurava inculcá-la em
seus filhos, Isabel, Frederico e Carlos, e, a seguir, em Ca­
mila, Jerônima e Ana. Quando repicava o sino da capela,
todos os habitantes do castelo, soldados e servos, ancmos e
jovens, nobres e plebeus, deviam deixar o trabalho ou o
jôgo e participar da oração em comum.
E não era êsse, para o castelão de Arona, o único ato
que manifestava os bons sentimentos de que andava re­
pleto o coração. A oração unia a caridade, o "amai-vos uns
aos outros". Todos os dias, antes de sentar-se à mesa, dis­
tribuía alimento e dinheiro aos pobres e peregrinos aglo­
merados diante da entrada principal.
"Se me preocupar com os pobres, Deus protegerá meus
filhos" - costumava responder a quem lhe repreendia a
demasiada generosidade. Entre os murmuradores não estava

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certamente a espôsa Margarida, que, por sua vez, acrescen­
tava às ofertas do marido solicitude e carinho por todos
aquêles que precisavam de ajuda e compreensão. Gilberto
não era grande administrador, pois, apesar das rendas da
propriedade de Arona e da pensão que lhe oferecia o im­
perador, nunca possuía dinheiro suficiente para todos os
gastos, encontrando-se freqüentemente em apuros por cau­
sa das dívidas.
Os retratos de Gilberto representam-no sempre em as­
pecto guerreiro, totalmente revestido de armaduras resplan­
decentes. Olhar sonolento sob espessos cílios, nariz longo
e aquilino - próprio dos Borromeus, - barba simples a
esconder pesada· maxila e bôca ligeiramente sensual, -
eis em breves traços a fisionomia do pai de Carlos. Homem
tranqüilo, mal suportava as cerimônias imperiais, e quando
Carlos V, percorrendo os domínios da alta Itália, convidava-o
a fazer-lhe escolta com outros cavalheiros, cumpria, sim,
o dever, mas retornava a Arona o mais cedo possível.
Nessa cidade deixava o castelo somente para visitar
os camponeses e aldeões que moravam nas circunvizinhan­
ças. Em Milão, não saía do palácio senão para assistir à
santa missa na igreja de Santa Maria 'de Podone ou, nas
festas solenes, na catedral, ou ainda, para socorrer os en­
fermos que jaziam ao longo das estradas.
Era quase sempre acompanhado pela espôsa que o
ajudava, como já dissemos, nessas obras de piedade, e ama­
va a vida do marido porque, se fôsse possível, teria vivido
mais solitária e retirada que o conde.
Essa a imagem do pai que o pequeno Carlos tinha dian­
te dos olhos e que haveria de imitar desde os primeiros anos
de existência

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3.
PREOCUPAÇõES DE ABADE

Acabadas as lições cotidianas, Frederico e Carlos trans­


corriam o dia em ocupações muito diversas sob todos os as­
pectos. O primogênito, com outros companheiros, saía do
castelo para divertir-se, geralmente em um jôgo semelhante
ao nosso tênis de hoje, ou então visitava a cocheira e o lu­
gar destinado aos falcões; gostava de discutir as qualidades
dos cães e dos cavalos; era, enfim, amante da vida alegre e
livre dos cortesãos do tempo.
Carlos, pelo contr.ário, retirava-se para algum ângulo
quieto da casa e passava horas entretido com seus amigos
prediletos - os livros. "Até aprender a ler - nota o Cardeal
Bascapé - continuou a importunar o capelão ou outra pes­
soa instruída para que lhe repetisse em voz alta o que lia".
E desde quando conseguiu decifrar algumas páginas, es­
condia-se nos recantos mais remotos, onde ninguém pudes­
se molestá-lo. Muitas vêzes Frederico e os estouvados colegas,
encontrando-o em alguma trapeira, riam-se de seu incompre­
ensível apêgo aos livros - quase sempre maiores que o leitor!
Sorrindo pacientemente, esperava que se :retirassem e conti­
nuava a fatigante leitura.
Narra o primeiro biógrafo que, certa ocasião, assustou
a todos por prolongada ausência. Os criados e o pai - a mãe
já tinha falecido quaJ.?,do Carlos não completara ainda no­
ve anos - não o encontrando para a hora do jantar,
procuraram-no por tôda a parte, preocupados porque não
se achava em nenhum dos lugares que freqüentava habitual­
mente. Desaparecera misteriosamente! Enfim, um dos ser­
vos, depois de longo e angustiante investigar, deparou com
a criança escondida num pequeno aposento situado sob os
muros, e usado para conservar o mel. Carlos, sentado no
pavimento, parecia ocupado em complicada operação. Que
de tão importante e absorvente fazia, a ponto de não ou­
vir os gritos aflitos dos empregados, dos irmãos e do pai?
As perguntas e repreensões, limitou-se a responder com
candura e dignidade: "Por que me molestais? Estava sim­
plesmente dividindo o mundo!... "

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&se fato tornou apreensivo o pai; qual o caminho que
devia escolher ao menino? O mundo, segundo o simplicíssi­
mo pensar dos homens do século XVI, podia ser dividido
somente pelos reis e papas, e com as armas, bem mais po­
derosas que o espírito e a fantasia ...
Para Frederico, o futuro j,á estava assegurado, - con­
tanto que a generosidade do Conde Gilberto lhe deixasse
algo mais que o simples título. E Carlos podia contar com
a proteção dos dois irmãos de Margarida, - Jaime, que du­
rante as guerras franco-espanholas ganhara alguma coisa
mais substancial que a pura glória, e Angelo que, apenas
de volta de uma missão na Alemanha, fôra nomeado ar­
cebispo de Ragusa, e quatro anos após, cardeal da San­
ta Igreja. Desejavam êles que o menino seguisse a car­
reira dos nobres de então, no que contradiziam a mãe, para
quem a vocação do filho outra não era senão a eclesiástica.
Por carreira nobre entendia-se o caminho dos estudos
e das honras conseqüentes, tais a jurisprudência e a diploma­
cia. "Carlos sabia ler e escrever corretamente, - diz-nos
outra biógrafa do santo, Margarida Yeo; compunha cartinhas
cm estilo perfeito e dissertava em latim ciceroniano; fala­
va tão bem o italiano quanto o dialeto local, incompreensí­
vel e impronunciável para os forasteiros. Sabia cantar com
clareza e entonação, tocava alaúde, e ainda que não fôsse
apaixonado como Frederico pela caça, pesca e falcoaria,
an1ava os cavalos, tornando-se, com o passar dos anos, bom
e incansável cavaleiro".
Seja como fôr, aos sete anos de idade, Carlos recebeu
a tonsura e o hábito eclesiástico; celebrou-se na catedral
de Milão solene e concorrida cerimônia, sendo oficiante o
bispo de Lódi; e aos doze anos foi investido da comenda e
do hábito aronense. Pelo primeiro rito, tornava-se Clérigo,
capaz de usufruir dos frutos de qualquer benefício, como
seja convento ou capítulo; e pelo segundo, assumia efetiva­
mente, qual comendador, a posse e o uso de respeitável par­
Í<' dos bens abaciais.
E assim, em 1550, com pouco mais de doze anos, foi
nomeado superior da abadia de Arona, deixada em seu fa­
vor pelo tio Júlio César, pai do Cardeal Frederico. Trata­
va-se de importante obra, ao redor da qual se desenrola­
ra quase tôda a história da cidade.

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Sabe-se, pela antiga cromca aronense, que o cavalhei­
ro Aminzão, chefe da soldadesca de ótão I no sítio de Roma
em 954, concedeu tanta liberdade aos homens confiados a
suas ordens, a ponto de ser devastada tôda a campanha ro­
mana, chegando-se a incendiar o pórtico da basílica de São
Paulo. Resultado do ato vandálico foi a excomunhão lança­
da pelo Papa João XII sôbre Aminzão; tendo-se, porém,
arrependido solenemente, conseguiu o perdão, e fêz o voto
de erigir em Arona, onde possuía terras, um mosteiro dedi­
cado ao Salvador. E ao passar por Perúgia, demonstrou-se
católico de tão profundos sentimentos, que obteve do bispo
os corpos dos santos Graciano e Felino.
Em 979 igreja e mosteiro estavam de pé, e os benediti­
nos que o ocuparam foram de tão grande zêlo e tornaram-se
tão necess·ários à população sôbre quem exerciam jurisdição
eclesiástica, que eram considerados ,árbitros em qualquer
assunto que se referisse à vida espiritual e, algumas vêze.;,
também civil dos habitantes.
O que pudesse fazer nessa abadia tão importante - que
em 1419 se transformara em comenda, de modo a poder ser
confiada também a eclesiásticos não beneditinos - um aba­
dezinho de doze anos ... faz-nos sorrir somente ao pensar;
no entanto, Carlos Bascapé fala-nos com seriedade: "Apesar
da pouca idade, pensando no fato de serem os frutos do
mosteiro sagrados e que devia, como superior, dar contas a
Deus, lembrou modestamente ao pai - ainda que em tudo
lhe fôsse filho muito obediente - que não lhe parecia justo
nem julgava útil à salvação eterna de ambos, que tais fru­
tos fôssem utilizados ao bem da família, em vez de distri­
buídos aos pobres".
O pai não se melindrou com as observações do filho;
e começou a compreender que quem repartira o mundo, aos
cinco anos apenas, no solar doméstico, estava verdadeira­
mente no préprio lugar lá onde o colocara mais por insti­
gação de outrem que por convicção pessoal; e, homem bom e
caritativo que era, obedeceu escrupulosamente às exigên­
cias do rapazinho.
Aquêle adolescente, chefe da abadia, era um menino­
prodígio, destinado· a guiar os homens. Os monges que ha­
bitavam o convento, de religioso e monacal possuíam so­
mente o hábito; haviam-se tornado indolentes, licenciosos e

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turbulentos, no dizer do Cardeal Bascapé. O Abade Carlos
Borromeu, estudante em Pavia, em suas freqüentes viagens
à terra natal, condoía-se do triste estado moral em que se
encontrava a comenda. Começou por persuadir os benediti­
nos a levar vida mais conforme às regras do Fundador e
do Evangelho; e, lendo-lhe falecido o pai e obtido por isso
jurisdição administrativa e plena responsabilidade do ins­
tituto, mudou de tática; conformou-se escrupulosamente às
disposições canônicas, usou da fôrça onde havia necessidade
e não hesitou em condenar os mais rebeldes ao cárcere!
Tudo isso era obra de um môço que não completara ainda
dezoito anos! ...
Carlos gostava de permanecer na cidade natal, e en­
contramos eco dêsse amor em suas numerosas cartas, prin­
cipalmente nas do decênio decorrido entre a morte da mãe
e do pai. Apreciava igualmente participar das repetidas ca­
çadas do irmão Frederico. Recordava freqüentemente, mais
tarde, os belos dias passados ao ar livre, cheios de movimen­
to, alegria e luz.
Em carta remetida de Pavia, na qual, segundo o cos­
tume do tempo, usa e abusa dos títulos de "digníssimo,
ilustríssimo e respeitável senhor irmão", pede que lhe seja
enviado um falcão; como, porém, o digníssimo e respeitá­
vel senhor, que pouco depois seria eleito capitão das tropas
da Igreja, se esquecesse do pedido, Carlos insiste irônica­
mente: "Temo que suceda com o falcão o que sói acontecer
com as perdizes; fazeis sempre grandes extermínios, mas eu
nunca consigo ver alguma ...". E outra ocasião: "A senhora
condêssa está muito contente em saber que Vossa Senhoria
faz sempre abundantes caçadas, - ainda que o saiba uni­
camente por ouvir dizer ... "
Antes de ingressar na Universidade de Pavia, achou
melhor começar os estudos humanísticos em Milão. Tomou-os
a peito com a máxima seriedade, como podemos inferir de
uma carta, em latim, ao pai. A carta, ainda que repleta de
expressões retóricas, talvez excessivas num rapaz de treze
anos, deixa ver sólidos conhecimentos de gramática e epis­
tolografia. E é também âfetuosa expressão de amor filial;
acusa-se, sim, de ter permanecido muito tempo sem escre­
ver, mas que o pai não pense ter sido esquecido: "Eu es­
quecer a vós? E' o que nunca acontecer.á. Deverão cair as

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estrêlas, obscurecer-se o sol, deter-se os céus, antes que me
torne culpado de semelhante delito". E continua: "Estudo
quanto me é possível; faltam-me livros; peço-vos, por isso,
que me compreis quanto antes: Plínio, De animalibus, Aris­
tóteles e Salústio; custam cem sestércios". Em outra missiva,
escrita pouco tempo depois, repete com candura ao proge­
nitor: "Escrever-vos, amado pai, me é coisa agradável
e útil . .. "
Nesse tempo não lhe conhecemos amigos de particular
relêvo; apreciava a solidão e a meditação como dos maiores
bens do espírito, estabelecendo-se, para usufruí-los, no quie­
to ângulo de São Celso. Encontrando-se, porém, em compa­
nhia, estava longe de ser carrancudo ou desmancha-praze­
res. Perguntou-lhe, certa vez, um colega se pretendia pre­
cedê-lo no Paraíso, para oferecer-lhe água benta quando
aparecesse na porta! Carlos não respondeu, mas sorriu.
Disciplina interior antes de insensibilidade, pois o menino
era de ânimo extremamente delicado e sensível.
E' o que deparamos numa carta a um amigo de Arona
na ocasião em que deixava Milão para freqüentar a Univer­
sidade de Pavia: "Caríssimo amigo Luís Vignola! Sinto de­
sejo tão ardente de rever-te, que não sei exprimi-lo por
palavras. Devo seguir imediatamente para Pavia, tu o sa­
bes; e peço-te, com todo o coração, em nome do grande
afeto que te dedico, que venhas logo, antes que parta, para
passar ao menos algumas horas comigo. Seria deveras in­
feliz se partir sem ver teu semblante".

4.
MILÃO EM DUAS ETAPAS

Carlos deixava Milão tendo pouco mais de doze anos,


e a situação da cidade era, naqueles dias, das piores que
sua história recorda. Quem completara setenta anos - não
muitos, considerando· que a longevidade era rara em tais
tempos quando alguém com cinqüenta anos já envelhecia

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e com setenta era considerado decrépito - recordava, admi­
rado e comovido, a côrte de Ludovico, o Mouro, como das
mais esplêndidas da história milanesa. O Renascimento atin­
gia então seu máximo esplendor. E Milão, apesar de não po­
der rivalizar vitoriosamente com Roma e Florença na pro­
clução artística, fruía no pal:ácio dos Sforza de uma verda­
deira Academia que atraía de tôda a Itália os maiores gê­
nios, quais Leonardo da Vinci e Bramante.
Nos magníficos salões do castelo, descritos e louvados
por Castiglione no livro O Cortesão, discutia-se, entre lite­
ratos e guerreiros, músicos e humanistas, poetas e cientistas,
se Petrarca era ou não superior a Dante, e que relação ha­
via entre Platão e Aristóteles. E o maior matemático da
época, Lucas Pacioli, dedicava os primeiros capítulos da
obra A Divina Proporção a Ludovico, exaltando-lhe a côr­
tc, repleta de beleza, arte e intelectualidade. A par de tanta
grandeza, porém, alastrava-se, rápido e sutil, o cancro do
luxo, que haveria de causar a ruína da nobreza e da po­
pulação.
Desde 1504, começaram a aparecer decretos coibindo
o avançar sempre crescente da desmoralização; mas, como
os famosos editais de que fala Alexandre Manzoni em Os
Noivos, não passaram de letra morta. Os nobres e as damas
continuaram a ostentar hábitos riquíssimos, - meias de sêda
muito aderentes às pernas, jaquetas de cetim e de veludo,
espadas com empunhaduras de prata ou de ouro prêsas
cm cinturões repletos de pedras preciosas, e curtas capas
francesas a esvoaçar por sôbre os ombros.
As mulheres, exibindo decotes provocantes, apertavam
o busto com corpetes recamados de adornos de ouro e de
pérolas; as saias, longas e pesadas, estavam bordadas sun­
tuosamente; os cabelos, geralmente pintados, reuniam-se
por trás da nuca com broches de pedras reluzentes. Arran­
cavam-se as sobrancelhas, - nihil novi sub sole! - e colo­
riam-se os lábios de um vermelho tão vivo, que as bôcas
se assemelhavam a feridas abertas e sanguinolentas. O con­
ceito da mulher medievql, retirada, totalmente entregue à
oração e aos afazeres domésticos, cedera lugar à mulher
do Renascimento, desejosa de igualar-se em tudo ao ho­
mem e de participar ativamente na vida social e política

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da cidade. Tornara-se culta e educada, mas também in­
saciável e vã.
Não nos devemos admirar de que, com tais pessoas e
costumes, se houvesse deslizado ràpidamente para a moda
indecente. Contra a nova chaga que corroía a sociedade, in­
surgiram-se tanto os legisladores com multas e tôda a es­
pécie de castigos, como os sacerdotes nos púlpitos, e os
moralistas nos livros; mas não conseguiram nenhum re­
sultado satisfatório. Esquecera-se que a pureza dos cos­
tumes segue de perto a grandeza da nação. E o Estado Mi­
lanês, de história tão gloriosa, decaiu com rapidez extraor­
dinária quando os habitantes se entregaram ao luxo de­
senfreado. Dessa forma, quando os descendentes daqueles
que tinham espalhado tanta luz pela Europa quiseram co­
brir de ouro e preciosidades os próprios hábitos, foram
obrigados a jazer, envergonhados, sob a dominação estran­
geira. Nem tôdas as desgraças, porém, vêm para o nosso
mal. . . O comércio e a indústria, graças principalmente ao
sexo frágil, ganharam grande incremento ...
Normas suntuárias existiam . . . desde 1:J46; a primeira
que nos chegou completa teve origem em Galeazzo Visconti,
o qual, lamentando primeiramente a escassez de matrimô­
nios causada pelas exigências da vida e pela frivolidade
das mulheres na emulação do luxo, proibia o uso de péro­
las no vestuário; vetava, outrossiin, os enfeites de ouro
e de prata, os forros de peliça e os botões dourados, hoje
distintivo dos hoteleiros, e na época, dos doutos e físicos.
A lei atingia igualmente os tecidos cerzidos em ouro e
prutu, u niio ser que se tratasse de damas de alta posição,
devendo cudu mulher vestir de acôrdo com a própria con­
dição social; e ai das costureiras que desobedecessem ao
decreto!
Mais tarde, nôvo edital emanado do conselho secre­
to, estando presentes os conselheiros de justiça, os doutô­
res do colégio, o vigário-geral e os doze da provisão - que,
sem dúvida, nada de melhor tinham que prover! - opu­
nha-s� a que as senhoras usassem não somente pérolas,
como também colares de ouro, broches e pedras preciosas,
sob pena de confisco de um quarto dos objetos seqüestrados.
Restavam contudo os outros três quartos... e o marido,
que se apressava em indenizar o perdido, a fim de que a

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própria espôsa pudesse competir com as dos senadores,
dos condes, dos marqueses, dos barões, dos militares, dos
jurisconsultos, dos físicos e dos licenciados do Estado Maior,
para os quais não existiam proibições.
Todos os rigores da lei eram para o povo miúdo que, en­
tre tantas proibições e sanções., não se sabe como pudesse
respirar; as coisas mudavam, porém, quando se tratava das
espôsas dos senhores ... No enxoval de Bona de Sabóia,
por exemplo, noiva de Galeazzo Sforza, figuravam, além
do costumeiro, doze manteletes de brocado dourado, branco,
carmesim e escuro; seis vestidos elegantemente prateados;
vinte e cinco pares de meias douradas e cinqüenta pares
de chinelos bordados. E tudo isso não era nada em compa­
ração com o enxoval preparado por Ludovico, o Mouro,
para a sobrinha Branca Maria, em cuja cesta nupcial o
Imperador Maximiliano chegou a encontrar um aquecedor­
de-cama de prata ...
E como, por mais ricas que fôssem as vestes, nenhuma
dama podia trajar senão uma por vez, costumava-se ador­
nar abundantemente as senhoras e criadas do séquito, co­
brindo de ouro e prata pajens e palafreneiros, cavalos e
cães, gaviões e falcões. Era, enfim, o luxo e a fartura que
imperavam ... infelizmente por pouco tempo.

Essa Milão de Ludovico, o Mouro, alegre, bonita e ge­


nial, que tinha seu arrimo no castelo dos Sforza, donde se
irradiavam convites a tudo o que embelezasse e encantasse
a vida, já não era a da infância de Carlos Borromeu. Com
a invasão francesa, as maravilhas da cidade evaporaram-se
como névoa brilhante ao soprar de gélido vento. Nem
aqui pararam os males. Vieram os espanhóis. E tanto a ci­
dade como a província tornaram-se reserva de caça para
os jovens ávidos de fortuna, e lugar de rapina para todos os
funcionários estrangeiros que, longe de Madri, criaram
um estado à parte, no qual tudo era lícito: favoritismo, ex­
torsões e provocações. E a cada nôvo governador que chega­
va, as coisas iam de mal a pior. Isso devido principalmente
ao fato de o recém-vindo estar acompanhado de numero­
sos clientes e amigos, ávidos de posições de destaque; e
como os cargos Já estavam todos preenchidos, surgiam de­
savenças e rivalidades sem fim entre os antigos e os novos

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pretendentes, sendo sempre uma só a conseqüência de tudo
aumento dos impostos ...
Em 1543 o imperador constituíra um Conselho Secreto,
no louvável intuito de superintender as taxas, regulá-las
discipliná-las e proteger os interêsses do ducado e dos ha­
bitantes. Aquêles mesmos, porém, que deviam favorecer­
lhe o funcionamento, tudo fizeram para impedi-lo, e a no­
va constituição, apesar dos correios despachados de Madri
para controlar a execução de suas ordens, assim como as
ameaças do César espanhol, permaneceram sem resultado,
o que, aliás, já era de praxe.
O Conde Gilberto comportara-se com bastante habili­
dade no meio de tantos perigos, abstendo-se de assumir po­
sições claras e contentando-se do grau de coronel de in­
fantaria, dignidade de pouca monta e que não causava in­
veja a ninguém; tanto mais que a exercia quase que unica­
mente em Arona.
O palácio dos Borromeus era dos mais notáveis da
Milão renascentista. A entrada principal, que ainda hoje
se conserva intacta, é de tríplice modinatura; em sua fren­
te deparamos com um dos numerosos brasões da família,
- pequeno cêsto a conter um camelo ajoelhado em modo
assaz grotesco. Eis a descrição que nos dá Margarida Yeo :
"Ingressando no p:átio, deparamos com v,árias arcadas, -
uma à direita, outra à esquerda e a terceira, a mais antiga
e interessante, encontra-se ao longe, nos fundos. Os arcos,
em forma aguda, pousam sôbre pilares baixos e sem or­
namentos. Um dêles leva esculpida grande cobra a engolir
um menino, brasão que se acreditava ter sido apanhado
por certo cruzado da família dos Viscontis na guerra con­
tra os sarracenos.
"O original teto de madeira está dividido por quadros
brancos e prêtos, alternadamente. No pátio interno encon­
tramos o lema de São Carlos, lema que orientou a vida de
milhares de almas generosas através dos séculos - Humi­
litas; pouco acima, com aparente contradição, bela coroa
a nos lembrar que o poder de Deus se manifesta através
das almas pequeninas. Aqui e acolá aparecem afrescos com
cenas da vida dos princípios do século XV, e por isso Ja
seculares quando Carlos ali vivia. Majestosa escadaria, la-
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deada por balaústres côr-de-rosa e avermelhados, conduz­
nos do pátio às salas superiores.
"Os caminhos que o jovenzinho percorria para assistir
à santa missa ou às aulas eram muito breves. Os espanhóis,
ao sair pela cidade, vestiam geralmente trajes prêtos; úni­
co ressalto era o brilho do aço dos soldados em marcha e
o cintilar do ouro dos capacetes e das couraças de algum
cavaleiro. As senhoras permaneciam em casa, ou saíam
vestidas de prêto e cobertas pos espessos véus".
Havia muito que a cidade não gozava de bispos está­
veis. O Cardeal Hipólito d'Este, filho de Afonso, duque de
Ferrara e de Lucrécia Borgia, nomeado arcebispo de Milão
aos quinze anos, permanecera sempre na côrte francesa e
nunca exercera o próprio múnus. Viários prelados viviam
alhures, deixando as próprias sedes vacantes. As casas re­
ligiosas distinguiam-se, infelizmente, mais pela preguiça e
con·upção dos membros, que pela piedade que delas devia
promanar. E dos pobres, quem se interessava? Não certa­
mente a assistência pública, que era como que inexistente.
Milão, como tôdas as grandes cidades de 1500, contras­
tava vivamente quanto aos estilos arquitetônicos. As vielas
velhas sufocàvam-se entre casas altas e aglomeradas ao
excesso. Onicamente as ruas novas apareciam bastante lar­
gas; podiam transitar nelas as carroças e os côches, aliás
raros, dos nobres e dos ricos. As pestilências e as doenças
infecciosas produziam estragos imprevistos e enormes nas
habitações angustas, aderentes umas às outras e repletas
de inquilinos sujos e negligentes. Daí as tão freqüentes pes­
tes que assolavam cidades inteiras nessas épocas.
Poder-se-ia resumir a vida milanesa nas terríveis atro­
cidades dos legionários estrangeiros espanhóis e alemães,
nos ribombos dos canhões do castelo, nos dobres dos sinos
da catedral que chamavam os cidadãos às armas, nas pro­
cissões penitenciais com longos cortejos de frades domini­
canos e franciscanos em saiotes branco-prêtos ou marrons,
seguidos pela multidão descalça e com voz já rouca de
tanto salmodiar; voz que transformava o canto da sagrada
liturgia em blasfêmias ou -insultos à menor ocasião.
Também a questão econômica constituía problema de
não fácil solução para uma nobreza que vivi-a de pensões
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e de rendas fixas. porém magras, como acontecia com os
Borromeus.
Em J\tilão habitavam o palácio senhoril não menos de trin­
ta pessoas, número habitual para qualquer família qu1• se
prezasse. A tôda essa gente, criados, escrivães e oficinis,
era preciso prover vestes, alimentação, hospedagem e ...
salário. causa de contínuas desavenças e revoltas por ser
prorrogado. . . ao infinito. A descoberta da América, que
à primeira vista parecera fortuna econômico-financeira de
vastas proporções, mudara-se em improvisa depressão pela
desvalorização da moeda, devida ao afluxo de ouro e ao
conseqüente aumento dos preços. Quase todos os nobres
possuíam, nos arredores da cidade, chácaras que lhes for­
neciam pão, vinho, azeite, legumes e carne. Cinqüenta anos
de guerras e devastações, porém, tinham reduzido a região
à miséria quase total.
As taxas oprimiam de tal maneira a população, que
pareciam autênticas armadilhas destinadas a extorquir os
infelizes habitantes. Construíam-se novas muralhas? Como
arranjar o dinheiro necessário? Com o modo usado por
todos os governos estrangeiros e despóticos - a extorsão.
E sendo que o Príncipe Filipe, o futuro rei-imperador, devia
visitar as possessões italianas, era preciso apresentá-las da
melhor maneira· possível; eis então novas demolições, com
o conseqüente acréscimo dos impostos.
O filho de Carlos V fêz sua entrada triunfal em Milão
em dezembro de 1548, num dia frio, nevoento e chuvoso.
As estradas, alegremente adornadas, estavam, segundo o
uso do tempo, repletas de divindades pagãs e de santos
cristãos. O ingresso foi bastante solene, mas o jovem prín­
cipe, louro, tímido e silencioso, apenas quebrava o retrai­
mento para sorrir, pálida e fugazmente, aos aplausos e ao
florilégio dos intermináveis discursos. Nem se pode afirmar
que seu estômago delicadíssimo tenha encontrado grande
prazer nos muitos e copiosos banquetes com que se inter­
calavam as _outras manifestações de alegria. Quando partiu,
certamente respirou aliviado.
Para o Conde Borromeu, como para os demais nobres,
tratou-se de grossas som3:s para pagar e de longas e tedio­
sas cerimônias para assistir. O único que se divertiu bas­
tante foi Frederico, que assim pôde cavalgar à vontade
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Duas obr as-primas da arquitetura renascentista
italiana: a Catedr al de Milão e a Basílica de S.
Pedro, em Roma.

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Igreja de San Cario ai Corso:
Pintura bastante célebre coloca­
i/a sôbre a 11ma 0111le está o
cornção ,lo Sa11 to.

Estátua de São Carlos,


atrás da igreja.
ALGUMAS DAS IGREJAS DEDICADAS A
SÃO CARLOS, NA CIUADE ETERNA.

Fachada da igreja
de 'an Cario ai Catinari.

Afrêsco da abside.

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entre os jovens de sua idade e permanecer fora de casa em
companhia da ruidosa comitiva de rapazes da nobreza.
Carlos, entre tantas e continuas festas e alegrias da ci­
dade, comportava-se como ausente e estranho. Sob a apa­
rência de distração e desinterêsse, porém, alimentava pro­
fundo fogo interior que o levara a escolher para sempre o
seu caminho. Pode-se então imaginar com quanta alegria
saudasse o alvorecer do dia em que começou a freqüentar
a Universidade de Pavia para completar a necessária cultu­
ra e obter a láurea in utroque iure, - em direito civil e
eclesiástico.

5.
APUROS DE ESTUDANTE

O Cardeal Bascapé diz-nos, sem muitos rodeios, que ao


ingressar na universidade para o curso de direito civil e
eclesiástico, Carlos possuía um cabedal de cultura assaz de­
ficiente e não encontrava facilidade no aprender.
A velha cidade sustinha naquele tempo, com certa fa­
diga, a gloriosa coroa de suas memórias góticas, longobar­
das, carolíngias e, por último, viscontinas. Austera e bela,
erguia-se a basílica de São Miguel, contendo, entre as pre­
ciosidades históricas, os ossos de Santo Agostinho e de
Severino Boécio.
Sob a dominação espanhola, porém, também Pavia pa­
recia dormir. Até a resplandecente beleza da cartuxa apo­
quentava. As lembranças recentes eram tôdas tristes. Luís
XII saqueara a cidade em 1500; Francisco I, em 1525, tido
já por morto, fôra levado a braços ao convento de São
Paulo, tendo escapado a muito custo da carnificina dos
espanhóis. Dois anos após, Lautrec bombardeara-a pela se­
gunda vez. único instituto a permanecer de pé foi a uni­
versidade, que se unia à cultura romana, longobarda, fran­
ca e ao famoso Capitulário de Lotário, do ano de 825.
Superada a crise do fim de 1300 - quando· da mudança dos
Vida de S. Carlos - 3 33
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estudos para Placência - tornara-se plenamente eficiente
durante o século· XIV, até atingir a freqüência de três mil
alunos, contribuindo não pouco para o movimento renas­
centista da primeira metade de 1500. Quando Carlos entrou
a freqüentar os cursos das leis, haviam-no penetrado o can­
saço e o desânimo. Ninguém teria visto, naquele menino fan­
tasioso e pouco preparado aos estudos, aquêle que haveria
de despertar as antigas grandezas do estabelecimento.
Alguns parentes de Bolonha e de Pádua manifestaram
o desejo de que Carlos cursasse as universidades dessas cida­
des, mais ilustres e dotadas de melhores professôres. A
preferir Pavia, porém, contribuíram duas considerações -
a vizinhança de Milão e Arona, e a amizade cordial com a
família Alciati.
André Alciati, verdadeiro mago da erudição, autor de
centenas de obras e disputado por diversas universidades
italianas e estrangeiras, encontrara-se, em Arona, com o jo­
vem Carlos. O rapazinho, malgrado tôdas as imperfeições
e perplexidades de que falamos, agradara ao grave doutor.
E não obstante a vasta e ponderada cultura, André, em
carta de 1549 a Paulo Gióvio, recorda com alegria o banque­
te realizado na casa do Conde Gilberto, em Milão.
Ao chegar o nosso estudante a Pavia, não encontrou
o amigo e professor;· substituíra-o seu irmão Francisco, co­
nhecido como Alciatino, que, aliás, ajudou muitíssimo ao
nôvo pupilo. . . para ser, quando necessário, retribuído em
seus interêsses particulares. E quando chegar ao cardina­
lato, e, portanto, colega de Carlos, arcebispo de Milão, êste
último considerará sempre o antigo mestre como o conse­
lheiro de -confiança.
Era obrigação das famílias ilustres fazer escoltar com
séquito numeroso e seleto os próprios filhos, ainda que
sem um vintém no bôlso. O préstito de Carlos constava de
um sacerdote, diretor da casa, e de vários criados. A peque­
na companhia hospedou-se num apartamento perto da igre­
ja de Santa Tecla; transferirá, porém, muitas vêzes a residên­
cia durante a estadia naquela cidade. A névoa que o acolheu
naquele 2 de novembro era espêssa. E os propósitos de estudo,
firmíssimos: "Não cessarei de estudar - escreve cinco dias
depois ao pai - pára conseguir alguma utilidade e também
para corresponder às grandes esperanças que Vossa Se-

34
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nhoria deposita em mim". São os propósitos de quase todos
os jovens que se dedicam aos estudos sob o amparo do
cofre paterno ...
Carlos, porém, sentia de modo particular que devia de­
monstrar aos seus algum resultado tangível pela proteção
e ajuda dispensadas. Escreveu ao tio João Angelo Médicis,
futuro papa, agradecendo-lhe o caloroso amparo e assegu­
rando-lhe que jamais se arrependeria do bem que lhe fi­
zera e que ainda haveria de fazer, e quase pressagiando
o futuro do cardeal, conclui: "Peço a Deus que vos conserve
por muito tempo, porque sôbre vós repousa tôda a grandeza
de nossa família". De fato, em 1559• com o nome de Pio IV,
o tio subia ao sólio pontifício.
Depois de se ter acomodado do melhor modo possível
em pequeno aposento que 11ada tinha de comum com o pa­
lácio de Milão e com o castelo de Arona, foi preciso adaptar­
se às muitas exigências da cidade e do estudo e, antes de
mais nada, ao clima. Carlos sofre a umidade da região, co­
locada entre dois rios, e o nevoeiro, denso e insistente, cau­
sa-lhe contínuo mal-estar. Não chora tanto o clima de Milão
quanto o de Arona. Pede ao pai uma peliça "porque todos
os colegas, nobres ou plebeus, fazem uso dela na cidade".
Pensa que poderia compr:á-la êle mesmo, evitando assim ao
pai outros gastos além dos muitos que j,á lhe faz; por fim
renuncia delicadamente ao pedido; e para não humilhar
o progenitor, traz como causa da desistência o fato de que
"nenhum nobre religioso leva a peliça fora do próprio
quarto", e êle era o abade de São Graciano.
Foi acusado nesse tempo de não recitar o ofício divino,
obrigação essa de todos os eclesiásticos. Como é natural, o
pai faz-lhe algumas observações. Vivamente indignado, ·res­
ponde: "Somente um mentiroso pode caluniar-me tão vil­
mente, pois nunca descurei tal dever e jamais o deixarei
até que viver". Parece ter sido, ao invés, o próprio acusa­
dor, o sacerdote ecônomo da casa - administrada, aliás,
com a mais culpada negligência, - a esquecer-se do bre­
viário e de outras coisas bastante delicadas. . . Tanto que
o aba:dezinho - cujo ca:t:áter firme e resoluto já conhece­
mos - despediu-o cortêsmente.
Para angustiar ainda mais o jovem estudante, concor­
riam os apertos financeiros. E deverá responder ao pai,
35
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desejoso que o filho visitasse certo tio residente em
Melegnano, pequena localidade da província: "Mas com
que irei? Nada tenho; falta-me tudo: - meias, barrete,
colête, botas, chapéu e esporas". Com todo o respeito devi­
do a quem tanto amava, não pôde eximir-se de lamentar-se
pela lentidão com que lhe chegava o necessário para viver:
"Desejaria que Vossa Senhoria enviasse finalmente o di­
nheiro com mais rapidez, pois é uma vergonha para uma
pessoa da minha condição ser obrigado a levar um manto
sob a peliça, como fui constrangido a fazê-lo nesses dias".
Ouvindo dizer que, por motivos econômicos, ser:á colocado
em pensão, escreve: "Parece-me que no próximo ano de­
verei viver em pensão. Pensai no crédito que derivará para
vós e para mim". Respeitoso sim, mas explícito. E acima de
tudo, cheio daquela dignidade que sempre o acompanhará,
até nos momentos do mais total abandono de sua personali­
dade humana na grande doação a Deus através do amor
aos homens.
A pobreza afligia-o não tanto por si mesma, quan­
to pela má figura que representava o pai. Possuía êlc
quatro camas com dois pares de lençóis para si e três para
os criados. E os cobertores, para defender-se do frio e da
umidade, não eram senão três.
Tais apertos acabaram por prejudicar-lhe a saúde. Com
efeito, sobreveio-lhe violenta gripe acompanhada de enxa­
quecas agudas, obrigando-o a suspender os estudos por vá­
rios dias. Essa indisposição molestá-lo-á durante a vida intei­
ra. A luta contra a necessidade torna-se para o jovem aba­
de realmente espasmódica. Todos exigem dinheiro. O nôvo
diretor da casa, o sacerdote Lotário, humilha-o continua­
mente, afirmando que em qualquer moradia nobre os
criados recebem boa remuneração, afora nos Borromeus.
A dona da casa reclama pelos aluguéis vencidos. E, como
conseqüência, há expulsões e desavenças. Os servos, osten­
tando vestes rôtas, repetem sempre a mesma antífona -
na casa de um Borromeu não se deve andar em andrajos.
Quem, porém, vestia trapos, e quase diàriamente, era êle
mesmo, o pequeno abade.
O porquê da recusa por parte dos familiares a tantos
pedidos e súplicas pecuniárias de Carlos não é bem escla­
recido. E' preciso crer que navegassem em ,águas deveras

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turvas para opor tão obstinado silêncio às freqüentes e ma­
çantes queixas do filho. E, de outra parte, o "muito honrado
senhor irmão Frederico" não tem escrúpulos no uso do di­
nheiro, e suas dívidas são tantas que Carlos, já cardeal, de­
verá satisfazer com seu dinheiro os numerosos credores
do irmão.
Em 1557, contudo, diante da economia paterna, tão
grande que já se convertia em avareza - defeito de fa­
mília, que o futuro santo terá de lutar até a morte para
extirpar, - Carlos explode: "Conforme o cálculo do senhor
Túlio, feito do modo mais rigoroso, e sem lembrar que tudo
encareceu, tínhamos decidido que devia eu receber duzen­
tos escudos no princípio do ano escolar - setembro ou ou­
tubro - e outros duzentos entre o Natal e o Carnaval. Vos­
s& Senhoria pode ficar certo de que não tenho a intenção de
dar-lhe o menor desgôsto; considerando, porém, a que pon­
to estão os fatos, queira ao menos desculpar-me ... "
Ocasião chegou em que pareceu ter sobrevindo em sua
casa a mais intrincada confusão. Todos julgavam-se no di­
reito de mandar. O Padre Lotário, violento e grosseiro, dis­
cutia diàriamente com a cozinheira por causa da alimenta­
ção que, segundo êle, além de intragável, era indigna de sua
condição. Outro criado, de nome Francisco, em quem não
se sabia se fôsse maior a fanfarrice ou a ignorância, criti­
cava tudo e todos. E comprazia-se em divulgar, ingênua e
tôlamente, as dificuldades e disputas dos membros da
companhia, principalmente do jovem conde. Certo dia, o
Padre Lotário e Francisco não se contentaram com simples
palavras. . . e a polícia foi obrigada a intervir.
Em vista dos embaraços de tôda a hora, escrevia para
casa o pobre estudante: "Suplico-vos, amado pai, de con­
siderar minha situação e de enviar alguém que seja inte­
ligente e que faça valer sua autoridade. Pedro, apesar de
ancião, nesse ponto nada vale! » Assim se exprime êsse ra­
paz que três anos depois será Cardeal e Secretário de Estado!
O sentido da autorida9e é nêle já vivo; a seus olhos o
débil e abúlico é criatura infeliz, nascida para infelicidade
própria e alheia e tudo já nos faz prever que, se tiver al­
gum dia postos de comando, saberá aproveitá-los.

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6.
EXCOMUNGADO.

Pelas cartas escritas de 1554 a 1557, deduz-se que o uni­


versitário de Pavia passava longos períodos de férias em
Milão e Arona. Em Pavia, Carlos levava vida bastante re­
tirada; recebia, é verdade, cortêsmente as visitas das auto­
ridades locais e dos estudantes nobres e as retribuía, mas
não ansiava por elas. Vestia hábitos eclesiásticos e não gos­
tava de participar em jogos e divertimentos mundanos. A
balbúcie punha-o em plano de inferioridade em relação aos
demais, impedindo-o de participar ativamente nos debates
e discussões públicas.
Estava longe de ser estudante brilhante; como Santo
Tomás, era considerado boi mudo e tratado, quase por to­
dos, de mesquinho, enfadonho e carola. Um amigo, com
quem costumava pescar freqüentemente, escreveu a seu res­
peito mais tarde: "O Conde Frederico e eu divertíamo-nos
freqüentes vêzes a sua custa com brincadeiras um tanto
grosseiras; Carlos, o mais que fazia era retirar-se para re­
citar o ofício e rezar o têrço". V,árias pessoas, porém, conse­
guiram entrever os verdadeiros méritos de Carlos; entre
elas encontrava-se Alciatino, que se esforçou para que o
aluno predileto concluísse bem e cedo os estudos.
A Universidade de Pavia era uma das nove fundadas
na Itália pelo imperador Lotário, neto de Carlos Magno, em
825. O primeiro Reitor, o douto irlandês Dugal, acabou os
dias no famoso mosteiro de Bóbbio, nos Apeninos. Dissol­
vida durante a Idade Média, foi reconstruída pelos dois ir­
mãos Visconti, Bernabó e Galeazzo, em 1361. Restabelece­
ram-se as cátedras de teologia e jurisprudência, que foram
ricamente dotadas. Fundou-se também uma biblioteca, com­
pleta em quase todos os ramos do saber de então, para
atender às necessidades dos universitários. Ainda que não
tenha alcançado a fama e a importância das demais escolas
superiores da Itália, estava, contudo, sempre repleta de alu­
nos. Também não brilhava por novidades de estudo e ca­
minhava - defeit<;> de tôdas as universidades do mundo -
vagarosa em confronto com a vida pública e privada, fiel
a um conformismo científico e didático já superado. Em
38
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todo o caso, os cursos desenvolviam-se regulares, e todos os
alunos de boa vontade aproveitavam otimamente.
Os seis anos passados em Pavia não foram para Carlos
isentos de episódios não muito rotineiros. Três anos antes,
o pai nomeara-o chefe da administração de Arona, e se
transportara, com a nova espôsa Aurélia Vistorini, para
o palácio de Milão. E, segundo todos os biógrafos, o ra­
paz revelou-se gerente correto e sagaz. Interessou-se pelas
cultivações, principalmente pelas videiras, que forneciam
generosos vinhos brancos e tintos. Autorizou os soldados da
guarnição a trabalhar por conta própria em terras da forta­
leza. E como os seis soldados italianos e os seis alemães
encarregados da guarda noturna tremessem de frio nas gé­
lidas noites alpinas, forneceu-lhes lenha para se aquecerem.
No outono de 1554 viviam em Arona, sob a administração
de Carlos, nada menos de quinze pessoas, excluindo a guar­
nição. Nesse número estavam incluídas a irmã Ortência,
nascida das segundas núpcias do Conde Gilberto, e a ama.
Carlos, recordando Margarida, amava a madrasta, envian­
do-lhe assiduamente pequenos regalos acompanhados de bi­
lhetes afetuosos.
Quando o jovem administrador se encontrava ausente
do castelo, as coisas mudavam sensivelmente de tom; era
necessária sua presença firme e inteligente para que os bens
aronenses frutificassem. Abandonava então as pandectas,
o digesto e o direito canônico, e dirigia-se à cidade natal -
e logo tudo melhorava.
Perguntar-se-á talvez: mas como podia tão hábil admi­
nistrador estar sempre em apertos financeiros? A resposta
é simples: administrar na casa dos Borromeus - como em
tôdas as moradias nobres do tempo - não significava pos­
suir dinheiro. As rendas eram entregues ao chefe da famí­
lia, que repartia e pagava ... quando sobrava dinheiro.
O ambiente de Pavia não agradava a Carlos. Desgosta­
va-o tanto a cidade como o meio estudantil. Sua modera­
ção e compostura de ânimo, aliadas a certa lentidão, eram
tidas como inferioridade e retardamento intelectual. E assim,
poucos o amavam e muitos o desprezavam. Tudo isso con­
corria para o desamor de Carlos à permanência na Univer­
sidade. Apesar disso, tendo recebido do tio Cardeal, ao aca­
bar os estudos, as abadias de Romagnano e de Clavenzano,

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e lembrando os perigos e dificuldades dos estudantes aban­
donados a si mesmos, projetou o que se tornou realidade
em sua primeira estada em Roma, - o Colégio Borromeu,
instituto destinado a recolher os jovens desejosos de unir,
na prática da vida, a ciência e a virtude.
Foi também em Pavia que Carlos recebeu um dos
maiores sustos de sua vida . .Já havia mais de um ano -
estamos ainda em 1554 - que iniciara o estudo do direito
civil. Encontrando-se certa vez em Arona, ouviu de rigoroso
pregador a notícia de que incorrera na excomunhão e, o que
era pior, reservada ao Sumo Pontífice. Com tão triste nova,
por pouco que não perdeu a cabeça. O pai se encontrava au­
sente e, além de não contar com ninguém em quem apoiar­
se, devia partir imediatamente para Pavia. Certamente ho­
mem algum compreendeu sua dor, vendo-o apresentar-se
na universidade com o indesej.ável título de excomungado.
Mas de que se tratava enfim? De antiga disposição do Papa
Alexandre III que proibia aos eclesiásticos - e Carlos era
abade - o estudo do direito civil, sem expressa autoriza­
ção; era uma norma obsoleta, que havia muito caíra
em desuso e da qual ninguém j,á se importava. Chegando
a Pavia, alguns religiosos o tranqüilizaram, rindo-se do seu
temor exagerado. Carlos, porém, recorreu sem demora ao
pai, suplicando que lhe providenciasse a devida licença.
Em julho de 1558, penúltimo ano de sua permanência
em Pavia, soube que o Cardeal Médicis se dirigia a Milão
a fim de prestar homenagem ao nôvo governador espanhol.
Escreveu imediatamente ao pai, comunicando-lhe que viria
à capital, caso não recebesse ordens contrárias. Foi essa a
última carta ao Conde Gilberto.
Apenas chegado, foi chamado ao leito de um moribundo.
Gilberto morreu no dia 28 de julho, com somente 47 anos,
depois de breve doença. Foi sepultado na igreja de Santa
Maria Podone, um dos três templos mais antigos dedicados
a Maria Santíssima: Santa Maria Fulcorina, fundado por
certo Fulcoriano no ano 1000; Santa Maria Podone, erigido
por Verulfo Podone, soldado longobardo, em 871, e refor­
mado pelos Borromeus; e Santa Maria da Porta, assim no­
meado por estar situado perto da antiga Porta Vercelina.
Na igreja de Santa Maria Podone existia belo sepulcro da
família, onde repousavam, em quatro urnas de mármore,

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os corpos dos avós, João e Cléofas, de Lanciloto e da espô­
sa Lúcia, e de Margarida, mãe de Carlos. Os despojos mor­
tais do Conde Gilberto foram colocados sob o pavimento,
conforme o desejo expresso pelo filho.
A morte do pai significou para o segundogênito aumen­
to de encargos e responsabilidades. Frederico não quis sa­
ber de administração nenhuma, e delegou o irmão como
único responsável de tudo. Primeiro ato do nôvo senhor da
família Borromeu foi bater-se pelo domínio da fortaleza
de Arona. E' que, havendo-se iniciado novamente as hostili­
dades entre a França e a Espanha, o governador, descon­
fiando da garantia oferecida pelos dois jovens, ocupara o
castelo, confiando-o a um capitão espanhol. Essas circuns­
tâncias demostraram no futuro diplomata do Vaticano ha­
bilidade incomum nas negociações com as autoridades es­
panholas; enquanto isso, o irmão permanecia no castelo, si­
lencioso e desinteressado.
Carlos, num vaivém contínuo entre o governador e o
grande conselheiro, procura defender a posição de Frede­
rico. Não se contenta com as promessas vagas dos dois altos
funcionários; insiste para que sejam informados do que se
passa, o duque de Alba e o rei. Ao mesmo tempo deve lutar
contra os próprios parentes; contra o tio Francisco, agasta­
díço e obstinado, e contra o irmão, impetuoso e ousado, que
promete mandar ao diabo, a qualquer momento, todo o pu­
dente trabalho do irmão, com suas ações intempestivas e
nmeaças ... que, felizmente, não passavam de palavras. Por
fim, parece que as coisas estão chegando a bom têrmo e a
próxima vinda do tio purpurado leva a crer que desapa­
reçam tôdas as dificuldades. Eis, porém, que os inimigos
do Papa Paulo IV espalham aos quatro ventos a notícia da
morte do Pontífice. O Cardeal Médicis deixa o caminho de
Milão, e se dirige velozmente para Roma. A morte do Papa,
contudo, não era senão grave doença. Mas os cardeais, en­
contrando-se todos reunidos na capital do Cristianismo, re­
solvem permanecer . . . esperançosos de iminente conclave.
O duque de Alba, por iniciativa própria, resolve livrar­
se de Frederico; Carlos, então, toma uma decisão fulmínea.
Frederico deverá comparêcer, em companhia do tio César,
à presença do governador que, no momento, se encontrava
em Asti: "Trata-se - diz Carlos com autoridade - da hon-
41
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ra e do interêsse de tôda a família; no que concerne a Fre­
-derico, êle obedecerá em tudo as vossas ordens". Tem-se
.a impr�ssão que, mais que o tio Francisco, esteja o sobrinho
Carlos a dar tais ordens. Os resultados, contudo, não foram
satisfatórios. A questão prolongou-se até o Natal de 1559,
quando da eleição do tio, sob o nome de Pio IV. Pouco de­
pois da coroação, realizada no dia 6 de janeiro de 1560, a
fortaleza foi entregue aos Borromeus, a 13 do mesmo mês.
Em todos êsses esforços de sutis e intricadas indaga­
ções jurídicas, tomadas de posições autoritárias, direitos
feudais e régios, Carlos, obrigado a empenhar-se, jovem
como era, em árduas dificuldades de homens e de ambiente,
e impulsionado - não se deve negá-lo - pelo orgulho da
família, agiu com prudência e energia superiores ao que
sua idade comportava.

7.
LAGRIMAS DE UM SANTO

No fim de 1559 conseguiu Carlos laurear-se. A cerimô­


nia foi celebrada na aula magna da universidade, exata­
mente no tempo em que os cardeais, em conclave, proce­
diam à laboriosa substituição de Paulo IV. Conforme a
narração de Bascapé, tratou-se simplesmente de uma fun­
ção a mais das tantas que se celebravam: "No quinto ano
de seus estudos, doutorou-se em ambas as leis, em Pavia,
por obra de Francisco Alciati, que, graças a seu aluno, foi
mais tarde elevado ao cardinalato". E é tudo.
Pedro Giussano, ao invés, é sempre mais prolixo nos
particulares: "Foi numerosa e extraordinária a afluência
dos togados, cavalheiros e soldados, e grande o aplauso e a
festa da cidade, demonstran_do todos particular alegria pela
sua promoção. Aconteceu também que, no ato de doutora­
mento, estando o ·céu todo nublado e· escuro, ao dar João
Francisco Alciati, milanês e primeiro reitor daquele esta-
42
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belecimento, início à oração do momento, tornou-se a aula
repentinamente luminosa e clara, aparecendo improviso e
brilhante raio de sol. O orador, qual divino pressago do fu­
turo, aproveitou o acontecido para predizer que deveriam
resplandecer no mundo as santas e gloriosas emprêsas do
laureado; e falou assim em público das grandezas que real­
mente fulgiram nêle um dia. A essas palavras do Alciati,
juntaram-se muitas outras dos presentes, tôdas elas afir­
mando que o môço seria grande na Igreja de Deus".
Entre a descrição sóbria e precisa de Bascapé e a apo­
logética de Giussano, preferimos de muito a primeira; a
veracidade, contudo, de ter o sol rasgado as nuvens no mo­
mento em que Francisco Alciati pronunciava o panegírico
do nôvo laureando, no-la assegura outra testemunha ocular,
Simeão Bossi. E' êle também quem nos atesta terem-se
afeiçoado imensamente os contemporâneos e colegas a Car­
los, que a todos se impusera pela perseverança e bondade de
car:áter e pela gentileza de ânimo, aliadas à firmeza de
que dera provas pouco tempo antes.
Com efeito, antes de concluir os estudos, tão freqüen­
temente interrompidos pelas questões que surgiam a cada
passo, Carlos empreendera outro cometimento bem mais
árduo do que combater as prerrogativas dos grandes e asse­
gurar os próprios bens. Fôra o de reconduzir ao primiti­
vo fervor os beneditinos de Arona.
Viviam todos êles em escandalosa moleza e esquecidos
completamente das próprias obrigações religiosas. Carlos
falou-lhes severamente, mostrando-lhes os prejuízos e os
males de seu procedimento. Como era de se esperar, as
censuras de um abade de vinte anos e distante não foram
tomadas a sério. Os frades não sabiam quem fôsse aquêle
jovem e de que metal era forjada sua têmpera. O cardeal
tomou as mais enérgicas providências, tanto no fôro civil
como no eclesiástico, sem jamais transpor - como aliás
aconteceu sempre, excetuando-se uma que outra vez - os
limites da própria autoridade. E assim mais uma vez, e
dessa para sempre, tendq despojado dos galhos secos e de­
feituosos a árvore, em si robusta e sã, conseguiu tornar a
abadia de Arona, de vergonha para a região, modelar
em tudo.
43
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Outra manifestação de seu caráter forte e constante
foi a maneira usada pa'ra curar-se de obstinada tosse que
lhe rompia cabeça e pulmões, parecendo a todos atacado
pela tuberculose. Melhorou em pouco tempo mediante rigo­
rosíssima sobriedade no comer, de tal forma que ainda
hoje um provérbio milanês chama a fome: "remédio de
São Carlos".
Foi precisamente poucas semanas antes de seu douto­
ramento que se verificou para São Carlos um daqueles fatos
que são como que o som longínquo de fanfarra augurai.
Um daqueles fatos que rompem todos os projetos feitos, que
fazem desaparecer tôdas as decisões, para tomar uma so­
mente, tão definitiva quanto improvisa. Depois de quatro
meses de tempestuoso conclave, subia à cátedra de Pedro o
tio materno João Angelo Médicis. Se o advento de Pio IV
foi fortuna para a Igreja, para o sobrinho significou o en­
caminhar-se límpido e imperioso à meta que havia muito
tempo luzia por entre as névoas e tempestades daquele que é
lembrado como o período mais fascinante e calamitoso da
história eclesiástica.
Na cabeça do jovem levita tomava vulto a idéia de
que era preciso fazer algo para reformar a Igreja. Reforma!
A palavra ecoava familiar e agradável a seus ouvidos.
Muitos outros a pronunciavam também, com vago sentido
de que alguma coisa tivesse que mudar, mas sem saber bem
qual fôsse e sem ter a firme vontade de traduzi-la em ato.
Aos vinte e um anos, Carlos observava, indignado, o relaxa­
mento dos costumes e a ignorância e imoralidade de muitos
padres e religiosos. Algumas vêzes, cavalgando de Pavia
a Milão, ou de Milão a Arona, encontrava êsses religiosos,
abades e sacerdotes, vestindo luxuosos hábitos leigos, com
a espada ao lado e a pistola à cintura. Descia da sela e
entrava nas igrejas abandonadas à mais completa miséria,
prestes a desmoronar, com os vasos sagrados e os paramen­
tos sujos e repletos de pó e de traças.
As moradias dessas pessoas chamada s por Cristo a ser
"o sal da terra e a luz do mundo" eram geralmente dirigi­
das pelas concubinas. Muitos sacerdotes tinham-se esquecido
de tal forma das próprias funções, que desconheciam com­
pJetamente as fórmulas da confissão e da absolvição. Não é
de se estranhar, portanto, que a freqüência dos sacramentos
44
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tivesse caído de moda e que muitos, principalmente os po•
bres e humildes, não soubessem não somente o Pai-Nosso
e a Ave-Maria, mas nem o Sinal-da-Cruz.
Em suas visitas à catedral, via Carlos, ao longe, perto
do altar, os cônegos a cantarem casualmente, cansados e
aborrecidos, o ofício divino; ao mesmo tempo percebia,
perto da porta de entrada, rumôres de animadas disputas
dé mercado público; num canto, cochichos amorosos de
cópias clandestinas; e, às vêzes, no centro da nave central,
dois embriagados que proferiam palavrões e blasfêmias.
E se assim iam as coisas na sé, tanto pior nos demais tem­
plos dos bairros pobres e povoados ao excesso! Adaptavam­
se, e muito bem, ao comércio, aos espetáculos teatrais, às
dansas e aos banquetes. E tratando-se de igrejas dos luga­
rejos do interior, quantas vêzes não as usavam para malhar
o trigo ao reparo dos raios ardentes do sol! Os dias de pre­
ceito somente eram para mercados, contratos, feiras, or­
gias e bebedeiras. Homens ébrios zombavam dos sacramentos,
pretendendo confessar-se naquele deplor.ável estado, ou, mas­
carados, roubavam as ofertas, fingindo oferecer a própria.
Jamais como naqueles tempos foram verdadeiras as pala­
vras indignadas de Jesus contra os vendilhões do templo:
"A casa de meu Pai é lugar de oração; vós, porém, a tor­
nastes covil de ladrões".
Em Milão acompanhava.se o conclave com muito inte•
rêsse e grandes mexericos. Certamente, se recebesse a tiara
um Papa lombardo, teria tido fim a ausência quase secular
do arcebispo; mimoseou-se o sobrinho do papável com tôda
a sorte de afabilidades e gentilezas. . . tendo em vista um
futuro talvez mais risonho. As esperanças e as desilusões
alternavam-se à chegada de notícias de Roma. A vitória
parecia, no m1c10, certa ao Cardeal Médicis, por ser susten•
tado pelo Duque Cósimo de Médicis, seu homônimo. Em
seguida chegou a vez do nominalmente arcebispo de Mi­
lão e continua:rpente ausente da cidade, Hipólito d'Este,
apresentado pela França. A família dos potentes e ambicio­
sos Carafas queria a todo o custo o candidato espanhol. En­
quanto isso, as semanas passavam e a fumaça preta con­
tinuava a subir sôbre a colina do Vaticano.
O Pontífice Carafa, Paulo IV, descera ao túmulo puro
e incorrupto; mas os cinco anos de govêrno da Igreja tinham•
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lhe granjeado muitos inimigos, principalmente pelo arden­
te desejo de expulsar da Itália os dominadores estrangei­
ros e pela resoluta energia com que iniciara a Reforma.
"O Papa - escreveu, um dia, o embaixador da República
de Florença - é homem de aço, e as pedras que toca es­
guicham fagulhas geradoras de incêndio". Sabe-se, ao in­
vés, como findou seu pontificado. Traído pela França, pô­
de o duque de Alba chegar com as tropas às portas de Ro­
ma, e a Espanha venceu fàcilmente em São Quintino. O
pior foi que bem poucos compreenderam sua pureza de in­
tenção e quanto amor à Igreja escondesse sob aquelas ma­
neiras rudes e sem cumprimentos. E, na hora da morte, o
populacho deixou-se levar por manifestações inconcebíveis
de alegria e de rebelião. "Depois de ter aberto as prisões, -
falava o bispo de Angouleme - acabou de incendiar a casa
da Inquisição. Dizem que os romanos estão agora no Capi­
tólio a lançar por terra a estátua do Papa. . . e creio que
durante a noite tais atos continuarão".
De fato, não se contentou com tamanhas vilezas a
maldade popular; pois a plebe é sempre plebe, em qualquer
lugar em que se encontre e em qualquer nação a que pertença.
E no convento de Minerva, ameaçado também pela fúria dos
selvagens civilizados, foi visto chorar, durante todo o tempo de
completas, um sacerdote ordinàriamente arguto, compas­
sivo e brincalhão - São Filipe Néri, aflito diante da auto­
ridade papal tão ultrajada.

8.
PIO IV

única compensação a tanta ingratidão era o nôvo Pon­


tífice, que deveria ser, qual Médicis o descrevia, parafrasean­
do a si mesmo: "Um Papa doce e afável, bom colega com
os cardeais, agradável nas audiências e que auxilie a quem
se encontra em necessidade". Pode-se pensar que o car­
deal, por aquelas qualidades intrínsecas que possuía, jul-

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gasse ser fàcilmente eleito. Ao invés, acontece completa­
mente o contr.ário; é que a diplomacia conseguiu influir nos.
votantes, jogando-os de um lado para outro, e depois de
dois meses de grandes discussões achou-se melhor suspen­
der o conclave até o ano seguinte.
Os enviados florentinos, porém, conseguiram que a
idéia não conquistasse adeptos, e assim, quando na manhã
de Natal o obstinado Afonso Carafa foi conquistado pelo
duque Cósimo, estabeleceu-se a eleição para o dia 26; mas,
momentos depois, para que não surgissem outras surprêsas,
foi decidido realizá-la imediatamente. Assim, ainda de noi­
te, tendo-se acordado os cardeais, conduziu-se João Angelo
à capela; foi ali obrigado a sentar-se no trono, com grande
alegria dos presentes. Os próprios cardeais doentes deixa­
ro.m o leito para render homenagem ao nôvo Papà. Uma
das primeiras declarações do pontífice referiu-se ao nome:
"Vocabor Pius - Serei chamado Pio, porque é minha in­
tenção ser o que o nome significa".
Nas festas da coroação, as funções da basílica de São
Pedro foram acompanhadas de tais clamores da multidão,
que, conforme refere Pastor, "ouviam-se somente os tiros
de canhão desfechados para solenizar o acontecimento".
A aglomeração foi tanta, a ponto de quarenta pessoas mor­
rerem na confusão geral. E pensar que Pio IV manifestara
o desejo de reduzir ao mínimo as pompas e distribuir aos
pobres as sobras!
João Angelo fôra elevado ao trono pontifício para ope­
rar precisamente o contrário do antecessor. "E dava es­
peranças a tanto, - diz-nos Franceschini; o próprio as­
pecto físico; o rosto benigno e sereno; o colorido róseo de
suas faces; a barba grisalha; os dois olhos vivos e inteli­
gentes; a conversação tôda a saltog, e as respostas prontas
e impacientes, sem jamais dar sinal de cansaço; pouco to­
lerante, porém, com opiniões contrárias às próprias, apesar
de nunca afastar-se da afabilidade e dos bons modos. Ama­
va o movimento, a boa mesa, e. comprazia-se das palestras
com literatos, artistas e. . . bufões. Os longos anos de expe­
riência adquirida ao contacto, algumas vêzes penoso, com
homens de ambiente diverso, tinham-lhe desenvolvido finís­
simo sentido político; abstinha-se de contrastes e litígios en­
tre os potentes do mundo, e ainda que distante da santidade

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do sucessor Pio V, era, afinal, puro de costumes e equili­
brado de caráter":
A ascensão de Pio IV ao sólio de Pedro levava consigo
o problema do nepotismo, numeroso e ávido de cargos e hon­
ras. "Os sobrinhos e outros parentes do Papa - escrevia
o representante de Módena no dia seguinte ao da coroação,
7 de janeiro - multiplicam-se diàriamente, provindos de
tôdas as partes, principalmente de Milão e da Alemanha".
Querendo enumerá-los, superavam a casa dos vinte. Cinco
eram os filhos da irmã do Pontífice: Clara, esoôsa de Teo­
dorico Van Hohenems, nobre guerreiro que pirticipara de
muitas batalhas sob a bandeira do Império; cinco eram os
Serbelloni; e, em seguida, havia tôda a família dos
Borromeus.
Deixemos, porém, todos êsses mendigos opulentos, es­
cravos da cobiça que aumentava em proporção das honras
e riquezas recebidas, e v.olvamo-nos a Carlos, o único pa­
rente a deixar na história da Igreja, da família e da huma­
nidade, lembrança indelével e gloriosa. Os dois filhos de
Margarida, Frederico e Carlos, eram os prediletos de Pio IV;
o primeiro encontrava-se já em Roma nas cerimônias da
coroação; e Carlos foi chamado expressamente, logo de­
pois da eleição.
Em Milão a alegria tomou conta de todos os habitantes.
Os sinos bimbalharam entusiástica e ininterruptamente o
dia inteiro. Nobres e comerciantes rivalizavam em congra­
tular os sobrinhos. O pátio, as escadarias e as salas do pa­
lácio Borromeu foram ocupadas por pessoas que pela pri­
meira vez visitavam aquêles lugares e que nem por isso
deixavam de ostentar familiaridade e desenvolturas sur­
preendentes. Frederico, seguido de numerosa comitiva de
nobres lombardos, partill velozmente para o sul, a fim de
chegar a tempo para a coroação.
Carlos permaneceu sozinho no palácio deserto. Havia
muita coisa a que pôr ordem e, ademais, não sentia nenhum
desejo de correr para Roma com a turba ululante, sequiosa
de riquezas e de honras. Entendera- que estava aberta tam­
bém para êle a porta do mundo, com tôdas as belezas reser­
vadas aos que o dominam. . . econômicamente; sentia, con­
tudo, grande necessidade de recolhimento e de pertencer-se
antes de lançar-se no sorvedouro.

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No dia 3 de janeiro anuncia ao conde Guido Dai Verme
sua ida à Cidade Eterna: "Recebo nesse momento um men­
sageiro de Sua Santidade; parto para Roma, onde desejo
beijar os pés do Papa e colocar-me a sua disposição. A pre­
sente tem por fim pedir a Vossa Senhoria, sempre que se
apresente a ocasião, queira utilizar-se de mim e de meu ir­
mão. Pode estar certo de que nc;>s encontrará sempre dispostos
a servir não somente ao senhor, como também a seus filhos".
O orgulho e o prestígio da família reaparecem repen­
tinamente. Sigamos, mediante as cartas chegadas até nós,
o afortunado jovem em sua viagem romana. Na trapa de
Lódi escreve ao mesmo conde: "Envio-vos esta carta para
pedir que façais pintar, quanto antes e da melhor maneira,
os brasões da família Borromeu - o freio, o "humilitas", o
unicórnio e ·o camelo . . . Se não fôr possível deix•á-los pron­
tos para a partida de Pedro, que acompanhará Serbelloni,
enviai-os a todo custo esta noite ou amanhã bem cedo".
Seguem outras recomendações: "Dizei à senhora Camila que
seria oportuno mandar preparar pelas monjas dois ou qua­
tro roquetes brancos e finíssimos; e tudo o mais depressa
possível".
Na cidade de 1mola expede mais uma missiva: "Parti
de Milão com a intenção de dar freqüentes notícias da via­
gem; e, graças a Deus, cumpri a promessa até Lódi; mas
a sorte quis que colocasse todos os propósitos milaneses
num saco... que, desgraçadamente, caiu no Pó, durante a
travessia. Apenas chegado ao pôrto, vi-me entre tantas
festas e alegrias, que esqueci tudo o que prometera". Tra­
jeto venturoso e, para um jovem de 20 anos, repleto de
sensações.
Em quase todos os lugares, envia criados para informar
aos amigos do que acontece; ri-se da queda do intendente
Lancellotto que, perto de Castelgüelfo, foi acometido de fe­
hre pertinaz. "Não pela queda, mas pelo susto!" - comen­
ta Carlos argutamente. Receia ladrões e salteadores. Em
Placência o duque tratou-o como príncipe, e em Bolonha,
todos, de um momento para outro, tornaram-se seus ami­
gos íntimos ... , e os parentes então multiplicaram-se de tal
maneira, que o próprio Carlos ficou surpreendido.
"Hoje demorei-me na cidade para atender aos novos
afins e para gozar dos triunfos que me foram tributados;
Vida de S. Carlos - 4 49
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não avancei, por isso, muito. Desejo-vos a todos, êsses pas­
seios acompanhados de almoços e músicas que nunca mais
se esquecem. . . exceto a condução que é verdadeiro mar­
tírio. A recepção de Bolonha impressionou-me muito; quan­
tas senhoras nobres e belas estavam às janelas. " E o
irmão conde João Batista, a pensar que ali se encontras­
sem por causa dêle. . . Carlos conclui com gostosa risada:
"Creio que, se fôsse o corpo de um santo, - pouco falta,
aliás - as multidões não demonstrariam tanto interêsse
como o revelaram por mim ... "
Desde a Epifania, o boletim informativo de Roma O
Avisador anunciava a sua vinda: "Aguarda-se, de Milão,
o Abade Borromeu, sobrinho de Sua Santidade, e o senhor
Serbelloni, parente também, chamados logo depois da elei­
ção". O dia da chegada de Carlos, porém, não nos é conhe­
cido; a 13 de janeiro o periódico anuncia que Carlos já
fôra nomeado protonotário e referendário; e "corre voz
que será feito cardeal quanto antes, e, a seguir, arcebispo
de Milão".

9.
A ESCALADA DA GLúRIA

Os primeiros contactos do ardente jovem patrício com


o mundo romano são-lhe decididamente favoráveis. Após
percorrer quatrocentas milhas - o que naqueles tempos
era realmente aventura ousada! - encontra o tio, Papa, e
o irmão Frederico em suntuoso palácio, onde também iria
morar como príncipe do Renascimento, cercado por luxo
e pompas de grande dignitário pontifício. Finalmente, adeus
apertos econômicos de pequeno proprietário de pobre aba­
dia! Pio IV, que nomeara, já no dia da solene coroação,
Frederico Borromeu chefe supremo das fôrças papais, cui­
dara generosamente da administração doméstica dos dois
irmãos, tomando sôbre si as despesas e gastos da família

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e de todos os lombardo s que desejassem residir com os
sobrinhos.
Foi uma verdadeira fortuna para os numerosos clientes.
Duzentos servos trajaram de prêto da cabeça aos pés; é
preciso, porém, convir que, para cozinheiros e estalajadei­
ros, a divisa não era lá muito bem escolhida . . . Camilo Bor­
romeu exercia as funções de mordomo; caudatário era Ce­
ruto, arcipreste de Arona; e, ademais, deviam ser preenchi­
das as vagas de mestres de casa, secretários, capelães, des­
penseiros, cantineiros, ecônomos, pajens, cozinheiros e pa­
lafreneiros.
Os bons Gilberto e Margarida ter-se-iam certamente em­
baraçado no meio de tanta gente, habituados como estavam
à pequena côrte de vinte pessoas e à guarnição de oitenta
soldados. Cavalos de corrida, potros para sela e asnos da
melhor qualidade abarrotavam as cocheiras, apesar de Car­
los, fiel aos velhos amigos de quatro pernas, ter mandado
vir de Milão a cavalgadura particular. O Cardeal Farnese,
que se elegera por conta própria protetor mundano dos
dois lombardos, presenteara ao futuro santo, conhecido por
todos como Conde-Abade, a melhor carroça e os cavalos mais
pujantes, cedendo-lhe também os hábeis cocheiros. Bem
cedo, cardeais e dignitários eclesiásticos, príncipes e nobres
começaram a cortejar o "sol nascente", e os melhores artis­
tas de Roma enviaram-lhe tapêtes, bronzes de valor, mó­
veis dourados e marchetados, e quadros, destacando-se en­
tre êstes últimos, vários de Benvenuto Cellini.
Apesar de viver em tanta abundância, Bascapé nos re­
fere "que sua base financeira estava ainda ameaçada: Car­
los escreveu ao administrador do palácio milanês ordenan­
do-lhe que cortasse com todos os gastos inúteis; é que as
três mil coroas destinadas à viagem se tinham diluído como
neblina matinal. O estipêndio do Conde Gilberto, coman­
dante de Arona, diferia-se ao infinito, e Frederico, capitão
das milícias da Igreja havia já tempo, não recebera re­
muneração alguma".
Inicia, no entanto, a carreira das dignidades, o cursw;
honorum dos romanos. Nomeado protonotário apostólico
no dia da chegada, encontramos eco destas glórias em car­
ta ao Conde Guido: "Nosso senhor, o Papa, concedeu-me
três abadias no valor de doze mil escudos; situam-se, porém,

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muito longe; espero ter, dentro de um mês, algo mais
vizinho".
Talvez aludisse à arquidiocese de Milão, para a qual
já fôra designado administrador, em consequência da re­
núncia de Hipólito D'Este. Na verdade, quem ocupara o
cargo até o momento não podia exercer as obrigações epis­
copais, pois lhe faltava o caráter sacerdotal. .. No meio de
tanta beleza e esplendor, podia bem afirmar - como gosta­
va de repetir nos últimos anos da vida - que "Deus o ti­
nha conduzido a si, não por meio de adversidades, mas
pela fortuna, ensinando-lhe a desprezar os bens terrenos".
No dia 13 de janeiro foi nomeado cardeal e, no fim do mês,
consagrado em companhia do filho do Duque Cósimo João
de Médicis, e do primo João Antônio Serbelloni. Seu título
era "cardeal-diácono dos santos Vito e Modesto", cuja ren­
da - é êle quem no-lo diz - "não vai além de poucas cen­
tenas de coroas, por estar realmente em decadência".
As concessões a Carlos continuaram em ritmo acele­
rado; no dia 27 recebeu a missão diplomática entre Bolonha
e Romanha; em meados de outubro obteve a abadia de
Nonântola, e para poder mais dignamente suprir as des­
pesas da própria posição, adquiriu a pensão de mil escudos
de ouro da cúria episcopal de Ferrara. A chuva da riqueza
e das honras não parou aqui. O nôvo cardeal foi designado
Secretário do Papa, e tôdas as instruções e ordens dêle
emanadas deviam ser consideradas como provindas do pró­
prio Pontífice. A seguir, ei-lo, Grande Penitenciário, Prote­
tor de Portugal, da Alemanha, dos Cantões católicos da Suí­
ça, dos Franciscanos, dos Carmelitas, dos Humilhados', e
de outros que procuravam sua poderosa valia.
O jovem Cardeal está satisfeito, mas não perde a ca­
beça. O admirável equilíbrio interior que o guiará e será sua
fôrça nas gravíssimas incumbências, que lhe serão reservadas
.no futuro, manifestou-se prodigioso naqueles primeiros con­
tactos com a faustosa vida romana que começava a brilhar.
Ocupava-se pessoalmente de mil pequenas coisas e, às crí­
ticas dos invejosos, que não deixavam de ter certa razão,
respondia: "Não convém preocupar-se com as apreciações
de pessoas ocupadas única e constantemente em inventar
1) Ordem religiosa, cuja história, santidade e dores de cabeça
.causadas a Carlos conheceremos mais adiante (N. do Tr.).

