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ANGELO BIANCOTTl
Título do original italiano
SAN CARLO BORROMEO
1965
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CARLOS BORROMEU
Texto
ANGELO BIANCOTTI
Tradução
REDOVINO RIZZARDO
1
EDITORA VOZES LIMITADA
PETRóPOLIS, RJ
1965
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I MPRIMATUR
POR COMISSÃO ESPECIAL DO EXMO. REVMO. SR.
DOM MANUEL PEDRO DA CUNHA CINTRA,
BISPO DE PETRôPOLIS.
FREI WALTER WARNKE, O.F.M.
PETRôPOLIS, 7-12-1964.
*
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*
CARLOS BORROMEU
E O SERVO DE DEUS
JOÃO B. SCALABRINI
*
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A Virgem Imaculada,
pelo carinho com que dirige nossa vida,
e
a ti, meu irmão,
quP, trabalhas pela renovação do mundo.
O Tradutor
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APRESENTANDO ...
D. ROMEU ALBERTI,
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PARTE I
O MUNDO
DE CARLOS
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1.
NA FORTALEZA DE ARONA
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No desenrolar-se da história dramática da Itália, suJeI
ta à ambição das potências estrangeiras, Gilberto Borromeu
conseguira, em 1530, quase milagrosamente, conservar to
dos os bens, podendo assim desposar Margarida Médicis,
pertencente a uma família milanesa de médicos e magistra
dos que nada tinha que ver com a homônima de Florença.
Seu pai, empregado do tesouro, perdera o pôsto em 1515,
quando da terceira ocupação da cidade por parte dos fran
ceses; e morrera cinco anos após, pobre e ignorado. A fa
mília decaíra de tal maneira, que um irmão, estudante da
Universidade de Pavia, sentira-se obrigado a esmolar entre
os colegas a fim de poder continuar os estudos.
Entre os vários irmãos, distinguia-se Margarida, não
tanto pela cultura e pelo engenho, quanto pela gentileza
de alma e pela modéstia. "Muito piedosa e tôda entregue
aos afazeres domésticos", no-la descreve o biógrafo mais
antigo e fidedigno, o Cardeal Carlos Bascapé; e não po
dendo pormenorizar-lhe mais a vida, fala-nos, um tanto
ingênuo e convencional, que atendia à família "depois de
ter assistido muito piamente, como costumava todos os dias,
à santa missa numa igreja vizinha; e, em seguida, permane
cia sempre em casa, a não ser em certas ocasiões quando
se permitia um curto passeio até o mosteiro das monjas".
Gilberto, também êle profundamente religioso, era de
índole diversa. Não obstante o aparato guerreiro de tôrres
e fortes que lhe cercavam a moradia, exultava de ser o pai
da guarnição e dos pobres que viviam nos arredores. As
rendas não lhe permitiam gastos inúteis, e o futuro santo
sentirá as conseqüências dêsses apertos financeiros.
Narra o historiador acima lembrado que, às vêzes, ex
probravam ao conde as liberalidades: "Pensasse nas filhas
- aliás numerosas - ainda por contrair matrimônio". "Se
me interessar pelos pobres, preocupar-se-á o próprio Cristo
por minhas filhas!" respondia Gilberto. Certamente não era
um raciocínio de cavalheiro ou nobre de 1500; contudo não
fêz muito mal os cálculos, pois poucos senhores de então
conseguiram casar tão bem as próprias filhas, ou gloriar
se de homem tão santo e-ilustre como o seu segundo filho.
Dotado de caráter suave, não podia, porém, deixar impu
nes os culpados de blasfêmias e expressões torpes. Tinha
tal inclinação e gôsto pelas coisas sagradas, que se teria
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podido tomar por um sacerdote encouraçado, principalmen
te se considerássemos o recolhimento com que recitava o ofí
cio divino; e essa piedade, com o passar dos anos, chegou
ao misticismo.
Conforme nos atesta Galeazzo Visconti, preferia a to
dos os lugares e salões do castelo, uma grutinha situada
no jardim, onde passava horas em meditação, para agra
decer a Deus os benefícios recebidos, revestido de hábitos
simples e depostas a espada e a couraça. Presságio das gló
rias futuras do filho no campo da fé? Pode ser, mas a essas
glórias êle não assistirá; morrerá jovem ainda, como acon
teceu com todos os Borromeus. Com somente quarenta e
seis anos havia-lhe falecido o avô, em 1508; em 1528, com
a mesma idade, perdera o pai; nasce-lhe o filho Carlos em
1538 e, em 1548, dez anos depois, expira a jovem espôsa.
Em 1558, tendo completado quarenta e seis anos - idade
fatídica para os parentes de São Carlos - falecerá tam
bém êle.
A figura da mãe de Carlos perde-se completamente
nas sombras. O Cardeal Bascapé no-la apresenta, como dis
semos anteriormente, muito piedosa e amada por todos os
vassalos, especialmente pelos pobres, doentes e abandonados.
O aposento em que habitava era conhecido como o "quar
to dos três lagos", porque das três janelas descortinavam
se três diferentes aspectos do Lago Maior, um dos mais be
los e amplos da Península Itálica.
Transcorridos oito anos de matrimônio, haviam nascido
três filhos. Frederico, que recebera o nome do avô paterno,
nascido quatro anos após as bodas; Isabel, vinda à luz
quando o primogênito completara dois anos, e, logo a seguir.
Vitaliano, que morreu poucos dias depois do nascimento.
Margarida pouco ou nada se ocupava dos acontecimentos
políticos que envolviam o marido. Dedicada à família, en
contrava a própria felicidade educando os filhos no temor
de Deus.
Nessa época Francisco I e Carlos V, atendendo ao pe
dido do Papa Paulo Ili, haviam assinado uma trégua por
dez anos; trégua mais que necessária depois de tantas guer
ras inúteis e funestas. Para Milão, a suspensão das hosti
lidades significou a dispersão das tropas imperiais e a re-
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São Carlos
Borromeu.
Ruínas da Fortaleza de
Arona.
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Dois 11w!J11Íficos as11eclos
do Lago Jlfoior.
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volta desesperada, na cidade e no interior, de homens esfo
meados, semelhantes em tudo aos mais cruéis salteadores.
E para agravar mais a situação, preparava-se solene
recepção ao nôvo governador que viria ·da Espanha, - pois
Milão sofria então, humilhada, a perda da própria indepen
dência. As festas e os gastos da nobreza levariam certamen
te a plebe, privada há tempo do indispensável, à revolta
e à devastação.
Considerando o estado de Margarida, gr:ávida do quarto
filho esperado para o outono, o Conde Gilberto transferiu
a família da capital para Arona. Apesar do calor estivo que
o dominava, o local escolhido era mais tranqüilo e mais
seguro. Soprava, ao entardecer, procedente dos Alpes, be
néfica aragem, suavizando os aposentos do castelo e acari
ciando o lago que dormia na planície. A vida ali transcor
ria ordenada por disciplina militar e fundamentada por pie
dade verdadeiramente monacal.
Em tal clima e de tais pais, nas primeiras horas da
manhã de 2 de outubro de 1538, abriu os olhos à luz o quar
to filho de Gilberto Borromeu: Carlos.
2.
E APARECEU UMA GRANDE LUZ ...
Preparando-nos para narrar as maravilhas que o Senhor
operou em Carlos Borromeu, apraz-nos lembrar a primeira
página do livro dedicado ao santo por seu primeiro e mais
importante biógrafo, o cândido Cardeal Bascapé: "Enquan
to considero os valores e os diversos estados dos homens,
julgo sinceramente felizes somente aquêles que, por gra
ça divina, levam vida virtuosa e excelente, e, com o exem
plo, impelem os outros a agir bem e louvàvelmente ... Prou
vera a Deus tivesse isso acontecido comigo! Como, porém,
me encontro muito longe de tão altos graus de felicidade,
é conveniente que, ao menos, me aplique a celebrar os
méritos e os fatos gloriosos dos outros, a fim de que todos,
se fôr possível, se movam a imitá-los".
Vida de s. carlos - 2 17
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Agrada-nos, outrossim, recordar que logo após sua mor
te, Pedro Giussano, sem dúvida mais apologista que histo
riador e hagiógrafo, dizia em tom de penegírico: "O cuidado
e a proteção que Jesus Cristo, Senhor Nosso, prometeu ter
de sua Igreja, manifestou-se sempre e em qualquer lugar,
mas particularmente na Igreja Milanesa, que foi fundada.
E neste século. não somente na cidade e na diocese de
Milão, corno também na Província e em outras regiões,
muito singular se pode chamar a graça e raro o favor que
Sua Infinita Bondade se dignou dar-lhe com o enviar a êsse
govêrno um arcebispo dotado de virtude, zêlo pastoral e
santidade tão sublimes ... "
Se imediatamente depois de seu trespasse se reuniu em
tôrno da grande figura do mais excelso dentre os Borrorneus
tão vivo interêsse por parte de escritores e penegiristas, não
nos admira que tenham embalado seu berço a lenda e o
maravilhoso.
Narra-se que, algumas horas antes de amanhcer o dia
2 de outubro, a obscuridade da noite foi interrompida, per
to de Arona, por intensíssima luz, que iluminou o lago, as
moradias e as tôrres do castelo. Acorreram todos ao ar livre
para observar o esplendor tão misterioso, assaz vivo e bran
co para assemelhar-se ao fogo, demais prolongado para
confundir-se com o relâmpago, e muito claro e luzente para
ser fosforescência. O processo de canonização lembra o pro
dígio relatado por testemunhas oculares. Descreveram a luz
como algo parecido ao raio brilhantíssimo, da largura de um
metro e muito longo, que atravessou o castelo de oriente a
ocidente, da Tôrre menor à do Falcão, situada sôbre o "quar
to dos três lagos". Poucas horas depois dêsse "signum gra
tiae" nascia Carlos Borrorneu.
Os corações singelos dos habitantes viram no prodígio
indício de futura grandeza ou de tempo prolongado de paz,
e o menino foi logo considerado mensageiro do bem e da
felicidade. "Aparecer,á o arco da aliança entre as nuvens -
dissera Deus a Noé - e será o sinal da paz entre mim
e a terra".
Não queiramos diagnosticar o gênio e a grandeza do
menino, tocado pela graça, por um fenômeno atmosférico,
maravilhoso sem dúvida, mas talvez natural.
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O pai, impressionado pelo fato, achou conveniente re
tratar o recém-nascido enfaixado; intitulou o quadro: "Di
vi Caroli lactentis effigies" - imagem do divino Carlos
lactente; mais tarde foram reproduzidas várias cópias e
delas encontramos acenos preciosos nos registros da casa
Borromeu. Os olhos luminosos e a mão energicamente fe
chada revelam-nos espírito vivo e vontade tenaz. Muitos ou
tros retratos de São Carlos rapazinho, criança até, se con
servam ainda hoje; em quase todos vemos o pequeno ajoe
lhado e absorto em oração, encerrado em elegante hábito
de pajem.
E' preciso, porém, que chegue aos vinte e cinco anos
para podermos encontrar um medalhão que nos apresente o
purpurado sob o aspecto verdadeiramente "humano".
O Cardeal Frederico Borromeu, primo de São Carlos e
também êle arcebispo de Milão - e que só não subiu aos
altares por humildade, como já se disse! - erigiu-lhe um
enorme monumento nas alturas de Arona, - monumento
que, pelo menos. na parte artística, merece algumas reser
vas. Lembrando o rio de dinheiro gasto por muitos para
obter, depois de sua canonização, imagens-lembranças, la
mentava que "talvez ninguém tivesse pensado em retratá-lo
quando vivo".
A queixa é deveras comovente naquela alma que tanto
amou e tão bem imitou o santo predecessor; de fato, se al
guém é honrado após a morte com a auréola da santidade
ou do gênio, retornamos com curiosa ansiedade a seu perfil
juvenil para surpreender-lhe a futura grandeza na atitu
de do semblante, na expressão dos olhos e na posição da
pessoa. Muito oportunamente acrescenta Frederico aquêle
"talvez", porque os retratos do primo são discretamente nu
merosos na primeira etapa da vida - da infância ao cardi
nalato - que pode ser chamada "humana", e muito mais
abundantes na última vintena de anos, - que é justo seja
denominada "heróica".
Os dois filhos da família Borromeu diferiam sensivel
mente entre si desde as !llanifestações da infância. Frede
rico, já aos dez anos, saía-se bem em tudo; belo e atraente,
o primeiro nos jogos, audaz e excelente no cavalgar, na
esgrima e na ginástica - aquela que se praticava em tais
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tempos; demonstrava, porém, pouco ou nenhum apêgo aos
livro� e estudos.
Carlos não possuía nenhum dos atrativos do irmão.
Rapazinho em tudo semelhante aos demais, nada tinha de
extraordinário que pudesse atrair a atenção. Grave e sério,
talvez mais do exigido pela idade, reservado ao extremo e
taciturno. E a torná-lo mais silencioso, contribuía a balbú
cie, que lhe dificultava o início da conversa, logo seguido
por um fluxo de palavras confusas que tornavam difícil a
compreensão do que dizia. O balbuciar desaparecia com
pletamente, porém, quando entoava a plenos pulmões hi
nos e cânticos em honra de Nossa Senhora - as músicas
por êle preferidas. Dessa inclinação nasceu-lhe verdadeira
paixão- pela música, de tal forma a ser, ainda jovem, exí
mio violinista.
Não lhe pretendemos valorizar, como demonstração de
futura santidade, o gôsto em armar pequenos altares e
imitar as funções sagradas. Quem, em família educada com
sentimentos sinceramente católicos, não teve, na infância, o
seu altarzinho com candelabros dourados? e poucos dês
ses meninos chegaram a ser São Carlos.
E' verdade, contudo, que a educação deveras religiosa
com que Gilberto modelava tanto sua vjda como a da fa
mília, ajudou não pouco a formar a consciênc�a quase sa
cerdotal em quem sentia espontânea atração para a vida
eclesiástica. A devoção do Conde para o Santíssimo Sacra
mento era realmente sublime, e procurava inculcá-la em
seus filhos, Isabel, Frederico e Carlos, e, a seguir, em Ca
mila, Jerônima e Ana. Quando repicava o sino da capela,
todos os habitantes do castelo, soldados e servos, ancmos e
jovens, nobres e plebeus, deviam deixar o trabalho ou o
jôgo e participar da oração em comum.
E não era êsse, para o castelão de Arona, o único ato
que manifestava os bons sentimentos de que andava re
pleto o coração. A oração unia a caridade, o "amai-vos uns
aos outros". Todos os dias, antes de sentar-se à mesa, dis
tribuía alimento e dinheiro aos pobres e peregrinos aglo
merados diante da entrada principal.
"Se me preocupar com os pobres, Deus protegerá meus
filhos" - costumava responder a quem lhe repreendia a
demasiada generosidade. Entre os murmuradores não estava
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certamente a espôsa Margarida, que, por sua vez, acrescen
tava às ofertas do marido solicitude e carinho por todos
aquêles que precisavam de ajuda e compreensão. Gilberto
não era grande administrador, pois, apesar das rendas da
propriedade de Arona e da pensão que lhe oferecia o im
perador, nunca possuía dinheiro suficiente para todos os
gastos, encontrando-se freqüentemente em apuros por cau
sa das dívidas.