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novidades. Basta realizar honestamente as próprias obriga­
ções, e depois deixar que cada um diga o que melhor lhe
aprouver!"
Apesar dessa fácil escalada para a glória e a fama mun­
dana, a vida não lhe era nenhum mar de rosas. Sem lem­
brar os aborrecimentos causados pelas más línguas, des­
gostosas com a parcialidade de Pio IV, - salientando-se
principalmente os sobrinhos alemães que, apesar de nomea­
dos condes pelo imperador, atraíam sôbre si os risos e as
zombarias de todos pelas maneiras desajeitadas, e não ha­
viam sido muito bem sucedidos na repartição familiar das
honras, - Frederico fazia crer que tudo corresse de bem
a melhor, mas Carlos não partilhava da mesma opinião.
"Minha saúde é excelente, - escrevia - malgrado as
fadigas intermináveis; pois não é 1á divertimento atraente
levantar às duas e deitar às seis ou às sete!" Na capital
italiana contavam-se as horas a começar das seis da tarde;
o que significava levantar-se às cinco ou seis da manhã e
ir para a cama depois da meia-noite. Em resposta a um pe­
dido do Conde Guido que lhe recomendava certo jovem de
Milão, Carlos retrucava: "Vir para Roma! �le não sabe o que
significa Roma. Adoeceria dentro de quinze dias. Dois ou
três de meus servos já estão doentes por não poderem re­
sistir às enormes fadigas".
O Pontífice, ativo e enérgico, gostava de ver em seu
redor muito trabalho e muitos fatos. Residia preferivelmen­
te no Castelo Santo Angelo ou no Palácio de São Marcos;
madrugador incansável, erguia-se antes do amanhecer e
caminhava por duas ou três horas seguidas para conter a
corpulência que ameaçava tornar-se excessiva. Nos outros
momentos do dia despachava importantes questões de estado.
E, naturalmente, um Papa tão laborioso, submetia seus
colaboradores diretos a trabalhos e esforços extraordinários.
Carlos e Galli, secretário da Chancelaria, ocupavam-se
das cartas e mensagens pontifícias; deviam adaptar a res­
postas diplomáticas os períodos duros e concisos do Pas­
tor da Cristandade. A maior parte do dia, porém, passava
com o tio, que - sempre conforme os invejosos - nada
fazia sem antes consultá�lo. Mas como não confiar em jo­
vem tão diligent� e sagaz? Por outro lado, sabia Carlos o
que julgavam os romanos dos estrangeiros, e portanto dêle
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também - embusteiros, ignorantes e intrusos. Esforçou-se
também para livrar-se da balbuciência; e como o remédio
é falar muito e publicamente, instituiu as "Noites Vatica­
nas", academias destinadas a desenvolver nos numerosos
presentes a arte oratória. Discutia-se um pouco de tudo, e
seu prestígio chegou a tanto, que era verdadeiro privilégio
ser nelas admitido.
Entre os acadêmicos encontravam-se dois membros do
Sagrado Colégio, oito ou dez futuros cardeais, destacando­
se Hugo Boncomp.agni, que chegará ao papado com o no­
me de Gregório XIII, e os melhores estilistas e arqueólogos
de Roma. "Declamam-se cinco ou seis discursos em latim,
- narra-nos o fundador e presidente - e eu me esforço
para responder na mesma língua. . . o que devo fazer de
improviso, ignorando precedentemente qual ser.á o assun­
to". O exercício e a perseverança tiraram-lhe o grave defei­
to que, em pouco tempo, desapareceu quase completamente.

10.
SURPRESAS DA SANTIDADE

O humilde filho de Arona terá sempre em alto concei­


tc, a posição social e eclesiástica a que fôra elevada a fa­
mília Borromeu pelo tio; e no dia em que vem a saber
que certo Dionísio Borromeu está para submeter a filha a
matrimônio pouco honroso, suplica imediatamente ao Conde
Guido que impeça isto, oferecendo-se êle próprio para aju­
dar o pai, que se acha em condições econômicas precárias.
A preocupação que lhe domina constantemente o co­
ração é que os parentes realizem casamentos ilustres e ren­
dosos. E para passar das palavras aos fatos, é preciso
começar por esposar convenientemente Frederico, a fim de
que a linhagem de Gilberto não sofra deturpações. E con­
siderando que o primogênito devia receber o govêrno de
Arona e, em seguida, ser enviado à côrte de Madri, con­
vinha que os desposórios se realizassem imediatamente. Me-
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diante hábeis negociações pôde-se combinar o noivado com
Virgínia della Róvere, filha do Duque de Urbino, e provável
herdeira do estado de Camerino.
No dia 5 de maio de 1560, nos aposentos de Carlos e na
presença do Cardeal de Urbino, delegado da espôsa, foi
firmado o contrato das núpcias; e quatro dias depois, Fre­
derico partiu para Pesaro, onde deveria celebrar o enlace
matrimonial. Mas ... em meio de tanto esplendor de pro­
jetos, uma grave desilusão: o estado de Camerino jamais
pertenceria à neo-condêssa Borromeu.
Os contratos matrimoniais do Cardeal Borromeu pros­
seguiam com diligência e bastante sucesso. Desde o dia 18
de março daquele ano, anunciara secretamente ao Conde
Guido o consórcio da irmã Camila com César Gonzaga,
Duque de Malfetta e Guastalla. O enlace fôra concluído com
a condição de tornar Francisco Gonzaga, irmão de César,
membro do Colégio Cardinalício. Eis o que escreveu a res­
peito o Secretário de Estado: "Faremos também nós todo
o possível no que compete ao senhor Francisco, e espero
que o Papa realize logo os seus e meus desejos, inclinado
como é a não recusar nada aos amigos". O consistório, po­
rém, não se realizou por ocasião de Pentecostes, e Francisco
começou a dar mostras de impaciência e irritação; Carlos es­
creveu-lhe referindo as palavras do pontífice: "E' sempre
Pentecostes para criar cardeais".
Os desponsórios dos dois irmãos alegraram e consola­
ram muito o futuro santo: "Devemos agradecer a Deus
por ter-nos concedido amizades tão sólidas e nobres. Vós,
agora, - dirige-se ainda ao Conde Guido - devereis re­
ceber muitos personagens; é preciso ter sempre a casa bem
apresentável e aumentar o pessoal de serviço". Apesar das
inúmeras preocupações da Secretaria de Estado, encontra
tempo para pensar nos preparativos; nem se esquece de
mandar bordar nos tapêtes os brasões do palácio de Milão
e de fazer vir o vinho das adegas de Arona. Quando é
assegurado o casamento do irmão com Virgínia de Urbino,
exclama satisfeito: "Deus. nos concedeu a maior de tôdas
m; graças - permitiu a um Papa, já ancião, elevar à po­
sição tão elevada nossa família, e isso no espaço de quatro
meses, e sem lesar os direitos de ninguém".

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As núpcias celebraram-se no verão, - Frederico em Ur­
bino e Camila em Milão; Carlos pede ao tio Francisco que
acompanhe Virgínia para Mântua e Urbino, e depois ve­
nham todos ver a Cidade Eterna. "Será uma bela ocasião
para beijar os pés de Sua Santidade e visitar Loreto. Insis­
ti muito para que se resolvam a comparecer, porque desejo
gozar de sua presença durante o inverno, e principalmente
no carnaval que se aproxima; faremos o possível para que
não se arrependam da vinda. Dizei-lhes que se apresentem
sem falta; encontrarão companhia alegre e inesquecível com
todos aquêles que nesse período visitam Roma. Não farão
despesa alguma e terão aqui ótimas pessoas para servi-los".
Que diferença de sentimentos nas cartas que poucos
anos após escreverá de Milão flagelada pela peste!
Principesco foi o ingresso em Roma da espôsa de Fre­
derico; haviam-lhe preparado no palácio Belvedere apar­
tamentos dignos de rainha. Precederam-na, com entradas
triunfais também, no dia 4 de novembro, o Duque de Urbi­
no; no dia 6, com grande solenidade e acompanhado de
cardeais, o Duque de Florença e, logo a seguir, a mulher
<le Cósimo Eleonor de Toledo.
Finalmente, no dia 8 de dezembro, entre esplêndidas
alas de cardeais, príncipes e damas, apareceu, solene e im­
ponente, Virgínia Borromeu della Róvere, montada em ca­
valo branco, e tendo na cabeça um barrete de pedras pre­
ciosas; cavalgavam a seu lado - coisa inaudita senão para
rainhas e imperatrizes - dois cardeais, Júlio de Urbino e
Carlos Borromeu. Ao almôço estavam presentes nada menos
de quatorze cardeais, não faltando, durante a tarde e a
noite, danças, músicas e. . . alegria.
Nós, leitores modernos, acostumados a considerar em
conjunto a santidade de Carlos, como resultado da vida
prodigiosa e tôda entregue à caridade, ao bem da Igreja
e ao maravilhoso apostolado realizado na segunda parte
de sua breve, mas admirável vida, ficamos, de início, sur­
presos e cépticos diante de tal comêço de vida fervorosa.
Não devemos esquecer, contudo, que o Cardeal-Secretário
desenvolvia a prµneira parte de sua ação em pleno século
XVI e, ademais, na côrte romana, que não podia absoluta­
mente ser inferior às demais no prestígio e na glória; e se

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assim não fôsse, prejudicar-se-ia a fama externa da Igreja
e conseqüentemente - dado o pensar do tempo - a interna.
A Igreja devia afirmar-se por tôdas as maneiras e
impor-se seguindo os tempos e os métodos; era natural, por
isso, que um sobrinho do Papa, príncipe da Igreja e alto
funcionário do Estado pontifício estivesse em nível superior
a qualquer pessoa importante da época. Quando, porém,
fôr necessário ser pobre com os pobres e primeiro no dom
total de si mesmo aos outros, Carlos Borromeu excederá a
todos no espírito de sacrifício e na virtude.
O Cardeal Bascapé observa, com o habitual candor, mas
também com não menos veracidade: "Apesar de Carlos ma­
nifestar desprêzo pelas coisas do mundo, deixava ver cla­
ramente o anseio de bem colocar as próprias irmãs".
Assenta, em seguida, o enlace matrimonial de Jerôni­
ma com Jesualdo, Duque de Venosa, a realizar-se no dia 16
de maio de 1562. Curioso, senão escandaloso, é o que sugere
a respeito da educação da noiva êsse cardeal com pouco
mais de vinte anos: "Quisera que se tivesse o máximo cuida­
do para que nossa irmã adquira os hábitos elegantes do
mundo e abandone as maneiras contraídas no convento".
Franceschi, aprimorado biógrafo do nosso santo, escreve
a respeito: "Não é nenhum cumprimento ou louvor aos co­
légios dirigidos por religiosas, ainda mais se lembrarmos
que a afirmação provém do Secretário de Estado da Igreja;
com isso, porém, Carlos quer significar que não deixa de
prezar a educação conventual no que concerne à formação
mental e espiritual da menina; tanto é verdade, que no lu­
gar deixado por Jerônima, entrega às monjas a maninha
Ortênsia. Com precisa visão do ambiente de distinção que
aguarda a jovem espôsa, sabe qual fascinação acrescenta
à sólida virtude de senhora cristã a graça senhoril, que
tanto enobrece e embeleza".
Um manuscrito urbinense descreve os esponsais como
esplêndidos e soienes: "Estiveram presentes ao banquete
doze cardeais, todos os embaixadores e numerosas matro­
nas romanas; o convívio foi magnífico e acompanhado de
belíssimas sinfonias".
A série dos matrimônios continua. Narra-nos o cerimo­
niário pontifício: "No dia 9 de julho de 1562 o Papa cedeu
como espôsa Ana sua sobrinha, irmã do Cardeal Borromeu,
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a Fabrício, primogênito do Ilustríssimo Marco Antônio Co­
lonna. O dote foi de 40.000 ducados, com a promessa de con­
firmar o supradito Ilustríssimo Marco Antônio no estado e
no domínio de Palliano". E' um momento verdadeiramente
venturoso para o jovem Borromeu que não pôde deixar
de exclamar: "A alegria que me inunda a alma é infinita!"
Não julguemos, todavia, que todos êsses cuidados mun­
danos, afazeres de Estado e preocupações que lhe provinham
dos vários ofícios que ocupava, o impedissem de prosseguir
os estudos, necessários para receber as sagradas ordens e
assim ocupar um dia o arcebispado milanês, objeto cons­
tante de seus sonhos e desejos. Desde dezembro de 1560,
quando as festas matrimoniais de Virgínia estavam no auge,
preparava-se para o sacerdócio.
O embaixador de Veneza refere: "Pretendia agradecer
ao Reverendíssimo Borromeu; encontrei-o ainda na capela,
preocupado em aprender o ofício de diácono; é que pela
manhã, tendo Sua Santidade celebrado a missa, havia co­
mungado e recebido a ordem".
Se aquêles que o viram cavalgar ao lado da futura
cunhada, seguido por um cortejo de nobres e cavalheiros,
no meio do rufar dos tambores e do toque de clarins, tivessem
visto nêle somente o sobrinho predileto do poderoso Pontí­
fice, desejoso unicamente da glória efêmera que oferecem
os sucessos do mundo, teriam caído no mais grave êrro.
Um futuro bastante próximo ter-se-ia encarregado de de­
monstrar quem haveria de ser o mundano orguliioso
<le então.

11.
TRABALHOS E MAIS TRABALHOS

Os romanos habituaram-se a ver passear pelas ruas da


Cidade Eterna um grupo que se tornou quase familiar. O
obeso Papa bonachão e, ao lado, o jovem cardeal, sempre
apuradamente barbeado, face pálida - pois, como os do-

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mésticos comentavam entre si, concedia pouco tempo à
alimentação e ao sono, - olhos vivos e castanhos-escuros,
e o nariz característico dos Borromeus.
Além da Ponte Santo Angelo, percorriam verdadeiro
labirinto de vielas sujas e mal cheirosas. Com limitada es­
colta de soldados, transpunham o suntuoso Palácio Farnese,
obra de Miguel Angelo, o palá , cio da Chancelaria, de es­
plêndida fachada clássica, habitação de Alexandre Farnese,
e a construção sinistra do Palácio Chigi, banqueiro senense,
colecionador de objetos artísticos, considerado o mais rico
de Roma. E, por fim, chegando ao Latrão, principiavam
as fadigas do intrépido trabalhador.
Distinguido por privilégios e encargos desde a chegada
a Roma, via crescerem dia a dia as ocupações e labutas e,
conseqüentemente, os dissabores. A título de curiosidade, ve­
jamos o elenco, incompleto aliás, das canseiras que lhe pro­
vinham das diversas incumbências. Além de Secretário de
Estado, o que equivalia a fainas idênticas, senão superiores
às do próprio Papa, administrava as abadias de Arona,
Móggio, Follina, Colle e Regno; o Palácio de Milão; as pen­
sões de Toledo e de Ferrara; as delegações de Bolonha e
de Ravena; o govêrno de Espoleto; a comenda de Nonântola,
e as quatro galeras da Espanha, herdadas por ocasião da
morte de Frederico.
Apesar de lhe ter o Pontífice concedido quatro auxilia­
res, o trabalho era realmente excessivo. Protonotário, de­
via dirigir todo o colégio de chanceleres pontifícios encarre­
gados de escrever e autenticar os atos da Santa Sé; refe­
rendário, era obrigado a controlar afazeres de tôda espécie
e as súplicas dirigidas ao Santo Padre. E, enfim, os inúmeros
aborrecimentos derivados do govêrno do Estado e da dire­
ção da Secretaria privada, ofício delicadíssimo, porque por
êle passava tôda a correspondência papal, que não era de
pouca monta.
Grande número de ordens religiosas haviam solicitado
e obtido do poderoso sobrinho a assistência de cardeal pro­
tetor. "Todo o povo romano - relata-nos um familiar de
Carlos, em 1560 - e tôdas as cidades do Estado Pontifício
disputam-no como patrono junto ao Papa. E êle, ansiando
ardentemente satisfazer a todos, vive de tal modo ocupado,
que quase não lhe resta tempo para comer e dormir. Por

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isso, os ajudantes, aborrecidos e preocupados, temem que,
não podendo continuar no teor de vida abraçado, adoeça
gravemente, e, pior ainda, sejam licenciados ... " E conti­
nua insistindo na "paciência incrível com que resiste ao
cansaço, sem aborrecer-se entre as dores e contratempos
da vida, o fastio das audiências, as fadigas dos estudos e
os intermináveis despachos". E' que desde aquêles dias o
espírito devia dominar absoluto sôbre a carne.
Eis, porém, que se apresenta a ocupação mais grave -
a reabertura do Concílio de Trento. Por êsse motivo, o Papa
alivia-o de alguns encargos: "Domingo passado - adver­
te-nos O Avisador no dia 31 de janeiro de 1562, - Sua San­
tidade incumbiu Dom Paulo Odescalco de assistir às au­
diências; permanece em companhia do Santo Padre a pre­
senciar as solenes recepções e são-lhe remetidas agora tô­
das as questões; dêste modo, o Cardeal Borromeu não terá
mais certas mágoas e contrariedades que há tempo o
molestam".
Continuava ainda, contudo, a passar por suas mãos qua­
se tôda a correspondência diplomática, o que implicava vi­
gilante cuidado sôbre questões de política externa e de as­
suntos eclesiásticos; chegavam-lhe igualmente freqüentes
pedidos de graça para delinqüentes condenados e recomen.a
dações para empregos honrosos e rendosos; emanavam dêle
assustadores e reiterados decretos contra bandidos e contendas
que pululavam em tôda parte. Não nos podemos furtar a
relatar uma das tantas incumbências - algumas também
jocosas! - que lhe eram apresentadas continuamente.
Um dia, certo Simão Sáurolo envia-lhe longo protesto
contra o que chama a "vergonhosa nudez", do Juízo Univer­
sal de Miguel Angelo. O latim, apesar de clássico e sonoro,
não esconde a ira do intemerato moralista: "O pio e sagra­
do zêlo do Santo Padre, nosso senhor, e de todo o Sacro
Colégio, e as ordens de vosso domínio, levam-me a recordar­
vos que devemos contemplar com ódio santíssimo a pintura
do juízo final na capela de Sua Santidade, onde é ofendida
a Divina Majestade, pois os quadros prejudicam tanto os
bons costumes que ... " E Carlos responde, bondoso e se­
reno, acalmando as iras do defensor da modéstia pictóri­
ca. .. e deixando as coisas como estavam. Em outra ocasião
deve retrucar às solicitações do Duque de Florença: "Vossas

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recordações em favor de Gaspar Bianchi foram eficazes;
mudou-se-lhe o cárcere, passando do Castelo para São Pe­
dro in viculis; j,á é muito, sendo a primeira vez". E assim
diàriamente.
Apesar de tantos trabalhos, não esquece a amada Lom­
bardia. E' dêsse tempo o cumprimento do voto feito na ju­
ventude atribulada e aplicada aos estudos - a fundação
do Colégio Borromeu em Pavia. A Universidade de Bolonha
deve em grande parte a êle se foi reconstruída ab imis fun­
damentis e dotada de todos os privilégios antigos; numero­
sas foram também as obras públicas de Roma que tiveram
no prelado lombardo-piemontês o promotor mais inflamado,
tanto que um contemporâneo exclamou com ênfase pró­
pria do tempo: "Nos tempos antigos, teriam colocado en­
tre os deuses o Papa e seu legado!" Deve-se-lhe também a
idéia de criar o cartório particular da Secretaria de Estado,
que se manifestou utilíssimo quando Pio VI fundou. o ar­
quivo central do Vaticano.
Volvendo novamente à célebre Academia das "Noites
Vaticanas", podemos afirmar que nos primeiros tempos a
orientação foi quase exclusivamente filosófica e literária;
em diversos cursos levados a cabo, tratou-se das Orações
de Cícero, das Décadas de Tito Lívio, das Geórgicas de Vir­
gílio, e chegou-se até a apresentar tragédias e comédias.
O Cardeal Bascapé conta-nos que Carlos obteve de tais ses­
sões não poucos benefícios: "Assimilou os preceitos morais,
a arte da dicção e superou os impedimentos naturais reve­
lados no escrever; tinha também o defeito de pronunciar,
por excessiva celeridade, os conceitos mutilados e as mes­
mas palavras, imperfeitas e truncadas".
O próprio favorecido o reconheceu quando, em 1565,
na viagem à sede arquiepiscopal, recordava com simpatia
os serões acadêmicos: "Diàriamente recitam-se diante de
mim cinco ou seis alocuções em latim, às quais procuro
responder na bela língua de Cícero ..• Vejo agora quanto
proveito consegui dos alegres debates da academia, porque
aquêles exercícios, feitos como divertimento, servem-me ho­
je muitíssimo". E Bascapé acrescenta: "Devendo, certo dia,
confutar uma sentença dos estóicos, sentiu por êles certa
atração, principalmente pelo zêlo manifestado em refrear
as paixões e adquirir a perfeita moderação de ânimo; e

61
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era visto muitas vêzes com as obras de Epicteto nas mãos
a observar com atenção os ensinamentos contidos".
Sôbre os estóicos falara-se demoradamente nas "Noites
Vaticanas". Subsistirão elas durante a presença de Carlos
em Roma. Quando de sua partida para Milão, a 1 9 de setem­
bro de 1565, a Academia realizou sua última sessão no dia
14 do mesmo mês e fechou a seguir, definitivamente as por­
tas, faltando-lhe quem a sustentara até então com o exemplo
e com o entusiasmo. "As práticas da ilustre sociedade civiJ
- diz ainda Bascapé - e os estudos de eloqüência foram
ornados por Carlos de tom espiritual; pensava desde en­
tão, creio eu, de governar irrepreensivelmente a grei e
apascentá-la com o alimento de prédicas substanciosas"
E' o momento de notar também, se quisermos ter o
retrato mais completo possível do que era Carlos nos tem­
pos de sua permanência entre os altos cargos romanos.
que jamais as más línguas daquela cidade moveram qual­
quer gracejo ou repreensão sôbre sua vida moral. O em­
baixador de Veneza, Soranzo, escreve: "E' o cardeal, de
vida inocentíssima; pode-se afirmar, pelo que se sabe, que
seja limpo de tôda a mancha". Conhecemos quanto eram
diligentes e precisos os emissários vênetos em suas mensa­
gens ao doge; devemos, por isso, aceitar de olhos fechados
o juízo do legado de Veneza na côrte vaticana. Tanto mais
que, podendo maliciar sôbre os prelados, os venezianos eram
insuperáveis na arte.
Doutra parte, os cortesãos não conseguiam compreender
-- julgando do modo pelo qual concebiam e atuavam a vida,
entre dissipações e dissoluções - como um jovem cumula­
do de todos os favores pelo Pontífice, passasse a vida in­
teira entre audiências, alfarrábios e academias, e não va­
lorizasse em nada as oportunidades que · o circundavam e
a fortuna de quem parecia ser o pupilo.

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12.
O DEMôNIO E A MORTE

Tentações de soberba e de ambição teve-as também


Carlos; e vimos que nem sempre soube resistir, principal­
mente se lembrarmos quanto trabalhou para a glória mun­
dana da própria família. E igualmente contra a castidade,
êle que mais tarde será batalhador incansável contra as
fraquezas eclesiásticas, suportou duas acerbíssimas provas.
A primeira ocorreu em sua terra natal, Arona; quem no-la
n·fere é Giussano; sempre prolixo e bastante antiquado .
"Enquanto êsse religioso jovem, repleto de santos pen­
samentos, estava ocupado no govêrno das coisas familiares
em Arona, o inimigo da humana geração, que muito lhe
odiava a bondade e particularmente a castidade, por êle
tanto amada e protegida, julgou ser então tempo muito
oportuno para desviá-lo do reto caminho e fazê-lo cair nos
erros em que a incauta juventude fàcilmente se precipita.
Livre, ainda jovem, dos vínculos da obediência paterna e
senhor muito rico, podia fàcilmente, se quisesse, entregar-se
a qualquer espécie de prazeres e deleites, não lhe faltando
possibilidades e comodidades para tanto; e não teria sido
nenhum escândalo, dada a corrupção daqueles míseros tem­
pos; não era julgado, com efeito, desconveniente tomar um
jovem os prazeres e passatempos que pretendesse; em tal
ambiente e em tais ocasiões, aproveitou o demônio para
lançar a Carlos, muito astutamente, suas insidiosas rêdes.
"Mas como o devoto abade não freqüentasse muitas
amizades e cuidasse de nunca ofender a Deus, achou melhor
o maligno enganador oferecer-lhe ocasião de pecar secre­
tamente. Sugeriu, portanto, a alguém de sua própria casa,
de muitíssima autoridade, aliás, - a quem desagradava aquê­
le gênero de vida tão retirada, desejando que vivesse com
maneiras e conversas cavalheirescas, - que lhe conduzisse,
às escondidas, no quarto de dormir, uma graciosa jovem,
em hora adequada para pecar. O casto jovem, contudo, que
levava sempre no coração -o pensamento de Deus, amedron­
tou-se na presença da tentadora, vendo-se tão perto do pre­
cipício. E, como diante de asquerosa serpente, fugiu sem

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demora do aposento, lembrado de que o melhor modo de
vencer o vício carnal é evitar as ocasiões.
"Desprezou-o, então, quem chamara a iníqua mulher;
qualificou-o homem inerte e de nenhum valor, chegando
aos mais grosseiros insultos; denominou-lhe a virtude fra­
queza e estupidez; Carlos suportava tais mentiras e inde­
licadezas, refletindo na superioridade do temor de Deus
às vãs e falazes palavras dos homens mundanos".
A segunda tentação alcançou-o quando j,á Cardeal e
Secretário de Estado. E em pleno esplendor de um castelo
romano, após as alegrias de suntuoso festim. Deixamos tam­
bém aqui a palavra à florida prosa de quem nos narrou o
episódio anterior. O estilo continua empolgante e áulico.
"Vivem ainda hoje graves testemunhas que foram seus
familiares nesse tempo. Contam êles, como algo maravilho­
so, o fato que lhe aconteceu ao ser convidado por importan­
tt senhor romano, seu parente, a visitar-lhe a casa de cam­
po, distante de Roma algumas milhas, e situada em lugar
aprazível e belo. Ansiava o príncipe por apartá-lo do reto
caminho; e para melhor consegui-lo, além de tornar a sala
de jantar e o quarto do hóspede verdadeiros encantos, trouxe
de Roma, às ocultas, formosa e conhecida cortesã. Escon­
deu-a num aposento do palácio até a hora do repouso no­
turno, quando ordenou que ingressasse no apartamento
cardinalício por via secreta. Trajada com as mais precio­
sas vestes, calma e sorridente, entrou no quarto onde se
encontrava Carlos. Era costume da época - tanto estavam
corrompidos os cristãos! - oferecer tal prova de amizade
a pessoas elevadas e a quem se desejava honrar.
"Aproximou-se lentamente e usou de tôdas as próprias
qualidades e artifícios para levá-lo ao pecado. O Cardeal
Borromeu, porém, diante de tamanha iniqüidade planeja­
da contra si, e horrorizado ante o mal a que era incitado,
nem sequer se dignou dizer uma palavra à insolente mu­
lher; correu à porta do quarto e chamou em alta voz os
camareiros, queixando-se profundamente do que acontecera.
Fingindo ignorar a trama, ingressaram e expulsaram ime­
diatamente a tentadora. Pouco repouso teve naquela noite
o Cardeal, aborrecido ante a malvadez humana; e como
protesto contra o príncipe, partiu do palácio três horas an­
tes do amanhecer, sem despedir-se de ninguém. Queria que

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compreendessem quanta mágoa lhe tinham causado por
tê-lo colocado na ocasião de ofender a Deus e de manchar
a cândida pureza de sua alma".
Essas as duas tentativas do demônio a sua incorruptível
pureza. Desta maneira cingira os rins da fortaleza que não
finda e podia, íntegro, levantar-se mais tarde diante da cor­
rupção como castigador implacável; não, porém, contra a
fraqueza humana, que o encontrava sempre pai inefável, e
sim contra o vício, que desejava extirpar a todo o custo.
Com isso não queremos dizer que fôsse estranho ao modo de
viver da côrte a que pertencia e dos tempos em que se en­
contrava. Recebia, prazenteiro, freqüentes e preciosos dons
e praticava atividades que nem sempre estavam de acôrdo
com a disciplina eclesiástica. Amava a pesca e a caça. "Ago­
ra que Vossa Senhoria anda caçando - escreve a Dom
Delfino - e com possibilidades de conseguir cachorros que
sejam realmente bons para os nossos campos, peço-lhe que
me consiga algum e o envie quanto antes; recorde-se que
prefiro particularmente os cães de caça grossa".
Nem se pode negar que se achasse bem entre tantas
alegrias e comodidades. Tudo corria às mil maravilhas. Ca­
mila desposada com Gonzaga; Jerônima com o Príncipe
de Venoza; Ana com Fabrício Colonna; Frederico com Vir­
gínia della Róvere, e muito estimado por todos os nobres,
não tanto pelo valor nas armas ou na política, quanto pelo
fato de agradar ao Pontífice. Cósimo doara-lhe o magnífico
Palácio Altivíti e o Papa criara-o capitão geral de suas mi­
lícias. Filipe II, nomeando-o Marquês Dória, parecia desejar
que o nome dos Borromeus se igualasse na fama às maiores
famílias italianas, como Farnese e Médicis.
Foi a Morte quem se encarregou de suspender repenti­
namente o entusiasta ascender aos píncaros da glória. No
dia 18 de novembro de 1562, o anúncio da concessão do mar­
quesado Dória a Frederico Borromeu chegava a um mo­
ribundo. Carlos dissera poucos dias antes, acenando à posi­
ção da própria família: "A alegria que experimento é in­
finita!" E agora, subitamente, depois de sete dias de febre
que não parecia grave, com somente vinte e sete anos, o
primogênito da casa Borromeu falecia sem nem sequer re­
ceber os sacramentos. Não deixava filhos. Grande a con­
fusão no Vaticano. O Papa, que visitara o enfêrmo pouco
Vida de S. Carlos - 5 65
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antes, ao saber da triste nova, exclamou: "A mão de Deus
me feriu!"
Se profunda dor demonstrou o Pontífice, muito maior
foi a aflição de Carlos. Pouco inclinado a dramatizar os
próprios sentimentos, soube conter o tumulto do coração
e esconder, sob composta melancolia, o comovente desabar
de tantos sonhos queridos. Certamente o tombar de uma ju­
ventude cálida de esperanças e realizações era lição da
Providência para o jovem irmão. Urna admoestação severa
a não dar às coisas do mundo um valor superior às tran­
sitórias e efêmeras possibilidades que realmente possuem.
Seu procurador César Speciano assegura tê-lo ouvido re­
petir vàrias vêzes: "A morte de Frederico sobreveio por
disposição divina a fim de que aprendesse a dizer sempre
mais adeus a tudo o que é caduco".
Seu coração de irmão sofria, sem dúvida, e no-lo fazem
entender muitas expressões contidas em várias cartas dessa
época. Dando a notícia a César Gonzaga, acrescenta: "Em
que situação me encontre, deixo que Vossa Excelência o
compreenda; faltam palavras para expressar-me!" E a Cri­
velli: "Estou completamente atordoado ante tamanha des­
graça. Portanto, não deve Vossa Senhoria maravilhar-se se
não lhe escrever freqüentemente".
Logo após a morte do irmão, eis a de João de Médicis,
que recebera com êle o chapéu cardinalício. "�sses dois gol­
pes - narra ao Duque Cósimo - seriam verdadeiramente
capazes de desorientar-me profundamente, se não fôsse mais
forte do que realmente sou".
Em tão acerbas aflições, abandonou-se totalmente nas
mãos de Deus. Talvez date dêsses amargos dias o início da
vida tôda feita de mortificação e renúncias que o tornarão
um dos grandes ascetas da Igreja. O cornêço de sua con­
versão nos é desconhecido; inimigo de manifestações exter­
nas, procurava esconder o que lhe passava na alma. Somen­
te um franciscano, chamado de Arona na mesma noite em
que faleceu Frederico, nos poderia descobrir algo do que
se verificou em Carlos. O bom frade aconselhou-o sàbiamen­
te sôbre o caminho que devia seguir. Cresciam, entretanto,
no Vaticano rumôres de que fôsse mais conveniente ao
Cardeal Borromeu abandonar a carreira sacerdotal e conti­
nuar a estirpe da família, interrompida pela morte do pri-

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mogênito. O futuro santo acabou com tôda essa conversa
inútil, pedindo ao Cardeal Cesi que lhe conferisse a ordena­
ção sacerdotal. "Agora casei-me com a espôsa que há tanto
tempo venho desejando e amando!" Foram essas as pala­
vras com que deu a notícia ao Papa.
Afirmou-se que o Papa não ficara lá muito contente
com o sucedido. Teria até repreendido severamente o so­
brinho. Giussano, contudo, não é do mesmo parecer: "Ao
invés, o Pontífice, que conhecia muito bem a firmeza de
propósito .de Carlos, no consistório do dia 3 de junho decla­
rou que a morte de Frederico havia, sim, concentrado tôdas
as esperanças no sobrinho, e que outros Pontífices o teriam
obrigado a regressar à vida secular; êle, porém, acrescen­
tara: "Nós, pelo contrário, entendemos que permaneça fiel
à vocação que deseja seguir".
Na festa da Assunção de Nossa Senhora, celebrava, ju­
biloso, a primeira missa, e escrevia à própria irmã Corona,
residente em Milão: "Rezei-a no dia da Assunção de Maria
Santíssima, na basílica de São Pedro, no altar da Confissão,
onde se encontram as relíquias dos dois gloriosos apóstolos
Pedro e Paulo. O lugar é assaz venerável e pio; experimen­
tei uma consolação tão grande, que não me sinto capaz de
exprimi-la. Praza a Deus que esta Santa Missa redunde na
salvação de minha alma e na glória da Divina Majestade".
O desejo do ardoroso celebrante deve ter sido acolhido
por Deus com agrado particular, ainda que nada de extraor­
dinário tenha sucedido naquele dia. O Papa, ao apresentar
o neo-sacerdote ao cardeal português Bartolomeu dos Már­
tires,' que gozava fama de homem austero e santo, disse­
lhe com o habitual tom facêto: "Eis um jovem que deixo
em vossas mãos; começai nêle a reforma da Igreja".

1) E' Frei Bartolomeu dos Mártires, sem dúvida nenhuma, um


dos prelados que deixaram vestigios indeléveis na história de Por­
tugal. Arcebispo de Braga, propugnou na própria diocese a restaura­
ção religiosa, por que batalhou no Condlio de Trento, onde, aliás,
se distinguiu como dos mais intrépidos reformistas. A exemplo de
São Carlos, d.e quem -era intimo amigo, deu a vida pelas ovelhas,
quando da terrível peste que assolou Portugal naquela época. É,
com razão, considerado uma -das glórias lidimas e maiores da nação
lusa e do movimento renovador que -dominou a Igreja em meados
de 1500 (N. do Tr.).

5• 67
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Teve, porém, como resposta do severo e virtuoso pre­
lado, que certamente não passava por adulador e cortejador:
"Se todos os cardeais se assemelhassem em santidade e pu­
reza de fé a êsse, o mais jovem dentre nós, não haveria
necessidade de fazer reforma alguma para a Igreja".

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PARTE II

A REFORMA DA IGREJA

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1.

TRENTO E O CONCtLIO

O assunto quase contínuo das longas conversas de Pio


IV com o Secretário de Estado versava sôbre a necessida­
de da reabertura do Concílio de Trento. Já lá iam quinze
anos que se inaugurara a primeira sessão, a 13 de dezem­
bro de 1545, sob a direção dos delegados enviados por Paulo
III, - o Cardeal Dei Monte, mais tarde Papa com o nome
de Júlio III, Cervino e Reginaldo Pole. Uma epidemia obri­
gara os Padres Conciliares a fugir; os italianos abrigaram­
se em Bolonha; os alemães, porém, não quiseram segui-los.
Em 1551 encetaram-se novamente os trabalhos na cidade
<le Trento, onde os bispos espanhóis e alemães esperaram
os italianos. Depois da décima sexta reunião, a ameaça ar­
inada de Maurício da Saxônia suspendera pela segunda vez
os debates. E o Papa Carafa não dera nenhum passo para
os continuar.
Torna-se oportuno esboçar aqui, ainda que bastante
sumàriamente, a história dêsse famoso concílio até a in­
tervenção do Cardeal Borromeu relativa à parte que lhe
foi destinada. Planejado por Paulo III em maio de 1537,
decretado para 19 de maio de 1538 em Vicência, adiado até
a Páscoa de 1539, e convocado, depois da falida tentativa
de Ratisbona, para o mês de maio de 1542 em Trento, cida­
de escolhida porque próxima das passagens alpinas e por
isso de mais fácil acesso aos prelados alemães. E após uma
última prorrogação, provocada pelo início de mais uma das
intermináveis guerras entre a França e a Espanha, no dia
71
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13 de dezembro de 1545 começava finalmente na catedral
românica de Trento aquêle que é tido como o mais impor­
tante concílio da história da Igreja. Estavam presentes, além
dos três legados papais, vinte e um bispos, cinco superiores
gerais de ordens religiosas, quarenta e dois teólogos e oito
juristas.
Fixada a denominação Sacrosancta Tridentina Synodus
e preterindo o universalem Ecclesiam repraesentantes, para
não melindrar os protestantes, deu-se início aos trabalhos.
As matérias eram apresentadas pelos legados romanos, es­
tudadas por teólogos e canonistas em reuniões preparató­
rias, discutidas pelos bispos nas três congregações gerais,
presididas cada uma por um legado pontifício, e, finalmen­
te, promulgadas nas sessões solenes, em forma de decretos
ou cânones.
Os votos eram dados por cabeça e, segundo o uso do
tempo, também por nação. Eram concedidos aos superiores
gerais das ordens, e negados aos procuradores dos bispos;
outorgados igualmente a cada grupo de três abades. Dis­
cutiu-se impetuosamente sôbre a ordem dos trabalhos. Al­
guns preferiam que se definissem primeiramente as dou­
trinas, e outros que se começasse com a reforma disciplinar.
Tomás Campégio, bispo de Feltre, propôs o desenvolvi­
mento simultâneo de ambas as matérias, e a proposta, re­
jeitada a princípio, foi finalmente aceita.
Assim transcorreram as primeiras sessões, tôdas exau­
ridas em questões marginais. Sobreviera, no entanto, a no­
tícia da morte de Lutero, falecido a 18 de fevereiro de 1546,
e chegou-se, sempre com assuntos acidentais, ao abril se­
guinte. Hoje nós avaliamos um dia, uma hora; no século
XVI era indiferente aguardar um bispo durante um ou
dois meses.
Resumamos ràpidamente os resultados obtidos até então
pelo Concílio:
l 9 Base da definição é o símbolo Niceno-Constantino­
politano.
29 Publicação do decreto sôbre as fontes da revelação:
Sagrada Escritura e Tradição.
39 Decreto sôbre a edição e o uso dos livros sagrados.
49 Proibição de explicar a Bíblia in rebus de fide et
moribus, contra eum sensum quem tenuit et tenet

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saneia mater Ecclesia aut etiam contra unanimem
consensum Patrum.
5 9 Decreto sôbre a existência do pecado original e de
sua extinção por meio do santo batismo. Os jesuítas
Laynes e Salmerón, teólogos do Papa, propugnavam
pela definição da Imaculada Conceição; não concor­
davam, contudo, os dominicanos; pareceu bem, por
isso, ao concílio declarar somente "não ser sua in­
tenção incluir no decreto sôbre o pecado original a
Bem-aventurada e Imaculada Virgem Maria, Mãe de
Deus".
6 Decreto a respeito do ensinamento do catecismo e
9

da obrigação dos bispos de pregar. Vieram, em se­


guida, o decreto De Iustificatione e a declaração dos
que são tidos, pela Igreja, como anátemas em maté­
ria de fé. E, por último, os decretos sôbre os sacra­
mentos, a ref ormatione e os deveres dos prelados.
Quando os trabalhos começaram a tomar ritmo bastan­
te acelerado, o concílio foi interrompido bruscamente. Os
príncipes da Liga de Smalkalde, que vociferavam contra
a "reunião papista de Trento", por êles definida "nem
ecumênica, nem livre, nem tampouco cristã", obstinavam-se
em não querer participar, exigindo um concílio semelhante
ao de Basiléia, sem intervenção e direção do Pontífice, em
cidade alemã e com direito ao voto tanto para os hereges
como para os leigos. O imperador obteve de Paulo Ili, co­
mo aliados, doze mil infantes e quinhentos cavaleiros sob
as ordens de Otávio Farnesc e, vitória inesperada, conquis­
tem para os católicos a Maurício da Saxônia. Conseguiu, as­
sim, vencer fàcilmente os rebeldes em novembro de 1546.
O concílio, porém, por razões políticas, continuou paralisado.
A morte de Paulo III e o longo conclave, que deveria
eleger como Papa o Cardeal Dei Monte com o nome de .Jú­
lio III, favoreceram sua suspensão. Reiniciaram-se os traba­
lhos a 19 de maio de 1551, na presença de Luís Lippômano,
bispo de Verona e dos legados papais. Poucos, porém, os
presentes - uns trinta. Principal culpado: o rei francês que
proibira a seus bispos obedecer ao convite do Santo Padre.
Trabalhou-se igualmente,ª e os resultados foram satisfató­
rios; promulgaram-se dois importantes decretos: De sanc­
tissimo Eucharistiae Sacramento, e De sanctis.�imi,s Poeni-
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tentiae et Extremae Unctionis sacramentis. O primeiro, em
oito capítulos e onze cânones, contra os erros de Lutero,
Zwinglio e Calvino que, porém, não são nomeados; o se­
gundo, em nove capítulos e onze cânones para a Penitên­
cia, em três capítulos e quatro cânones para a Extrema­
Unção.
Aos poucos iam chegando também teólogos protestantes;
vinham geralmente representar os príncipes que tinham
aderido à Reforma. Entre os principais, merece ser lembra­
do Melanchthon, certamente um dos mais importantes ini­
ciadores do movimento luterano.
E aparecia cada qual com pretensões novas e extrava­
gantes, como, por exemplo, a de recomeçar por completo
o concílio. O cúmulo da desgraça, contudo, foi a traição do
Eleitor da Saxônia, Maurício. 1l:ste, que se deixara conven­
cer por Carlos V, rei da Espanha e imperador da Alemanha,
mais tarde rompeu repentinamente em aberta rebelião. A
testa de vinte mil soldados e cinco mil cavaleiros, avançou
contra os imperiais, unido aos príncipes protestantes, e de
secreto acôrdo com Henrique II, rei da França. O concílio
se dispersará em 1552 e permanecerá fechado por quinze
anos. Quando se reunir para as últimas sessões, encontrará
o Luteranismo triunfante na Alemanha, o Calvinismo larga­
mente difundido na França, nos Países Baixos e na Escócia,
e consumada irremediàvelmente a apostasia na Inglaterra.
Nessas nações a Igreja tinha sido duramente castigada.
O concílio encontrava-se nesse pé, quando o Papa Pio
IV decidiu reiniciar os trabalhos. A grande maioria dos his­
toriadores está de acôrdo - salvo poucas exceções - em
atribuir o mérito da reabertura do concílio, e por isso mesmo
de sua conclusão, a Carlos Borromeu. Como o tenha conse­
guido, e através de quais dificuldades, é o que veremos a
seguir.

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2.
AS ARRANCADAS DO ASCENDER

Pio IV manifestara, desde 1560, ao embaixador impe­


rial sua intenção de reabrir o concílio e reconfirmara essa
decisão, firme e inabalável, na congregação dos cardeais,
no dia 4 de junho do mesmo ano. Como preparação, cons­
tituiu uma comissão de quatorze prelados com a finalidade
de discutir as reformas necessárias. Estabeleceu, em segui­
da, que o sobrinho, na qualidade de Secretário de Estado,
assistisse a tôdas as sessões e as presidisse. E êle mesmo
escreveu mais tarde: "Não nos contentamos somente com
frases belas e empolgantes; queremos fatos e não palavras".
Para recomeçar o concílio, era preciso, antes de mais nada,
superar intermináveis dificuldades com quase todos os po­
tentados.
Tornava-se necessário assegurar completamente o apoio
da França e da Espanha. Catarina de Médicis tornara-se
regente da França em nome do segundo filho Carlos IX,
que sucedera ao irmão Francisco II, em 1560. Era-lhe chan­
celer Hugo de l'Hôpital, favorável aos huguenotes. Propuse­
ra êle convocar um concílio nacional para chegar a um com­
promisso com os próprios protestantes. Carlos Borromeu
andava informado do que se passava nesse país, graças a
Hipólito d'Este, arcebispo nominal de Milão, mas que vi­
vera quase sempre na côrte francesa e conhecia, por isso,
af. intrigas e manhas da hábil e desleal Catarina de Médicis.
Quanto ao outro, o poderoso Filipe II, cauto, titubeante,
indeciso, temeroso de ofender a França e de anular o tra­
tado de Chateau-Chambrésis caso se mostrasse favorável
ao prosseguimento dos trabalhos conciliares, não se podia
saber com precisão em que águas pretendesse navegar. Fi­
nalmente, depois de muitas e intricadas tentativas, conse­
guiu-se obter os consentimentos desejados. Filipe, porém,
insistia em que os decretos das sessões anteriores fôssem
considerados empenhativos, ao passo que Catarina de Médi­
cis e o imperador não partilhavam da mesma opinião.
Somente no consistório de 15 de novembro o Papa pôde
anunciar que o concílio se reiniciaria novamente em Tren­
to. Proclamou um jubileu propiciatório e dirigiu-se em pro-

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c1ssao esplêndida e concorrida, da Basílica de São Pedro
para a igreja dominicana de Santa Maria Sopra Minerva.
Descalço, o Papa seguia entre cardeais, embaixadores e Cósi­
mo de Médicis, que caminhava entre o filho João e Carlos
Borromeu. Pelo fim de novembro, enviaram-se a todos os
príncipes católicos cópias da bula que anunciava a rea­
bertura do concílio para a Páscoa de 1561.
Muitos pensam ter sido quase milagrosa a ação diplo­
mática desenvolvida por um jovem de vinte e dois anos,
que de política internacional pouco ou nada entendia. Na
verdade, a inteligência demonstrada por êsse rapaz é de­
veras prodigiosa. E o trabalho apenas começara ...
Foi preciso mandar anúncios a todos os países da Euro­
pa; e geralmente era o Cardeal Borromeu quem recebia as
recusas e insultos que tencionavam dirigir-se -muito mais ao
alto. E' curioso ler os conselhos que êsse prelado quase im­
berbe dava, por exemplo ao bispo de Terracina, enviado da
Espanha e Portugal: "Seja prudente e tenha contrôle sôbre
si mesmo; seja gentil e simpático e nunca contrarie a nin­
guém", E quem era assim avisado, além de avançado em
anos, possuía caráter assaz pronto e fogoso.
Façamos aqui um parêntese para ressaltar a austeridade
de vida de Carlos. Muito de sua nova atitude deve-a ao con­
tacto com os jesuítas, especialmente com o Padre Ribeira
que, pelo cargo de Procurador Geral da Companhia de .Je­
sus, encontrava freqüentemente ocasião de tratar com o
Cardeal-Secretário de Estado para afazeres de ofício.
Certa vez, o Padre Ribeira, esperando ser recebido em
audiência pelo Cardeal Borromeu, encontrou-se na sala de
espera com tantas personagens, que se viu obrigado a per­
manecer de pé durante longo tempo, até que um dos cama­
reiros falasse com o Secretário de Estado, suplicando-lhe
que ouvisse, ao menos por um minuto, o superior dos jesuítas.
Eis como narra o fato um antigo documento do Vaticano:
"Ouvindo o pedido enquanto lavava as mãos para pôr-se à
mesa, ordenou que fôsse introduzido imediatamente; entre­
tanto, o Padre Ribeira, ao perceber a mesa posta e o Cardeal
pronto para almoçar, pronunciou pausadamente estas pou­
cas palavras: "Monsenhor Ilustríssimo! A questão que devo
expor a Vossa Senhoria Reverendíssima não pode ser re­
solvida em poucas palavras, como exigiria o momento. Vol-

íG
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tarei outra vez para falar com menor incômodo de sua
parte. Agora quero somente dizer que me compadeço muito
de Vossa Senhoria Ilustríssima; tenho visto em várias manhãs
quão numerosos são os negócios que deve resolver; por isso
duvido que lhe sobre algum tempo para atender um pouco à
salvação de sua alma. Aguardando eu, todos os dias, sua
audiência, pedi a Deus por Vossa Senhoria Ilustríssima para
que as coisas do mundo não lhe roubem o tempo destinado
a cuidar de sua alma, mais preciosa que o mundo inteiro".
Tais palavras, proferidas em tom meditado e severo,
penetraram profundamente na alma do jovem cardeal. Ao
invés de ofender-se, provou por si aguda dor, considerando
em que estado se encontrava, e daquele dia em diante, co­
meçou a aumentar ainda mais a severidade de costumes e
de vida, que já era notável, no dizer de seu biógrafo Bas­
capé: "Tanta gravidade demonstrava nas maneiras e na
conversa, que chegou a conseguir uma austeridade difícil
de se obter nos princípios da vida espiritual".
Certamente os jesuítas influíram bastante em seu nôvo
enderêço de vida e não foram poucos os que incriminaram
os filhos de Santo Inácio pela mudança de rumo e duras re­
formas impostas à vida eclesiástica. Lembra, a tal propósito,
o padre jesuíta Pollanco: "Algumas línguas perversas fize­
ram-no compreender ao Papa; e pretendendo o Cardeal
Borromeu residir na sé de Milão por algum tempo, distri­
buir as rendas, fazer abundantes esmolas com os lucros
provindos dos benefícios eclesiásticos e reformar a casa, a
mesa e outras coisas, levantou-se contra nós grande alarde,
como se fôssemos os culpados. E corriam vozes de que êle
ofereceria seis mil ducados de renda ao nosso Colégio Ro­
mano, ou cem mil em dinheiro; outros falavam de uma aba­
dia ou de um benefício qualquer; chegou-se a propalar que
era sua intenção ingressar na Companhia; e tudo era falso".
Essas conversas desagradaram ao Papa, que desejou
conhecer a verdade, e ser informado de que espécie tivessem
sido os contactos de seu secretário com os superiores da no­
va Ordem. Depois de viários colóquios com o Padre Ribeira
e outros eminentes jesuítas e com o sobrinho, encontrou-os
mais que normais; tanto que o Pontífice achou muito opor­
tuno o recolhimento do cardeal e não fêz objeção a que

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os padres inacianos Q visitassem diàriamente, coisa que por
delicadeza e oportunidade não fizeram.
Carlos prosseguiu impertérrito em seus métodos aus­
teros de vida, impondo-os a todos os membros do palácio em
que habitava. Despediu os criados que ultrapassavam a cen­
tena � possuía, na verdade, um bom número para seu
serviço! - e aos que permaneceram, retirou as despesas do
cavalo e do servo. Vetou também as vestes de sêda; despe­
diu todos aquêles que demonstravam pouca aptidão para
a vida religiosa. O cardeal e os familiares consagravam ago­
ra longas horas à oração, de tal forma que pareciam viver
em convento; uma vez por semana disciplinava-se duramente.
"Recordo-me - é o doméstico Ambrósio Fornero quem
fala - que tendo encontrado certo dia, por acaso, um dêstes
instrumentos de penitência, provei bater-me com êle; mas
possuía nós que faziam doer muito ..." E o bom Ambrósio
nunca mais repetiu a experiência.
Havia naturalmente, como sempre, os habituais sabi­
chões e os que se julgavam mais espertos que os demais,
que atribuíam a tôdas essas práticas de piedade e de mor­
tificação um significado muito diverso. Pretende-se até que
o próprio Papa tenha certo dia afirmado: "Nós devemos
viver alegres e do melhor modo possível; se depois Dom
Carlos Borromeu quiser tornar-se frade, pagar-lhe-emos o
burel!" Quem no-lo afirma é Tonina, bastante amante da
boa vida e da mesa bem preparada; acrescenta, porém, ime­
diatamente: "O Papa, com isso, tencionava gracejar". O
certo é que o Pontífice não aprovava completamente todos
os sistemas do sobrinho, sem, contudo, contrariá-los aber­
tamente.
Carlos Bascapé refere-nos com tristeza: "Muitos, admi­
rados diante do que lhes parecia desmedido exagêro e pre­
tendendo explicar tudo por critérios puramente humanos,
acabavam por tachá-lo de falso e impostor". O mesmo Car­
deal Marcos Síttico ridiculariza a sovinice do colega e escre­
ve ao irmão Aníbal: " O cardeal, com tôda a sua avareza,
acabará louco; como se ignorássemos as duas mil coroas que
recebe dos benefícios, a contínua falta do necessário ( ! ) , e
a fome de sempre mais· possuir ... �sse o belo fruto da bea­
tice ... " A calúnia é natural em quem julga de acôrdo com
o que pensa e com o que lhe vai na alma.

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Felizmente há também quem não seja da mesma opi­
nião, e Bascapé relata, prazenteiro: "Outros, porém, movi­
dos pela fôrça da verdade e da inspiração divina, reconhe­
ciam-lhe a sinceridade e a bondade d� ânimo, e o julgavam
digno de admiração, e com prazer seguiam-lhe os exemplos".
Uma testemunha neutra e por isso objetiva, o já citado
embaixador vêneto Soranzo, traça, em 1565, breve e acerta­
do perfil do hipócrita asceta: "Carlos Borromeu, cardeal e
arcebispo de Milão, com 27 anos de idade, é de compleição
não muita robusta em conseqüência dos estudos, jejuns,
vigílias e outras abstinências. E' doutor nas leis e extraordi­
nàriamente amante da Sagrada Escritura, coisa rara em
nossos dias. Reza a missa em cada festa, jejua assiduamente
e, em tôdas as coisas, vive religiosamente, sendo a todos
modêlo intemerato".
Foi nessa ocasião que adoeceu gravemente e a enfermi­
dade levou-o ainda mais para o caminho da espiritualida­
de pura: "Foi acometido nesse tempo o cardeal - refere
Bascapé - por penosa moléstia que, por dom particular
de Deus, lhe trouxe muita luz e gôsto das coisas do céu; e
teve tão grande desejo dos bens eternos que, desprezando
tudo o que é terreno e caduco, desejou somente a morte".

3.
CAPRICHOS DE PAPA

Retornemos ao concílio. Um profundo conhecedor da­


queles tempos afirmou, muito de acôrdo com a verdade:
"Todos desejavam ardentemente o concílio - contanto que
não se realizasse... "
Desta vez, porém, Pio IV ·mostrara-se assaz enérgico
nas instruções enviadas aos núncios de Viena e de Madri:
"Queremos o concílio, desêjamo-lo com tôda a fôrça de von­
tade, e será livre e universal. E se não aspirássemos por êle
sinceramente, poderíamos talvez entreter o mundo por três
ou quatro anos sem nada realizar?! ... Para evitar disputas

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sôbre o lugar do sínodo, julgo melhor continuá-lo em Trento.
Os enviados, por meio de mensageiros, façam chegar nossa
decisão aos príncipes, e os incitem a nos prestar auxílio.
E se, contra seu desejo e esperança, o Papa não encontrar
correspondência, não será isso que o removerá de seu pro­
pósito. . . Queremos que o concílio se reúna o mais cedo
possível".
Cósimo de Médicis fizera chegar ao Pontífice áspera
observação, recebida, é evidente, de não muito bom ânimo:
"Não se deixe Vossa Santidade persuadir fàcilmente de reu­
·nir um concílio sem depois permitir que se desenvolva
livremente!"
Apenas convocada a magna assembléia; Pio IV notifica
aos participantes sua resolução de não poupar gastos, con­
quanto tudo corra bem e, se possível, .com grande aparato
externo. "Gaste a mãos cheias - escreve, um dia, ao car•
deal de Mântua - e quando acabar o seu dinheiro, ou antes
ninda, avise-nos, e verá como seremos generosos!" Confor­
tantes palavras que incitam a levar à frente com entusiasmo
um concílio de importância capital para a vida da Igreja!
Carlos Borromeu, contudo, que previa as conseqüências de
um desastre financeiro, recomendava economia, e tornava­
se antipático a todos, repetiindo continuamente: "A bôlsa
de Sua Santidade não pode prover a tantas despesas".
Diante dessa sua atitude, prelados e leigos acusavam-no
de mesquinharia: "A côrte - lembra Soranzo - não o
ama, porque prefere a vida mais folgada e cômoda a que
sempre estêve acostumada;· declara-o de natureza pouco so­
cial e benéfica, julga-o obstinado e de caráter duro, pouco
inclinado a pedir favores a Sua Santidade e a dar do que
lhe pertence".
Uma vez iniciado o concílio, era necessário ampará-lo
e continuá-lo. E Carlos insiste junto aos membros mais
influentes para que a afluência às sessões aumente continua­
mente. Escreve numerosas cartas e envia legados aos prín­
cipes protestantes para que se decidam a aceitar as dis­
cussões conciliares.
Os nobres luteranos, contudo, irritavam-se sempre mais
e por quaisquer ninharias. Não aceitavam, por exemplo, a
fórmula da bula que começava com "Dileto filho", porque
não reconheciam o Santo Padre por pai; em seguida, à ba-
80
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se de sofismas e equívocos, declararam que ao Pontífice não
cabia o direito de convocar o concílio e de agir como juiz,
sendo êle a única causa de todos os erros. Até Job, talvez,
perderia a paciência! ...
Carlos, porém, em carta ao Cardeal Delfina, aconselha
a calma e a mansidão: "Faça-lhes compreender as intenções
de Sua Santidade; escolha expressões corteses e benévolas.
Exorte-os a que venham; serão recebidos com alegria e cer­
cados de todo o respeito; ter-se-ão por êles tôdas as amabili­
dades possíveis; é desejo ardente de Sua Santidade e dos
Padres Conciliares encontrar um meio adequado para dar
novamente à Igreja a paz e a união. Diga-lhes que os ri­
gores da Inquisição j,á não existem; para aquêles que de­
sejam verdadeiramente a união, Nosso Senhor mudará a
antiga severidade em clemência e doçura;. cumulá-los-á de
benefícios". Palavras inúteis! Os príncipes, empedernidos,
não queriam ceder.
Se a primeira sessão. inaugural do concílio foi fixada
para o dia 18 de janeiro de 1562, data em que realmente
se realizou, contudo, antes que comparecesse pelo menos
uma centena entre bispos e delegados, passaram-se vários
meses; começou, em seguida, uma série interminável de
questões jurídicas e protocolares, dissensões e disputas bi­
zantinas até a época dos grandes calores, quando todos acha­
ram mais conveniente fugir. Carlos tomou então uma deci­
são irremovível: revogou tôda e qualquer licença para au­
sentar-se, ainda que brevemente, acrescentando que "ne­
nhuma coisa no mundo devia ser tão útil e urgente aos Pa­
dres Conciliares como trabalhar para o serviço de· Deus e
por sua santa causa".
Em novembro novas dificuldades vêm ameaçar os tra­
balhos apenas começados. Aparece em Trento o cardeal de
Lorena, irmão do Duque de Guise, o prelado mais poderoso
da França. Se continuasse a sustentar o ultranacionalismo
dos bispos franceses, - um dos quais declarava que na dio­
cese o bispo possui autoridade igual à do Papa - adeus, con­
cílio! Tudo teria ido pelos ares.
Carlos escreveu aos legados e a todos os amigos de
Trento, recomendando-lhês de favorecer e festejar o car­
deal francês e o séquito que o acompanhava, - treze bis­
pos, três abades e oito teólogos. Convidado a visitar Roma,
Vida de S. Carlos - 6 81
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foi tão bem acolhido, que partiu para Trento conquistado
por completo pela teoria romana do Papa; e isso apesar de
Pio IV, impaciente e violento, em um dos seus freqüentes
ímpetos de mau humor, por pouco não cortar por completo
as relações com o embaixador francês de Lausac, chaman­
do-o huguenote; diante do insulto, o diplomata replicou
irreverente: "Espero que Sua Santidade não envie o Espí­
rito Santo para Trento, encerrado em mala... "
Desta maneira, o pobre Borromeu não devia sómente
governar a indisciplinada turba tridentina, mas também
aparar os incidentes suscitados pelo caráter agastadiço e
precipitado do Pontífice, que lhe gerava não poucas dores
de cabeça. Vargas, o embaixador espanhol que caíra em des­
graça pelos esforços realizados em favor dos Carafas, não
conseguindo obter audiência, lançou-se de joelhos diante do
Papa que caminhava apressado pelas ruas de Roma. A única
consolação que recebeu foi um brusco: "Levanta-te e retira­
te de minha frente!"
Pio IV, aborrecido pelas delongas preliminares do con­
cílio, escreveu energicamente, sem o conhecimento de Car­
los, ordenando que o concílio fôsse considerado continuação
daquele de 1541 e 1551. Os legados compreenderam que tal
decisão significaria inevitàvelmente a saída dos bispos fran­
ceses e espanhóis e, como conseqüência, o fim dos traba­
lhos conciliares. Era necessário que alguém corresse imedia­
tamente para Roma a fim de expor o assunto ao Santo Pa­
dre. O Cardeal Borromeu, contudo, já conseguira conven­
cer o Pontífice da necessidade de suavidade e de brandura,
e quando o Cardeal Hoenems, sobrinho do Papa, estava
prestes a partir para a Cidade Eterna, chegou uma mensa­
gem papal que modificava a decisão anterior e remetia tudo
aos legados. O mensageiro trazia também cartas de Carlos,
onde se notificava que Sua Santidade, depois de uma noite
de reflexão, retomara a sua decisão primitiva, com uma das
súbitas reviravoltas a que estava acostumado.
Durante o desenrolar das sessões, que muitas vêzes to­
maram caráter dramático de lutas tumultuosas, ameaçan­
do a suspensão definitiva do concílio, a influência, ainda
que distante, do Secretário de Estado como elemento mo­
derador, demonstrou-se muito esclarecida e necessária, so­
bretudo para reprimir as precipitadas e, por isso mesmo,

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perigosas decisões do Pontífice. Valha, por tôdas, a espinho­
sa questão da obrigação de residência na própria diocese por
parte dos bispos e· dos beneficiados.
Discutia-se sob qual forma se devia impor tal preceito;
os mais intransigentes exigiam uma definição dogmática
que obrigasse os bispos a morar na diocese por direito di­
vino; outros se insurgiram violentamente contra a proposta,
e assim se formaram duas correntes que se tornaram sem­
pre mais irreconciliáveis. Carlos, que logo viu o perigo e as
graves conseqüências, escreveu em seu próprio nome aos
legados, queixando-se do modo como a questão fôra proposta
e levada adiante, recordando ao intransigente cardeal de
Mântua que também a muitos teólogos tal discussão parece­
i-a inoportuna; e isto apesar de o Papa, para acabar quanto
antes a polêmica, propender para a solução dogmática.
A luta recrudesceu quando o cardeal de Lorena foi con­
quistado para a definição dogmática, tese que teria ofen­
dido indiretamente a autoridade pontifícia; prevaleceu, con­
tudo, por fim, a concepção mais moderada de Carlos. E a
obrigação da residência foi estabelecida e contemplada em
todos os casos, sem prejudicar o bom resultado do concílio
e a dignidade de Pio IV.

4.
A POLíTICA DO CÉU E A POLíTICA DA TERRA

A animosidade reinante entre muitos Padres Conciliares


criava contínuas divergências de idéias e, pior ainda, tam­
bém entre os legados pontifícios. Diante dêste estado de coi­
sas, o Cardeal Simonetta achou melhor pedir ao Papa que
o dispensasse · da presidência da assembléia. Pio IV, com
seu caráter pronto e precipitado, aceitou as demissões e de­
cidiu enviar outros representantes e, entre êstes, o Cardeal
Cigala, que deveria ocupar o primeiro pôsto, em lugar do
Cardeal Gonzaga.
6º 83
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A notícia provocou tal estupor e levantou tão grave in­
quietação, que um bispo não receou escrever: "Para arrui­
nar a Igreja, não se podia encontrar remédio mais oportuno!"
Mais uma vez, Carlos viu-se forçado a usar de diplomacia
e escreveu ao Cardeal Gonzaga: "Esta nova deliberação de
Sua Santidade nos tem causado árduos trabalhos". Conse­
guiu, porém, adiar a partida e, segundo o costume, Pio IV
abandonou a decisão, permanecendo por isso os legados na
Cidade Eterna. . . para sempre. Só restava agora acalmar a
rivalidade que ainda perdurava entre Gonzaga e Simonetta;
Carlos pôs em obra tôda a sua diplomacia, dando recomen­
dações afetuosas de conciliação a Simonetta, e incitando o
Pontífice a prodigalizar glórias e louvores a Gonzaga. il:ste
último ocupou seu alto cargo até a morte, ocorrida em Trento
aos 20 de março de 1563, acabando assim uma atividade ilu­
minada de prelado que lhe. tinha feito pressagiar a tiara.
As tempestades anteriores nada eram em confronto
com o ciclone causado pelo pedido de reforma da autoridade
pontifícia. O imperador expôs a coisa mais que rudemente
na carta ao Papa e ao concílio em março de 1563. O Cardeal
Morone foi enviado imediatamente a Innsbruck, onde, após
muitos colóquios, conseguiu finalmente persuadir Fernando
a cancelar certas proposições como: "A reforma da Igreja
em seu Chefe e em seus membros". Os prelados .franceses
e espanhóis insistiam igualmente na necessidade de uma re­
novação. Um delegado português, o santo arcebispo de Bra­
ga, não mitigava as dificuldades do assunto quando falava
da cúria: "Essas ilustres sublimidades necessitam eviden­
temente de uma ilustre reforma!"
Doutra parte, os italianos, e particularmente os roma­
nos - incluídos também os muitíssimos que viviam em Ro­
ma em vez de nas próprias sedes ou benefícios - relutavam,
naturalmente, em permitir que uma assembléia de estran­
geiros, desconhecedores da situação, prescrevesse a natu­
reza das reformas. Foi o Padre Láinez a demonstrar que,
sendo o Papa chefe do concílio, não podia ser corrigido por
quem lhe estava sujeito, mas devia êle reformar.
Pio IV compreendeu prontamente até onde pretendiam
chegar alguns membros conciliares, e aproveitou da afirma­
ção do Padre Láinez. Pôs logo mãos à obra. il:le mesmo deu
ordens de reduzir a liberalidade e o esplendor do teor dt!

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vida dos cardeais, e, entre outras coisas, foi proibido de pas­
sear em carruagens abertas pelas ruas de Roma em com­
pahhi&s, algumas vêzes, não muito edificantes...
A lei não atingia, como já tivemos ocasião de notar, o
jovem Cardeal-Secretário de Estado, que não precisava, cer­
tamente, para dedicar-se à vida austera e interior, que fôs­
se aprovado e pôsto em execução o Decreto de Reforma,
com seus dezoito capítulos.
Sem dúvida, em todo o período conciliar, Pio IV e seu
secretário souberam usar muito bem, além da que Bossuet
define a política do céu também da que foi e é a política da
terra. Vigiaram prudentemente para que as sessões não so­
fressem perigosas deviações; mas a liberdade do concílio
manifestou-se, em certos casos, até excessiva, de tal modo
que não nos surpreende ter o Papa escrito a Filipe II:
"Afirma-se que o concílio não é livre, porque se quer que
seja huguenote, protestante ou luterano; na verdade, êle
é de tal maneira livre, que todos dizem e propõem quanto
lhes vem à cabeça, originando-se daí grande confusão; al­
guns tornaram-se realmente insolentes e parece que não
pretendem outra coisa senão a destruição da Sé Romana".
Não obstante os numerosos obstáculos que surgiam a
cada passo, o concílio avançava. O que parecera muitas vê­
zes mera contenda de palavras ou contraste de interêsses
nacionais e pessoais, revelava-se, pelo contrário, instituição
apta a conduzir a têrmo uma obra que não era somente a
clarificação de muitos pontos obscuros, mas a afirmação do
dogma e da disciplina católica, que desde aquêles longín­
quos dias permaneceram imutáveis.
A Gonzaga, na presidência do concílio, sucedera o Car­
deal Morone, homem de grande tato e firmeza nas relações
com os delegados conciliares. Já se mostrara hábil e enér­
gico nas negociações com o imperador em Innsbruck. Nos
amiudados momentos de prostração e de ira, o Pontífice de­
sejara suspender sine die o concílio; mas esbarrava sempre
na resoluta vontade e nos prudentes conselhos de Carlos; e
pelo fim dos trabalhos, ao invés, anelava pelo seu rápido
término, para que pudessê, como escreveu aos legados, ter
"o divino privilégio de ratificar e pôr em execução os
decretos".

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A questão do direito divino dos bispos foi deixada à
decisão do Santo Padre. Aprovaram-se os decretos da Re­
forma, fixaram-se as declarações sôbre a autoridade da Bí­
blia, da tradição, do pecado original, dos sacramentos e,
em particular, sôbre o sacrifício da missa. As deliberações,
além de severíssimas e condenatórias, eram construtivas e
eficazes, enquanto emanavam precisas instruções sôbre os
deveres do episcopado, cuidavam da formação de um clero
bem preparado, tornavam a dar aos conventos a primitiva
austeridade e ditavam normas sôbre o cuidado e a importân­
cia da família, a indissolubilidade do matrimônio e outros
assuntos que formam a base da teologia católica.
Na conferência vespertina do dia 30 de novembro de
1563, decidiu-se a conclusão imediata do concílio, manifes­
tando-se contr.ários somente o embaixador espanhol e dois
ou três bispos. Duas horas após a reunião, chegou de Roma
um mensageiro, que devorara a distância em três jorna­
das, apesar dos dias curtos e das estradas geladas, para tra­
zer aos legados uma carta do Cardeal Borromeu, noticiando
estar o chefe da cristandade em perigo de vida. Viera impe­
rioso rescrito exprimindo a instância do Papa pelo solícito
remate do concílio. Convocaram-se sem demora os legados e
todos - menos um pequeno grupo - manifestaram-se con­
cordes em apressar as sessões finais para evitar que conti­
nuassem os trabalhos durante a vacância do sólio de Pedro.
No dia seguinte foram aprovados os decretos sôbre o
jejum e os dias festivos, as indulgências, a publicação do
índice, o catecismo, a revisão do breviário e do missal. Tô­
das as decisões conciliares foram relidas; tal trabalho abran­
geu a matéria completa do dogma e da administração, e
foi levado a têrmo com rapidez e unanimidade quase in­
críveis. Todos, a não ser o arcebispo de Granada, concorda­
ram na necessidade de rematar o concílio. Logo após, na ca­
tedral de Trento, o Cardeal Morone, diante de seis cardeais,
quatro dêles legados, três patriarcas, vinte e cinco arcebis­
pos, cento e setenta e oito bispos, sete abades, sete superio­
res gerais de ordens e trinta e nove delegados dos ausentes,
declarou solenemente ence1Tado o concílio com as palavras:
Ite in pacem/
Nessa última sessão compendiou-se o trabalho dos vin­
te e dois meses anteriores.
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Parecera, a princ1p10, que disputas exaltadas, discus­
sões intermináveis e dissensões inflamadas, teriam criado
verdadeiro caos, no qual teria mergulhado o edifício in­
teiro do concílio e, desta vez, irreparàvelmente. Mas no fim
da confusão surgira a ordem . . . e que ordem! "O espírito
de Deus agitara as águas e, em seguida, as havia acalmado".
A questão mais àsperamente debatida, reminiscência pouco
feliz dos concílios de Constança e de Basiléia, fôra se a auto­
ridade suprema em matéria eclesiástica pertencia ao Papa
ou ao concílio. Nenhuma decisão foi tomada e coube ao
Concílio Vaticano I, em 1870, definir o dogma da Infalibi­
lidade Pontifícia.
"Recapitulando, - diz Pastor em sua História ,dos Pa­
pas - é difícil avaliar a importância do Concílio Tridentino,
especialmente no que concerne ao desenvolvimento interno
da Igreja. Lançou as bases da verdadeira reforma e assen­
tou a doutrina católica sôbre vastas e sistemáticas idéias.
It, ao mesmo tempo, fronteira e limite, do qual devem ser
separados espíritos contrastantes. Inaugura nova era na his­
tória da Igreja Católica".

5.
COMEÇAR PELA CABEÇA

Notável, sem dúvida, foi a influência de Carlos no que


diz respeito ao início do Congresso e à parte efetuada
em sustentar a vontade do Pontífice e modificar-lhe os
ímpetos de mau humor, fácil a deslizar em decisões pre­
cipitadas. Não devemos, porém, cair no defeito dos bió­
grafos por demais solícitos de sua grandeza - aliás, mais
real do que se possa julga� ao estudá-lo profundamente, -
que atribuem o sucesso do concílio exclusivamente à sua
ação diligente e assídua. Na verdade, seu nome aparece em
quase tôdas as comissões destinadas a aplicar os decretos
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conciliares e, como Secretário de Estado, andava informa­
do de tudo o que acontecia em Trento. Salienta-se desde aquê­
le momento sua capacidade de saber suscitar nos homens
as energias mais ocultas, e o revolucionário da diocese mi­
lanesa teve todos os pressupostos naquela preparação roma­
na: "Esta é a fôrça maravilhosa da verdadeira virtude, -
acentua Bascapé - que retrai a muitos do mal e os impele
à prática do bem, fôrça que subjuga também os que ocupam
altos postos".
A atuação do Cardeal Borromeu para o feliz êxito do
concílio impressionou os próprios Padres Conciliares; um
dos legados escreveu entusiasmado: "�le fêz maior bem
ao concílio, estando em Roma, que cinqüenta prelados re­
sidentes em Trento!" Se o elogio lesou, talvez, em parte a
glória dos demais bispos, não deixa por isso de ser verda­
deiro e justo ...
Carlos empreendeu cQrajosa e decididamente a refor­
ma dos costumes no mundo romano. Vimos já quão impe­
riosa era a necessidade, e o próprio cardeal, em têrmos lú­
cidos e precisos, assim descrevia o ambiente pontifício:
"Roma é o terreno mais favorável para conseguir fortuna,
e, em sua côrte, a porta está aberta para quem quiser en­
trar. O Papa, apesar de colocado acima de todos, é eleito
pelos cardeais e, ao menos por certo tempo, não deve es­
quecer-se disso, não podendo usar de tôda a sua autoridade.
Tem-se a impressão de viver numa república, onde todos
procuram sempre e unicamente subir; tal fome de glória
é também favorecida pelo quase infinito número de em­
pregos".
Pastor, por sua vez, deixa-nos um quadro não muito
consolador do que era Roma, que cessara de ser cidade
para converter-se num lugar onde viviam habitualmente
forasteiros; "muitos se distinguiam dos leigos por terem
conseguido algum benefício e talvez uma ordem sagrada;
quanto à conduta, porém, ela não interessa". Faltàva, en­
fim, uma educação "segundo .o espírito sacerdotal; para de­
monstrar simpatia com alguém, costuma-se cumulá-lo de
benefícios; mas, na mesma proporção, diminui a estima
dos Papas e cardeai1:1. Enorme responsabilidade, contudo,
cabe também aos leigos, especialmente aos príncipes, que
dispõem dos cargos eclesiásticos como de propriedades pri-

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vadas e as deixam em testamento. E' preciso reformar, sim,
mas como? Confiar a reforma aos prelados de hoje? Mas
isso significa pôr vinho nôvo em odres velhos! E os prelados
de bom espírito, onde se encontram em número suficiente?"
Franceschi, no apreciado livro sôbre São Carlos, valen..:
do-se por sua vez de quanto deixaram dito biógrafos ante­
riores, comenta, desalentado, a situação: "Desde 1563 o Papa
observa ter j,á expedido numerosas bulas para melhorar e
restaurar o ambiente, mas de nada valia conhecer o direito
e não observá-lo. Por êsse motivo, queria deputar vários
cardeais encarregados de fazer executar os decretos e de pu­
nir os transgressores. E no mesmo dia designava outra co­
missão para fundar o Seminário Romano; em ambas às cir­
cunstâncias encontrava-se o nome do Cardeal-Secretário.
"Essas ameaças não amedrontam tanto; nas esferas ecle­
siásticas ganhara terreno a idéia de que, concluído o con­
cílio, se teria realizado já muitíssimo, e agora não se de­
via exagerar em destruir, brusca e irrefletidamente, direi­
tos adquiridos e velhos costumes, principalmente em matéria
beneficiária. Havia quem acrescentasse, maliciosamente, não
ser do interêsse do Pontífice descer a medidas rigorosas,
que teriam recaído também sôbre sua conduta; e não é
preciso lembrar que ainda nesse período se revelou o ca­
ráter de Pio IV, ora inclinado a providências austeras, ora
à indulgência, e mesmo à fraqueza. E' curioso notar tam­
bém como refreou, uma vez, quando Carlos já preparava
sua partida para Milão, seu zêlo na aplicação dos decretos
conciliares.
"O fato foi assim: o Cardeal-Secretário, vindo a saber
que um gentil-homem do Cardeal de Ferrara gozava de um
benefício de curas de almas no território milanês, e apesar
disso, residia em sua própria casa, admoestou-o repetida­
mente com bastante cortesia; vendo, porém, que não era
obedecido, na sua qualidade de Arcebispo de Milão, privou-o
do cargo e o conferiu a um familiar do Papa, com a condi­
ção de partir logo para a sua residência. E podemos ima­
ginar a surprêsa do zeloso. Borromeu, ao tomar conhecimen­
to de que o Pontífice ordenara ao nôvo eleito de permanecer
onde se encontrava, afirmando não ser obrigado a partir
quem devia servi-lo".

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Apesar de tudo, pisando hoje e repisando amanhã sôbre
a obrigação da residência. Carlos conseguiu induzir o tio à in­
flexibilidade. No consistório de 19 de março de 1564, Pio IV
proclamou que todos os bispos deveriam dirigir-se, como
bons pastôres, em meio da própria grei e que, a começar
dos sobrinhos, os cardeais-arcebispos seriam obrigados a
parar na diocese, ao menos por uma parte do ano. Era o
desejo que Carlos acalentava havia muito tempo, e, sem
rodeios, providenciou para partir o mais cedo possível rumo
a sua Milão.
Já se tem dito como trabalhara para reformar sua casa,
apesar das apreciações pouco benévolas que sobrevieram;
o que nos surpreende, porém, é ter sido o exemplo seguido
pela própria côrte papal. No dia 22 de julho de 1564, o
embaixador do duque de Parma comunica: "Nosso senhor
fêz a reforma de sua residência e dizem que eliminou qua­
trocentas bôcas para construir a ponte do Espírito Santo".
E o legado do duque de Mântua precisa, uma semana após,
que os licenciados eram quatrocentos e sessenta e cinco, e
que outros seiscentos teriam somente pão e vinho, economi­
zando assim vinte mil ducados por ano. Os cavaleiros se­
cretos e os de capa e espada tiveram que renunciar às
grinaldas e às cavalgaduras, e "os palafreneiros e capelães
foram pelo Pontífice enviados a passeio. "
O mesmo aconteceu na cúria propriamente dita. Quem
no-lo afirma é ainda Soranzo: "Vive-se agora bastante sim­
plesmente, em parte, sim, por falta de meios, mas talvez não
merios pelo bom exemplo que procede do Cardeal Borromeu,
pois é sempre verdade que os súditos se modelam no exem­
plo do príncipe". Desaparecera certamente a balbúrdia car­
navalesca das estradas romanas onde se viam, freqüente­
mente, cardeais mascarados em companhia de damas; mas
agora apenas se deixam ver em carruagens, decorosamente
trajados com hábitos talares e sem a escandalosa comjtiva
de cortesãos. Nem por mudarem as côrtes e os Papas, reence­
tar-se-ão os maus costumes. Segundo o informe de Alberi,
eliminaram-se banquetes, jogos, caças, librés e todo o luxo
exagerado e irritante. Tôdas essas inovações foram favore­
cidas também por terem desaparecido os numerosos leigos,
mantidos unicamente para fazerem de janotas nas côrtes
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fictícias. E os príncipes estrangeiros tinham finalmente re­
nunciado a procurar a amizade dos prelados mediante os
favores e o dinheiro.

6.
O DISCURSO DO CARDEAL

A Contra-Reforma agiu com severidade e sem discri­


minação alguma. Todo o clero romano, graças ao Cardeal
Savelli, foi submetido a contínuas e rigorosas inspeções, e
concedeu-se prazo bem limitado aos indisciplinados para en­
trar na linha ou deixar o hábito e o cargo. Tomaram-se
medidas ínexor,áveis contra os blasfemadores e profanado­
res dos templos; impôs-se o barrete verde aos fraudulentos
falidos,' e expulsaram-se sem misericórdia os numerosos
bandidos e capangas que se aninhavam em Roma à sombra
de certos influentes potentados, - felizmente em número
sempre menor.
A vasta influência de Carlos, nesses decretos e inova­
ções, pode-se deduzir do Aviso de l 9 de agôsto de 1565:
"Por ordem de Carlos Borromeu, o governador decretara
que nenhuma mulher de costumes fáceis pudesse habitar
perto das igrejas, e vetara a algumas jovens piemontcsas
de virem a Roma para vender legumes nas vizinhanças dos
templos". O Papa não gostou da atitude e repreendeu vio­
lentamente o governador, chamando-o - conforme no-lo
assegura Pastor - "animal, e como animal queria tratá-lo,
pois, não passando de simples delegado, julgava ser já
cardeal, publicando decretos de tal espécie". O culpado
aceitou humilde a increpação, e apesar de o Papa não dar
mostras de apaziguamento, afirmando que em sua côrte
todos mandavam, enquanto que não existia outro chefe
senão êle, desculpou-se sul;>missamente, sem nunca nomear,
l) Castigo em vigor na Idade Média, principalmente na Itália,
para si,gnificar que o eulpado se encontrava sem nenhum vintém
(N. do T.).
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porém, quem o levara à proibição. Carlos, conhecendo já
quais fôssem e quanto perdurassem os acessos de cólera do
tio, aconselhou o governador a manter o decreto, na espe­
ra da nova contra-ordem do Pontífice. . . a qual nunca
apareceu.
A Roma renascentista - naquilo que de pior possuiu
o movimento quinhentista - acabara realmente. Caro po­
dia agora escrever a Mons. Sala, de Bolonha: "Se a ambi­
ção vos fizer porventura desejar Roma, recordo-vos que
aqui se vem para rezar, e não para gozar. Monsenhor, pen­
sai na responsabilidade da vida, pois o resto de nada vale.
De mim, somente digo que faço o que aconselho; abandonei
tudo o que antes me deleitava e me esforço unicamente
para viver do melhor modo possível". Sem dúvida, é o bra­
do de um náufrago que procura salvar-se, custe o que cus­
tar. Como é fácil imaginar, o maior culpado dêste "viver
de trapista" é Carlos; a tal ponto que certo Capilupi, licen­
ciado como tantas outras bôcas inúteis dos privilégios cor­
tesãos, afirma que "o verdadeiro chefe da Igreja é o Cardeal
Borromeu", esquecido de que o único guia da Igreja é o
Espírito de Cristo que começava finalmente a brilhar en­
tre tantas trevas douradas.
A onipotência de Carlos é recordada novamente por
Caro, quando fala da promoção a cardeal de João Francisco
Commandone: "E' preciso concluir que a nomeação derivou
tanto de Deus quanto de nosso senhor o Papa, e do Reveren­
díssimo Borromeu, que formam uma única e mesma coisa".
Soranzo é mais explícito a respeito do pensamento dos
cortesãos demitidos e dos que fingiam adaptar-se aos de­
cretos pontifícios; mordiam pacientemente o freio, segu­
ros de que, morto um Papa, se elegeria outro, o qual, sem
dúvida, daria livre saída aos privilégios e licenças.
"A côrte não o ama muito - escreve o legado vêneto -
porque deseja continuar a vida folgada a que estava ha­
bituado e queixa-se de seu caráter tão pouco benévolo no
pedir favores a Sua Santidade e no dar do que lhe pertence.
Aquêles, porém, que conhecem a natureza de Sua Senho­
ria Ilustríssima, afirmam que, sabendo não serem bas­
tante aptos às prelaturas os homens indicados, parece ao
cardeal agir contra à própria consciência conceder o que al­
mejam. E quanto ao dar do que é seu, é certo que .distribui

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parte em esmolas, especialmente às donzelas pobres e casa­
douras, e parte em pagar os débitos, pois se assegura que
seja devedor de mais de trezentos mil escudos, gastos prin­
cipahnente pelo Conde Frederico, seu irmão".
O embaixador de Veneza esquece, todavia, quanto Car­
los despendia para embelezar Roma, cidade que cedo ou
tarde deveria deixar; nem lembra quanto doava a tôdas as
obras de piedade e de caridade, como o hospital de Santo
Ambrósio dos Lombardos, por êle visitado muitas vêzes
e sempre com generosos regalos. Interessou-se também,
de um modo todo particular, da redenção das mulheres de
vida licenciosa, instituindo a "Casa Pia" e confiando-a às
Irmãs de Santa Clara; sustentava-a com o próprio dinheiro,
continuamente e sem olhar aos gastos.
"Certo dia, - narra-nos o Avisador - atrás do paliácio
que pertence hoje ao Cardeal Borromeu, foi encontrado,
completamente despido, um homem morto, com um laço ao
pescoço e o rosto todo desfigurado; e por mais que se dili­
genciasse, jamais se conseguiu saber quem fôsse; afligiu­
se muito o cardeal pelo que sucedera em sua própria casa
e sob suas janelas". O palácio era o dos Santos Apóstolos,
adquirido pela família Colonna a conselho de Pio IV; seus
pátios estavam, em certas horas, repletos de pobres a quem
o jovem Secretário distribuía cotidianamente víveres, vestes
e dinheiro; descia, assim, em meio das misérias físicas e
morais; e dentro de não muito tempo encontrará a própria
alegria em passear, fraterno e prestativo, por entre os colé­
ricos de sua Milão flagelada pela peste.
Concluiremos o capítulo sôbre a estadia de Carlos em
Roma, com o episódio significativo de sua primeira, e única,
prédica romana.
Transcorrendo a festa de Santa Praxedes, o Cardeal­
Secretário de Estado teve o capricho, uma vez somente, de
pregar em público. Estavam presentes à cerimônia oito
cardeais e quatrocentos fiéis. Carlos cantou a missa, vestiu
a capa pontifical e, apoiando-se ao altar, falou por uma
hora e meia, comentando, em atitude de grande bondade,
o evangelho das virgens prudentes e das virgens insensatas.
A pratica não foi certamente muito breve, nem das me­
lhores de alguém que se tornará dentro de pouco tempo
um dos maiores oradores sacros do século.
93
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O que tenham pensado os prelados presentes à função
e ao sermão do mais jovem dentre êles, não nos é dito.
Muito provàvelmente, segundo o que se julgava em Roma
dos cardeais pregadores, havia motivos de pôr-se a rir ou
de se escandalizar. E o efeito não se fêz esperar. Assim,
quando ocorreu a Carlos a idéia pouco peregrina de enviar
Sílvio Antoniano ao Cardeal Vitelli, Camerlengo da Santa
lgreja, para o persuadir a pregar em público, recebeu o
embaixador um "Não!" sonoro e redondo, ouvindo, como
motivos, quatro considerações, tôdas elas injuriosas ao Car­
deal-Secretário.
Primeiro, os cardeais eram pouco firmes, todos, nin­
guém excluído, em teologia e por isso havia perigo de sair
com um enorme disparate que teria feito rir qualquer vigá­
rio de roça, sem contar também que a Inquisição dos jesuí­
tas estava ali, pronta a apanhar em suas malhas o infeliz
que deixasse escapar algo duvidoso.
Segundo, homens de grande talento como Contarini, Sa­
doleto e Cervini, luminares do Sagrado Colégio e até do
Augusto Sólio, jamais sonharam em semelhante desatino.
Terceiro, o Cardeal-Camerlengo tinha bem outras coisas
a fazer que pregar aos fiéis, obrigação esta dos oradores
excelentes, teólogos e curas. Quarto, e in cauda venenum,
parecia-lhe pouco útil que, para discursar a quatro frades
de Santa Praxedes em Roma, onde tais costumes foram abo­
lidos há séculos, se abandonassem em Milão milhares de
pessoas mais necessitadas.
O golpe fôra bem acertado e o ousado intrometido de­
veria estar bem contente com a resposta. O fato aconteceu
nos princípios de agôsto. Carlos não seguiu, quanto aos ser­
mões, o conselho do camerlengo, pois discursou no mesmo
mês na basílica de Santa Maria Maior, e quanto a partir
para apascentar o próprio rebanho na arquidiocese que lhe
fôra confiada, insistiu tanto junto ao pontífice, que êste
acabou por consentir na viagem do sobrinho a Milão, ain­
da que unicamente para uma visita pastoral.

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7.
PALESTRINA TRIUNFA

Durante o ano de 1564, parecera que em Roma tivessem


aumentado para Carlos os trabalhos a tal ponto de ocupar­
lhe todo o tempo; a promulgação do Catecismo, as lições de
teologia e de filosofia, a correspondência ordinária da se­
cretaria de Estado que, com a aplicação da reforma, se tor­
nara ainda mais imponente e complicada, e enfim, a res­
tauração da música sacra, tudo parecia impedir a realização
de seu ideal - partir para Milão.
E' dêsse tempo o juízo sôbre o cardeal-abade, de Pedro
Canísio, o apóstolo da Alemanha, elevado por Pio XI à
glória dos altares: "Tive grande alegria no tratar com os
cardeais mais ilustres e mais empenhados em socorrer a
Igreja. Conserve-nos Jesus Cristo estas insignes e fortes co­
lunas - Aracoeli, Sirleto, Alessandrino, Amúlio, para não
falar dos demais. E quanto à virtude e à piedade de Carlos
Borromeu, é melhor calar do que dizer pouco!"
Acêrca da renovação da música sacra, deve-se recor­
dar que no concílio surgira uma corrente com tendências
a abolir a música figurada de todo o serviço religioso. Pre­
tendia-se o canto parado ao polifônico. Contra êsse parecer
insurgiram-se todos os padres conciliares, apresentando co­
mo prova o costume antigo da Igreja e os grandes benefícios
que podia trazer à piedade o encanto de uma melodia res­
peitosa. Deliberou-se incumbir os bispos de salvaguardar
a música sacra de qualquer expressão por demais munda­
na, sem, porém, exceder-se no rigor, vetando ou reduzindo
a inspiração do artista.
Fôra-se realmente muito além no conceder liberdade
de inspiração e de execução, e quantas vêzes, a uma melo­
dia de caráter religioso, se entrelaçavam cantos e músicas
de origem mundana! Assim, por exemplo, João de Richafort
juntara, em um Réquiem _a seis vozes, as palavras da li­
turgia com as do salmo: "Circundaram-me suspiros de mor­
te". Paciência até que se permanecia no campo da música
sacra! Mas a profanação tornava-se verdadeiramente insu-
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portável quando as frases que os cantores alternavam com
entusiasmo sempre crescente eram as de uma canção po­
pular que referia os sofrimentos de alguém que se encon­
trava . . . em apuros financeiros!
Pio IV, irritado ao extremo diante da frívola atitude que
ia assumindo o canto até nas funções estritamente litúrgi­
cas, aderia ao pensar dos mais intransigentes e estava para
publicar uma bula que teria cortado qualquer possibilidade
à polifonia de alcançar o valor e a glória do gregoriano.
Também aqui a prudência e a sabedoria de Carlos prevale­
ceram sôbre as disposições do Papa. ·Realizou-se na capela
pontifícia uma pesquisa com critérios inspirados na piedade
e no tino do cardeal-secretário. Ordenou-se que se conside­
rasse, além das qualidades artísticas dos cantores, tam­
bém a vida moral que levavam, e que tivessem inteligência e
eompreensão do que cantavam.
O grande Palestrina foi incumbido de fornecer à cape­
la suas melhores composições. Compôs três missas e vários
outros cantos em que, além de manter íntegras as formas
da arte polifônica, vigiou para que a melodia estivesse à al­
tura do significado das palavras. O Pontífice quedou es­
tático ante tanta grandeza e religiosidade e, aludindo ao
nome do autor, assegurou "que sua música lhe recordava
as harmonias da celeste Jerusalém, ouvidas pelo apóstolo
João e que agora outro João lhe fazia prelibar ·a doçura".
Não obstante todos êsses trabalhos, Carlos não ces­
sava de suplicar ao tio que lhe permitisse partir para
Milão, também se no momento não lhe fôsse possível demo­
rar-se para sempre na sua diocese. O Papa recusou. Exces­
sivo era o acúmulo de afazeres na capital do Cristianismo,
e muito íntima a colaboração entre ambos, para o Secretário
poder seguir o próprio destino. E a saúde de Pio IV, apenas
restabelecida do violento ataque que o :icometera no fim
dos trabalhos conciliares, deixava ainda muito a desejar.
Os decretos tridentinos relembraram aos metropolitanos·
a obrigação de reunir o sínodo provincial na própria diôce­
se e publicar as resoluções do concílio. Assim Carlos, não
podendo partir pessoalmente como pastor em meio das ove­
lhas confiadas, resolveu enviar logo alguém que o substi­
tuísse dignamente e, consultados homens práticos e sábios
como Gabriel Paleotto e Agostinho Valério, nomeados mais

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tarde cardeais e respectivamente arcebispos de Bolonha e
de Verona, encontrou em Nicolau Ormaneto, escondido co­
mo simples cura em uma vilazinha dos arredores de Verona,
o legado temporâneo e ideal para a diocese milanesa.
Nicolau Ormaneto, anteriormente vigário-geral de Ve­
rona, estivera na Inglaterra com o Cardeal Pole e partici­
para do Concílio de Trento; decidira agora fechar seus dias
em paz, no solitário cuidado de um pequeno benefício na
diocese a que pertencia. Chamado, contudo, para Roma pelo
Cardeal Borromeu, aceitou o pêso de mais uma tarefa pro­
fundamente onerosa - preparar o terreno para o arcebispo
numa diocese acéfala havia quase um século, e em que vi­
riam a se realizar tôdas as novas e importantes reformas
promulgadas pelo concílio. Tomou consigo, como pregador,
o Padre Pálmio, da Companhia de Jesus, pois os jesuítas
não possuíam casa alguma na Lombardia, e encetou um
trabalho que, dada a ausência habitual de qualquer autori­
dade e prestígio, faria tremer o pulso do mais ousado
hatalhador.
Nicolau foi precedido, em junho de 1564, por um cor­
po selecionado, guiado precisamente pelo Padre Pálmio;
levava cartas papais para obter o apoio do senado e do go­
vernador, que era, ao mesmo tempo, conde, duque e vice-rei.
O Padre Pálmio começou a pregar na catedral com mui­
ta eloqüência e entusiasmo. Estava cercado por todos os se­
nadores, e a presença do próprio Chefe de Estado realçava
a importância mundana das reuniões. Mas bem cedo o pa­
dre compreendeu que todo aquêle aparato e a freqüência
dos fiéis não eram outra coisa que mera curiosidade para
tudo o que tivesse caráter de novidade e de exterioridade e
que, no fundo, suas práticas nada produziam. No entanto,
em julho chegara a Milão Nicolau Ormaneto; Carlos Bas­
capé nos diz, a respeito, que tal interregno foi um achado
feliz, porque o legado, enquanto tratava como vig.ário, isto é,
com menor responsabilidade do que um arcebispo, de cortar
abusos e fomentar os bons costumes, podia hàbilmente dis­
simular e tolerar outras irregularidades que teria sido peri­
goso afrontar logo com absoluta intransigência; irregula­
ridades que um bispo não teria podido descurar, sem com­
prometer para sempre sua autoridade.
Vida. de S. Carlos - 7 97
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E - sempre conforme o Cardeal Bascapé - Carlos
acompanhava de Roma seu representante com trepidação,
não lhe poupando conselhos e recursos. Nicolau, ajudado pe­
las prescrições conciliares, que obrigavam precisamente os go­
vernantes a ajudar os prelados na Renovação, conseguiu
fàcilmente convocar o sínodo. Quando, porém, os sacer­
dotes que passavam a casa dos mil, tiveram conhecimen­
to do que significavam tais inovações, aí é que começaram
as lamúrias! Mas também! Tratava-se, por exemplo, de pos­
suir um único benefício e nêle residir, ter o dever de obter
a autorização de exercer o ministério da confissão, proscre­
ver qualquer desconveniência no gênero de vida, na habi­
tação e na conversação! Era necessária tôda a eloqüência
do Padre Pálmio para conseguir passar sem protestos e con­
tendas tôdas aquelas reformas ...

8.
A GRADE DOS CONVENTOS

Se, para convencer os habitantes, os sacerdotes e os lei­


gos, da necessidade da renovação, era penoso, quanto não
era pôr em prática as disposições canônicas! E por isso,
quando Nicolau quis passar das palavras aos fatos, levan­
tou-se contra êle enorme vozerio. Visitando as igrejas da
cidade e do condado, compreendeu quão graves fôssem os
abusos, sob todos os aspectos. E contra a aplicação dos de­
cretos tridentinos, começaram a cair os protestos mais varia­
dos e extravagantes. Uns apelavam para o senado, alguns
vociferavam contra os jesuítas, outros recorriam a Madri,
nem faltava quem escrevesse para Roma. Lutas preliminares
que atribularão, em seguida, tôda a vida de Carlos, obrigan­
do-o a atos de energia a que nunca teria imaginado dever
apelar em matéria de fé.
Entre a serenidade da campanha veronesa, onde o po­
bre Ormaneto desejara findar os dias em paz consigo e com
Deus e aquela espécie de carnaval tumultuoso, havia al-
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guma diferença! Quantas vêzes se retirava, desanimado e
sentido, e apelava para Carlos, que o aconselhava a usar
prudentemente de paciência e a continuar com firmeza e
caridade; entrementes, não lhe deixava faltar nunca au­
xílios, cartas de proteção e intervenções diretas do Pontífice.
Certo dia, foi preciso também colocar a grade no lo­
cutório dos conventos femininos. Mas em Porta Ludovica,
viviam infelizmente três irmãs do Papa. A ordem soou às
três freiras como ofensa imperdoável. Viram nela, falta de
confiança e respeito. Não tinham sido sempre boas e virtuo­
sas? E resistiram à imposição do sobrinho escrevendo ao ir­
mão. Vale a pena citar a resposta de Carlos às tias tão gra­
vemente magoadas: A carta é uma pequena obra-prima de
sagacidade epistolar:
"Não há para o Pontífice pessoas mais queridas no
mundo que as irmãs daquele mosteiro, e talvez nunca possa
fazer o suficiente para o bem delas. Suas Senhorias Reve­
redíssimas podem, por isso, compreender tôda a sua dor
pelo desgôsto causado; mas seu sofrimento aumenta ao pen­
sar que se afligiram diante do que deveria encher-lhes a
alma de alegria. Mas não vêem que as grades são dos mais
belos ornamentos da modéstia monacal e grande motivo de
edificação para os leigos? A disposição provém do Papa e
do colégio dos cardeais! Que vergonha para êle se, em uma
reunião cardinalícia, se contasse que a ordem não fôra
cumprida precisamente num mosteiro onde se encontram
três irmãs de Sua Santidade! E' para almejar que o Santo
Padre não venha a saber do acontecido, pois sofreria imen­
samente, êle que já tem tantas preocupações pela Igreja
universal! Não se inquietem, portanto, as Reverendíssimas
Senhorias, e já que foram sempre espelho de vida santa,
tornar-se-ão também fonte de disciplina para todos os outros
conventos".
Não deviam senão engolir a pílula amarga, apesar de
bem dourada, e pôr-se na linha. Ao invés, as monjas de Porta
Ludovica teimaram, protestaram e tornaram a escrever ao
Papa, que se viu forçado a pacificá-las, enviando-lhes in­
dulgências e medalhas, sem conseguir, porém, quase nenhum
resultado positivo; tanto que foi necessária tôda a energia
e paciência do cardeal-sobrinho para que as resoluções do
concílio fôssem aceitas pelas obstinadas irmãs. "Atreves-te

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a discordar das freiras? - havia-o advertido Pio IV -
isto significa pôr em erupção o Etna ... "
O arcebispo de Milão diligenciou para que, antes de mais
nada, se iniciasse a construção de um grande seminário
em Porta Ticinense. "E' meu dever - escreve - e responde
ao amor que sinto pelo povo que Deus me confiou, procurar
excelente educação não somente aos jovens destinados à
milícia eclesiástica, como também, apenas possível, a todos
os outros rapazes. Os bons filhos são a alegria dos pais, e
os meninos formados no temor de Deus, serão mais tarde
homens virtuosos, úteis à religião e ao mundo". E enviou
dinheiro e recursos. Mas quando soube haver sacerdotes
que, por amor do lucro, rezavam três ou quatro missas por
dia, ordenou que fôssem imediatamente encarcerados, a
menos que provassem serem obrigados a cumprir tão gran­
de abuso por miséria.
Nicolau, porém, já não se sentia capaz de afrontar
tantas e tão diversas dificuldades sem a presença real do
arcebispo; encorajava-o êste a persistir intrépido por mais
um pouco: "Quanto seja grande em seus pensamentos o
zêlo pelas almas, deduzo-o de numerosas provas, mas prin­
cipalmente do fato de que, tendo-se já consumido dia e
noite, não se concede trégua, nem mesmo quando parecem
faltar os últimos recursos da mais assídua vigilânc}a.
"O senhor se considera inferior a sua emprêsa; mas é
aqui que reconheço sua notável prudência disposta à mais
perfeita humildade. Proceda sempre virilmente, animado e
confiante em Deus; quanto menos confiar em si, tanto mais
Deus realizará por seu meio a salvação das almas. Não
gostaria mais de ver no senhor algum sinal de repugnância,
mas quisera que, entregando-se completamente à vontade
divina, se doasse com tôda a alma ao contínuo cuidado
daqueles que não são menos seus filhos muito amados que
meus".
A ânsia de alcançar a própria diocese fêz-se tão inten­
sa em Carlos, que escreveu, impaciente, a Gonzaga: "No
que diz respeito à minha vinda para Milão, se a viagem
dependesse de mim, o senhor poderia estar certo de ver-me
lá sem demora, tanto me é vivo o desejo de empreendê-la;
mas ela não está em meu poder, nem mesmo posso dizer
quando será efetuada".

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Era preciso, no entanto, pôr-se em regra, porque Car­
los não alcançara ainda a plenitude do sacerdócio. A sagra­
ção episcopal foi-lhe conferida no dia 2 de dezembro na
Capela Sistina pelo Cardeal Serbelloni, e a 23 de março
de 1564 o Cardeal Farnese entregou-lhe o pálio arquiepis­
copal.
Como já tivemos ensejo de notar em outras ocasiões,
quem mais lhe obstaculizava a partida era o tio. Carlos nun­
ca estava seguro de seu consentimento. Um dia lhe conce­
dia a permissão, e no dia seguinte, a retirava. Por três ou
quatro vêzes, desfez as bagagens. Assim, naquela manhã
do dia l 9 de setembro de 1565, quando Carlos deixava Roma,
em grande segrêdo e sem sequer a sombra do fausto, da
ocorrência popular e das honras que existiram somente
na cabeça de seus detratores, acautelava-se do perigo de pos­
sível negação que viria após uma aquiescência arrancada
três dias antes ao descontente Pontífice. Diante dessa amea­
ça, o Cardeal de Milão advertira que o sínodo se realizaria
igualmente e que seria, caso não estivesse presente, presidi­
do pelo bispo mais idoso.

9.
ROMANTISMO E REALISMO

Mas, desta vez, o concílio teria sido dirigido mesmo


pelo arcebispo titular. Principiava êle uma viagem festiva
e quase marcial, acompanhado por imponente cortejo, com­
posto de carruagens e de um séquito de juristas, literatos,
canonistas que, ou por amor, ou por admiração, ou talvez
por necessidade, colocavam tôda. a própria cultura a ser­
viço do nôvo astro nascente.
Certo dia, notando a amizade que reinava entre Car­
los e o santo cardeal português Bartolomeu dos Mártires,
Pio IV, bom mecenas da arquitetura que era, dissera ao
arcebispo de Braga com sutil ironia: "Estou certo de que os
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suntuosos palácios que meu sobrinho construirá em Milão
serão semelhantes aos que fareis edificar em Portugal. .. "
Como é notório, Frei Bartolomeu era célebre, não pelo
mecenatismo em favor da arte ou dos artistas, mas pela ri­
gorosa austeridade de costumes e pela vida santificada que
levava. Da mesma forma, Carlos partia para Milão não
para enriquecê-la de obras de arte, - apesar de também
nesse campo ter deixado vestígio indelével - e sim para
erigir algo mais insigne que a famosa Vila Pia, - uma
vida tôda exemplar de santidade, que tinha o fundamento
espiritual no livro Stimula Pastorum de Frei Bartolomeu,
publicado em 1564.
No entanto, para afastar de sua permanência na cidade
tudo o que fôsse aparatoso e pitoresco, - como talvez fa­
riam crer a comitiva e a cavalgada - nada quis de luxo e
de pompa no concílio provincial. Escrevera nesse sentido,
em têrmos claros e precisos, a Nicolau Ormaneto. Oferecerá,
sim, aos prelados, acolhida muito cordial, mas é preciso con­
ter-se nos devidos limites em tudo; a mesa será comum e
frugal, e a louça simples e vulgar; os objetos de prata, por­
celana e cristal deveriam ser substituídos pelos de terracota.
Para a sua morada, serão suficientes dois ou três apo­
sentos, equipados com a máxima simplicidade; o necessário,
e nada mais; um confôrto maior deverá ser reservado aos
prelados. Infelizmente, devendo retornar novamente para
Roma, não poderá renunciar a tudo; sua condição de Secre­
tário de Estado não o permite. Quisera, porém, que se tives­
se já um idéia de como ser.á a sua vida quando residir para
sempre com seu povo.
O que pretenderá realizar, revela-o durante aquela
sua primeira viagem episcopal; os grandes e os potentes
honram o sobrinho do Papa como a um príncipe hereditá­
rio; mas Carlos de nada se interessa senão em interrogar a
todos sôbre o que deve executar, pensando em providenciar
o que é possível, e fazer tudo com brevidade e cuidado.. As
atenções não pode refutá-las, pois além de arcebispo de Mi­
lão e sobrinho do Pontífice, é também, e principalmente, le­
gado pontifício. Sua passagem atrai as aclamações das mul­
tidões e as calculadas .cortesias dos nobres; mas tôda essa
glória mundana não o impede de observar as mínimas nor­
mas do cerimonial, de forma que poderá escrever ao bispo
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de Como: "Se algum êrro foi cometido, a culpa é do mes­
tre de cerimônias, e não minha".
Percorrendo cidades e povoados, contempla o estado de­
plorável da Igreja por tôda parte; a pompa exterior é in­
versamente. proporcional à vida religiosa. Recebe do Duque
Cósimo, em Florença, algumas boas notícias, como, por
exemplo, grandes louvores aos bispos de Sena e Fiésole,
mas também outras informações mais tristes - o arcebis­
po de Florença nunca aparecera na própria sede, e são
quarenta anos que a capital toscana .suspira pela presença
do pastor. A ignorância religiosa é geral, e há irmãs que
sentem a consciência tranqüila por que se confessam com
a madre abadêssa. . . Em compensação, goza, durante a
viagem, melhor saúde de quando em Roma. "A fadiga do
cavalgar, - relata ao cardeal de Mântua - o péssimo es­
tado das estradas e a selvagem solidão dos Apeninos não
conseguiram cansar-me. Em tôda a parte, procissões infi­
nitas de gente e imponentes recepções que me deixam mui­
to aborrecido, pois quando essas demonstrações se tornam
numerosas e clamorosas, acabam por aborrecer-nos".
E deve saber sorrir também diante dos incidentes desa­
gradáveis, como o que lhe aconteceu em Bolonha. Nessa ci­
dade, dezoito jovens das melhores famílias, todos trajando
sêda escarlate, barrete emplumado e forrado de veludo prê­
to na cabeça, e colares de ouro ao pescoço, escoltavam-no
durante a procissão. Quando Carlos ingressou na igreja de
São Petrônio para a bênção solene, ofereceram-se para to­
mar conta da cavalgadura. Finda a função, ao chegar o car­
deal-legado à porta da catedral, procura aqui e procura
acolá, do animal e dos jovens nem mais sombra ... Tinham
desaparecido guardas e mulas. Para resgatá-la, após ter
percorrido a pé todo o percurso entre São Petrônio e a re­
sidência que lhe fôra preparada, foi preciso desembolsar
considerável soma ...
Por tôda a parte onde passa, esbarra com desencora­
dora ausência de pastôres; as normas do concílio, longe de
terem sido aplicadas, em geral nã·o passavam de letra mor­
ta. Sente profundamente a espantosa miséria dos latifún­
dios e dos inquilinos, que viviam sob a dependência de pa­
trões negligentes, odiosos e quase sempre ausentes. Cogita
desde então nas vastas reformas que deverão custar-lhe a

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vida. Milão enche-lhe o coração de entusiasmo e amor:
"Para a minha cidade, que desejo ardentemente rever e que
considero filha amada, confiada a mim por Deus, farei tudo
o que me fôr possível". Preocupa-se também pela dignidade
e título que deverá ter ao ingressar na própria diocese.
Será melhor como arcebispo ou como legado? "O nome de
legado - escreve a Nicolau Ormaneto - é completamente
acessório à minha dignidade de arcebispo, e apresentar-me
à catedral e à cúria com tal denominação seria ofender
a modéstia que decidi conservar".
Em Placência encontra os primeiros prelados e juris­
consultos milaneses, vindos a seu encontro. Censura, cortês
mas firmemente, o bispo local, por não querer participar
do concílio, afirmando pertencer à outra diocese. Consegue,
por fim, convencer o rebelde a segui-lo. No rio Pó é home­
najeado por sete nobres da capital lombarda, delegados
da cidade. Começam a crescer sempre mais as multidões
e as reverências; em Melegnano, em forma privada, chega
o governador do estado milanês Gabriel Cueva para ren­
der-lhe homenagem. A 23 de setembro, dia de seus espon­
sais com Milão, transpôs finalmente os umbrais da cidade.
As ruas, desde a Porta Ticinense até a catedral, esta­
vam ornadas suntuosamente com tapêtes, quadros e tecidos
de sêda. Apenas os mais idosos dentre os habitantes podiam
recordar semelhante gradiosa ocasião, pois eram bém oiten­
ta anos que a cidade não assistia ao ingresso de um ar­
cebispo. A noite, o cardeal escrevia a Tomás Gallo: "Fiz
minha entrada como arcebispo com o pluvial e a mitra, mon­
tado em cavalo branco; e não como legado. . . e Sua Exce­
lência acompanhava-me debaixo do baldaquim, a alguns
passos de distância". Carlos Bascapé, que presenciava, ra­
pazinho, ao triunfo fulgente como visão, repete, no tumulto
das recordações, que a voz corrente na bôca de todos, naque­
la tarde, era uma só: "Chegou a Milão um outro Santo
Ambrósio!"
Os cônegos da catedral, os nobres e os burgueses agüar­
davam, reunidos, enquanto os barbudos soldados da guarni­
ção espanhola vigiavam o percurso, armados de pesadas es­
padas e tendo nas mãos arcabuzes e alabardas. E atrás das
filas dos militares, esco·ndia-se a grande plebe anônima dos
esfarrapados e dos pobres, aquêles que Carlos Borromeu

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amará e preferirá dentre todos os fiéis. Em Santo Eustórgio,
onde permaneceram sepultados os Reis Magos ( !) até o dia
em que o chanceler de Frederico Barba-Roxa os transpor­
tou para a catedral de Colônia, demorou-se para orar sôbrc
o túmulo do mártir veronense, o dominicano Pedro, truci­
dado quando se aproximava de Milão; e abandonando a
capa magna de legado pontifício para a Itália, vestiu os
paramentos episcopais.
O ingresso volveu-se solene e majestoso como nunca se
teria imaginado; os soldados, a cavalo, precediam a caval­
gadura do prelado, que passava abençoando à direita e à
esquerda; a multidão, ajoelhada e silenciosa durante a pas­
sagem, prorrompia logo depois em intermináveis aplausos
e clamores. Seguia o governador, em suntuosa armadura
de aço marchetada de ouro, acompanhado, por sua vez, por
uma série de fidalgos espanhóis vestidos de prêto, com fa­
ces de longas barbas a adornar os brancos colarinhos; logo
a seguir, vinham os senadores milaneses em togas, os nobres
italianos em ricas vestes, mais brilhantes e pitorescas que as
dos fúnebres estrangeiros e, por fim, o dero, os frades e os
cônegos. Na praça da catedral, o acompanhamento era des­
medido; o arcebispo apeou e subiu lentamente a escadaria
fronteiriça à porta ocidental; e quando se voltou para aben­
çoar os presentes, um único e imenso grito esgueu-sc do
povo: "Viva Santo Ambrósio!"
Afirma com acêrto Franceschi: "E' preciso deter-se ao
menos por uns instantes para contemplar êste espetáculo,
porque mais tarde virão as incompreensões, as desconfian­
ças e os vendavais; essa é a hora de comunhão entre o povo
que há oitenta anos não via bispos, e seu jovem pastor que
lhe fala de amor e lhe promete a vida inteira; não é cerimô­
nia de caráter oficial, nem momento de bela e comovida elo­
qüência, pois neste tempo Carlos não resplandecia ainda
por dotes oratórios. E para compreender qual recordação
solene está vinculada ao primeiro contacto entre o pastor
e o rebanho, seria necessário observar a diocese dentro de
vinte anos, quando um núncio suíço escreverá de Milão
que o govêrno espiritual da cidade é tão perfeito, que lhe pa­
rece nada menos que hierarquia angélica".

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10.
O SiNODO DIOCESANO

Finalmente, depois da última bênção, o cardeal levan­


tou-se e percorreu, a pé, em meio às duas filas da multidão,
muda pela devoção e admiração, ajoelhada e quase incapaz
de aplaudir, o breve trecho que da catedral vai ao palácio
arquiepiscopal - e não ao palácio Borromeu, onde lhe fôra
preparada a moradia, modesta como exigira de Nicolau.
E principiou outro e importante trabalho. O concílio provin­
cial fôra convocado, e devia-se agora preparar a recepção
de dez bispos e de cinco procuradores, representantes dos
prelados que não podiam comparecer; daí inúmeras pessoas
acompanhadas por um sem número de criados e cavalos.
Apresentaram-se igualmente dois cardeais, que exigiam e
mereciam conveniente moradia. Iniciaram-se assim a nova
vida febril e as contínuas vigílias que acabariam por minar­
lhe a existência. Pois durante o dia, nobres e autoridades não
deixavam de lhe roubar as horas mais preciosas.
Tendo-se espalhado a notícia de que o cardeal teria pre­
gado na catedral no domingo seguinte ao de seu ingresso,
o templo ficou abarrotado como jamais acontecera. Carlos
falou, não ainda com a grande eloqüência dos anos vindou­
ros, mas com segurança de pronúncia - desaparecera-lhe
a balbúcie - e com edificante piedade. Mas o fato extraordi­
nário, nunca presenciado por Milão, era ver um cardeal
evangelizar as t1,1rbas. O povo invadiu a igreja curioso e
retirou-se edificado; a gente do mundo, porém, agastou-se,
mofou e dirigiu-lhe chistes pouco benévolos.
O arcebispo sorriu diante dessas ironias e argúcias.
Aprendera em Roma a defender-se de bem outra espécie
de ataques, muito mais sutis e cortantes que o atual espí­
rito dos bons ambrosianos. E na festa de São Jerônimo,
depois da procissão solene, tornou a falar, não do púlpito,
mas do altar. Também esta, uma novidade. Quantos, diante
do fogo que transparecia nas palavras e no semblante, dei­
xaram escapar: "Possui o coração nos lábios!" Sinceridade
absoluta, zêlo ardente, e amor de Deus que consome, espí­
rito que vem diretamente do coração e vai imediatamente
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ao coração, personificação viva da oração. Accende lumen
sensibus. Infunde amorem corodibus.
De Madri chegava-lhe um breve de Filipe II, que se
congratulava com êle por seu grande amor à diocese que
lhe fôra confiada, e lhe prometia, em têrmos altissonantes,
o seu favor real.
O concílio provincial foi inaugurado no dia 15 de ou­
tubro de 1566, após grandiosa procissão, à qual participaram
três cardeais, dez bispos, abades, priores, cônegos e o clero
de tôdas as paróquias, precedido pelos estudantes paroquiais.
O arcebispo, do alto de seu trono, na catedral, promulgou
solenemente os decretos de Trento, e explicou que o presen­
te concílio diocesano fôra convocado em obediência a tais
resoluções e tinha o único escopo de pô-las em execução.
E talvez, somente então, pela vez primeira, olhando a
massa dos eclesiásticos reunidos ao redor do altar, com­
preendeu a vastidão da obra que se perfilava em sua fren­
te. Apresentou-se-lhe clara a configuração da Província,
com mais de cem milhas de circunferência e que compre­
endia o inteiro ducado de Milão, grande parte do território
vêneto, a região de Monferrato e a Suíça católica; em resu­
mo: duas mil e duzentas igrejas, mais de três mil eclesiásti­
cos, cêrca de cem conventos femininos, cem de monges e
frades, e meio milhão de fiéis.
"Era verdadeiramente responsabilidade terrificante,
- nota Margarida Yeo - impossível de ser acometida
por uma única pessoa. E quantas daquelas faces que pare­
ciam pálidas na sombra, sôbre o fundo das túnicas pretas,
marrons e purpúreas, prometiam ajuda? E quantos entre
os obesos e cômodos cônegos, os rudes vigários do interior,
de rostos bronzeados, os abades bem alinhados, ou os pom­
posos prelados, geralmente crescidos em ambientes de sos­
segada indulgência, davam sinal de fervor espiritual ou
sinceridade de intelecto?"
Durante os quinze dias do concílio, Carlos teve ocasião
de sondar desde o início a fôrça da fé, a resistência à fadi­
ga e o ardor religioso dos legados. Um seu ex-colega da uni­
versidade de Pavia escrevii.l: "Estamos todos abatidos, exce­
tuado o Cardeal Borromeu. Suporta os incessantes cansa­
ços com tão milagrosa tenacidade, que nos deixa todos
assombrados I" Trabalhavam dia e noite, sem perder um mi-

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nuto sequer. Os prelados ouviam as sutis disquisições sô­
bre os tratados tridentinos, seus argumentos para um retôr­
no às rigorosas regras do bom tempo antigo. Na base de­
veriam encontrar-se a obra e o zêlo dos pastôres que, vi­
vendo em meio à própria grei, salvaguardariam a sua fé,
animando os párocos a reavivá-la em tôdas as paróquias,
verdadeiras células do organismo eclesiástico. Os repre­
sentantes da autoridade civil não realizariam nunca coisa
tão útil ao bem e à segurança própria e dos povos subme­
tidos a sua autoridade, como sustentar a religião, favore­
cendo a obra de seus ministros. ltsse, o sucesso da pregação
de Carlos.
Naturalmente, como sempre sói acontecer, os mais jo­
vens entusiasmaram-se fàcilmente diante das perspectivas
de uma nova cruzada; os mais idosos, porém, acolhiam tô­
das essas novidades torcendo melancolicamente o nariz. Era
principalmente o dever de residir no benefício donde lhes
provinham as rendas, que mais afligia os beneficiários.
Tanto mais que precisavam contentar-se, renunciando a dois
ou três benefícios, a conservar como próprio somente o que
lhes causava a tristeza maior, ou seja, a obrigação de nêle
residir.
Interrogavam-se mutuamente se o fato de haver feito
todos aquêles grandes e universais protestos para �onseguir
um arcebispo estável não tivera sido cair do caldeirão às
brasas. A delgada face barbuda, o saliente nariz aquilino, os
olhos agudos, castanhos e penetrantes, que pareciam tudo
ver e inquirir, não prometiam nada de bom. Tudo muito di­
ferente dos bonitos e gordos prelados, tranqüilos e suave­
mente indulgentes a tôdas as debilidades, com aquêle siste­
ma de deixar correr e confiar tudo à Providência, sem
cooperar com a graça, - que era o modo habitual de agir
dos eclesiásticos do tempo! O lugar dos santos é o paraíso;
mas aqui na terra necessita-se de homens que saibam com­
preender e compadecer as fraquezas humanas! �ste o pen­
samento da maioria, após quinze dias de massacrante reunHi"o.
Os potentados, por sua vez, não compreendiam como
se pudesse governar sem a Inquisição. Carlos declarara aber­
tamente que os métodos de então, mais favoráveis à políti­
tica que à fé, não eram feitos para seu povo e jamais os
teria usado. Cabia ao arcebispo e ao bispo vigiar contra
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as infiltrações heréticas e, quanto às leituras, o índice dos
livros proibidos era suficiente para impedir a difusão de
idéias contrárias às aceitas e divulgadas pela Igreja. Nem
creiam os senhores pintores, escultores e arquitetos, de fugir,
com a desculpa da arte, às disposições vigentes em matéria
de austeridade na arte sacra! Se a arte está destinada a ser­
vir à Igreja, deverá respeitar rigorosamente a verdade re­
ligiosa e a dignidade dos lugares santos. Serão também
proscritas as vulgaridades grotescas nas sagradas represen­
tações, e severamente perseguidas e impedidas as supersti­
ciosas formas de magia e comércio com os espíritos demo­
níacos, a blasfêmia e a profanação dos dias festivos. Havia
assunto e trabalho, como se vê, para todos e por bastante
tempo!
Para instituir os seminários - e grande era sua neces­
sidade! - obter-se-ão os fundos das mesas dos bispos, de
cujas residências serão banidos o luxo e todos os gastos
inúteis. Em compensação, dever-se-ão ornar mais as igre­
jas, tornar decentes e acolhedores os hospitais, e salvaguar­
dar de tôda a mundanidade os mosteiros.
Que terremoto para a pacífica vida dos privilégios e
das cúrias tranqüilas e consuetudinárias! E, ao invés, que
alegria e gôsto para Carlos! itsses sentimentos transborda­
rão do coração do arcebispo no último dia do sínodo: "Sin­
to-me contente por ter retornado à tradição dos concílios
1:egionais, interrompidos há tanto tempo; todos sabem quan­
to é penoso reexaminar as causas da decadência espiritual
existente até hoje; ponhamos mão à obra na renovação
geral e lancemos corajosamente os fundamentos, aceitando
os decretos tridentinos!
"Nas gangrenas, empreguemos o ferro e o fogo; mas
onde a ferida é cicatrizável, usemos o azeite do samaritano,
pois somos pais e não patrões. Retornemos às fontes da san­
tidade, às almas apostólicas, que eram simples, castas, hu­
mildes no vigiar o rebanho, e cultivavam com trabalho ár­
duo e alegria apaixonada a vinha do Senhor. Nutriam os
cor<leirinhos com o tríplice alimento da palavra, do exem­
plo e dos sacramentos; incitados por ricas lembranças, imi­
tavam o Pastor Supremo que doou generosamente a vida
e o sangue por sua grei".

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ADEUS!

O programa era maravilhoso, sem dúvida. Não faltava,


todavia, quem - colocado em altos postos - andasse preo­
cupado, segundo o que nos refere Bascapé, "porque estava
convencidíssimo de que tantos bonitos projetos não se teriam
podido pôr em prática, e que o cardeal acabaria por fazer
uma péssima figura". Francisco Alciati, por outro lado, es­
crevia-lhe de Roma, falando-lhe do estupor ali reinante
diante do que conseguira realizar em tão breve tempo.
O futuro Gregório XIII, por exemplo, também êle já
residente na sua Cremona, narrava satisfeito: "Estando em
visita pastoral por sua insinuação, consegui vencer meu
inato temor; em sua palavra lancei as rêdes e, oh mara­
vilha! Fiz duas práticas ao povo, em Caravággio e em Son­
cino, não sem grande fruto para a minha grei. Comunico­
lhe o que me aconteceu porque sei dar-lhe prazer e, além
disso, é justo que lhe diga quanto apreciei o conselho que me
prestou". Também o arcebispo de Siponto, que vivia sossega­
do em Roma a gozar dos frutos dos próprios benefícios, en­
tre os plácidos ócios romanos, envergonhado diante da li­
ção de Carlos, não pôde deixar de seguir-lhe o exemplo e
ir à sua diocese para convocar o concílio.
Em face dos progressos obtidos, Carlos considerava-se
feliz. Aos vinte e sete anos, já podia orgulhar-se de ter
lançado as sementes que outros velhos prelados não tinham
conseguido espargir, permanecendo na quieta sede romana.
"Posso afirmar que todos os meus desejos se cumpriram -
notifica ao Cardeal Sirleto; se Vossa Senhoria penetrar até
o fundo do meu espírito, conhecerá minha imensa alegria;
posso confessar que a ânsia de realizar algo para a glória
de minha Igreja e para a salvação das almas era grande
como a minha obrigação; mas agora sinto-me contente, pois
todos os decretos estabelecidos durante o sínodo, estão con­
formes às pias recomendações de Vossa Senhoria".
O próprio Papa manifesta profundo regozijo diante
dos resultados obtidos pelo sobrinho; mas dá-lhe logo o
desgôsto de obrigá-lo a abandonar a diocese para ir a Tren­
to a fim de receber as duas irmãs do imperador Maximi- ·

110
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liano, Bárbara e Joana, que desciam à Italia para desposar,
respectivamente, os duques de Ferrara e de Florença. E
acrescentava que, se não fôsse por aquêle motivo, ter-lhe-ia
ordenado de voltar sem demora para Roma, agora que o
concílio milanês acabara.
Para chamá-lo à cidade eterna esforçavam-se também
cardeais, como Gámbara e Pacheco, que o ameaçavam com
os raios papais, se não tivesse retornado imediatamente à
côrte pontifícia - o seu verdadeiro lugar. Mas desta vez
Carlos respondia sêca e brevemente: "Conquanto tenha ti­
do sempre em consideração o parecer do Papa, hoje não
o faço; tenho a meu favor o concílio tridentino que prescreve
aos bispos residir nas próprias dioceses. E a mais, se o se­
nhor soubesse com quanto agrado estou ligado a minha
Igreja, certamente não me perturbaria a felicidade!"
O Papa, porém, j.á preparara o motivo para o obrigar
a voltar. Tendo falecido o Penitenciário Maior Cardeal
Ranúcio Farnese, o Sumo Pontífice designou-o seu suces­
sor, com bula datada a 3 de novembro. Seguiu junto a or­
dem de pôr-se a caminho em companhia das princesas,
aproveitando da escolta e dos meios imponentes da viagem.
Foi forçoso ceder às intimações do tio. Em Fierenzuola re­
cebeu a notícia de que Pio IV estava para morrer; abando­
nou então as damas a seu destino e dirigiu-se para Roma
com a máxima celeridade possível.
Chegou a tempo para receber o último suspiro do tio.
No conclave ultimado a 20 de dezembro de 1565, dez dias
somente após a morte do Pontífice, predominaram três
personagens: Carlos Borromeu, Alexandre Farnese e Hi­
pólito D'Este. A luta pela tiara foi renhida, sobretudo entre
os dois últimos, - sendo Carlos demais jovem para ser
elevado ao pontificado. Julga�a-se, contudo, que sua in­
fluência como sobrinho do Papa anterior teria sido decisiva
na escolha final. Enquanto os cardeais ingressavam no Va­
ticano depois da missa do Espírito Santo, um dêles volveu-se
para Carlos, pedindo-lhe conselho: "Quem devemos eleger
como Papa?" "Aquêle que Deus escolheu!" foi a certamente
não comprometedora resposta do arcebispo de Milão.
O conclave decorreu pacificamente, sem intrigas de po­
tentados estranhos à Igreja. Filipe II compreendeu bem
que, para aplicar os decretos de Trento, era necessário não
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um Pontífice rico e amigo do fausto, qual teria sido Ale­
xandre Farnese, ou tim diplomata como Hipólito D'Este,
mas sim, um santo. Carlos bateu-se pela nomeação de Antô­
nio Ghislieri, canonista de primeira categoria, dominicano
de vida rígida, de pureza e integridade incontestáveis.
Os homens do mundo não estavam contentes com a
eleição dêsse inflexível defensor da Igreja que, como Gran­
de Inquisidor e cardeal sob Pio IV, demonstrara tôdas as
qualidades essenciais para atuar a reforma. Informado da
decepção dos potentes da terra, Antônio exclamou muito
simplesmente: "Governarei, com a ajuda de Deus, de tal
modo que seu desagrado na hora de minha morte será
ainda maior do provado na eleição!"
Carlos ficou satisfeitíssimo pela opção e rapidez do con­
clave, e preparou-se para seguir sem demora à própria
diocese, e dessa vez, para sempre. Ao invés, o nôvo Papa
concedeu-lhe logo provas da máxima benevolência e con­
fiança, convidando-o a permanecer ainda, pelo menos, por
três meses na Cidade Eterna. Tempo necessário para entre­
gar a Secretaria de Estado e concluir v.árias obras, como,
por exemplo, a igreja de Santa Praxedes; restaurou-lhe a
fachada, a abside, e reconstruiu por completo o altar, o
soalho, o claustro e a casa adjacente par.a os religiosos.
Finalmente, no fim de março de 1566, reduzida nova­
mente a família cardinalícia a oitenta membros, - que
mal se adaptavam a sua vida austera - partiu ocultamente
de Roma e, após visitar com grande alegria de espírito, pe­
la primeira vez, o santuário de Loreto, entrou, a 15 de abril,
em Milão, sem pompa, quase secretamente, mas, em com­
pensação, com o firme propósito de nunca mais afastar-se
do rebanho amado.
Durante os cinco anos de permanência em Roma, o
cardeal, além da parte importantíssima efetuada no Concí­
lio Ecumênico, reformara não somente Santa Praxedes e as
outras suas duas igrejas titulares, a dos Santos Vito e Mo­
desto e a de São Martinho, mas muitas outras. Ajudara, eco­
nômica e moralmente, os teatinos, os jesuítas e o Oratório
de São Filipe Néri - o amigo a quem mais amou em Roma
e durante a vida inteira, apesar da diferença de caráter e
método.

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Além de tudo isso, conduzira a têrmo o catecismo ro­
mano, iniciara a revisão do breviário, do missal e da vulga­
ta, a reforma do Penitenciário, promulgara os decretos tri­
dentinos e tinha mantido vasta correspondência não somen­
te com Trento, como também com todos os países da Europa
Ocidental. Mas, em confronto com tudo isso, o que produ­
ziu melhores frutos foi o seu exemplo.
Jerônimo Soranzo, cínico e desiludido como a maior
parte dos astutos embaixadores vênetos de então, em 1565
escreveu a respeito de Carlos: "Sua vida é absolutamente
sobrenatural. Seu zêlo religioso é tão grande, que se pode
afirmar com certeza que êle é mais útil à côrte romana que
todos os decretos do concílio. E' verdadeiramente extraordi­
nário ver êsse sobrinho do Papa, ainda em pleno vigor da
juventude, num ambiente repleto de tentações, ter conquis­
tado a si mesmo e o amor do mundo!"
Os cinco anos romanos teriam podido representar, pela
profusão de empreendimentos realizados e pelo exemplo
proporcionado, passo decisivo e definitivo para muitas ou­
tras pessoas que se julgariam muito bem recompensadas
com os resultados obtidos. Para os homens votados a um alto
destino de santidade edificante e de exemplo para deixar
aos pósteros, cinco anos vividos na côrte pontifícia não pas­
savam de exercício para provar a verdadeira vocação.
Completava Carlos vinte e oito anos, quando empreen­
deu a segunda parte de seu caminho, a mais árdua e a mais
decisiva. E lhe restavam somente dezoito anos para levar
a têrmo uma das mais prodigiosas lições de santidade que
o mundo moderno tenha conhecido. Enquanto saía de Roma,
recordou emocionado as últimas palavras do tio moribun­
do: "Senhor, deixa agora que o teu servo parta em paz!"

Vida de S. Carlos - 8 113


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PARTE III

O PASTOR
E O REBANHO

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1.

O GENERAL SEM EXÉRCITO

Quando os. milaneses, nas primeiras horas do alvore­


cer do dia 6 de abril de 1566, despertaram para recomeçar
as lidas cotidianas, não imaginavam, por certo, que o ar­
cebispo, após poucas horas de sono depois do ingresso semi­
clandestino da véspera, se encontrava já pronto para cele­
brar a primeira missa na catedral, para ocupar-se, em se­
guida, com Nicolau Ormaneto sôbre assuntos relativos à
diocese. Os trabalhos a realizar eram quase infindos, e o
tempo para executá-los muito breve! A sensação da fugaci­
dade e da brevidade da vida tornou-se, depois do retôrno
a Milão, impelente para o nosso santo. As mortes rápidas e
improvisas, que em sua casa eram habituais, certamente não
constituiriam exceção para quem, após o fim doloroso do
irmão, se considerava forjado do metal comum a todos os
parentes. Um metal forte, mas que se consome ràpidamente.
No entanto, entregou-se de corpo e alma à atuação da Re­
iorma; e, primeiramente, em sua casa. Para consegui-la,
eram imprescindíveis a energia e a decisão. Não dispunha
de muitas fôrças auxiliares, para usar têrmos militares,
e pouco ou mal armadas, espiritualmente falando. Nicolau
havia dito e repetido isso em todos os tons. Durante o sínodo,
que f ôra como que teste inicial da boa vontade dos que de­
veriam ajudá-lo, Carlos pudera constatar, em todo aquê­
le vaivém de gente e o afã de sacerdotes em fazerem pergun­
tas e retirarem-se cautelosos e medrosos, que sua "mística es­
pôsa", apesar de bela e esperançosa, era rebelde à obediên-

117
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eia e lenta no despertar do letargo em que há tanto vivia.
As próprias pessoas que deveriam acompanhá-lo lado a lado,
na grande obra de regeneração, estavam dispostas a abando­
ná-lo ao sobrevirem as dificuldades, circundando-o quase sem­
pre com a mais obstinada hostilidade.
C:arlos Bascapé comenta tais tempos com uma observa­
ção. . . profundamente singular: "Não se deve considerar
infelizes aquelas cidades que causaram muitas tribulações
a seus bispos; o que devemos é congratularmo-nos com
elas por terem tido pastôres tão santos; apresentemos, por­
tanto, nossos cumprimentos a Londres, que matou Tomás
de Canterbury, e a Florença, que espancou e feriu Santo
Antônio; e depois rejubilemo-nos com êsses bispos persegui­
dos, por terem recebido tão valioso prêmio!"
Cândido Bascapé! Pedro Giussano, porém, que talvez
amasse as tintas fortes, mas que andava informado de como
se passavam as coisas, deixa-nos de Milão daqueles dias um
quadro pouco lisonjeiro que, considerado à luz dos even­
tos políticos e do que outros narram da capital lombarda nos
vários campos de sua vida social e espiritual, não está lon­
ge da verdade.
Naufragara, quase por completo, a jurisdição eclesiás­
tica, devido a mais de meio século de total abandono por
parte de um guia esperto e de um clero que, renunciando
a todo o freio e privado de qualquer contrôle, vivia pior
que os leigos. Os sacerdotes vegetavam sómente, vadiando
noite e dia, munidos de tôda a espécie de armas, sem ne­
nhuma preocupação pelas próprias igrejas, que decaíam de
maneira cada vez mais assustadora. Assistência religiosa,
direção espiritual ou conselhos para uma alma necessitada?
E quem poderia fazer tudo isso? Quem, sobretudo, possui
vontade de o fazer? Pense-se que certos curas já não re­
cordavam nem sequer a fórmula da absolvição, e como não
administrassem o sacramento da confissão, estavam conven­
cidos de que muito menos êles precisavam de tal sacramento.
O povo dirigia aos pastôres espirituais o mais irônico des­
prêzo: "Se queres visitar o inferno, o caminho é o sacerdó­
cio!" Imaginemos que espécie de estima!
E os conventos? Um pouco menos dissolutos os habita­
dos por frades, mas quanto aos femininos!. . . O pobre ar­
cebispo deverá lutar não pouco para reconduzir os institu-

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tos das monjas ao que foram nos tempos de fervor e torna­
ram a ser durante o seu ministério; e encontrou continui­
dade, por grande fortuna, no Cardeal Frederico, que cer­
tamente teria subido à glória dos altares, se j.á lá não se
encontrasse Carlos!...
Os claustros, e principalmente as clausuras, não pas­
savam de poeira para os olhos. Havia contínuas recepções,
e dava-se hospitalidade com a máxima facilidade a damas
que vinham esconder seus pecados - que eram numero­
sos e escandalosos como os hodiernos; haviam-se tomado,
enfim, salões onde se dançava a mais não poder. A ignorân­
cia de Deus tinha alcançado tal grau, que muitos já haviam
perdido o conhecimento de todos os sacramentos, e a po­
pulação morria sem comunhão e confissão, com um des­
cuido que fazia duvidar que se vivesse em terra cristã.
O povo, adormecido pelo govêrno que o dessangrava
continuamente com ladroeiras e taxas, e por um clero que
t•stava sempre do lado dos potentes, preocupado unicamen­
te de viver. . . para engordar, jazia em estado miserável,
defendido por ninguém, espezinhado por todos e enganado
sempre que fôsse possível. Compensava-se, então, com bai­
les, torneios, bacanais públicos e privados, caçadas e mas­
caradas. E após o banquete que seguia à primeira missa do
neo-sacerdote - quanta diferença do pedaço de pão sêco
e prêto de certos santos! - vinham os festins de arrebentar o
estômago, com as conseqüentes procissões de penitência.
que se transformavam geralmente em grotescas e vergo­
nhosas paródias!
Os templos tinham-se convertido em lugares de encon­
tros para contratos e reuniões, não se respeitando nem se­
quer as funções, que se desenrolavam em ritmo acelerado e
cerrado, pois os afazeres mundanos urgiam muito mais que
os divinos. E quantas vêzes, evaporado o perfume do incen­
so diante do Santíssimo Sacramento, as igrejas tomavam o
aspecto de amplas salas de baile, ou senão, de tabernas
apropriadas para banquetes e borracheiras ! Quando - coi­
sa sem dúvida muito menos indigna! - não eram usadas
para malhar o trigo ou a aveia, e o ribombo das pancadas
ecoava estrondosamente pelas naves da igreja!. ..
Nem faltavam os espertalhões que fingiam confessar-se,
_embriagados como estavam, para ter o gôsto de ver o con-
119
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fessor fugir diante da ostentação de suas velhacarias e afir­
mações licenciosas e sádicas. E quem se retirava quase
sem,pre o fazia para não estourar também êle em ruidosas
gargalhadas; não certamente por horror e devoção. Durante
o carnaval, no primeiro domingo da quaresma, acontecia,
freqüentes vêzes, que os sacerdotes, no entusiasmo de insen­
sata estúrdia, entoavam o aleluia da Ressurreição... com
cert� antecedência! Não pareçam histórias narradas para
colorir o quadro! Giussano fala, é verdade, com aquêle seu
tom algo impetuoso e inclinado ao trágico, mas Ferragata,
Oltrocchi e Ormaneto, essas e outras alegrias as colocam em
pratos limpos a Carlos em suas cartas. Que de vêzes depara­
ram com vigários que estavam governando uma paróquia
havia trinta anos sem jamais ter recebido as ordens sagradas,
e com certos bispos que, ao administrar o sacramento da
Crisma, tinham sido enxotados pelo povo que nunca os
vira uma vez sequer! ...
Oltrocchi nos relata, por exemplo, que o palácio arquie­
piscopal já não possuía móvel algum, as mitras e o báculo
tinham sido vendidos, as janelas prestes a desmoronar, as
portas rachadas, e a imudície que se acumulava nos pátios
era tanta, que quando se pretendeu assear o casarão, fo­
ram carregados cem carros de lixo.
Bem diversa era a condição das cidades governadas
por príncipes e reis italianos, como Turim, onde Emanuel
Felisberto e Carlos Emanuel I tudo fizeram pelo bem dos
súditos; a religião era defendida, também se algumas vê­
zes o rei se intrometia, talvez excessivamente, para retifi­
car algum êrro feito por pastôres muito zelosos ou por in­
quisidores inflamados! Mas já é historicamente provado
que não existiram piores senhores que os espanhóis em to­
do o mundo, tanto no nôvo como no velho; e que, de cá e
de lá do oceano, o fim do seu domínio é saudado com razão
como a libertação da mais execranda escravidão! '
1) A asserção do autor talvez não deva ser tomada ao pé da
letra. Houve, sim, excessos por parte de todos os colonizadores; não
sei, porém, se os mais culpados são precisamente os espanhóis ...
Nem é justo incriminar uma nação inteira por, causa de alguns indi­
víduos. Compreende-se fàcilmente a indignação do autor, se lembrar­
mos que o norte da Itália pertenceu por muitos anos à Espanha. E
afirmar que a causa da decadência � do ·relaixamento espiritual em
que viviam o clero e a população era unicamente a dominação
espanhola não espelha em tudo a verdade histórica (N. tlo T.).

120
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As autoridades, assim chamadas governamentais, eram
a expressão do século. E' o século das Majestades Católicas,
das Majestades Cristianíssimas e do Imperador do Sagrado
Romano Império; pululavam os Condes, os Duques, os Vice­
reis, os Infantes, os Governadores, os Senados, as Juntas, os
Excelentíssimos, os Magníficos e os Reverendíssimos; é o
tempo das Academias, dos Doutíssimos, dos Ilustríssimos e
dos Digníssimos. O 1ssimo estava na moda; mas a miséria
que se ocultava sob o superlativo, era igual, senão superior,
ao grau máximo do qualificativo ...
As autoridades, excessivas que eram, acabavam por
destruir-se umas com as outras. E mandavam às favas a lei
e principalmente a justiça, sua guarda mais segura. A in­
justiça e a negligência do método de govêrno exercido pelos
espanhóis, tornaram-se proverbiais; e apesar disso, nenhum
mau govêrno publicou tantas e tão disparatadas leis com
penas de fazer eriçar os cabelos! "Aqui cabe tudo; é como
o vale de Josafá", dizia o famoso advogado de "Os Noivos"
a Renzo. E acrescentava que "sabendo-as manejar, ninguém
é réu e ninguém é inocente". O que importava é que fôssem
salvos a forma e seus representantes - os gentis-homens,
os cavalheiros de capa e espada, as personagens de toga,
- eis o que se pretendia das prescrições e dos editais.
No resto, o que tenha sido a sociedade milanesa e ita­
liana no tempo e lugar onde vigorava o predomínio espa­
nhol, deixou-nos páginas imortais Alexandre Manzoni; e
por onde andou Dun Lisander, • ninguém mais pode passar.
2) Lisan.der é modificação dialetal de Alexandre. Em nosso caso
o autor refere-s,e a Alexandre Manzoni (N. do T.).