Os retratos de Gilberto representam-no sempre em as
pecto guerreiro, totalmente revestido de armaduras resplan
decentes. Olhar sonolento sob espessos cílios, nariz longo
e aquilino - próprio dos Borromeus, - barba simples a
esconder pesada· maxila e bôca ligeiramente sensual, -
eis em breves traços a fisionomia do pai de Carlos. Homem
tranqüilo, mal suportava as cerimônias imperiais, e quando
Carlos V, percorrendo os domínios da alta Itália, convidava-o
a fazer-lhe escolta com outros cavalheiros, cumpria, sim,
o dever, mas retornava a Arona o mais cedo possível.
Nessa cidade deixava o castelo somente para visitar
os camponeses e aldeões que moravam nas circunvizinhan
ças. Em Milão, não saía do palácio senão para assistir à
santa missa na igreja de Santa Maria 'de Podone ou, nas
festas solenes, na catedral, ou ainda, para socorrer os en
fermos que jaziam ao longo das estradas.
Era quase sempre acompanhado pela espôsa que o
ajudava, como já dissemos, nessas obras de piedade, e ama
va a vida do marido porque, se fôsse possível, teria vivido
mais solitária e retirada que o conde.
Essa a imagem do pai que o pequeno Carlos tinha dian
te dos olhos e que haveria de imitar desde os primeiros anos
de existência
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3.
PREOCUPAÇõES DE ABADE
22
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&se fato tornou apreensivo o pai; qual o caminho que
devia escolher ao menino? O mundo, segundo o simplicíssi
mo pensar dos homens do século XVI, podia ser dividido
somente pelos reis e papas, e com as armas, bem mais po
derosas que o espírito e a fantasia ...
Para Frederico, o futuro j,á estava assegurado, - con
tanto que a generosidade do Conde Gilberto lhe deixasse
algo mais que o simples título. E Carlos podia contar com
a proteção dos dois irmãos de Margarida, - Jaime, que du
rante as guerras franco-espanholas ganhara alguma coisa
mais substancial que a pura glória, e Angelo que, apenas
de volta de uma missão na Alemanha, fôra nomeado ar
cebispo de Ragusa, e quatro anos após, cardeal da San
ta Igreja. Desejavam êles que o menino seguisse a car
reira dos nobres de então, no que contradiziam a mãe, para
quem a vocação do filho outra não era senão a eclesiástica.
Por carreira nobre entendia-se o caminho dos estudos
e das honras conseqüentes, tais a jurisprudência e a diploma
cia. "Carlos sabia ler e escrever corretamente, - diz-nos
outra biógrafa do santo, Margarida Yeo; compunha cartinhas
cm estilo perfeito e dissertava em latim ciceroniano; fala
va tão bem o italiano quanto o dialeto local, incompreensí
vel e impronunciável para os forasteiros. Sabia cantar com
clareza e entonação, tocava alaúde, e ainda que não fôsse
apaixonado como Frederico pela caça, pesca e falcoaria,
an1ava os cavalos, tornando-se, com o passar dos anos, bom
e incansável cavaleiro".
Seja como fôr, aos sete anos de idade, Carlos recebeu
a tonsura e o hábito eclesiástico; celebrou-se na catedral
de Milão solene e concorrida cerimônia, sendo oficiante o
bispo de Lódi; e aos doze anos foi investido da comenda e
do hábito aronense. Pelo primeiro rito, tornava-se Clérigo,
capaz de usufruir dos frutos de qualquer benefício, como
seja convento ou capítulo; e pelo segundo, assumia efetiva
mente, qual comendador, a posse e o uso de respeitável par
Í<' dos bens abaciais.
E assim, em 1550, com pouco mais de doze anos, foi
nomeado superior da abadia de Arona, deixada em seu fa
vor pelo tio Júlio César, pai do Cardeal Frederico. Trata
va-se de importante obra, ao redor da qual se desenrola
ra quase tôda a história da cidade.
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Sabe-se, pela antiga cromca aronense, que o cavalhei
ro Aminzão, chefe da soldadesca de ótão I no sítio de Roma
em 954, concedeu tanta liberdade aos homens confiados a
suas ordens, a ponto de ser devastada tôda a campanha ro
mana, chegando-se a incendiar o pórtico da basílica de São
Paulo. Resultado do ato vandálico foi a excomunhão lança
da pelo Papa João XII sôbre Aminzão; tendo-se, porém,
arrependido solenemente, conseguiu o perdão, e fêz o voto
de erigir em Arona, onde possuía terras, um mosteiro dedi
cado ao Salvador. E ao passar por Perúgia, demonstrou-se
católico de tão profundos sentimentos, que obteve do bispo
os corpos dos santos Graciano e Felino.
Em 979 igreja e mosteiro estavam de pé, e os benediti
nos que o ocuparam foram de tão grande zêlo e tornaram-se
tão necess·ários à população sôbre quem exerciam jurisdição
eclesiástica, que eram considerados ,árbitros em qualquer
assunto que se referisse à vida espiritual e, algumas vêze.;,
também civil dos habitantes.
O que pudesse fazer nessa abadia tão importante - que
em 1419 se transformara em comenda, de modo a poder ser
confiada também a eclesiásticos não beneditinos - um aba
dezinho de doze anos ... faz-nos sorrir somente ao pensar;
no entanto, Carlos Bascapé fala-nos com seriedade: "Apesar
da pouca idade, pensando no fato de serem os frutos do
mosteiro sagrados e que devia, como superior, dar contas a
Deus, lembrou modestamente ao pai - ainda que em tudo
lhe fôsse filho muito obediente - que não lhe parecia justo
nem julgava útil à salvação eterna de ambos, que tais fru
tos fôssem utilizados ao bem da família, em vez de distri
buídos aos pobres".
O pai não se melindrou com as observações do filho;
e começou a compreender que quem repartira o mundo, aos
cinco anos apenas, no solar doméstico, estava verdadeira
mente no préprio lugar lá onde o colocara mais por insti
gação de outrem que por convicção pessoal; e, homem bom e
caritativo que era, obedeceu escrupulosamente às exigên
cias do rapazinho.
Aquêle adolescente, chefe da abadia, era um menino
prodígio, destinado· a guiar os homens. Os monges que ha
bitavam o convento, de religioso e monacal possuíam so
mente o hábito; haviam-se tornado indolentes, licenciosos e
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turbulentos, no dizer do Cardeal Bascapé. O Abade Carlos
Borromeu, estudante em Pavia, em suas freqüentes viagens
à terra natal, condoía-se do triste estado moral em que se
encontrava a comenda. Começou por persuadir os benediti
nos a levar vida mais conforme às regras do Fundador e
do Evangelho; e, lendo-lhe falecido o pai e obtido por isso
jurisdição administrativa e plena responsabilidade do ins
tituto, mudou de tática; conformou-se escrupulosamente às
disposições canônicas, usou da fôrça onde havia necessidade
e não hesitou em condenar os mais rebeldes ao cárcere!
Tudo isso era obra de um môço que não completara ainda
dezoito anos! ...
Carlos gostava de permanecer na cidade natal, e en
contramos eco dêsse amor em suas numerosas cartas, prin
cipalmente nas do decênio decorrido entre a morte da mãe
e do pai. Apreciava igualmente participar das repetidas ca
çadas do irmão Frederico. Recordava freqüentemente, mais
tarde, os belos dias passados ao ar livre, cheios de movimen
to, alegria e luz.
Em carta remetida de Pavia, na qual, segundo o cos
tume do tempo, usa e abusa dos títulos de "digníssimo,
ilustríssimo e respeitável senhor irmão", pede que lhe seja
enviado um falcão; como, porém, o digníssimo e respeitá
vel senhor, que pouco depois seria eleito capitão das tropas
da Igreja, se esquecesse do pedido, Carlos insiste irônica
mente: "Temo que suceda com o falcão o que sói acontecer
com as perdizes; fazeis sempre grandes extermínios, mas eu
nunca consigo ver alguma ...". E outra ocasião: "A senhora
condêssa está muito contente em saber que Vossa Senhoria
faz sempre abundantes caçadas, - ainda que o saiba uni
camente por ouvir dizer ... "
Antes de ingressar na Universidade de Pavia, achou
melhor começar os estudos humanísticos em Milão. Tomou-os
a peito com a máxima seriedade, como podemos inferir de
uma carta, em latim, ao pai. A carta, ainda que repleta de
expressões retóricas, talvez excessivas num rapaz de treze
anos, deixa ver sólidos conhecimentos de gramática e epis
tolografia. E é também âfetuosa expressão de amor filial;
acusa-se, sim, de ter permanecido muito tempo sem escre
ver, mas que o pai não pense ter sido esquecido: "Eu es
quecer a vós? E' o que nunca acontecer.á. Deverão cair as
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estrêlas, obscurecer-se o sol, deter-se os céus, antes que me
torne culpado de semelhante delito". E continua: "Estudo
quanto me é possível; faltam-me livros; peço-vos, por isso,
que me compreis quanto antes: Plínio, De animalibus, Aris
tóteles e Salústio; custam cem sestércios". Em outra missiva,
escrita pouco tempo depois, repete com candura ao proge
nitor: "Escrever-vos, amado pai, me é coisa agradável
e útil . .. "
Nesse tempo não lhe conhecemos amigos de particular
relêvo; apreciava a solidão e a meditação como dos maiores
bens do espírito, estabelecendo-se, para usufruí-los, no quie
to ângulo de São Celso. Encontrando-se, porém, em compa
nhia, estava longe de ser carrancudo ou desmancha-praze
res. Perguntou-lhe, certa vez, um colega se pretendia pre
cedê-lo no Paraíso, para oferecer-lhe água benta quando
aparecesse na porta! Carlos não respondeu, mas sorriu.
Disciplina interior antes de insensibilidade, pois o menino
era de ânimo extremamente delicado e sensível.
E' o que deparamos numa carta a um amigo de Arona
na ocasião em que deixava Milão para freqüentar a Univer
sidade de Pavia: "Caríssimo amigo Luís Vignola! Sinto de
sejo tão ardente de rever-te, que não sei exprimi-lo por
palavras. Devo seguir imediatamente para Pavia, tu o sa
bes; e peço-te, com todo o coração, em nome do grande
afeto que te dedico, que venhas logo, antes que parta, para
passar ao menos algumas horas comigo. Seria deveras in
feliz se partir sem ver teu semblante".
4.
MILÃO EM DUAS ETAPAS
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e com setenta era considerado decrépito - recordava, admi
rado e comovido, a côrte de Ludovico, o Mouro, como das
mais esplêndidas da história milanesa. O Renascimento atin
gia então seu máximo esplendor. E Milão, apesar de não po
der rivalizar vitoriosamente com Roma e Florença na pro
clução artística, fruía no pal:ácio dos Sforza de uma verda
deira Academia que atraía de tôda a Itália os maiores gê
nios, quais Leonardo da Vinci e Bramante.
Nos magníficos salões do castelo, descritos e louvados
por Castiglione no livro O Cortesão, discutia-se, entre lite
ratos e guerreiros, músicos e humanistas, poetas e cientistas,
se Petrarca era ou não superior a Dante, e que relação ha
via entre Platão e Aristóteles. E o maior matemático da
época, Lucas Pacioli, dedicava os primeiros capítulos da
obra A Divina Proporção a Ludovico, exaltando-lhe a côr
tc, repleta de beleza, arte e intelectualidade. A par de tanta
grandeza, porém, alastrava-se, rápido e sutil, o cancro do
luxo, que haveria de causar a ruína da nobreza e da po
pulação.
Desde 1504, começaram a aparecer decretos coibindo
o avançar sempre crescente da desmoralização; mas, como
os famosos editais de que fala Alexandre Manzoni em Os
Noivos, não passaram de letra morta. Os nobres e as damas
continuaram a ostentar hábitos riquíssimos, - meias de sêda
muito aderentes às pernas, jaquetas de cetim e de veludo,
espadas com empunhaduras de prata ou de ouro prêsas
cm cinturões repletos de pedras preciosas, e curtas capas
francesas a esvoaçar por sôbre os ombros.
As mulheres, exibindo decotes provocantes, apertavam
o busto com corpetes recamados de adornos de ouro e de
pérolas; as saias, longas e pesadas, estavam bordadas sun
tuosamente; os cabelos, geralmente pintados, reuniam-se
por trás da nuca com broches de pedras reluzentes. Arran
cavam-se as sobrancelhas, - nihil novi sub sole! - e colo
riam-se os lábios de um vermelho tão vivo, que as bôcas
se assemelhavam a feridas abertas e sanguinolentas. O con
ceito da mulher medievql, retirada, totalmente entregue à
oração e aos afazeres domésticos, cedera lugar à mulher
do Renascimento, desejosa de igualar-se em tudo ao ho
mem e de participar ativamente na vida social e política
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da cidade. Tornara-se culta e educada, mas também in
saciável e vã.
Não nos devemos admirar de que, com tais pessoas e
costumes, se houvesse deslizado ràpidamente para a moda
indecente. Contra a nova chaga que corroía a sociedade, in
surgiram-se tanto os legisladores com multas e tôda a es
pécie de castigos, como os sacerdotes nos púlpitos, e os
moralistas nos livros; mas não conseguiram nenhum re
sultado satisfatório. Esquecera-se que a pureza dos cos
tumes segue de perto a grandeza da nação. E o Estado Mi
lanês, de história tão gloriosa, decaiu com rapidez extraor
dinária quando os habitantes se entregaram ao luxo de
senfreado. Dessa forma, quando os descendentes daqueles
que tinham espalhado tanta luz pela Europa quiseram co
brir de ouro e preciosidades os próprios hábitos, foram
obrigados a jazer, envergonhados, sob a dominação estran
geira. Nem tôdas as desgraças, porém, vêm para o nosso
mal. . . O comércio e a indústria, graças principalmente ao
sexo frágil, ganharam grande incremento ...
Normas suntuárias existiam . . . desde 1:J46; a primeira
que nos chegou completa teve origem em Galeazzo Visconti,
o qual, lamentando primeiramente a escassez de matrimô
nios causada pelas exigências da vida e pela frivolidade
das mulheres na emulação do luxo, proibia o uso de péro
las no vestuário; vetava, outrossiin, os enfeites de ouro
e de prata, os forros de peliça e os botões dourados, hoje
distintivo dos hoteleiros, e na época, dos doutos e físicos.
A lei atingia igualmente os tecidos cerzidos em ouro e
prutu, u niio ser que se tratasse de damas de alta posição,
devendo cudu mulher vestir de acôrdo com a própria con
dição social; e ai das costureiras que desobedecessem ao
decreto!
Mais tarde, nôvo edital emanado do conselho secre
to, estando presentes os conselheiros de justiça, os doutô
res do colégio, o vigário-geral e os doze da provisão - que,
sem dúvida, nada de melhor tinham que prover! - opu
nha-s� a que as senhoras usassem não somente pérolas,
como também colares de ouro, broches e pedras preciosas,
sob pena de confisco de um quarto dos objetos seqüestrados.
Restavam contudo os outros três quartos... e o marido,
que se apressava em indenizar o perdido, a fim de que a
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própria espôsa pudesse competir com as dos senadores,
dos condes, dos marqueses, dos barões, dos militares, dos
jurisconsultos, dos físicos e dos licenciados do Estado Maior,
para os quais não existiam proibições.
Todos os rigores da lei eram para o povo miúdo que, en
tre tantas proibições e sanções., não se sabe como pudesse
respirar; as coisas mudavam, porém, quando se tratava das
espôsas dos senhores ... No enxoval de Bona de Sabóia,
por exemplo, noiva de Galeazzo Sforza, figuravam, além
do costumeiro, doze manteletes de brocado dourado, branco,
carmesim e escuro; seis vestidos elegantemente prateados;
vinte e cinco pares de meias douradas e cinqüenta pares
de chinelos bordados. E tudo isso não era nada em compa
ração com o enxoval preparado por Ludovico, o Mouro,
para a sobrinha Branca Maria, em cuja cesta nupcial o
Imperador Maximiliano chegou a encontrar um aquecedor
de-cama de prata ...
E como, por mais ricas que fôssem as vestes, nenhuma
dama podia trajar senão uma por vez, costumava-se ador
nar abundantemente as senhoras e criadas do séquito, co
brindo de ouro e prata pajens e palafreneiros, cavalos e
cães, gaviões e falcões. Era, enfim, o luxo e a fartura que
imperavam ... infelizmente por pouco tempo.
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pretendentes, sendo sempre uma só a conseqüência de tudo
aumento dos impostos ...
Em 1543 o imperador constituíra um Conselho Secreto,
no louvável intuito de superintender as taxas, regulá-las
discipliná-las e proteger os interêsses do ducado e dos ha
bitantes. Aquêles mesmos, porém, que deviam favorecer
lhe o funcionamento, tudo fizeram para impedi-lo, e a no
va constituição, apesar dos correios despachados de Madri
para controlar a execução de suas ordens, assim como as
ameaças do César espanhol, permaneceram sem resultado,
o que, aliás, já era de praxe.
O Conde Gilberto comportara-se com bastante habili
dade no meio de tantos perigos, abstendo-se de assumir po
sições claras e contentando-se do grau de coronel de in
fantaria, dignidade de pouca monta e que não causava in
veja a ninguém; tanto mais que a exercia quase que unica
mente em Arona.
O palácio dos Borromeus era dos mais notáveis da
Milão renascentista. A entrada principal, que ainda hoje
se conserva intacta, é de tríplice modinatura; em sua fren
te deparamos com um dos numerosos brasões da família,
- pequeno cêsto a conter um camelo ajoelhado em modo
assaz grotesco. Eis a descrição que nos dá Margarida Yeo :
"Ingressando no p:átio, deparamos com v,árias arcadas, -
uma à direita, outra à esquerda e a terceira, a mais antiga
e interessante, encontra-se ao longe, nos fundos. Os arcos,
em forma aguda, pousam sôbre pilares baixos e sem or
namentos. Um dêles leva esculpida grande cobra a engolir
um menino, brasão que se acreditava ter sido apanhado
por certo cruzado da família dos Viscontis na guerra con
tra os sarracenos.
"O original teto de madeira está dividido por quadros
brancos e prêtos, alternadamente. No pátio interno encon
tramos o lema de São Carlos, lema que orientou a vida de
milhares de almas generosas através dos séculos - Humi
litas; pouco acima, com aparente contradição, bela coroa
a nos lembrar que o poder de Deus se manifesta através
das almas pequeninas. Aqui e acolá aparecem afrescos com
cenas da vida dos princípios do século XV, e por isso Ja
seculares quando Carlos ali vivia. Majestosa escadaria, la-
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deada por balaústres côr-de-rosa e avermelhados, conduz
nos do pátio às salas superiores.
"Os caminhos que o jovenzinho percorria para assistir
à santa missa ou às aulas eram muito breves. Os espanhóis,
ao sair pela cidade, vestiam geralmente trajes prêtos; úni
co ressalto era o brilho do aço dos soldados em marcha e
o cintilar do ouro dos capacetes e das couraças de algum
cavaleiro. As senhoras permaneciam em casa, ou saíam
vestidas de prêto e cobertas pos espessos véus".
Havia muito que a cidade não gozava de bispos está
veis. O Cardeal Hipólito d'Este, filho de Afonso, duque de
Ferrara e de Lucrécia Borgia, nomeado arcebispo de Milão
aos quinze anos, permanecera sempre na côrte francesa e
nunca exercera o próprio múnus. Viários prelados viviam
alhures, deixando as próprias sedes vacantes. As casas re
ligiosas distinguiam-se, infelizmente, mais pela preguiça e
con·upção dos membros, que pela piedade que delas devia
promanar. E dos pobres, quem se interessava? Não certa
mente a assistência pública, que era como que inexistente.
Milão, como tôdas as grandes cidades de 1500, contras
tava vivamente quanto aos estilos arquitetônicos. As vielas
velhas sufocàvam-se entre casas altas e aglomeradas ao
excesso. Onicamente as ruas novas apareciam bastante lar
gas; podiam transitar nelas as carroças e os côches, aliás
raros, dos nobres e dos ricos. As pestilências e as doenças
infecciosas produziam estragos imprevistos e enormes nas
habitações angustas, aderentes umas às outras e repletas
de inquilinos sujos e negligentes. Daí as tão freqüentes pes
tes que assolavam cidades inteiras nessas épocas.
Poder-se-ia resumir a vida milanesa nas terríveis atro
cidades dos legionários estrangeiros espanhóis e alemães,
nos ribombos dos canhões do castelo, nos dobres dos sinos
da catedral que chamavam os cidadãos às armas, nas pro
cissões penitenciais com longos cortejos de frades domini
canos e franciscanos em saiotes branco-prêtos ou marrons,
seguidos pela multidão descalça e com voz já rouca de
tanto salmodiar; voz que transformava o canto da sagrada
liturgia em blasfêmias ou -insultos à menor ocasião.
Também a questão econômica constituía problema de
não fácil solução para uma nobreza que vivi-a de pensões
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e de rendas fixas. porém magras, como acontecia com os
Borromeus.
Em J\tilão habitavam o palácio senhoril não menos de trin
ta pessoas, número habitual para qualquer família qu1• se
prezasse. A tôda essa gente, criados, escrivães e oficinis,
era preciso prover vestes, alimentação, hospedagem e ...
salário. causa de contínuas desavenças e revoltas por ser
prorrogado. . . ao infinito. A descoberta da América, que
à primeira vista parecera fortuna econômico-financeira de
vastas proporções, mudara-se em improvisa depressão pela
desvalorização da moeda, devida ao afluxo de ouro e ao
conseqüente aumento dos preços. Quase todos os nobres
possuíam, nos arredores da cidade, chácaras que lhes for
neciam pão, vinho, azeite, legumes e carne. Cinqüenta anos
de guerras e devastações, porém, tinham reduzido a região
à miséria quase total.
As taxas oprimiam de tal maneira a população, que
pareciam autênticas armadilhas destinadas a extorquir os
infelizes habitantes. Construíam-se novas muralhas? Como
arranjar o dinheiro necessário? Com o modo usado por
todos os governos estrangeiros e despóticos - a extorsão.
E sendo que o Príncipe Filipe, o futuro rei-imperador, devia
visitar as possessões italianas, era preciso apresentá-las da
melhor maneira· possível; eis então novas demolições, com
o conseqüente acréscimo dos impostos.
O filho de Carlos V fêz sua entrada triunfal em Milão
em dezembro de 1548, num dia frio, nevoento e chuvoso.
As estradas, alegremente adornadas, estavam, segundo o
uso do tempo, repletas de divindades pagãs e de santos
cristãos. O ingresso foi bastante solene, mas o jovem prín
cipe, louro, tímido e silencioso, apenas quebrava o retrai
mento para sorrir, pálida e fugazmente, aos aplausos e ao
florilégio dos intermináveis discursos. Nem se pode afirmar
que seu estômago delicadíssimo tenha encontrado grande
prazer nos muitos e copiosos banquetes com que se inter
calavam as _outras manifestações de alegria. Quando partiu,
certamente respirou aliviado.
Para o Conde Borromeu, como para os demais nobres,
tratou-se de grossas som3:s para pagar e de longas e tedio
sas cerimônias para assistir. O único que se divertiu bas
tante foi Frederico, que assim pôde cavalgar à vontade
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Duas obr as-primas da arquitetura renascentista
italiana: a Catedr al de Milão e a Basílica de S.
Pedro, em Roma.
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Igreja de San Cario ai Corso:
Pintura bastante célebre coloca
i/a sôbre a 11ma 0111le está o
cornção ,lo Sa11 to.
Fachada da igreja
de 'an Cario ai Catinari.
Afrêsco da abside.
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entre os jovens de sua idade e permanecer fora de casa em
companhia da ruidosa comitiva de rapazes da nobreza.
Carlos, entre tantas e continuas festas e alegrias da ci
dade, comportava-se como ausente e estranho. Sob a apa
rência de distração e desinterêsse, porém, alimentava pro
fundo fogo interior que o levara a escolher para sempre o
seu caminho. Pode-se então imaginar com quanta alegria
saudasse o alvorecer do dia em que começou a freqüentar
a Universidade de Pavia para completar a necessária cultu
ra e obter a láurea in utroque iure, - em direito civil e
eclesiástico.
5.
APUROS DE ESTUDANTE
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nhoria deposita em mim". São os propósitos de quase todos
os jovens que se dedicam aos estudos sob o amparo do
cofre paterno ...
Carlos, porém, sentia de modo particular que devia de
monstrar aos seus algum resultado tangível pela proteção
e ajuda dispensadas. Escreveu ao tio João Angelo Médicis,
futuro papa, agradecendo-lhe o caloroso amparo e assegu
rando-lhe que jamais se arrependeria do bem que lhe fi
zera e que ainda haveria de fazer, e quase pressagiando
o futuro do cardeal, conclui: "Peço a Deus que vos conserve
por muito tempo, porque sôbre vós repousa tôda a grandeza
de nossa família". De fato, em 1559• com o nome de Pio IV,
o tio subia ao sólio pontifício.
Depois de se ter acomodado do melhor modo possível
em pequeno aposento que 11ada tinha de comum com o pa
lácio de Milão e com o castelo de Arona, foi preciso adaptar
se às muitas exigências da cidade e do estudo e, antes de
mais nada, ao clima. Carlos sofre a umidade da região, co
locada entre dois rios, e o nevoeiro, denso e insistente, cau
sa-lhe contínuo mal-estar. Não chora tanto o clima de Milão
quanto o de Arona. Pede ao pai uma peliça "porque todos
os colegas, nobres ou plebeus, fazem uso dela na cidade".
Pensa que poderia compr:á-la êle mesmo, evitando assim ao
pai outros gastos além dos muitos que j,á lhe faz; por fim
renuncia delicadamente ao pedido; e para não humilhar
o progenitor, traz como causa da desistência o fato de que
"nenhum nobre religioso leva a peliça fora do próprio
quarto", e êle era o abade de São Graciano.
Foi acusado nesse tempo de não recitar o ofício divino,
obrigação essa de todos os eclesiásticos. Como é natural, o
pai faz-lhe algumas observações. Vivamente indignado, ·res
ponde: "Somente um mentiroso pode caluniar-me tão vil
mente, pois nunca descurei tal dever e jamais o deixarei
até que viver". Parece ter sido, ao invés, o próprio acusa
dor, o sacerdote ecônomo da casa - administrada, aliás,
com a mais culpada negligência, - a esquecer-se do bre
viário e de outras coisas bastante delicadas. . . Tanto que
o aba:dezinho - cujo ca:t:áter firme e resoluto já conhece
mos - despediu-o cortêsmente.
Para angustiar ainda mais o jovem estudante, concor
riam os apertos financeiros. E deverá responder ao pai,
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desejoso que o filho visitasse certo tio residente em
Melegnano, pequena localidade da província: "Mas com
que irei? Nada tenho; falta-me tudo: - meias, barrete,
colête, botas, chapéu e esporas". Com todo o respeito devi
do a quem tanto amava, não pôde eximir-se de lamentar-se
pela lentidão com que lhe chegava o necessário para viver:
"Desejaria que Vossa Senhoria enviasse finalmente o di
nheiro com mais rapidez, pois é uma vergonha para uma
pessoa da minha condição ser obrigado a levar um manto
sob a peliça, como fui constrangido a fazê-lo nesses dias".
Ouvindo dizer que, por motivos econômicos, ser:á colocado
em pensão, escreve: "Parece-me que no próximo ano de
verei viver em pensão. Pensai no crédito que derivará para
vós e para mim". Respeitoso sim, mas explícito. E acima de
tudo, cheio daquela dignidade que sempre o acompanhará,
até nos momentos do mais total abandono de sua personali
dade humana na grande doação a Deus através do amor
aos homens.
A pobreza afligia-o não tanto por si mesma, quan
to pela má figura que representava o pai. Possuía êlc
quatro camas com dois pares de lençóis para si e três para
os criados. E os cobertores, para defender-se do frio e da
umidade, não eram senão três.
Tais apertos acabaram por prejudicar-lhe a saúde. Com
efeito, sobreveio-lhe violenta gripe acompanhada de enxa
quecas agudas, obrigando-o a suspender os estudos por vá
rios dias. Essa indisposição molestá-lo-á durante a vida intei
ra. A luta contra a necessidade torna-se para o jovem aba
de realmente espasmódica. Todos exigem dinheiro. O nôvo
diretor da casa, o sacerdote Lotário, humilha-o continua
mente, afirmando que em qualquer moradia nobre os
criados recebem boa remuneração, afora nos Borromeus.
A dona da casa reclama pelos aluguéis vencidos. E, como
conseqüência, há expulsões e desavenças. Os servos, osten
tando vestes rôtas, repetem sempre a mesma antífona -
na casa de um Borromeu não se deve andar em andrajos.
Quem, porém, vestia trapos, e quase diàriamente, era êle
mesmo, o pequeno abade.
O porquê da recusa por parte dos familiares a tantos
pedidos e súplicas pecuniárias de Carlos não é bem escla
recido. E' preciso crer que navegassem em ,águas deveras
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turvas para opor tão obstinado silêncio às freqüentes e ma
çantes queixas do filho. E, de outra parte, o "muito honrado
senhor irmão Frederico" não tem escrúpulos no uso do di
nheiro, e suas dívidas são tantas que Carlos, já cardeal, de
verá satisfazer com seu dinheiro os numerosos credores
do irmão.