2.
REFORMAR-SE PARA REFORMAR

Carlos veio a cair nesse ambiente como l'enfant terrible


em uma sociedade composta de gente compassada e decidi­
da a conservar a forma de qualquer maneira. E num mun-

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do em que o sentido verdadeiro da religião desaparecera
quase por completo, para ser substituído pela negação da
fé, que é a superstição, começou a cultivar a idéia do dever,
colocada em germe no coração de todos os homens, e obteve
verdadeiros milagres. Ninguém, mais do que o arcebispo,
manifestava, profundo e universal, o sentimento de comi­
seração pelos sofrimentos morais e físicos, que afligiam
um povo atordoado e inconsciente. Assim, volvendo as cons­
ciências para Deus resoluta e corajosamente pôde consta­
tar prodigiosas mudanças durante os dezenove anos de vida
pastoral.
No início, porém, quantos momentos de esmorecimen­
to! Quantas vêzes foi visto esconder o rosto entre as mãos
e chorar as misérias daquela sua Milão que decidira nun­
ca mais abandonar! Apenas chegado, fizera o firme pro­
pósito, caso fôsse constrangido a abandonar a diocese ou a
renunciar à púrpura, de escolher o segundo caminho. Obri­
gou-se solenemente a não olhar a comodidades de horários
no trabalho e repouso, no sono e alimentação. Ou supera­
ria as dificuldades e daria à cidade o semblante de que ca­
recia, ou morreria na emprêsa; a quem lhe fazia notar o
perigo em que punha a vida, respondia: "Oxalá fôsse verda­
de! Podeis estar certos de que Deus enviará sem demora a
esta Igreja um pastor muito melhor que Carlos!"
E começou a reformar. . . inicial e novamente a si mes­
mo. O luxo ofendia os pobres e a riqueza alheia insulta­
va-os? Ei-lo então, em meio de tôda aquela pompa, aquela
insolência de insultante riqueza, a tornar-se o mais indigente;
em meio da inércia e lentidão com que se arrastavam as coi­
sas mais necessárias para reparar o mal e emendar um
abuso, ei-lo a transformar-se no mais solícito, no mais incan­
sável, e num ambiente de geral egoísmo, a converter-se no
mais generoso e no mais humilde!
Assim, segundo o testemunho de Giussano e de Oltroc­
chi, concordes em referir as mesmas informações e no assina­
lar as mesmas ações realizadas pelo santo, de tudo o que
trouxera consigo de Roma, doa os tapêtes do duque de Mân­
tua à catedral desadornada, e vende tôda a argentaria, sa}.
vo poucos utensílios indispensáveis, em benefício dos neces­
sitados; os quadros, as estátuas de prata e de bronze tor•
num-se propriedade dos institutos de caridade, e os objetos

122
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sacros, da Basílica Liberiana. Vigiava pessoalmente para
que tudo estivesse no devido lugar. Perguntando-lhe certo
eclesiástico se estava disposto a ceder-lhe um grupo mar­
móreo representando Vênus e Cupido, teve uma resposta
talvez inesperada: "Satisfaria seu desejo se não fôsse um
homem de Igreja, a quem não convém semelhante obra!"
Principiou por desfazer-se das numerosas prebendas e
abadias que possuía, e chegou a despojar-se de tôdas sob o
pontificado de Gregório XIII. Somente não pôde transferir
a abadia de Arona, que teria desejado imensamente passas­
se aos jesuítas - e foi Pio IV quem insistiu para que con­
servasse o cargo de Penitenciário Maior, porque, dizia o
pontífice, "também se distante, tua administração é ótima,
e torno-me eu fiador diante de Deus". Os cem mil escudos
anuais obtidos dos benefícios eclesiásticos, reduziu-os bem
depressa para menos de vinte mil, presenteando com o du­
cado de Romagnano· o parente Ferreri, e delegando aos tios
as rendas da terra natal.
Apartou-se ràpidamente de tudo o que fôsse humano
e esforçou-se para tornar a vida espelho de verdadeira pe­
nitência. A residência tornou-se ninho de místico recolhimen­
to; longe de recordar o ambiente de uma côrte quinhentista,
assemelhava-se ao oratório de Filipe Néri. Acercara-se, des­
de o início, de uma centena de pessoas dispostas a viver
como seu arcebispo, cultas tôdas, sem dúvida, mas princi­
palmente, bem preparadas a servir não a êle, príncipe da
Igreja, e sim à própria Igreja e aos fiéis. Tendo-lhe Nicolau
Ormaneto proposto um indivíduo muito hábil no desemara­
nhar os labirintos das leis, mas delicado de saúde, ouviu
replicar: "Não! Se gozar de pouca saúde, não me convém,
pois dificilmente suportar,á as fadigas a que nós aqui, a
começar de mim mesmo, devemo-nos sujeitar!"
Amava homens como Ludovico Sudeno que, à proposta
de habitar com o cardeal, respondeu: "O que devo fazer
em sua companhia e com que métodos se viva ali, não sei
nem me preocupo por sabê-lo. Eu responderei à chamada
de Deus; em tudo o que me fôr confiado, demonstrar-me-ei
fiel e diligente conforme minhas fôrças; levarei comigo reta
intenção e muita boa vontâde".
Narra Pedro Giussano de um familiar, muito inteligente,
que gozava de pequeno e simples benefício, ao qual Carlos

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desejava que renunciasse. E como não fôsse obedecido, li­
cenciou-o, colocando-o, contudo, a serviço de um nobre que
não era lá muito escrupuloso . . . Retribuía a justa mercê
segundo os ofícios ocupados, o trabalho e a responsabilidade,
mas ninguém devia aceitar regalos: "Vós não podeis com­
preender quanto os dons, também os mais modestos, sejam
capazes de enfraquecer a vontade!"
Poucas pessoas de seu tempo conseguiram igualá-lo co­
mo condutor de homens. E sabia pôr bem à prova os que o
cercavam! Acontecia ser-lhe alguém recomendado como no­
bre cavalheiro ou grande intelectual? Experimentava-o, co­
locando-o por não pouco tempo a fazer o caudatário, ou a
levar as bagagens durante as visitas pastorais. Se o candi­
dato demonstrava muita ânsia por subir a escada das hon­
ras, podia estar certo de que teria permanecido por longo tem­
po sem nada realizar, ou pelo menos, seria destinado aos
ofícios mais humildes, para ver se resistia sem provocar
alguma tempestade.
Minucioso e atento como era, encetou, na desordem ge­
ral, pôr em ordem a própria casa. Dividiu a família em
oficiais superiores, vigários, fiscais, escrivães, auditores, cô­
negos e mestres de casa, que constituíram a cúria propria­
mente dita, seguidos pelos clérigos privados de ordens sa­
cras, e pelos leigos. A vida espiritual era presidida por um
diretor, que celebrava a missa para os não-sacerdotes, en­
sinava-lhes a doutrina cristã em determinadas horas, e assis­
tia-os na meditação. Os sacerdotes oficiavam em comum.
Nas refeições, tomadas juntamente, praticavam a leitura,
também se tivesse presente algum bispo.
No arcebispado não se encontravam armas de nenhuma
espécie, e os momentos de folga, bem como as conversas
familiares, eram governados por muita modéstia e majes­
tade. Nas longas noites hibernais, fazia-se círculo em vol­
ta do fogo, e o cardeal, se as ocupações lho permitiam, di­
rigia os diálogos, que versavam sempre sôbre argumentos
de religião, filosofia e arte. Durante os primeiros anos, Car­
los fêz as refeições com os domésticos; mais tarde, porém,
foi visto rarear sempre mais, pois havia inaugurado aquê­
le. sistema de abstinências que o levariam a um jejum qua­
se perene.
124
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Mostrava-se intransigente quando se tratava da disci­
plina e do teor de vida; e também com seus parentes. Cer­
to dia, passava por Milão o cunhado César Gonzaga e hos­
pedou-se no palácio arquiepiscopal; Carlos encontrava-se
ausente no momento e enviou ao mestre de casa uma men­
sagem: "Cuidai para que nessa ocasião não venha a sofrer
em nada a ordem da família; adverti outrossim a César que
seja pontual ao retornar antes das vinte e quatro horas, -
pelo anoitecer, segundo o cálculo do tempo, - porque é
nessa hora que se costuma colocar a tranca nas portas".
César, naturalmente, nunca esqueceu a lição, e quando
visitava Milão, esforçava-se para hospedar-se com quem
o deixava livre para regressar à hora que quisesse; vinha
sempre acompanhado de pajens que levavam lanternas
diante da liteira, e por um séquito de capangas a sustentar
tochas, coisa que o arcebispo não via de bons olhos, porque
havia muito abolira os cortejos de homens armados.
Apenas chegado à diocese, procurou inculcar em todos
os colaboradores desinteressado amor aos doentes e pobres,
pr.ática essa que foi sempre crescendo com o passar dos
anos. Narra-nos o bom Carlos Bascapé: "Recordo-me de tê­
lo ouvido, freqüentes vêzes, suplicar e ensinar que não se
deixasse faltar algo aos doentes, fracos e hóspedes, afirman­
do que jamais lhe teria dado satisfação o ministro que não
tivesse realizado êsse dever. Tais obras de caridade estavam­
lhe de tal forma a peito que, entre as lidas e preocupações
diárias, recordava-se dos enfermos e os assistia, apesar de,
talvez, adoentados levemente". E continua o apaixonado
biógrafo a nos referir que, certa noite, em que se encontra­
va em Bréscia com o cardeal, sentindo-se algo indisposto,
o "benigno pai" - como gosta de chamá-lo - visitou-o no
próprio quarto e, examinando-lhe a colcha, achou-a demasia­
do leve e delgada; ordenou que fôssem imediatamente buscar
a própria e a pusessem sôbre o leito do jovem secretário
enfêrmo.
O passadio que se apresentava à mesa do cardeal era
simples mas abundante, exceto nos numerosos dias de abs­
tinência e de jejum. Comiam escassamente nas quartas-feiras,
e jejuavam em tôdas as sextas-feiras e vigílias. Conforme o
rito ambrosiano, o advento começava no domingo sucessivo
à festa de São Martinho - 11 de novembro, - e a quaresma,

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no domingo de quinquagesrma. Ambos eram de jejum ri­
goroso. Estavam proibidos os ovos, o leite, o queijo e a car­
ne. Uma vez por mês reuniam-se as diversas congregações
para examinar as condições espirituais e financeiras da
família.
Como vemos, tratava-se de um regime extremamente
austero, de um rigor necessário para reagir contra o deslei­
xo quase geral dos costumes e o luxo desenfreado dos ecle­
siásticos que, naturalmente, taxavam o pastor de louco, ex­
travagante e sequaz de uma santidade superior às fôrças
humanas. Carlos, porém, continuava impertérrito e sereno
seu caminho; diligenciava para aliviar o rigor de sua re­
gra por meio de gentileza e solicitude no trato com os seus;
visitava as hospedagens e enfermarias cotidianamente para
certificar-se de que nunca escasseasse o necessano, e se,
por acaso, os domésticos precisassem de cuidados, êstes
nunca faltavam.
Em tais casos, nenhuma solicitação era mais importante
e urgente, e êle mesmo se interessava para que fôsse usada
a máxima generosidade com os enfermos e necessitados. Fa­
lava freqüentemente com criados e palafreneiros, a fim de
assegurar-se pessoalmente se estavam contentes e, conse­
qüentemente, se eram assíduos às práticas religiosa, sôbre
cujo cumprimento não admitia transigências.

3.
O CÉU TORNA-SE MAIS LtMPIDO

A habilidade organizadora do Cardeal Borromeu e a


diligência pelos particulares tornaram-se evidentes em to­
dos os empreendimentos, principalmente no modo como uti­
lizava os dias e exigia que os empregassem os sacerdotes
da cúria. Quando os sinos da catedral anunciavam as mati­
nas, quem não estava obrigado ao ofício divino reunia-se
na capela do palácio e, após alguns instantes de recolhimen­
to, recitava o pequeno ofício de Nossa Senhora até as vés-
126
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peras. E os que estavam sujeitos à obrigação, rezavam-no
com o arcebispo em sua antecâmara, depois da meditação.
Recitavam-se então matinas, laudes e antífonas. O canto
das vésperas e completas fechava o dia. Não causa admira­
ção, portanto, o que escreve Godeau: "O palácio arquiepis­
copal de Milão, graças a Carlos, tornara-se seminário de bons
religiosos, santos sacerdotes, dignos ministros da Igreja, nún­
cios apostólicos e grandes bispos, que ceifavam em outros
campos a virtude semeada sôbre a disciplina dêsse admi­
rável mestre de perfeição pastoral".
Com acêrto adverte-nos Margarida Yeo: "Tôdas essas
disciplinas, regras e preceitos, não eram senão meios para
alcançar o escopo, ou seja, a santificação pessoal e a refor­
ma da Igreja, de que tanto necessitavam seus membros.
Mas ninguém pode santificar outrem, se não tiver realizado
antes em si mesmo a sua santidade; e Carlos, não obstante
tôdas as virtudes que lhe haviam granjeado tanto respeito
e tantas antipatias, julgava-se necessitado de muito mais,
antes de poder encetar com sucesso sua emprêsa".
Do que deixamos dito acima, poder-se-ia talvez deduzir
que o palácio arquiepiscopal de Milão se transformara nada
menos que num convento de clausura ou num museu de au­
tômatos. Nada de tudo isso. O príncipe renascentista não se
apagara por completo· em Carlos - principalmente nos
primeiros anos de seu episcopado milanês. Naquela casa
passavam cardeais e príncipes, pobres curas do interior,
clérigos suíços e alemães, cavalheiros cheios de si e solenes
como o Conde-Tio de Alexandre Manzoni, literatos e ca­
beças inflamadas que pretendiam reformar a reforma. To­
dos eram bem acolhidos, ou tolerados, menos as damas e os
charlatões. i;:stes últimos não eram recebidos de forma al­
guma. E as senhoras da aristocracia espanhola e lombarda,
que tentaram transpor as soleiras da residência arquiepis­
copal, foram postas cortêsmente na porta.
O austero cardeal recordava então não ter completado
ainda trinta anos, e tornava-se alegre e expansivo com os
hóspedes; conduzia-os pessoalmente a visitar igrejas, con­
ventos e seminários, se eram prelados e, se civis, convida­
va-os às funções noturnas. Assim, de palestra em palestra,
vinha a descobrir, com fino tacto diplomático, o que eram
realmente e como se encontravam em fato de vida religiosa.

127
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Não transformava em frades todos os diabos que lhe caíam
nas mãos, mas Bascapé nos diz que grande número acaba­
va por confessar-se, e deixava o arcebispo com o propósito
de fazer juízo. Se depois cumpriam o prometido, não nos
é referido. Talvez tenha existido sàmente um Padre Cristó­
vão. Um só o Inominado. E muitíssimos os Dom Rodrigo . .
Grande era a abundância de produtos alimentícios que
entravam na cidade sob o nome do arcebispo e que, por
conseguinte, não pagavam as taxas; certa vez, os fiscais,
suspeitosos, quiseram inteirar-se do que acontecia e acha­
ram bom seguir os carros até o palácio. O cardeal, ao per­
ceber-lhes a presença, saiu e demonstrou pessoalmente aos
alfandegários como e por que tôda aquela mercadoria era
destinada aos pobres esfomeados dos bairros mais miserá­
veis. E desde aquêle dia ninguém mais ousou interes­
sar-se do que era endereçado ao cardeal-arcebispo.
Tôda essa prodigalidade, é evidente, comportava inú­
meras despesas, e o ecônomo da casa fêz observar a Carlos
que, caso continuassem de tal modo, teriam ido passear
por Milão de barrete verde. ' O cardeal quis averiguar pes­
soalmente os fatos e viu que realmente havia exageros. Pen­
sou expor ao público vários cofres, nos quais os forasteiros,
gente boa e honrada, poderiam colocar alguma esmola.
Mas nada conseguiu. Julgou então oportuno acolher, sim,
no palácio os hóspedes ilustres, mas sem o séquito numeroso
que os acompanhava, composto de criados, cavalos, carrua­
gens e carroças, que acabavam, além do mais, por trazer
confusão e desordem no desenvolvimento regular da vida
disciplinar.
E j,á que estamos no ambiente doméstico, assinalemos
outra paixão dêsse santo tão moderno em pleno século XVI.
Tinha verdadeira mania pelos registros. "Registros de qual­
quer espécie, - escreve Franceschi; relativos ao clero, com
vida, morte e milagres de cada um, à fundação das paró­
quias, às heranças e obras pias; breves e completas mono­
grafias das igrejas e capelas, com hábil descrição particula­
rizada dos altares, quadros e estilo arquitetônico, as dimen­
sões precisas e mais cem particularidades e minúcias. Não
faltavam informações sôbre os conventos, frades, hospitais
1) Expressão italiana para significar que acabariam na mi­
séria (N. do T.).

128
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Reformar-
se para
reformar ..
.

A primeira comunhão
do angélico parente
São Luís Gonzaga.

A 2 km de Arona, na margem
oci­dental do Lago Maior, está a
famosa estátua de S. Carlos -
o San Carlone - a abe nçoar a
Borromeu
terra natal; te m 23 ms. de altura,
sôbre um pe de stal de 11,70 ms.
De ntro do livro, pode m e star três
homens.

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Pa1wl'tt11t
de
ll
Flm·e11ç
a.

A vasta dioce::;e de
São Carlos Borro111eu
compre­endiíl
também os Alpes .. e
suas maravilhas .

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e easas de caridade. A vasta diocese estava reproduzida por­
menorizadamente nos arquivos da cúria, e bastava breve
eonsulta e não muita inteligência para vê-la diante de si,
viva em homens e coisas".
Carlos escolhera dois religiosos para inspecionar um
a cidade e outro a campanha, sem embaraços burocráticos e
governamentais. Era-lhes de obrigação observar bem a si­
tuação da diocese e referir sinceramente, sem frioleiras, co­
mo estavam as coisas. Dividiu, em seguida, a cidade em seis
setores correspondentes às seis portas, e pôs como chefes
elos "prefeitos das portas", sacerdotes indicados por Nicolau
como os mais zelosos e dinâmicos. Reunia-os cada semana
para averiguar o comportamento e a atuação. Três vêzes
por ano avisava os vigários forâneos que lhe relatassem
por escrito o estado das paróquias colocadas sob sua juris­
dição; de tal forma que o arcebispo, quando saía em visita
pastoral às mais remotas regiões da vasta diocese, podia es­
tar a par de sua situação, sem fiar-se na descrição que, no
momento, davam os curas.
Para aplicar a reforma de modo completo, o arcebispo
sustentou também vários e porfiados choques com os cône­
gos da catedral. Escolhidos dentre as duzentas famílias
mais notáveis da cidade, eram inamovíveis e gozavam do
canonicato com todos os anexos e conexos. Carlos encontra­
va-se diante de duas graves dificuldades; além de ser o
mais jovem de todos, êle que devia presidi-los, via-se obri­
gado a enfrentar os interêsses das duzentas famílias mais
importantes do ducado, respeitadas, protegidas e defendidas
pelo poder temporal.
Também aqui evidenciou-se a diplomacia do cardeal;
cm vez de insurgir-se imediata e afoitamente contra os pri­
vilégios e benefícios, fê-lo pouco a pouco, com tacto, discri­
ção e paciência, de modo a conquistar paulatinamente, não
somente a resignação, mas a estima e o afeto dêsses rígi­
dos defensores dos direitos. Todos aceitaram de bom grado,
do cônego teólogo ao penitenciário, qualquer inovação, po­
< lendo assim, mais tarde, o cardeal referir "que os cônegos
se tinham tornado senatores boni uiri, porque o senatus dei­
xava de ser mala bestia".
Fazer e ensinar: esta a regra estabelecida desde os pri­
meiros dias do ministério. Ainda menino, venerara Santo
Vida de S. Carlos - 9 129
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Ambrósio "o mais milanês de todos os santos e o mais san­
to de todos os milaneses" e, quando prelado, escolhera-o co­
rno patrono e defensor. "A imitação de Santo Ambrósio e
de Santo Tomás de Canterbury, - lê-se no processo de ca­
nonização - esforçou-se para restaurar com suas fôrças,
e jamais deixou de defender a dignidade eclesiástica e a
disciplina cristã, uma e outra em plena decadência". Mas
o bispo inglês não era o único dos santos da Grã-Bretanha
a ser venerado por Carlos. Teve sempre diante de si um re­
trato de João Fischer, pastor modêlo, cuja vida fôra exem­
plo constante de caridade e pobreza; e sua morte represen­
tou um protesto contra a usurpação, por parte do poder
civil, dos direitos da Igreja.
Duas passagens da Sagrada Escritura, de modo especial,
foram sempre para Carlos fonte de inspiração e meditação.
Um fragmento dos Atos dos Apóstolos: "Jesus começou a fa­
zer e a ensinar", e outro, da Epístola aos Coríntios: "Casti­
go meu corpo e o reduzo à escravidão por temor de que,
depois de haver pregado aos outros, eu mesmo pereça".
O campo para trabalhar era difícil e ilimitado. A cate­
dral, as igrejas da cidade e dos arredores, a diocese inteira
reclamavam renovação e redenção. Dignidade e disciplina
estavam em decadência, e teria sido lógico reputar a tarefa
superior a qualquer vontade humana. E assim era real­
mente! Carlos, porém, não se considerava por si mesmo ca­
paz; somente o era enquanto operava em nome do Senhor:
"Não eu, mas Cristo que está em mim".
Seus dotes particulares de infatigabilidade no trabalho
e de metodicidade na organização, o raro dom de unir as
mais vastas perspectivas com minuciosa atenção aos parti­
culares, tornavam-no o homem mais apto para a obra que
devia realizar, - uma reforma e uma renovação de tal
grandeza, que nos obriga a considerar Carlos e seu regime
episcopal como o modêlo de todos os bispos e de tôdas
as dioceses.

130
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4.
O ESPtRITO E A PEDRA

Regulada a sua casa, o cardeal pensou na catedral que,


como todos os demais templos da cidade, reclamava conser­
tos; e quem a dirigia, os sacerdotes, necessitavam de re­
paros ...
As críticas dos puristas e entusiastas do gótico eram
muitas e precisas no que dizia respeito à arquitetura do
tempo. Com tudo isso, porém, ninguém podia negar à mole
um encanto particular. A construção do edifício que, como
talvez nenhum outro, refletia, principalmente no interior,
as tendências germânicas, fôra iniciada em 1386, com en­
tusiasmo e generosidade desmedidos. Ofertas conspícuas
choveram de tôda a parte; pôde-se assim, ainda nos primei­
ros três anos, empregar mais de três milhões de escudos,
uma enormidade para aquêles tempos.
Nobres, magistrados, jurisconsultos, o próprio prefeito
e, parece até João Galeazzo Visconti, participaram dos tra­
balhos. Na obra haviam labutado arquitetos italianos, como
Simão de Orsenigo, Marcos Frinoni e Filipe degli órgani,
que ali se demorou por quase meio século, de 1400 a 1447,
e numerosos estrangeiros - Nicolau de Bonaventure, fran­
cês, João de Frinburg, Henrique Arler e Tomás Gmund,
chamado Gamóia. Motivo pelo qual se alastrou sempre, en­
tre artistas e admiradores, acérrima luta, acentuada também
pela incerteza dos dirigentes.
A construção prosseguiu com enorme lentidão e diu­
turnas modificações. Somente em 1534 pensaram na facha­
da, e haviam pululado os projetos, que não manifestavam
preocupação alguma pela estrutura gótica do edifício. Rea­
cenderam-se ciúmes e guerrilhas que se prolongavam vi­
vas e rudes, quando chegou o Cardeal Borromeu. E antes de
concordar no projeto barroco de Pellegrini, modificado por
Righini, foram necessários tempo e paciência; por fim,
para a aceitação do plano pellegriniano, foi de muita aju­
da a autoridade - em matéria artística mais que notável
- do prelado de Arona.
Quando Carlos tomou posse da diocese, a catedral atra­
vessava um de seus períodos mais críticos - encontrava-se
131
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em completa decadência; despojada e repleta de um aglome­
rado de monumentos � bispos medievais eretos e rígidos, em
pedra; anjos truncados e alegorias, em mármore e bronze; sar­
cófagos de comerciantes e de ilustres desconhecidos, com­
pletamente abandonados, que jaziam esquecidos e descura­
dos por todos. O templo era utilizado - já o dissemos - co­
mo lugar adaptado para negócios e reuniões de comercian­
tE:s e namorados; e servia de passagem, cômoda sem dúvida,
para abreviar o caminho através das duas portas opostas
da nave transversal.
Carlos baseou-se no concílio e em suas deliberações,
para arredar da catedral os inúteis monumentos fúnebres.
Algumas disposições tridentinas vetavam as sepulturas e as
lembranças funer,árias nas igrejas. Todo e qualquer absur­
do que ferisse a modéstia e o decôro foi resolutamente re­
chaçado. Naturalmente, irromperam os mais variados pro­
testos. Parentes e descendentes dos pacíficos habitantes dos
templos protestavam em nome da moral, que impedia a
remoção dos cadáveres das sepulturas. O menos que se pro­
palou do cardeal foi que tinha uma pedra em lugar do
coração, e que era homem desnaturado. O arcebispo, ar­
mado dos códigos de Trento, permaneceu inflexível e, para
demonstrar que era realmente um desalmado como o des­
creviam os inimigos, ordenou que retirassem também o se­
pulcro do pai da igreja de Santa Maria das Graças ...
O corredor transversal do templo havia-se transforma­
do em ótimo e fácil atalho para os transeuntes, de forma a
converter-se em verdadeiro caminho; sem muitas cerimô­
nias, as portas laterais foram devidamente muradas, e os
cidadãos viram-se obrigados a rodear a mole em pleno sol
estivo ou sob o vento e_ gêlo invernais! Mas o cardeal deu
o exemplo, contornando-o por primeiro para ingressar pe­
la porta principal. E como os trabalhos da construção ha­
via muito estavam paralisados, encarregou o discípulo de
Miguel Angelo, Pelegrini-Tibaldi, que havia projetado o
colégio Borromeu em Pavia, de prossegui-los. Dêle, além
da forma para a fachada e do reinício dos trabalhos, res­
tam-nos os dois ricos púlpitos de mármore e o côro, no qual
colaboraram também vários de seus alunos.
Depois de algum tempo desta sua atividade organiza­
dora concernente à catedral, os frutos tornaram-se eviden-

132
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tes para todos. Tão v1s1veis que os primeiros que haviam
aplaudido, ou por serem ordens de Roma e de Madri,
ou pelo fato de as novidades proporcionarem sempre certo
prazer, começaram a preparar-se e a temer que as reformas
fôssem de fato feitas séria e profundamente, e devessem
perdurar por muito tempo! E acharam mais conveniente re­
voltar-se para que as renovações não lhes prejudicassem a
vida tranqüila. Mas o arcebispo, que não se desvanecera
com os primeiros fáceis entusiasmos, estava decidido a con­
tinuar o caminho empreendido, a todo o transe.
E tanto menos confiava nos sucessos e promessas dos
primeiros resultados, que geralmente aparecem brilhantes,
mas acabam depois como perecem as obras realizadas mui­
to às pressas. Para estar a par do funcionamento das tão
debatidas reformas, o cardeal gostava, a curtos intervalos,
de lançar um olhar de conjunto à amada diocese e à pro­
víncia eclesiástica. E então completava as resenhas por meio
de sínodos diocesanos e concílios provinciais, coisa que ini­
cialmente teria desejado efetuar de seis em seis meses, ou,
pelo menos, uma vez por ano. Mas as intermináveis ocupa­
ções que sempre o atormentavam, e que algumas vêzes o
obrigavam, ainda que por ordem da Santa Sé, a permanecer
fora da diocese por semanas inteiras, obstaculizavam-lhe
aquela solicitude por êle reputada como o primeiro de todos
os deveres.
Durante certos concílios sucediam fato5 que revelavam
a que ponto tivesse decaído o sentido da piedade e da disci­
plina em alguns organismos da Igreja. No sínodo de 1568,
por exemplo, realizado em Mântua, por causa da clamoro­
sa pregação herética de um frade, que se dizia apoiado
pelo duque, verificou-se uma balbúrdia tal, que dois domi­
nicanos foram massacrados. O Pontífice, alarmado, excla­
mou: "Aqui se requer a ação de Carlos!" E lhe escreveu:
"O Senhor vos enriqueceu de dotes eminentes, e nós conhe­
cemos tôda a vossa integridade, vossa prudência, vossa ha­
bilidade e vosso zêlo pela Igreja, e temos firme esperança
de ver-vos corresponder plenamente a nossos desejos".
Adeus, problemas de -Milão!. . . E' preciso partir. Mas
os frutos que recolhe são deveras copiosos. Em Mântua,
persuade o duque a tornar-se extrênuo defensor da religião,
e ajusta tudo com plena satisfação dos adversários. Visto

133
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o sucesso, o Papa insiste para que permaneça na cidade;
o cardeal, porém, responde, devoto mas resoluto, que seu
lugar é Milão e que lá quer e deve retornar, porque, de ou­
tra forma, onde acabarão as deliberações do Tridentino?
Pio V compreende e louva tão grande zêlo. Mas, além dos
obstáculos que as incumbências papais lhe suscitavam, qua­
se a impedir o dever sagrado e efetivo das renovações, exis­
tiam também as moléstias e a debilidade de saúde, que es­
tavam a inquietar os amigos; não ao cardeal, certamente, que
não queria saber de sentir-se pouco bem...
Antes da morte de Pio IV, sofrera grave esgotamento,
e Nicolau Ormaneto já lhe havia escrito, aconselhando-o
a moderar-se e a atenuar sua atividade vulcânica com um
áureo intermezzo. "Poupai-vos, não sejais indiscreto!" e
"trabalhai menos se desejais resistir mais!" eram os es­
tribilhos de suas cartas. O cardeal de Como escrevia igual­
mente à cúria de Milão e a seu chefe: "Menos fadigas, caso
contrário vosso pobre corpo se romperá por completo. Vós
me repetis que canto sempre no mesmo tom. Provàvelmen­
te também na mesma chave. Mas que importa! Eu digo
somente a verdade. Pelos deuses imortais, renunciai a parte
de vossas lidas, se quiserdes subsistir!" Palavras ao vento!
O jovem arcebispo emagrecia de maneira comovente,
e os olhos aprofundavam-se sempre mais. Sua face assumia
aspectos inquietantes. No esplendor da capa magna, ou na
magnificência da casula e da mitra recoberta de gemas, a
esquelética figura dominava o côro e a nave, do alto do
trono espiscopal. "O que impressionava, - escreve Marga­
rida Yeo - não eram somente a face e a pessoa, mas, tal­
vez ainda mais, o altivo e incansável entusiasmo pela reno­
vação e reconstrução".
E quando os amigos lhe sugeriam nutrir-se mais abun­
dante e regularmente, trazia o exemplo do Papa, cuja so­
briedade, numa côrte onde a temperança havia muito de­
saparecera, tornara-se logo proverbial. Ao meio-dia o Pon­
tífice comia dois ovos e uma sopa com verdura; à noite, um
pouco de peixe, salada e frutas. �stes os seus grandes ban­
quetes! Dormia algumas horas apenas, alçava-se mal des­
pontava a aurora para celebrar a missa, e o resto do dia
era dedicado à oração e ao trabalho. E Pio V tinha setenta
e dois anos, "enquanto Carlos, conforme se apressava em
134
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referir a todos, completara apenas vinte e oito". Zombavam
dêle, portanto, querendo limitar-lhe a atividade ...

5.
SEMINARIOS E SACERDOTES

Carlos bem compreendera que, para restaurar o reino


de Cristo no mundo, era necessário renovar antes quem f ôra
designado: "luz do mundo e sal da terra"; e como começa­
ra por reformar a própria cúria, pareceu-lhe conveniente
e proveitoso recuperar também tôdas as demais, espalhadas
pelo mundo afora. Enviara severíssimo projeto a Roma,
sem muitas esperanças de o ver aprovado, não pelo Papa
Ghislieri, que pensava e vivia como o Cardeal Borromeu,
mas pelo colégio cardinalício. "E' inútil publicar decretos
e leis, - afirmava ao Pontífice - se depois não os obser­
vamos nós mesmos e não obrigamos os outros a fazê-lo.
Será uma emprêsa dura e difícil porque, dentre os cardeais,
pouco serão e são os inclinados à espiritualidade e ao desa­
pêgo do mundo". Não é certamente belo elogio que se deva
fazer a um príncipe da Igreja!. ..
Podemos supor qual luta tenha devido sustentar con­
tra velhos conservadores, habituados aos lautos benefícios,
às rendas copiosas, às moradias confortáveis, aos grandes
banquetes, e que bem raramente compareciam ao capítulo!
Em que estado quedassem monges e frades, que se tinham
tornado gordos e vermelhos sôbre a riqueza dos conventos
semidesertos; e que pensassem freiras, que mitigavam o té­
dio da vida claustral com visitas contínuas, representações
dramáticas e bailes!. ..
Era preciso começar pelo capítulo da catedral, cujos
membros - que já referimos pertencentes às mais ilustres
famílias milanesas - exerciam as próprias obrigações uma
ou duas vêzes por ano. E chegaram a tanto, que cantavam
somente as têrças e as vésperas, celebrava-se uma única
missa cantada e, salvo nas solenidades quando se devia fa-

135
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zer ostentação de dramaticidade, sempre por um capelão
assalariado. Sôbre a multiplicidade dos benefícios de que
gozavam os conêgos já se falou; mas era mal comum de
tôdas as dioceses. E quanto à vida privada dêsses sacerdotes,
é melhor não insistir e nada mencionar.
Carlos reordenou, sem muitos rodeios, os benefícios e
privou muitos sacerdotes das rendas, apesar da série de
tormentas que agitaram o cabido, qual galera à mercê das
vagas excitadas pelo vento. Mas não cedeu. Obrigou, pelo
contrário, todos os cônegos a presenciar o ofício divino, que
devia ser cantado em horas determinadas, sem nunca re-­
tardá-lo. Ao penitenciário e ao pregador, acrescentou um
doutor para funcionar de censor, superintender as funções
religiosas e anotar os nomes dos ausentes e os erros dos ce­
lebrantes e do côro. Um mestre de cerimônias assistia às
solenidades para que homens e mulheres estivessem sepa­
rados na Igreja, e para que os altares se encontrassem sem­
pre em ordem, e se celebrassem as missas em horas estabe­
lecidas. Naturalmente, todos êsses prepostos à ordem da ca­
tedral, eram pessoas de confiança do cardeal e gente que
não condescendia com a corrupção e com os louvores.
Assim, pouco a pouco, pelas repetidas e solenes procis­
sões, pelo canto das ladainhas, pelas boas e freqüentes prá­
ticas, pelo esplendor das funções, - os cônegos andavam
sempre vestidos de vermelho, exceto nos períodos de peni­
tência, quando trajavam de escarlate e eram pelo povinho
apelidados: "os senhores cardeais!" - a catedral tornara-se
meta de muitíssimos fiéis e de outros tantos curiosos. A maior
atração para o povo milanês, que desde vários anos não
via arcebispo algum na sede própria, era constituída prin­
cipalmente pela presença do cardeal, quando se encontrava
em Milão, a tôdas as cerimônias religiosas.
Apresentava-se na catedral nas horas e funções mais
imprevistas. Um cônego recitava o têrço em uma capelinha
diante de duas dúzias de senhoras, e eis a aparecer a figura
característica do cardeal, que chegava inesperado, sem sé­
quito, e rezava devotamente em meio às pobres e humildes
mulheres dos bairros. Não era raro ser a primeira missa
oficiada por êle, e não poucos eram os habitantes que vinham,
ao amanhecer, presenciar o recolhimento e a devoção do
arcebispo. Fizera construir uma passagem subterrânea que

136
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partia do palácio e chegava à catedral, de modo que podia
freqüentar o templo em qualquer momento do dia e da noite.
E quantas vêzes, sozinho na imensidade do templo, perma­
necia horas e horas ajoelhado diante do altar, em profunda
adoração ao Santíssimo Sacramento!
Como é notório, o Concílio de Trento tornara seu o
princípio, convertendo-o em lei, que tôda a diocese possuís­
se o próprio seminário. O primeiro a ser fundado, em obe­
diência a essas ordens, foi o de Milão, quando Carlos se en­
contrava ainda em Roma. Incumbira da missão a Nicolau,
que j.á pelo fim de 1563 enviara à diocese dois jesuítas, Pa­
dre Pálmio e Padre Carvajal. Habitaram primeiramente
em pequena residência arrendada; mais tarde, o arcebispo
levou-os para o centro da cidade, na aprazível construção
de São Fidélis, e Pellegrini idealizou-lhes bela e singela ca­
pela. Tomaram a direção do seminário desde a sua inaugura­
ção em 1565, com uma centena de alunos.
Mas bem cedo seu número reduplicou, precisando le­
vantar o edifício do atual seminário da Rua Veneza; er­
gueu-se também outro grande prédio ao lado dos currais <lo
Palácio Sforza, adjacente à residência arquiepiscopal, e
unido igualmente à catedral por via subterrânea. O Car­
deal Borromeu não se limitou a êsses seminários, mas cons­
truiu vários em diversas localidades da diocese e, no fim
de seu ministério, também um para a formação de sacerdo­
tes suíços.
Houve, porém, algumas oposições, e foram sobretudo
as formais, como, por exemplo, a que proibia o ingresso na
igreja às senhoras com a cabeça descoberta. E sendo que
o feitio do véu tinha dado motivo a 1.,una concorrência de
galanteio, o arcebispo fêz-lhe determinar pelo sínodo a es­
pessura e o comprimento. Choveram os motejos, as zomba­
rias e os impropérios contra um cardeal que se atarefava
com ninharias feminis; mas, por fim, o costume conseguiu
implantar-se, e certas mulheres acharam tão escolhido e
atraente o toucado, que passaram a usá-lo nos passeios e
excursões.
A disposição sôbre o véu foi publicada juntamente com
outra que impunha o corte das barbas dos sacerdotes. Muitos
eclesiásticos amavam a barba mais que o breviário, e lhe
dedicavam cuidados minuciosos, fazendo-a cair fluente sô-

137
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bre o peito, acariciando-a e conservando-a na linha a gol­
pes de tesoura e de pente. Aqui também o cardeal foi o pri­
meiro a dar o exemplo, e um belo dia apareceu em público
completamente barbeado. Imaginemos os gritos e as fúrias
dos bispos e dos cônegos solenemente barbudos! Moveram­
se-lhe veementes repreensões.
"E' precisamente o cortar a barba, - sentenciavam os
barbilongos - que é costume efeminado. Olhai São Filipe;
proibiu a seus frades de barbear-se; o próprio Cardeal Sir­
leto é da mesma opinião". E Carlos respondeu paciente, mas
arguto: "Quanto ao Cardeal Sirleto, - escreveu a seu agen­
te romano que o informava da situação - o fato não me
surpreende; ocupou-se de práticas e ritos da Igreja Grega
e sabemos já que os gregos sempre usaram barba. Mas na
Igreja Latina, sempre foi costume cortá-la, excetuando-se
neste período de decadência, e para a Itália somente".
Com razão julgava que tal falta era de importância re­
lativa perante outros vícios que se arraigavam bem mais que
os pelos ao queixo. . . "Prouvesse ao céu que pudesse arran­
car com a mesma facilidade os defeitos que permanecem
escondidos! Porque então marcharíamos deveras, a passos
largos, na estrada de Deus. Desprezemos, pois, o que é or­
dinàriamente julgado ornamento da face, renunciemos a tôda
fútil vaidade e esforcemo-nos, antes, por nos tornar menos
indignos de nosso ministério e, especialmente nós sacerdo­
tes, do tremendo mistério que tratamos cotidianamente no
sacrifício da missa".
Mas o véu na cabeça das senhoras e a proibição aos
eclesiásticos de usar longas e ataviadas barbas, não eram
senão alguns dos aspectos da restauração radical imposta
por Carlos Borromeu.
Tratava-se, primeiramente, de restituir o respeito às igre­
jas, que se conservavam em péssimo e deplorável estado;
de não profanar os dias santificados, e, principalmente, de
lembrar ao clero seus sacrossantos deveres. Por isso, proi­
bira qualquer ausência do pároco da própria paróquia e
do capelão de sua capelania. Se era obrigado a pernoitar
em Milão ou fora da sede, o sacerdote devia demonstrar de
fazê-lo, ou de tê-lo feito, por motivos justos e graves. O car­
deal desejava, a todo o transe, que o clero abandonasse a
ignorância bárbara em que descansava pacificamente, sem
138
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fazer esfôrço algum para livrar-se da indolência na qual
se abismava.
Existiam, é claro, e felizmente, as exceções, que ser­
viam de admoestação e de exempl'l. Não era fácil, sem dú­
vida, remover de cômoda preguiça pessoas já avançadas em
idade, e habituá-las a viver segundo o nôvo método que
era, em última análise, nada mais que um retôrno às ori­
gens. Muitos sacerdotes da campanha, - e não poucos da
própria Milão! - se haviam aprendido o latim, esqueceram­
no depois por completo, e não somente ignoravam, como
Don Abbondio, quem fôra Carnéades, mas não sabiam nem
mesmo pronunciar corretamente as fórmulas do ritual, nem
tinham alguma vez ouvido falar de casos de consciência, ou
sentido a necessidade de confessar-se de tanto em tanto ...
Os sacerdotes dos distritos rurais, especialmente os re­
sidentes nas regiões alpinas e nos vales afastados, viviam
em uma indigência que se aproximava da miséria; e, infe­
lizmente, as pobres mulheres que acudiam aos poucos afa­
zeres domésticos eram também suas amantes; os filhos nas­
cidos destas uniões, ignorantes, sujos e seminus, esgarava­
tavam ao redor das igrejas e das casas paroquiais, em si­
tuação nada diversa da dos animais bravios. Ao considerar
tôda essa miséria moral e material, compreende-se o pranto
que freqüentes vêzes brotava dos olhos do jovem cardeal
em suas solitárias meditações; justifica-se também a inflexi­
bilidade quase sôbre-humana que se impunha e impunha
a outrem quando se tratava de executar e fazer executar
suas disposições.-
Convenceu-se Carlos de que era necessário, antes de tudo,
instruir êsses padres rudes e incultos. Dividiu, portanto, os
sacerdotes em três categorias: os mais inteligentes obtive­
ram o curso completo sôbre Santo Tomás de Aquino; aos
medíocres foi destinado um compêndio da Summa; e os mais
ignorantes foram doutrinados sôbre o simples Catecismo
Romano que, na maior parte dos casos, foi preciso tradu­
zir, porque de latim aquêles pobrezinhos pouco entendiam.
Se numa paróquia houvesse pelo menos cinco sacerdotes,
o arcebispo decretou que se reunissem duas ou três vêzes
por semana para consultar-se mutuamente e ajudar-se no
estudo; dispôs também que recitassem o breviário não pela
estrada, distraindo-se, mas permanecendo na igreja ou na

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própria casa. Ordenou que o comportamento durante os fu­
nerais e as procissões fôsse irrepreensível, seguindo sempre
e escrupulosamente a liturgia; pediu igualmente que fi­
cassem de olhos abertos sôbre o perigo protestante, im­
pedindo os próprios paroquianos de viajar pelas localidades
dominadas pela heresia, e vigiando a leitura dos livros, in­
dicando claramente os que não deviam de modo nenhum
entrar nas famílias católicas. E, por fim, instituiu, primeiro
no mundo católico, o ensino da doutrina cristã ao povo.
Em Milão, a primeira escola elementar fôra aberta por
certo Castellino da Castello que vivia, quando Carlos in­
gressou na cidade, havia sete anos cego e definhado qual
pobre mártir. O cardeal recolocara-o em forma. Valeu-se de
sua ajuda para ensinar àqueles que deveriam ser os instruto­
res das crianças; entusiasmou pela obra tôdas as pessoas de
boa vontade, e conseguiu que ao redor das paróquias surgis­
sem os primeiros focos de instrução primária; tornaram-se êles
numerosos e ativos, tanto que na morte do Cardeal Borromeu,
a Companhia pela Difusão do Ensino Catequético dispunha
de 740 escolas, com 273 oficiais superiores, 1726 oficiais de­
pendentes e 3040 operários que se dedicavam à educação
de 40.000 almas. Um grande número também em nossos dias,
mas para aquêles tempos, algo deveras milagroso!

6.
O RITO AMBROSIANO

Para levar a efeito tôdas as reformas necessárias, Car­


los - como notamos - infligia-se e aplicava a outros uma
disciplina em nada indulgente. E era exigida não sómente dos
companheiros de luta, vigários, monges, freiras e abades,
como também e principalmente dos bispos e membros do
Sagrado Colégio. Sirva como exemplo o que aconteceu ao
cardeal de São Jorge..
Achava-se êle em Milão para assistir a um concílio, pelo
fim de 1569. Enquanto aguardava os participantes, julgou

140
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poder muito bem ausentar-se das primeiras sessões e viajar
para Roma, a fim de prover a certos afazeres pessoais. O
arcebispo pediu e suplicou insistentemente que ficasse, tra­
tando-o sempre com cortesia, ainda que cóm firmeza; mas já
que o teimoso não queria compreender e fixara o dia da par­
tida, Carlos apegou-se ao Tridentino e vetou-lhe formalmen­
te a saída da cidade; escreveu depois ao Papa, que en­
viou ao desobediente severa repreensão, chegada às mãos de
Carlos quando o cardeal de São Jorge criara finalmente
juízo; pôde assim o arcebispo de Milão referir ao Pontífice,
por meio de Speciano, que tudo fôra acomodado otimamen­
te, sem precisar recorrer aos raios da autoridade soberana.
Causa-nos admiração como, nesses sínodos, o cardeal
de Milão soubesse pôr logo o dedo nas chagas purulentas,
e o fizesse em modo tão preciso e manifesto! Conservam-se
ainda hoje muito ciosamente, na biblioteca de Trivúlzio, em
Milão, certas cadernetas, em que estão anotadas não pou­
cas falhas dos eclesiásticos, reparadas por êle ou por ou­
tros; e quando se lhe oferecia a oportunidade, utilizava-as
para emendar e corrigir, não sempre em forma dura, mas.
pelo contrário, com muita doçura e compreensão das mi­
sérias humanas.
Governava Novara um ótimo bispo que o Cardeal Bor­
romeu louvará quando lhe tecer belíssimo elogio fúnebre;
contudo, em um daqueles famosos livrinhos, deparamos
com o seguinte: " O bispo de Novara retém no quarto ro­
bustos cachorros ornados de belos e luxuosos colares. A
mesa é demasiadamente apurada e florida. A baixela co­
piosa e variegada, quase sempre comentada durante a ceia.
Iracundo. Celebrando a missa, ainda alguns esquecimentos.
Suspeito de ambição. O vigário das Irmãs aceita ofertas,
coisa muito lamentável. Multas aplicadas ao palácio epis­
copal. Os secretários recebem dinheiro pelas cópias".
"Que santo homem, sim, mas que tormento!" teria ex­
clamado o pobre bispo como dirá mais tarde, a respeito
do primo, o aflito Don Abbonldio! Ao ouvi-lo, porém, expri­
mir-se com tanta doçura, e ao verificar que aplicava antes
a si mesmo as rígidas disciplinas que pretendia dos outros,
qualquer palavra menos conveniente devia desaparecer. Aos
bispos revocava continuamente as figuras de Santo Ataná­
sio e de Santo Ambrósio, para lembrar as tremendas res-
141
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ponsabilidades que lhes haviam sido confiadas. Ai dos pas­
tôres indolentes e mundanos! O Juiz ter-lhes-ia dito um dia:
"Se vós éreis a luz do meu povo, por que fôstes cegos?
Se éreis pastôres, por que deixastes precipitar-se a grei nos
despenhadeiros? Se éreis a bôca do Senhor, por que perma­
necestes mudos?"
E a propósito de Santo Ambrósio, é preciso acrescentar
que São Carlos, bom milanês que era, amava intensamente
o rito ambrosiano.
Sua origem perde-se na antiguidade, apesar de não ser
conhecido até o século IX com o nome do grande arcebispo
de Milão. Sustentam alguns que seja de procedência orien­
tal, provàvelmente importado da Capadócia por Auxêncio,
predecessor de Ambrósio na diocese lombarda. Pio XI, po­
réJD, que à autoridade pontifícia açrescentava grande eru­
dição qual ex-prefeito da Biblioteca Ambrosiana, pensa nao
ser outro senão o original rito romano.
O ritual milanês resistiu a muitas tentativas de supres­
são; a de Carlos Magno e a do Papa Nicolau II, em 1060,
foram as mais notáveis. Veio mais tarde a tentativa do le­
gado Castiglione, cem anos antes da vinda a Milão do Car­
deal Borromeu; o infeliz inovador viu-se obrigado, contudo,
a renunciar à iniciativa, para não ser insultado pelo povo,
que demonstrava, assim, sua fidelidade ao antiquíssimo rito.
Carlos reviu e reformou o rito, para ajustá-lo aos decretos
de Trento, e ordenou que o usassem não somente o clero
da metrópole, mas todos os sacerdotes da diocese, em qual­
quer capela que se houvesse celebrado antes com o rito ro­
mano. Tal medida provocou os protestos e as iras do go­
vernador espanhol. Como é conhecido, a missa, no rito am­
brosiano, difere notàvelmente da forma romana, e nas pa­
radas da côrte, quando o governador e a comitiva estavam
presentes, deviam achar-se algo embaraçados por não se
voltar o sacerdote para êles e para o povo, permanecendo
o Conde-duque sempre às costas do celebrante ...
"O diácono e o subdiácono, - narra-nos Margarida Yeo
em sua bela monografia sôbre São Carlos - quando se en­
contram inativos, põem-se um de fronte ao outro nos lados
do altar. Além disso, organiza-se no interior da catedral so­
lene procissão que se dirige do púlpito ao lado setentrional
do côro, onde se lêem a epístola e o evangelho. Uma delicio-

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sa cerimoma, tipicamente milanesa, verifica-se quando dez
velhos e dez anciãs, em hábitos especiais, e conhecidos como
a "Escola de Santo Ambrósio" ou, mais familiarmente, "Os
velhotes", desfilam em frente à grandiosa escadaria do al­
tar, oferecendo pão e vinho aos clérigos, qual sobrevivência
do ofertório dos tempos primitivos. Depois do que, o capítu­
lo inteiro passa ao lado extremo do altar, e todos beijam-no
devotamente. O Lavabo realiza-se em silêncio, imediatamen­
te antes da Consagração; não se toca a campainha na
Elevação".
O Arcebispo Borromeu celebrava a missa com tal ceri­
monial todos os dias e em qualquer lugar onde se encontrasse,
quase para afirmar e sigilar, com pacto sempre mais solene
e diuturno, sua doação total à diocese de que era o pastor.
Os sínodos, a quem submetia tôdas as decisões mais impor­
tantes, tinham aprovado, não sem muito discuti-las, aquelas
renovações, e Carlos se arrimou rigidamente nelas.
Falando de sínodos, nem sempre as decisões encontra­
vam a plena aprovação romana. Certas normas que pare­
ciam demais audazes chocavam-se contra a burocracia curial,
e também então, como hoje, pensavam que o melhor re­
médio contra os atrevimentos dos inovadores e seus proje­
tos era deixar que dormissem nas estantes dos arquivos.
Com o cardeal de Milão, porém, conhecedor profundo do
ambiente e dos defeitos dos prepostos à remessa dos do­
cumentos, a malícia não medrava. Com palavras fortes di­
rige-se àqueles "senhores ilustríssimos que perdem tanto
tempo precioso! ... " Depois do quarto concílio, Carlos pre­
parava o quinto, e quando estava para ser iniciado. . . não
tinham ainda sido aprovadas as deliberações rlo anterior.
Escreve, portanto, enérgico e decidido, a Speciano. Ri­
gorosamente, não estava obrigado a obter a aprovação de
Roma, e somente o fêz por deferência à Santa Sé; mas, se
os encarregados da ex,pedição de instruções acreditavam
poder obstaculizar o caminho do cardeal milanês, engana­
vam-se redondamente: ":i;:sses senhores ilustríssimos orga­
nizam reuniões sôbre reuniões, perdem um tempo imenso,
e freqüentemente pretendem pôr reservas a disposições que
não são em nada contrárias ao Concílio de Trento. Obser­
vem unicamente se nos decretos há algo ofensivo à fé, à
moral, aos cânones e às constituições apostólicas, e deixem

143
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aos bispos a liberdade de agir corno acham melhor no que
('Oncerne ao govêrno das almas que o Senhor lhes entregou!"
:f�, enfim, um pouco do descentralismo que, no término do
episcopado, Carlos haveria de usar em modo maciço.
Assim falava aos magnatas romanos aquêle homem que
mal completara trinta anos. Os grandes santos não foram
nunca e não serão jamais gente cômoda aos conformistas e
preguiçosos; mas também, guiados por seu espírito superior,
não serão nunca, em seu proceder, obstaculizados pelos em­
pecilhos mundanos e formais! E então, visto que as cartas
nada conseguem, eis o "Bom Romeiro"' a partir para Roma.
Mas tàcitamente, porque, "se o soubessem, poriam o mundo
de pernas para o ar, para fazer triunfar sua autoridade,
e eu perderia todo o fruto de minha visita". Quem vivera
tanto tempo entre burocráticos e morosos empregados, co­
nhecia-os profundamente ...
Energia e diplomacia, porque, caso em Roma se divul­
gar alguma coisa, a conjuração contra o prelado extremis­
ta, que já não se pode apoiar na autoridade derivada do
fato de ser sobrinho do Papa, desencadear-se-.á em aberta
rebelião. E para vencer as boas guerras, é preciso, algumas
vêzes, também saber guiar as posições ...
Desta maneira, Carlos continua a controlar tudo e a
ver tudo. Desde os cachorros mimados do bispo de Nova­
ra. . até os senhores ilustríssimos que presidem as congre­
gações e procuram seus interêsses particulares.
1) Na língua italiana a palavra romeo equivale a peregrino.
Borromeu, então, pode muito bem ser traduzido, conforme sua vida o
demonstrou e como veremos mais adiante: "Bom romeiro" (N. do T.).

7.
ZitLO DE PASTOR

O primeiro encontro do Cardeal Borromeu com Albu­


querque, conde, duque e governador de Milão, fôra discreta­
mente cordial, tanto que pôde escrever a Roma: "Encon-

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O ervo de Deus Dom João Ba­
lis/a Scalabri11i, fundador dos
Jlfissio11ários de São Carlos.

Sun a11lidade o Papa Paulo VI


r,•cebe cm a11dié11cia especial o
.'i1111erior Geral dos Padres Cru·­
lisln:;.

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O Sc111i11ário iltaior João XXII/, em. São Paulo. Nêle residem os filâsofos
e 0.1 teólogos Carlislas do lfrasil.

Em Bass111w del Gmpp11, no 11orlc da llrilia, c11co11/ra-se o lnstilnto Scala­


bl'ini, Se111i11ário /11e11or da f'rm•Í11ci11 ftllli1rna.

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trei o governador mais religioso, bom e devoto do que te­
ria podido imaginar!" Esta impressão perdurou por al­
guns meses de 1566. E' que havia numerosas discussões
referentes à importantíssima questão das precedências, is­
to é, se nas cerimônias oficiais na catedral ou nas procissões,
o primeiro lugar seria ocupado pelo governador ou pelo ar­
cebispo. Hoje tais contendas nas funções estritamente reli­
giosas, não teriam razão de ser, porque a precedência da
autoridade eclesiástica em lugar e campo seus, é natural
e a ninguém acode pô-la em dúvida. Naqueles tempos, po­
rém, discutia-se teimosamente, pois o ocupante em nome de
um rei que se dizia e considerava tal por vontade de Deus,
não podia tolerar ser segundo diante do povo a quem
dominava.
O conde-duque importunou o próprio Filipe II, em
Madri, e êste último, que não sabia nunca, em tôdas as
coisas, tomar decisões precisas, respondeu que a melhor so­
lução era não participar pessoalmente das funções que ha­
viam provocado a divergência; mas que enviasse umcamen­
te um representante. E um legado pode muito bem ficar
sem desonra em segunda fila.
No que tocava à sua pessoa, o arcebispo teria cedido
tôdas as primazias e preferências,. e se teria agregado de boa
vontade à turba anônima que rezava a Deus; mas era na
diocese o mais alto representante daquela Igreja, por quem
oferecera a vida e para quem era pastor de almas, e con­
seqüentemente, a intransigência em tal caso tornava-se um
dever. Na ocasião, também Pio V e Filipe II estavam em­
penhados em uma das tantas controvérsias entre a lgrej a
e o Império, que geralmente levavam a rupturas de graves
conseqüências. Tratava-se da publicação da bula: ln Coena
Domini, que o rei espanhol recusava divulgar na Espanha,
em Nápoles e na Sicília, por considerá-la lesiva à so­
berania real.
Bem cedo, em Milão, a luta explodiu aberta e decidida.
Como temos visto, o cardeal não perdera tempo em aplicar
as reformas, com rigor que parecera a muitos, excessivo e
prejudicial aos direitos - quais direitos e por quem con­
cedidos! - da personalidade humana. Rebelara-se com ra­
zão contra a licenciosidade carnavalesca que chegava ao
cúmulo de introduzir na catedral, no último dia do carnaval,
Vida de S. Carlos - 10 145
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enorme cavalo de pau, todo revestido de salsichas e pão;
ao ser impelido no templo, precedia-o e seguia-o um popu­
lacho esfarrapado, turbulento, que exaltava não certamente
a Cristo e a Maria.
As entradas da sé permaneceram fechadas à indigna pro­
fanação, e o cardeal prometeu, caso fôssem forçadas, fazer
frente ao povo com o báculo e a cruz na mão, e afirmou deve­
rem passar sôbre seu corpo se quisessem entrar. Muito con­
trariado, o duque enviara grosso manípulo de soldados para
defender as portas da catedral, e o ajuntamento, vomitan­
do imprecações e insultos contra o arcebispo, achou melhor
agarrar o cavalo e afogá-lo no Navíglio, não sem o ter an­
1

tes aliviado, selvàticamente, das muitas salsichas.


A firme atitude de Carlos contra a plebe embriagada
derivava especialmente de seu modo de agir contra os sa­
cerdotes indignos e os leigos. Adultérios, blasfêmias, viola­
ções da lei da Igreja sôbre o jejum, usuras e jogos de azar
tinham caído sob suas sanções de modo irremediável. Um
mês apenas após ter ingressado na cidade, tinha já em mãos
uma bula pontifícia que o autorizava a julgar diretamente
tais casos ou confiá-los à autoridade civil. O cardeal teria
preferido deixar a esta última o dever de fazer observar
a lei; mas corno o poder civil fazia ouvidos de mercador a
suas solicitações e respondia com equívocos às queixas,
valendo-se de antiga faculdade que concedia ao arcebispo
o direito de exercer a justiça e de fazê-la executar por meio
de agentes em assuntos relativos à Igreja, restabeleceu o
primitivo costume.
Retornou assim o alcaide arquiepiscopal que, mais por
ausência do arcebispo da sede que por outras razões, já não
exercia havia longo tempo o rigor de seus decretos. O ca­
pitão de justiça, sem mais nem menos, intimou o tribunal
eclesiástico a não ousar capturar leigo algum e por nenhum
motivo; Carlos respondeu, também êle sem muitas cerimô­
nias, com uma admoestação que o acusava de violador da
autoridade eclesiástica. Para salvar o prestígio do capitão
de justiça, interveio o senado, que procurou uma via de
conciliação, e encontrando o cardeal mais que nunca irremo­
vível, ameaçou recorrer a Madri; mas o arcebispo nãó se
deixou apanhar de improviso, e mostrou realmente, em se-
1) Canal que atravessa a cidade de Milão (N. do T.).

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grêdo, ao presidente do senado a ordem de proceder con.:.
tra o capitão de justiça, sem esperar "provisão alguma de
Madri". �le já fizera muito mais caminho.
Existia antigo costume que autorizava o arcebispo de
Milão a dispor de um trôço de armados, guardas de polícia
eclesiástica, que intervinham somente na defesa dos direi­
tos da Igreja e quando o braço secular não cumprisse sua
missão. Caíra em desuso o costume, e por isso pensavam
que tivesse desaparecido também o direito. Carlos, ainda
que augurando em seu coração nunca ter que recorrer a êle,
restabeleceu-o. Como era de prever, o governador e o senado,
composto em grande parte por milaneses cegamente de­
votados ao dominador e por espanhóis, viram de maus olhos
os guardas realizarem prisões e conduzirem os reclusos aos
cárceres eclesiásticos, onde, por desejo do cardeal, se for­
necia alimento, bebida e quanto era estritamente necessário
à vida dos detentos; os encarcerados eram ali tratados mui­
to melhor que nos lúridos porões do castelo. Isso, porém,
não justificava o fato de que o "turbulento, imprudente e
obstinado sacerdote" - como era chamado o arcebispo -
usurpasse seus privilégios.
E quando um nobre da metrópole, de vida notoriamente
dissoluta e escandalosa, foi detido pela polícia episcopal,
a indignação chegou ao auge. Senadores, também lombar­
dos, uniram-se para defender, com a habitual veemência
excessiva dos servos que desejam conservar o pôsto, os di­
reitos do patrão, no caso, o rei da Espanha; e o exercício
de um direito, - não compete a nós historiadores julgar
se óbvio ou não, - foi definido "escandalosa usurpação";
como se o estrangeiro, que acampava armado nas regiões da
Itália, fôsse algo diverso de um refinado ladrão, que não
administrava nem bem e a seu proveito o que tinha roubado
e continuava a roubar! E o Cardeal Borromeu não tinha di­
reito de prender os leigos que levavam armas - pistolas
e na igreja! - proibidas por lei!. .. Era uma vergonha e
infâmia suscitar o arcebispo contendas por um conceito
tão exagerado da própria autoridade e importância ...
O cardeal permanec�u rígido e impávido. Armas de
fogo não se deviam carregar nos templos, e todos aquêles
que houvessem transgredido esta precisa disposição emana­
da dos editais e deliberações canônicas, cairiam sob ci ri--
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gor das leis; ,faltando o braço secular, provia o braço ecle­
siástico por meio de· seus agentes, que o cardeal tinha o di­
reito de fazer agir na proteção dos privilégios da autoridade
eclesiástica, de quem era o único e legítimo chefe em Milão.
E nada mais houve a fazer, senão calar e obedecer.

8.
ENTRE OS TURBILHõES DA TEMPESTADE

Na pequena sala de estudo, diante de si, o arcebispo


da capital lombarda tinha sempre um quadro de Santo Am­
brósio, para recordar como o grande santo soube resistir à
herética imperatriz, negando a absolvição ao jovem impe­
rador manchado de sangue, até encontrar nêle um coração
arrependido. Próximo ao retrato do grande predecessor, es­
tava o do Cardeal Fischer, prelado inglês, que somente
trinta anos antes morrera em defesa da fé. E já que o direito
de exercer a guarda policial na sede eclesiástica pertencia
ao arcebispo, tal prerrogativa devia ser praticada até as
conseqüências mais extremas.
Seguiu então um período de armistício que parecia pre­
ludiar a paz definitiva; Nicolau Ormaneto, que se encontra­
va em Roma qual embaixador de. Carlos na côrte pontifícia,
apressava-se a congratular-se com êle por ter saído incólume
de tão espinhosa questão. O Cardeal Galli, por sua vez, es­
crevia-lhe, regozijando-se também "pelos duros contrastes
superados por êle com os sacerdotes e com os leigos". O
único a não rejubilar-se era o arcebispo, que insistia com
Nicolau para que fôsse o Papa a resolver o litígio; de fato,
quinze dias depois, o senado mandava dizer ao alcaide
eclesiástico que tratasse de cuidar unicamente de padres, e
noticiava a Madri que o senado havia concedido a família
armada ao cardeal somente para evitar uma rebelião aber­
ta e um movimento de revolta popular.
Tal revolta popular não passava de murmurações e
protestos de reduzido grupo de gente péssima, mesmo se

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revestida de vestes de sêda e de colarinhos duros e ondula•
dos; gente licenciosa, que vivia à custa do povo, miserável
e infeliz, que, em vez de revoltar•se, j.á não tinha nem mais
fôrça para abrir a bôca, tanto era ultrajado e esfomeado 1 E
quanto a suas queixas pelas festas mundanas suprimidas e
às quais pouco ou nada participava, o cardeal as substituíra
com belas e pomposas procissões, sempre séria e numero•
sarnente concorridas, e se alguém tivesse que lamentar-se,
eram os comerciantes, que também não falavam. Por­
que à pompa eclesiástica era convidada gente de outras ci­
dades, que vinha a Milão como para uma festa e, portanto,
estava disposta a gastar . . . e gastava de verdade ...
E o governador, como se comportava? Carlos definira-o
gentil-homem, íntegro, leal, animado das melhores intenções.
Superado o escolho das precedências, Albuquerque mostra­
ra-se favorável ao cardeal em várias ocasiões; mas não teria
podido empenhar-se com êle por muito tempo sem desa­
gradar a tôda a nobreza milanesa, e principalmente à es­
panhola, residente em Milão; como também não podia con­
fiar no duvidoso e vacilante Filipe. Era preciso, numa pala­
vra, não cair em Caribde e evitar Cila ...
Recorreu, por isso, ao uso fácil, sem dúvida, de deixar
aos outros a decisão das questões graves. E êsses outros,
quem poderiam ser senão o Papa e o govêrno de Madri?
Para obrigar o senado a reconhecer a legitimidade do proces­
so eclesiástico, na repressão dos delitos contra sacerdotes,
religiosos e leigos em matéria de fé, far-se-ia necessário um
decreto do Papa; e contra sua autoridade ninguém ousaria
insurgir-se o que teria forçado o rei a intervir, dando ordens
precisas a êle, governador, que se apressaria a fazê-las
executar.
"Os senadores - disse Albuquerque a Carlos - estão
dispostos a inclinar-se, sem discutir, a qualquer disposição
do Papa". Mas o Pontífice ainda não podia resolver-se, e
contentou-se com lembrar ao arcebispo de "não se deixar
derrubar da sela". O cardeal não esperou a repetição do
conselho, e aprisionou um criado dos Rábias, surpreendido
a roubar numa igreja. (r senado reclamou, e a família ul­
trajada, nobre em grau superlativo, com gente que servia
em Madri, ficou furiosíssima. O alcaide civil pediu a Carlos
que libertasse o servo ou o entregasse aos polícias do vig:á-

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rio de justiça. O imputado contentou-se com responder que
executara simplesmente uma ordem do Papa. "Mostrai-nos
essa ordem!" intimou o presidente do senado; o cardeal es­
creveu imediatamente a Nicolau: "Enviai-me quanto antes
o documento!" Porque, por uma vez somente, o arcebispo
colocara realmente o carro diante dos bois ...
O senado voltou-se para o governador que, desta vez,
acertou em encolher os ombros: "Quisestes agir sem mim?
Continuai agora. Prefiro perder um pouco da autoridade do
rei a dar-lhe algo desta cansativa e comprometente ju­
risdição eclesiástica". A forma, antes de tudo, no pomposo
século do gongorismo, e depois a s ubstância ...
A questão assumiu tom e cunho de controvérsia e se
transportou de Milão para Roma, diante de uma comissão
pontifícia que, ouvidas as razões das partes, - a do sena­
do defendida pelo Cardeal Chiesa - publicou dois breves
ratificados pelo Papa, um para o governador e outro para
o senado. Em ambos, Pio V não ordenava, mas recomen­
dava favorecessem as razões da Igreja; no entanto man­
dava dizer a Carlos que procurasse ganhar para sua
causa algum bom e influente senador. Mas teve como res­
posta esta profunda e inteligente reflexão: "No senado, co­
mo em quase todos os estados dos homens, é maior o núme­
ro daqueles que não amam as reformas!"
Todavia, não obstante o tom cauteloso, a sentença que
a comissão elaborara, com muitos giros e regiros de frases,
era favorável ao Cardeal Borromeu, que estava decidido a
aproveitar muito bem.
Nesse ponto, a tempestade estourou furiosa e precipita­
da. Rompendo as indecisões, e também para conservar-se
na sela, o cardeal fêz aprisionar em Gallarate, certo nobre
de muito má fama, que, havia sete anos e unicamente por
amor ao lucro, vendia a honra da família; o senado res­
pondeu capturando, na porta da catedral, um soldado do ar­
cebispo, com a desculpa de que carregava armas proibidas -
sempre a pistola! - e, conseqüentemente, violava a imuni­
dade eclesiástica. E na presença de muito povo, foi torturado,
expulso e ameaçado de galera por tôda a vida, caso retor­
nasse; Carlos pediu satisfação do acontecido, sem contudo
libertar o prisioneiro.

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O senado recusou a reparação, e o ousado pastor exco­
mungou todos os senadores; êstes, irritados ao extremo,
arrancaram a excomunhão da porta da catedral e das de­
mais igrejas, e recorreram a Roma: "E' inútil ser condescen­
dente com o Cardeal Borromeu; o .homem é inflexível e tei­
moso; não se pode demovê-lo por razão alguma; não se
deve discutir com uma pessoa que nunca retrocede. E' um
ambicioso que anseia dominar; o rigor de vida, as abundan­
tes esmolas não são que mera ostentação; procura desfrutar
sua fama de santidade para chegar a seus fins enganando
o povo".
Era necessário êsse tom insolente e agressivo para co­
mover o Papa Ghislieri! ... Não dignou ao escrito nem sequer
um olhar a mais, além do primeiro lançado sôbre aquê­
les atrevidos caracteres, para ter certeza de quem fôssem.
Enviou ao governador uma carta, certamente inolvidável,
tornando-o responsável de tudo o que estava para acontecer,
ameaçando recorrer a Madri e ordenando ao presidente
e aos mais influentes membros do senado, de comparecer em
sua presença para a justificação e correção. Diante de tal
atitude, caiu do presidente do congresso milanês tôda a
arrogância, e pensou ser melhor fazer-se recomendar em
Roma. . . afirmando ter sido caluniado pelo cardeal.
Carlos, sorrindo espertamente, referiu ao prefeito de
Milão, embaixador da assembléia, que estava convencido das
boas intenções formais do senado e de seus membros, e es­
creveu a Nicolau: "O presidente não agiu formalmente com
más intenções; eu estava persuadido, baseado em sua bon­
dade e retidão de vida; é que seguiu a imaginação e
uma exagerada confiança em sua maneira de ver. Por isso,
a viagem a Roma ser-lhe-á muito útil. Diga também ao Pon­
tífice que êle o ama e o estima muito".
No entanto, as coisas permaneciam como estavam. E
até Filipe II, apesar ,de sentido por ter o Papa tomado
decisão tão séria sem antes consultá-lo, - sempre por aquela
bendita forma! - não pôde senão desaprovar a atitude do
senado nas relações com o cardeal. Agindo, porém, com
a duplicidade própria dos políticos, envia a Milão um em­
baixador, o marquês de Ceralho, para emendar o arcebispo.
O legado soube usar de muita cautela e circunspecção
nos tratos com Carlos Borromeu: "O rei penalizara-se bas-

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tante por se ter o cardeal dirigido ao Papa e não a êle, que
nunca deixara de favorecê-lo". E como o arcebispo, anuin­
do, não mostrasse grande comoção pelo imenso favor que
lhe fazia o rei, Ceralho pôs o punho de ferro na luva de
veludo: "Com sua dor e contrariedade, o rei será obrigado
a seguir outro método para defender sua jurisdição, acon­
teça o que acontecer". Carlos continua intransigente e impá­
vido. Chega-se então à moderação: "Por que não teria o
cardeal aproveitado de sua ida para Roma, - do embaixador
- para enviar ao Papa bonita carta e pedir-lhe que encon­
trasse êle, em sua grande sabedoria, um modo de conciliar
as coisas, sem querer lembrar os infelizes coitados!?"
Nesse ponto tomou a palavra o Cardeal Borromeu: "No
que o Pontífice decidiu a respeito dos senadores, não deve
dar contas a ninguém, a não ser a Deus. Quanto a êle, avi­
sara a tempo o governador para providenciar; e recorreu
depois ao Papa, que é o pai universal, sem pretender ofen­
der o rei, a quem reconhece ser muito grato. Sim, re­
cebeu muitos benefícios do monarca; mas se Sua Majesta­
de crê que para ser grato a tais mercês, é forçoso prejudi­
car as obrigações espirituais, êle, confessa-o, não pode cor­
responder a tal desejo. E quanto às ameaças que andam por
aí, não pode esperar nada do rei, que não seja digno de um
príncipe tão católico e piedoso. Sua Majestade conhece mui­
to bem qual o seu dever e não deve um pobre cardeal re­
cordar-lho; cabe-lhe empregar suas fôrças para ajudar, e
não para oprimir a autoridade eclesiástica. Deseja Ceralho
levar uma carta dêsse teor ao Papa?"
Numa época de meias consciências e de tortuosas afir­
mações, isso se chama certamente falar claro e redondo.
A Ceralho nada restou, senão recorrer a Roma, a fim de su­
plicar que se deferisse a publicação da sentença, e de fato,
pelos esforços dos Cardeais Pacheco e Granvella, o julga­
mento não foi tornado público. A ameaça de Filipe de apelar
para um concílio fêz suspender qualquer iniciativa papal;
e tudo se limitou a repreensões verbais e intimações ocultas,
próprias do tempo.
Carlos teve um momento de verdadeiro cansaço: "Quan­
ta vergonha sinto - escrevia de Mântua a Nicolau - por
ter de contender tão mde e continuamente pela jurisdição
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da minha Igreja; todavia, onde o dever de estado me cha­
ma, não posso deixar de opor-me às usurpações que lhe
são feitas".
Causa-nos deveras compaixão ouvi-lo invocar do Papa
uma justiça que estava no próprio fato das coisas: "Lem­
brai também a Sua Santidade, com a humildade que se deve,
que, caso não constrangir os senadores e outros com a pu­
blicação da resolução tomada há tanto tempo, e não se
mostrar inflexível na ordem de irem a Roma antes que se­
jam obrigados pela censura, nunca essa Igreja poderá cum­
prir sua missão, porque basta ter simplesmente esquecido
o processo criminal contra os senadores, para que ela fi­
que imediatamente prejudicada".