Em 1557, contudo, diante da economia paterna, tão
grande que já se convertia em avareza - defeito de fa
mília, que o futuro santo terá de lutar até a morte para
extirpar, - Carlos explode: "Conforme o cálculo do senhor
Túlio, feito do modo mais rigoroso, e sem lembrar que tudo
encareceu, tínhamos decidido que devia eu receber duzen
tos escudos no princípio do ano escolar - setembro ou ou
tubro - e outros duzentos entre o Natal e o Carnaval. Vos
s& Senhoria pode ficar certo de que não tenho a intenção de
dar-lhe o menor desgôsto; considerando, porém, a que pon
to estão os fatos, queira ao menos desculpar-me ... "
Ocasião chegou em que pareceu ter sobrevindo em sua
casa a mais intrincada confusão. Todos julgavam-se no di
reito de mandar. O Padre Lotário, violento e grosseiro, dis
cutia diàriamente com a cozinheira por causa da alimenta
ção que, segundo êle, além de intragável, era indigna de sua
condição. Outro criado, de nome Francisco, em quem não
se sabia se fôsse maior a fanfarrice ou a ignorância, criti
cava tudo e todos. E comprazia-se em divulgar, ingênua e
tôlamente, as dificuldades e disputas dos membros da
companhia, principalmente do jovem conde. Certo dia, o
Padre Lotário e Francisco não se contentaram com simples
palavras. . . e a polícia foi obrigada a intervir.
Em vista dos embaraços de tôda a hora, escrevia para
casa o pobre estudante: "Suplico-vos, amado pai, de con
siderar minha situação e de enviar alguém que seja inte
ligente e que faça valer sua autoridade. Pedro, apesar de
ancião, nesse ponto nada vale! » Assim se exprime êsse ra
paz que três anos depois será Cardeal e Secretário de Estado!
O sentido da autorida9e é nêle já vivo; a seus olhos o
débil e abúlico é criatura infeliz, nascida para infelicidade
própria e alheia e tudo já nos faz prever que, se tiver al
gum dia postos de comando, saberá aproveitá-los.
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6.
EXCOMUNGADO.
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e lembrando os perigos e dificuldades dos estudantes aban
donados a si mesmos, projetou o que se tornou realidade
em sua primeira estada em Roma, - o Colégio Borromeu,
instituto destinado a recolher os jovens desejosos de unir,
na prática da vida, a ciência e a virtude.
Foi também em Pavia que Carlos recebeu um dos
maiores sustos de sua vida . .Já havia mais de um ano -
estamos ainda em 1554 - que iniciara o estudo do direito
civil. Encontrando-se certa vez em Arona, ouviu de rigoroso
pregador a notícia de que incorrera na excomunhão e, o que
era pior, reservada ao Sumo Pontífice. Com tão triste nova,
por pouco que não perdeu a cabeça. O pai se encontrava au
sente e, além de não contar com ninguém em quem apoiar
se, devia partir imediatamente para Pavia. Certamente ho
mem algum compreendeu sua dor, vendo-o apresentar-se
na universidade com o indesej.ável título de excomungado.
Mas de que se tratava enfim? De antiga disposição do Papa
Alexandre III que proibia aos eclesiásticos - e Carlos era
abade - o estudo do direito civil, sem expressa autoriza
ção; era uma norma obsoleta, que havia muito caíra
em desuso e da qual ninguém j,á se importava. Chegando
a Pavia, alguns religiosos o tranqüilizaram, rindo-se do seu
temor exagerado. Carlos, porém, recorreu sem demora ao
pai, suplicando que lhe providenciasse a devida licença.
Em julho de 1558, penúltimo ano de sua permanência
em Pavia, soube que o Cardeal Médicis se dirigia a Milão
a fim de prestar homenagem ao nôvo governador espanhol.
Escreveu imediatamente ao pai, comunicando-lhe que viria
à capital, caso não recebesse ordens contrárias. Foi essa a
última carta ao Conde Gilberto.
Apenas chegado, foi chamado ao leito de um moribundo.
Gilberto morreu no dia 28 de julho, com somente 47 anos,
depois de breve doença. Foi sepultado na igreja de Santa
Maria Podone, um dos três templos mais antigos dedicados
a Maria Santíssima: Santa Maria Fulcorina, fundado por
certo Fulcoriano no ano 1000; Santa Maria Podone, erigido
por Verulfo Podone, soldado longobardo, em 871, e refor
mado pelos Borromeus; e Santa Maria da Porta, assim no
meado por estar situado perto da antiga Porta Vercelina.
Na igreja de Santa Maria Podone existia belo sepulcro da
família, onde repousavam, em quatro urnas de mármore,
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os corpos dos avós, João e Cléofas, de Lanciloto e da espô
sa Lúcia, e de Margarida, mãe de Carlos. Os despojos mor
tais do Conde Gilberto foram colocados sob o pavimento,
conforme o desejo expresso pelo filho.
A morte do pai significou para o segundogênito aumen
to de encargos e responsabilidades. Frederico não quis sa
ber de administração nenhuma, e delegou o irmão como
único responsável de tudo. Primeiro ato do nôvo senhor da
família Borromeu foi bater-se pelo domínio da fortaleza
de Arona. E' que, havendo-se iniciado novamente as hostili
dades entre a França e a Espanha, o governador, descon
fiando da garantia oferecida pelos dois jovens, ocupara o
castelo, confiando-o a um capitão espanhol. Essas circuns
tâncias demostraram no futuro diplomata do Vaticano ha
bilidade incomum nas negociações com as autoridades es
panholas; enquanto isso, o irmão permanecia no castelo, si
lencioso e desinteressado.
Carlos, num vaivém contínuo entre o governador e o
grande conselheiro, procura defender a posição de Frede
rico. Não se contenta com as promessas vagas dos dois altos
funcionários; insiste para que sejam informados do que se
passa, o duque de Alba e o rei. Ao mesmo tempo deve lutar
contra os próprios parentes; contra o tio Francisco, agasta
díço e obstinado, e contra o irmão, impetuoso e ousado, que
promete mandar ao diabo, a qualquer momento, todo o pu
dente trabalho do irmão, com suas ações intempestivas e
nmeaças ... que, felizmente, não passavam de palavras. Por
fim, parece que as coisas estão chegando a bom têrmo e a
próxima vinda do tio purpurado leva a crer que desapa
reçam tôdas as dificuldades. Eis, porém, que os inimigos
do Papa Paulo IV espalham aos quatro ventos a notícia da
morte do Pontífice. O Cardeal Médicis deixa o caminho de
Milão, e se dirige velozmente para Roma. A morte do Papa,
contudo, não era senão grave doença. Mas os cardeais, en
contrando-se todos reunidos na capital do Cristianismo, re
solvem permanecer . . . esperançosos de iminente conclave.
O duque de Alba, por iniciativa própria, resolve livrar
se de Frederico; Carlos, então, toma uma decisão fulmínea.
Frederico deverá comparêcer, em companhia do tio César,
à presença do governador que, no momento, se encontrava
em Asti: "Trata-se - diz Carlos com autoridade - da hon-
41
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ra e do interêsse de tôda a família; no que concerne a Fre
-derico, êle obedecerá em tudo as vossas ordens". Tem-se
.a impr�ssão que, mais que o tio Francisco, esteja o sobrinho
Carlos a dar tais ordens. Os resultados, contudo, não foram
satisfatórios. A questão prolongou-se até o Natal de 1559,
quando da eleição do tio, sob o nome de Pio IV. Pouco de
pois da coroação, realizada no dia 6 de janeiro de 1560, a
fortaleza foi entregue aos Borromeus, a 13 do mesmo mês.
Em todos êsses esforços de sutis e intricadas indaga
ções jurídicas, tomadas de posições autoritárias, direitos
feudais e régios, Carlos, obrigado a empenhar-se, jovem
como era, em árduas dificuldades de homens e de ambiente,
e impulsionado - não se deve negá-lo - pelo orgulho da
família, agiu com prudência e energia superiores ao que
sua idade comportava.
7.
LAGRIMAS DE UM SANTO
8.
PIO IV
46
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gasse ser fàcilmente eleito. Ao invés, acontece completa
mente o contr.ário; é que a diplomacia conseguiu influir nos.
votantes, jogando-os de um lado para outro, e depois de
dois meses de grandes discussões achou-se melhor suspen
der o conclave até o ano seguinte.
Os enviados florentinos, porém, conseguiram que a
idéia não conquistasse adeptos, e assim, quando na manhã
de Natal o obstinado Afonso Carafa foi conquistado pelo
duque Cósimo, estabeleceu-se a eleição para o dia 26; mas,
momentos depois, para que não surgissem outras surprêsas,
foi decidido realizá-la imediatamente. Assim, ainda de noi
te, tendo-se acordado os cardeais, conduziu-se João Angelo
à capela; foi ali obrigado a sentar-se no trono, com grande
alegria dos presentes. Os próprios cardeais doentes deixa
ro.m o leito para render homenagem ao nôvo Papà. Uma
das primeiras declarações do pontífice referiu-se ao nome:
"Vocabor Pius - Serei chamado Pio, porque é minha in
tenção ser o que o nome significa".
Nas festas da coroação, as funções da basílica de São
Pedro foram acompanhadas de tais clamores da multidão,
que, conforme refere Pastor, "ouviam-se somente os tiros
de canhão desfechados para solenizar o acontecimento".
A aglomeração foi tanta, a ponto de quarenta pessoas mor
rerem na confusão geral. E pensar que Pio IV manifestara
o desejo de reduzir ao mínimo as pompas e distribuir aos
pobres as sobras!
João Angelo fôra elevado ao trono pontifício para ope
rar precisamente o contrário do antecessor. "E dava es
peranças a tanto, - diz-nos Franceschini; o próprio as
pecto físico; o rosto benigno e sereno; o colorido róseo de
suas faces; a barba grisalha; os dois olhos vivos e inteli
gentes; a conversação tôda a saltog, e as respostas prontas
e impacientes, sem jamais dar sinal de cansaço; pouco to
lerante, porém, com opiniões contrárias às próprias, apesar
de nunca afastar-se da afabilidade e dos bons modos. Ama
va o movimento, a boa mesa, e. comprazia-se das palestras
com literatos, artistas e. . . bufões. Os longos anos de expe
riência adquirida ao contacto, algumas vêzes penoso, com
homens de ambiente diverso, tinham-lhe desenvolvido finís
simo sentido político; abstinha-se de contrastes e litígios en
tre os potentes do mundo, e ainda que distante da santidade
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do sucessor Pio V, era, afinal, puro de costumes e equili
brado de caráter":
A ascensão de Pio IV ao sólio de Pedro levava consigo
o problema do nepotismo, numeroso e ávido de cargos e hon
ras. "Os sobrinhos e outros parentes do Papa - escrevia
o representante de Módena no dia seguinte ao da coroação,
7 de janeiro - multiplicam-se diàriamente, provindos de
tôdas as partes, principalmente de Milão e da Alemanha".
Querendo enumerá-los, superavam a casa dos vinte. Cinco
eram os filhos da irmã do Pontífice: Clara, esoôsa de Teo
dorico Van Hohenems, nobre guerreiro que pirticipara de
muitas batalhas sob a bandeira do Império; cinco eram os
Serbelloni; e, em seguida, havia tôda a família dos
Borromeus.
Deixemos, porém, todos êsses mendigos opulentos, es
cravos da cobiça que aumentava em proporção das honras
e riquezas recebidas, e v.olvamo-nos a Carlos, o único pa
rente a deixar na história da Igreja, da família e da huma
nidade, lembrança indelével e gloriosa. Os dois filhos de
Margarida, Frederico e Carlos, eram os prediletos de Pio IV;
o primeiro encontrava-se já em Roma nas cerimônias da
coroação; e Carlos foi chamado expressamente, logo de
pois da eleição.
Em Milão a alegria tomou conta de todos os habitantes.
Os sinos bimbalharam entusiástica e ininterruptamente o
dia inteiro. Nobres e comerciantes rivalizavam em congra
tular os sobrinhos. O pátio, as escadarias e as salas do pa
lácio Borromeu foram ocupadas por pessoas que pela pri
meira vez visitavam aquêles lugares e que nem por isso
deixavam de ostentar familiaridade e desenvolturas sur
preendentes. Frederico, seguido de numerosa comitiva de
nobres lombardos, partill velozmente para o sul, a fim de
chegar a tempo para a coroação.
Carlos permaneceu sozinho no palácio deserto. Havia
muita coisa a que pôr ordem e, ademais, não sentia nenhum
desejo de correr para Roma com a turba ululante, sequiosa
de riquezas e de honras. Entendera- que estava aberta tam
bém para êle a porta do mundo, com tôdas as belezas reser
vadas aos que o dominam. . . econômicamente; sentia, con
tudo, grande necessidade de recolhimento e de pertencer-se
antes de lançar-se no sorvedouro.
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No dia 3 de janeiro anuncia ao conde Guido Dai Verme
sua ida à Cidade Eterna: "Recebo nesse momento um men
sageiro de Sua Santidade; parto para Roma, onde desejo
beijar os pés do Papa e colocar-me a sua disposição. A pre
sente tem por fim pedir a Vossa Senhoria, sempre que se
apresente a ocasião, queira utilizar-se de mim e de meu ir
mão. Pode estar certo de que nc;>s encontrará sempre dispostos
a servir não somente ao senhor, como também a seus filhos".
O orgulho e o prestígio da família reaparecem repen
tinamente. Sigamos, mediante as cartas chegadas até nós,
o afortunado jovem em sua viagem romana. Na trapa de
Lódi escreve ao mesmo conde: "Envio-vos esta carta para
pedir que façais pintar, quanto antes e da melhor maneira,
os brasões da família Borromeu - o freio, o "humilitas", o
unicórnio e ·o camelo . . . Se não fôr possível deix•á-los pron
tos para a partida de Pedro, que acompanhará Serbelloni,
enviai-os a todo custo esta noite ou amanhã bem cedo".
Seguem outras recomendações: "Dizei à senhora Camila que
seria oportuno mandar preparar pelas monjas dois ou qua
tro roquetes brancos e finíssimos; e tudo o mais depressa
possível".
Na cidade de 1mola expede mais uma missiva: "Parti
de Milão com a intenção de dar freqüentes notícias da via
gem; e, graças a Deus, cumpri a promessa até Lódi; mas
a sorte quis que colocasse todos os propósitos milaneses
num saco... que, desgraçadamente, caiu no Pó, durante a
travessia. Apenas chegado ao pôrto, vi-me entre tantas
festas e alegrias, que esqueci tudo o que prometera". Tra
jeto venturoso e, para um jovem de 20 anos, repleto de
sensações.
Em quase todos os lugares, envia criados para informar
aos amigos do que acontece; ri-se da queda do intendente
Lancellotto que, perto de Castelgüelfo, foi acometido de fe
hre pertinaz. "Não pela queda, mas pelo susto!" - comen
ta Carlos argutamente. Receia ladrões e salteadores. Em
Placência o duque tratou-o como príncipe, e em Bolonha,
todos, de um momento para outro, tornaram-se seus ami
gos íntimos ... , e os parentes então multiplicaram-se de tal
maneira, que o próprio Carlos ficou surpreendido.
"Hoje demorei-me na cidade para atender aos novos
afins e para gozar dos triunfos que me foram tributados;
Vida de S. Carlos - 4 49
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não avancei, por isso, muito. Desejo-vos a todos, êsses pas
seios acompanhados de almoços e músicas que nunca mais
se esquecem. . . exceto a condução que é verdadeiro mar
tírio. A recepção de Bolonha impressionou-me muito; quan
tas senhoras nobres e belas estavam às janelas. " E o
irmão conde João Batista, a pensar que ali se encontras
sem por causa dêle. . . Carlos conclui com gostosa risada:
"Creio que, se fôsse o corpo de um santo, - pouco falta,
aliás - as multidões não demonstrariam tanto interêsse
como o revelaram por mim ... "
Desde a Epifania, o boletim informativo de Roma O
Avisador anunciava a sua vinda: "Aguarda-se, de Milão,
o Abade Borromeu, sobrinho de Sua Santidade, e o senhor
Serbelloni, parente também, chamados logo depois da elei
ção". O dia da chegada de Carlos, porém, não nos é conhe
cido; a 13 de janeiro o periódico anuncia que Carlos já
fôra nomeado protonotário e referendário; e "corre voz
que será feito cardeal quanto antes, e, a seguir, arcebispo
de Milão".
9.
A ESCALADA DA GLúRIA
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e de todos os lombardo s que desejassem residir com os
sobrinhos.
Foi uma verdadeira fortuna para os numerosos clientes.
Duzentos servos trajaram de prêto da cabeça aos pés; é
preciso, porém, convir que, para cozinheiros e estalajadei
ros, a divisa não era lá muito bem escolhida . . . Camilo Bor
romeu exercia as funções de mordomo; caudatário era Ce
ruto, arcipreste de Arona; e, ademais, deviam ser preenchi
das as vagas de mestres de casa, secretários, capelães, des
penseiros, cantineiros, ecônomos, pajens, cozinheiros e pa
lafreneiros.
Os bons Gilberto e Margarida ter-se-iam certamente em
baraçado no meio de tanta gente, habituados como estavam
à pequena côrte de vinte pessoas e à guarnição de oitenta
soldados. Cavalos de corrida, potros para sela e asnos da
melhor qualidade abarrotavam as cocheiras, apesar de Car
los, fiel aos velhos amigos de quatro pernas, ter mandado
vir de Milão a cavalgadura particular. O Cardeal Farnese,
que se elegera por conta própria protetor mundano dos
dois lombardos, presenteara ao futuro santo, conhecido por
todos como Conde-Abade, a melhor carroça e os cavalos mais
pujantes, cedendo-lhe também os hábeis cocheiros. Bem
cedo, cardeais e dignitários eclesiásticos, príncipes e nobres
começaram a cortejar o "sol nascente", e os melhores artis
tas de Roma enviaram-lhe tapêtes, bronzes de valor, mó
veis dourados e marchetados, e quadros, destacando-se en
tre êstes últimos, vários de Benvenuto Cellini.
Apesar de viver em tanta abundância, Bascapé nos re
fere "que sua base financeira estava ainda ameaçada: Car
los escreveu ao administrador do palácio milanês ordenan
do-lhe que cortasse com todos os gastos inúteis; é que as
três mil coroas destinadas à viagem se tinham diluído como
neblina matinal. O estipêndio do Conde Gilberto, coman
dante de Arona, diferia-se ao infinito, e Frederico, capitão
das milícias da Igreja havia já tempo, não recebera re
muneração alguma".
Inicia, no entanto, a carreira das dignidades, o cursw;
honorum dos romanos. Nomeado protonotário apostólico
no dia da chegada, encontramos eco destas glórias em car
ta ao Conde Guido: "Nosso senhor, o Papa, concedeu-me
três abadias no valor de doze mil escudos; situam-se, porém,
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muito longe; espero ter, dentro de um mês, algo mais
vizinho".
Talvez aludisse à arquidiocese de Milão, para a qual
já fôra designado administrador, em consequência da re
núncia de Hipólito D'Este. Na verdade, quem ocupara o
cargo até o momento não podia exercer as obrigações epis
copais, pois lhe faltava o caráter sacerdotal. .. No meio de
tanta beleza e esplendor, podia bem afirmar - como gosta
va de repetir nos últimos anos da vida - que "Deus o ti
nha conduzido a si, não por meio de adversidades, mas
pela fortuna, ensinando-lhe a desprezar os bens terrenos".
No dia 13 de janeiro foi nomeado cardeal e, no fim do mês,
consagrado em companhia do filho do Duque Cósimo João
de Médicis, e do primo João Antônio Serbelloni. Seu título
era "cardeal-diácono dos santos Vito e Modesto", cuja ren
da - é êle quem no-lo diz - "não vai além de poucas cen
tenas de coroas, por estar realmente em decadência".
As concessões a Carlos continuaram em ritmo acele
rado; no dia 27 recebeu a missão diplomática entre Bolonha
e Romanha; em meados de outubro obteve a abadia de
Nonântola, e para poder mais dignamente suprir as des
pesas da própria posição, adquiriu a pensão de mil escudos
de ouro da cúria episcopal de Ferrara. A chuva da riqueza
e das honras não parou aqui. O nôvo cardeal foi designado
Secretário do Papa, e tôdas as instruções e ordens dêle
emanadas deviam ser consideradas como provindas do pró
prio Pontífice. A seguir, ei-lo, Grande Penitenciário, Prote
tor de Portugal, da Alemanha, dos Cantões católicos da Suí
ça, dos Franciscanos, dos Carmelitas, dos Humilhados', e
de outros que procuravam sua poderosa valia.
O jovem Cardeal está satisfeito, mas não perde a ca
beça. O admirável equilíbrio interior que o guiará e será sua
fôrça nas gravíssimas incumbências, que lhe serão reservadas
.no futuro, manifestou-se prodigioso naqueles primeiros con
tactos com a faustosa vida romana que começava a brilhar.
Ocupava-se pessoalmente de mil pequenas coisas e, às crí
ticas dos invejosos, que não deixavam de ter certa razão,
respondia: "Não convém preocupar-se com as apreciações
de pessoas ocupadas única e constantemente em inventar
1) Ordem religiosa, cuja história, santidade e dores de cabeça
.causadas a Carlos conheceremos mais adiante (N. do Tr.).
·.52
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novidades. Basta realizar honestamente as próprias obriga
ções, e depois deixar que cada um diga o que melhor lhe
aprouver!"
Apesar dessa fácil escalada para a glória e a fama mun
dana, a vida não lhe era nenhum mar de rosas. Sem lem
brar os aborrecimentos causados pelas más línguas, des
gostosas com a parcialidade de Pio IV, - salientando-se
principalmente os sobrinhos alemães que, apesar de nomea
dos condes pelo imperador, atraíam sôbre si os risos e as
zombarias de todos pelas maneiras desajeitadas, e não ha
viam sido muito bem sucedidos na repartição familiar das
honras, - Frederico fazia crer que tudo corresse de bem
a melhor, mas Carlos não partilhava da mesma opinião.
"Minha saúde é excelente, - escrevia - malgrado as
fadigas intermináveis; pois não é 1á divertimento atraente
levantar às duas e deitar às seis ou às sete!" Na capital
italiana contavam-se as horas a começar das seis da tarde;
o que significava levantar-se às cinco ou seis da manhã e
ir para a cama depois da meia-noite. Em resposta a um pe
dido do Conde Guido que lhe recomendava certo jovem de
Milão, Carlos retrucava: "Vir para Roma! �le não sabe o que
significa Roma. Adoeceria dentro de quinze dias. Dois ou
três de meus servos já estão doentes por não poderem re
sistir às enormes fadigas".
O Pontífice, ativo e enérgico, gostava de ver em seu
redor muito trabalho e muitos fatos. Residia preferivelmen
te no Castelo Santo Angelo ou no Palácio de São Marcos;
madrugador incansável, erguia-se antes do amanhecer e
caminhava por duas ou três horas seguidas para conter a
corpulência que ameaçava tornar-se excessiva. Nos outros
momentos do dia despachava importantes questões de estado.
E, naturalmente, um Papa tão laborioso, submetia seus
colaboradores diretos a trabalhos e esforços extraordinários.
Carlos e Galli, secretário da Chancelaria, ocupavam-se
das cartas e mensagens pontifícias; deviam adaptar a res
postas diplomáticas os períodos duros e concisos do Pas
tor da Cristandade. A maior parte do dia, porém, passava
com o tio, que - sempre conforme os invejosos - nada
fazia sem antes consultá�lo. Mas como não confiar em jo
vem tão diligent� e sagaz? Por outro lado, sabia Carlos o
que julgavam os romanos dos estrangeiros, e portanto dêle
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também - embusteiros, ignorantes e intrusos. Esforçou-se
também para livrar-se da balbuciência; e como o remédio
é falar muito e publicamente, instituiu as "Noites Vatica
nas", academias destinadas a desenvolver nos numerosos
presentes a arte oratória. Discutia-se um pouco de tudo, e
seu prestígio chegou a tanto, que era verdadeiro privilégio
ser nelas admitido.
Entre os acadêmicos encontravam-se dois membros do
Sagrado Colégio, oito ou dez futuros cardeais, destacando
se Hugo Boncomp.agni, que chegará ao papado com o no
me de Gregório XIII, e os melhores estilistas e arqueólogos
de Roma. "Declamam-se cinco ou seis discursos em latim,
- narra-nos o fundador e presidente - e eu me esforço
para responder na mesma língua. . . o que devo fazer de
improviso, ignorando precedentemente qual ser.á o assun
to". O exercício e a perseverança tiraram-lhe o grave defei
to que, em pouco tempo, desapareceu quase completamente.
10.
SURPRESAS DA SANTIDADE
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As núpcias celebraram-se no verão, - Frederico em Ur
bino e Camila em Milão; Carlos pede ao tio Francisco que
acompanhe Virgínia para Mântua e Urbino, e depois ve
nham todos ver a Cidade Eterna. "Será uma bela ocasião
para beijar os pés de Sua Santidade e visitar Loreto. Insis
ti muito para que se resolvam a comparecer, porque desejo
gozar de sua presença durante o inverno, e principalmente
no carnaval que se aproxima; faremos o possível para que
não se arrependam da vinda. Dizei-lhes que se apresentem
sem falta; encontrarão companhia alegre e inesquecível com
todos aquêles que nesse período visitam Roma. Não farão
despesa alguma e terão aqui ótimas pessoas para servi-los".
Que diferença de sentimentos nas cartas que poucos
anos após escreverá de Milão flagelada pela peste!
Principesco foi o ingresso em Roma da espôsa de Fre
derico; haviam-lhe preparado no palácio Belvedere apar
tamentos dignos de rainha. Precederam-na, com entradas
triunfais também, no dia 4 de novembro, o Duque de Urbi
no; no dia 6, com grande solenidade e acompanhado de
cardeais, o Duque de Florença e, logo a seguir, a mulher
<le Cósimo Eleonor de Toledo.
Finalmente, no dia 8 de dezembro, entre esplêndidas
alas de cardeais, príncipes e damas, apareceu, solene e im
ponente, Virgínia Borromeu della Róvere, montada em ca
valo branco, e tendo na cabeça um barrete de pedras pre
ciosas; cavalgavam a seu lado - coisa inaudita senão para
rainhas e imperatrizes - dois cardeais, Júlio de Urbino e
Carlos Borromeu. Ao almôço estavam presentes nada menos
de quatorze cardeais, não faltando, durante a tarde e a
noite, danças, músicas e. . . alegria.
Nós, leitores modernos, acostumados a considerar em
conjunto a santidade de Carlos, como resultado da vida
prodigiosa e tôda entregue à caridade, ao bem da Igreja
e ao maravilhoso apostolado realizado na segunda parte
de sua breve, mas admirável vida, ficamos, de início, sur
presos e cépticos diante de tal comêço de vida fervorosa.
Não devemos esquecer, contudo, que o Cardeal-Secretário
desenvolvia a prµneira parte de sua ação em pleno século
XVI e, ademais, na côrte romana, que não podia absoluta
mente ser inferior às demais no prestígio e na glória; e se
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assim não fôsse, prejudicar-se-ia a fama externa da Igreja
e conseqüentemente - dado o pensar do tempo - a interna.
A Igreja devia afirmar-se por tôdas as maneiras e
impor-se seguindo os tempos e os métodos; era natural, por
isso, que um sobrinho do Papa, príncipe da Igreja e alto
funcionário do Estado pontifício estivesse em nível superior
a qualquer pessoa importante da época. Quando, porém,
fôr necessário ser pobre com os pobres e primeiro no dom
total de si mesmo aos outros, Carlos Borromeu excederá a
todos no espírito de sacrifício e na virtude.
O Cardeal Bascapé observa, com o habitual candor, mas
também com não menos veracidade: "Apesar de Carlos ma
nifestar desprêzo pelas coisas do mundo, deixava ver cla
ramente o anseio de bem colocar as próprias irmãs".
Assenta, em seguida, o enlace matrimonial de Jerôni
ma com Jesualdo, Duque de Venosa, a realizar-se no dia 16
de maio de 1562. Curioso, senão escandaloso, é o que sugere
a respeito da educação da noiva êsse cardeal com pouco
mais de vinte anos: "Quisera que se tivesse o máximo cuida
do para que nossa irmã adquira os hábitos elegantes do
mundo e abandone as maneiras contraídas no convento".
Franceschi, aprimorado biógrafo do nosso santo, escreve
a respeito: "Não é nenhum cumprimento ou louvor aos co
légios dirigidos por religiosas, ainda mais se lembrarmos
que a afirmação provém do Secretário de Estado da Igreja;
com isso, porém, Carlos quer significar que não deixa de
prezar a educação conventual no que concerne à formação
mental e espiritual da menina; tanto é verdade, que no lu
gar deixado por Jerônima, entrega às monjas a maninha
Ortênsia. Com precisa visão do ambiente de distinção que
aguarda a jovem espôsa, sabe qual fascinação acrescenta
à sólida virtude de senhora cristã a graça senhoril, que
tanto enobrece e embeleza".
Um manuscrito urbinense descreve os esponsais como
esplêndidos e soienes: "Estiveram presentes ao banquete
doze cardeais, todos os embaixadores e numerosas matro
nas romanas; o convívio foi magnífico e acompanhado de
belíssimas sinfonias".
A série dos matrimônios continua. Narra-nos o cerimo
niário pontifício: "No dia 9 de julho de 1562 o Papa cedeu
como espôsa Ana sua sobrinha, irmã do Cardeal Borromeu,
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a Fabrício, primogênito do Ilustríssimo Marco Antônio Co
lonna. O dote foi de 40.000 ducados, com a promessa de con
firmar o supradito Ilustríssimo Marco Antônio no estado e
no domínio de Palliano". E' um momento verdadeiramente
venturoso para o jovem Borromeu que não pôde deixar
de exclamar: "A alegria que me inunda a alma é infinita!"
Não julguemos, todavia, que todos êsses cuidados mun
danos, afazeres de Estado e preocupações que lhe provinham
dos vários ofícios que ocupava, o impedissem de prosseguir
os estudos, necessários para receber as sagradas ordens e
assim ocupar um dia o arcebispado milanês, objeto cons
tante de seus sonhos e desejos. Desde dezembro de 1560,
quando as festas matrimoniais de Virgínia estavam no auge,
preparava-se para o sacerdócio.
O embaixador de Veneza refere: "Pretendia agradecer
ao Reverendíssimo Borromeu; encontrei-o ainda na capela,
preocupado em aprender o ofício de diácono; é que pela
manhã, tendo Sua Santidade celebrado a missa, havia co
mungado e recebido a ordem".