9.
NÃO VIM TRAZER A PAZ

Naqueles dias, tudo parecia voltar-se contra o arcebis­


po. Não somente era abandonado pelos mais íntimos e di­
retos colaboradores no que dizia respeito a impor e manter
a disciplina, mas também era abertamente provocado pelos
cônegos da Scala.
Formavam êstes um capítulo a serviço da igreja de
Santa Maria da Scala, assim chamada por Beatriz Scala,
espôsa de Bernabó Visconti, que a fizera construir em 1381,
exatamente na área onde se encontra hoje um dos maiores
teatros do mundo. Tais cônegos gozavam de uma investidu­
ra especial, porque deviam ser nomeados pelo duque de Mi­
lão. Ademais, Francisco Sforza, no tempo em que Roma
era generosa nas concessões, pedira e obtivera de Clemente
VII que os cônegos permanecessem isentos da jurisdição
episcopal. A isenção, porém, fôra concedida com a condição
de que o arcebispo estivesse de acôrdo; o documento de tal
adesão faltava, e como alguns se referissem a um certo
consentimento assinado por Hipólito D'Este, Carlos escreveu
ao antecessor; mas, pela resposta, compreendia-se clara-

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mente que a concessão arquepiscopal fôra fabricada por
um grupo de interessados.
Por isso, um belo dia, o cardeal anunciou, depois de
obter a aprovação papal, que teria realizado a visita canô­
nica àquele colégio como a qualquer outro da diocese. De­
cidiu ir ao fundo da controvérsia; concedeu primeiramente
dois meses aos cônegos para que aderissem fàcil e e pacifi­
camente; depois, tendo insistido o governador para que a
autoridade eclesiástica não precipitasse os acontecimentos,
concordou em outra prorrogação, e escreveu a Albuquerque:
"Não quereríamos que nos acusassem mais tarde de não nos
têrmos esforçado para manter a paz!"
Ao invés, foi como bulir em vespeiro, e um sacerdote
de Pavia, certo Barbésia, que sustentava ter sido êle a assinar,
como delegado executor, o decreto de Clemente VII, ful­
minou, com cômica solenidade e violência, a excomunhão
contra o vigário e o procurador geral do arcebispo, por te­
rem ousado prender um clérigo da Scala, que, bêbado, in­
sultava o Santíssimo Sacramento.
Foi então que Mons. Moneta anunciou, muito solenemen­
te, que, em obediência às ordens pontifícias e diocesanas, o
arcebispo viria visitar a corporação. Conta-se que na manhã
em que o cardeal, vestido pontificalmente, cavalgava devoto
em direção ao convento e chegara perto do Palácio Marino,
apenas construído, ter-se-ia encontrado com o Conde Maino
que, conhecendo a gravidade do momento, ter-lhe-ia dito:
"Cuide de não arruinar tôda a cidade, pondo-se em tão gra­
ve perigo!" A que o cardeal teria respondido pronto e tranqüi­
lo: "Defendendo a glória de Deus, nunca poderei prejudicar
a cidade!"
O nobre não estava completamente longe da verdade.
Com efeito, os cônegos da Scala tinham decidido agir se­
riamente, e o demonstraram quando chegou Mons. Moneta.
Estavam, na ocasião, cantando no côro; mas deixaram lá
tudo com rapidez e raiva tremendas, e correndo à porta c;lo
templo, trancaram-na, enquanto um fogoso calabrês, cha­
mado Pantanella, cônego e ecônomo régio, descarregava
um saco de impropérios e ameaças em Moneta, dando-lhe
o encargo de referi-lo"s oficialmente ao cardeal; em seguida,
a punhos e empurrões, fizeram-no rolar do átrio, dizendo
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que a mesma sorte caberia a Carlos, caso ousasse apresentar­
se diante de Santa Maria da Scala.
Julgavam que o arcebispo aparecesse pelo menos no
dia seguinte. Mas qual não foi sua desilusão ao ver o Cardeal
Borromeu chegar logo depois de Moneta, acompanhado de
pequeno cortejo que levava a cruz e as insígnias! Deixemos
a palavra a Giussano: "A socorrer os cônegos, sempre ves­
tidos de capa magna, acorreu grande número de soldados;
talvez para significar que os dois podêres se uniam contra
a prepotência arquiepiscopal; um dos armados agarra no
freio do primeiro cavalo que entra, e empurra o cavaleiro
com violência; o exemplo é imitado por outros e nasce ver­
dadeira balbúrdia. Desce então Carlos da sela, segurando
bem alto a cruz, e avança calmo e resoluto. Pior que pior!
Origina-se uma cena selvagem, rápida como relâmpago;
ouvem-se gritos violentos de "Espanha! Espanha!"; lançam­
se golpes à esquerda e à direita, e o cardeal é atirado fora
bruscamente".
"Houve um momento - escreveu mais tarde Carlos a
Nicolau - em que vi relampaguear a meu redor e ameaçar­
me, mais de cinqüenta espadas". Graças a Deus, não se atin­
giu o cardeal, mas a cruz hasteada foi quebrada, de modo
que se tornou necessário, logo depois, o trabalho de um
ourives.
E' supérfluo acrescentar que o decreto de excomunhão
dependurado na porta da igreja foi imediatamente destrui­
do; o Padre Barbésia, para não ser inferior ao vigário geral,
lançou um interdito contra o arcebispo, que tinha ousado
<lesprezar a autoridade da Santa Sé; a notícia foi comunica­
da pelos cônegos a tôda a cidade, não somente com a afixa­
ção de cartazes escritos em letras garrafais, mas também
com o endiabrado e prolongado tocar de sinos.
A situação tornava-se tensa. O cardeal perdera por com­
pleto o apoio do governador que, tendo-lhe sido levada a
relação dos fatos, escrita pessoalmente por Carlos, deixou-a
cair duas vêzes ao chão, e proibiu a um servo de recolhê-la,
como se tratasse com objeto infeto. Apesar de o arcebispo
ter enviado a Roma Mons. Speciano, testemunha ocular
dos fatos, para informar minuciosamente a Nicolau, seus
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munigos não lhe davam descanso; Albuquerque fazia sa­
ber ao Pontífice qüe em Milão não haveria mais paz até o
dia em que na cidade ou na província aparecesse a figura
do cardeal. A resposta do perseguido é digna de um prínci­
pe, e dos tempos melhores, quando essa dignidade não era
coisa vã: "Será preciso separar-me de minha Igreja; se fôr­
forçado a ir ao exílio, teria um único perigo a vencer, a
vanglória!"
Por um momento também São Pio V duvidou da ação
de Carlos e lhe mandou dizer que, se haviam acontecido
fatos lamentáveis, era porque recusara diferir a visita por
três dias, e não podia aprovar quem os havia suscitado. O
cardeal respondeu calmo e sereno: "Vossa Santidade conhe­
ce agora onde está o êrro; se a luta deriva de minha pessoa�
digo como Jonas: Atirai-me ao mar; e, cedendo o lugar a
outro, poder-se-ia remediar tantas desordens".
A que valia sua pessoa? �te era o equívoco de seus ami­
gos, o de fazer convergir sôbre êle, mísero instrumento da
bondade de uma fé puríssima, o que era ódio a um prin­
cípio de autoridade e de retidão, ao qual precisava que todos
cedessem. Viesse também um outro a fazer respeitar os prin­
cípios, êle se sentia feliz, porque isso teria demonstrado que
era indigno de exercer aquela autoridade que lhe fôra en­
tregue. :ítsses eram os conceitos que repetia ao soberano,
escrevendo calmo, sim, mas firme: "Se Vossa Majestade
não intervier com um remédio pronto e eficaz, sua cons­
ciência será responsável por todos os males causados pelo
edito do governador, que, além de ofensa a Deus, é causa
de desastres para muitas almas".
Chegara-se a tanto, e as partes estavam firmes em suas
próprias posições, o cardeal apoiado no consentimento do
Papa, e o governador e o senado no silêncio do rei, quando
aconteceu um fato deplorável, pior que o primeiro, que
ameaçou suscitar uma onda de conseqüências em tudo mais
desastrosas que as anteriores.

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10.
CRIME NO ARCEBISPADO

Para aumentar a tensão, eis a agitar-se, logo após os cô­


negos da Scala, os humilhados. Formavam êles uma con�
gregação de frades, cujo nome não andava privado de gló­
ria. Na luta travada no ano 1000 entre Henrique II e Arduíno,
o Imperador germânico, depois da vitória, conduzira para
a Alemanha, como reféns, os principais cidadãos lombar­
dos; entre êstes, salientara-se Guido, pessoa influente, que
propusera renunciar a tôda a vaidade mundana e trajar um
burel cinzento. Vendo-os tão rebaixados, o imperador ex­
clamara: "Finalmente vos vejo humilhados!" O nome agra­
dou aos novos religiosos. Mas, retornando à pátria e im­
plantando fábricas de tecidos onde trabalhavam cantando
salmos, tornaram-se tão ricos, que puderam emprestar a
juros usurários dinheiro aos próprios reis; e quanto mais
aumentava a riqueza, tanto mais diminuía o fervor da anti­
ga observância. Assim, nos tempos de Carlos, cento e seten­
ta monges dilapidavam os bens de uma centena de conven­
tos. Era o suficiente para bulir com os nervos do cardeal.
Havia já muito tempo que Carlos se ocupava com êles,
pois, desde os anos de Roma, fôra designado protetor do
Instituto; e encarregara a Nicolau de pôr em ordem aquela
família de religiosos sui generis. Mas como, na prática, nada
se fizera e os humilha,dos continuavam a humilhar a Igreja,
rebaixando-a à condição de usurária, de acôrdo com o Pon­
tífice, o arcebispo anulou a nomeação do superior geral, subs­
tituindo-o pelo Padre Luís Bascapé, tio de seu futuro bió­
grafo, de têmpera inflexível de reformador.
As coisas começaram a melhorar em vários conventos,
principalmente na casa-mãe de Cremona, onde Luís residia,
e convencia a todos da prática da obediência e da vida san­
ta, sobretudo com o exemplo; mas em Milão, no convento
de Brera, a coisa era diversa, e os humilhados, protegidos
por um bom número de bandidos e capangas armados
até os dentes, que viviam- à custa dos frades e que se diver­
tiam da manhã à noite, estavam dispostos a resistir ao car­
deal, à viva fôrça.

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Por fortuna, êsse outro problema que teria acabado mui­
to mal, dando talvez ocasião a nôvo conflito, aplainou-se
tranqüilamente, porque o governador via de maus olhos
aquêles frades capitalistas, sobretudo por causa de certas
cobranças, ao som de pancadas, de dívidas contraídas por
súditos espanhóis! Assim, chegado o momento de impor e
sustentar a autoridade de Carlos, enviou duzentos arcabu­
zeiros a desarmar os bandoleiros dos humilhados, intiman­
do-os a seguirem as ordens do arcebispo, segundo a vontade
do Papa e do rei. Tudo parecia pacificado. Ao invés, no
silêncio do convento de Brera, tomava vulto criminosa
conjuração.
A 26 de outubro, uma quarta-feira, cantavam-se as vés­
peras na antecâmara do arcebispo. As velas estavam tôdas
acesas. Havia já meia hora descambara o sol no horizonte;
grande era a afluência na capela, desde que o público fôra
admitido às devoções vespertinas. O cardeal, de murça e
roquete, estava ajoelhado diante do altar, tendo ao redor os
sacerdotes da casa. O côro apenas acabara o versículo: Non
turbetur cor vestrum neque formidet e a antífona conse­
qüente de Orlando de Lasso; e iniciara o comentário às pa­
lavras de Rafael a Tobias: "E' tempo de retornar a quem
me enviou!", quando se ouviu uma detonação atordoante.
O canto foi interrompido bruscamente. A figura genu­
flexa do arcebispo, em branco e escarlate, vacilou. O ar
encheu-se de acre odor de pólvora e de fumaça. Reinou um
momento de pânico e de confusão, como se, por decreto
supremo, as palavras: "E' tempo de retornar a quem me
enviou", se tivessem realizado. Mas um gesto e um aceno
rápido de Carlos, ainda ereto sôbre os joelhos e muito calmo,
moderaram o tumulto e a perplexidade. A antífona foi re­
começada, e as vésperas continuaram e acabaram, ainda
que com vozes um pouco mais trêmulas e vacilantes ...
O barulho reiniciou fora, depois.
O culpado conseguira escapulir inobservado. Os fami­
liares do arcebispo depararam, na murça e na sobrepeliz,
fragmentos do projé_til; ordenaram a Carlos de subir ao pró­
prio aposento e trocar as vestes; neste ínterim, encontra­
ram-se outros estilhaços - tratava-se, sem dúvida, de arre-

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mêsso de bacamarte - quase em tôda a arcada, onde o car­
deal ajoelhara devoto e inconsciente do perigo que o
ameaçava.
O lanço chegara a seu destino, mas obliquamente, e de­
pararam-se realmente na pele do atingido sinais de leve
inchação, sem, porém, que a epiderme fôsse ofendida pro­
fundamente. Quando Carlos percebera o golpe nas costas,
crera-se atingido e ferido de morte, e agradecera a Deus em
seu coração por tê-lo mimoseado com o martírio. "Não era
digno!", escreverá mais tarde melancólicamente a Nicolau.
Que o atentado tenha falhado, é algo maravilhoso, se
considerarmos ter sido o tiro desferido a poucos passos de
distância. A palavra: "Milagre, milagre!" ecoou por Milão
num instante. Recordaram-se logo e propalaram-se narrati­
vas de estranhos acontecimentos. O cabeça da revolta dos
cônegos da Scala acabara miseràvelmente durante a viagem
para Roma. O leigo que abrira fogo contra a cruz episco­
pal morrera improvisamente em Lambrate, poucos dias
após o horrendo sacrilégio.
Outros lembravam a missão do arcebispo em Mântua.
"Um ano antes, - narra Margarida Yeo - Mântua fôra tea­
tro de eclosão de heresia e violência. O próprio jovem du­
que, sobrinho do Cardeal Gonzaga, presidente do Concílio
de Trento, era suspeito de ouvir favoràvelmente as doutrinas
luteranas. Um pregador herético era de moda no tempo.
Vinte dominicanos tinham sido assassinados. Até os temidos
inquisidores estavam atemorizados. "Essa questão deve
ser confiada aos cuidados do Cardeal Borromeu!", disse o
Papa, cônscio de que fôsse o único homem capaz de resolvê­
fa a contento. Carlos obedeceu, conversou amigàvelmente
com o duque, com os dominicanos e com os pregadores.
"O luteranismo desapareceu.. A heresia fôra rechaçada.
"Milagre, milagre!" bradaram os romanos: "Deus nos vi­
sitou sob a forma de Carlos e nos salvou da ruína!" excla­
maram entusiàsticamente os mantuanos; até os hereges,
ainda que irreverentes, uniram-se ao côro de louvores e
júbilos".
Os milaneses pensavam que o haver-se livrado do homi­
cídio, em condições tão favoráveis à sua atuação, só podia
ser milagre, e dos grandes. E os ventos começaram a so­
prar favoráveis a Carlos. Todos, a principiar do gover-

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nador, manifestaram-lhe solidariedade, prontos a defendê­
lo e a ampará-lo. Albuquerque, que pouco antes desejara re­
movê-lo da diocese, escreveu a Zuniga, embaixador da Es­
panha em Roma : "Deus operou um milagre para não per­
mitir mal algum a seu servo fiel". As congratulações pro­
vinham de todos os lados; Tarúgi, íntimo amigo do cardeal,
associando o atentado falido contra Carlos à morte de Con­
dé ocorrida naqueles dias, escrevia ao arcebispo de Milão :
"Evidentemente, Deus protege a Europa; na França, dis­
persa os inimigos com a espada; em Milão, protege os ami­
gos com o escudo!"
Corno sempre e em tôda a parte, houve também quem,
interessado, comentasse maldosamente o fato e, entre outras,
chegasse até a insinuação maligna de trapaça, com o fim
de valorizar a santidade de Carlos. Espalhou-se a voz de que
se fizera desfechar um arcabuz carregado com pólvora, ru­
morosa, mas inofensiva, e, em Roma, o defensor dos cônegos
da Scala falava maligno e zombeteiro: "Sim, tentara-se
matar o cardeal, mas salvara-se casualmente, porque a bala
acabara numa tábua existente entre a vítima e o assassi-
no!". Portanto, não milagre, mas sim, caso fortuito e.
pilhérico.
Em todo êsse contrastar de opiniões, o mais calmo, in­
diferente quase, era o arcebispo; escrevendo a Pio V, admi­
tia, sim, ter sido salvo de modo fora do comum, mas acres­
centava: "Certamente, Nosso Senhor não o fêz por meus
méritos, mas por respeito ao lugar onde nos achávamos, ou
pelo meu caráter episcopal, ou antes, para deixar-me mais
tempo a fazer penitência, de que tanta necessidade tenho!"
Pensamentos que contrastavam não pouco com os da
parentela, desejosa de reparação pública e solene. Escre­
via, com efeito, o Duque César Gonzaga: "Se conhecesse
o autor de tão horrendo delito, não deixaria de vingar Vossa
Senhoria, pois o exige o dever do sangue. E enquanto tra­
balham para descobri-lo, dê-me ordens, e ser.á em tudo
obedecido". As ordens que Carlos deu ao inflamado cunha­
do foram de rezar pela salvação de sua alma e fazer o bem;
e aproveitou para retirar-se à cartuxa de Garegnano, re­
construída naqueles anos por Galeazzo Alessi sôbre as ruí­
nas do antigo mosteiro dos Viscontis; e lá, no silêncio e em
plena paz interior, entregou-se ao trabalho de reordenar o
material dos sínodos e concílios provinciais.
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Sem dúvida nenhuma, o atentado obtivera algum resul­
tado positivo. Houve a intervenção do rei da Espanha, que
ordenou ao governador de manifestar ao cardeal seu des­
gôsto pelas violências dos cônegos da Scala, e o desejo de que
a visita ao colégio fôsse realizada com tôda a majestade de
sua dignidade arquiepiscopal. O governador devia punir
os cúmplices e nada omitir para descobrir os autores da
agressão; mas, sobretudo, competia-lhe assistir e ajudar o
cardeal em tudo o que se relacionava com a conservação e
defesa da jurisdição eclesiástica. Maior vitória Carlos não
podia esperar obter.
Mas quanto prezasse sua pessoa e a segurança da vida
faz-nos saber Francisco AlciJati, que lhe escrevia : "O se­
nhor não toma precaução alguma por sua pessoa; todos
podem ingressar em seus apartamentos, tanto durante o
dia, como à noite; o senhor cavalga com pouco ou nenhum
acompanhamento e, pior ainda, também de noite; isso é
provocar os delinqüentes, e nenhum de seus amigos pode
aprovar tais ações. Deveria recordar o exemplo do Redentor
e dos Apóstolos, que evitaram todos os perigos até chegar
sua hora".
Carlos sorriu diante desta e de outras solicitudes; to­
davia, quando a exprobração partiu do próprio Papa, viu­
se obrigado a recorrer à prudência, àquela a que estava
acostumado. "Mas eu não me descuido em nada, - res­
pondeu ao Pontífice; é que não queria, trancando as portas,
negligenciar minhas obrigações. Sinto muito em afastar da
capela os forasteiros e privá-los de tantos bons frutos, so­
mente por causa de minha pessoa; além de outras preven­
ções, a capela privada foi transportada para a parte interna
do palácio; portanto, não há razões para inquietações e
temores!"
Verdadeiramente, Carlos pecava por otimismo. Se a
procela já passara, deixara, contudo, atrás de si vestígios
não muito insignificantes; com efeito, sôbre as relações
com os senadores, relatava o arcebispo ao núncio da Es­
panha: "Minha ligação com cada um dos senadores é cir­
cundada de benevolência; 1ratam comigo cordialmente, ape­
sar de, quanto à jurisdição, terem as coisas permanecido no
ponto que j,á conheceis". Ou seja, não se haviam movido
de um passo, também pela inércia do Pontífice.
Vida de S. Carlos - 11 161
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11.
A HORA DE JUDAS

Nem tudo estava acomodado, como poderia parecer


à primeira vista. Os violadores da autoridade arquiepiscopal
continuavam a infringi-la. E os cônegos da Scala prosseguiam
cantando no côro a plenos pulmões e bimbalhando os sinos
a mais não poder, como se nada houvesse acontecido. Nem
mesmo a dramática morte de Pantanella os havia feito criar
juízo. Tornava-se necessário mudar de tática. Aos senado­
res chegou a ordem peremptória do rei de se submeterem
imediata e publicamente à autoridade eclesiástica. Na vés­
pera do Natal de 1569, sôbre um palanque erguido na frente
da catedral, o fiscal e o notário prostraram-se diante de Car­
los, implorando a absolvição e prometendo solenemente
cumprir a penitência imposta. O povo, feliz por ver humi­
lhados os potentes e opressores, comentou alegremente em
seu dialeto regional :
"El sanatt a l'han sanà
el coppett-el ghan bassá"
Abateram o senado
E cortaram-lhe a crista!
O governador obteve do cardeal a faculdade de fazer-se
absolver pelo confessor particular. Vencer sim, mas nun­
ca abusar, para não originar premissas de novas derrotas.
Exigiu-se, porém, a Albuquerque de revogar, ainda antes
da Epifania, tôdas as medidas tomadas contra a autoridade
eclesiástica. Quanto aos cônegos da Scala, receberam or­
dem do Papa de ceder, caso contrário teriam incorrido nas
penas de Bonifácio, sendo assim atingido de infâmia o colé­
gio e privado de qualquer benefício. E como o governador
lhes fizesse compreender explicitamente que teria feito exe­
cutar com a fôrça as deliberações do Pontífice, foi mister
abaixar um pouco o volume do canto e silenciar os sinos.
E submeter-se.
Mas contra êsses obstinados, Carlos quis que a repa­
ração assumisse caráter de cerimônia inolvidável. Narra
Franceschi: "Era domingo, 5 de fevereiro de 1570; abatidos
e humildes, apresentaram-se, em procissão, à porta da ca­
tedral para confessar publicamente a culpa e implorar
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perdão; conduzidos ao altar-mor, diante do trono do arce­
bispo, prostraram-se, renovando o arrependimento pela re­
volta, e reconheceram a autoridade do pastor da diocese; em
seguida, pondo as próprias mãos entre as do cardeal, prome­
teram obediência. Uma luz de júbilo e de ternura pareceu ilu­
minar a figura pálida e rubra de Carlos quando se ergueu
e pronunciou, entre a comoção geral, as dulcíssimas pala­
vras: "Sou vosso irmão!" E ficou estabelecido que a fun­
ção fôsse repetida por dez anos, sempre no dia 5 de
fevereiro".
No ano seguinte, contudo, não por culpa dos cônegos
ou do cardeal, a cerimônia ameaçou turvar as águas entre
o arcebispo e o governador. Com efeito, durante a função
de 1571, o conde-duque e tôda a nobreza da cidade, que
estava presente na catedral, ao presenciar tantos atos de
submissão e a imponência do celebrante que os recebia,
pensaram que estava em perigo a autoridade real por parte
de Carlos, que pretendia fazer todo aquêle alarido ao redor
de sua pessoa, para rebaixar os representantes de César.
Sem lembrar o lugar sagrado e a missa a que assistiam,
os nobres começaram a conversar rumorosamente entre si e,
finda a cerimônia, o governador partiu imediatamente, sem
nenhum aceno de saudação ao arcebispo e com cara de sexta­
feira santa. Foi preciso não pouco trabalho para persuadir
o ofendido de que tudo o que acontecia na catedral, era
perfeitamente lógico e submisso à autoridade régia; mas
o enviado espanhol não se deixou convencer senão quando
recebeu uma declaração formal de Carlos. Contanto que a
formalidade fôsse salva, a autoridade estrangeira estava
disposta a engolir tudo! Afora restituir o que tirara in­
justamente!
Encontrara-se, no entanto, o autor do atentado, e uma
luz muito sinistra caíra sôbre aquêles humilhados, que ain­
da, apesar de tudo, caminhavam de cabeça erguida, com
uma arrogância superada unicamente pela ignorância mais
crassa. A descoberta do delinqüente processara-se num mo­
do algo curioso.
Poucos dias após o ·delito, dois sacerdotes da ordem,
Bartolomeu Nassino e Clemente Merísio haviam revelado
ao cardeal o nome do culpado, com a condição explícita de
guardar o mais absoluto silêncio. O modo como os dois
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confessaram os pormenores do crime, induziu o arcebispo
a suspeitar - e veremos como acertou! - que debaixo da­
quelas reticências, houvesse algo a mais que os dois não
queriam revelar. Insistiu então para ser desobrigado da
confidência; somente depois de muitas e reiteradas insis­
tências, obteve licença para referir a trama aos juízes do
tribunal. Pôde-se, assim, chegar ao conhecimento completo
do delito e reconstruir o perverso ardil.
Os humilhados haviam resolvido responder à firmeza
de Carlos com um ato de violência, ou seja, suprimir o au­
tor de tantas e de tão indigestas reformas; e lá mesmo, no
convento de Brera, tinham urdido a conjuração, dirigida por
três sacerdotes de importância - Clemente Merísio, Lou­
renço Campana e Jerônimo Legnano; o executor material
foi o diácono Jerônimo Donato, conhecido por todos como
"Farina". O preço da traição fôra fixado em quarenta es­
cudos, para que o homicida pudesse fugir para outras terras.
Dez denários a mais que a recompensa de Judas ...
Vale a pena lembrar essa indigna maquinação, para
ilustrar melhor quais eram os tempos, e referimos aqui as
páginas que Franceschi dedicou ao atentado e que foram
transcritas das biografias de Giussano e de Oltrocchi. A pri­
meira dificuldade que se apresentou aos conjurados foi a
de encontrar o dinheiro.
"Pretenderam roubá-lo da caixa de Brera, e organiza­
ram várias tentativas, arrombando portas e descendo até
pela chaminé ao interior da habitação; mas nada conse­
guindo, esperaram pela solenidade da Ascensão, dia em que
seriam expostos na igreja paroquial todos os objetos sacros,
e assim poderiam furtá-los durante a noite. Mas eis que
Farina, tendo roubado, sem o conhecimento dos cúmplices,
tôda a prataria, pôs-se, no dia seguinte, a gritar contra o
furto e exigiu dos conjurados a quantia estabelecida. Foi
então que os três resolveram, com horrível frieza, assas­
sinar e depredar o pároco Simoneta, quando estivesse so­
zinho na igreja a rezar, e chegaram realmente até o côro;
deixaram-se, porém, dominar pelo temor diante do bárbaro
crime e renunciaram a qualquer projeto, mesmo contra
o cardeal.
"Mas Farina, que fugira para Veneza e Corfu, e fôra
por um momento assaltado pelos remorsos, seguindo o con-

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selho de um pérfido amigo, voltou para Bréscia; raptou ali
um jumento, e o tornou a vender para comprar dois arca­
buzes; reapareceu, logo depois, em Milão, onde se encon­
trou com Jerônimo Legnano e com o nôvo cúmplice Bar­
tolomeu Nassino.
"Insinuaram êstes que Carlos continuava na mesma,
que não se podia mais viver, e que precisava acabar com a
coisa; Farina decidiu então o golpe. Ocultou-se muitas vêzes
perto de São Barnabé, esperando pela passagem do cardeal.
No dia 25 de outubro, dirigiu-se à capela do arcebispado,
na hora das Completas; mas naquela noite estavam ao lado
do arcebispo, o Cardeal Crivelli e o bispo de Lódi; o assas­
sino teve mêdo de errar o alvo; retornou na noite seguinte
e realizou com fria resolução o intento. Fugindo para jun­
to do irmão, recebeu um bilhete de Legnano, que o acon­
selhava a refugiar-se em Vercelli; as portas da cidade, po­
rém, estavam fechadas. Quinze dias depois, pôde abrigar-se
no Piemonte, onde se alistou entre as milícias do Rei Ema­
nuel Felisberto; e ali, não obstante o parecer contrário de
Carlos, foi prêso e entregue ao tribunal de Milão. Fôra
Nassino a revelar o refúgio de Farina, na esperança de
fugir da punição.
Agora, porém, era o Cardeal Borromeu quem não sa­
bia como persuadir o Pontífice, o governador e o tribunal
a não recrudescer contra os infelizes delinqüentes. Ao ler
sua carta enviada a Nicolau, parece que chame a si tôda
a culpa, inocentando os assassinos, pois o primeiro em
quem haviam confiado tinha sido precisamente o arcebispo:
":ítsses desventurados, reconhecendo a própria culpa,
tornam-se em parte inocentes, e estão arrependidos; dou­
tra parte, são menos culpados que os cônegos da Scala,
que se opuseram à autoridade com a fôrça armada e em ple­
no dia. Farina foi um inditoso que esperava permanecer
oculto ... " Conseguiu somente obter que o Padre Nassino
fôsse condenado a cinco anos de prisão; e como insistisse
junto do Papa para que lhe perdoasse completamente, na
esperança de vê-lo melhorar, teve como resposta que era
mais f.ácil tornar branca a pele dos etíopes que atender ao
pedido; pouco depois, contudo, alcançou sua libertação e
a restituição do cargo que ocupara anteriormente".
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O braço secular castigou inexoràvelmente os outros
cúmplices do crime. Foram enforcados, na praça de São
Lourenço, em Bróglio. Somente dois, os párocos de Cara­
vággio e de Vercelli, tiveram a distinção da decapitação ...
e mereceram tal privilégio - conforme as crônicas daque­
les tempos - por serem nobres. Narra-se que Farina se
tenha comportado com muita dignidade diante do patíbulo.
Quando passou pelo arcebispado, ao se lhe amputar a mão
como parricida, teria dito ao carrasco : "Corte a mão cele­
rada que com um só golpe arriscou a perder tôda a cidade!"
Suprimiu-se a ordem dos humilhados, e a casa e a igreja
de Brera foram entregues aos jesuítas que, em Milão, não
possuíam sede própria. A paz voltara a reinar na diocese;
as vésperas daquele Natal, cantadas na catedral, preanun­
ciaram uma festa pacífica e triunfal, e resultaram especial­
mente adequadas as palavras da primeira antífona: Rex pa­
cificus magnificatus est, cuius vultum desiderat universa
terra. - "Exaltou-se o rei pacífico, por cuja face anela
tôda a terra !"

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PARTE IV

O PEREGRINO DE DEUS

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1.

CONHEÇO MINHAS OVELHAS

O triunfo de Carlos Borromeu naquela Milão que dez


anos antes o vira partir ignaro de tudo e rico somente da
proteção do tio Papa e do talento, desconhecido pela maior
parte, mas de vontade decidida, demonstrara o caráter ro­
busto que naqueles membros delicados e franzinos serpea­
va inflexível em tudo o que se referisse à fôrça e ao prestí­
gio da fé. O episódio dos humilhados e dos cônegos da
Scala tinha sido já precedido por outros sucessos nos quais
o temperamento de Carlos se manifestara plenamente e
sem meias sombras.
Lembramos já o concílio de 1569 e o fato do cardeal
de São Jorge, a que acenamos. Possevino refere minuciosa­
mente os preparativos de tais sínodos, aos quais, na quali­
dade de secretário do cardeal-arcebispo, assistia muito de
perto. Nenhum particular fugia ao prelado, que se prepa­
rava às reuniões com a maior pureza e cuidados possíveis.
Passava as noites em oração, jejuava e reunia canonistas
e teólogos para aconselhar e ajudar nas questões mais di­
fíceis. Para todos os bispos, abades e priores da Província,
que não possuíssem nas vizinhanças, residências de sua
Ordem, preparavam-se aposentos no palácio arquiepiscopal,
onde eram hospedados e mantidos convenientemente, às ex­
pensas de Carlos.
Os bispos eram recebidos, ainda fora da cidade, com
a pompa e o cerimonial em uso, e acompanhados à cate­
dral e, em seguida, a seus apartamentos no arcebispado,

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onde tomavam as refeições com o arcebispo e sua família. E
dado que Carlos se alimentava como os passarinhos e se nu­
tria de alimento . .. quase simbólico, os convidados não es­
tavam certamente obrigados a seguir-lhe o exemplo, mas,
pelo contr,ário, eram servidos com fidalguia. Os repastos,
é claro, eram tomados em pratos e louças de barro; havia
grande abundância de peixe, carne, legumes, pão branco,
frutas e vinho, - mas nunca mais de três iguarias em cada
refeição ... o que, para os banquetes do tempo, era conside­
rado fazer penitência, e da penosa. . . Nem faltava, como
já tivemos ocasião de notar, a leitura da Bíblia e de outros
livros de devoção.
Naturalmente, o arcebispo recebia sôbre seus súditos
informações de tôda a parte, e freqüentes vêzes, malignas e
insidiosas. Mas não se contentava em julgar os prelados,
baseando-se nas palestras banais e nos encontros em há­
bitos de gala. "Agia de maneira a conhecer antes do con­
cílio - diz Possevino - não somente os defeitos comuns
dos provincianos e dos diocesanos, mas de cada um em
particular, quer fôsse leigo quer eclesiástico. Para tal es­
copo, trazia sempre consigo uma caderneta, onde anotava,
de sua própria mão, os defeitos dos subordinados, para
corrigi-los no tempo e lugar devidos. Na verdade, sua ha­
bilidade e gentileza eram tais, que obrigavam todos a do­
brar-se diante de sua vontade".
No concílio de 1569, que se tornou famoso pelo menos por
um século, foi lembrada por muito tempo sua introdução:
"Faz três anos que começamos os trabalhos das reformas,
mas estamos bem longe da meta. Até hoje, oferecemos ao
povo somente leite; torna-se necessário agora, alimento mais
sólido. Não nos limitemos a ser sombras, mas tornemo-nos
a encarnação viva daquela disciplina cristã que, com o au­
xílio de Deus, devemos regular com nossos decretos.
"Bem conheceis, veneráveis irmãos, quantas angústias
afligem o mundo cristão! Quantas violentas revoluções,
quantos massacres, quantas lutas! Destruíram-se igrejas, e
despojaram-se lugares consagrados de suas preciosas está­
tuas e ornamentos! Com o mais insensato descaramento,
foram roubados vasos sagrados, assassinados muitos sacer­
dotes e religiosas, dispersas as relíquias dos santos, violadas
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tantas virgens, profanados os templos. . . Tudo é ruína e
desolação!"
Palavras terríveis, sem dúvida, mas verdadeiras. Aque­
la voz que apenas se elevava de tom para fazer-se ouvir,
atravessara os muros da catedral de Milão e se fizera es­
cutar no mundo inteiro. O povo tem principalmente neces­
sidade de alimento substancial... Não são sombras, mas, en­
carnação viva da disciplina cristã.
E as palavras do cardeal-arcebispo ressoavam como
repreensão, estímulo e vergastadas.
Freqüentemente, especialmente nos primeiros tempos
do cardinalato, quando as lembraças da nobreza lhe sus­
surravam ainda lisonjeiras ao ouvido, costumava firmar­
se Buonromeo - Bom romeiro. A origem dêste nome não
era tão distante da piedade cristã mais eleita, que não pudes­
se andar unida a um agradável sentimento de orgulho ca­
ritativo, - se na pr.ática da caridade o orgulho tem razão
de subsistir.
Seu longínquo antepassado, Lázaro de São Miniato, que
viveu por volta do fim de 1.200, tivera a alcunha de Buon­
romeo, precisamente pelo grande auxílio dispensado aos
peregrinos que se dirigiam para Roma a fim de lucrar o
jubileu do Papa Bonifácio VIII. Entre os romeiros de Flo­
rença, havia também o obscuro e solitário exilado que se
chamava Dante Alighieri. Lázaro agradara-se do apelido,
a tal ponto de impô-lo a seu primogênito, que o legou aos
próprios filhos. Tôda aqui a orgulhosa história da família
Borromeu!
E Bom Romeiro quis ser Carlos quando empreendeu,
como dever de todos o mais sagrado, as excursões pastorais.
Havia dito, desde os anos do Vaticano, que as visitas pasto­
rais são para os bispos de maior utilidade que as informa­
ções dos vigários. . . Quando chegou a Milão, onde se fixou
para sempre, pôs no trabalho e na distribuição dos planos,
o ardor militar e a firmeza feita para manter a todos em
linha. As visitas pastorais de Carlos tornaram-se famosas.
Com seis cavalos somente, porque era necessário cuidar
de não gastar inutilmente-- nas paróquias pobres pensava
o cardeal com suas rendas pessoais, - sem o embaraço das
bagagens, pois todos deviam levar o estritamente necessário
como soldados no campo de batalha, a caravana percorria
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estradas abertas e infinitas, atalhos de montanha, e veredas
apenas traçadas; afrontava, com desenvoltura, os lugares
mais escabrosos, e quando as estradas se perdiam entre cha­
padas e penhascos e as cavalgaduras recusavam avançar,
eis o Bom Romeiro a empunhar grosso e nodoso bastão de
montanhês, a subir em todos os montes, servindo-se das mãos
onde era necessário, e a colocar aos pés certos ferros . . . in­
descritíveis, que deviam salvá-lo dos escorregamentos mais
perigosos e que, ao contrário, gerahnente os facilitavam...
Quando se devia transportar equipagens bastante pesa­
das, repartia-se a carga um tanto para cada um, e também
Carlos carregava sôbre os ombros a própria, e não queria
saber de auxílio. Afirmando ser bela coisa gastar bem
aquêles longos dias que os outros dedicam ao repouso, fixa­
va as visitas para os meses mais quentes e a viagem nas ho­
ras mais ardentes. Nada o fazia recuar, nem o suor que lhe re­
gava a fronte, nem a fadiga que lhe dobrava o pequeno
e delgado corpo. "O calor - afirmava - compensa pelo
grande frio que sofri nas igrejas e moradias dos pobres
vigários onde passei as longas horas do inverno... "
Durante suas peregrinações apostólicas, não havia jeito
de convencê-lo a tomar alguns momentos de repouso ou a
fazer as coisas por etapas. Apenas chegado ao lugar pre­
estabelecido, ei-lo a correr à igreja para as funções, e nunca
omitia o sermão aos fiéis. Se alguma família rica lhe pre­
parava confortável e bonito apartamento, ou também so­
mente um quarto hospitaleiro com boa cama, recusava agra­
decido, e enviava o mais cansado ou necessitado da comiti­
va; jamais renunciava à casa paroquial, ainda que paupér­
rima, contente por dormir sôbre enxergões de fôlhas ou
palha, quando não em simples tábuas.
Relata-nos, a propósito, Môntico: "Em Valsassina, ape­
sar de estar completamente ensopado e encharcado pela
chuva, não quis de maneira alguma servir-se do único lei­
to que havia na casa paroquial, e o cedeu prazenteiro ao
familiar Júlio Brunetto".
Também Giussano lembra como outro doméstico pu­
dera vê-lo, pela fenda da porta, renunciar à cômoda cama
e retirar de uma gaveta velho cobertor todo remendado, se­
melhante aos que os cavaleiros colocam sôbre a garupa dos
cavalos, e desdobrá-lo per terra.

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Repousava algumas horas apenas, pois entre preces,
meditações e anotações nos conhecidos livrinhos, passava
grande parte da noite, e ao amanhecer j1á se encontrava
de pé para recomeçar, com prodigioso ardor e entusiasmo,
o nôvo dia que lhe reservava trabalhos e viagens inúmeras.

2.
A BUSCA DA VERDADE

Durante essas viagens apostólicas, que deixavam sem­


pre e em tôda a parte vestígios indeléveis de santidade e
moralização dos costumes, Carlos reduzia ainda mais a ali­
mentação; aos companheiros, porém, desejava que se pro­
porcionasse, em qualquer paróquia em que estivessem, sopa,
pão, uma iguaria e frutas, mas para si ... O mais das vêzes
aproveitava das visitas apostólicas para passar o dia in­
teiro a pão e .água, e nas festas principais, servia-se das
castanhas e do bom leite dos povoados alpinos, e achava
ter feito suculento banquete. Quem teria visto nêle o Car­
deal-Arcebispo de Milão, ao invés de um entre os tantos po­
brezinhos das vilas do interior?
Refere Giussano que, certa vez, um dos companheiros
houve por bem pôr na mala do cardeal uma daquelas co­
lheres de latão que se empregam geralmente nos serviços
culinários. Durante a estadia nas regiões de Levantino, ao
descobrir Carlos o talher, perguntou por que fôra colocado
entre suas coisas. Sendo-lhe respondido que não era deco­
roso a um Príncipe da Igreja sorver a sopa com colheres
de madeira já gastas e usadas naqueles rincões pelos mais
indigentes, objetou que Cristo, na última ceia, não possuía
nem mesmo dessa espécie ...
Desejava, sim, que nas visitas pastorais se realizassem
funções belas, honestas e dignas, mas que se abolissem lau­
tos banquetes que, em geral, acompanhavam a visita de
qualquer prelado e arruinavam, por var10s anos talvez,
um pobre vigário. Chamavam-no sovina, por gastar o di-

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nheiro com critério e sagacidade, e não com tanta prodigali­
dade como teria sido do agrado de muitos; nessas jornadas
apostólicas interessava-se não em organizar festas, mas em
restaurar igrejas e hospitais, e distribuir esmolas a mãos
��

A população recebia-o com alegria algo atônita, que


se tornava depois oomovida e calorosa, ao vê-lo tão sim­
ples, humano e caritativo. Pode-se aplicar a Carlos o que
Alexandre Manzoni escreveu do Cardeal Frederico: "Eis
que se vê despontar o cardeal, ou para dizer melhor, a turba
em cujo meio se encontrava sua liteira, com o séquito ao
lado; pois de tudo aquilo não se distinguia nada, senão um
indício no ar por sôbre as centenas de cabeças, - um pe­
daço da cruz sustentada pelo capelão a cavalgar manso
animal. . . O cardeal vinha à frente abençoando à direita
e à esquerda e recebendo, por sua vez, bênçãos e augúrios
da multidão que, a muito custo, podia ser mantida afasta­
da pelos sacerdotes e leigos que o acompanhavam!"
Cessado o clamor externo e ingressando no templo, fôs­
se da mais humilde e mísera paróquia das montanhas ou
nas catedrais de Monza e de Lódi, o arcebispo dirigia-se
imediatamente ao altar e, após breve oração, falava ao
povo, exortando-o à vida mais austera e santa, e à aceitação
dos males n3: terra para receber a graça dos anjos no céu.
Entretinha-se, em seguida, íntima e cordialmente, com
os curas, sem a presença de outros, e incitava-os a confiar
nêle, a narrar-lhe as desordens mais graves, a s causas dos
escândalos e desavenças, e as prepotências que atormenta­
vam certos infelizes Don Abbondio por parte de muitos
Don Rodrigo provinciais; nesses colóquios familiares cara
a cara com o vigário, infundia coragem, que algumas vêzes
faltava; endireitava as consciências tortuosas, inclinava-se
sôbre as almas para descobrir-lhes as chagas mais ocultas
e rebeldes; e assim originaram-se viárias mudanças que o
povo chamava "milagres".
Acontecia não poucas vêzes, quando o clero de uma
paróquia se reunia em congregação forânea, - o que devia
acontecer habitualmente cada mês - que aparecia quase
de surprêsa, ou precedido por uma advertência de apenas
vinte e quatro horas. E então eram conselhos, repreensões e

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chamadas que obrigavam os mais revoltosos a trabalhar
com afinco e entusiasmo na vinha do Senhor.
O que mais repercutia na imaginação e no coração
de todos era a maneira solene como se apresentava, e a es­
tática suavidade de seu olhar sensibilizado diante da gran­
diosidade litúrgica; em seu semblante, certamente não mui­
to belo e atraente. . . humanamente falando, refletia-se gra­
ça e luz nústicas que se expandiam por sôbre os presentes,
anciãos e crianças, nobres e humildes, apinhados nas rús­
ticas ermidas alpestres ou nos suntuosos templos citadinos.
Algumas vêzes, para as funções nas igrejas .mais im­
portantes, convidava-se, para falar ao povo, algum prega­
dor de renome. Se, porém, o solicitado não chegava a tempo,
subia ao púlpito o cardeal e arrebatava a multidão. Aconte­
ceu-lhe até, em certa quaresma, alternar na catedral com o
célebre orador sacro e caríssimo a seu coração, Padre Ma­
tias de Saló, a longa preparação milanesa da P,áscoa.
Nem todos os pregadores quaresmais ficavam conten­
tes com tal ingerência, e não eram poucos os que observa­
vam mal-humorados: "Mas como, convida-nos para pregar
e depois nos deixa de lado?! Bonita figura fazemos diante
do povo!" As queixas chegaram até Roma. Carlos viu-se
obrigado a justificar-se com o Cardeal Speciano: "Mas não
compreendiam os ofendidos não serem senão adjutório dos
bispos? E se não o entendiam, era por culpa dos prelados,
que até agora consideravam a pregação como fumaça nos
olhos ..."
O povo, como que acordando de longo torpor e vendo
novidades também nas formas ordinárias do culto, tanto
estava desabituado, acorria às funções com entusiasmo e
freqüência que davam asas ao orador; e apesar da vas­
tidão da catedral e da população de Milão não poder nem
de longe ser comparada com a de hoje, era difícil, algumas
vêzes impossível, encontrar um lugar nas funções presidi­
das pelo arcebispo. E quando chegava às diversas igrejas
da diocese, as multidões surgiam de todos os cantos. Carlos
interessava-se então em suscitar novas formas de devoção,
fomentando tríduos, novenas, missões e tôda a espécie de
piedade, semelhante - diz Giussano - "aos comerciantes e
artífices ambiciosos que vivem continuamente preocupados
em descobrir novos modos de aumentar o lucro!"
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�ste contágio de admiração e devotamento não se pro­
palava somente e:o.tre o povo miúdo, mais propenso às sedu­
ções do fausto exterior que às práticas da verdadeira re­
ligião, mas conquistava também as classes mais difíceis e
céticas, as dos senhores, dos nobres, dos magistrados e dos
próprios senadores que, esquecidos de tê-lo tão rudemente
ultrajado e combatido, procuravam-no agora para aconse­
lhar-se; visitavam-no freqüentemente - quase demais! -
e participavam, ostensivamente, até das funções que se rea­
lizavam na capela privada do arcebispado.
E' claro que tudo ia de vento em pôpa, até que se trata­
va somente de assistir às cerimônias, desfilar em hábitos
aparatosos nas procissões, levar baldaquinos ou velas vo­
lumosas e delgadas; mas quando Carlos entrou na vida
social dessa gente e pretendeu reformar os costumes e gol­
pear as injustiças dos potentes contra os humildes, chove­
ram as mais absurdas críticas e lamúrias! Tornaram a repe­
tir que o cardeal desejava fazer mais do que lhe convinha,
que era necessário, sim, trovejar na igreja, mas que não
sE.· ocupasse de outros assuntos, e que entendia nada menos
que levar o povo à revolta contra a autoridade real. Isso,
porém, em nada abalou o ânimo do intrépido lutador que,
em plena tempestade jurisdicional, por exemplo, empre­
endeu a visita aos três cantões suíços postos sob seu cuidado.
A viagem teve início no Cantão de Lucerna que, gra­
ças à ação de Ludovico Pleiffer, prefeito da cidade, mais
se opusera a propaganda protestante. Ludovico conseguira
salvar o rei da França, ajudando-o a refugiar-se entre os
Huguenotes. O segundo cantão percorrido por Carlos foi
o de Unterwalden, onde Melchior Lussy, durante quarenta
e oito anos de fecunda atividade, foi, a começar do con­
cílio de Trento, o homem de confiança da Santa Sé na
própria pátria.
Percurso semeado de aventuras, que patenteou e cor­
roborou, não sem diminuir as físicas, as fôrças espirituais
dêsse gigante da fé.

li6
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3.
O MISTÉRIO DO AMOR

Partiu, portanto, de Milão em outubro de 1568; visitou,


pelo caminho, Sesto Calende, sôbre o qual pendia uma
questão jurisdicional com o bispo de Pavia; e como bom
filho de Arona, demorou-se na terra natal para orar no cas­
telo de sua infância. Dirigiu-se, por fim, para Bellinzona,
onde o aguardavam os três delegados dos senhores suíços.
O quadro que se apresentava a seus olhos não era em
si dos mais conturbadores. O povo daqueles cantões conser­
vava-se sinceramente católico, os hábitos das mulheres eram
ainda bastante modestos, o culto respeitado e praticado, ape­
sar de a maioria ser de índole proterva, respeitando pou­
co ou nada a autoridade religiosa, e comendo e bebendo a
mais não poder, sempre que se oferecia a ocasião.
E se tais os sentimentos dos leigos, a situação do clero
era deveras catastrófica. Não falemos do conhecimento da
fé. Como encontrá-la em lugares privados de seminários e
de escolas religiosas? Os costumes, conseqüentemente, ha­
viam decaído de maneira inaudita.
Faltando por completo a s prebendas, os sacerdotes vi­
viam filando jantares sempre que podiam, ou então pro­
curavam o sustento na caça, no comércio ou em qualquer
outra profissão rendosa. Com essas premissas, era inútil fa­
lar de administração dos sacramentos. Para um bispo que
sentia, como Carlos, particular predileção pela Eucaristia,
doía profundamente o coração ver seu Senhor crucificado
novamente e, - era o que mais o magoava! - por quem
ouvira um dia: "J,á não vos chamo servos, mas amigos!"
Bascapé e Giussano estão concordes em referir que o en­
contraram chorando mais de uma vez. De fato, lemos numa
carta escrita a Nicolau Ormaneto, a 5 de novembro da­
quele ano:
"Vi o Santíssimo Corpo de Jesus Cristo encerrado em
vasos empoeirados, e abandonado por mais de seis meses
em cibórios imundos. Tremi de pavor ao deparar, em certà
igreja, com uma partícula do adorável Corpo em absoluto
Vida de S. Carlos - 12 177
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estado de deterioração, em parte colada no cálice já partido,
e em parte ao purificador".'
Muitas igrejas das montanhas não haviam sido consa­
gradas, e então o arcebispo devia sagrar templo, altar e
cemitério ... O que significava jejum durante o dia inteiro
e vigílias passadas em oração por noites seguidas. Realizava
tôda a extenuante cerimônia da consagração, cantando a
própria parte; celebrava a missa pontifical, pregava e ad­
ministrava a santa comunhão a uma imensa multidão. Fre­
qüentes vêzes, permanecia vinte e quatro horas sem tomar
alimento algum. E chegou a consagrar quatorze ou quinze
igrejas em doze dias.
"Tal função - nota irânicamente Godeau - seria
motivo suficiente para oferecer a qualquer outro bispo um
longo período de repouso ... " Carlos podia muito bem re­
petir as palavras ardorosas de São Paulo: "Em meio de
muitos trabalhos, freqüentemente em viagens, entre os pe­
rigos do mar, perigos dos assassinos, perigos de meus com­
patrícios, perigos nas cidades, perigos na solidão, perigos
<los falsos profetas, na fadiga e na miséria, nas numerosas
vigílias, na fome e na sêde, no frio e na nudez; além de tudo
o que me provém do exterior, os cotidianos cuidados que
me preocupam, a solicitude de tôdas as Igrejas!"
Comenta com razão Franceschi: "Aquêle seµ peregrinar
incansável por veredas impossíveis e a qualquer hora, aquê­
le esquecer sempre a si mesmo para procurar o bem do
rebanho, o nunca cessar de chamar com acentos comove­
dores, o excitar e consolar e, sobretudo, aquêle gênero de
vida de grande penitente, produziram profunda impressão
sôbre o clero, o povo e os embaixadores que lhes eram cons­
tantes testemunhas; e deve-se recordar ter sido precisamen­
te nessa visita que o cardeal começou, em forma ainda
1) Não nos devemos escandalizar diante dos tantos fatos lastimá­
veis que deparamos na vida d-e S. Carlos, quando se trata da vida
religiosa d-os fiéis e doi clero de 1500. Não pod•eríamos esperar mais,
se considerarmos as condições precárias de muitos eclesiásticos
ignorantes, egoístas e sem nenhum eonhecimento da própria res­
ponsabilidad•e e missão. Tudo isso, porém, serve para demonstrar a
v-erdade e a transcendência da Igreja CatóUca. Se os homens, par­
ticularmente os sacerdotes, não conseguiram, com sua vida irres­
ponsável, destruí-la, é prova indiscutível e eonsoladora que proce­
de de Deus, e é Cristo quem a governa e sustenta através dos s�
culos (N. do T.).

178
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mais rígida, o seu regime de vida, contentando-se com o
leite e com os alimentos mais comuns e grosseiros".
Foi certamente um mês de esgotantes fadigas sua per­
manência na Suíça; mas os frutos foram consoladores. O
arcebispo nunca mais perdeu de vista aquelas distantes re­
giões. Em 1579 fundará o Colégio Helvécio, onde serão aco­
lhidos até quarenta jovens do belo e gentil país alpino.
Visitará pelo menos dez vêzes o Cantão Ticino, e em 1573
chegará até a Suíça alemã.
Certa vez, um dos embaixadores cantonais fizera claro
e preciso discurso na presença do cardeal: "Sim, é verdade,
os senhores dêsses lugares haviam mil vêzes usurpado os di­
reitos da autoridade eclesiástica; o que teriam podido fa­
zer, porém, com um clero daquela casta, que não se ocupa­
ra dêles? Mas que tomassem cuidado agora os sacerdotes
e caminhassem no reto caminho, segundo as ordens do arce­
bispo; porque os príncipes estavam decididos a fazer exe­
cutar até o último todos os decretos do Concílio de Trento".
Carlos ouviu comovido e contente, mas quando os bons suí­
ços afirmaram que agiam de tal maneira por respeito a
sua santidade, respondeu argutamente: "E se o fizessem
pela Igreja ou melhor ainda, pelo próprio Deus, não seria
melhor?"
Refere-nos Giussano: "O interessante era vê-lo retor­
nar daqueles longos períodos de fadigosas ausências; pare­
cia que regressasse das férias; punha-se logo ao trabalho
com grande fôlego, caso não empreendesse outras peregri­
nações; assim, em novembro, no regresso da primeira visi­
ta aos suíços, encontramo-lo, logo a seguir, em inspeção de
oito dias à paróquia de Varese, onde devia reprimir, além
do resto, grosseiras formas de usura que iam crescendo
dia a dia; aqui tomou conhecimento de que entre os cône­
gos haviam sido admitidos dois jovens de quinze anos; mo­
tivo pelo qual escreveu imediatamente a Roma com muita
franqueza, suplicando que não se dessem mais semelhantes
exemplos de imoralidade".
Entre as lidas e dores, não faltava o cômico das aven­
turas, como durante a viagem que fêz a Valsassina, nas
montanhas. Caminhava ofegante por sendas ásperas, quando
esbarrou com volumosa torrente, que se tornara mais impe­
tuosa e cheia devido à recente e torrencial chuva. Encontra-

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va-se aí, por acaso, certo Domingos Valinello, camponês ro­
busto de corpo e. . . de espírito, que o tomou nos braços
para transportá-lo. Mas chegando ao meio do riacho, e sen­
tindo as pernas vacilarem diante da furiosa corrente, dei­
xou cair, ou talvez, atirou na água o pobre cardeal; nem quis
mais saber de nada, senão de salvar-se, atingindo a margem
e entregando-se depois a uma vergonhosa fuga.
Foi realmente milagre se, dado o embaraço das vestes
longas e largas, o arcebispo conseguiu salvar-se. E molhado
como estava, caminhou até o abrigo mais próximo; ali,
chamando seu herói, regalou-o com um escudo de ouro, dizen­
do: "Isso servirá para afugentar-lhe o mêdo !" Quem sabe
se Domingos compreendeu a pilhéria; mas dizem que na­
queles lugares o rio e o vale ainda hoje são conhecidos como
Torrente e Vale do Cardeal.
Coisa muito pior aconteceu-lhe em outro povoado, com
certas freiras assaz mundanas que, conhecendo as graves
medidas que o cardeal tomara contra a vida que levavam,
lançaram-lhe em rosto tantas e tais injúrias, quais nunca se
teria sonhado que pudessem sair da bôca de uma mulher
e ademais, religiosa. . . Pareciam verdadeiras fúrias. Mas
o arcebispo não proferiu palavra alguma ao nôvo. Vesú­
vio em erupção. Contentou-se em calcar um pouco a mão
na repreensão, e em breve também aquêle desdouro foi
banido da diocese.
Bem diversamente agiram as irmãs do convento de
Monza; atormentadas havia anos pelo demônio que lhes
arrebatava das mãos os apetrechos de trabalho e as obce­
cava em tôda a espécie de lúbricas visões, dirigiram-se sú­
plices e desoladas a Carlos, pedindo-lhe que as livrasse de
tão grande flagelo. O bondoso pai condescendeu, visitou o
mosteiro, benzeu-o total e repetidamente, e as vexações de­
sapareceram para sempre.
Em todos êsses reveses e esforços que realizava verda­
deiramente "qual corpo sem carne e alma sem corpo",
como o descreveu o primo Frederico que lhe sucedeu no ar­
cebispado milanês com igual santidade e viva inteligência,
quem merecia um pouco de compaixão eram seus familia­
res. Se já alcançara tal grau de virtude pelo qual não neces­
sitava impor-se mortificação alguma como penitência -
pois se tornara quase insensível às dores físicas - os ou-

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tros eram homens e não lá muito santos!. .. Carlos pare­
cia não perceber nem o frio, nem o calor. . . Ensopado pelo
suor, - em certa cerimônia religiosa, tôdas as suas vestes
estavam reclamando enxugadouro! - impregnado de neve,
chuva ou granizo, dirigia-se diretamente à igreja e perma­
necia por horas inteiras ajoelhado com tais trajes. Caminha­
va a passos largos sôbre o gêlo e a neve com as mãos des­
cobertas; jamais quis servir-se de luvas, salvo quando al­
guma função as exigia. Suas mãos estavam vermelhas, in­
chadas, repletas de frieiras, e se rachavam de maneira
assustadora, - mas Carlos de nada se importava quando se
tratava da própria pessoa.
Caiu em Milão, certo ano, tanta neve, que os tetos das
moradias desabaram; tornou-se necessário abrir nas ruas
passagens restritas aos pedestres, através da neve endure­
cida, que atingia a altura de três metros. O quarto do car­
deal, localizado precisamente sob o teto do palácio, conver­
tera-se numa geleira. Ingressando, uma vez, improvisamen­
te no aposento, viu um camareiro a aquecer-lhe o leito
com um esquentador de cobre, cheio de carvão aceso: "Por
que me esquentas a cama? perguntou ao servo, que pas­
mava com tão estranha interrogação; não sabes que o me­
lhor modo de não sentir o frio dos lençóis, é encontrar-se ain­
da mais frio?"
O fogo devia somente ser acendido no corpo de guarda
do palácio e no salão, onde, pela noitinha, todos se reuniam
para aquecer-se e conversar amigàvelmente. Quando Carlos
estava presente, quase nunca se avizinhava da lareira, exce­
to uma vez em que chegou de Arona, depois de ter percorri­
do vinte e mais milhas através do lago e das montanhas, sob
uma chuva que parecia provir de um céu partido. Estava
ensopado até os ossos, mas também naquela vez recusou
trocar de roupa, a fim de poder juntar-se logo aos familiares
e recitar o têrço.
Mas se era insensível ao frio e ao calor, compreendia que
nem todos o eram . . . e tomava as providências necessárias.
Que de vêzes no inverno, em algum pobre presbitério, seus
servos, despertando durante a noite, perceberam, estupe­
fatos, que o arcebispo lhes deitara sôbre o leito os cober­
tores preparados adrede para êle!. .. Num gélido Natal,
durante o qual Milão se encontrava tôda ataviada por branco
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lençol de neve e gêlo, Carlos se lembrou de alguns velhos
e pesados capotes, em parte forrados de peliças, relíquias
de seus primeiros dias de Roma. Ordenou que fôssem pro­
curados e, tendo-os encontrado, enviou-os ao Hospital dos
anciãos.
O Cardeal Frederico imortalizou a lembrança dessas
visitas, no discurso inaugural do vigésimo primeiro sínodo
de Milão: "Montes gloriosos, vales abençoados, veredas san­
tificadas, que conservais ainda hoje tantos vestígios das obras
de Carlos, lá onde, com a ajuda do céu, conseguiu tão es­
tupendas vitórias sôbre inimigos imortais. . . Como são ain­
da graciosas essas casas que hospedaram, uma vez, um cor­
po sem carne, uma alma sem corpo. . . e cuja pobreza foi
enriquecida pelos esplendores da púrpura!"

4.
NA TERRA DE JOÃO XXIII

Mas, à fôrça de rodar, também o arco mais forte se


parte, ou, pelo menos, se verga, e assim aconteceu com essa
vontade têsa até o inverossímil. No verão de 1571, abateu-o
terrível febre que retornou, a intervalos, por nove vêzes,
e acabou por prostrá-lo. Escreveu então ao bispo de Ale­
xandria: "Saindo da cidade, preferi as colinas a fim de
respirar melhor o ar puro das montanhas; são agora já seis
dias que me encontro nos montes de Varallo, onde me delei­
tam o espírito belas e solitárias ermidas, que refazem ao
vivo o mistério da Paixão do Redentor".
Os familiares e médicos, justamente alarmados por sua
extrema palidez, pelo emagrecimento do semblante extenua­
do e por uma série de graves desordens no organismo, não
cessavam de incitá-lo a moderar os excessos, exortando-o
a fazê-lo não tanto por si, quanto pelo bem da Igreja; e
êle, muito sereno mas não menos firme, pediu-lhes que não
proferissem disparates: "Faltaria mesmo isso! Dia virá em
que me reduzirei a um punhado de pó, e então, se eu sou
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tão necessário como dizeis, deverão cair as estrêlas e tantas
instituições eclesiásticas?! Ficai tranqüilos, o Senhor é ba­
se e fundamento de tudo, e as coisas que têm os homens
por autores são muito semelhantes às canas do Egito de
que fala Isaías!. . . Oxalá tivésseis antes tanto cuidado e
amor por minha pobre alma!"
Era tempo perdido pretender persuadi-lo a tomar al­
gum repouso ou a ter mais solicitude por sua pessoa!
As visitas à própria diocese, acrescentava as da pro­
víncia. Quanto maior a distância a percorrer, tanto mais
velozes deviam ser as cavalgaduras; até os cavalos a seu
serviço - não somente os homens! - não resistiam por mui­
to tempo e extenuavam-se ràpidamente. A viagem de Mi­
lão a Cremona, por exemplo, de cinqüenta e mais milhas,
que se fazia geralmente em duas etapas, êle a realizava
num dia somente.
Carlos estabeleceu em 1575 uma espécie de recorde,
quando viajou a Roma para o jubileu de Gregório XIII. Par­
tindo aos primeiros de fevereiro, com ímpeto juvenil de
quem sente no corpo ânsia de conseguir grandes finalidades,
alcançou, em etapas mais que rápidas, Bolonha, intencio­
nando permanecer na cidade para descansar alguns dias;
mas nem descera do cavalo e já lhe deram uma notícia
lutuosa - o cunhado César Gonzaga estava para morrer.
"Adeus, folgas bolonhesas!" lamenta Lanfranco Reina, um
dos que o acompanhavam. Tomando o rumo de Guastalla e
incitando os cavalos ao galope, correu ao castelo dos Gon­
zagas, e ingressando no quarto do enfêrmo, já sem sentidos,
gritou-lhe: "Pensa nas tuas coisas, pois estás para morrer!"
E César, que até então, pelo contrário, só pensara em fa­
zer todo o possível para salvar a pele, como que saindo da
letargia, exclamou: "Pois providencie-se para minha alma,
já que para o corpo nada resta a fazer!"
Recebeu todo_s os sacramentos das mãos do arcebispo
e morreu tranqüilamente. Carlos quase não teve tempo para
consolar a aflita irmã porque, estando ainda o príncipe
insepulto, consagrou uma igreja - última vontade do mo­
ribundo - e, em seguida, -partiu para Roma.
Apenas retornou a Milão, entre as entusiásticas e jubi­
losas aclamações do povo, preparou-se, atendendo ao desejo
do Papa, a receber o bispo de Famagosta, enviado pontifí-

183
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cio. Visita de formalidade? Talvez, se o arcebispo de Milão
não fôsse Carlos: "Sua excelência deve corrigir e suprir
com seu zêlo a tudo o que de mal se fêz nessa diocese por
causa de minha negligência; entrementes, eu que sinto
grande necessidade de ser corrigido por outros, sou obriga­
do a viajar para indagar os defeitos alheios".
Quando conseguiu colocar convenientemente o visita­
dor e o viu ocupado em "verificar sua preguiça", em vez
de permanecer ali a . . . intimidá-lo com sua presença, diri­
giu-se para Cremona.
Haviam já iniciado os grandes calores, que em nada,
porém, influíam sôbre o caráter enérgico do cardeal. Calor
ou frio, nenhuma coisa o impedia de ganhar tempo, ajus­
tando inúmeras dissensões que desde muito tempo anuvia­
vam as relações entre cônegos e bispos, moderando no povo
a fome dos espetáculos públicos, promulgando novas leis e
normas, quais ninguém teria ousado esperar, no dizer do
futuro Gregório XIV.
E ei-lo e retornar pontualmente a Milão, para celebrar na
catedral as grandiosas festas de Mariae Nascenti, e empre­
ender, logo após, a visita a Bérgamo.
A notícia da chegada de Carlos a alguma diocese pro­
vocava sempre certa confusão. Difundira-se já a fama de
sua santidade e intransigência, que não cediam diante das
adulações ou imponência das recepções. Seu ingresso em
qualquer cidade tomava aspecto triunfal, não tanto pela
pompa do espetáculo exterior, quanto pelo fervor extraor­
dinário que suscitava em todos os habitantes. Bérgamo re­
vestiu-se, naquela sua famosa visita, das glórias do milagre,
se dermos fé ao que o gentil homem Marcelo Viscardo ates­
tou sob juramento ao Padre Grattarola. O nobre cidadão
afirmou ter visto o cardeal, enquanto se adiantava por en­
tre o entusiasmo e a veneração dos fiéis, todo revestido de
resplandecente auréola. A visão foi vista e confirmada tam­
bém pelo pároco de Bérgamo Zanfredo Maffei.
Mas os triunfos públicos, as festas e o aplauso dos gran­
des não diminuíam nêle a vontade firme e resoluta de apli­
car a reforma em tôda a sua plenitude, e agir para o bem
da Igreja antes de mais nada. Assim, em Bérgamo, por
exemplo, constatou ·que era pouco seguro, e menos ainda
conveniente, o arrabalde em que se estabelecera, havia mui-
184
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to tempo, um convento, principalmente por certas figuras
que circulavam ao redor, certamente não por nada. . . Orde­
nou sua transferência, não obstante os protestos dos inqui­
linos e de todos os moradores das vizinhanças, pois se de­
viam transladar juntamente as relíquias dos santos Firmi­
no e Rústico, glória do bairro.
Com efeito, os arrabaldeiros armaram-se, uniram-se e
entraram à viva fôrça na igreja, suplantando a débil resis­
tência do sacristão, primeiramente, do sacerdote encarrega­
do, em seguida, e puseram-se a guardar as relíquias, gritan­
do que se afastassem, sim, aquelas inúteis monjas, mas as
relíquias dos santos não, ninguém haveria de as tocar. A
intenção pareceu muito honesta e boa a Carlos ao ser in­
formado, mas o modo, não. Dirigiu-se para a igreja do con­
vento, falou decidido àqueles homens resolutos, com tal
piedade e vigor que os mal-encarados serenaram o semblan­
te sombrio, depuseram as armas e pediram perdão ao car­
deal. Comparecera êste ao local não com os guardas do Vi­
gário, como lhe fôra proposto pelo intendente de Sua Serenís­
sima, mas com uma simples cruz e um têrço. Sic placantur
leones!
Narra-nos Pedro Giussano, outro fato acontecido tam­
bém em Bérgamo, e que manifesta claramente a fôrça e a
tenacidade do arauto da fé.
A capela onde jazem os restos mortais de Bartolomeu
Colleoni, construída por Amadeu sôbre um terreno ocupado
à fôrça pelo célebre caudilho e que pertencia à igreja de
Santa Maria Maior, não obstante as belíssimas cenas e bai­
xos-relevos da Paixão e das Virtudes, parecia transformada
em bazar oriental, tão numerosas eram as bandeiras e tro­
féus que a sufocavam; a estátua eqüestre de madeira de
Bartolomeu, colocada no recinto pelo ano de 1501, cavalga­
va vitoriosa entre as aparências de perpétuo carnaval.
"Eu então - escreveu Carlos ao Bispo Castelli - deci­
di remover do mausoléu tôdas aquelas bandeiras flutuantes;
incumbi da tarefa a Monda, o homem que parecia mais idô­
neo; ordenei que tudo desaparecesse no modo mais rápido
possível, e que tal inconveniência nunca mais se repetisse
para o futuro. Essa decisão improvisa e imediatamente

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atuada, impediu a reação dos espíritos que, por certo, eu não
teria podido evitar se o assunto se tivesse protraído por
muito tempo entre consultas e decisões".
Encontramos novamente o homem que rompeu com
tôdas as demoras e logomaquias, tão freqüentes na Roma
de então.