Se aquêles que o viram cavalgar ao lado da futura
cunhada, seguido por um cortejo de nobres e cavalheiros,
no meio do rufar dos tambores e do toque de clarins, tivessem
visto nêle somente o sobrinho predileto do poderoso Pontí
fice, desejoso unicamente da glória efêmera que oferecem
os sucessos do mundo, teriam caído no mais grave êrro.
Um futuro bastante próximo ter-se-ia encarregado de de
monstrar quem haveria de ser o mundano orguliioso
<le então.
11.
TRABALHOS E MAIS TRABALHOS
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mésticos comentavam entre si, concedia pouco tempo à
alimentação e ao sono, - olhos vivos e castanhos-escuros,
e o nariz característico dos Borromeus.
Além da Ponte Santo Angelo, percorriam verdadeiro
labirinto de vielas sujas e mal cheirosas. Com limitada es
colta de soldados, transpunham o suntuoso Palácio Farnese,
obra de Miguel Angelo, o palá , cio da Chancelaria, de es
plêndida fachada clássica, habitação de Alexandre Farnese,
e a construção sinistra do Palácio Chigi, banqueiro senense,
colecionador de objetos artísticos, considerado o mais rico
de Roma. E, por fim, chegando ao Latrão, principiavam
as fadigas do intrépido trabalhador.
Distinguido por privilégios e encargos desde a chegada
a Roma, via crescerem dia a dia as ocupações e labutas e,
conseqüentemente, os dissabores. A título de curiosidade, ve
jamos o elenco, incompleto aliás, das canseiras que lhe pro
vinham das diversas incumbências. Além de Secretário de
Estado, o que equivalia a fainas idênticas, senão superiores
às do próprio Papa, administrava as abadias de Arona,
Móggio, Follina, Colle e Regno; o Palácio de Milão; as pen
sões de Toledo e de Ferrara; as delegações de Bolonha e
de Ravena; o govêrno de Espoleto; a comenda de Nonântola,
e as quatro galeras da Espanha, herdadas por ocasião da
morte de Frederico.
Apesar de lhe ter o Pontífice concedido quatro auxilia
res, o trabalho era realmente excessivo. Protonotário, de
via dirigir todo o colégio de chanceleres pontifícios encarre
gados de escrever e autenticar os atos da Santa Sé; refe
rendário, era obrigado a controlar afazeres de tôda espécie
e as súplicas dirigidas ao Santo Padre. E, enfim, os inúmeros
aborrecimentos derivados do govêrno do Estado e da dire
ção da Secretaria privada, ofício delicadíssimo, porque por
êle passava tôda a correspondência papal, que não era de
pouca monta.
Grande número de ordens religiosas haviam solicitado
e obtido do poderoso sobrinho a assistência de cardeal pro
tetor. "Todo o povo romano - relata-nos um familiar de
Carlos, em 1560 - e tôdas as cidades do Estado Pontifício
disputam-no como patrono junto ao Papa. E êle, ansiando
ardentemente satisfazer a todos, vive de tal modo ocupado,
que quase não lhe resta tempo para comer e dormir. Por
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isso, os ajudantes, aborrecidos e preocupados, temem que,
não podendo continuar no teor de vida abraçado, adoeça
gravemente, e, pior ainda, sejam licenciados ... " E conti
nua insistindo na "paciência incrível com que resiste ao
cansaço, sem aborrecer-se entre as dores e contratempos
da vida, o fastio das audiências, as fadigas dos estudos e
os intermináveis despachos". E' que desde aquêles dias o
espírito devia dominar absoluto sôbre a carne.
Eis, porém, que se apresenta a ocupação mais grave -
a reabertura do Concílio de Trento. Por êsse motivo, o Papa
alivia-o de alguns encargos: "Domingo passado - adver
te-nos O Avisador no dia 31 de janeiro de 1562, - Sua San
tidade incumbiu Dom Paulo Odescalco de assistir às au
diências; permanece em companhia do Santo Padre a pre
senciar as solenes recepções e são-lhe remetidas agora tô
das as questões; dêste modo, o Cardeal Borromeu não terá
mais certas mágoas e contrariedades que há tempo o
molestam".
Continuava ainda, contudo, a passar por suas mãos qua
se tôda a correspondência diplomática, o que implicava vi
gilante cuidado sôbre questões de política externa e de as
suntos eclesiásticos; chegavam-lhe igualmente freqüentes
pedidos de graça para delinqüentes condenados e recomen.a
dações para empregos honrosos e rendosos; emanavam dêle
assustadores e reiterados decretos contra bandidos e contendas
que pululavam em tôda parte. Não nos podemos furtar a
relatar uma das tantas incumbências - algumas também
jocosas! - que lhe eram apresentadas continuamente.
Um dia, certo Simão Sáurolo envia-lhe longo protesto
contra o que chama a "vergonhosa nudez", do Juízo Univer
sal de Miguel Angelo. O latim, apesar de clássico e sonoro,
não esconde a ira do intemerato moralista: "O pio e sagra
do zêlo do Santo Padre, nosso senhor, e de todo o Sacro
Colégio, e as ordens de vosso domínio, levam-me a recordar
vos que devemos contemplar com ódio santíssimo a pintura
do juízo final na capela de Sua Santidade, onde é ofendida
a Divina Majestade, pois os quadros prejudicam tanto os
bons costumes que ... " E Carlos responde, bondoso e se
reno, acalmando as iras do defensor da modéstia pictóri
ca. .. e deixando as coisas como estavam. Em outra ocasião
deve retrucar às solicitações do Duque de Florença: "Vossas
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recordações em favor de Gaspar Bianchi foram eficazes;
mudou-se-lhe o cárcere, passando do Castelo para São Pe
dro in viculis; j,á é muito, sendo a primeira vez". E assim
diàriamente.
Apesar de tantos trabalhos, não esquece a amada Lom
bardia. E' dêsse tempo o cumprimento do voto feito na ju
ventude atribulada e aplicada aos estudos - a fundação
do Colégio Borromeu em Pavia. A Universidade de Bolonha
deve em grande parte a êle se foi reconstruída ab imis fun
damentis e dotada de todos os privilégios antigos; numero
sas foram também as obras públicas de Roma que tiveram
no prelado lombardo-piemontês o promotor mais inflamado,
tanto que um contemporâneo exclamou com ênfase pró
pria do tempo: "Nos tempos antigos, teriam colocado en
tre os deuses o Papa e seu legado!" Deve-se-lhe também a
idéia de criar o cartório particular da Secretaria de Estado,
que se manifestou utilíssimo quando Pio VI fundou. o ar
quivo central do Vaticano.
Volvendo novamente à célebre Academia das "Noites
Vaticanas", podemos afirmar que nos primeiros tempos a
orientação foi quase exclusivamente filosófica e literária;
em diversos cursos levados a cabo, tratou-se das Orações
de Cícero, das Décadas de Tito Lívio, das Geórgicas de Vir
gílio, e chegou-se até a apresentar tragédias e comédias.
O Cardeal Bascapé conta-nos que Carlos obteve de tais ses
sões não poucos benefícios: "Assimilou os preceitos morais,
a arte da dicção e superou os impedimentos naturais reve
lados no escrever; tinha também o defeito de pronunciar,
por excessiva celeridade, os conceitos mutilados e as mes
mas palavras, imperfeitas e truncadas".
O próprio favorecido o reconheceu quando, em 1565,
na viagem à sede arquiepiscopal, recordava com simpatia
os serões acadêmicos: "Diàriamente recitam-se diante de
mim cinco ou seis alocuções em latim, às quais procuro
responder na bela língua de Cícero ..• Vejo agora quanto
proveito consegui dos alegres debates da academia, porque
aquêles exercícios, feitos como divertimento, servem-me ho
je muitíssimo". E Bascapé acrescenta: "Devendo, certo dia,
confutar uma sentença dos estóicos, sentiu por êles certa
atração, principalmente pelo zêlo manifestado em refrear
as paixões e adquirir a perfeita moderação de ânimo; e
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era visto muitas vêzes com as obras de Epicteto nas mãos
a observar com atenção os ensinamentos contidos".
Sôbre os estóicos falara-se demoradamente nas "Noites
Vaticanas". Subsistirão elas durante a presença de Carlos
em Roma. Quando de sua partida para Milão, a 1 9 de setem
bro de 1565, a Academia realizou sua última sessão no dia
14 do mesmo mês e fechou a seguir, definitivamente as por
tas, faltando-lhe quem a sustentara até então com o exemplo
e com o entusiasmo. "As práticas da ilustre sociedade civiJ
- diz ainda Bascapé - e os estudos de eloqüência foram
ornados por Carlos de tom espiritual; pensava desde en
tão, creio eu, de governar irrepreensivelmente a grei e
apascentá-la com o alimento de prédicas substanciosas"
E' o momento de notar também, se quisermos ter o
retrato mais completo possível do que era Carlos nos tem
pos de sua permanência entre os altos cargos romanos.
que jamais as más línguas daquela cidade moveram qual
quer gracejo ou repreensão sôbre sua vida moral. O em
baixador de Veneza, Soranzo, escreve: "E' o cardeal, de
vida inocentíssima; pode-se afirmar, pelo que se sabe, que
seja limpo de tôda a mancha". Conhecemos quanto eram
diligentes e precisos os emissários vênetos em suas mensa
gens ao doge; devemos, por isso, aceitar de olhos fechados
o juízo do legado de Veneza na côrte vaticana. Tanto mais
que, podendo maliciar sôbre os prelados, os venezianos eram
insuperáveis na arte.
Doutra parte, os cortesãos não conseguiam compreender
-- julgando do modo pelo qual concebiam e atuavam a vida,
entre dissipações e dissoluções - como um jovem cumula
do de todos os favores pelo Pontífice, passasse a vida in
teira entre audiências, alfarrábios e academias, e não va
lorizasse em nada as oportunidades que · o circundavam e
a fortuna de quem parecia ser o pupilo.
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12.
O DEMôNIO E A MORTE
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demora do aposento, lembrado de que o melhor modo de
vencer o vício carnal é evitar as ocasiões.
"Desprezou-o, então, quem chamara a iníqua mulher;
qualificou-o homem inerte e de nenhum valor, chegando
aos mais grosseiros insultos; denominou-lhe a virtude fra
queza e estupidez; Carlos suportava tais mentiras e inde
licadezas, refletindo na superioridade do temor de Deus
às vãs e falazes palavras dos homens mundanos".
A segunda tentação alcançou-o quando j,á Cardeal e
Secretário de Estado. E em pleno esplendor de um castelo
romano, após as alegrias de suntuoso festim. Deixamos tam
bém aqui a palavra à florida prosa de quem nos narrou o
episódio anterior. O estilo continua empolgante e áulico.
"Vivem ainda hoje graves testemunhas que foram seus
familiares nesse tempo. Contam êles, como algo maravilho
so, o fato que lhe aconteceu ao ser convidado por importan
tt senhor romano, seu parente, a visitar-lhe a casa de cam
po, distante de Roma algumas milhas, e situada em lugar
aprazível e belo. Ansiava o príncipe por apartá-lo do reto
caminho; e para melhor consegui-lo, além de tornar a sala
de jantar e o quarto do hóspede verdadeiros encantos, trouxe
de Roma, às ocultas, formosa e conhecida cortesã. Escon
deu-a num aposento do palácio até a hora do repouso no
turno, quando ordenou que ingressasse no apartamento
cardinalício por via secreta. Trajada com as mais precio
sas vestes, calma e sorridente, entrou no quarto onde se
encontrava Carlos. Era costume da época - tanto estavam
corrompidos os cristãos! - oferecer tal prova de amizade
a pessoas elevadas e a quem se desejava honrar.
"Aproximou-se lentamente e usou de tôdas as próprias
qualidades e artifícios para levá-lo ao pecado. O Cardeal
Borromeu, porém, diante de tamanha iniqüidade planeja
da contra si, e horrorizado ante o mal a que era incitado,
nem sequer se dignou dizer uma palavra à insolente mu
lher; correu à porta do quarto e chamou em alta voz os
camareiros, queixando-se profundamente do que acontecera.
Fingindo ignorar a trama, ingressaram e expulsaram ime
diatamente a tentadora. Pouco repouso teve naquela noite
o Cardeal, aborrecido ante a malvadez humana; e como
protesto contra o príncipe, partiu do palácio três horas an
tes do amanhecer, sem despedir-se de ninguém. Queria que
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compreendessem quanta mágoa lhe tinham causado por
tê-lo colocado na ocasião de ofender a Deus e de manchar
a cândida pureza de sua alma".
Essas as duas tentativas do demônio a sua incorruptível
pureza. Desta maneira cingira os rins da fortaleza que não
finda e podia, íntegro, levantar-se mais tarde diante da cor
rupção como castigador implacável; não, porém, contra a
fraqueza humana, que o encontrava sempre pai inefável, e
sim contra o vício, que desejava extirpar a todo o custo.
Com isso não queremos dizer que fôsse estranho ao modo de
viver da côrte a que pertencia e dos tempos em que se en
contrava. Recebia, prazenteiro, freqüentes e preciosos dons
e praticava atividades que nem sempre estavam de acôrdo
com a disciplina eclesiástica. Amava a pesca e a caça. "Ago
ra que Vossa Senhoria anda caçando - escreve a Dom
Delfino - e com possibilidades de conseguir cachorros que
sejam realmente bons para os nossos campos, peço-lhe que
me consiga algum e o envie quanto antes; recorde-se que
prefiro particularmente os cães de caça grossa".
Nem se pode negar que se achasse bem entre tantas
alegrias e comodidades. Tudo corria às mil maravilhas. Ca
mila desposada com Gonzaga; Jerônima com o Príncipe
de Venoza; Ana com Fabrício Colonna; Frederico com Vir
gínia della Róvere, e muito estimado por todos os nobres,
não tanto pelo valor nas armas ou na política, quanto pelo
fato de agradar ao Pontífice. Cósimo doara-lhe o magnífico
Palácio Altivíti e o Papa criara-o capitão geral de suas mi
lícias. Filipe II, nomeando-o Marquês Dória, parecia desejar
que o nome dos Borromeus se igualasse na fama às maiores
famílias italianas, como Farnese e Médicis.
Foi a Morte quem se encarregou de suspender repenti
namente o entusiasta ascender aos píncaros da glória. No
dia 18 de novembro de 1562, o anúncio da concessão do mar
quesado Dória a Frederico Borromeu chegava a um mo
ribundo. Carlos dissera poucos dias antes, acenando à posi
ção da própria família: "A alegria que experimento é in
finita!" E agora, subitamente, depois de sete dias de febre
que não parecia grave, com somente vinte e sete anos, o
primogênito da casa Borromeu falecia sem nem sequer re
ceber os sacramentos. Não deixava filhos. Grande a con
fusão no Vaticano. O Papa, que visitara o enfêrmo pouco
Vida de S. Carlos - 5 65
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antes, ao saber da triste nova, exclamou: "A mão de Deus
me feriu!"
Se profunda dor demonstrou o Pontífice, muito maior
foi a aflição de Carlos. Pouco inclinado a dramatizar os
próprios sentimentos, soube conter o tumulto do coração
e esconder, sob composta melancolia, o comovente desabar
de tantos sonhos queridos. Certamente o tombar de uma ju
ventude cálida de esperanças e realizações era lição da
Providência para o jovem irmão. Urna admoestação severa
a não dar às coisas do mundo um valor superior às tran
sitórias e efêmeras possibilidades que realmente possuem.
Seu procurador César Speciano assegura tê-lo ouvido re
petir vàrias vêzes: "A morte de Frederico sobreveio por
disposição divina a fim de que aprendesse a dizer sempre
mais adeus a tudo o que é caduco".
Seu coração de irmão sofria, sem dúvida, e no-lo fazem
entender muitas expressões contidas em várias cartas dessa
época. Dando a notícia a César Gonzaga, acrescenta: "Em
que situação me encontre, deixo que Vossa Excelência o
compreenda; faltam palavras para expressar-me!" E a Cri
velli: "Estou completamente atordoado ante tamanha des
graça. Portanto, não deve Vossa Senhoria maravilhar-se se
não lhe escrever freqüentemente".
Logo após a morte do irmão, eis a de João de Médicis,
que recebera com êle o chapéu cardinalício. "�sses dois gol
pes - narra ao Duque Cósimo - seriam verdadeiramente
capazes de desorientar-me profundamente, se não fôsse mais
forte do que realmente sou".
Em tão acerbas aflições, abandonou-se totalmente nas
mãos de Deus. Talvez date dêsses amargos dias o início da
vida tôda feita de mortificação e renúncias que o tornarão
um dos grandes ascetas da Igreja. O cornêço de sua con
versão nos é desconhecido; inimigo de manifestações exter
nas, procurava esconder o que lhe passava na alma. Somen
te um franciscano, chamado de Arona na mesma noite em
que faleceu Frederico, nos poderia descobrir algo do que
se verificou em Carlos. O bom frade aconselhou-o sàbiamen
te sôbre o caminho que devia seguir. Cresciam, entretanto,
no Vaticano rumôres de que fôsse mais conveniente ao
Cardeal Borromeu abandonar a carreira sacerdotal e conti
nuar a estirpe da família, interrompida pela morte do pri-
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mogênito. O futuro santo acabou com tôda essa conversa
inútil, pedindo ao Cardeal Cesi que lhe conferisse a ordena
ção sacerdotal. "Agora casei-me com a espôsa que há tanto
tempo venho desejando e amando!" Foram essas as pala
vras com que deu a notícia ao Papa.
Afirmou-se que o Papa não ficara lá muito contente
com o sucedido. Teria até repreendido severamente o so
brinho. Giussano, contudo, não é do mesmo parecer: "Ao
invés, o Pontífice, que conhecia muito bem a firmeza de
propósito .de Carlos, no consistório do dia 3 de junho decla
rou que a morte de Frederico havia, sim, concentrado tôdas
as esperanças no sobrinho, e que outros Pontífices o teriam
obrigado a regressar à vida secular; êle, porém, acrescen
tara: "Nós, pelo contrário, entendemos que permaneça fiel
à vocação que deseja seguir".
Na festa da Assunção de Nossa Senhora, celebrava, ju
biloso, a primeira missa, e escrevia à própria irmã Corona,
residente em Milão: "Rezei-a no dia da Assunção de Maria
Santíssima, na basílica de São Pedro, no altar da Confissão,
onde se encontram as relíquias dos dois gloriosos apóstolos
Pedro e Paulo. O lugar é assaz venerável e pio; experimen
tei uma consolação tão grande, que não me sinto capaz de
exprimi-la. Praza a Deus que esta Santa Missa redunde na
salvação de minha alma e na glória da Divina Majestade".
O desejo do ardoroso celebrante deve ter sido acolhido
por Deus com agrado particular, ainda que nada de extraor
dinário tenha sucedido naquele dia. O Papa, ao apresentar
o neo-sacerdote ao cardeal português Bartolomeu dos Már
tires,' que gozava fama de homem austero e santo, disse
lhe com o habitual tom facêto: "Eis um jovem que deixo
em vossas mãos; começai nêle a reforma da Igreja".
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Teve, porém, como resposta do severo e virtuoso pre
lado, que certamente não passava por adulador e cortejador:
"Se todos os cardeais se assemelhassem em santidade e pu
reza de fé a êsse, o mais jovem dentre nós, não haveria
necessidade de fazer reforma alguma para a Igreja".
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PARTE II
A REFORMA DA IGREJA
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1.
TRENTO E O CONCtLIO
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saneia mater Ecclesia aut etiam contra unanimem
consensum Patrum.
5 9 Decreto sôbre a existência do pecado original e de
sua extinção por meio do santo batismo. Os jesuítas
Laynes e Salmerón, teólogos do Papa, propugnavam
pela definição da Imaculada Conceição; não concor
davam, contudo, os dominicanos; pareceu bem, por
isso, ao concílio declarar somente "não ser sua in
tenção incluir no decreto sôbre o pecado original a
Bem-aventurada e Imaculada Virgem Maria, Mãe de
Deus".
6 Decreto a respeito do ensinamento do catecismo e
9
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2.
AS ARRANCADAS DO ASCENDER
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c1ssao esplêndida e concorrida, da Basílica de São Pedro
para a igreja dominicana de Santa Maria Sopra Minerva.
Descalço, o Papa seguia entre cardeais, embaixadores e Cósi
mo de Médicis, que caminhava entre o filho João e Carlos
Borromeu. Pelo fim de novembro, enviaram-se a todos os
príncipes católicos cópias da bula que anunciava a rea
bertura do concílio para a Páscoa de 1561.
Muitos pensam ter sido quase milagrosa a ação diplo
mática desenvolvida por um jovem de vinte e dois anos,
que de política internacional pouco ou nada entendia. Na
verdade, a inteligência demonstrada por êsse rapaz é de
veras prodigiosa. E o trabalho apenas começara ...
Foi preciso mandar anúncios a todos os países da Euro
pa; e geralmente era o Cardeal Borromeu quem recebia as
recusas e insultos que tencionavam dirigir-se -muito mais ao
alto. E' curioso ler os conselhos que êsse prelado quase im
berbe dava, por exemplo ao bispo de Terracina, enviado da
Espanha e Portugal: "Seja prudente e tenha contrôle sôbre
si mesmo; seja gentil e simpático e nunca contrarie a nin
guém", E quem era assim avisado, além de avançado em
anos, possuía caráter assaz pronto e fogoso.
Façamos aqui um parêntese para ressaltar a austeridade
de vida de Carlos. Muito de sua nova atitude deve-a ao con
tacto com os jesuítas, especialmente com o Padre Ribeira
que, pelo cargo de Procurador Geral da Companhia de .Je
sus, encontrava freqüentemente ocasião de tratar com o
Cardeal-Secretário de Estado para afazeres de ofício.
Certa vez, o Padre Ribeira, esperando ser recebido em
audiência pelo Cardeal Borromeu, encontrou-se na sala de
espera com tantas personagens, que se viu obrigado a per
manecer de pé durante longo tempo, até que um dos cama
reiros falasse com o Secretário de Estado, suplicando-lhe
que ouvisse, ao menos por um minuto, o superior dos jesuítas.
Eis como narra o fato um antigo documento do Vaticano:
"Ouvindo o pedido enquanto lavava as mãos para pôr-se à
mesa, ordenou que fôsse introduzido imediatamente; entre
tanto, o Padre Ribeira, ao perceber a mesa posta e o Cardeal
pronto para almoçar, pronunciou pausadamente estas pou
cas palavras: "Monsenhor Ilustríssimo! A questão que devo
expor a Vossa Senhoria Reverendíssima não pode ser re
solvida em poucas palavras, como exigiria o momento. Vol-
íG
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tarei outra vez para falar com menor incômodo de sua
parte. Agora quero somente dizer que me compadeço muito
de Vossa Senhoria Ilustríssima; tenho visto em várias manhãs
quão numerosos são os negócios que deve resolver; por isso
duvido que lhe sobre algum tempo para atender um pouco à
salvação de sua alma. Aguardando eu, todos os dias, sua
audiência, pedi a Deus por Vossa Senhoria Ilustríssima para
que as coisas do mundo não lhe roubem o tempo destinado
a cuidar de sua alma, mais preciosa que o mundo inteiro".
Tais palavras, proferidas em tom meditado e severo,
penetraram profundamente na alma do jovem cardeal. Ao
invés de ofender-se, provou por si aguda dor, considerando
em que estado se encontrava, e daquele dia em diante, co
meçou a aumentar ainda mais a severidade de costumes e
de vida, que já era notável, no dizer de seu biógrafo Bas
capé: "Tanta gravidade demonstrava nas maneiras e na
conversa, que chegou a conseguir uma austeridade difícil
de se obter nos princípios da vida espiritual".
Certamente os jesuítas influíram bastante em seu nôvo
enderêço de vida e não foram poucos os que incriminaram
os filhos de Santo Inácio pela mudança de rumo e duras re
formas impostas à vida eclesiástica. Lembra, a tal propósito,
o padre jesuíta Pollanco: "Algumas línguas perversas fize
ram-no compreender ao Papa; e pretendendo o Cardeal
Borromeu residir na sé de Milão por algum tempo, distri
buir as rendas, fazer abundantes esmolas com os lucros
provindos dos benefícios eclesiásticos e reformar a casa, a
mesa e outras coisas, levantou-se contra nós grande alarde,
como se fôssemos os culpados. E corriam vozes de que êle
ofereceria seis mil ducados de renda ao nosso Colégio Ro
mano, ou cem mil em dinheiro; outros falavam de uma aba
dia ou de um benefício qualquer; chegou-se a propalar que
era sua intenção ingressar na Companhia; e tudo era falso".
Essas conversas desagradaram ao Papa, que desejou
conhecer a verdade, e ser informado de que espécie tivessem
sido os contactos de seu secretário com os superiores da no
va Ordem. Depois de viários colóquios com o Padre Ribeira
e outros eminentes jesuítas e com o sobrinho, encontrou-os
mais que normais; tanto que o Pontífice achou muito opor
tuno o recolhimento do cardeal e não fêz objeção a que
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os padres inacianos Q visitassem diàriamente, coisa que por
delicadeza e oportunidade não fizeram.
Carlos prosseguiu impertérrito em seus métodos aus
teros de vida, impondo-os a todos os membros do palácio em
que habitava. Despediu os criados que ultrapassavam a cen
tena � possuía, na verdade, um bom número para seu
serviço! - e aos que permaneceram, retirou as despesas do
cavalo e do servo. Vetou também as vestes de sêda; despe
diu todos aquêles que demonstravam pouca aptidão para
a vida religiosa. O cardeal e os familiares consagravam ago
ra longas horas à oração, de tal forma que pareciam viver
em convento; uma vez por semana disciplinava-se duramente.
"Recordo-me - é o doméstico Ambrósio Fornero quem
fala - que tendo encontrado certo dia, por acaso, um dêstes
instrumentos de penitência, provei bater-me com êle; mas
possuía nós que faziam doer muito ..." E o bom Ambrósio
nunca mais repetiu a experiência.
Havia naturalmente, como sempre, os habituais sabi
chões e os que se julgavam mais espertos que os demais,
que atribuíam a tôdas essas práticas de piedade e de mor
tificação um significado muito diverso. Pretende-se até que
o próprio Papa tenha certo dia afirmado: "Nós devemos
viver alegres e do melhor modo possível; se depois Dom
Carlos Borromeu quiser tornar-se frade, pagar-lhe-emos o
burel!" Quem no-lo afirma é Tonina, bastante amante da
boa vida e da mesa bem preparada; acrescenta, porém, ime
diatamente: "O Papa, com isso, tencionava gracejar". O
certo é que o Pontífice não aprovava completamente todos
os sistemas do sobrinho, sem, contudo, contrariá-los aber
tamente.
Carlos Bascapé refere-nos com tristeza: "Muitos, admi
rados diante do que lhes parecia desmedido exagêro e pre
tendendo explicar tudo por critérios puramente humanos,
acabavam por tachá-lo de falso e impostor". O mesmo Car
deal Marcos Síttico ridiculariza a sovinice do colega e escre
ve ao irmão Aníbal: " O cardeal, com tôda a sua avareza,
acabará louco; como se ignorássemos as duas mil coroas que
recebe dos benefícios, a contínua falta do necessário ( ! ) , e
a fome de sempre mais· possuir ... �sse o belo fruto da bea
tice ... " A calúnia é natural em quem julga de acôrdo com
o que pensa e com o que lhe vai na alma.
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Felizmente há também quem não seja da mesma opi
nião, e Bascapé relata, prazenteiro: "Outros, porém, movi
dos pela fôrça da verdade e da inspiração divina, reconhe
ciam-lhe a sinceridade e a bondade d� ânimo, e o julgavam
digno de admiração, e com prazer seguiam-lhe os exemplos".
Uma testemunha neutra e por isso objetiva, o já citado
embaixador vêneto Soranzo, traça, em 1565, breve e acerta
do perfil do hipócrita asceta: "Carlos Borromeu, cardeal e
arcebispo de Milão, com 27 anos de idade, é de compleição
não muita robusta em conseqüência dos estudos, jejuns,
vigílias e outras abstinências. E' doutor nas leis e extraordi
nàriamente amante da Sagrada Escritura, coisa rara em
nossos dias. Reza a missa em cada festa, jejua assiduamente
e, em tôdas as coisas, vive religiosamente, sendo a todos
modêlo intemerato".
Foi nessa ocasião que adoeceu gravemente e a enfermi
dade levou-o ainda mais para o caminho da espiritualida
de pura: "Foi acometido nesse tempo o cardeal - refere
Bascapé - por penosa moléstia que, por dom particular
de Deus, lhe trouxe muita luz e gôsto das coisas do céu; e
teve tão grande desejo dos bens eternos que, desprezando
tudo o que é terreno e caduco, desejou somente a morte".
3.
CAPRICHOS DE PAPA
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sôbre o lugar do sínodo, julgo melhor continuá-lo em Trento.
Os enviados, por meio de mensageiros, façam chegar nossa
decisão aos príncipes, e os incitem a nos prestar auxílio.
E se, contra seu desejo e esperança, o Papa não encontrar
correspondência, não será isso que o removerá de seu pro
pósito. . . Queremos que o concílio se reúna o mais cedo
possível".
Cósimo de Médicis fizera chegar ao Pontífice áspera
observação, recebida, é evidente, de não muito bom ânimo:
"Não se deixe Vossa Santidade persuadir fàcilmente de reu
·nir um concílio sem depois permitir que se desenvolva
livremente!"
Apenas convocada a magna assembléia; Pio IV notifica
aos participantes sua resolução de não poupar gastos, con
quanto tudo corra bem e, se possível, .com grande aparato
externo. "Gaste a mãos cheias - escreve, um dia, ao car•
deal de Mântua - e quando acabar o seu dinheiro, ou antes
ninda, avise-nos, e verá como seremos generosos!" Confor
tantes palavras que incitam a levar à frente com entusiasmo
um concílio de importância capital para a vida da Igreja!
Carlos Borromeu, contudo, que previa as conseqüências de
um desastre financeiro, recomendava economia, e tornava
se antipático a todos, repetiindo continuamente: "A bôlsa
de Sua Santidade não pode prover a tantas despesas".