5.
A GUERRA FRIA DE MILÃO

E' preciso também saber perder as simpatias do povo


para governar conscienciosamente e conseguir o bem co­
mum; essa norma pouco agradável e menos ainda popular,
era praticada por Carlos com tranqüila firmeza. O modo de
agir dêsse príncipe da Igreja, de aspecto frágil e hierático,
que parecia dobrar-se a cada sôpro de vento e que, pelo
contrário, se erguia intrépido contra os obstáculos, supe­
rando-os sem jamais arrefecer, acabava por conquistar as
mais calorosas simpatias. Foi o que aconteceu em Bérgamo,
onde, não obstante sua inflexibilidade, quando soou a hora
da partida, tôda a cidade, subjugada por personalidade tão
eminente, acompanhou-o até fora das muralhas; manifes­
tando profunda dor e, em lágrimas, a multidão quedou mui­
to tempo a escoltá-lo com o olhar, até que desapareceu ao
longe, levando consigo o coração daquele bom povo.
Mas as festas e o afeto de Bérgamo, e a visita àquela
cidade que por dezenas de anos perdurou inesquecível,
também se outros contactos sucessivos tenham estreitado
mormente as relações entre Carlos e a terra de João XXIII,
- foram superadas por aquelas de Bréscia. Foi ali acolhido
com entusiasmo indescritível, confortando-o assim da gran­
de dor que lhe ocasionara Milão, organizando, unicamente
para o magoar, uma pândega carnavalesca.
Em cinco dias, a segunda cidade da Lombardia trans­
formou-se e tornou-se irreconhecível; as demonstrações po­
pulares foram, como refere o arcebispo milanês, "infinitas".

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Essa primeira estadia continuou por um mês inteiro, e é
interessante verificar como organizou o trabalho da visita.
"Seu quartel-general - escreve Giussano - localizava-se
na cidade, precisamente no quarteirão dos dominicanos; e
lá quis demorar durante todo o tempo em que permaneceu
em Bréscia. Sete visitadores trabalhavam explorando a dio­
cese, não sem ter recebido antes precisas instruções; deviam
indagar tudo e de todos, excitar, pesar bem, mas depois dei­
xar cada coisa no próprio lugar, e consultá-lo para as de­
cisões importantes. Eram, enfim, "olhos e ouvidos do rei",
como entre os antigos persas; a diferença estava no fato de
aqui, depois do temporal, nunca faltar a chuva benéfica, e,
se para alguém se tratava de granizo, era, de certo modo,
salutar também.
Seu trabalho na cidade tornava-se realmente exorbi­
tante. A correspondência com os visitadores para encorajá­
los e aconselhá-los, era incessante. Examinadas suas rela­
ções, preparava o que teria sido o trabalho conclusivo da
visita, quando êle próprio passaria de povoado em povoado.
Somente nos casos mais graves de jurisdição eclesiástica,
recorreria a Roma.
Em Milão, no entanto, a guerra fria contra o cardeal
continuava ininterrupta. Alguns desconhecidos haviam cau­
sado danos às reprêsas, de modo que a ,água não continu3-">se
a regar certos prados do domínio eclesiástico; outros indiví­
<luos tinham penetrado, de noite, na tipografia arquiepis­
copal do seminário, onde seqüestraram o tipógrafo e des­
truíram vários manuscritos do concílio provincial, que ser­
viam - conforme nos refere Giussano - "para a impressão;
felizmente Bascagli possuía outra cópia, caso contrário, a
edição teria sofrido grande atraso".
Carlos apresentou-se ao Palácio do Govêrno, não tanto
para dramatizar o acontecido, quanto para induzir o duque
a auxiliá-lo na obra insigne da reforma. Encontrou Albu­
querque todo bondade, mas novamente receoso de ultrapas­
sar as disposições régias, que lhe vetavam ceder um palmo
sequer no que se referisse às prerrogativas exigidas pelo
cardeal. O conde-duque -contentou-se em levantar os bra­
ços e os olhos ao céu e exclamar: "E' já bastante pretender
dos milaneses o que não se consegue obter em outros
lugares!"

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Era a última manifestação do governador. Poucos dias
depois morreu assistido pelo arcebispo, vindo de Bréscia a
tôda a pressa para consolar as últimas horas de agonia do
gentil-homem espanhol. Infelizmente, o representante de
Filipe II expirou sem recobrar os sentidos, após longo co­
lapso, e não deu a Carlos, que entrara no aposento de botas
e esporas, empoeirado pela furiosa cavalgada, a satisfaçjio
de morrer após a recepção dos sacramentos.
Mas a fortaleza de ânimo do prelado devia demonstrar­
se novamente e, bem cedo, por ocasião da grave crise que o
acometeu poucas semanas depois da morte do conde-duque.
Na oportunidade, escreveu-lhe Speciano: "Deve ser verda­
deiramente uma feliz disposição do Senhor essa doença;
assim é obrigado finalmente a tomar algum repouso. Nós
mesmos pedimos a Deus que lhe envie freqüentemente tais
dissabores - dado que, a não ser as enfermidades, nada
pode pôr freio a suas fadigas".
Palavras ao vento! Na procissão do "Corpo de Deus"
o cardeal, ainda convalescente e padecente, encontrava-se
já de pé.
E para restabelecer-se, achou bom veranear em Grop­
pello, onde as precauções pela saúde se converteram em vi­
sitas e mais visitas, sem jamais aceitar cuidados ou alimen­
tos diversos dos que eram dispensados aos outros. Quando
chegava ao conhecimento, através da indiscrição de algum
seu familiar, que um pároco pretendia deixar as estritas nor­
mas da habitual frugalidade, irritava-se realmente; coisa in­
sólita em quem era - como já percebemos - paciente e
compreensivo. Encontrando-se em Groppello e vindo a sa­
ber que o vigário de Orzinuovi, onde desejava chegar, es­
tava preparando luxuoso banquete, pegou da pena e es­
creveu: "Ouço, com profundo pesar, que me está aprontan­
do uma ceia de príncipes. Com esta carta entendo tornar
inúteis seus trabalhos e adverti-lo que não se atreva a
transgredir meus cânones no que se refere às refeições do
arcebispo; portanto, nada na mesa, exceto sopa, uma igua­
ria e frutas. Não me obrigue a puni-lo com exemplQ salu­
tar. E passe bem!"
Mas se Carlos conseguia fugir dos banquetes requin­
tados e dos manjares-delicados, não podia impedir as mani­
festações que, nos pobres e então selvagens rincões, as popu-

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lações lhe preparavam pressurosas e carinhosas. Os mon­
tanheses da Vai Camônica, da Sábbia e da Trômpia gasta­
vam dias inteiros para tornar menos horríveis seus atalhos,
adornando-os com ervas aromáticas, a ponto de comover o
:eardeal, que encontrava, sim, corações simples e devotos,
mas vida religiosa quase nula. "Em tôda a diocese de Brés­
cia - narrava a Speciano - nunca deparei com lugar tão
afastado da religião como Gardone; distante da cidade uns
vinte quilômetros, na prática da religião fica para trás de
qualquer outra localidade mais remota, também se situa­
da a dois passos dos países protestantes; o clero então... "
Os senhores do conselho veneziano estavam tão con­
vencidos da pouca ou nenhuma civilização moral e religio­
sa daqueles povoados, que haviam esc;rito ao Papa, pedindo
que dissuadisse o cardeal de visitar tais lugares: "São lo­
calidades - diziam - completamente arraigadas no mal,
e é mais fiácil que se originem desordens, que algum bem ,
sirva-se, antes, de nossos sacerdotes diocesanos".
Não precisava outra coisa para levar Carlos a fazer
precisamente o conh�ário daqueles conselhos que lhe pro­
vocavam sempre novas e contínuas suspeitas; estava já per­
suadido que a República dos Doges, naquelas regiões infes­
tadas pela heresia, procurava ir à frente como e quando
podia, em nada preocupada senão com afastar complicações.
Os resultados superaram as expectativas mais otimistas.
Seu desinterêsse, o modo como suportava as mais ingratas
fadigas, o ímpeto e o zêlo missionários de que andavam in­
flamadas as suas obras, o agir paterno e severo, conciliativo
e inflexível, cativaram-lhe todos os ânimos; povo e clero
renderam-se com alegria e o compensaram com entusiasmo
e amor que pasmavam a todos e, principalmente, os nobres
e notáveis que haviam zombado de suas afirmações categó­
ricas em favor daqueles pobres infelizes.

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6.
O LtRIO DE UM MENINO

Na viagem apostólica de Carlos através dos caminhos


da vasta diocese, deparamos com fatos e encontros signifi­
cativos, que nos deixam encantados diante da figura excelsa
do grande cardeal de Milão. Em todos êles encontramos1 o
santo da renovação que, sob a bondade e a firmeza, quer
a todo o custo realizar a missão que Deus lhe confiou.
"Certo dia, - escreve Giussano - apareceu-lhe à frente
um sacerdote contrito e arrependido; além do resto, gozara,
desde tempo imemorável, de vários benefícios eclesiásticos,
não obstante as proibições conciliares; agora, porém, esta­
va disposto a restituir qualquer coisa. O cardeal louvou-lhe
a generosidade, despediu-o com palavras corteses e recor­
reu a Roma; três semanas depois, quando o pobre sacerdo­
tf- já preparava o ânimo para a tempestade, chegava o di­
ploma pontifício que lhe perdoava tudo e o agraciava com
nôvo cargo. O eclesiiástico permaneceu como que aturdido e
de bôca aberta por muito tempo; por fim, prorrompeu em
ruidosas exclamações de alegria. Gritava a plenos pulmões:
O divina Borromei pielas! O inaudita Caroli magnificentia!"
Em Piano, na Vai Camônica, per,dera-se o costume de
pagar os dízimos ao bispo, que lançara a interdição. Os ha­
bitantes não recuaram, e Piano parecia uma cidadezinha
morta, sem nenhuma função religiosa e sem o repicar dos
sinos. Carlos passou pela rua principal, mas como se as pes­
soas e as coisas não o interessassem. Segurava a mão bem
unida ao peito para fazer-lhes compreender que não os que­
ria abençoar; e como o seguissem até fora do lugarejo com
queixas e lamentos, voltou-se e disse: "Ponde-vos de acôr­
do com o vosso bispo e eu vos darei minha bênção!"
Após poucos quilômetros de caminho, pediu ao Bispo
Centurione que retrocedesse para convencer aquêles pobres
montanheses do êrro cometido; e esperou várias horas seu
retôrno, ansioso por voltar entre êles para perdoar, ouvir
e abençoar. Quando o enviado regressou com a boa-nova de
que os pianenses estavam bem animados e dispostos a incli­
nar-se à vontade do. cardeal, o bom pai, jubiloso diante do
arrependimento do filho pródigo, em poucos momentos en-
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controu-se, entre festas e alegrias, no meio dos simples e
bons habitantes, a quem patenteou provas de amor e de
afeto como só seu coração sabia ditar.
Um terceiro fato verificou-se em Liano, quando preten­
deu tirar a limpo certo milagre de água que jorrava de
uma arca famosa por ter contido - segundo a lenda local
- os ossos de alguns santos. Todos os anos, a 1 9 de agôsto,
festa de São Pedro in vinculis, de nua e árida rocha bro­
tava uma água límpida e milagrosa.
O cardeal ouviu silencioso as maravilhas que se narra­
vam e quis interessar-se pessoalmente do fato; fêz enxugar
a arca e os ossos, e na noite prodigiosa colocou como guardas
três sacerdotes de confiança. Diante da presença dêsses in­
trusos, a fonte irritou-se e não soltou gôta alguma de água 1.
A arca permaneceu sêca e o milagre acabou para sempre ...
Por onde quer que passasse, o arcebispo sanava, inimi­
zades inveteradas, reconciliava ânimos discordes e restabe­
lecia paz duradoura e benéfica. Os habitantes de Garda
gozavam fama de rústicos e maus: "Uma voz caluniosa acusa­
va-os de intratáveis; a mim, pelo contrário, parecem res­
peitabilíssimos". Mas como resistir a tão elevado exemplo
de paciência, de abnegação nas fadigas, de coragem física
e moral? Naquela notável visita, realizada tôda sob o tór­
rido sol estivo, demonstrou constância e fervor tais, que dei­
xavam boquiabertos e estupefatos todos os diocesanos.
Muito oportunamente comenta Franceschi: "O que mais
causa admiração é constatar com quanta serenidade e, ou­
saria dizer, imperturbabilidade, Carlos passava dos pano­
ramas espirituais às torpezas humanas. Coisa estranha 1
Não é indiferentismo ou perturbação, não; é, antes, reflexo
de íntima harmonia de espírito, pela qual tudo parece pre­
visto e nada consegue surpreender, - seja o encontro com
alguma alcatéia de bandidos, ou a aparição de angélico
jovenzinho que se chama Luís Gon�aga; alilás, a alegria
que lhe ilumina o semblante parece igual em ambos os
casos".
Amolda-se muito bem aqui o que o Cardeal Ildefonso
Schuster escreveu no pref.ácio da vida do Servo de Deus,
Plácido Riccardi: "A vida de Cristo no coração dos santos,
também se o histórico a descreve multiforme, ocupada no
trabalho de variegadas obras, angustiá.da por afazeres adver-

191
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sos, no íntimo do espírito permanece una, simples, radiosa
de luz e superabundante de alegria; nada tem de artificial,
mas é pura como é puro o próprio espírito".
Luminosos são dois fatos dessa sua missão triunfal nos
vales de Bréscia, sôbre que nos prolongamos por constituí­
rem exemplo sem paralelo das viagens pastorais de Carlos.
Tôdas as outras serão repisadas naquilo que justamente
êle mesmo definiu: "O primado de meu apostolado na girei
dispersa e perdida".
Em Valtrômpia fôra-lhe apresentada uma menina, que
o compensou das muitas lidas e dores sustentadas em meio
daquela gente inculta e herética.
Era uma �istória, a da menina, que parecia provir das
ingênuas hagiografias dos primeiros mártires. Não quisera
acompanhar e alcançar o pai emigrado para regiões pro­
testantes; fôra expulsa de casa pelo avô, e ela, errante mas
decidida, refugiara-se na companhia duma pobre mulher.
Chegara, porém, seu irmão maior, violento e prepotente, que
a viera buscar para a levar como prisioneira. Mas a menina,
perto de Gardone, conseguira escapulir e esconder-se entre
as rochas do Baldo; em tal estado, tôda recoberta por tra­
ços atrozes causados pelas violências recebidas, encontrara-a
o cardeal; examinara-a profunda e demoradamente, e a en­
viara a um mosteiro da cidade de Bréscia, para que a jovem
encontrasse a consecução de seus desejos e a paz que bem
merecia.
O encontro com Luís Gonzaga acorreu, ao invés, em
ambiente de serenidade grandiosa e senhoril, em Castiglio­
ne delle Stiviere. O arcebispo chegara àquela localidade
passando por Manébio, Pontevico, Acquanegra e Azola, e
fôra recebido pelo príncipe Fernando e sua côrte com ex­
trema solenidade. Era o dia 22 de julho, dedicado a Santa
Maria Madalena. Havia pregado na igreja e fôra convidado
a pernoitar no castelo, entre os esplendores da residências
dos Gonzagas.
"Fico-vos muito agradecido, mas prefiro a companhia
de meu cura!", respondeu. Seu cura não era outro senão
o arcipreste do lugar.
Foi ali que se apresentaram, para render-lhe homena­
gens, os marqueses e a côrte; mas todo aquêle intenso mo­
vimento de côches ·e roçagar de vestes nada valeram em

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comparação ao colóquio de Carlos com o casto Luís, jovem
de doze anos, que resplandecia na luz das pupilas e na
compostura. O diálogo prolongou-se por muito tempo e a
permanência do cardeal em Castiglione protraiu-se além do
previsto.
Teve a alegria e o p_rivilégio de dar ao angélico menino
a primeira comunhão, e o teria afervorado tanto no ideal
de uma vida tôda entregue a Deus que, ao menos pelo que
refere Giussano, "teria desabrochado nêle naquela ocasião a
maravilhosa flor de pureza imaculada e sequiosa de amor".

No mesmo ano, em Rovato, precisamente no dia 10 de


outubro, procedia à vestidura de outro rapazinho, que de­
via suceder-lhe na diocese milanesa - Frederico Borromeu,
imortalizado por Alexandre Manzoni em "Os Noivos".

7.
NO COVIL DOS BANDIDOS

Mas, em suas visitas pastorais, não topava, por certo,


somente com ovelhas desgarradas, meninos santos, multi­
dões entusiasmadas, ou sacerdotes transviados. Êle, como
São Francisco de Assis em Gúbbio, deparava - e quantas
vêzes ! - com alcatéias de lôbos em forma humana, isto é,
com quadrilhas de bandidos ou de capangas que seguiam
êste ou aquêle Griso, ou estavam a serviço dos inúmeros Ino­
minados ou Don Rodrigo daqueles tempos.'
Havia, nas regiões de Bérgamo, e principalmente de
Bréscia, nomes que causavam calafrios somente ao nomeá­
los: Bertázzolo de Saló, Sala de Asolo, o Clérigo e o Advo-
1) Alusão a "Os Noivos" de Alexandre Manzoni, onde Griso,
Don Rodrigo e o Inominado são apresentados como chefes de mal­
feitores; em casa ou nas excursões andavam sempre rodeados por
grande número de capangas, não sómente para a defesa pessoal, como,
e talvez principalmente, para realizar tudo o que seus baixos ins­
tintos exigiam. Os nomes do parágrafo s,eguinte fazem parte dos
numerosos bandoleiros que assolavam as regiões itálicas ,e européias
naqueles tempos de incultura e barbarismo (N. do T.).

Vida de S. Carlos - 13 193


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gado, que, por razão de concorrência, procuravam odiar-se
e perseguir-se mutuamente, aterrorizando, no entanto, as
populações, que viviam na angústia por seus vexames e
desumanas prepotências. Carlos afrontou-os muitas vêzes,
armado somente de sua cruz e de sua fé, e se não conhece­
mos conversões estrepitosas, o certo é que realizou gran­
de bem também nesse sentido.
Certo dia, num povoado que o arcebispo estava visitan­
do, eis a aparecer improvisamente o Advogado com numero­
so grupo de salteadores, armados até os dentes. Ao saber
da presença do cardeal e que estava para celebrar a santa
missa, o chefe da quadrilha enviou alguém para obter a
permissão de assistir a ela. Carlos manifestou júbilo pater­
nal ante o estranho pedido; exigiu, contudo, que, tôda aque­
la tropa entrasse no templo despojada de qualquer arma.
Mas recolhê-las de suas mãos era muito mais difícil que
velar o sol. O Advogado ordenou então aos fiéis amigos que
o aguardassem no átrio, e ingressou armado somente de ar­
cabuz, o único apetrecho permitido; deitou-o por terra, e
durante tôda a função segurou-lhe o pé em cima. Ao des­
pedir-se do cardeal, agradeceu-lhe o bem que fizera a êle
e aos colegas ...
Noutra ocasião, em Martinengo, Carlos foi mesmo parar
em meio de temida súcia. como nos refere um de seus com­
panheiros, que viveu também a pouco agradável aventura.
Narra-nos Fornério que, chegando a altas horas da noite ao
povoado acima lembrado, encontraram tôdas as portas tran­
cadas, justamente por mêdo dos bandidos. Decidiram então
passar a noite numa estalagem que haviam visto nos arredo­
res. O caso foi, porém, que todos os lugares já estava ocupa­
dos. E por quem? Inútil perguntar. Pelos bandidos de Ber­
tázzolo. Felizmente aconteceu o que não se esperava. Os
generosos inquilinos cederam cordialmente os melhores
aposentos e mimosearam o cardeal com um mundo de
obséquios...
Mas o mais interessante aconteceu na manhã seguinte.
Grande parte dêsses satanases achou melhor fazer um pou­
co de limpeza na alma e pediu ao arcebispo de ouvi-los em
confissão; não com alguns dos sacerdotes que o acompanha­
vam, e sim com êle em pessoa. E lançadas à sorte as prece­
dências, o mais velho subiu ao quarto de Carlos.
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Neste ponto, para descrever a cena, seriam necessárias
a pena e o gênio de Alexandre Manzoni.
O cardeal, ajoelhado bem no centro da sala, recitava
as orações finais do ofício divino da manhã, e, ao abrir-se
a porta, nem sequer se voltou; aquêle homem então, - que
finalmente estava para tornar-se tal deveras - ao vê-lo
tão extasiado na oração, completamente perdido em Deus,
estacou imobilizado, como a contemplar uma cena celestial
e inverossímil; por fim ajoelhou-se também, e nada disse.
E assim genuflexos, um ao lado do outro, permaneceram
em silêncio durante muito tempo. Enfim, volvendo-se, o
cardeal falou simplesmente:
"Quereis confessar-vos?"
"Temo de não ser digno!" respondeu, pálido e arre­
pendido, o humilde assassino.
"Se viestes aqui para tanto, sois digno; e o são também
todos os companheiros que quiserem seguir-vos o exemplo;
eu sou pai de todos vós, e os que mais pecaram e mais se
arrependem, são os prediletos de meu coração".
Assim, chorando, aquêle ditoso pecador confessou-se,
imitado pelos demais, que não cabiam em si de alegria. No
dia seguinte, na igreja dos franciscanos, o cardeal distribuiu
a comunhão a todos, desarmados e contritos, de modo que os
habitantes, se tivessem querido, tê-los-iam podido capturar
e enforcar. Mas o arcebispo havia ordenado que não se
lhes devia tocar um cabelo sequer. E deixou-os felizes e
arrependidos, - ao menos por aquêle dia! - recomendan­
do-os ao bispo de Crema. Não todos, mas muitos daqueles
descarados retomaram o bom caminho.
Diz o narrador do episódio que o cardeal se viu obri­
gado a afadigar-se não pouco para impedir que aquêles
novos "bons ladrões" o acompanhassem até Milão, onde te­
riam caído nas mãos da justiça e acabado todos na fôrca.
Alguém conseguiu seguir o arcebispo até a cidade; não
se tratava de nenhum bandido, mas sim de um nobre do
lugar, certo Jerônimo Luzzago. Ficou tão encantado diante
da figura e modo de viver de Carlos, que começou a acom­
panhá-lo como sua própria sombra, antes em Brécia, depois
em tôda a diocese e finalmente em Milão; e, às escondidas,
procurava tudo o que tivesse pertencido ao cardeal, até o
pão e a água de que êle se tinha servido. Quando o tão
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piedosamente perseguido veio a saber da singular devoção,
doou-lhe o manto e o quis seu familiar; e o amor que os
uniu perdurou e cresceu até a morte.
Dêsse fiel amigo narra Giussano que, vários anos de­
pois da morte de Carlos e quando todos o invocavam san­
to, veio a Milão, sendo arcebispo o Cardeal Frederico; de­
sejou visitar o túmulo amado com o próprio filho e êste,1
por sua vez, viveu e morreu santamente, assistido pelo
grande primo de Carlos.

8.
O ESCANDALO DO PADRE
Se a visita a Bréscia e às regiões adjacentes foi para
Carlos quase triunfal e produziu frutos copiosos e duradou­
ros, uma outra realizada nos Grigioni, três anos após, na
qualidade de visitador apostólico, não seguiu o mesmo es­
tilo . . . Tornou-se necessário, para que pudesse penetrar e
permanecer no cantão, espalhar a notícia de que iria acolá
unicamente para um período de repouso no castelo de seus
parentes, os Hohenems.
As condições religiosas daqueles vales eram penosís­
simas; havia-se repelido tudo o que lembrasse a fé dos an­
tepassados. A penetração protestante fôra tão profunda e.
hábil, que já todos se riam das prescrições romanas e pe­
nas eclesiásticas. Na Mesolcina, as superstições eram de tal
monta, que se acreditava nas feitiçarias, nas orgias notur­
nas, nas danças das bruxas, nos homens e nos animais
que, de noite, se precipitavam misteriosamente nos pre­
cipícios.
Constituiu Carlos uma comissão para as indagações ne­
cessárias. E antes de fazê-lo pessoalmente, enviou como in­
quisidor um homem apto, o jurisconsulto Francisco Borsat­
to; o qual foi, est�dou homens e coisas e referiu depois ao
arcebispo: "O início fôra borrascoso; nas reuniões, todos
queriam falar e protestar, e a antífona, a de sempre: "Ai
196
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de quem atentar contra a nossa liberdade!" E quando to­
cara a tecla das leis eclesiásticas, sucedera tremenda bal­
búrdia, compreensível, aliás, numa assembléia de ignoran­
tes obstinados. Sem dúvida nenhuma as coisas eram mais
sérias do que se pensava e, apesar do árduo trabalho, o re­
sultado melhor devia provir da visita do c<irdeal".
Mas qual a causa de tantos malefícios, bruxarias e de­
sordens? Simples e exatamente o arcipreste da região, que
residia no colégio de Rovereto. E quanto às gloriosas em­
prêsas realizadas por êle e por seus aliados, é melhor nada
dizer. Também desta vez, Carlos partiu com três valorosos
sacerdotes; e, em vez de hostil e ameaçadora multidão, viu
diante de si um povo curioso que, às suas primeiras palavras,
aos seus primeiros atos, às primeiras práticas religiosas ce­
lebradas com pompa imponente, - e sem melindrar-se pe­
las vozes catastróficas que provinham do pregador, - dei­
xou-se convencer para trilhar todos os caminhos da fé.
Foi tamanha a transformação, que um dos eclesiásticos
da comitiva do cardeal pôde escrever: "O que mais nos
surpreende, após tantas notícias sinistras, é observar que na
população, em grande parte, a fé se conserva viva, e o
acolhimento que fazem ao pastor e aos missionários é es­
pontâneo e comovedor. Tem-se a ocasião de constatar que,
na verdade, o mal realiza mais barulho que fatos. Chegamos
a Tesseredo; sermões, intermináveis confissões, prolonga­
das comunhões, discursos muito felizes do cardeal no dia_
de São Martinho. Mas onde estão as terras contaminadas?
A única explicação no-la dá o cardeal - sua santidade.
Contudo, não devemos esquecer o vigário do lugar, um santo
homem que nos d.á magnífico exemplo".
Portanto, onde existem sacerdotes realmente dignos e
santos, a fé não vacila e a lâmpada não se extingue.
E quando alcançou Rovereto, - o caminho foi longo,
e marchou através de intérmina série de triunfos da fé e do
espírito onde ambas as fôrças eram ou pareciam debilitadas,
- o centro de infecção de tôda_ a região, a causa do mal
foi encontrada e extirpada. Reduzia-se, nem mais nem me­
nos, ao infeliz vigário da cidade, Padre Domingos Quattrino,
muito fiel, aliás, ao nome que levava. '
1) Quatil'ino, na língua italiana, significa quatrim, dinhell"l,
fortuna. Daí a alusão do autor (N. do T.).

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Com êle estavam comprometidas na tramóia de práti­
cas <le muito duvidosa moralidade quinze mulheres de
vida fácil que, segundo as leis do tempo, deviam ser
cruelmente punidas. Sentença e condenação terríveis! A
nós, homens civilizados, repugna tal ação, e ficamos fran­
camente perplexos pelo fato de o cardeal não ter consegui­
do mitigar os desumanos costumes. Era preciso dar um exem­
plo àqueles tempos ferozes e bárbaros, infelizmente não
muito diversos dos nossos; é que hoje a crueldade se apre­
senta sob vestes coloridas, como filantropia, patriotismo, pu­
rificação da espécie humana, eutanásia e superpopulação;
no fundo, porém, a ferocidade moderna é igual, senão su­
perior, à da tão temida Idade Média. O próprio cardeal,
com o coração despedaçado, viu-se obrigado a despojar o
infeliz sacerdote de tôdas as insígnias da dignidade eclesiás­
tica e, chorando, pronunciou a sentença condenatória, qual
pai forçado a sacrificar o filho para salvar tôda a família;
apesar disso, o coração seguiu angustiado o filho perdido.
Não obstante tôda a energia empregada e os severos
exemplos infligidos, Carlos encontrou-se na necessidade de
lutar extremamente contra a heresia. Em Mesolco, entre cen­
to e dez famílias, encontrou cinqüenta contaminadas pelo
protestantismo, e vinte e duas denunciadas por sortilégio.
Procedeu com elas muito prudentemente, não esquecendo
nunca a persuasão como arma principal. E quando regres­
sou a Rovereto, pôde escrever: "Os etíopes mudaram a pele
e os nazarenos tornaram-se brancos!" Mas não se ilude de­
mais: "Muitas coisas há ainda a fazer em Mesolco; ouvi
dizer que existem ali reuniões secretas e perniciosas; por
isso, se chegarem a Coira - a carta era remetida a um
sacerdote que o precedera àquela localidade - notícias que
prejudiquem minha visita e meus planos, podeis dizer a
Gallésio - o pretor de Coira, muito dedicado a Carlos, -
que eu nada fiz sem cortesia e sem discrição; aliás, nunca
tive a mínima intenção de ofender pessoa alguma".
Mas o bispo daquela localidade conseguiu impedir a
visita de Carlos; causava-lhe enorme fastio, pois o car­
deal teria descoberto suas poucas boas qualidades e solici­
tudes demonstradas em defender a causa da Igreja; escre­
veu, por isso, uma carta que é obra-prima de engenhosa
tortuosidade:

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"A noticia de que o arcebispo visitará Coira deixou-me
arrebatado em êxtase, e só quando aqui chegar poderei
exprimir minha alegria. Não corresponder a seu miraculoso
zêlo seria monstruoso delito. Se Sua Eminência tem inten­
ção de passar por minha cidade para alcançar o Castelo
dos Hohenems, os cidadãos de Coira recebê-lo-ão com
grandes honras quando entrar e quando sair; naturalmen­
te, estarão bem longe de se opor a que lhes visite a igreja;
mas o que jamais permitirão é que fale ao povo, e também
se o tolerassem, eu o dissuadiria; conheço muito bem os
pensamentos das autoridades locais, que julgarão suas san­
tas palavras atentado contra as liberdades democráticas.
Eu e meu clero, porém, não saberíamos como manifestar
nossa alegria ... " Carlos compreendeu logo e respondeu,
também em tom diplomático, que se sentia feliz pelas re­
cepções que o bispo e o clero teriam tido a intenção de pre­
parar-lhe; mas vivia demais ocupado na Mesolcina, e para
a festa de Santo Ambrósio, contava estar em Milão ...
A viagem naquelas regiões, adversas pelas hostilidades
dos homens, inclemência do tempo e asperidade dos lu­
gares, foi certamente uma das mais difíceis e menos profí­
cuas. A aflição se reflete em suas cartas. O território era
infestado por lôbos famintos; no passo de São Bernardino,
alcançado durante a noite, perderam o caminho e desfale­
ceram os cavalos; quando, no dia seguinte, conseguiram
arranjar alguns jumentos, levantou-se tal ventania, que foi
necessário abandonar as cavalgaduras, quase sepultadas pe­
la tormenta; e, a pé, como fôlhas batidas pela tempestade,
depararam ao longe a meta suspirada - Coira.
&te episódio repetiu-se centenas de vêzes nas peregri­
nações apostólicas de Carlos Borromeu; a natureza e os
homens hostis sob a máscara da cordialidade; no primeiro
dia, cumprimentos de nunca acabar e cortesias que pare­
ciam sulcar o caminho de floridos tapêtes; mas depois sur­
giam as oposições mais encarniçadas e, muitas vêzes, don­
de menos se podia esperar.
Em Coira, a dieta, que reunia nada menos de setenta
delegados heréticos, levantou-se contra o arcebispo, quando
mal chegara a Milão; estigmatizou-lhe os fatos sucedidos na
Mesolcina, pois "sem terem sido interpeladas as autoridades
locais, um cardeal ousara desprezar as leis do lugar e en-
199
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tregar às chamas cidadãos suíços, - referiam-se talvez ao
castigo do infeliz Domingos Quattrino - espalhando o ter­
ror por tôda a região". Nem sequer foi esquecido o motivo polí­
tico; afirmaram ser sua secreta intenção entregar os can­
tões suíços cisalpinos à Espanha. Era preciso, portanto,
declarar nulos todos os decretos do insolente intrometido,
e pôr-lhe na prisão os enviados; e começaram logo prenden­
do alguns jesuítas, que não foram postos em liberdade se­
não após ameaçadora e enérgica intervenção do próprio
cardeal.

9.
SAUDADES DE ROMA

Mas, se durante as viagens e visitas pastorais o arce­


bispo fazia cair de cansaço as cavalgaduras, nas peregrina­
ções era o séquito quem arriscava a vida; precisava ser de­
veras bem adestrado, para ficar-lhe atr.ás sem perder a saú­
de, - como a perdeu êle! - quando não a própria pele.
Ouçamos como fala dessas fadigas peregrinatórias, Lamber­
to Rota, que o seguiu para Roma em 1574:
"Estando no tempo de advento, não serviram ao car­
deal senão pão, nozes e uva sêca. Sem nunca estabelecer uma
parada fixa e antevista, estacávamos, sempre a altas horas
da noite, em qualquer lugar onde pudéssemos repousar.
Apenas apeados dos cavalos, completamente encharcados,
hirtos de frio, freqüentemente molhados e sempre muito
cansados, dirigíamo-nos logo a seu aposento; ali, de joe­
lhos, recitávamos as orações finais do ofício, segundo o rito
romano, e podeis imaginar se havíamos rezado pouco pela
estrada! Acrescentávamos as ladainhas, e depois, em silên­
cio, recolhíamo-nos em longa meditação; ao findá-la, o car­
deal nos afervorava com devotas palavras; assim passavam,
pelo menos, duas horas. E após parco bocado, cama! As
quatro horas da manhã, devíamo-nos reunir novamente em
seu quarto para recitar a primeira parte do ofício, fazer a

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meditação e a preparação à missa. As seis, montávamos a
cavalo e, a bom passo, não par:ávamos senão à noite, e quem
sabe onde!"
Uma noite, durante a romaria a diversos lugares santos
- Camáldoli, Verona, Vallombrosa, Monte das Oliveiras,
- extraviaram-se, êle e o pequeno séquito, nos Apeninos
toscanos, e pouco faltou que se precipitassem num profundo
despenhadeiro. Somente pela manhãzinha ouviram ao longe
o canto de um galo e conseguiram assim alcançar um gru­
po de pobres moradias, - tão pobres, que nada puderam
oferecer aos famintos peregrinos. Felizmente, daí a pouco
passaram quatro burrinhos guiados por dois mercadores,
levando um pouco de pão e queijo; dessa forma, ao menos
por algumas horas, saciaram a fomé' que há tanto os
devorava.
Quando chegou a Roma para o jubileu estabelecido
por Gregório VIII, foi acolhido pelo povo e pelo Papa com
igual entusiasmo. E' que sua fama de santidade e inflexibi­
lidade na defesa da fé, precedera-o à capital da cristandade,
com a legendária narração de suas emprêsas. E César Ba­
rônio - citemos um exemplo entre tantos - não ficou con­
tente até conseguir apoderar-se dos sapatos do santo, gas­
tos, rotos e miserabilíssimos, como se pertencessem ao mais
ínfimo pobrezinho, mas que haviam calçado seus pés du­
rante a peregrinação! Era sempre o "Bom Romeiro" que
caminhava os caminhos do mundo, qual prelúdio das vias
do céu!
Perguntando o Pontífice ao Conde Gallarate por que
os milaneses tinham vindo tão numerosos a Roma para o
jubileu, respondeu o nobre terem sido arrastados pelo exem­
plo de Carlos. Ao que Gregório não pôde deixar de excla­
mar: "Mas quem pode aspirar a tão grande santidade?!"
A seus passos de peregrino, como o chamariz encantador
que não engana nunca, acorrem nobres e plebeus, e, por
quanto procure fugir, por quanto queira que tôdas as home­
nagens sejam dirigidas a Jesus Cristo e não a sua pessoa,
quantos há que se arrastam no pó para lhe beijar as vestes!
Certo dia, uma mulher, vendo-o tão humilde entre os res­
plendores da santidade, quase pronunciando os decretos da
Igreja, chamou-o santo e prostrou-se aos pés para beijá-los.
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Também nessa visita não lhe faltou o senso prático
que já percebemos desde a sua infância. Até que se tratou
de jubileu, não quis saber de outra coisa senão de orações,
visitas às igrejas, jejuns e meditações na própria cela; a
única distração que se permitia era observar e admirar o
estilo dos templos mais antigos, os púlpitos, os batistérios,
tendo por guia Otaviano Foréstio, desenhista de arquitetu­
ra. E antes de retornar a Milão, exigiu do Pontífice muita�
indulgências para os diocesanos, mil escudos para o seu
semin:ário e outros mil para o colégio metropolitano; além
da faculdade de dispor de outros bens em obras de piedade,
e a licença de introduzir o rito ambrosiano em tôda a diocese.
Uma de suas maiores e contínuas paixões foi a das ro­
marias. Em quantos santuários não estêve Carlos! E em
tempos que, como temos visto, tornavam o viajar desagradá­
vel, quando não impossível. Da abadia de Polione à de
Camáldoli, de Verna a Loreto, de Loreto a Nossa Senhora
da Pedra de Locarno, da Senhora dos Eremitas em Ein­
siedeln à Madona de Tirano, sem contar as freqüentes vi­
sitas ao êrmo de Varallo, e aos lugares santificados da Itália.
Todos êsses itiner.ários constituíam sagrado empenho para
aquêle Romeiro de espiritualidade sempre ardente, qual
chama inextinguível.

As peregrinações, porém, que mais nos patenteiam sua


espitualidade intensa, são as realizadas para adorar o Sudá­
rio, o Sagrado Lençol em que Cristo foi envolvido. Essas via­
gens, efetuadas tôdas em arrebatamentos estáticos que su­
peravam de muito o admirável esfôrço e empenho dos ro­
meiros que se dirigiam, na Idade Media, ao túmulo de Pe­
dro, deixam ver claramente o que significava para Carlos
o peregrinar. �ste ato de piedade, hodiernamente, é conside­
rado por muitos "espíritos superiores", simples e ameno
passeio, quando não alienação coletiva ou psicose das mas­
sas. E' o que hoje acontece sempre que se queira definir
qualquer sentimento que eleve a alma do povo para a luz
da fé, luz que a psicologia moderna não pode explicar senão
através de uma visão in vitro dos fenômenos subjetivos.
E é, ao invés, como o êxtase, a mais alta e completa
manifestação da fusão com a idéia do Divino, que possa
ser concedida a nossa limitada humanidade.

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10.
O SUDARIO DE TURIM

Atribuía o Cardeal Borromeu máxima importância a


tôdas as romarias, que eram para êle, não distrações místi­
cas, concedidas à sua penosa e intensa jornada, mas mo­
tivo a mais laboriosas devoções; assim, a peregrinação ao
sagrado Sudário, relíquia singularmente insigne, paládio de
uma das mais antigas famílias reinantes da Europa, a Casa
Sabóia, adquiria a seus olhos fascinação e importância que
superavam de muito qualquer outra viagem espiritual a
abadias antigas ou a relíquias veneráveis.
Também naqueles dias tão distantes de nós, o Sagrado
Lençol, que traz impressa nítida a imagem l do Redentor,
produzia profunda impressão sôbre as multidões. Se hoje,
para demonstrar a autenticidade do incomparável documen­
to, recorreu-se a provas fotográficas inexpugnáveis e se
lhe afirmou a autenticidade como tal lógica de premissas
e de conseqüências, que deixam confundido qualquer opo­
sitor mais perspicaz, nos tempos de Carlos, tempos de fé
mais acesa e de devoção mais espontânea, as lembranças
das peripécias sofridas pela relíquia para chegar a Cham­
béry acrescentavam maior prestígio à Sagrada Face.
Os anciães recordavam que Francisco I, rei da França,
ameaçado de derrota nos campos de Merignano, fizera o
voto de ir a pé adorar a Santa Lembrança, e vencera fàcil­
mente. E de Lião, em hábitos de peregrino e sem côrte,
fôra até Chambéry para cumprir a promessa. O fato cau­
sara tanta impressão que, vindo novamente a guerrear com
o duque de Sabóia, correram vozes de que teria roubado o pre­
cioso linho a fim de transportá-lo para alguma catedral fran­
cesa. Foi então o Sudário transferido para Vercélli em 1535,
três anos antes do nascimento de Carlos.
O desejo de roubar o Sudário passou de Francisco I
ao filho Henrique II, que encarregou Brissac da tarefa,
quando da tomada de Vercélli. Mas a tentativa faliu, pois
o general francês não coplpreendeu o lugar exato onde se
encontrava, e na necessidade de abandonar a cidade para
perseguir o inimigo que fugia, não conseguiu levar a têrmo
as investigações. Pôde, assim, a relíquia retornar a Chambéry.

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Encontrava-se ainda nessa cidade, quando Carlos, saído
apenas dos horrores da peste e todo inflamado pela lembran­
ça da paixão de Cristo, decidiu visitar Chambéry para
prostrar-se diante da imagem viva e verdadeira dos sofri­
mentos do Filho de Deus. Já dispusera tudo para realizar
o longo e fatigoso trajeto através dos Alpes, quando Ema­
nuel Felisberto, duque de Sabóia, que muito admirava o
grande prelado milanês e via apresentar-se a feliz ocasiãd
de transportar o Sudário para Turim, presenteando-o à ca­
pital de seus estados finalmente reconquistados, deliberou
fazê-lo imediatamente, convidando o arcebispo de Milão a
Turim como convidado de honra e hóspede da cal'!a
principesca.
Carlos aceitou o convite com muita alegria e preparou­
se com particular zêlo e cuidado. Escolheu doze entre os
mais íntimos colaboradores que o acompanhassem, a fim de
tornar a romaria quanto mais possível semelhante às via­
gens de Jesus Cristo com seus apóstolos pelas estradas da
Palestina. Reuniu-os na capela arquiepiscopal em presença
de tôda a família, explicou-lhes o escopo da romaria que
estavam para empreender, e comunicou o horário que de­
veriam seguir - o calendário de marcha, dir-se-ia hoje; o
qual, como veremos, não era lá muito cômodo ...
Os piedosos viajantes deviam levantar às quatro horas
da manhã, celebrar ou assistir à santa missa em qualquer
lugar onde se encontrassem, e, a seguir, também se estives­
sem na mais pobre igreja, recitar as primas e as têrças do
ofício; só depois de tudo isso, entoando as orações do Iti­
nerário, punham-se a caminho. Durante a viagem, duas
horas de meditação sob a direção do Padre Adorno, um
especialista na matéria, e no fim recitavam o rosário com­
pleto em voz alta e cadenciada, detendo-se em cada um dos
quinze mistérios; e se, para as refeições, não se houvesse
atingido a meta, acrescentavam a recitação dos salmos, ou
qualquer outro entretimento espiritual.
Chegados à etapa predeterminada, ingressavam na igre­
ja paroquial, rezavam, ajoelhados, as sextas e as noas, e
finalmente era-lhes distribuída a frugal refeição, sempre
acompanhada por leituras espirituais. Punham-se a caminho
depois de ter orado RO templo e de ter recitado as vésperas;
e novamente, duas horas de meditação, os salmos peniten-

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dais e rezas até altas horas da noite. Nenhuma parada para
admirar as belezas da natureza. As viagens tinham por
finalidade um exercício de piedade, e não uma deleitante e
agradável distração. Alcançada o têrmo noturno, novas ora­
ções na igreja e canto das completas; após a sóbria ceia,
vinham as diversas conferências sôbre as meditações do
dia seguinte. Por fim, o cardeal aspergia os companheiros
com 1água benta, e todos se retiravam ao quarto destinado,
com a licença de escolher a hora para as matinas e as lau­
des; e é para crer que, depois de tudo isso, todos ador­
mecessem ...
Com êsse programa, o cardeal partiu de Milão a 6 de
outubro de 1578, vestido de hábitos pontificais, após ter cele­
brado a missa e benzido os cajados dos peregrinos e as mãos
que os deveriam empunhar. A seguir, ladeado pelos doze,
encaminhou-se para fora da cidade, seguido pelo capítulo
em pompa magna, pelo clero e por muito povo. Em Porta
Vercellina depôs os trajes pontificais e revestiu os violá­
ceos, próprios dos peregrinos; beijou então a todos os cô­
negos, e recebeu, por sua vez, o beijo fraterno; e tomando
de seu cajado, partiu em direção de Novara. Foi uma cena
deveras comovente; somente o arcebispo não tinha a face
úmida pelo pranto; a fortaleza de ânimo e o domínio de
si mesmo, confirmaram ainda uma vez a excelsa qualidade
de sua fé. O Arcipreste Fontana, lembrando aquela cena,
exclamava: "Estremece-me ainda o coração de enterneci­
mento ao lembrar o dulcíssimo abraço que recebi em Porta
Vercellina, na hora da despedida. Houve talvez alguém de
coração tão duro e insensível, que não tenha chorado diante
do amor imenso de tão bondoso pai?!"
• •
O trajeto realizou-se etapa por etapa, conforme o de­
sejo do cardeal. A primeira em Sedriano, a segunda em
Trecate, onde lhe veio ao encontro, realmente inesperada,
uma procissão - a primeira das tantas que encontraria na
ida e no retôrno - de religiosos e populares, levando círios
nas mãos, através das vielas iluminadas, como se fôra gran­
de festa. "Julgava-se feliz - diz Giussano - quem conse­
guia tocar nos trajes do grande santo e receber a bênção;
os pais e as mães corriam com os filhos nos braços para
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que fôssem abençoados, movidos pela grande fé que depo­
sitavam em sua virtude".
A hospitalidade foi oferecida pelos frades do lugar, e o
cardeal, sem tocar em alimento algum, leu aos outros, du­
rante a refeição, as vidas dos santos; somente depois de mui­
tas insistências por parte do Padre Adorno, aceitou uma pe­
quena maçã e um pouco de vinho. E' oportuno record9ir,
para reconfirmar o absoluto desprendimento de Carlos
nessa e noutras romarias, que tôdas as despesas estavam
a cargo pessoal do arcebispo, e não da diocese, donde pro­
vinha a peregrinação; unicamente nessa vez, o conde de Ro­
magnano, enviado por Emanuel Felisberto para receber
o cardeal de Milão em Vercélli, não permitiu que despen­
desse coisa alguma, sendo êle e o séquito hóspedes da côr­
te de Sabóia. A tais desvelos foi fôrça ceder.
Em Trecate passou tôda a noite em claro; as confis­
sões prolongaram-se até o amanhecer, quando o cardeal
distribuiu a comunhão à imensa multidão de fiéis. Todos
pensavam que parasse em Novara, também por haver cho­
vido a cântaros e por estar o arcebispo com os hábitos a
gotejar. Causava dó vê-lo em tão lastimável estado, total­
mente encharcado e com as vestes pegadiças. Mas êle, ape­
sar de assistir na catedral, levado pelo entusiasmo popular,
à solene função com cantos, músicas e homenagens do bispo
e do clero, quis prosseguir viagem até Camerlate. Já eram
as oito da manhã; nada aceitou como alimento; somente
aos companheiros permitiu sóbria refeição.
Vercélli acolheu o Bom Romeiro com festas, cantos e
luzes na tristeza do outono hibernal; aqui, além dos legados
do duque Emanuel, havia os bispos de Vercélli, Francisco
Bonôni, e de Casale, com a respectiva comitiva de cônegos;
e todos quiseram acompanhar os peregrinos milaneses em
sua viagem pedestre até Turim.
O terceiro dia de viagem foi o mais penoso, por causa
do péssimo estado das estradas alagadas que, por vêzes,
desapareciam sob as águas. Todos apareceram em Sigliano
em condições dignas de compaixão; quem, contudo, se en­
contrava em pior situação era Carlos; tinha as pernas in­
chadas de tal modo, que j,á não lhe era possível permanecer
em pé. E, como sempre, resolveu o problema ràpida e ener­
gicamente - foi logo para a cama e em jejum; de manhã,

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foi o primeiro a levantar-se, robusto e vivaz, pronto a reco­
meçar imediatamente o trajeto; os colegas não cabiam em
si de estupefação; sonolentos e friorentos, não conseguiam
compreender onde pudesse buscar tão grande resistência
física.
Finalmente, a 9 de outubro, os piedosos viajores descor­
tinaram a Terra Prometida; desta vez, porém, não era se­
não a pequena capital dos Estados Saboianos, elevada recen­
temente à categoria de cidade. A oito milhas da metrópo­
le, aguardavam Mons. Della Róvere e as altas personagens
da côrte. Giussano narra que, em Chivasso,. almoçou-se em
pleno campo; como fôssem poucas as cadeiras, suficientes
apenas para o cardeal, os bispos e os doze romeiros, todos
os cavalheiros da côrte permaneceram de pé, e tomaram
a refeição debaixo da chuva para que, sentados e abrigados,
estivessem somente os homens de Deus.
Pouco depois, cem cavaleiros fardados militarmente,
com grandes penachos sôbre os elmos, escoltaram, garbosos,
o cardeal. Mons. Della Róvere, entrementes, correra à capi­
tal para advertir o duque da próxima chegada; retornan­
do, colocara-se vizinho a Carlos, flanqueando-o com o clero
diocesano quando, juntamente com o Cardeal Guido Fer­
réri, ingressavam na cidade. A quatrocentos metros da
Porta Palatina, ladeado por barões e dignitários, estava o
duque com o filhinho Carlos Emanuel, esperando a santa
comitiva. O vencedor de São Quintino ajoelhou-se devoto
na lamacenta estrada diante do grande cardeal, e pediu
para si e para o duquezinho a bênção. A seguir, entre no­
bres de couraça e espada, cônegos em capa magna e cléri­
gos jubilosos, Carlos Borromeu entrou na capital do Sudá­
rio. A multidão, contemplando a face extenuada e emagreci­
da do cardeal, deixou-se subjugar pelo halo de santidade
que o circundava. Prorrompeu em altos brados que exce­
deram o próprio tiroteio das bombardas é as salvas dos ar­
cabuzes; e sempre aplaudindo, ajoelhou-se reverente, como
quando ingressou, voltando dos campos flamengos, vence­
dor o seu chefe.
Fôra destinado a Carlos, como habitação, um pequeno
palácio vizinho à residência do príncipe, esplêndidamente
equipado; mas o cardeal nem sequer quis saber de visitá-lo
para alimentar-se, ou repousar alguns momentos. Viera

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para adorar o Santo Sudário, dever êste que devia cumprir
imediatamente
A efusão e comoção que demonstrou diante da santa
face foi tanta que Giussano escreveu: "Quais orações te­
nha feito e quais promessas o coração tenha cumprido, so­
mente Deus o sabe; eu não me sinto capaz de descrevê-las!"
A cidade viveu três dias de solenidades e alegrias mís_.,
ticas, que foram lembradas por muitos anos. A multidão
que acorreu para contemplar a Sagrada Face, exposta sôbre
um palanque na praça do castelo, foi simplesmente enor­
me; havia peregrinos até dos vales piemonteses, onde o
culto protestante ainda dominava. O cardeal pediu e obteve
do duque que um dia inteiro fôsse dedicado a essas ovelhas
transviadas, a quem não recusou palavras paternais e per­
suasivas. A maior parte do tempo, porém, era empregado
por Carlos em venerar a preciosa Lembrança; deixava-se
levar, por verdadeiros êxtases que se refletiam no semblan­
tE' sempre mais divino, e nas palavras ardorosas que co­
moviam e convenciam.
Antes de Carlos deixar Turim, o duque Emanuel Felis­
berto chamou a si os dois filhinhos, Carlos Emanuel e Ama­
deu, ajoelhou-se aos pés do grande bispo de Milão e supli­
cou que os abençoasse: "Espero agora que minhas coisas
prosperem verdadeiramente, pois fomos visitados por Vossa
Senhoria".
Assim, depois de um último e amoroso adeus ao querido
Sudário, os Bons Romeiros retomaram seus bastões. Todos,
menos um. Em vão, São Carlos procurou o seu. Não o encon­
trou. Uma esperta dama da sociedade turinense, que tivera
por custódia todos os cajados dos peregrinos, havia-se apo­
derado dêle. Nem o cardeal quis que se fizessem excessivas
indagações, afirmando esperar que o pobre bastão seria
útil a quem o possuísse na hora decisiva do grande passo
rumo à Eternidade.

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PARTE V

A IGREJA DA CARIDADE

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1.

A VINGANÇA DE DEUS

O jubileu, iniciado a 2 de fevereiro de 1576, festa da


Purificação de Nossa Senhora, significou para Carlos ver­
dadeiro e imponente triunfo. Mais de seis mil peregrinos
haviam chegado à cidade; os templos encontravam-se todos
brilhantemente ornamentados. Ao longo das vias que con­
duziam a Milão, haviam sido colocadas numerosas cruzes,
com o duplo fim de indicar o caminho e assinalar os moti­
vos da viagem - não excursão ou divertimento, mas místi­
ca união com Deus. O legado nomeado pelo Papa chegou em
tempo para assistir à solem, promulgação efetuada na
catedral.
Refere-nos Godeau: "Antes da missa, organizou-se longa
procissão, com tochas acesas; após a celebração do santo
sacrifício, na presença do governador, dos senadores e da
nobreza local, o arcebispo proclamou o jubileu, explicou-o
novamente e leu a bula pontifícia. A exposição das Quaren­
ta Horas teve lugar na catedral, antes da procissão dos
Passos. Essa devoção, tornada mais tarde tão popular por
São Filipe Néri, teve origem em Milão. Fôra praticada, pela
primeira vez, na quaresma de 1536 pelo Padre José de Fer­
mo, capuchinho, como ato público de reparação; o arcebis­
po conservou o costume "para obter de Deus o espírito de
penitência, necessário para_ tirar proveito do jubileu".
Nas três procissões que seguiram à inauguração das
festas jubilares, dedicadas a Santo Ambrósio na quinta-feira,
a São Lourenço na sexta-feira e a São Simpliciano no sábado�
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ostentou-se tanta pompa corno nunca se havia visto na ci­
dade - pompa sacra, é evidente. Os cônegos da sé, da Scala
e de outros colégios, em sua púrpura penitencial, a casa
episcopal, todo o clero da cidade, padres, frades, monges e
freiras, e a enorme multidão dos peregrinos a cantar hinos
em altas vozes, tocaram profundamente a fantasia e o cora­
ção do bom povo milanês; mas quem mais atraía os olhares
da multidão era o arcebispo, que caminhava humilde e oculto
sob o pêso de urna grande cruz de madeira; carregou-a du­
rante todo o percurso, e era para os presentes a imagem
do sofrimento, inclinado em suplicante oferta. Realizaram­
se naqueles dias outras cerimônias solenes, como a translada­
ção das relíquias da igreja e da abadia de São Vital para
a catedral, e da abadia de Arona - doada por Carlos aos
jesuítas - à igreja de São Fidélis.
"Por quinze dias - relata Margarida Yeo - a cidade
ficou repleta de peregrinos penitentes, descalços, vestidos
de sacos, com cordas ao redor do pescoço, crucifixo e disci­
plinas na mão. Nobres e senhores, espanhóis e lombardos,
burgueses e mendigos, empurrando-se uns aos outros, ca­
minhavam cantando ou recitando o rosário de igreja em
igreja. Todos os dias apareciam novos romeiros das várias
partes da diocese, e duma só vez foram hospedados e ali­
mentados mais de seis mil. O arcebispo servia-os à mesa,
lavava-lhes os pés, visitava-os nas hospedarias ·para ver se
todos possuíam o necessário, e administrar-lhes a comunhão.
Dormia sôbre tábuas nuas e duras, sem coberta alguma, por
espírito de penitência. E corno alguns peregrinos não con­
seguiram encontrar leitos em urna das estalagens, ainda
que sem culpa, jejuou e penitenciou-se rigorosamente". "Real­
mente, - lembra ainda Godeau - o cardeal trabalhava
como se possuísse trinta corpos em lugar de um somente,
ou melhor, como se não tivesse nenhum!"
Mas eis a apresentar-se - para Milão e não para seu
grande arcebispo - o reverso da medalha. Precisamente
poucos dias depois do fim do jubileu, em que a cidade pa­
recera semelhante a mosteiro de rígida observância, Dom
João da Áustria fazia sua entrada triunfal em Milão. O pro­
grama da visita era deveras espetacular - festas, banque­
tes, bailes, jogos, torneios, corridas, recepções e - por que
não? - também urna procissão. . . Estava para chegar o

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"cavaleiro pálido", o mais belo e famoso entre os jovens
príncipes da Europa. E, principalmente, o airoso môço es­
tava aureolado pela glória de campeão da cristandade, três
vêzes vencedor da Meia-Lua, em Apujarras, Lepanto e Túnis.
Dirigia-se agora para Flandres, a fim de assumir o
comando de um exército que perdera o chefe, após a der­
rota infligida pelos inglêses às tropas de Sua Majestade
Católica.
Milão endoidecera de alegria. Carlos, ao invés, ocul­
tou-se silencioso e como que ausente de tudo; pressagia­
va já, ainda que obscuramente, que atrás daquelas festas,
nas quais a população parecia esquecer as penitências
pouco antes sofridas por amor de Cristo, vinha-se apro­
ximando algo de tremendo e ameaçador para sua estreme­
cida cidade.
Haviam começado a circular, desde os últimos dias do
jubileu, certas vozes de peste, tanto que o governador, mal­
grado seu, houvera por bem suspender a chegada de gran­
des multidões. Mas a vinda de Dom João da Áustria banira
repentinamente qualquer precaução. Viesse para Milão
quem quisesse, contanto que não faltassem alegrias, festas,
bailes e distrações! Somente o cardeal não alimentava mui­
tas ilusões. Naquela espécie de forno sem ar que era seu
aposento sob o teto do palácio arquiepiscopal de Milão, re­
zava e se penitenciava para afastar o perigo que percebia
vizinho. Em Monza tinham-se verificado casos de certa doen­
ça "que os médicos chamam febre aguda, mas se enganam",
como escrevia com muita simplicidade o arcebispo. "Estarão
talvez os milaneses tão esquecidos das bênçãos com que
Deus os cumulou, a ponto de serem agora punidos? Os
magistrados reforçarão, sim, os guardas nas portas e as ron­
das dos soldados, mas será demasiado tarde!"
Entretanto, nas festas para a recepção do príncipe, Car­
los não estava presente. Encontrando-se o bispo de Lódi às
portas da morte e reclamando sua preciosa presença, não
podia deixar de socorrer o amigo. A meio caminho de Milão
a Lódi, porém, alcançou-o um mensageiro para anunciar-lhe
que o prelado falecera, podendo então retornar para assis­
tir às solenidades. Não importa; iria rezar sôbre o féretro
do amado colega; assim, estaria longe de Milão a 11 de agôs­
to de 1576, dia do ingresso de Dom João, e, de tal modo, as

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festas seriam suspensas. No fundo de tôdas aquelas exalta­
ções entrevira o que teria acontecido - revoltas, assassínios
e imoralidades. Tanto para não se afastar das belas tradi­
ções itálicas daqueles tempos, somente na capital lombar­
da verificaram-se trinta homicídios! A cidade saíra havia
pouco de um dos tremendos flagelos do tempo, - um grave
período de carestia, de que perduravam ainda os vestígios
aqui e acolá.
Muitas tinham sido as causas que haviam provocado tal
período de escassez, mas a maior, sem dúvida, fôra a pas­
sagem das tropas destinadas a uma das habituais guerras
endêmicas entre a França e a Espanha; e a conseqüência
sempre a mesma - saques vandiálicos por parte dessas hor­
das mercenárias, sem fé nem lei que não fôssem as do rou­
bo e da violência; os jovens acorriam sob bandeiras fictícias,
preferindo à vida tranqüila e fecunda dos campos a das
aventuras militares; outro motivo era a incúria do govêrno
espanhol, que arrancava dinheiro de qualquer fio de erva,
sufocando tôda a veleidade comercial. Nem se devem es­
quecer a sêca, os grandes calores sem chuvas do verão, e os
rígidos invernos.
O inverno de 1570 fôra particularmente duro e frio, de
tal forma que, com a escassíssima colheita do ano anterior,
os agricultores se encontraram muito cedo em grandes apu­
ros. E então, que restava a fazer aos pobres infelizes? Cor­
rer para a cidade, pois ali havia muita gente, havia quem
mandava, havia os ricos que possuíam nos cofres o suspira­
do dinheiro; como se êles tivessem o poder de extrair trigo
dos celeiros vazios. Naturalmente, a tanta gente faminta,
ninguém queria prestar ouvidos, e havia um passar de res­
ponsabilidades do prefeito ao senado, do senado ao vigário
de provisão, do vigário ao alcaide. E quando se chegava ao
governador, êste tocava as raias da loucura, emanava de­
cretos e mais decretos, ameaçava e estrepitava, mas as pro­
vidências - quando fôssem tomadas! - eram tôdas tardias
e ineficazes; e os gritos não produziam outro resultado se­
não acrescer a confusão.
Por tudo isso, o cardeal, talvez o único que não havia pro­
vocado a carestia e que não era obrigado a prover, com o
sólito empenho, atirou-se à obra com tôda a fôrça e o en­
tusiasmo que o coração lhe ditava; e sempre com aquela
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energia feita de zêlo e caridade que o distinguia. Entremen­
tes, deu ordens ao esmoler da casa, propenso a apertar os
cordões da bôlsa, de alargá-la quanto mais fôsse possível;
e começou a recolher pão, arroz e legumes; beneficiou pri­
meiramente os mosteiros e os lugares pios, onde, aumen­
tando dia a dia a miséria, as irmãs e os recolhidos arrisca­
vam perecer corno "passarinhos esquecidos no ninho".
Mas corno já não bastassem os recursos da cidade, re­
correu a Pavia e a Parma; adquiriu ali sessenta alqueires
de cevada e duzentos de trigo; e para combater a desocupa­
ção, começou mesmo então os trabalhos para a construção
do grande seminário. Bascapé e Giussano estão concordes
em afirmar que o mais pitoresco acampamento da miséria
estava situado ao redor do arcebispado. E era também o
mais vivo e animado, porque sob os pórticos fumegavam
deliciosamente as panelas. Pode-se pensar qual efeito produ­
zissem sôbre tantos pobrezinhos entregues à graça de Deus,
aquêle fumegar e aquêle perfume. Giussano calculou tam­
bém o número dos infelizes que eram socorridos cotidiana­
mente pelo arcebispo; parece que superavam a casa dos
três mil. E isso por v,ários meses.
As provisões do cardeal, porém, apesar de grandes, exau­
riram-se ràpidamente e o esmoler, certo dia, apresentou-lhe
a bôlsa completamente vazia, dizendo sem muitos rodeios:
"E agora quem proverá?" São Carlos, preanunciando Cot­
tolengo de três séculos, exclamou: "A Divina Providência!"
No entanto, começou por contrair dívidas com tanta arte
e gentileza, que quem emprestava, sentia-se quase obriga­
do a fazê-lo. Isso porque o arcebispo, rígido e altivo com
os potentes, sabia depois estender a mão com humildade
cheia de graça, diante da qual ninguém sabia resistir.
O próprio governador de Milão deu o exemplo, - que
em um espanhol sovina e ,ávido de ouro era algo milagro­
so! - distribuindo um vintém por dia a cada necessitado.
Hoje, dadas as condições financeiras que nos cercam, a im­
portância nos faz simplesmente sorrir; mas não nos deve­
mos esquecer que é preciso multiplicar por mil ou dois
mil o valor atual do dinheiro, e compreenderemos fàcil­
mente então que qualquer pobre podia adquirir muito bem
alguma coisa para vestir e alimentar-se. Mas o que en­
chia os cofres vazios do arcebispado era a esmola secreta;
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chegava de tôda a parte, sem que se conhecesse a proce­
dência, como aconteceria precisamente com São José Cot­
tolengo - a oferta feita por puro amor de Deus e pela
excelsa virtude de seu servo.
O coração de Carlos - imagem do Coração de Cristo
- não podia permanecer indiferente ante os sofrimentos
alheios; via-se então o arcebispo socorrer a todos os po­
bres, também os que viviam fora da cidade; e onde aparecia
sua emagrecida e cansada pessoa, sempre, porém, infla­
mada de um fogo espiritual que lhe animava o andar, che­
gava também a bênção de Deus.
Apesar de tudo, as provas maiores não haviam ainda
chegado. A carestia, a que bem ou mal se procurara reme­
diar, seguiu um inverno rígido em extremo; nevadas espês­
sas e contínuas ameaçavam derribar muitas das casas mais
pobres; nem foram poucas as que desabaram. A tanto es­
trago, não puderam prover os magros recursos do cardeal.
Carlos ajudou um pouco, rezou muito, jejuou e ordenou
preces públicas. As neves findaram sem demasiados danos,
a colheita prometeu bem, e podia-se esperar que o pior ti­
vesse passado. Ao invés! ...
Ao invés a carestia "não foi que a mensageira, - es­
creve Franceschi - um pouco antecipada, da outra sua
terrível irmã de face purulenta que se precipitáva freqüen­
tes vêzes, de asas abertas, sôbre a infeliz Itália, a peste de
1576. Ademais, dessa vez, para maior escárnio, entrou
na cidade tôda adornada, nos braços de gente folgazã e
irrefletida, enquanto rufavam os tambores, e os milaneses
se comprimiam ao redor da cavalgadura de um príncipe
ilustre; ingressou, e começou logo a ceifar e a recolher".
A 11 de agôsto de 1576, a peste, tétrica e negra, fêz
sua aparição exatamente no quarteirão da Porta Cornasina,
não longe do castelo e dos amenos jardins de Ludovico, o
Mouro. As festas para Dom João da Áustria haviam apenas
começado, e a morte apresentou-se terrível e ameaçadora;
alguns cidadãos caíram por terra a cem metros do lu­
gar onde devia passar a cavalgada triunfal do vencedor
de Lepanto. As convulsões e a côr térrea do semblante, ime­
diatamente recoberto por chagas purulentas, não deixaram
dúvidas sôbre a natureza do mal. Era a peste, e das piores!
O terror serpeou violento e desesperador.

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O jovem príncipe, advertido em tempo, não permane­
ceu mais de trinta e seis horas na cidade tão severamente
castigada. Partiu logo no dia seguinte para Gênova, e não
quis ouvir razão alguma para demorar-se, nem que fôsse
a certa distância da infeliz metrópole. Aquêles mesmos que
apresentavam tais convites, temiam que Dom João os acei­
tasse, tão grande era a vontade de cortar, por assim dizer,
a corda, e deixar rédeas livres à doença, contanto que sal­
vassem a própria pele!
A fuga foi geral. Dom Antônio de Guzman, marquês de
Ayamonte, governador, conde, duque e vice-rei de Milão, o
grande chanceler, os senadores, os nobres, os burgueses, e
todos os que possuíam vilas na campanha, nos montes e nos
lagos, fecharam casas e palácios e fugiram da cidade con­
taminada. Dom Antônio dirigiu-se para o famoso Castelo de
Vigevano, a bem trinta léguas de Milão, cujos arredores
ofereciam muitas possibilidades para a caça. Assim agiam,
em geral, os governadores espanhóis durante tôdas as ca­
lamidades do povo paternalmente governa.do pelo Catoli­
cfasimo Rei!

2.
NA LUTA PELA VIDA

O único que teve a coragem de retornar, foi o Cardeal


Borromeu; apenas soube o que acontecia na amada dio­
cese, deixou imediatamente a cidade de Lódi. E quando in­
gressou na capital Lombarda e o povo o percebeu, foi re­
cebido por uma população aterrorizada, que batia no peito
e cantava o miserere. Apeou diante da escadaria da cate­
dral; elevou ao céu breve e fervorosa oração, a que fêz eco
a multidão apinhada; dirigiu-lhe rápidas palavras de en­
corajamento, e ministrou- alguns ligeiros conselhos higiêni­
cos; e, vestido como estava, correu a visitar os doentes e os
moribundos nos quarteirões setentrionais. Alguém o acon­
selhou, em tom submisso, a usar de prudência; mas teve como

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umca resposta um olhar creio de aflição e decisão, de tal
forma que não ousou mais replicar.
No palácio encontrou os decuriões e os oficiais espa­
nhóis que não haviam tido a ousadia de fugir; e como não
tivessem recebido ordens precisas nem soubessem o que
fazer, todos em uníssono suplicaram a Carlos de assumir
êle a responsabilidade do comando!
"Há já muito tempo - respondeu - que resolvi jamais
deixar de fazer alguma coisa que pudesse servir ao meu
povo. Peço-vos, sobretudo, de não me tirar a coragem. Que
não me impressione com o exemplo daqueles que, nasci­
dos e crescidos na cidade, a abandonam apressadamente no'
momento em que há mais necessidade de ajuda!" Palavras
severas, mas verdadeiras, que não suscitaram reação al­
guma nos que as entenderam, senão a de realizar algo que
não se fizera antes. Alguns sugeriram de fechar as portas
aos estrangeiros. O arcebispo, não sem aspereza e ironia na
voz, replicou que já era tarde demais, e que as portas, caso
tivessem que ser cerradas, deviam tê-lo sido antes, ou seja,
às louca s companhias folgazãs aparecidas imediatamente
depois do jubileu.
Proibiram-se, sim, durante o período das festas reli­
giosas, procissões e cerimônias públicas, a fim de que não
fôssem prejudicados, por ameaça de contágio, os dias de­
dicados a Dom João; mas logo depois, haviam chegado
tropas de soldados e vagabundos que surgiam das mais di­
versas paragens; foram êles, certamente, os portadores do
terrível mal. A única esperança estava agora em invocar a
Deus, com as orações mais ardentes e as mais fervorosas
penitências. E Carlos entregou-se logo a uma vida sempre
mais santa e severa. Seus bispos e sacerdotes que o seguiam
de perto, haviam conseguido que aceitasse, como leito, um
grande saco cheio de palha e grosseiros lençóis de cânhamo,
logo consumidos quando de sua lixiviação. Durante as pou­
cas horas de repouso, estendia-se sôbre duas pranchas, ou
sentava-se em velha cadeira de madeira; seu alimento re­
duziu-se somente a pão, legumes e água.
Ofereceu-se heroicamente como vítima de expiação pe­
los pecados da grei � preparou-se à morte solenemente, fa­
zendo testamento e pondo em ordem todos os afazeres. A se­
guir, sem resguardo nenhum, começou a permanecer fora o

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<lia todo, em meio dos atingidos pela peste, no calor sufo­
cante, que desenvolvia, agigantando-os, os germes da en­
fermidade, sob o pesado céu esfogueado, caminhando des­
calço nos vários hospitais a visitar os infelizes doentes. A
multidão amedrontada apertava-se-lhe ao redor, esperando
dêle quem sabe qual milagre; ajoelhava-se para receber a
bênção, procurava tocá-lo e beijar-lhe as vestes, que consi­
deravam segura salvaguarda contra a infecção.
Perto da Porta Veneza, a nordeste da cidade, fôra cons­
truída por Ludovico, o Mouro, a leprosaria. Tratava-se de
imponente edifício, percorrido na parte interna por longo
pórtico, no qual se abriam duzentos e oitenta e oito quartos.
O projeto remontava aos anos de 1466 e 1485, durante a
explosão de duas tremendas epidemias; mas somente em
1488 fôra colocada a primeira pedra, e os trabalhos pros­
seguiram tão lentos, que na pestilência de 1524, foi neces­
sário edificar muitos alpendres; providência que, diga-se
a propósito, foi tomada também para a mortandade mais
feroz que as anteriores, esta de 1576. Nesta ocasião introdu­
ziram-se várias modificações. A primeira foi de dividir o
hospital em três grandes repartições - uma para os suspei­
tos, outra para os atingidos e a terceira para os convales­
centes. E Carlos, quando findar o morticínio, erigirá no
centro uma igrejinha, moderna diríamos hoje, - tôda aber­
ta e octogonal, de modo a ser visível <le qualquer parte do
Lazareto.
O asilo para os enfermos - quando apareceu a peste
-- existia, e edificado com bastante critério, mas, no momen­
to, não subsistiam senão os muros; pode-se, por isso, imagi­
nar como se encontrassem os recolhidos, ali enviados pelo
Tribunal de Saúde! A decisão era óbvia e nada se lhe
podia objetar; uma vez, porém, abrigados naquele lugar
privado de tudo, quem, após terem sido transportados em
padiolas e abandonados na porta pelos coveiros, quem, re­
petimos, os assistia?
Eram cenas simplesmente ·horrorosas! Quem não era
martirizado pela peste, era atormentado pela fome e pela
sêde. Pois ninguém podia- penetrar naquele inferno - nem
parentes, nem amigos. Além do mais, os sãos, pelo feroz
egoísmo que é a lei da conservação, pela qual: "pereçam
os outros contanto que me salve!", não se aproximavam
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daquele lugar de morte e dor. Deviam medicar-se entre si.
esperar que o socorro viesse dos poucos parentes corajo­
sos, - quando vinham e quando estas pessoas estavam em
condições de poder prestar auxílios. E eram sepultados sem
o confôrto de uma palavra de esperança e de fé. Sem que
um sacerdote pudesse colar o crucifixo a seus liábios ardentes.
A medida mais bárbara que o Tribunal de Saúde tomou
na ocasião, - tanto cruel quanto, porém, inevitável - foi
que ninguém, a não ser os infectos, pudesse entrar no re­
cinto da morte. Quando Carlos tentou violar o decreto, foi
imediatamente afastado, e não pôde por razão alguma criar
uma exceção à cruel regra. Narra-nos Bascapé, que o acom�
panhava naquelas visitas: "Viajando nós, por fora, ao redor
do hospital, os doentes bradavam desesperados e, aparecen­
do nas janelas, choravam a própria sorte, quem pelas do­
res que o atormentavam, quem por lhe haver falecido o vi­
zinho ou por estar em agonia diante de seus olhos; ouvia­
mos unicamente gritos comovedores e ferozes. Aqui e aco­
lá percebíamos queixumes que cortavam o coração: "Pai,
todos nos abandonaram; dai-nos, ao menos, vossa bênção!"
Centenas e centenas de contaminados estavam aglome­
rados juntos; os vivos com os mortos, sem cama, sem ali­
mentos e sem enfermeiros. E como os coveiros não conse­
guiam sepultar todos os cadáveres, êstes, em estado de pu­
trefação e fétidos, atulhavam o terreno.

3.
A PRUDf:NCIA QUE NÃO E' COVARDIA

Retornando ao palácio após as visitas ao Lazareto, Car­


los chorava como criança; ordenou que seu pobre enxergão
fôsse imediatamente enviado ao hospital, assim como os
de seus ajudantes mais vigorosos; retirando-se, em seguida,
para os aposentos particulares, não pôde mais agüentar e
bradou repetidas vêzes; voltou-se então para quem o acom­
panhava e disse: "Vistes as condições daqueles infelizes.

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Despojados de tudo, atormentados por muitíssimas tribula­
ções, privados também dos confortos espirituais; e não há nem
sequer algum sacerdote que deseje socorrê-los; mas se a cle­
mência divina não prover de outra maneira, sei muito bem
o que devo fazer".
Repetirá os mesmos conceitos numa carta escrita na­
queles dias: "Parece que êstes pobrezinhos me considerem
a causa de todos os seus males. Seus clamores, e mais, seu
silêncio, me exprobram a indolência. Eu tardo em prestar
auxílio, enquanto deveria com o exemplo induzir os outros
à piedade. Não demorarei. Com a ajuda de Deus, cumpri­
rei o dever até o fim". Bem pouca coisa restara de vendível
e de algum valor nos palácios arquiepiscopal e Borromeu;
tudo foi vendido sem demora ou trocado por alimentos,
cobertores e vinho, destinados logo à leprosaria. Um sacer­
dote suíço, muito pr.ático em matéria de epidemia e peste,
foi chamado a Milão para organizar a assistência. Chama­
va-se Padre Leonardo e era imune do contágio - assim,
ao menos, se dizia e se acreditava. Depois de seu utilíssimo
e profícuo trabalho na cidade, foi enviado para Bréscia,
tendo sempre sobrevivido a qualquer contaminação, e isen­
to de todo o perigo. Certa manhã foi encontrado morto paci­
ficamente, em prado atapetado de flôres, na margem de
um rio; nunca se veio a conhecer a causa de sua morte, mas
é certo que não foi de peste.
Carlos dirigiu, entrementes, um ardente apêlo aos sa­
cerdotes milaneses: "Nós não temos duas vidas, mas uma só;
devemos, portanto, consumi-la por Jesus Cristo e pelas al­
mas; não como desejamos nós, mas no tempo e no modo
queridos pela Divina Providência. Mostraríamos grande pre­
sunção e negligência em nosso dever e no serviço de Deus,
se tal não fizéssemos, com a desculpa de que �le não nos
poderia substituir por outros mais capazes de trabalhar por
sua glória. Isso não significa que deveis menosprezar os re­
cursos humanos, como preventivos, remédios, médicos e
tudo o que puder servir para manter afastado o contágio;
pois tais meios não são em nada contrários a nosso dever".
Prudência, sim, mas não_ a que se chama mêdo.
E dava o exemplo. A quem - e eram muitíssimos! -
o aconselhava a cuidar-se, com a desculpa, válida em tempos
de tranqüilidade, mas inútil em épocas difíceis, que "se o

221
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pastor fôr ferido, a grei será dispersa", Carlos respondia:
"Desde o início decidi pôr-me inteiramente nas mãos de
Deus, sem desprezar, contudo, os remédios ordinários -
uma esponja ensopada no azeite ... alguma erva aromáti­
ca na bôca!" Paliativos que nos fazem sorrir, mas que cer­
ta eficácia tinham. Os sacerdotes de Milão, porém, pensan­
do antecipadamente com a cabeça de Don Abbondio - "se
alguém não tiver coragem, ninguém lha pode dar!" - não
correspondiam aos insistentes convites do arcebispo, como
teria sido seu desejo. "Encontro-me em graves angústias!"
exclamava abatido diante da má vontade da maioria. Uns
fugiram, outros permaneceram, mas se recusavam a acom­
panhá-los nas inspeções aos doentes, principalmente ao L�­
zareto. Esperavam que também êle, abandonado por todos,
não resistisse. E' que desconheciam êsse intrépido paladino
da fé e da dor. Finalmente seu exemplo conseguiu con­
vencê-los.
Os capuchinhos foram os primeiros a se dirigir ao La­
zareto. Outros, vencidos pela generosidade de Carlos, tam­
bém os imitaram. E nenhum dos religiosos, entregue a obra
tão santa, foi golpeado pela terrível moléstia.
Frei Jaime, da mesma Ordem, que prestava serviços
no hospital, deixa-nos esta descrição dos dias de Carlos:
"Vem muitas vêzes ao Lazareto para consolar os enfermos;
entra nos tugúrios e nas casas particulares para falar aos
doentes, confortá-los e prover-lhes tudo o que é necessário.
Nada o amedronta, e é inútil tentar fazê-lo. Expõe-se demais
ao perigo; mas como, por graça especial de Deus, foi preser­
vado do contágio, diz que não pode agir de maneira dife­
rente. Na verdade, a cidade não tem outra esperança e
confôrto".
Em seu testamento, deixara como herdeiro de tudo o
que lhe restava, o Hospital Maior de Milão; e já então es­
colheu um mísero lugar onde pudesse um dia ser sepultado
entre os estremecidos mortos de peste; e se tivese morrido
então, sua vontade devia a todo custo ser respeitada.
Naqueles tempos, Frei Paulo Bellintáni, dos Menores
Capuchinhos, chegou quase a alcançar a fama do cardeal.

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Primeiramente foi-lhe confiada somente uma autoridade es­
piritual no Lazareto, com a ordem precisa de nunca mais
sair, senão quando se extinguisse a epidemia. A habilidade
dêsse organizador chegou a tal ponto, que lhe foram confe­
ridos - com grande alegria de Carlos, que se via nêle bem
representado - os podêres mais amplos, com o seguinte de­
creto: "Ordenamos a qualquer pessoa estabelecida ou que
vier a se estabelecer nesse lugar, que, sob pena pecuniária,
privação dos bens, fustigações, surras de cordas, prisão, ou
então pena maior a nosso arbítrio, preste obediência, ajuda
e favor a êste Reverendo Frei Paulo".
Quanto aos médicos, não havia jeito de encontrá-los
em parte alguma. Refere o próprio Frei Paulo no Diálogo
da Peste: "Os médicos não se atreviam a entrar, e iam ao
redor do Lazareto; eu então incumbira uma pessoa de con­
fiança e de espírito de sacrifício, de percorrer, por dentro,
quarto por quarto, visitando todos os enfermos, verificando
como passavam, e referindo tudo, da janela, aos médicos;
estavam êstes sempre acompanhados por alguém que ano­
tava as receitas, o nome, o sobrenome e o número do quar­
to; é que eu determinara numerar, para tanto, tôdas as ja­
nelas; e o algarismo, depois, era colocado sôbre os remédios
e xaropes, para evitar confusões".
A técnica hospitalar, é preciso confessar, não era Lá
muito moderna; mas foi fôrça adotá-la, caso contrário ne­
nhum clínico se teria aproximado da fatídica casa; e a des­
culpa era convincente - penetrando no foco da maior in­
fecção, sem dúvida nenhuma, teriam-na trazido para fora.
Quando o mêdo é mêdo, reveste-se de todos os trajes e des­
culpas para não aparecer tal; apesar de tudo, conseguiu-se
uma espécie de organização médico-hospitalar, também se
completamente sumária e primitiva, e apareceram alguns
resultados positivos.

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4.
CADAVERES VIVOS

O principal problema que Carlos devia enfrentar, era


a assistência espiritual aos enfermos e, como conseqüência,
a obrigação de administrar os santos sacramentos por parte
dos vigários. Quando, porém, a peste assumiu maiores e
impressionantes proporções também em outros lugares da
diocese, recorreu a Roma, para que de lá partisse uma pa­
lavra de incitação e confiança, e uma especial concessão de
favores espirituais. Pouco depois chegava uma carta insi­
nuando o sublime preceito de não abandonar os irmãos no
terrível tormento; não ficou resolvida, todavia, a questão
que mais estava a peito ao cardeal, ou seja, se os párocos
f ôssem ou não obrigados a administrar a unção dos enfermos,
também com o mais grave dos perigos - a perda da vida.
Na bula papal havia, ao invés, uma advertência ao ar­
cebispo; que não continuasse a expor-se em demasia, pois,
ferido o pastor, o rebanho se dispersaria. Carlos, apesar do
máximo respeito ao Trono de Pedro, não deu lá muita im­
portância a essa segunda parte da misssiva pontifícia, e pu­
blicou, pelo contrário, a primeira em um opúsculo replet_o
de textos patrísticos que se relacionavam com o terrível pro­
blema da peste. Eis aparecer, porém, uma resposta que te­
ria desconcertado qualquer homem que não fôsse São Car­
los: "Os teólogos romanos - narra Giussano - sentencia­
ram que aos párocos era vedado ausentar-se da paróquia
durante a epidemia, mas não se podia obrigá-los a adminis­
trar os sacramentos aos doentes". Que fêz Carlos? Silen­
ciou a resposta e se dirigiu ao Cardeal Martinho de Arpil­
queta que, com seis argumentos muito concisos e teológicos,
defendeu a tese da obrigação.
Em todo o caso, - e isso para louvor e mérito do clero
ambrosiano - os párocos, em reunião realizada na catedral
em que soou firme e incitadora a voz do arcebispo, decidi­
ram seguir o exemplo do chefe; pouquíssimos os desertores;
a maior parte teve um comportamento verdadeiramente
heróico. E' pena que, acabada a peste, muitos de seus atos
aplausíveis se tenham esquecido e não possam ser conve­
niente e dignamente enaltecidos.

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A oração era contí111w e
intensa.

A Sag rada Coli11a de Veralo, onde S.


Carlos se preparou para a morte.

A máscara do Santo ol>tida


logo após a sua morte.
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SÃO CARLOS
E A «SUA»
PESTE.

Assist indo os
doentes.

O
Lazareto.

Vestindo os
nus.

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Não nos podemos furtar de lembrar um fato profun­
damente comovedor e horroroso. Foram postos, certa noite,
perto da igreja de São Gregório, numerosos cadáveres para
serem sepultados na cova comum, depois de terem sido,
com uma única função, abençoados pelo sacerdote. Ao ama­
nhecer, quando o cura da paróquia levava o viático aos ago­
nizantes, eis que do aglomerado dos cadáveres, ouve-se uma
voz que implora: "Também para mim, também para mim,
pelo amor de Deus!" O sacerdote, dirigindo-se apressado ao
local, conseguiu distinguir no grupo alguma coisa que se
movia e uma bôca aberta, com a língua ressequida estendi­
da num supremo pedido. O pároco pôs a Sagrada Hóstia
naquela bôca desconhecida, e o moribundo, com um "Deo
gratias !" infinitamente resignado, estendeu-se sôbre a pilha
humana e não se moveu mais.
O mesmo fervor que Carlos comunicara a seus sacer­
dotes, propagou-se naturalmente nos leigos, que se apresen­
taram para também fazer algo e agir finalmente unidos
para o bem comum.
O arcebispado transformou-se no quartel-general da pes­
te. Carlos recebia a todos de semblante sereno, examinava­
lhes as aptidões e capacidades, e registrava tudo diligente­
mente em seus conhecidos livrinhos, para usá-los em tempo
oportuno. As reservas para a batalha final e as tropas de
primeira aplicação constavam de homens e mulheres gene­
rosos, e dos que já haviam melhorado do contágio e que,
por triste experiência própria, sabiam como comportar-se
com os atingidos. Carlos entregava a todos uma veste escura,
de pouco valor comercial; fazia-o, porém, com tanto em­
penho, solenidade e fervor, que parecia agraciar os volun­
tários com uma condecoração de altíssimo significado. Acom­
panhava a oferta com duas palavrinhas suas, benzia a di­
visa e o recruta, e os enviava em nome do Senhor.
As resistências maiores provieram donde menos se es­
perava, - de seus íntimos e amigos. Como a pestilência
prosseguisse e se alastrasse sempre mais, achou conveniente
escolher, dentre os familiares, um grupinho seleto, que o
acompanhasse sempre e em tôda a parte; um manípulo, en­
fim, feito de pessoas seguidamente dispostas, em suas con­
tínuas visitas aos doentes mais repugnantes, a desempenhar
Vida de S. Carlos - 15 225
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encargos de confiança naquele mundo desconfiado de todos
e de tudo, expondo também a própria saúde.
Manifestara apenas o desejo e já se ouviam perguntas
dolorosas: "Quais seriam os desventurados destinados ao in­
falível sacrifício?" E foi maquinada a conspiração. Ninguém
teria seguido o cardeal em sua loucura. O esquadrão da
morte não encontraria nenhum aderente entre seus amigos;
todos - como já vários o haviam feito - teriam deixadti.
seu serviço. Em alguns, contudo, aquela maneira forte era
sugerida também pelo desejo de impedir que o cardeal se
expusesse sozinho a uma aventura que lhe teria roubado
a vida.
Apesar de inícios tão pouco promissores, Carlos não de­
sanimou; falou primeiramente a todos juntos e, a seguir,
individualmente, persuadindo-os a desistir daquela oposição
preconcebida e a tornar-se, pelo contrário, bons soldados de
sua santa cruzada; e, ou pela comoção, ou pelos raciocínios,
ou pela persuação de que, oferecendo-se a Deus, teriam sido
poupados, todos acabaram por aquiescer a seus desejos; e
tornaram-se tão dóceis e fiéis, que foi preciso repreendê-los
freqüentemente para que moderassem o ímpeto e o ardor.
Já se fizera tudo o que era possível, mas a peste conti­
nuava a ceifar centenas de pessoas, quase. diàriamente; com
a chegada do inverno, ao invés de abrandar, progredia, e
juntamente a miséria, a terrível companheira da dor. Em
frio dia invernal, aglomerou-se diante da catedral, grande
multidão a chorar; servos que haviam perdido o emprêgo
por terem os patrões fugido precipitadamente; artesãos e
oper,ários desocupados pelo falecimento dos empresários, ou
por terem sido arruinados pela suspensão total do comércio.
Em seguida, como que instintivamente, os demonstrantes di�
rigiram-se tumultuosos ao palácio arquiepiscopal, sua últi­
ma esperança.
Carlos ouviu o rumor das blasfêmias e imprecações, en­
quanto se encontrava na capelinha a orar por seu povo; des­
ceu sozinho, e a alguém que se lhe aproximou armado para
defendê-lo em caso de agressão, intimou duro e enérgico:
"Não se vai com armas no meio de quem tem fome, mas
com o pão e com a cruz!" E demorou-se carinhoso entre a
multidão dos pobres· esfomeados, irritados, descalços, trêmu­
los de frio. No palácio não sobrara nem ouro nem prata;

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somente dos muros pendiam ainda veludos e preciosas ta­
peçarias. O arcebispo, sem um minuto de hesitação, despo­
jou tudo e, com esta roupa sui generis., mandou fazer vestes
e cobertores para aquela grei miserável e morta de frio.
"Eu estava presente quando os tecidos foram cortados e
transformados em vestes", afirma o médico Luís Settála no
processo de canonização.
"Os milaneses, - naITa uma testemunha ocular - não
obstante as numerosas desgraças, não haviam perdido por
completo o espírito humorístico, e se divertiam não pouco
ao ver os mendigos que se pavoneavam pelas estradas em
estranhos hábitos em forma de saco, cortados de esplêndidas
tapeçarias, de belas fazendas vermelhas, de púrpura e de
veludo. Calcula-se que foram retirados e cortados de sete­
centos a oitocentos metros de tecido escarlate, e outros tan­
tos de roupa purpúrea". Mas nem tudo ficou resolvido;
restava a questão da habitação. Trezentos dêstes desventura­
dos foram alojados em uma casa de campo pertencente ao
arcebispo; outros foram recebidos por famílias caritativas.
Nobres e ricos instituíram, encorajados pelo cardeal, abri­
gos para donzelas que, em caso contrário, não teriam tido
outro futuro que a estrada.

5.
UM DISCtPULO DE CRISTO

Essas eram as obras, por assim dizer, corporais do ar­


cebispo; mas organizaram-se, outrossim, orações públicas
e jejuns intensificados. Começou-se com distribuir cinzas,
como no primeiro dia de quaresma. Fizeram-se três procis­
sões por semana, como durante o jubileu: segunda-feira
na catedral, quinta-feira em Santo Ambrósio, e sábado em
Nossa Senhora de São Celso, uma das igrejas prediletl:,ls de
Carlos quando, ainda menino, residia em Milão. Frei Jaime
descreve-nos as piedosas práticas: "O bom cardeal cami­
nhava descalço, com grossa corda ao pescoço e pesada cruz
15• 227
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nas mãos. Acompanhavam-no os familiares, também des­
calços e com nodosa corda à garganta. Seguiam filas in­
termináveis de homens e mulheres levando velas acesas.
Em uma das procissões, o cardeal pregou entusiasta e co­
movido, e acabou em pranto: "Quem sofre, que eu não
sofra também?! Quem padece fome, que eu também não
padeça?! Quis infirmatur, et ego non infirmor? Peccatum
peccavit Jerusalem!"
Certo dia, não se sabe se em procissão ou levando o
viático aos doentes, deu em cheio com o pé em agudo ferro,
lesando-se gravemente. Não se importou. No dia seguinte,
como se nada houvesse acontecido, continuou a circular com
o pé ferido, deixando vestígios de sangue pelo caminho; to­
dos consideraram verdadeiro milagre não ter sofrido uma
infecção mortal.
Carlos sentia a necessidade de oferecer Cristo a todos
os que padeciam e precisavam do divino amigo. E como
as casas, em que se havia verificado algum caso de peste,
eram fechadas e os inquilinos mantidos em rigorosa quaren­
tena, de modo a não poderem acompanhar as procissões e
as sagradas funções, resolveu o problema muito sábia e
santamente. Fêz erigir em diversos pontos da cidade, deze­
nove colunas com altares, onde cada manhã era celebrado
o santo sacrifício. Podiam, assim, os doentes, aprisionados
nas próprias moradias, assistir à missa das janelas, e rece­
ber das mãos do celebrante o suspirado alimento celeste.
O cardeal revelava-se incansável em correr a metrópo­
le. Não se concedia repouso. Quando, todo recolhido, ca­
minhava pelas estradas, homens, mulheres e crianças sur­
giam de tôda a parte para pedir a bênção. Levava ao peito
uma bôlsa cheia de dinheiro, que bem depressa se esgota­
va. A família milanesa, encerrada em casa pela quarentena,
fazia descer das janelas e dos balcões um pequeno recipien­
te para receber o donativo. Nem faltava a visita diária ao
Lazareto; ali, entre cenas de incrível horror, batizava crian­
ças nascidas de mães agonizantes, absolvia e comungava a
outros, e, não obstante o temor e a repugnância dos fami­
liares, administrava a unção dos enfermos a corpos fétidos,
manchados e cobertos de pústulas já em decomposição.
Se não houvesse existido a mão firme e caridosa do
arcebispo, Milão ter-se-ia tornado o que foi a Florença des-
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crita por Boccáccio durante a "morte negra" de 1348. Ex­
cessos, orgias, bebedeiras, assassínios, suspensão de tôdas as
leis divinas e humanas, doentes abandonados ou negligen­
ciados, cadáveres espalhados pelas ruas, amontoados nos
túmulos, ou atirados às fossas de terrenos não consagrados,
"como as mercadorias são empilhadas na estiva do navio".
Tal fato não se repetiu em Milão, porque Carlos se levan­
tou, armado de santidade e de fôrças mais que humanas,
para esbarrar o caminho ao pior. Construíram-se novos ce­
mitérios, que o arcebispo sagrava sempre antes de os tú­
mulos estarem abarrotados.
E' claro, não podiam faltar nem aqui os desregramen­
tos; mas nunca ocorreram os excessos lamentados em outras
calamidades. Também em Milão, um grupo de moços e
donzelas de pobre linhagem, reuniram-se em maravilhosa
vila dos arredores, um verdadeiro paraíso terrestre, circun­
dados por jardins encantados; fundaram a "Academia do
Amor", e não quiseram mais saber do mundo da dor e da
morte, pensando que teriam, assim, evitado o contágio e a
visão do sofrimento alheio. Numa bela manhã, porém, a
peste apareceu inesperada entre êsses desatinados, e tal­
vez só três ou quatro tenham conseguido escapulir ...
As anedotas floresceram numerosas à volta do cardeal
de Milão. Certo dia, durante o passeio diuturno, ouviu o
pranto de um recém-nascido, vindo de casa aparentemente
deserta. Ordenou que lhe trouxessem uma escada e come­
çou a subir; encontrou, no quarto, um menino a chorar en­
tre os cadáveres dos pais. Envolveu-o no roquete, desceu
novamente pela escada, e conseguiu arranjar-lhe um refú­
gio seguro. O fato sugeriu-lhe a idéia de fundar um abrigo
para os meninos abandonados em Porta Veneza, com ca­
bras para aleitar os pequenos, pois não se conseguia en­
contrar nenhuma ama. Assistia, no leito de morte, os sa­
cerdotes atingidos pelo mal, e muitas vêzes, durante aquêle
terrível inverno, despojava-se do casacão e da capa e vestia
os pacientes seminus.
Entretanto, apesar de parecer milagrosamente imune do
contágio, não permitia a ninguém que lhe tocasse os hábitos,
após as visitas aos enfermos e ao Lazareto. Nas estradas fa­
zia-se preceder pela famosa vara de assinalação. No arcebis­
pado, onde o ingresso era franqueado a todos e a qualquer

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hora do dia e da noite, fêz colocar uma barra na sala das
audiências, para poder conversar com todos, sem o perigo
de alguém se lhe aproximar demasiado; preocupação seme­
lhante tomou no côro dos cônegos; tendo o costume de fre­
qüentá-lo diàriamente, também durante a pestilência, não
queria que os outros, vivendo mais acautelados, pudessem
receber dêle o temido mal.
Nem se creia que êle, tão indiferente quando se trata­
va de tomar cuidados para si próprio, não publicasse seve­
ras disposições e conselhos úteis; proibia, por exemplo, os
aglomerados inúteis, as conversas prolongadas e o comér­
cio de trajes outrora pertencentes a infectas da peste; re­
comendava, outrossim, que trouxessem sôbre si mesmos
certas orações e anéis, que passavam de pessoa em pessoa,
quais talismãs contra a peste.
Acêrca das normas ditadas aos párocos, minuciosas e
completas, para a administração dos sacramentos aos doen­
tes, basta dizer que, poucos anos depois, o arcebispo de
Urbino afirmava que elas se teriam tornado a admiração
dos pósteros, por conterem disposições muito mais salutares
e eficazes que as emanadas pelos médicos.
Resta a questão controvertida das procissões. Não era
mais oportuno, em vez de fazê-las, limitá-las ou suprimi-las
totalmente? Antes de mais nada, importa notar que, além
do cardeal, exigia-as também o povo. Reconhecia.:.as Carlos
necessárias entre tanto abandono e tão implacável angús­
tia, de modo a se tornarem como que natural desabafo
para tantas almas oprimidas pela miséria, pelo abandono
e pela enfermidade; assim, ao menos, no verem-se juntas
e no elevar em comum as orações a Deus, encontravam on­
das de confôrto vivificante para poder sofrer o pior que
existia para todos, e para cada um particular, em qualquer
cilada.
Além disso, tais procissões, às quais recorrerá, sessenta
anos após, o primo de São Carlos, o Cardeal Frederico, de­
senvolviam-se ordenadas e não qual aglomeração exagera­
da de fiéis; era um regulado afluxo que caminhava em
grupos distintos e separados uns dos outros. Vetava-se tam­
bém o demasiado ajuntamento de gente na igreja, e levan­
tavam-se altares nos _adros e nas encruzilhadas principais,
onde permaneceram erguidas aquelas notáveis cruzes cha­
madas: "As cruzes de São Carlos".
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6.
A LEMBRANÇA DA CRUZ

O que, certamente, nos impressiona, é a observação de


Giussano e de Oltrocchi: nenhum dos familiares do arce­
bispo foi atingido pela grave moléstia. E deve-se notar que
não poucas dessas pessoas viviam ainda quando Giussano
escrevia; por isso, seu testemunho é valiosíssimo. Aliás, para
dizer a verdade, todos gozaram de saúde excelente; isso
não sómente quanto à peste propriamente dita, como tam­
bém quanto a outros incômodos e indisposições que alguns
sofriam antes habitualmente. Houve uma única exceção:
a de um doméstico que morreu de peste e que ia repetindo a
todos de tê-la recebido do cardeal. Mas o servo, além de
nunca ter pertencido à falange destinada aos doentes gra­
ves, afastara-se da companhia de Carlos desde quando fa­
lecera o bispo de Lódi. Ou seja, antes que a peste estouras­
se em forma violenta e epidêmica.
Isso no que concerne aos mais íntimos do cardeal; mas
todos os outros familiares, apenas notavam algum mal-es­
tar, eram imediata e escrupulosamente assistidos; foi o que
aconteceu a certo Galesino que, caído em vaga suspeita de
ter apanhado a enfermidade tratando um companheiro, foi
relegado para seu quarto por sete dias.
Aquêles que receberam a pestilência em forma ligeira,
viam-se logo transportados para lugar seguro e solitário, e
ali devidamente medicados. Todos mereceram remédios, cui­
dados e agradáveis convalescenças a expensas de Carlos; a
mesa apresentava-se tão seleta e abundante, a ponto de Frei
Jaime afirmar, certo dia, que grande parte das iguarias era
deixada pelos doentes "para dividir o apetite com os
outros ... "
Não se sabe, contudo, se tiveram igual sorte todos aquê­
les que preferiram seguir o feroz egoísmo humano. . . Não
se pode negar que figura bem mesquinha deixaram os no­
bres milaneses - não todos, mas grande parte, - que, imi­
tando o exemplo do governador e dos demais espanhóis,_ aos
primeiros sinais do flagelo, fugiram desesperadamente, mas
com o firme propósito de retornar imediatamente ... quando
o contágio tivesse partido pàra outras paragens .. .
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O governador Ayamonte, heróico como são todos os
espanhóis, valorosos em afrontar um pobre animal em are­
na repleta de loucos ululantes, mas incapazes de arrostar as
longas e duras responsabilidades que comportam sacrifí­
cios e renúncias, - achara bom e oportuno fugir; e fugiu
"antes de todos e mais de todos", até deparar com o castelo
de Vigevano; nem quis receber pessoa alguma procedente de
Milão. . . e, doutro lado, pretendia ser informado minuta­
mente de como se desenrolavam todos os acontecimentos ...
Certo dia, enfureceu-se sobremodo por terem os decuriões,
sob a pressão do arcebispo, decretado que ninguém deixas­
se a cidade. "Como poderei agora saber minuciosamente o
que acontece no govêrno, quando é meu dever e direito?"
Escreveu a Carlos; a resposta não se fêz esperar: "Retor­
nando a Milão!" O heróico representante dos espanhóis en­
goliu a pílula e calou. '
O cardeal pôs-se à testa de tôda e qualquer iniciativa;
narra Franceschi, firmado em Giussano e Oltrocchi: "Con­
vocou sem demora todos os nobres da cidade, e com muita
franqueza falou-lhes das graves responsabilidades que lhes
competiam em tal calamidade; e quando os viu um pouco
compenetrados de suas obrigações, e persuadidos de que não
havia tempo a perder, designou a cada um dêles um quar­
teirão; assim, ajudados por cooperadores, podiam visitar
tôdas as casas onde a necessidade era mais premente; de­
viam igualmente providenciar os víveres e assinalar os ca­
sos mais graves nas reuniões periódicas que estavam obri­
gados a realizar entre si. O arcebispo ordenou também que
em tais conselhos estivesse sempre presente um eclesiásti­
co de sua confiança".
Quando a assistência ficou assegurada, surgiu outra
gravíssima questão: quem pagaria as despesas? Os ministros
do rei sustentavam ser dever da cidade, e os decuriões, da
Câmara Régia; no litígio, é evidente, quem pagava o pato
eram os pobres, a quem começou a faltar o necessário; e

1) O autor, a meu ver, -demonstra-se bastante parcial. Longe


de mim querer defender o procedimento do governador em abando­
nar a cidade quando mais necessária era a sua presença. Injuriar,
porém, dêste modo a todo o povo da Espanha por causa de um ho­
mem, não sei se é conforme a lógica e o bom senso cristão ...
A generalização nos conduz muitas vêzes a posições injustificá­
veis ... (N. do T.).

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os cofres do cardeal havia muito tempo estavam vazios. E'
preciso reconhecer que as orações de Carlos eram recebidas
no céu com particular agrado e urgência, pois a salvação
veio donde menos se esperava - do governador.
O fujão tivera que se resignar a retornar a Milão, em
outubro, para discutir no senado certas leis urgentes; che­
gara-lhe também de Madri tremenda repreensão que o
obrigara a regressar imediatamente à capital. Apenas che­
gou ao palácio, o cardeal enviou-lhe uma de suas cartas api­
mentadas: "Agira muito mal abandonando a cidade em tão
dolorosas circunstâncias; pensasse, ao menos agora, nas gra­
ves necessidades da população, para a qual êle - o cardeal
- gastara até o último vintém. Se isso não acontecesse,
aguardasse de Deus os mais graves castigos!"
A missiva foi entregue ao senado por Mons. Sêneca. O
governador empalideceu. Tremeu diante daquele castigo de
Deus que, em plena peste, teria significado coisa não muito
boa. Suspendeu qualquer outra discussão em andamento, e
ordenou que se tratasse logo do financiamento aos necessita­
dos. Compilou-se, em plena sessão um elenco das famílias
mais abastadas para lhes impor um contributo proporcio­
nal; e foram encontradas bem numerosas e ricas, de tal
modo que os trabalhos prosseguiram sem interrupção até
sua total aprovação. Alguém ousou sugerir que também o
nome de Carlos fôsse incluído na lista; de tôdas as partes,
porém, ouviu-se bradar que o cardeal, havia já muito tem­
po, estava gastando tanto que compensava a avareza dos
outros. "Não lhe outorguemos a permissão de dispor dos
fundos da família, pois está pronto a consumir todo o patri­
mônio, para socorrer os pobres e desamparados".
.Por fim, a cidade decidiu custear os gastos; o governa­
dor mostrou-se tão comovido pelas palavras e exortações
do cardeal, que, levando-se pouco tempo depois em procis­
são o Santo Cravo, quis sustentar êle próprio o baldaquim.
"O Santo Cravo, - refere Margarida Yeo - uma das
relíquias mais preciosas da cidade, fôra retirado da cate­
dral e colocado em grande cruz de cristal e prata. As estra­
das apareceram tôdas ornamentadas. Ayamonte, agora que
o perigo da peste era menos alarmante, sustentou o balda­
quim sôbre o cardeal, juntamente com outros senadores e
nobres bem conhecidos. A metrópole silenciosa, exceto pelo

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rumor das preces e rodar dos carros mortuários, assistiu
ainda a uma solene cerimônia quando transportaram a re­
líquia da catedral ao Santo Sepulcro, e vice-versa.
"Milão acordou, naquela manhã, tôda inundada por um
nôvo dilúvio que parecia tudo destruir. A procissão disper­
sar-se-ia necessàriamente ! Não seria possível realizá-la sob
tal chuva torrencial. Não havia dúvidas que o diabo gover­
nava o tempo, como também ninguém desconfiava que os
espanhóis governavam a Lombardia ... Mas depois, aproxi­
mando-se a hora determinada, a chuva cessou e apareceu
resplandecente o sol. O glorioso troféu foi levado entre as
duas alas mudas e devotas da multidão genuflexa.
"Conduzida novamente para a catedral, a Sagrada Lem­
brança da Paixão foi exposta no altar-mor, por quarenta
horas, e mal a procissão acabara de ingressar, as nuvens se
adensaram e caiu um enorme aguaceiro. De hora em hora,
o arcebispo proferia um sermão diante do Santo Cravo;
quando, finalmente, foi recolocado no altar do relicário, le­
vantou-se da multidão, soluçoso murmúrio de adeus; e
aquêles que se encontravam perto de Carlos ouviram-no ex­
clamar: Non dimittam te, nisi benedixeris mihi.

7.
O REI SEM COROA

Avizinhava-se, no entanto, o inverno, e com êle, ape­


sar de a pestilência parecer diminuir de intensidade, tam­
bém o perigo de maior desocupação e de mais acentuada
miséria. Já tivemos ocasião de notar como estivessem qua­
se paralizados os trabalhos; vimos igualmente que comer­
ciantes e empresários, com carradas de desculpas, tinham
licenciado a maior parte dos empregados; os patrões, por
sua vez, demitiram, de um dia para outro, quase todos os
operários.
Agora, após a famosa apresentação das vestes coloridas,
sucederam outras, não muito semelhantes, porém; a mui-

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tidão, ociosa e enredada com tôda a espécie de apertos, não
sabia fazer nada de melhor, que reunir-se para percorrer
as ruas de Milão, urrando contra êste e aquêle senhor; e
se é verdade que, talvez, nada de grave cometesse, não dei­
xa de ser também verdadeiro que concorria, com o vozear
sem sentido e os cortejos desordenados, para a mais grave
confusão. As autoridades que, se existiam, eram somente
para remediar, a seu jeito, o mal feito, deixavam que as
coisas corressem corno quisessem; doutro lado, porém, que
teriam podido fazer? Enviar esquadrões armados? Pior que
pior. Teriam surgido perigosas revoltas; nem se devia esque­
cer que no meio daquela multidão se encontravam infectos
de peste. Melhor deixar que os gravetos fôssern queimados
no fogo que sustentavam ... até que se tratasse somente de
gritos e ameaças.
Certo dia, a população pensou dirigir-se ao arcebispo.
Numerosos grupos partiram dos diversos bairros da esfo­
meada cidade e chegaram à Praça da Sé. Do local ao arce­
bispado, somente dois passos. "Vamos conversar com o ar­
cebispo!" foi o único brado que se ouviu e que produziu nos
presentes alívio e esperança. Carlos foi advertido da vinda
de tôda aquela aglomeração pelo vozear longínquo e cla­
moroso; os familiares precipitaram-se para fechar as portas
e resistir, armados, à turba faminta. O cardeal usufruía -
como tivemos ocasião de notar - de um trôço de soldados,
que se reduzira bastante durante os horrores da peste. Os
sete ou oito restantes desejavam afrontar a golpes de espa­
da o povo, ou, ao menos, formar barreira ao redor do· pre­
lado; mas êste, lembrando não ser com a fôrça e sim com
amor que se vencem os homens, despediu a todos; e somente
com o Padre Jerônimo Santagostino, homem de coragem
grande e de coração maior, aguardou ·a multidão.
O povo, tendo-se ali concentrado, encontrou tôdas as
portas do arcebispado escancaradas e nenhum guarda no
portão; ao invés de irromper tumultuosamente pátio aden­
tro, ingressou devoto e em procissão, cantando as ladainhas.
Quando descortinou o cardeal na soleira da porta, caiu de
joelhos e começou a chorar e a suplicar humildemente.
Carlos teria podido, sem dúvida, dirigir-lhe pequena exor­
tação, convidando-o a voltar para casa; podia ter-lhe dito
que haveria de providenciar, que passasse no dia seguinte,

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e teria sido obedecido. Desta vez, contudo, não usou do estra­
tagema; acenou ao Padre Jerônimo, que trovejou um forte
"Aos pórticos de Santo Estêvão I" Empunhou uma grande
cruz e colocou-se à frente da multidão, qual general à testa
do exército.
Em Santo Estêvão, alojaram-se como puderam, e pas­
sou-se ao alistamento; os mais sãos e robustos foram esco­
lhidos para as incumbências de responsabilidade em postos
diversos; outros ocuparam-se em trabalhos de utilidade pú­
blica; e todos aquêles que não pareceram hábeis aos ofícios
penosos, foram mantidos sob os alpendres até que o cardeal
lhes oferecesse refúgio seguro; e bem cedo também êste
foi descoberto e utilizado.
Tratava-se de grande casario situado na estrada de
Malegano, distante doze quilômetros da cidade; era deno­
minado A Vitória, por ter sido construído por Francisco I
em lembrança da tremenda batalha de 1515 contra os suí­
ços. Pertencia agora ao arcebispo de Milão que, tendo-se
tornado rei dos pobres, doava-o à sua côrte, - como gostava
de repetir. Depois da peste seria deixado, tanto para não
mudar de direção e de estilo, ao Hospital Maior, herdeiro de
todos os seus haveres.
"Aquêles infelizes, - refere Franceschi - rejeitados
por todos, encontraram um ambiente familiar,_ acalorado
pelo amor de Carlos; nunca escasseou o necessário, pois o
cardeal lhes enviou até a própria mobília; e, principalmen­
te, nunca faltou a assistência espiritual; havia, para tanto,
os capuchinhos. Mas, como houvesse_ entre os abrigados tam­
bém os velhacos, um juiz, de acôrdo com as autoridades go­
vernativas, punia tôda e qualquer tentativa de desordem".
Pode-se acreditar que tudo corresse bem naquela ex­
travagante comunidade, tanto mais que o arcebispo punha
sôbre ela tôda a atenção; nem se esquecia de, a intervalos,
aparecer, inesperado hóspede, naquela longínqua província
de seu reino da miséria. E assim, ao som dos terços, dos
cantos, dos sermões e - por que não? - das leves mas
irrevogáveis punições, em pouco mais de um mês o local
tornou-se nada menos que um convento modelar.
Como já temos deixado dito, entre os nobres remanes­
centes - poucos mas bons 1 - acendera-se veemente con­
corrência para ajudar o arcebispo. Não queremos negar
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que havia também certa vontade de distinguir-se e supe­
rar-se mutuamente; mas, sendo emulação boa e proveitosa,
por que não aproveitá-la? E, tratando-se de pessoas que fo­
ram íntimas ao cardeal, antes dos gentis-homens, recorde­
mos o intrépido Frei Jaime, sempre fiel e generoso quando
o fim era o bem do próximo. Tendo contraído a peste, não
obstante os cuidados dos médicos e de Carlos, morreu san­
ta e heroicamente; e foi o único do glorioso esquadrão da
morte. Faleceu no melancólico Natal daquele ano, chora­
do pelo arcebispo, que escreveu: "Invejo-lhe a feliz sorte,
mas vejo que ainda não sou digno do prêmio!"
Logo após o santo religioso, é preciso recordar Litta,
o Conde Erasmo de Adda, os irmãos Cusáni, e principal­
mente o grande amigo do cardeal, Jerônimo Mônti. Tôdas
ilustres figuras daquela nobreza milanesa que escreveu pá­
ginas imortais na história do condado. Certo Conde Gallará­
ti, um dia, regalou a Carlos doze frangos. O arcebispo, po­
rém, enviou-os imediatamente ao convento da Vitória; nem
se esqueceu de advertir o ofertante do sucedido; escreveu­
lhe humilde carta em que pedia escusa por não ter podido
conservar as aves para si, - pois em Milão havia muita
gente que morria de fome! Aliás, sendo tão generoso com
o cardeal que nadava na abundância, por que não enviar
tanto supérfluo ao pobres de Malegnano? E se possuísse
um pouco de prata e objetos preciosos, por que não remetê­
los ao Lazareto?
Domingos Castelláni, decurião da cidade, f ôra encar­
regado de vigiar, com duzentos soldados, as cabanas situa­
das em Porta Romana; narra êle a respeito das visitas de
Carlos aos pobres tugúrios: "Estacava em cada choupana;
informava-se das necessidades, e distribuía dinheiro; cer­
to dia, passando em sua companhia ao lado de um edifício,
vimos pender uma sacola, e lá também pôs umas moedas.
Em seguida perguntou-me quem o habitava; respondi serem
algumas pessoas que haviam conseguido safar-se da peste;
mas como suas vestes tinham sido queimadas por medidas
higiênicas, encontravam-se quase completamente despidas.
Tomou nota em sua caderneta e, antes da noite, chegaram
vestes, ainda que de bonito vermelho ou viola, mas quentes,
que serviram para cobrir os desventurados; com a condi­
ção, porém, de que se procurassem êles de agora em diante
as esmolas e o sustento".
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8.
O ESTADO DE StTIO

No dia 29 de outubro entrara em vigor o decreto que


impunha a quarentena a tôda a cidade. A lei era rigorosís­
sima. Castigava os transgressores até com a pena capital.
Mas quem acreditava nas ordens vindas da Espanha? To­
dos estavam convencidos de sua inutilidade e prontos a
transgredi-las. E, além disso, quais meios se deviam usar
para fazer observar leis drásticas a uma cidade que contava
já 300.000 habitantes? A uma metrópole que era das mais
povoadas da Europa, e tomada pelo paroxismo do terror?
Ao invés, conseguiu-o Carlos. Exigiu dos eclesiásticos a
mais escrupulosa observância do decreto, a não ser que
estivessem munidos de salvo-conduto especial; e com o povo
realizou .paciente e enérgica obra de persuasão.
A cidade tomou o aspecto de imensa reclusão; as auto­
ridades civis e eclesiásticas não sabiam o que fazer para
evitar os fastios que necessàriamente proviriam de tal si­
tuação. O cardeal, por primeiro, tomou as devidas provi­
dências e de modo adequado. Não era necessário vir à igre­
ja para ouvir a missa cotidiana; bastava apresentar-se às
janelas e olhar para a encruzilhada, onde um sa·cerdote ofi­
ciava em altares improvisados, aos pés das famosas "colunas
do cardeal-arcebispo".
Os habitantes desejavam confessar-se? Eis outro sacer­
dote a percorrer as ruas, levando um estrado pequeno e tri­
pode; arrimava-o à porta da casa, permanecendo por fora
o confessor e dentro o penitente. Aos domingos, passava o
celebrante com a Santa Eucaristia, ladeado por um clérigo
e por cortejo de pouquíssimas pessoas. Assim, as janelas
das habitações tornavam-se as tribunas de imensa cate­
dral; e qualquer viela convertia-se em vastíssimo balaústre.
A ilusão de estar em templo interminável não findava
aqui; pois todos os cidadãos transformaram-se, pouco a pou­
co, em monjes de clausura. Sete vêzes ao dia, como também
de noite, ao repicar do sino maior, e com o auxílio de livros
propositadamente escritos e estampados, formavam-se e al­
ternavam dois coros, seguindo a entoação dada por um re-
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ligioso; coros solenes e ordenados que cantavam salmos e
ladainhas; e os ecos perdiam-se ao longo dos caminhos de­
sertos e lúgubres ...
Ao anoitecer, tais funções tornavam-se ainda mais co­
moventes; em tôdas as janelas surgiam pequenas claridades,
e no jôgo de luzes e sombras, entreviam-se, a intervalos,
os semblantes dolorosos dos salmodiantes. Se o clarão não
aparecia, dizia-se: "A peste conseguiu entrar também nes­
ta casa". "Ninguém - narra Tarúgi - podia imaginar que
naquele aposento silencioso repousasse algum são; pois um
restabelecido não devia dormir durante semelhantes ce­
rimônias".
O próprio cardeal, de quando em vez, aparecia em cada
residência para visitar os doentes e informar-se sôbre as
necessidades das respectivas famílias. E Tarúgi, que lhe es­
tava sempre ao lado, deixou-nos o programa semanal das
excursões: "Meu ofício era levar pena e tinteiro para ano­
tar tudo em pequenos cadernos; entrementes, Carlos, fazen­
do descer pelas janelas os pratinhos de madeira destinados
a guardar o trôco, depositava nêles o dinheiro, conforme as
precisões; para tanto, trazia sempre sôbre o peito uma bôlsa
cheia de moedas".
E ai daqueles seus familiares que não tivessem compre­
endido a beleza da cortesia evangélica e não fôssem gene­
rosos! Recompensava-os bem, é verdade, dos serviços pres­
tados e despedia-os cortêsmente; mas não se esquecia tam­
bém de lhes fazer entender a pequenez de sua caridade.
Temos reparado que era cioso da própria dignidade;
diante da caridade, contudo, não havia nobreza que sub­
sistisse. Assim, tôdas as vêzes que encontrava fechada a
porta de alguma residência, fazia-se trazer uma escada e
penetrava pelas janelas.
Nem tolerava que, por receio da peste, não se conferis­
sem o batismo e a crisma. �le mesmo, com suas próprias
mãos, crismava até no Lazareto, e Fornério nos informa que
se viu forçado a fazer de padrinho a mais de dez mil crianças.
Mas até que o arcebispo administrava a confirmação
nos ingressos das moradias ou nas estradas transformadas
em templos, podia passar e ninguém encontrava algo a re­
trucar. Quando, porém, se tratou de penetrar no Lazareto,
topou com a mais renhida resistência por parte de todos os
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seus. "Então o cardeal pretendia mesmo tentar a Deus?
Não lhe bastava arriscar a vida com vigílias e interminá­
veis penitências? Retornava à meia-noite, todo alquebrado
pelas caminhadas, e retomava logo suas ocupações. Restan­
do-lhe ainda alguns minutos de tempo, lia, escrevia e me­
ditava. A qualquer momento a pestilência podia levar um
corpo tão extenuado. E êle queria agora colocar-se nas gar­
ras da morte? Esta já não era santidade, - era loucura,
e da mais incurável.. " Carlos retorquia a todos, como res­
pondeu ao bispo de Tortona, que se preocupava dêle e lhe
dirigia semelhantes censuras:
"Reconheço seu afeto por mim e fico-lhe muito grato;
mas eu poderia repetir-lhe ao ouvido que, em meu lugar,
agiria da mesma forma; basta ter um pouco de zêlo pelas
almas. Nosso ofício de bispos não é o de preceder a todos no
perigos? Não pensemos em tentar a Deus, e sim, em obe­
decer-lhe!" E, sozinho, ingressou nas choupanas do Lazareto.
Não podemos negar aos familiares certa razão; de fato,
também Carlos, um dia, encontrando-se no bairro São João,
diante de numeroso grupo de infectas de peste que deseja­
vam o sacramento da crisma, permaneceu seriamente preo­
cupado sôbre o que fazer; insistindo, porém, os doentes no
pedido, não obstante o parecer contrário de Ludovico Mo­
neta e a pressão dos assistentes que tentavam afastá-lo, tor­
nando-se sempre mais desesperados os brados dos infelizes,
crismou-os todos.
Narra Pedro Giussano que, em outra ocasião, chegou
ao cardeal a notícia de que o cura da igreja de São Rafael,
atingido pela moléstia, se encontrava às portas da morte.
Lembrou-se então de ter prometido solenemente de assistir
a todos os sacerdotes moribundos que houvessem contraído
a enfermidade cuidando dos doentes. Recordava, contudo, e
muito bem, que o tal vigário, tendo sido, certa vez, exortado
pelo arcebispo a administrar os sacramentos, respondera
sêcamente: "Faça-o o senhor, se quiser; eu não sou obriga­
do a tanto!" E agora chegara a sua vez de receber os últi­
mos confortos da religião .
Ao alcançar com seu séquito a casa paroquial do enfêr­
mo, todos tentaram demovê-lo da loucura; Sêneca e Ta­
rúgi empalideceram de horror ao pensar que deviam tam-
240
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A Sagrada
Face
de .Tesus.

O Palácio
Real de
Turim.

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Panorama de Lorelo.

Antes de ingressar definitiva­


mente em sua diocese, Carlos
pediu, em Loreto, a Nossa Se­
nhora que o fortificasse para
11.ão desanintar.

A Virgem de Loreto.

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bém ingressar naquele aposento de morte; mas como opor­
se ao arcebispo, todo tranqüilo, recolhido e sereno?
Um grupo de cavalheiros do Conselho Geral, informados
em tempo, correram a prostrar-se aos pés de Carlos, implo­
rando que não expusesse tão simplesmente a vida. "Que
devo eu fazer, então?" "Mande um sacerdote. Não pensa,
Eminência, no que sucederia se viesse a faltar o senhor mes­
mo agora? E todos os pobres? E todos os confortos espiri­
tuais? Seria a desesperação da cidade. Não se quer preo­
cupar com a própria vida? Cuide, ao menos, do rebanho que
Deus lhe entregou. "
O cardeal não se deixou convencer, e respondeu ainda
mais resolvido: "Enviar um sacerdote? Muito bem. Mas sou
eu diverso de qualquer sacerdote? Não resta dúvida, sou
muito agradecido ao vosso afeto; mas não pensais que assis­
tir um pobre vigário já perto da morte, é dever imprescin­
dível do arcebispo? Como poderia exortar os outros padres
à fortaleza, se eu mesmo, por primeiro, dou exemplo de re­
ceio? E vós, por que confiais tanto em 'mim e tão pouco na
Providência? Se eu morrer? Não temais! Deus vos enviará
um pastor que fará empalidecer a minha lembrança. Dei­
xai-me, portanto, porque quem realmente está morrendo,
não sou eu, mas o cura" E ingressou resoluto.
O pároco, apenas acabou de receber os santos sacra­
mentos, expirou na paz do Senhor. Ninguém apanhou a
moléstia; nem mesmo um sacerdote, vigário de São Paulo,
que, imitando o exemplo de seu cardeal, lavou e vestiu o
cadáver do colega; não somente permaneceu ileso, como con­
seguiu viver robusto por muitos anos, narrando êle próprio
o episódio a Giussano.
A coisa sucedeu um pouco diversa com o pároco de São
Pedro de Camminadella, enfêrmo também; quando soube
que o arcebispo se preparava para levar-lhe a unção dos
enfermos, encorajado também pelos outros, deixou o leito, e
dirigiu-se, como pôde, à igreja. Quando chegou, o cardeal
o repreendeu, obrigando-o a retornar logo para a cama após
ter recebido a Sagrada Hóstia. O fato repetiu-se na manhã
seguinte. Mas, desta vez, Carlos demonstrou-se inflexível;
forçou o moribundo a permanecer acamado; assistiu-o por
muito tempo, não obstante o cheiro insuportável do aposen­
to; e persistiu ao lado do amado sacerdote até vê-lo exalar
o último suspiro.
Vida de S. Carlos - 16 241
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9.
O BOM SAMARITANO

Tudo isso acontecia em Milão, e os episódios são tan­


tos, que seriam preciso consagrar - como, aliás, alguém o fêz
- um livro inteiro sôbre "São Carlos e sua peste". Mas como,
em geral, todos se assemelham e se reduzem ao triunfo
da piedade de Carlos sôbre quaisquer dificuldades que tenta­
vam impedir-lhe o caminho, deixemos a cidade e passemos
ao interior.
Em mais de cem localidades das vizinhanças de Milão,
a peste aparecera violenta e não menos grave; pode-se pen­
sar, então, como quedasse o cardeal por não poder socorrer
todos os habitantes da diocese, que, ademais, não usufruíam
dos meios e organizações que, por fim, conseguira a metró­
pole. Enviou os sacerdotes mais zelosos para ver e melho­
rar a situação, tendo a intenção, apenas tivesse começado a
decrescer a mortalidade, de percorrer a diocese. Alguns ma­
gistrados, certamente demasiado diligentes, insurgiram-se
contra a faculdade, por êle assumida, de dispor de seus
enviados sem o prévio consentimento da autoridade tutôra.
Eram as habituais controvérsias jurisdicionais, os diários
embaraços das leis, tão caros à cúria cavilosa, .delícia dos
cérebros italianos, que não cedem jamais diante do perigo,
contanto que se salve o direito, - aquêle bendito direito que
se maneja quase sempre em defesa de uma parte somente.
Carlos não se deixou intimidar por aquêles rábulas:
"Jamais abdicarei meus direitos sôbre os eclesiásticos;
nisto estou de acôrdo com o senado desde o início da peste,
e sempre comuniquei a minha decisão aos magistrados e aos
médicos. Quero, portanto, deixar bem claro que pertence
a mim decidir quando os sacerdotes devem circular e quan­
do devem segregar-se. Não estou vinculado por disposições
que variam todos os dias por culpa dos próprios legisladores!"
E' mesmo verdade que êstes santos - conforme a mo­
ral de Don Abbondio, que é a de muitos falsos cristãos mo­
dernos - não são em nada cômodos e compreensivos!
E, seguindo sempre o teor de vida habitual, Carlos, cum­
prindo a promessa que fizera em princípios de 1577, quan­
do a pestilência começou a diminuir de intensidade em Mi-

242
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Ião, dirigiu-se pressuroso para as localidades atingidas do
ducado. Por economia de tempo e para simplificar as pre­
cauções contra os perigos de infecções, costumava dormir
vestido, na primeira cadeira ou banco que encontrava. Com
terapêutica tão original, quando a peste ceifava quase dià­
riamente dezenas de vidas em Monza, conseguiu atender e
socorrer a cidade todos os dias.
Naturalmente, - segundo refere Giussano - onde che­
gava, o arcebispo mudava o ritmo de vida, porque acordava
logo a todos, a começar pelo clero. �le mesmo narrava, sor­
rindo e bem-humorado, que topava com sacerdotes extre­
mamente tímidos. . . quando se tratava de assistir os en­
fermos; excitava-os, primeiramente, com quatro palavras
ardentes e, em seguida, tomava-os pela mão e os conduzia
à cabeceira dos moribundos; e demorava-se para ver o que
faziam ... como o coroinha aprendiz admira boquiaberto os
gestos estranhos do celebrante.
Aqui também os episódios são significativos e numero­
sos. Houve alguns, porém, que se gravaram na memória de
quem os viveu, por muito tempo. Certo dia, Carlos encon­
trava-se em Inzago, pequena cidade distante uns vinte qui­
lômetros de Milão. O arcebispo visitava a localidade com
o consueto fervor e caridade, quando, por acaso, deparou
com uma mulher vestida e ornada como para um concurso
de beleza . . . falando em têrmos modernos. O contraste en­
tre a mundanidade dela e o aspecto de morte que havia ao
redor provocou a cólera do cardeal; detendo-a no meio da
estrada, repreendeu-a severamente, e acabou por dizer:
"Infeliz, que não sabes nem se podes viver até amanhã!"
Fato está que a pobre beldade foi realmente encontrada
morta na manhã seguinte em seu leito, sem apresentar, no
corpo, vestígios mefíticos.
Naquele mesmo lugar devia o arcebispo consagrar o
nôvo cemitério, pois o velho já não podia conter todos os
mortos. Os cadáveres haviam sido amontoados confusamen­
te, e o cheiro que dêles emanava era insuportável; todos os
presentes, feridos também pelos raios ardentes do sol, fu­
giram horrorizados. Permaneceu somente o cardeal, de ca­
beça descoberta "aos raios~ ardentes do sol, - diz Giussano
- como se estivesse em igreja florida e repleta de perfumes
odoríferos". E lá ficou até que o derradeiro cadáver fôsse se­
pultado na última fossa.
16• 243
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Todos êsses fatos haviam confirmado a opinião que o
arcebispo não podia de maneira alguma ser tocado pela
peste. Mas, apesar disto, Carlos sabia tomar tôdas as suas
boas cautelas. Evitava, por exemplo, dormir em leitos nos
lugarejos infectos, e continuava a ser, com os familiares,
severíssimo no que se referia às normas higiênicas. Assim,
certa vez, em Viggiú, muito provada pela pestilência, estan­
do para deixar a localidade, notou que um servo suspendera
a sela do cavalo na argola de uma porta; ordenou imediata­
mente ao criado de não se unir à comitiva, e de queimar o
arreio.
Habituara-se, havia bastante tempo, a tomar as refei­
ções enquanto cavalgava, em estradas e praças; era um es­
petáculo verdadeiramente original e justificativo de sua po­
pularidade difusa e profunda, ver como cidadãos e agri­
cultores porfiavam em oferecer-lhe quanto possuíam de me­
lhor. O Bom Romeiro recusava quase tudo e contentava-se
de leite fervido, pão, queijo e alguns ovos; destinava todo
o supérfluo - e para êle o supérfluo não era pouca coisa!
- aos pobres atormentados pela enfermidade e carestia.
Para os servos, porém, aceitava tudo: "Oferecei-lhes com
generosidade; fizeram muito caminho e, não obstante a pes­
te, de apetite, graças a Deus, estão bem!"
Dêste modo, enquanto os cooperadores gozavam de jus­
to descanso, Carlos, após alguns poucos bocadós e alguns
sorvos de leite, tomava as informações mais úteis sôbre a
situação sanitária da localidade, a assistência espiritual, e
sôbre tudo o que se fazia necessário. E quando as coisas já
estavam acomodadas, partia para outros lugares, - Bom
Samaritano a percorrer os caminhos da vida para socorrer
os irmãos necessitados.

Uma vez, porém, também Carlos viu-se forçado a in­


terromper o regime de asceta. Foi quando certo cavalheiro
Pózzi conseguiu levá-lo para a própria casa. O episódio
aconteceu na viagem do cardeal, de Pérego para Olgiate.
O nobre, que muito admirava o santo prelado, ouviu de
casa o rumor de uma comitiva de cavaleiros que se avizinha­
va. Correndo em direção da estrada e reconhecendo de que
se tratava, dirigiu-se para o arcebispo e segurou bem firme
as rédeas do cavalo. Carlos começou logo a gritar:
244
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"Largue, largue, estou suspeito de peste!"
"Mas que peste do Egito! Somente onde não se encontra
Carlos Borromeu existe a peste!"
E para acabar com qualquer discussão, sendo êle de
compleição robusta, agarrou o cardeal pelo busto e, com
muito pouco respeito, mas não com menos entusiasmo, pu­
xou-o sela abaixo. Foi preciso sentar-se todos à mesa para
uma gostosa e inesquecível ceia; e também, com grande dor,
viram-se constrangidos a dormir, naquela noite, nos macios
leitos do palacete de Pérego ...
"Pense como quiser o cardeal, - nota o pobre Sêneca -
mas para nós foi realmente providencial aquêle bom Pózzi.
Eram dez dias que não nos despojávamos!"
Aventura diametralmente oposta sucedeu-lhe em Gal­
larate; pousando na casa paroquial, foi rodeado durante
a noite por um trôço de guardas que lhe deram ordem de
não sair da residência, alegando estar suspeito de peste.
Na manhã seguinte, quando o prefeito chegou, à frente
de tôdas as autoridades locais, para prestar-lhe homena­
gens, o zeloso funcionário sentiu-se dizer, sem muitos ro­
deios, que já não podia entrar na igreja; incorrera na cen­
sura por seqüestro de sacerdote, ou melhor, de bispo, no
exercício de suas funções.

Certo dia, espalhou-se a notícia que o cardeal de Milão


falecera. Fulmineamente e, compreende-se, de peste hor­
rível. Mas também, não era para menos; com tôda a sua ne­
gligência, com aquêle não se importar de nada, com seu
contínuo desafiar a Providência, como se esta tivesse tem­
po para cuidar dêle somente!. . . A nova correu em um áti­
mo para todos os lugares. "Cartas de Bérgamo e de Crema
anunciam que Carlos, cardeal de Santa Praxedes, morreu
de peste em vinte e quatro horas". As manifestações de pe­
sar assumiram aspectos dramáticos. Ouviam-se lamentos
angustiantes: "Faleceu, então, aquêle homem santíssimo,
aquêle ilustre pastor de almas, o lustre do Sagrado Colégio,
o mais escrupuloso amante da disciplina, homem de Deus,
estímulo de todos os bispos-da Itália, jóia da Igreja, salva­
ção de Milão?!"
Tendo-se já resignado à vontade divina, Valério fêz-lhe
celebrar solenes exéquias; o exemplo foi logo seguido por

245
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numerosos bispos. A notícia, apenas chegou a Milão, suscitou
desolação quase infinita; pareceu a todos que para a cidade
tudo houvesse realmente acabado; e que a mais completa
ruína caíra sôbre as casas de cada um, mas, principalmen­
te, nas dos humildes e dos pobres.
Eis, porém, no meio do desespêro '.geral, aparecer, com
a comitiva, Carlos Borromeu em pessoa, vivo e radioso como
sempre; e, pressuroso, foi rezar na catedral. Os sinos bim­
balharam entusiàsticamente como jamais antes houvera
acontecido; tôda a população saiu às ruas, e foi necessário
organizar logo uma espécie de procissão, para fazer ver
como Deus continuava a amar Milão, deixando-lhe o
arcebispo.

Disseram até que a peste era, sim, sempre peste, mas,


pela presença de Carlos, tornava-se suportável e engraçada!
O arcebispo predissera também que, para o Natal, a
moléstia teria desaparecido. Efetivamente, em dezembro,
os casos haviam diminuído muitíssimo, a violência esmore­
cera, e os atingidos melhoraram quase todos. Carlos escre­
via naqueles dias ao bispo de Bréscia: "Foram-me ofere­
cidos muitos remédios contra o mal, mas todos resultaram
ineficazes; os mais célebres, que vieram da Toscana, fize­
ram a pior figura; por isso, convenci-me que Deus é o único
autor da enfermidade e da medicina; pois usa do castigo pa­
ra nos corrigir. E' preciso que apresentemos, como medica­
mento aos males que nos afligem, nossas lágrimas e uma
conduta melhor".
Com tudo isso não creiamos que o arcebispo tivesse a
mentalidade de Dom Ferrante ' que, "atribuíndo a mortali­
dade a uma fatal conjunção de Saturno com Júpiter, não
tomou nenhuma precaução contra a peste; aceitou-a re­
signado, foi para a cama e esperou a morte, como um herói

1) Famoso e excêntrico p,erso.nagem de Os Noivos. Alexandre


Manzoni quis imortalizar neste homem certos tipos superficiais e
ingênuos que pululavam na Idade Média; respigavam o saber aqui
e acolá, associavam-no a crenças populares, amalgamavam tudo com
superstições, e a fusão resultante formava a sua dência. Intrépido
peripatético, Dom Ferrante chegava às mais absurdas conclusões,
sempre fundamentado em raciocínios corretos e sérios. Em nosso
caso o. filósOfo, a princípio negou, escolàsticamente, a existência
da peste. Diante da realidade, porém, encontrou uma única... e
ótima solução - acamar-se e aguardar a morte (N. do T.).

246
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de Metastásio, enfurecido com as estrêlas". Não, Carlos acre­
ditava nas normas higiênicas, aplicava-as a si e aos outros,
mas pensava que era preciso também respeitar certos dita­
mes da higiene moral, mais necessários que os físicos.
Penalizava-o por isso omitir certas funções propiciató­
rias, como a bênção das casas. "O rito da bênção dos domi­
cílios era antigo quanto a Igreja, apesar de ser desde muito
tempo descuidado, principalmente pela indolência do cle­
ro; mas agora tornava-se muito oportuno; também porque
era combatido pelos hereges, excomungados e usurários.
Apenas a peste tivesse desaparecido, teria recomeçado êle
mesmo o belo costume, com tôda a pompa possível".
Quando apareceu a primavera, a moléstia diminuiu con­
sideràvelmente; podia-se dizer que acabara seu curso exe­
crando. O cardeal deixou então o arcebispado em grandio­
so aparato, o que foi, para os habitantes, como se tivesse
aparecido nova e bela estação. "Aos milaneses não parece
verdade poder vê-lo assim, a cavalo, vestido pontificalmen­
te e circundado por cortejo tão fastoso, êle que por tantos
meses fôra visto passar a tôda hora, modesto no traje, triste
no semblante e fraco de saúde. A peste findara realmente
e era preciso agradecer a Deus!" Aquela sua saída era pre­
núncio do fim do atroz pesadelo.
Finalmente veio a tão suspirada comunicação oficial
que a pestilência havia por completo desaparecido. Mas,
para que o povo não perdesse a cabeça de alegria, Carlos,
infatigável como sempre, celebrou por três dias e com três
procissões ao dia, funções de agradecimento. E tanta foi
a acorrência da multidão a essas ações de piedade, tão gran­
de o unânime entusiasmo por sua pessoa, que pouco faltou
para, na última procissão do terceiro dia, não ser arrastado
pelo ímpeto popular. A êsse povo o cardeal falou calmo e
sereno:
"Foi, amados filhos, a grande misericórdia de Deus.
Êle feriu e curou, flagelou e consolou, pôs mão à vara da
disciplina, mas ofereceu o bastão do apoio e do amparo.
Deo gratias, meus filhos!"
Neste ponto não nos resta senão subscrever o que 01-
trocchi deixou escrito: ''O' incrível homem, jamais abati­
do pelas fadigas, nem vencido pela morte!" O vir ineffabilis,
nec labore victus, nec morte vincen'dus!"

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10.
A PREPARAÇÃO DO SUCESSOR

O bispo de Famagosta, enviado pelo Papa em visita à


diocese de Milão em 1576, devera interromper a missão
ao sobrevir a peste; retomou-a logo após, concluindo-a no
altar-mor da catedral. E pôde afirmar que "em tôda a par­
te encontrara disciplina e ordem perfeita; e o que ainda não
era íntegro, sê-lo-ia em breve". Dez anos de duras labutas
para Carlos, haviam transformado completamente o estado
deplorável em que encontrara a diocese. E' que o cardeal
havia passado através da tempestade da pestilência em ma­
neira mais que louvável, também se, respondendo ao hós­
pede que partia, dissesse : "Trabalhamos a noite tôda e nada
conseguiinos; confiados, porém, em sua palavra, lançare­
mos novamente as rêdes!"
A figura do Àrcebispo Borromeu antes da peste, fô:ra
a de rígido reformador e intransigente pastor à testa de ou­
tros pastôres, de quem pretendia a mais rigorosa observân­
cia dos deveres que impusera a si mesmo como norma de
vida. Sabe-se com qual implacabilidade perseguia todos
aquêles que pecavam por negligência e imoralidade. Consi­
dere-se que vinte dos noventa conventos fe'mininos da dio­
cese, viram suas portas fechadas por motivo de pouca ho­
nestidade; e sôbre outros trinta, pelo menos, foi preciso
exercer por longo tempo atenta vigilância, que produziu,
porém, frutos excelentes.
A mania da publicidade trouxera consigo as mais de­
ploráveis depravações!
A figura do cardeal era a de intrépido combatente em
prol dos direitos da Igreja, direitos que todos deviam respei­
tar e observar; e êle, por primeiro, cumpria os próprios de­
veres escrupulosa e ininterruptamente. Seu primo, o Cardeal
Frederico, resumiu o trabalho e a ação de Carlos nestas pa­
lavras: "Era um bispo que vivia de acôrdo com a própria
missão e dignidade!"
A peste apresentara ao povo de Milão o outro aspecto
de Carlos. "Envolvido em gasta e rôta capa de lã, - escreve
Margarida Yeo - percorrendo a pé as ruas da capital, no
verão em meio do pó abrasador, e no inverno por entre a

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neve e o gêlo, com os pés a sangrar, cheios de bôlhas, cica­
trizes e frieiras, levava nos braços meninos retirados do
regaço de mães mortas e procurava-lhes alimento e asilo;
agarrava-se às janelas das casas visitadas pela enfermida�
de, para auxiliar e confortar os doentes e moribundos; admi­
nistrava os sacramentos a criaturas repletas de pústulas e
infetadas pelo contágio; consagrou um cemitério abarrota­
do de cadáveres em putrefação; gastou, enfim, tôdas as ener­
gias físicas e espirituais a serviço dos outros. Assim Carlos
Borromeu apareceu a seu rebanho, e assim permaneceu,
relíquia preciosa, no coração e no pensamento de seus
descendentes".
Sua vida, contudo, exemplo de improvisas e dramáti­
cas alterações de fortuna, não foi, após a peste e depois de
ter obtido tão unânime ardor de aplausos, tão fácil como se
poderia esperar. Ter-se-ia podido imaginar que a onda de
popularidade o tivesse tornado incólume de surprêsas de­
sagradáveis e dolorosas. Ao invés, nada disso aconteceu.
Ayamonte regressara a Milão. E sob a pressão de Car­
los, cumprira, em parte, seus deveres de chefe da adminis­
tração civil. Como sinal de renovada amizade com o arce­
bispo, chegara a levar o baldaquim na procissão do Santo
Cravo. Apenas, porém, a cidade ficou livre da peste e re­
tornaram os usos interrompidos e as manifestações do poder
público, o conde-duque, com incrível misto de estupidez e
grosseria, somente admissível em um governador espanhol,
falou ao cardeal: "É-me muito doloroso ver como todos vos
amam! Vós sois aqui adorado, enquanto eu, ministro do so­
berano mais potente do mundo, sou apenas tolerado!"
A rivalidade entre a autoridade civil e a religiosa, con­
servava-se como fogo sob tépidas cinzas. Era costume que
o governador e seu séquito assistissem às funções sob um
baldaquim, perto dos degraus do altar-mor da catedral,
em meio ao clero. O grosso, pomposo e desproporcionado
pálio, demonstração da importância do governador, - repre­
sentante do soberano mais poderoso do mundo... - esta­
va situado na passagem dos celebrantes, e era de considerá­
vel impecilho.
Certa vez, o governador, tendo chegado um pouco tar­
de, ocupou, com dois de seus oficiais, os assentos reserva­
dos aos sacerdotes. Em vista disto, o cardeal publicou um
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decreto, vetando aos leigos de sentar no côro entre o clero;
fêz também retirar o baldaquim e o colocou à direita da
nave. Ayamonte empinou-se, e desertou de tôdas as funções
até a festa patronal de 8 de setembro, quando entrou na igre­
ja somente um instante, nas vésperas para conseguir as
indulgências.
Como conseqüência de tudo isso, originou-se. um perío­
do de frieza mais que hostil por parte do conde-duque, que
chegou a solicitar do Rei Filipe a substituição do cardeal.
Quando foi advertido dessas traJI1óias, o arcebispo respon­
deu: "Não esperava outra coisa!" Entrementes, escreveu a
Roma: "Se o rei fôsse informado dos problemas da cidade
por gente imparcial, estou convencido que suas idéias se­
riam muito diferentes". E em outra feita exclamava: "Já
tenho grande experiência do modo como, aqui e em Roma,
os ministros espanhóis cuidam dos afazeres. E' muito di­
verso do ânimo cândido e sincero do rei que servem!"
Se é verdade que o monarca não chegou a requerer a
substituição de Carlos, - coisa que o Papa não teria con­
firmado - não deixou, contudo, de causar aborrecimentos
ao arcebispo, em mais de uma ocasião. Ordenou a restitui­
ção da fortaleza de Arona, comandada pelo Conde Renato
Borromeu, irmão de Frederico, - o jovem primo que estu­
dava filosofia e teologia no colégio fundado pelo arcebispo.
Frederico deixou muitas recordações a respeito do gran­
de afim. Nascido em 1564, era ainda rapazinho quando, pela
primeira vez, foi conduzido a visitar o arcebispo de Milão,
pouco tempo antes da eclosão da peste. O preceptor que o
acompanhava, talvez para dar-se importância aos olhos de
Carlos, sendo interrogado sôbre o grau de maturidade do
menino nos estudos, respondeu que "seu aluno carecia de
dotes naturais e de inteligência; e era lento no aprender".
"Como eu, em seus anos!" respondeu logo o arcebispo.
"A seguir, - continua o Cardeal Frederico - olhando-me
demoradamente no semblante, prosseguiu: "Não sou da mes­
ma opinião; parece-me que a configuração de sua cabeça
prometa muito mais". E fitando-o novamente, concluiu:
"Seus delineamentos são exatamente semelhantes àqueles
de meu pai, que não era em nada ignorante!"
"Carlos, que ·previra tão depressa os sinais da futura
grandeza do tímido rapazola, - escreve um biógrafo do
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sucessor de Carlos na sé milanesa - demonstrou-se pai
carinhoso com êle; aconselhou a mãe, que era viúva, a en­
viá-lo à universidade de Bolonha e, em seguida, à de Pavia;
não lhe deixou faltar dinheiro e admoestações, no desejo de
combater a índole apaixonada, própria do pequeno . . . Na
verdade, Frederico era dotado de caráter suave, chegara
a ser bom cavaleiro, como o próprio Carlos, esperto jogador
de péla, ágil esgrimista, de grande inteligência, enamorado
pela natureza - terra, céu, estrêlas, - e tinha sempre sô­
hre a mesa um vaso de flôres, que o ajudava a estudar. Gran­
de privilégio foi para Frederico ter os paternos conselhos de
Carlos. E para Carlos, constituía profunda e celeste satis­
fação guiar o jovem primo através das sendas do sacerdócio".

11.
COM OS GRANDES DO l\lUNDO

Mal cessou a peste de espalhar a morte e o terror en­


tre a multidão, realizou-se a já mencionada romaria a Tu­
rim para adorar a Santa Face do Redentor. Importante
evento para a diocese milanesa foi também a fundação dos
Oblatos de Santo Ambrósio - hoje de São Carlos, - ins­
tituição de sacerdotes regulares reunidos em comunidade,
semelhante ao Oratório de São Filipe Néri. A nova congre­
gação encontrou reservas e oposições na mente do Pontífice
que, primeiramente, recusou o pedido de Carlos. "Quantas
Ordens existem em Milão?" perguntou; e ouvindo o elenco,
exclamou: "Deveriam ser bem suficientes, sem precisar
criar outras!"
Por fim, ainda que de má vontade, foi arrancado o
consentimento. No dia )6 de agôsto de 1578, o arcebispo con­
cretizou a instituição, segundo os ditames canônicos dos Obla­
tos de Santo Ambrósio: "O escopo principal da ordem
falou o cardeal aos primeiros sacerdotes da sociedade -
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será, depois de uma prova necessária, emitir o voto de viver
somente para o serviço do rito ambrosiano".

No entanto, sua fama transpusera os confins da Itália,


e de muitos países da Europa chegavam-lhe pedidos de con­
selhos e de preces.
Em Portugal, quando morreu o Rei Dom Sebastião, o
cetro passara ao tio Henrique, cardeal e sacerdote. Surgiu
bem cedo uma grave questão. Podia o nôvo monarca, por
razões de estado, contrair matrimônio? Henrique escreveu
a Carlos antes de pedir licença ao pontífice. O arcebispo de
Milão respondeu, sem muitos preâmbulos, que, antes de mais
nada, dada a sua idade avançada,• casar-se seria prejuízo
para sua saúde. E acrescentou: "A dispensa foi concedida
algumas vêzes a monjes e a diáconos; a sacerdotes, talvez,
nunca; se algum caso houve, foi de grande dano para a
disciplina. Somente o Papa, a quem deverá dirigir-se, po­
derá dar uma palavra autorizada; mas êle, paternalmente,
o dissuade". E esta sua idéia, expressa ao Papa Gregório,
contribuiu não pouco para a negativa pontifícia.
A dignidade eclesiástica não se podia comparar nem de
longe com a civil. Era o que Carlos lembrava quando se apre­
sentava a ocasião. Recordemos seu ingressô em Milão. O
governador seguia-o humilde e à certa distância. Certo dia,
Carlos envia um precioso crucifixo ao rei da Polônia, re­
comendando-lhe: "Vossa Majestade tenha sempre fixos os
olhos sôbre quem é o comandante da guerra, o Senhor da
paz, nosso refúgio nas adversidades e nossa fôrça na pros­
peridade; havereis de vencer com êste sinal, e é a seus pés
que devereis colocar os despojos dos iEimigos e os troféus
da vitória". Tudo isso para que a recente vitória contra os
russos, não fizesse perder a cabeça ao rei da Polônia.
Do tenebroso cárcere onde a aprisionara a pérfida Isa­
bel, Maria Stuart faz-lhe chegar a voz dolorida. E eis a bela
resposta que recebe: "Também eu sei o que seja sofrer, e
posso supor a dor da rainha; mas Deus sói mitigar os gol­
pes da desventura com a inegável potência e suavidade de
sua graça. Certamente a rainha, apesar de limitada pelas
paredes angustiosas da ·prisão, pode alargar o coração aos
espaços infindos da caridade e alegrar-se naquela liberda-

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de de espírito que Cristo nos concedeu e que nenhuma des­
graça nos poderá arrebatar".

Mas nestes anos que precedem a abertura, de par em


par, das portas do céu à sua excelsa santidade, Carlos pensa
dedicar-se sempre mais e inteiramente à pura ascese. Quan­
do veio a saber que o cardeal português Bartolomeu dos
Mártires deixara o arcebispado de Braga para retirar-se à
vida contemplativa, sente verdadeira inveja do colega. "Che­
gou-me ao conhecimento que depusestes o pêso da diocese
- escreve - e vos retirastes para um convento de vossa
Ordem a fim de vos preparar à morte. Eu vos invejo. Pen­
so na segurança de vos sentir inteiramente ocupado no que
Cristo chama "a única coisa necessária"; somente me é de
consôlo, em meio às labutas pastorais, o pensamento que o
Salvador desceu do céu e sofreu tantos dissabores e até a
morte para reencontrar a centésima ovelha".
Narra também Carlos Bascapé que o cardeal, certa vez,
se encontrava na casa paroquial em meios aos clérigos que
se exercitavam sôbre o evangelho; voltando-se para seu fu­
turo biógrafo, falou-lhe: "Como gostaria, se estivesse livre,
de pôr-me sob a obediência de qualquer bispo zeloso, que
me enviasse aqui e acolá, sem domicílio fixo e sem esti­
pêndio, para ajudar as almas, sem olhar a incômodos e
fadigas".
Ei-lo, nesses casos, despojar-se da própria dignidade e
tornar-se humilde com os humildes. Foi o que aconteceu
em Valsassina. Encontrou, pelo caminho, um rapazinho que
não sabia falar, mas que começou a saudá-lo festivamente.
Carlos aproximou-se do menino, abraçou-o e caminharam
lado a lado por muito tempo. Outra vez, chegou a um luga­
rejo com pouquíssima comitiva e pobremente vestido; en­
controu uma procissão a desfilar pela única via. Colocou-se
então bem no fim, a cantar as ladainhas com aquêles cam­
poneses que rezavam sem nem sequer compreender o que
diziam e errando cômicamente o latim ...
Escreveu alguém, a seu respeito, que gostava de passar
por pobre. E' o que se deve deduzir do fato narrado por
Dom Fontana, bispo de Ferrara.
Achava-se Carlos em Maccagno Superiore, em visita
pastoral; atormentava-o, havia já vários dias, terrível e

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pertinaz febre. Como sempre, não deu importância ao in­
cômodo, que aumentou a tal ponto de obrigá-lo a se aca­
mar. A casa paroquial, contudo, era realmente inabitável, e
foi forçoso aceitar o pobre leito de um camponês, - arma­
ção que se mantinha em equilíbrio sôbre algumas estacas.
Ali o encontrou Dom Fontana quando lhe foi ao encontro;
vendo seu cardeal abrasado pela febre e tão pessimamente
acomodado, queixou-se amargamente com o cura do lugar.
E teve do próprio arcebispo uma resposta que não se esp.�­
rava: "Fui eu mesmo a escolher tal cama, pois Jesus, na
cruz, estava muito pior, enquanto eu repouso otimamente
neste estábulo entre uma vaca e um burrinho. E pensai
que, além do resto, estou bem longe de ser o Menino Jesus
e vós um dos Reis Magos!. " E riu gostosamente sob a fe­
hre que lhe martelava doidamente a cabeça.
E como reagia êste grande santo, êste prelado tão zelo­
so de seus privilégios, diante dos potentes, quando sua pes­
soa era ofendida? Valha o seguinte episódio por todos.
Havia em Milão certo vigário rebelde a tôda e qualquer
norma disciplinar, o qual já merecera diversas repreensões
do cardeal por sua atitude estouvada e revolucionária.
Fôra-lhe proibido, no dia de festa patronal, preparar um
suculento banquete na casa paroquial. Cansado e abor­
recido ao extremo pelas contínuas censuras, respondeu ao
arcebispo dum modo talvez não muito delicado:. . Convi­
dou os numerosos amigos para urna hospedaria do bairro,
onde, depois de ter comido bem e bebido melhor, começa­
ram a ridicularizar o arcebispo, prodigalizando-lhe ditos
picantes e zombando dêle em meio a grandes risadas, por
todos os seus ares de beato, e pela sua ostentada humildade,
que pretendia mudar a face da terra.
A coisa que devia ficar secreta, correu ràpidamente por
tôda a cidade e chegou aos ouvidos de Carlos. �ste afligiu­
se não pouco pela péssima figura feita pelo sacerdote; mas
não fêz aceno algum às ofensas que lhe tinham sido feitas por
aquêles grosseiros e vis comilões.
A admoestação movida ao pároco com voz paterna e
sem nunca levantar o tom, foi de tal eficácia que o infeliz
caiu amargamente arrependido aos pés de Carlos, invocan­
do misericórdia e justo castigo. A primeira constituiu num
beijo fraterno, e o segundo foi a promessa de agir melhor
para o futuro.
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12.
AVENTURAS TAMBÉM NÃO FALTARAM ...

Por seu grande desejo de solidão, fizera edificar uma


espécie de pequeno oratório exclusivamente para si, sob
o teto do arcebispado; ao lado, construíra minúscula cela
a fim de não perceber os rumôres. E ali recolhia-se em me­
ditação e oração, sempre que pudesse.
Certo dia, Speciano repreendeu-o por não ter recebido
um senhor de Bréscia, que viera adrede a Milão para rece­
ber dêle algum conselho. "Tens razão - respondeu Carlos
- em escrever que o acesso ao bispo deve ser franqueado
a todos. Pois é obrigação do pastor estar sempre pronto a
ouvir as necessidades alheias e apresentar o remédio ade­
quado. Não se deve, porém, impor ao bispo um horário tão
rigoroso que não lhe seja mais possível recolher-se com
um pouco de tranqüilidade para pensar na própria alma"
Esta contemplação não o abandonava nunca, nem mes­
mo durante as cavalgadas em visita pastoral.
Dirigia-se, certa vez, para Cassano de Adda, montado
a cavalo; e mergulhou tanto na meditação, que esqueceu
as rédeas, e o pobre animal tombou fragorosamente no
chão. A quem acorreu para o socorrer, o cardeal, rindo, co­
mentou que nem notara a queda, pois permanecera ainda
sentado. . . e, sendo dois os caídos, podiam consolar-se
mutuamente ...
Doutra feita, na localidade de Barlassina, caíram em
uma fossa êle e a mula. Os familiares perceberam o acon­
tecido sómente muito tempo depois. Quando, finalmente,
foi encontrado e retirado da cova, lamentou-se que a queda
o desgostara um pouco, pois o obrigara a interromper o
têrço . .. E depois, galopando como se nada houvesse acon­
tecido, sentiu-se feliz por poder continuar a oração ...
Sem contar o incidente de Désio, no qual Carlos, caído
debaixo do animal, estava prestes a ser sufocado e os fami­
liares já tinham decidido acabar com o burrinho; o cardeal,
porém, insistiu para que tivessem paciência e, com palavras
doces e ternas, incitou a cavalgadura, que conseguiu enfim
libertar-se e reerguer-se.

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:tsse pastor de um rebanho freqüentes v�zes rebelde, re­
passava sempre de doçura e compaixão os seus colóquios;
também se nas audiências que concedia, algumas vêzes os
interlocutores fôssem tão violentos e insultantes, a ponto de­
Giussano confessar que os teria pôsto no ôlho da rua com
muito gôsto. . . Em duas ocasiões somente, diz Oltrocchi, Car­
los perdeu a paciência nos diálogos havidos com os dioce-­
sanos. A primeira vez foi quando, numa viagem para Roma,
ao atravessar o rio, ouviu de certo barqueiro as mais ter­
ríveis blasfêmias e imprecações: ":tste malvado - excla­
mou justamente irritado - mereceria que lhe cortassem a lín­
gua!" Mas quando alguém que o acompanhava estava para
pôr em prática, de alguma maneira, as palavras, o primeiro
a opor-se, foi precisamente o cardeal.
O outro fato ocorreu por ocasião do famoso decreto
que vetava aos sacerdotes o uso de barbas longas e apara­
tosas. Estando todo o cabido metropolitano reunido, o car­
deal notou que um cônego tinha uma bela e respeitável
barba. Ante suas observações, o repreendido retrucou,
arrogante, que tinha vergonha de barbear-se pois, sem bar­
ba, assemelhar-se-ia a um barqueiro. "Sim, mas um bar­
queiro santo, enquanto sua santidade é ainda muito discutí­
vel!" respondeu imediatamente Carlos.
Homem culto como era, não lhe carecia o sal da saga­
cidade pronta e segura. Incitara, em outra oportunidade, em
Mesolcino, a todos os homens de boa vontade a ajudá-lo
para restabelecer a disciplina na região. Apresentou-se-lhe
um indivíduo que, sob muita prosopopéia, ocultava colos­
sal estupidez. O cardeal ouviu pacientemente a oferta, e
vendo de quem se tratava, respondeu-lhe bonachão e sor­
ridente: "Tenho um conceito demasiado elevado a seu res­
peito, para empregá-lo em afazer de tão pouca importância.
Eu desejo homens de valor discreto, e não conspícuo; por­
que daríamos demais glória ao demônio, se lhe puséssemos
diante homens valorosos como o senhor ..."
"Mas o mais cômico, - escreveu Oltrocchi - foi o fato
sucedido a seu bravo Galensino, liturgista insigne, mas de
língua afiada. Um dia, decidido a burlar o regulamento da
casa, preparou no próprio aposento um banquete requinta­
do. No melhor da festa, porém, ao pôr-se à mesa, o cardeal,
informado já de tudo, manda-o chamar e o entretém demo-

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radamente sôbre uma questão, provàvelmente de liturgia;
enquanto isso, em absoluto silêncio, alguns criados se en­
carregam de limpar a mesa, e levam todo aquêle bem de
Deus a uns mosteiros pobres dos arredores. Quando Galen­
sino retornou ao quarto, encontrou a mesa despojada de tu­
do - até da toalha! - e sôbre ela, um simples pedaço de
pão e um jarro de água. Compreendeu então a trapaça em
que caíra, e começou a vomitar cobras e lagartos contra o
cardeal; sem notar que êste, espiando pela janela frontei­
riça, estava gozando a cena e recolhendo todo aquêle ra­
malhete de injúrias com o mais belo sorriso do mundo, e
aplaudindo às palavras: "Sovina, tratante, mal-educado!"
Como bravos diplomatas, contudo, ambos colocaram a brin­
cadeira entre as lembranças e não mencionaram mais o
acontecido".
Apesar de tantos episódios algo originais, a figura do
cardeal não esmorecia nunca! Porque, no fundo, era verda­
deiramente um príncipe.
"Nós estamos colocados - escreve ao Cardeal Tagliavia
-- na presença de todo o mundo, revestidos de hábitos magni­
ficentes e ornados por altíssima dignidade, para que o nosso
modo de vida, que não pode permanecer oculto, seja um es­
pelho de virtude para todos".
"Por isso sua pessoa se transfigura quando resplandece
na majestade da púrpura - assegura Franceschi - e as
multidões lhe percebem a fascinação. Já não parece êle, o
pobre peregrino, emagrecido e extenuado pelas penitências
e lidas, que não recusa para abrigo as mais pobres choupa­
nas das montanhas, e divide com os humildes o pão prêto
e os últimos tostões; assemelha-se a uma criatura do céu
quando preside a um concílio de bispos e de sacerdotes, ou
celebra uma cerimônia pontifical".
Pode-se pensar, talvez, que para alguém habituado a
viver sempre em tão altas esferas, fôsse coisa fácil cair em
enganos ou trapaças. Mas acontecia precisamente o contrá­
rio! Um dia, em Roma, Speciano desejava pregar-lhe uma
peça, - é claro - bastante inocente: "Seria preciso com­
prar um belíssimo quadro- artístico, de argumento sacro e
composto por célebre autor". Carlos, porém, esperto, sabe
que a obra artística é do próprio Speciano que a pretende
vender a preço elevado para satisfazer às exigências fami-
Vida de S. Carlos - 17 257
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liares, e responde: "Se fôr como presente, aceito-o; caso con­
trário, gastar dinheiro em coisas não necessárias, seria rou­
bá-lo aos pobres!"
Mais tarde, o mesmo Speciano, que devia encontrar-se
em condições pecuniárias não muito flóridas, - sempre
por causa dos sobrinhos 1 - pergunta a Carlos: "Não se­
ria melhor que, sendo seu procurador, o cardeal me. esta­
belecesse um estipêndio fixo?" E' preciso saber que o Arce­
bispo Borromeu mantinha, sim, todos os familiares e mem­
bros de seu serviço, mas lhes dava sómente gratificações de
tanto em tanto. "Parece-me um compromisso demasiado gra­
ve - respondeu - dar um salário estável para trabalhos
que não o são ... "
Avareza? Não, pois quando alguma tarefa era levada
a têrmo com esmêro, o cardeal, além da compensação pe­
los gastos, regalava com generosidade principesca a tal pon­
to de deixar a todos de bôca aberta. E nesse homem que
parecia sempre arrebatado ao quinto céu, - habitante das
nuvens 1 - existia um senso prático e uma presença de es­
pírito nas coisas temporais, que nos deixam maravilhados.
O Cardeal Gámbara, em cuja casa Carlos se hospedara
por dois dias ao regressar da viagem a Roma em 1580, pe­
diu-lhe o adiamento do pagamento de uma pensão à cúria
milanesa, apresentando como desculpa que o granizo lhe
devastara algumas possessões.
"Fazem-me pouca impressão tais danos, - respondeu
gracejando o arcebispo de Milão; basta vender algum de
seus magníficos tapêtes ou algo de sua baixela para pagar
tôda a dívida". E prosseguindo no mesmo tom alegre, es­
crevia-lhe mais tarde: "Sua Eminência sabe quanto amor
lhe dedico e como desejaria que partilhasse de tudo o que
possuo. Oxalá eu também pudesse fazer parte do que lhe
pertence I Se tal acontecesse, faria calar imediatamente tô­
das aquelas estupendas fontes de sua residência de Bagnara,
e poria freio a tantas despesas, distribuindo o dinheiro
aos pobres ... "

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13.
OS SANTOS SÃO SEMPRE INSUPORTAVEIS...

Quando o Cardeal Borromeu ouvia falar de contratos e


negócios, sentia calafrios, principalmente em se tratando de
aumentos do patrimônio. Oltrocchi refere que seu adminis­
trador, por ter-lhe proposto aquisições de terras para a
cúria arquiepiscopal, e que julgava ótimo negócio, viu che­
gar uma carta tal que, pela grande dor sentida, morreu
pouco tempo depois. A parte o exagêro do biógrafo, a carta
que transcreveremos era realmente forte; mas aquêles ajus­
tes haviam suscitado tais recriminações, de fazer passar o
arcebispo por usurário e desejoso unicamente de acumu­
lar riquezas.
A missiva. . . homicida dizia simplesmente: "Ter-se-ia
certamente servido melhor aos interêsses do benefício, sus­
pender antes que concluir aquelas bonitas negociações! E
não vos deveis lamentar se agora todos zombam de vós;
porque pelo menos os homens honestos terão um exemplo
diante de si. Com êste azarado incidente, conseguimos fi­
nalmente livrar-nos das preocupações materiais que nos
prendiam a uma sórdida avareza, mais suja que a lama!
Nem me apraz a desculpa de melhorar o patrimônio ecle­
siástico; temos a obrigação de conservá-lo, mas não deve­
mos prejudicar nossa alma para aumentá-lo".
A carta era audaciosa, mas suficiente para matar um
homem. . . é duvidoso! Crivélli - tal o nome do infeliz
administrador - era velho e sofria de arteriosclerose, e
morreu de acidente, freqüente nesta moléstia. Apenas Car­
los recebeu a notícia do desenlace, com a autorização do
Pontífice, decidiu que retornassem aos vendedores todos os
bens que ainda não haviam sido pagos, e que se compen­
sassem generosamente com outros terrenos do arcebispo
aquêles que já o tinham sido.
A do dinheiro era para êle a preocupação menor. Um
dia, durante sua ausência, o arcebispado foi visitado pelos
amigos do alheio. Levaram o pouco que, após a peste, res­
tava; o pior, porém, foi que assaltaram a carteira de um
inglês, hóspede do palácio. Ao referir o fato, o vigário-ge­
ral manifestava tal desalento e agitação. . . póstuma, que
17°
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fàcilmente se percebia provir a inquietação mais de seus
vinténs em perigo que pelo dinheiro do inglês.
"Sinto muito pelo que aconteceu ao inglês e o indeni­
zarei, - respondeu o cardeal; mas não é para se admirar
que os ladrões tenham aproveitado de minha ausência; sa­
bem que eu não tenho moedas escondidas ... Cuida, por­
tanto, muito do teu dinheiro. . . pois se não caíste de:<:i�a vez,
quem sabe da próxima. . . Se o distribuísses aos pobres,
quantas preocupações a menos! ... "
Os contrastes com as autoridades haviam-lhe amargu­
rado todo os dias vividos na diocese milanesa. Ayamonte não
se eansava de lhe procurar aborrecimentos e, sobretudo,
quando se lhe apresentava a oportunidade, ofensas. O go­
vernador começara a proteger um dos jesuítas de São Fi­
délis, Padre Mazzarino, - tio do famoso cardeal e diplomata
Mazzarino - jovem siciliano, com tôda a desenfreada pai­
xão de sua raça, pregador eloqüente e dramático. Fôra in­
cumbido de pregar na capela privada do palácio do govêr­
no durante a quaresma de 1579.
O jovem jesuíta, com menos bom senso que idade, co­
nhecia muito bem o auditório, como também sabia de deixar­
se levar pela efusão das palavras, - era a época em que o
marinismo estava na moda. Assim, pouco a pouco, com o
desenrolar-se da quaresma, - segundo refere- o Cardeal
Frederico - suas práticas assumiram tons violentos e, das
insinuações veladas, chegou à denúncia aberta e zombetei­
ra contra os sacerdotes que chamavam a atenção de todos
andando pela cidade descalços e vestidos de saco. Ayamonte
aprovava tudo isso entusiàsticamente e prometeu interessar­
se para fazer cessar o escândalo.
Alguém referiu o fato ao cardeal, que não proferiu a
mínima queixa, mas continuou imperturbável a despachar
audiências, como se a coisa não tivesse nenhuma importân­
cia para êle; em outubro de 1579, porém, vetou a pregação
ao Padre Mazzarino, que foi chamado para Roma pelo
Geral dos Jesuítas, Padre Mercurian, sob a acusação de he­
resia. Foi, sim, absolvido, mas também confirmou-se a proi­
bição de pregar, proibição que sómente ficou revogada gra-•
ças à intervenção de Carlos que, encontrando-se na Cidade
Eterna em sua última visita, intercedeu por êle.
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E quanto à interferência do governador "em assuntos
que não lhe competiam - a conduta e o hábito dos eclesiás­
ticos -" foi advertido de nada fazer; caso contrário, teria
incorrido na heresia e, por conseguinte, na excomunhão, que
o cardeal não teria hesitado em aplicar ao primeiro ecle­
siástico que houvesse prestado obediência, em tal matéria,
à autoridade civil.
A Ayamonte nada restou senão engolir também esta;
e as relações com o arcebispo tornaram-se ainda piores.
Conseguiu até induzir os senadores a enviar embaixadores
a Roma com queixas derramadas em vinte e um capítulos
que por fim, se reduziram a sete.
Entre êles, salientavam-se alguns bastante originais: "O
cardeal proibira jogos públicos aos domingos e em outras
festas de preceito; fechara as portas das naves laterais da
catedral; erguera barreiras nas igrejas para que homens e
mulheres estivessem separados entre si".
Legados e embaixadores multiplicaram-se. Filipe II en­
viou a Roma, para indagações, o filho de César Borgia, mar­
quês de Alcanísio, e surgiu nôvo partido adverso ao cardeal
de Milão. Também aquêles que até agora o haviam tolerado,
convenceram-se que fôra excessivo nas reformas, ou que,
pelo menos, estas dever-se-iam efetuar gradualmente; como
se, para cortar algum abscesso infecto, o bom cirurgião ti­
vesse que proceder por pequenos cortes, e não ferir em
profundidade e sem demasiada atenção aos gritos do en­
fêrmo ! Muitos chegaram a ponto de assegurar que Carlos
transformara em obrigação o que devia ser unicamente
conselho de perfeição. Nós, contudo, sabemos que primeira­
mente êle advertia e aconselhava por longo tempo; mas
quando via que as palavras nada conseguiam e, por outro
lado, era necessária a mão forte, então agia.
Tôdas essas vozes e a dor que lhe provinha ao ver que
precisamente os últimos anos de seu apostolado eram afli­
tos por tanta incompreensão, algumas vêzes, não obstante
sua natureza intrépida e indomável, sugeriram-lhe pensa­
mentos de desalento. E' o que nos testemunha uma sua
carta enviada para Roma -e destinada a Castélli:
"Na verdade, não sei se, como dizeis, tenho mais ou me­
nos fé que vós. Eu estou seguro de uma coisa - que é pre­
ciso desconfiar das esperanças fundadas sôbre os homens.

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São certamente as mais falazes e passageiras. Mas quando
estamos empenhados em alguma ação que é conforme a
vontade de Deus, estou certo que é mais provável obter a
ajuda e a proteção divinas para um feliz resultado, estan­
do privados de qualquer socorro e favor humanos. Deus,
freqüentes vêzes, socorre muito mais quem está abandonado
pelo mundo, e em tais ocasiões manifesta a sua máxima
graça e misericórdia!"

14.
O EMBATE DE DOIS SÉCULOS

Aquêles anos haviam sido cheios de contrastes; a ini­


mizade por parte do governador, dos senadores e dos no­
bres; a loucura de Mazzarino; o ressurgir do partido anti­
Borromeu em Roma desgostaram-no profundamente. Mas
o sucesso do sínodo diocesano, a aprovação do bispo de
Famagosta, o amor imenso do povo, a peregrinação a Tu­
rim, eram como que raios de graça que começavam a sair
de suas mãos delgadas e fortes.
Retornando da Capital do Cristianismo, Carlos e os
companheiros atingiram uma passagem dos Apeninos; a
noite era negra e profunda; a certa altura ouviram uma voz
que bradava desesperadamente: "Pára, pára!"
A comitiva deteve-se imediatamente; alcançou-a o pá­
roco do lugar, despertado pelo rumor da cavalgada. Uma
voz arcana obrigara-o a deixar o leito para deter os viajan­
tes já a poucos metros de um despenhadeiro profundo e
a pique, onde todos se teriam irremediàvelmente precipitado.
Doutra feita, a mula de um familiar resvalou e rolou
pelo abismo que ladeava o caminho. Carlos apenas alçara
a mão para abençoar, ou provàvelmente, para dar a absolvi­
ção sub conditione, quando o infeliz cavaleiro conseguiu
agarrar-se a uma árvore; os companheiros puderam retirá-lo
são e salvo, mas o pobre animal foi despedaçar-se no fundo
do precipício.
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Foi durante essa viagem que ocorreu um incidente com
o bispo de Sena - um Piccolómini que desejava honrar dig­
na e principescamente um Borromeu. Fêz-lhe encontrar, du­
rante o almôço, uma pitoresca assembléia de gentis-homens,
provàvelmente um pouco mundanos, e abarrotou as mesas
com muitas e delicadas iguarias. O cardeal permaneceu
firme, mas como se estivesse sentado sôbre os espinhos;
chamava em auxílio tôda a sua paciência, que apesar de ser
grande, desaparecia fàcilmente diante das manifestações de
suntuosidade, de luxo e, sobretudo, de vanglória. Quando,
porém, ao findar todo aquêle longo cardápio de acepipes,
chegaram, ainda mais numerosos, os doces, não pôde tole­
rar e, pedindo permissão, levantou-se da mesa. A coisa não
acabou nesta clara demonstração de intolerância com a gu­
lodice inútil, porque, havendo decidido partir, e tendo-se
levantado grande ventania e chuva quase torrencial, o hós­
pede suplicou-lhe que se demorasse até amainar a tempes­
tade. Respondeu então:
"Não posso, prezado amigo ! Se permanecer aqui tam­
bém esta noite, o senhor gastaria outro tanto para um se­
gundo grande banquete; e quem sofreria, seriam os pobres
desta cidade; porque, como sabe, o bispo é obrigado a dis­
tribuir aos necessitados o que sobeja".
Conta-se que o Papa estava gozando o encanto do en­
tardecer numa sacada do Latrão, donde descortinava magní­
fico panorama; e viu, ao longe, na estrada que conduzia a
Roma, uma grande nuvem de pó, erguida pelo trote de al­
guns cavalos. Recordou-se então que daquele caminho de­
via chegar, de um momento para outro, o arcebispo de Mi­
lão; e sem ter certeza de quem se tratava - era realmente
Carlos - disse, arguto, mas, no fundo, convencido de suas
palavras:
"E' melhor deixarmos logo o terraço; pois se fôr o car­
deal de Santa Praxedes e souber dêsse nosso inocente alí­
vio, é capaz ,,de afirmar que estamos perdendo tempo
inutilmente ...
Essa última demora romana foi de curta duração. Vie­
ra para solicitar a confirmação dos concílios de 1576 e de
1579. "l'.tstes ilustríssimos senhores, escrevera a Speciano,
aludindo aos cardeais - acumulam reuniões sôbre reuniões,
e freqüentemente querem alterar decisões tomadas de con-

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formidade com o Concílio de Trento". Sua presenç�. em
Roma desimpedira o terreno de muitas dificuldades buro­
cráticas e jurisdicionais; porque era homem que se dirigia
firme e decidido ao escopo; e também dessa vez sua firmeza
e santidade levaram a melhor. O Papa, esperto canonista,
podia aprovar, sem as inúmeras reuniões cardinalícias, to­
dos os decretos dos concílios diocesanos. Efetivamente, Gre­
gório VIII, sob o impulso de Carlos, fêz em oito dias tudo o
que não se pudera realizar em dois anos.
Resolvidos a contento os problemas milaneses, Carlos
partiu de Roma, com a alma a transbordar de alegria. Seu
coração já pertencia todo a Milão, e seu espírito pairava
muito além, acima das coisas efêmeras da terra. Desejava
retornar quanto antes à diocese, mas devia cumprir primei­
ramente algumas tarefas, confiadas a êle pelo Pontífice,
em Florença, Bolonha e Parma.
Estas visitas deixaram nêle péssima impressão: "Vi
em tôda a parte, luxo escandaloso e gastos inúteis; muitos
aviários, grandes aquários, estábulos para antílopes, cer­
vos e outros animais raros; e nenhum asilo para os alemães,
húngaros e flamengos expulsos das próprias casas pelos
inimigos da Igreja".
Escreve Margarida Yeo: "Com o prin_cipesco palácio e
os trezentos familiares, com o luxo e os deleites exóticos da
residência campestre, Alexandre Farnese era um: supérstite
do renascimento, escola de principes da Igreja, mas que
deu mais glória aos príncipes que à Igreja. Carlos Bor­
romeu, ao invés, de corpo descarnado, roquete e manto de
lã desbotados, mula velha e pachorrenta, acompanhado de
somente seis companheiros, era o condottiere do nôvo exér­
cito: falange intrépida que bem compreendia não se poder
reconduzir o mundo a Cristo com as comodidades, o bem­
estar, a tibieza, a indulgência para consigo mesmo; nem
mesmo com a proteção das artes, esquecendo-se do princi­
pal - a vida interior e a salvação da própria alma".
Depois de dez dias de permanência em Florença, onde
os "homens pareceram-lhe razoàvelmente religiosos e as
mulheres irracionalmente adornadas e horrivelmente en­
feitadas", dirigiu-se a Bolonha, hóspede do Cardeal Ga­
leotto. Em Ferrara, a · côrte dos Estenses - não obstante ter
Afonso interrompido os divertimentos carnavalescos em hon-
264
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ra da ilustre visita - pareceu-lhe demasiado preocupada
com interêsses mundanos e pouco solícita por Deus. Partiu,
em seguida, para Veneza; não pôde evitar a pompa dogal
e restituí-la com igual solenidade; mas recusou visitar o.
famoso arsenal onde trabalhavam dezesseis mil homens ao
,)

redor de navios e barcos, cujos funcionários ocupavam


três palácios denominados Inferno, Purgatório e Paraíso.
E Veneza, frívola e alegre, suspirou aliviada quando êste
peregrino sério, fechado e rígido, deixou suas praças e canais.

15.
O CHAMADO DA MORTE

A Milão chegara no entanto o nôvo governador, Dom


Carlos de Aragão, superior aos condes e duques anteriores,
e muito simpático ao povo milanês por sua bondade, tanto
que se criou e foi bem recebido o dito: "Dois Carlos em
um só coração". Mas o cardeal não queria iludir-se com
as aparências, e enviara de Roma - onde se encontrava
quando ingressou o vice-rei - uma carta exarada nestes
têrmos: "Tôdas as lutas que dilaceram a cidade derivam
do desprêzo da religião, e uma vez conculcada a autorida­
de eclesiástica, está aberto o caminho aos embates e lutas.
Não é com as fortalezas e os exércitos que se mantêm se­
guras as cidades e as províncias, mas somente com a ajuda
de Deus".
As relações entre os dois potentados ameaçaram de
romper-se desde o início. E' o que se depreende da narração
de Giussano, repleta de minúcias e particularidades. En­
quanto Dom Carlos de Aragão, duque de Terranova, pas­
sava em revista as tropas da metrópole, descobrira um ca­
valo de magreza espantosa. Dirigindo-se a quem o cavalga­
va, perguntou-lhe o motivo da péssima condição da caval­
gadura. O interpelado, sem muitos pêlos na língua, respon­
deu que o animal era assim todo pele e ossos unicamente
porque o govêrno não o pagava havia já muito tempo!
265
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Quem fôr amigo da verdade, use couraça ao lombo! O
modo como foi dada a resposta, mais que seu conteúdo,
fêz subir a mostarda ao nariz do governador, que aprisio­
nou imediatamente o atrevido insolente e decretou que na
manhã seguinte fôsse enviado ao outro mundo...
O infeliz julgou oportuno recorrer ao cardeal e conse­
guiu que alguns amigos intercedessem por êle. O arcebispo
estava muito ocupado no momento e não pôde acorrer pes­
soalmente. Enviou Cassiano, que nada conseguiu. Resolveu
então apresentar-se ao governador, e expediu um familiar
para pedir audiência, especificando o motivo. Imediatamen­
te Dom Carlos enviou-lhe um dos seus coronéis, dizendo
que não se incomodasse, porque a graça estava feita e que
até lhe agradecia por lhe ter proporcionado a ocasião de
usar clemência em seu nome.

�sses últimos anos são todos empregados em questões


intrincadas e penosas, como a herança de Otávia Farnese,
embaraçadíssima, e de que o Cardeal é executor testamentá­
rio. Consegue ordenar aquêle naufrágio de interêsses, com­
põe uma emaranhada controvérsia canonical em Vercélli,
dá sábias recomendações ao duque de Sabóia Carlos Ema­
nuel, fala em Verona e Rho, inaugura em Saronno o templo
de Nossa Senhora das Graças, lança os fundamentes do Semi­
nário de Ascona, no Lago Maior, e funda em Milão a confraria
do Santíssimo Sacramento. Visita enfermos. Procura correr à
cabeceira de Carlos Emanuel que o invoca.
Sua atividade torna-se febril, como se previsse a aproxi­
mação do fim. Mas por mais que procurasse vencer a ma­
téria e esconder o profundo cansaço físico, o organismo
começava a ceder. Narra o Cardeal Frederico, com os olhos
úmidos pelo pranto: "Estava-se no coração do inverno; o
frio e a neve eram tais, que ao sermão na catedral não com­
pareceu quase ninguém. O arcebispo, mais acabado que
nunca e todo enregelado, não podia falar senão muito difi­
cultosamente; mas quando quis dizer que o grande Basílio,
apesar de reduzido somente a pele e ossos, encontrava ain­
da energia para consumir-se em seu ministério, conseguiu al­
çar a voz e fazer-se ouvir".
Era como se houvera feito o panegírico de sua vida P.
a afirmação de sua vontade de resistir até o fim!

266
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Com efeito, nada foi mudado em sua vida episcopal;
e no dia 16 de janeiro realizou-se a reunião dos vigários,
que durou três semanas; o cardeal devia arrastar-se dià­
riamente sôbre uma só perna, - imaginemos com quanta
fadiga 1 - pór;que a outra estava paralisada pela erisipela.
Apesar disto, não faltou a nenhuma sessão, e função algu­
ma foi celebrada sem sua presença.
A loucura coletiva do carnaval, com tôdas as suas pân­
degas e licensiosidades que haviam retornado desenfreadas,
- quem lembrava ainda os terríveis dezessete meses de
peste? - devolveram a energia de sua grande eloqüência :
"Também todos os demais milaneses batizados renunciaram
no batismo a Satanás, ao mundo e as suas seduções; e então
por que sou obrigado a ver tanta iniqüidade? Por que qua­
se todos se deixam levar pela devassidão e libertinagem?
E' isto que prometemos quando recebemos o primeiro sa­
cramento? Tais enormidades cometem-se sob nossos olhos,
ó excelentíssimo príncipe, e nós nada dizemos? Quem me
dera poder derramar o sangue para poder aplacar a justa
cólera de Deus! Por que não posso reparar a tanto mal
com minha morte?"
Interrogativos dolorosos, mas lúcidos, sínteses de um
apostolado que oferecia sua pessoa para a redenção das
culpas alheias, assumindo-as sôbre si, tal como fizera Jesus,
por tôda a humanidade passada e futura. Entregava-se,
pequena vida em comparação com a divina vida de Cristo,
para resgatar o povo imerso no êrro. E a oferta - podemos
acreditar 1 - era de uma sinceridade esmeraldina 1
Certamente, não haviam entendido isso certos frades
folgazãos que tiveram o descaramento de compor uma co­
média desavergonhada, encenada com os contornos de um
drama completamente licencioso . . . e representada no tea­
tro por uma súcia de libertinos. Quando chegou a seu co­
nhecimento o acontecido, Carlos sentiu o coração despeda­
çar-se, tanto mais que o familiar que lhe trouxe a notícia
acrescentou, comentando, que trovejar contra o carnaval
era tempo perdido. O desejo de gozar já entrara no sangue
do povo, e o govêrno não se opunha, os comerciantes saíam
lucrando, e então?
E então rezar. O cardeal opôs às despudoradas fúrias
errantes pelos caminhos, uma oração mais intensa e públi-

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ca, um ritmo de funções mais acentuado, em formâs tão
eficazes e populares, que sustaram a avalancha bacanal
e levaram à catedral grande número de fiéis.
Entrementes, reorganizou as antigas paróquias da cida­
de e instituiu novas confrarias; a associação de Santa Ma­
ria das Graças, do Santíssimo Sacramento e de Santa Maria
Coroada. Reordenou e aumentou a devoção das Quarenta
Horas. Era com esta prática que iniciava sempre o ano
nôvo. O amor do Santíssimo Sacramento estava unido ao da
Paixão. Tôdas as relíquias da Redenção constituíram para
Carlos um profundo sentimento de gratidão: o Santo Cravo,
na catedral, a coluna da flagelação, em Santa Praxedes, e a
Sagrada Face, em Turim.

E de repente, sem que ninguém o suspeitasse, em meio


de tanta atividade, a morte veio bater à porta ...

16.
NA SOLIDÃO COM DEUS

No dia 18 de setembro foi chamado a Novara para assis­


tir a agonia de Dom Francisco Bóssi. Não chegou em tempo
para recolher o último suspiro. Logo após as exéquias, cor­
reu a Vercélli para conciliar uma polêmica que ameaçava
tornar-se guerra civil; nela estavam envolvidos muitos cô­
negos do cabido de Santo André e numerosos nobres. Apa­
ziguou o letígio e a paz voltou a reinar na cidade, como já
reinava em Milão. E visto encontrar-se a somente cinqüen­
ta milhas de Turim, quis visitar novamente o Santo Sudá­
rio; foi recebido pelo Duque Carlos Emanuel, que o venera­
va como grande santo e paterno amigo. Era o dia 3 de ou­
tubro de 1584.
O dia anterior fôra o aniversário natalício de Carlos.
Quarenta e seis anos. O duque ouviu, comovido, bons con­
selhos sôbre a composição dos afazeres temporais segundo
os princípios cristãos; e no momento da despedida, pediu ao

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cardeal que retornasse para abençoar-lhe o próximo casa­
mento com a filha do potente Filipe II. O arcebispo teve
um momento de hesitação; depois, abraçou o príncipe e lhe
falou tranqüilamente, sem sombra alguma de tristeza: "Creio,
filho, que nunca mais nos l\3veremos de ver!"
Assim, com a imagem da Redenção na mente e no cora­
ção, São Carlos, ao invés de encaminhar-se para Milão, di­
rigiu-se para Verna Valsesiana, onde pretendia retirar-se e
recolher-se no Sagrado Monte de Verallo.
"Esta montanha - recorda Franceschi - está estrei­
tamente ligada ao nome de Bernardino Caími, um ardente
jovem patrício que na primeira metade de 1400 tornou-se
frade menor e, em seguida, núncio da Espanha, presiden­
te dos Lugares da Terra Santa, e vigário provincial de Milão,
onde conquistou a benevolência de Ludovico, o Mouro. Na
Terra Santa, contemplando o Santo Sepúlcro, suspirou por
uma nova Jerusalém erguida nos confins da Itália, qual
místico baluarte contra as hostes heréticas. Perscrutou os
montes Biellese, óssola e Valsésia; até que lhe pareceu mais
apta, pela posição e comodidade, a colina que surgia próxi­
ma de Varallo; e a lenda como de costume, adornou a
escolha.
"Enquanto o valoroso jovem percorria os arredores, tê­
lo-ia guiado o canto suavíssimo de um passarinho a um
lugar conhecido como Sopra la pareie, que lhe pareceu
apto para realizar o sonho. Outros ainda narraram que cer­
tos pastôres, ocupados no pastoreio, quinze dias antes de
chegar àqueles lugares o sacerdote, ouviram pelo ar cantos
suaves e misteriosos; enfim, um pouco como acontecera sô­
hre as montanhas de Judá quando do nascimento do Reden­
tor. Surgiu assim, ao pé do monte, com a aprovação dos
cônsules de Varallo, o convento franciscano e a igreja de
Santa Maria das Graças; e no cume, em 1491, a capela do
Santo Sepulcro e outras ermidas".
O Cardeal Borromeu quis, como diretor dos exercícios,
o Padre Adorno, e mandou-o vir de Milão.
Fêz, logo no início, a confissão geral, conforme o con­
selho de Santo Inácio, passando em oração tôda a noite que
precedeu ao retiro e à comunhão. Noite de agonia em que
derramou rios de lágrimas; e o coração gemia transpassado
por profundíssima dor, como se houvesse cometido quiçá
quantas culpas.
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E assim começou novamente a reforma. . . a últ,ima. O
alimento? Pão. A bebida, Agua. O leito? Uma tábua. O sono
era brevíssimo e o silêncio ininterrupto. Quando descia a
noite, saía sozinho para fazer oração; e preferia, para maior
consôlo, a capela da Agonia ou o Santo Sepulcro.
A noite já ia alta e todos dormiam. Não todos. Ao lon­
go da vereda que serpenteava a montanha, tremeluzia pe­
quena claridade, semelhante ao fogo fátuo. Era Carlos que,
com a lanterna, no escuro, se dirigia para as ermidas pre­
diletas. Ali passava horas inteiras, - longe de todos e uni­
do com todos! - sem perceber o frio e a umidade, absorto
em Deus e todo de Deus. "Então - dizia - aparecia-me o
Senhor, e provava grande alegria por seu aspecto divino;
doutra parte, porém, vendo-o pregado numa cruz, experi­
mentava amarguíssima pena e desmesurado desalento ..."
Bascapé nos refere que quando o cardeal falava dês­
ses colóquios com o Eterno, suas palavras "pareciam pro­
vir diretamente do céu!"
Carlos, que vivia como que separado do corpo e de
qualquer outro liame terreno, permanecia ajoelhado, ereto,
extasiado em oração por sete ou oito horas; e quando iam
chamá-lo, soía repetir que haviam adiantado o relógio para
interromper-lhe a meditação ...
Mas o suave encanto da mística Verna Valsesiana não
podia protrair-se por muito tempo; em Arona o bispo de
Vercélli aguardava-o para grave e indeferível colóquio. Car­
los obedeceu ainda uma vez ao chamado do dever terreno
e disse a seus familiares: "E' chegado o momento de afron­
tar um gênero de dificuldades que até agora não temos en­
contrado". Era o sonho de penetrar a todo transe e risco
de vida nos cantões protestantes da Suíça.
No dia 10 estava em Arona, onde manteve o importan­
te diálogo. Saiu desfeito em lágrimas, mas resolvido a tentar
o impossível. Escreveu a Milão para que lhe fôsse enviada
tôda a documentação relativa à longa luta existente entre
a comunidade e os frades acêrca da Santa Colina. Decidira
também visitar Bellinzona; no dia 20; porém, demorando-se
em Romagnano para restabelecer-se, regressou ao Sagrado
Monte. Aqui, no dia ·24, assaltou-o o primeiro ataque de fe­
bre. l'.l:ste, aliás, era um retôrno mais cruento da acometida

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febril que o atacara precisamente no dia de sua chegada
a Varallo, e que conseguira ocultar para poder subir à co­
lina tão amada.
Desta vez o assalto fôra tão violento, que o Padre Ador­
no seu confessor, conseguiu impor-lhe, sob o vínculo da obe­
diência, de abreviar as orações, mitigar o uso das disciplinas,
pôr um pouco de palha em seu enxergão, e conceder-se o
luxo de urna sopa de pão sem sal. Mas, apesar de enfraque­
cido ao extremo pela febre, Carlos conseguia celebrar a
missa diàriamente, comungar os companheiros, despachar
afazeres e ditar numerosas cartas.

17.
ASSIM MORREM OS ELEITOS

Trabalhava sempre. Chegou-lhe uma carta do Cardeal


Paleotto que, quase para consolar-se de longa enfermidade,
suplicava que lhe remetesse o volumezinho composto em
Sabbionetta, sôbre a meditação. Carlos respondeu que era
ainda muito tôsco e necessitava de aperfeiçoamento. Rece­
beu também numerosos escritos do Cardeal Sfrondato a
respeito de diversos argumentos; foram todos restituídos
após ter anotado brevemente na margem o seu parecer, -
como se temesse roubar demasiado tempo às práticas de
piedade. Dirigiu extensa e substanciosa carta ao Papa para
agradecer-lhe a liberalidade demonstrada com o colégio
de Brera, e prometeu aumentar o número dos padres jesuí­
tas, que tinham feito tanto bem à cidade e ao interior.
Mas dois dias depois, quase pressagiando o próximo fim,
escreveu a Tarúgi, pedindo que avisasse o Cardeal Altemps
de não esperá-lo em lugar algum. Tê-lo-ia visto em Milão.
Adeus Suíça e Bellinzona l Carlos previa que suas horas
estavam contadas. Apesar- disso, não se rendeu. Conseguiu
montar no animal e cavalgar até Arona; aí embarcou em
pobre batel e atingiu Ascona; sabia que era necessário rea­
lizar também êsse esfôrço supremo para lá chegar, pois

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proviriam grandes preJmzos se não tivesse instituído o co­
légio, por êle conduzido a bom têrmo e ao qual, antes de mor­
rer, queria dar o regulamento e o diretor. Seu estado de
saúde tornava-se sempre mais alarmante.
A febre crescera tanto, que os companheiros o conven­
ceram a partir na mesma noite e viajar de barco. Em Ca­
uóbbio, dada a sua extrema fraqueza, viram-se obrigados
a transportá-lo a certa càsa situada à margem do lago.
Atingiram Arona a 30 de outubro; a luz do crepúsculo
era simplesmente maravilhosa; coloria de viola e rosa as
searas, as residências e o lago ... O primo Renato o estava
aguardando, tendo já providenciado tudo para levá-lo à
parte alta da cidade, no castelo natal. Mas ainda uma vez
venceu a vontade indomável de Carlos, vigilante até o fim.
Nada do palácio paterno que lhe recordasse os tempos da
juventude ... Queria beber o cálice da amargura até a últi­
ma gôta. Fêz-se transportar à famosa abadia da meninice,
então noviciado dos Jesuítas.
Insistiu para ser acordado de seus sonos febris antes
da meia-noite a fim de fazer a habitual meditação e con­
fissão antes da missa. Apenas capaz de suster-se de pé, ce­
lebrou o Santo Sacrifício na capela, e distribuiu a santa co­
munhão aos noviços e a um grupo de fiéis. Encontrava-se
cm sua antiga abadia beneditina, de quem fôra abade, -
primeiro degrau da grande escada hierárquica, :Óa idade de
doze anos, - e à sombra daquela fortaleza onde nascera
quarenta e seis anos e um mês antes.
Parecia que devia morrer no próprio torrão natal. Ao
invés, obteve permissão de partir para a suspirada Milão.
No dia 2 de novembro, estendido sôbre um leito preparado
pelo Conde Renato, encaminhou-se à capital, pela estrada
de Ticino e Navíglio. Ao chegar, foi carregado ao arcebis­
pado nas costas das liteiras a passo lento e cadenciado, no
silêncio da noite e dos caminhos.
Afortunadamente, a notícia de sua gravíssima enfermi­
dade não chegara ainda a Milão; assim ninguém veio a
seu encontro; na soleira do palácio arquiepiscopal não havia
senão o cunhado, Conde Aníbal Hohenens com o filho Gas­
par, de viagem para Roma.
O cardeal reconheceu-os logo e saudou-os afetuosamen­
te; e foi levado não a seu quarto, sob o teto da casa, ma'>

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a um salão onde fôra preparado um leito. O lugar era deno­
minado, pelas pinturas que lhe cobriam as paredes: "Sala
das audiências da Cruz".
A férrea tenacidade do arcebispo quis impôr-se ainda à
matéria enfêrma. Pretendeu assistir, como sempre, às vés­
peras e completas; mas havendo-lhe dito os médicos que
teria sido fadiga demais perigosa, exigiu o parecer do con­
fessor. Padre Adorno dissuadiu-o, a que obedeceu pron­
tamente.
Na manhã seguinte, porém, rebelou-se perante a ordem
de ouvir a missa no quarto.
"A casa de um bispo é sempre lugar santo!" disse o
Padre Adorno.
"Não!" respondeu severo o moribundo; e fêz-se car­
regar para a catedral.
Também no leito de morte estava em sua frente, como
em Varallo, a imagem da paixão do Redentor; fizera colo­
car diante de si, sôbre o altar, um quadro que representava
a sepultura de Jesus e, mais abaixo a tela "Agonia no hôrto"
de Júlio Cámpi, pertencente hoje à Ambrosiana. Estando
a sua cabeceira, o Padre Francisco Panigarola pediu-lhe
que conservasse o olhar na cena da sepultura. E enquanto,
tendo-lhe alguém erguido a luz, obedecia ao pedido, acres­
centou que durante todos os sofrimentos, o único consôlo
era a meditação daquele quadro comovedor.
A febre diminuiu lentamente, mas o estado de fraqueza
chegou ao extremo. Bascapé, vendo-o de olhos fechados, nar­
rou um episódio que sempre agradara ao cardeal; relacio­
nava-se com um santo bispo de Módena, que, para não ser
perturbado em seu leito de morte, pretendia ser adormecido,
e sua morte - disse-lhe o futuro biógrafo - foi chamada:
"O sono do bispo de Módena!" Um leve sorriso iluminou
a face de Carlos Borromeu e demonstrou que ainda vivia.
O Padre Adorno avisou então ao Santo que o fim estava
próximo e perguntou se desejava o viático.
Ardentemente - respondeu o arcebispo.
Quando?
Quanto antes; agora mesmo.
Das mãos de quem?
Do arcipreste.
Foram suas últimas palavras.
Vida de S. Carlos - 18 273
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Os sobrinhos, chorando, suplicaram que os abençoasse!
Carlos tentou fazê-lo, mas foi preciso que um familiar lhe
erguesse o braço. O conde Renato, todo trêmulo de comoção,
inclinou-se sôbre o primo e lhe rogou que não se amedron­
tasse se lhe anunciava que a morte estava bem próxima. O
moribundo sorriu com indefinível doçura.
Ao aparecer o Santo Viático, tentou alçar-se de pé e
deixar a cama. Mas a coisa se lhe tornou impossível. Foram­
lhe postos o roquete e a estola, recebeu com grande piedade
a comunhão e, quase logo depois, a unção dos enfermos. A se­
guir, deixou-se invadir por doce e solene calma.
Naquele momento eis aparecer Dom Carlos de Gusmão,
governador de Milão; ajoelhou-se confuso entre os demais e
prorrompeu em copioso pranto.
Durante a leitura da história evangélica da Paixão,
Bascapé impôs-lhe um cilício misturado com cinza benta,
conforme o antigo uso eclesiástico e segundo o desejo de
Carlos. E às nove horas da noite do dia 3 de novembro de
1584, expirou plàcidamente, sorrindo a um vôo de fulgores
celestiais.
E foi ainda o simples, piedoso e humilde Bascapé a cer­
rar-lhe os olhos entre os gemidos dos familiares "que não
podiam deixar de beijar aquelas queridas e c�stas mãos".

18.
E NO FIM ... A GLóRIA

Se o encontro da morte com o Cardeal foi algo muito


simples porque sua alma havia muito tempo estava prepa­
rada ao passo supremo, a notícia encheu Milão de estupor
dolorosíssimo. A cidade soubera da grave doença do arce­
bispo somente quando, depois das vésperas, foram vistos
os cônegos dirigir-se em procissão da catedral para o palá­
cio do amado pai. A notícia correu veloz.
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"Os operarios - narra Margarida Yeo - abandona­
ram o trabalho, os comerciantes os balcões, e os nobres os
palácios. Senadores e sacerdotes, doentes e pobres, todos
correram velozes ao arcebispado. E quando vieram a sa­
ber que nem procissões, nem preces haviam podido salvar
a preciosa vida, Milão vestiu-se de luto, e o lamento do povo
assemelhava-se ao rugido dos animais ferozes. Nas estradas
ecoavam gritos desesperados: "Que acontecerá agora co­
nosco?!" Naquela noite poucos dormiram e pouquíssimos
recolheram-se as suas moradias".
"Eu não sei - escreve ainda Bascapé - se na cruel he­
catombe de Frederico Barbaroxa, foi ouvido maior pranto
que o levantado naquela noite pelo infeliz povo, máxime de­
pois que gemeram os sinos da catedral, logo seguidos pelos
de tôda a cidade". Do convento das Irmãs Angélicas a voz
da Sfondráti responde como um eco dilacerante àqueles
anúncios de morte:
"O' irmãs e mães minhas, que triste nova ressoou em
nossa igreja! Umas ficamos como que petrificadas, e outras,
prostradas por terra, soltavam lágrimas e suspiros inenar­
ráveis. Parecia que acabasse o mundo naquela noite tene­
brosa! Ai, míseras de nós, que já não poderemos ouvir sus ­
surrar ao ouvido: "Hoje virá· o cardeal!"
Francisco Adorno, refugiado na própria cela em São
Fidélis, rezava ajoelhado durante a noite tôda, invocando
a proteção de Carlos para o tempo que lhe restasse de vida;
e eis aparecer-lhe, inundando de luz e perfume o aposento,
a figura majestosa e paterna do cardeal, envolta por auréo­
la de ouro; e por primeiro, antes da proclamação oficial da
Igreja, no segrêdo da cela, chamou-o Santo.
Os domésticos despojaram o corpo do cardeal dos gros­
seiros indumentos que o cobriam; e viram, espantados, os
ombros e as costas recobertas por marcas e cicatrizes pro­
fundas; e a pele, que deixava ver de maneira assustadora,
as saliências dos ossos, tôda inflamada. Manchas e feridas
produzidas pelas contínu;;is flagelações, e a inflamação da
pele devida à fricção da camisa do penitente; no dorso
notava-se ainda claríssimo o sinal do projétil da arcabu­
zada de Farina.

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E jamais, de tantos sofrimeritos que deviam crucificar
não pouco as carnes do santo, jamais uma levíssima men­
ção ou queixa! O protomédico que procedeu à embalsama­
ção, disse não ter encontrado senão um esqueleto todo pele
e osso; e afirmou que morrera qual lâmpada que se extin­
gue lentamente por falta de azeite. O Borromeu dos últimos
tempos foi bem definido pelo Cardeal Serlítti: "Carlos Bor­
romeu estava aprisionado num corpo, mas sua alma vivia no
céu. Nêle existia somente a aparência da carne".
únicamente no terceiro dia foi possível ao povo contem­
plar os sagrados despojos; a multidão acorreu tão numero­
sa e impetuosa, que houve até mortes. Carlos Bascapé cha­
ma felizes estas pessoas: "Tornaram-se colegas daquela al­
ma santa, quais vítimas fúnebres!"
Carlos manifestara a vontade de ter funerais modes­
tíssimos; mas como impedir que o povo não participasse?
Conseguiram sepultá-lo de noite, aos pés do altar-mor da
catedral, precisamente no lugar indicado por êle logo após
a peste. E com estas simples palavras, testemunho da sua
humildade: "O cardeal de Santa Praxedes pede aos fiéis
orações por sua alma".
A imagem do estremecido pai penetrou .em tôdas as
moradias. Em seu nome e invocação, o milagre ocorreu com
uma freqüência inusitada. O processo de canonização cami­
nhou a passos de gigante. Filipe III, rei da Espanha, Carlos
Emanuel, da Sabóia, Ranúcio Farnese, de Parma, o doge
de Veneza, o grão-duque da Toscana, o rei da Polônia invo­
caram para êle as honras dos altares. Assim também tôdas
as ordens religiosas, nacionais e estrangeiras, que o haviam
tido como patrono.
A 1Q de novembro de 1610, Carlos Boromeu ascendeu
à plêiade dos santos.
"�le foi sempre doador de luz - diz seu panegírico;
nenhuma sombra de fraqueza ou de paixão ofuscou algu­
ma vez aquela claridade. Nenhum obstáculo material pôde
anuviá-lo . . . Deixando êste mundo, Carlos não se extin­
guiu, mas começou uma vida eterna no céu para oferecer,
lá de cima, luz à Igreja a quem amou sempre e tão pro­
fundamente!"

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Diante da cadeira gestatória do Pontífice, no dia da
canonização, caminhava, curvo sob o pêso da cruz da peste,
o Cardeal Frederico, o digno sucessor. E será êle que do
púlpito da catedral pronunciará a coleta da primeira festa
do primo, no dia 4 de novembro : "Protege, Senhor, nós te
suplicamos, tua Igreja, pela perpétua intercessão de Carlos,
teu santo confessor e bispo. Por seu zêlo vigilante em prol do
rebanho, mereceu a glória; assim sua meditação possa sem­
pre inflamar-nos de amor por ti".

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DOM JOÃO BATISTA SCALABRINI
<A sua memória não perecerá, e o seu nome será
repetido de geração em geração...> (Ecli 39,13)

João Batista Scalabrini, Bispo de Placência, na Itália,


foi talvez a melhor encarnação de São Carlos, nos tempos
atuais.
Nascido a 8 de julho de 1839, em Fino Mornasco, dio­
cese de Como, João B. Scalabrini foi um homem que rea­
lizou plenamente a missão que Deus lhe confiara. Um san­
to que os tempos reclamavam. Um santo todo de Deus e da
Igreja e, por isso mesmo, todo dos homens e da pátria. Um
homem que recebeu os aplausos e o reconhecimento do mun­
do, da Igreja e de Deus.
Menino, em nada se distinguiu dos colegas. A santida­
de não consiste em praticar grandes ações. Mas em praticar,
com grande amor, as pequenas ações. Assim, João B. Scala­
brini foi um menino, um rapaz, um môço que procurou
viver a própria vida cristã, cumprindo suas obrigações. Es­
tudante prendado, o futuro lhe sorria radioso. Aos 18 anos,
porém, abandonou tudo e ingressou no seminário Santo
Abbôndio, onde teve como colega o Servo de Deus, Luís
Guanella. No dia 30 de maio de 1863, aos 24 anos, recebeu
a ordenação sacerdotal. Seu imenso amor abarcava o mun­
do inteiro. Tem-se dito já: "Dom João Batista Scalabrini
foi um homem cuja pátria era o mundo". Seu sonho: mis­
sionário na longínqua índia. Mas Deus tinha outros planos.
'·Tuas índias são a Itália!" respondeu-lhe o Bispo.
Em 1867, a Província de Como foi devastada por uma
epidemia. Boa ocasião para o neo:..sacerdote demonstrar de
que têmpera era forjado seu coração. Diz o postulador da
Causa da Beatificação e Canonização: "O Servo de Deus
recebeu como graça especial de Deus a de poder dedicar­
se à assistência dos doentes, e neste piedoso exercício, con­
sagrou-se noite e dia, com tão grande coragem e abnegação,

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que mereceu alto reconhecimento do govêrno pátrio, obten­
do a medalha de bronze".
Com 28 anos apenas, foi nomeado reitor do semmar10
onde estudara poucos anos antes. Após breve, mas fecundo
atividade neste estabelecimento, em 1870, foi transferido,
como vigário, para a paróquia de São Bartolomeu, urna das
mais vastas e importantes da cidade de Como. Era a Pro­
vidência que, por diversos caminhos e experiências, prepa­
rava o servo fiel aos futuros empreendimentos. O jovem
sacerdote entregou-se de corpo e alma ao bem do próximo.
Seus prediletos: os pobres e os doentes. Sua alegria : a admi­
nistração dos Sacramentos da Penitência e da Eucaristia.
Seu ideal: o reino de Cristo nos paroquianos. Por ocasião
do Concílio Ecumênico Vaticano I, proferiu, na catedral de
Como, uma série de conferências sôbre o assunto; foram
julgadas tão importantes que, publicadas e divulgadas em
tôda a Itália, o próprio Papa Pio IX louvou seu autor.
Em dezembro de 1875, foi eleito Bispo de Placência, e
no dia 30 de janeiro do ano seguinte, o Cardeal Franchi
sagrou-o na capela da Propaganda Fide, em Roma. No mes­
mo dia, endereçou a seu povo a primeira carta pastoral,
na qual traça seu programa, prometendo "de não poupar
esforços e sacrifícios para ser pai dos infelizes, mestre dos
que erram, guia dos sacerdotes, pastor de todós, para ga­
nhar todo a Cristo". A respeito de sua atividade episcopal,
talvez seja conveniente repetir o que diziam os biógrafos
de São Carlos: "E' melhor nada falar, do que falar pouco ou
mal. " Tentaremos somente expor um breve resumo de
suas principais obras. Relembre-se, de antemão, que é Cris­
to quem vive e age nos santos. E "tudo posso naquele que
me conforta ... "
A paróquia é aquilo que é o pároco. Tal princípio mo­
tivou breve e ardorosa carta pastoral a todos os sacerdotes
da diocese, procurando infundir-lhes o zêlo e o amor que
lhe devoravam o coração. A Catequese, como já tivemos oca­
sião de notar, foi sempre um de seus principais cuidados. Já
no primeiro ano de episcopado, publicou a carta pastoral
Instrução Catequética, e um ano após, fundou a revista
O Catequista Católico. Deu vida à Congregação da Doutrina
Cristã. Organizou o 1 9 Congresso Catequético Nacional. Bas­
ta lembrar que o próprio Pio IX, admirado diante dos fe-
280
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cundos frutos que o Servo de Deus hauria na diocese me­
diante o ensino e a vivência da Doutrina Cristã, enviando­
lhe preciosa cruz peitoral, saudava-o como O Apóstolo do
Cate.cismo.
O ano de 1576 foi a prova de fogo do amor de Carlos
para o seu povo. E 1879 o foi para Dom João B. Scalabrini.
Um frio fora do comum e uma grande carestia haviam
lançado na miséria centenas de famílias de tôda a região
norte da Itália. O santo Bispo entregou-se inteiramente aos
outros, pela renúncia mais completa de si mesmo. E' que o
amor de Cristo não conhece barreiras . . . Tudo foi dado.
Chegou a distribuir diàriamente 4 mil sopas aos pobres fa­
mintos, que, de tôdas as partes, acorriam a seu palácio
episcopal.
Dedicou-se à assistência dos surdos-mudos, à reorga­
nização das paróquias, à reforma da catedral; interessou-se
pela solução cristã da questão social; lutou pela educação
cristã da juventude e pela formação dos seminaristas; so­
freu os mais renhidos ataques da maçonaria, e até de mem­
bros do clero. Na famosa Questão Romana, tão discutida
pelos prelados italianos do século passado, os pontos de vis­
ta do Servo de Deus foram plenamente reconhecidos e rea­
lizados por Pio XI no Tratado de Latrão, em 1929. Religião
e Pátria! era um de seus lemas. Foi, na verdade, como bem
disse São Pio X, um dos melhores bispos da Itália, e um
cidadão exemplar.
Um dos grandes problemas da Europa, no fim de 1800,
foi, sem dúvida, a emigração em massa de seus habitantes.
E as conseqüências decorrentes, inúmeras e graves. O bon­
doso Bispo via as ovelhas partirem sem o pastor que as
acompanhasse. . Sem o sacerdote, o amigo, que as conso­
lasse e socorresse em suas necessidades. E em 1887, aquêle
coração generoso fêz brotar a mais bela flor de sua admi­
rável existência: a Congregação dos Missionários de São
Carlos, que tem por fim a assistência dos emigrantes. Não
contente com isso, com a colaboração de um seu missionário,
fundou uma Congregação feminina, a das Irmãs Missioná­
rias de São Carlos, e visitou por duas vêzes os emigrantes
na América: em 1901, nos Estados Unidos, e em 1904, no
Brasil. Cooperou, outrossim, com a Serva de Deus Madre
Merloni na fundação da Congregação das Irmãs Zeladoras
do S. Coração, destinadas também a socorrer os emigrados.
281
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Quando da ascensão de José Sarto ao trono de Pedro,
os olhares de todos voltaram-se para o Bispo de Placência,
como o candidato mais idôneo para o Patriarcado de Vene­
za. Dom João B. Scalabrini, porém, não aceitou. Talvez
previsse que o momento de comparecer diante de quem
tanto amava, estava próximo. Deus já estava contente com
o trabalho de seu servo. De fato, após breve doença contraída
pelas longas e estafantes cavalgadas em suas visitas pastorais
na Itália e na América, a 19 de junho de 1905, festa da As­
censão, entregou sua nobre alma ao Criador.
A Congregação dos Padres Missionários de São Carlos
Borromeu, conhecidos no Brasil por Escalabrinianos ou Car­
listas, acha-se espalhada em quase todos os continentes. De­
dica-se à assistência dos emigrantes. Está a serviço da Igre­
ja para qualquer necessidade. Em nossa pátria conta já
com diversos seminários, distinguindo-se, entre todos, o Se­
minário Maior João XXIII, situado em São Paulo.
João Batista Scalabrini vive ainda em suas obras. Seu
processo de Beatificação já foi iniciado. Não se pode negar,
o Servo de Deus foi um grande e santo Bispo. Pio IX deno­
minou-o digníssimo entre os sacerd-otes. Leão XIII definiu-o
orgulho do episcopado italiano. São Pio X proclamou-o pre­
lado incomparável. Pio XI chamou-o: santo. Pio XII apre­
ciou-o alma de excelsas virtudes, figura de grande· apóstolo.
Tudo isso porque se deixou dominar pelo Cristo. Como
São Carlos. E, como São Carlos, passará à história como um
dos maiores benfeitores da humanidade ...
Deus é admirável nos seus santos . . .
REDOVINO RIZZARDO

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., íN DICE

Apresentando . ..... . . . . .. . .. .. . . .. . . .. . .... ..... .. . . . 7


Prefácio ......... . . ...... .. . . . .. .. .. .. . ... .. ... ...... 9

Parte I
O MUNDO DE CARLOS
1. Na Fortaleza de Arona . . .. . .. . . . . ..... . ... ...... 13
2. E Apareceu uma Grande Luz . . . . ..... . . .. . . ..... . 17
3. Preocupações de Abade .. . . ... . .. . . . . . ..... .. . .. 22
4. Milão em Duas Etapas . . . ... . ...... ... ... . . . . ... 26
5. Apuros de Estudante ..... . ..... ...... .. . .. ...... 33
6. Excomungado . . . . . . .. . . . . .. .. . . . . ... . .. .. . . ...... 38
7. Lágrimas de um Santo . . . . .............. .. . ..... 42
8. Pio IV .... . .. . . ...... .. . ... . .. . . . . . . .... .. .. . . ... 46
9. A Escalada da Glória . ....... . .. . . .. . ....... . ... . . 50
10. Surprêsas da Santidade . . ..... .. . .... .... . . . . . ... . 54
11. Trabalhos e mais Trabalhos ...... . . .. . . . ..... ... 58
12. O Demônio e a Morte . ... ...... ........ .. ..... . . 63

Parte II
A REFORMA DA IGREJA
1. Trento e o Concílio .. . .. . . .... . .. . .. . . . ... .. ..... 71
2. As Arrancadas do Ascender .................... .. . 75
3. Caprichos do Papa ....... ."... ... .. . ....... ... . . .. 79
4. A Política ·do Céu e a Política da Terra ... . .. . . .. . 83
5." Começar pela Cabeça .. . ... .. . .. . . . . . . . . . . ..... . . 87
6. O Discurso do Cardeal . ...... .. ....... .. . .. . ..... 91
7. ·Palestrina Triunfa .........................·... . . . 95

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8. A Grade dos Conventos . ..... . ... ............. . ... 98
9. Romantismo e · Realismo ............ ............ . 101
10. O Sínodo Diocesano ........... ................... 106
11. Adeus ............................................ 110

Parte 111

O PASTOR E O REBANHO
1. O General sem Exército ..................... ...... 117
2. Reformar-se para Reformar ....... .. . ............ 121
3. O Céu torna-se mais Límpido ....... ... .. . ...... 126
4. O Espírito e a Pedra ............................ 131
5. Seminários e Sacerdotes .......................... 135
6; O Rito Ambrosiano .............................. 140
7. Zêlo de Pastor ................................... 144
8. Entre os Turbilhões da Tempestade ............. 148
9. Não vim trazer a Paz . . . . . ..... ... ... ............ 153
10. Crime no Arcebispado ........................ ... 157
11. A Hora de Judas ................................. 162

Parte IV

O PEREGRINO DE DEUS
1. Conheço minhas Ovelhas ......................... 169
2. A Busca da Verdade . ... ........................ 173
3. O Mistério do Amor ... ... . ................. .... 177
4. Na Terra de João XX.III .......................... 182
5. A Guerra Fria em Milão ......................... 186
6. O Lírio de um Menino .... ... .... ........... . .... 190
7. No Covil dos Bandidos ........................... 193
8. O Escândalo do Padre . .............. . ........ ... 196
9. Saudades de Roma .............................. . 200
10. O Sudário de Turim ........ . ...... ............... 203

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Parte V
A IGREJA DA CARIDADE
1. A Vingança de Deus ..... .. .... . . ............... 211
2. Na Luta pela Vida ............................... 217
3. A Prudência que não é Covardia .............. .. 220
4. Cadáveres Vivos ..... ........................ ... . 224
,
5. Um Discípulo de Cristo ... . .... .... . ............. . 227
6. A Lembrança da Cruz ... . .. .... ................. 231
7. O Rei sem Coroa ................................ 234
8. O Estado de Sítio .... ... . . ... ... ................. 238
9. O Bom Samaritano ........... . .... ............... 242
10. A Preparação do Sucessor ... .... ... ... .. . . . . .. ... 248
11. Com os Grandes do Mundo ...... ..... ..... . . . .... 251
12. Aventuras também não Faltaram .... ......... ... 255
13. Os Santos são sempre Insuportáveis .............. 259
14. O Embate de Dois Séculos ....................... 262
15. O Chamado da Morte ........... .... ........ . .... 265
16. Na Solidão com Deus ............................ 268
17. Assim Morrem os Eleitos ......................... 271
18. E no fim... a Glória ........................... 274
Apêndice: Dom João Batista Scalabrini ............... 279
Bibliografia ...... ............... .................. .. . 283

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