Diante dessa sua atitude, prelados e leigos acusavam-no
de mesquinharia: "A côrte - lembra Soranzo - não o
ama, porque prefere a vida mais folgada e cômoda a que
sempre estêve acostumada;· declara-o de natureza pouco so
cial e benéfica, julga-o obstinado e de caráter duro, pouco
inclinado a pedir favores a Sua Santidade e a dar do que
lhe pertence".
Uma vez iniciado o concílio, era necessário ampará-lo
e continuá-lo. E Carlos insiste junto aos membros mais
influentes para que a afluência às sessões aumente continua
mente. Escreve numerosas cartas e envia legados aos prín
cipes protestantes para que se decidam a aceitar as dis
cussões conciliares.
Os nobres luteranos, contudo, irritavam-se sempre mais
e por quaisquer ninharias. Não aceitavam, por exemplo, a
fórmula da bula que começava com "Dileto filho", porque
não reconheciam o Santo Padre por pai; em seguida, à ba-
80
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se de sofismas e equívocos, declararam que ao Pontífice não
cabia o direito de convocar o concílio e de agir como juiz,
sendo êle a única causa de todos os erros. Até Job, talvez,
perderia a paciência! ...
Carlos, porém, em carta ao Cardeal Delfina, aconselha
a calma e a mansidão: "Faça-lhes compreender as intenções
de Sua Santidade; escolha expressões corteses e benévolas.
Exorte-os a que venham; serão recebidos com alegria e cer
cados de todo o respeito; ter-se-ão por êles tôdas as amabili
dades possíveis; é desejo ardente de Sua Santidade e dos
Padres Conciliares encontrar um meio adequado para dar
novamente à Igreja a paz e a união. Diga-lhes que os ri
gores da Inquisição j,á não existem; para aquêles que de
sejam verdadeiramente a união, Nosso Senhor mudará a
antiga severidade em clemência e doçura;. cumulá-los-á de
benefícios". Palavras inúteis! Os príncipes, empedernidos,
não queriam ceder.
Se a primeira sessão. inaugural do concílio foi fixada
para o dia 18 de janeiro de 1562, data em que realmente
se realizou, contudo, antes que comparecesse pelo menos
uma centena entre bispos e delegados, passaram-se vários
meses; começou, em seguida, uma série interminável de
questões jurídicas e protocolares, dissensões e disputas bi
zantinas até a época dos grandes calores, quando todos acha
ram mais conveniente fugir. Carlos tomou então uma deci
são irremovível: revogou tôda e qualquer licença para au
sentar-se, ainda que brevemente, acrescentando que "ne
nhuma coisa no mundo devia ser tão útil e urgente aos Pa
dres Conciliares como trabalhar para o serviço de· Deus e
por sua santa causa".
Em novembro novas dificuldades vêm ameaçar os tra
balhos apenas começados. Aparece em Trento o cardeal de
Lorena, irmão do Duque de Guise, o prelado mais poderoso
da França. Se continuasse a sustentar o ultranacionalismo
dos bispos franceses, - um dos quais declarava que na dio
cese o bispo possui autoridade igual à do Papa - adeus, con
cílio! Tudo teria ido pelos ares.
Carlos escreveu aos legados e a todos os amigos de
Trento, recomendando-lhês de favorecer e festejar o car
deal francês e o séquito que o acompanhava, - treze bis
pos, três abades e oito teólogos. Convidado a visitar Roma,
Vida de S. Carlos - 6 81
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foi tão bem acolhido, que partiu para Trento conquistado
por completo pela teoria romana do Papa; e isso apesar de
Pio IV, impaciente e violento, em um dos seus freqüentes
ímpetos de mau humor, por pouco não cortar por completo
as relações com o embaixador francês de Lausac, chaman
do-o huguenote; diante do insulto, o diplomata replicou
irreverente: "Espero que Sua Santidade não envie o Espí
rito Santo para Trento, encerrado em mala... "
Desta maneira, o pobre Borromeu não devia sómente
governar a indisciplinada turba tridentina, mas também
aparar os incidentes suscitados pelo caráter agastadiço e
precipitado do Pontífice, que lhe gerava não poucas dores
de cabeça. Vargas, o embaixador espanhol que caíra em des
graça pelos esforços realizados em favor dos Carafas, não
conseguindo obter audiência, lançou-se de joelhos diante do
Papa que caminhava apressado pelas ruas de Roma. A única
consolação que recebeu foi um brusco: "Levanta-te e retira
te de minha frente!"
Pio IV, aborrecido pelas delongas preliminares do con
cílio, escreveu energicamente, sem o conhecimento de Car
los, ordenando que o concílio fôsse considerado continuação
daquele de 1541 e 1551. Os legados compreenderam que tal
decisão significaria inevitàvelmente a saída dos bispos fran
ceses e espanhóis e, como conseqüência, o fim dos traba
lhos conciliares. Era necessário que alguém corresse imedia
tamente para Roma a fim de expor o assunto ao Santo Pa
dre. O Cardeal Borromeu, contudo, já conseguira conven
cer o Pontífice da necessidade de suavidade e de brandura,
e quando o Cardeal Hoenems, sobrinho do Papa, estava
prestes a partir para a Cidade Eterna, chegou uma mensa
gem papal que modificava a decisão anterior e remetia tudo
aos legados. O mensageiro trazia também cartas de Carlos,
onde se notificava que Sua Santidade, depois de uma noite
de reflexão, retomara a sua decisão primitiva, com uma das
súbitas reviravoltas a que estava acostumado.
Durante o desenrolar das sessões, que muitas vêzes to
maram caráter dramático de lutas tumultuosas, ameaçan
do a suspensão definitiva do concílio, a influência, ainda
que distante, do Secretário de Estado como elemento mo
derador, demonstrou-se muito esclarecida e necessária, so
bretudo para reprimir as precipitadas e, por isso mesmo,
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perigosas decisões do Pontífice. Valha, por tôdas, a espinho
sa questão da obrigação de residência na própria diocese por
parte dos bispos e· dos beneficiados.
Discutia-se sob qual forma se devia impor tal preceito;
os mais intransigentes exigiam uma definição dogmática
que obrigasse os bispos a morar na diocese por direito di
vino; outros se insurgiram violentamente contra a proposta,
e assim se formaram duas correntes que se tornaram sem
pre mais irreconciliáveis. Carlos, que logo viu o perigo e as
graves conseqüências, escreveu em seu próprio nome aos
legados, queixando-se do modo como a questão fôra proposta
e levada adiante, recordando ao intransigente cardeal de
Mântua que também a muitos teólogos tal discussão parece
i-a inoportuna; e isto apesar de o Papa, para acabar quanto
antes a polêmica, propender para a solução dogmática.
A luta recrudesceu quando o cardeal de Lorena foi con
quistado para a definição dogmática, tese que teria ofen
dido indiretamente a autoridade pontifícia; prevaleceu, con
tudo, por fim, a concepção mais moderada de Carlos. E a
obrigação da residência foi estabelecida e contemplada em
todos os casos, sem prejudicar o bom resultado do concílio
e a dignidade de Pio IV.
4.
A POLíTICA DO CÉU E A POLíTICA DA TERRA
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vida dos cardeais, e, entre outras coisas, foi proibido de pas
sear em carruagens abertas pelas ruas de Roma em com
pahhi&s, algumas vêzes, não muito edificantes...
A lei não atingia, como já tivemos ocasião de notar, o
jovem Cardeal-Secretário de Estado, que não precisava, cer
tamente, para dedicar-se à vida austera e interior, que fôs
se aprovado e pôsto em execução o Decreto de Reforma,
com seus dezoito capítulos.
Sem dúvida, em todo o período conciliar, Pio IV e seu
secretário souberam usar muito bem, além da que Bossuet
define a política do céu também da que foi e é a política da
terra. Vigiaram prudentemente para que as sessões não so
fressem perigosas deviações; mas a liberdade do concílio
manifestou-se, em certos casos, até excessiva, de tal modo
que não nos surpreende ter o Papa escrito a Filipe II:
"Afirma-se que o concílio não é livre, porque se quer que
seja huguenote, protestante ou luterano; na verdade, êle
é de tal maneira livre, que todos dizem e propõem quanto
lhes vem à cabeça, originando-se daí grande confusão; al
guns tornaram-se realmente insolentes e parece que não
pretendem outra coisa senão a destruição da Sé Romana".
Não obstante os numerosos obstáculos que surgiam a
cada passo, o concílio avançava. O que parecera muitas vê
zes mera contenda de palavras ou contraste de interêsses
nacionais e pessoais, revelava-se, pelo contrário, instituição
apta a conduzir a têrmo uma obra que não era somente a
clarificação de muitos pontos obscuros, mas a afirmação do
dogma e da disciplina católica, que desde aquêles longín
quos dias permaneceram imutáveis.
A Gonzaga, na presidência do concílio, sucedera o Car
deal Morone, homem de grande tato e firmeza nas relações
com os delegados conciliares. Já se mostrara hábil e enér
gico nas negociações com o imperador em Innsbruck. Nos
amiudados momentos de prostração e de ira, o Pontífice de
sejara suspender sine die o concílio; mas esbarrava sempre
na resoluta vontade e nos prudentes conselhos de Carlos; e
pelo fim dos trabalhos, ao invés, anelava pelo seu rápido
término, para que pudessê, como escreveu aos legados, ter
"o divino privilégio de ratificar e pôr em execução os
decretos".
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A questão do direito divino dos bispos foi deixada à
decisão do Santo Padre. Aprovaram-se os decretos da Re
forma, fixaram-se as declarações sôbre a autoridade da Bí
blia, da tradição, do pecado original, dos sacramentos e,
em particular, sôbre o sacrifício da missa. As deliberações,
além de severíssimas e condenatórias, eram construtivas e
eficazes, enquanto emanavam precisas instruções sôbre os
deveres do episcopado, cuidavam da formação de um clero
bem preparado, tornavam a dar aos conventos a primitiva
austeridade e ditavam normas sôbre o cuidado e a importân
cia da família, a indissolubilidade do matrimônio e outros
assuntos que formam a base da teologia católica.
Na conferência vespertina do dia 30 de novembro de
1563, decidiu-se a conclusão imediata do concílio, manifes
tando-se contr.ários somente o embaixador espanhol e dois
ou três bispos. Duas horas após a reunião, chegou de Roma
um mensageiro, que devorara a distância em três jorna
das, apesar dos dias curtos e das estradas geladas, para tra
zer aos legados uma carta do Cardeal Borromeu, noticiando
estar o chefe da cristandade em perigo de vida. Viera impe
rioso rescrito exprimindo a instância do Papa pelo solícito
remate do concílio. Convocaram-se sem demora os legados e
todos - menos um pequeno grupo - manifestaram-se con
cordes em apressar as sessões finais para evitar que conti
nuassem os trabalhos durante a vacância do sólio de Pedro.
No dia seguinte foram aprovados os decretos sôbre o
jejum e os dias festivos, as indulgências, a publicação do
índice, o catecismo, a revisão do breviário e do missal. Tô
das as decisões conciliares foram relidas; tal trabalho abran
geu a matéria completa do dogma e da administração, e
foi levado a têrmo com rapidez e unanimidade quase in
críveis. Todos, a não ser o arcebispo de Granada, concorda
ram na necessidade de rematar o concílio. Logo após, na ca
tedral de Trento, o Cardeal Morone, diante de seis cardeais,
quatro dêles legados, três patriarcas, vinte e cinco arcebis
pos, cento e setenta e oito bispos, sete abades, sete superio
res gerais de ordens e trinta e nove delegados dos ausentes,
declarou solenemente ence1Tado o concílio com as palavras:
Ite in pacem/
Nessa última sessão compendiou-se o trabalho dos vin
te e dois meses anteriores.
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Parecera, a princ1p10, que disputas exaltadas, discus
sões intermináveis e dissensões inflamadas, teriam criado
verdadeiro caos, no qual teria mergulhado o edifício in
teiro do concílio e, desta vez, irreparàvelmente. Mas no fim
da confusão surgira a ordem . . . e que ordem! "O espírito
de Deus agitara as águas e, em seguida, as havia acalmado".
A questão mais àsperamente debatida, reminiscência pouco
feliz dos concílios de Constança e de Basiléia, fôra se a auto
ridade suprema em matéria eclesiástica pertencia ao Papa
ou ao concílio. Nenhuma decisão foi tomada e coube ao
Concílio Vaticano I, em 1870, definir o dogma da Infalibi
lidade Pontifícia.
"Recapitulando, - diz Pastor em sua História ,dos Pa
pas - é difícil avaliar a importância do Concílio Tridentino,
especialmente no que concerne ao desenvolvimento interno
da Igreja. Lançou as bases da verdadeira reforma e assen
tou a doutrina católica sôbre vastas e sistemáticas idéias.
It, ao mesmo tempo, fronteira e limite, do qual devem ser
separados espíritos contrastantes. Inaugura nova era na his
tória da Igreja Católica".
5.
COMEÇAR PELA CABEÇA
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vadas e as deixam em testamento. E' preciso reformar, sim,
mas como? Confiar a reforma aos prelados de hoje? Mas
isso significa pôr vinho nôvo em odres velhos! E os prelados
de bom espírito, onde se encontram em número suficiente?"
Franceschi, no apreciado livro sôbre São Carlos, valen..:
do-se por sua vez de quanto deixaram dito biógrafos ante
riores, comenta, desalentado, a situação: "Desde 1563 o Papa
observa ter j,á expedido numerosas bulas para melhorar e
restaurar o ambiente, mas de nada valia conhecer o direito
e não observá-lo. Por êsse motivo, queria deputar vários
cardeais encarregados de fazer executar os decretos e de pu
nir os transgressores. E no mesmo dia designava outra co
missão para fundar o Seminário Romano; em ambas às cir
cunstâncias encontrava-se o nome do Cardeal-Secretário.
"Essas ameaças não amedrontam tanto; nas esferas ecle
siásticas ganhara terreno a idéia de que, concluído o con
cílio, se teria realizado já muitíssimo, e agora não se de
via exagerar em destruir, brusca e irrefletidamente, direi
tos adquiridos e velhos costumes, principalmente em matéria
beneficiária. Havia quem acrescentasse, maliciosamente, não
ser do interêsse do Pontífice descer a medidas rigorosas,
que teriam recaído também sôbre sua conduta; e não é
preciso lembrar que ainda nesse período se revelou o ca
ráter de Pio IV, ora inclinado a providências austeras, ora
à indulgência, e mesmo à fraqueza. E' curioso notar tam
bém como refreou, uma vez, quando Carlos já preparava
sua partida para Milão, seu zêlo na aplicação dos decretos
conciliares.
"O fato foi assim: o Cardeal-Secretário, vindo a saber
que um gentil-homem do Cardeal de Ferrara gozava de um
benefício de curas de almas no território milanês, e apesar
disso, residia em sua própria casa, admoestou-o repetida
mente com bastante cortesia; vendo, porém, que não era
obedecido, na sua qualidade de Arcebispo de Milão, privou-o
do cargo e o conferiu a um familiar do Papa, com a condi
ção de partir logo para a sua residência. E podemos ima
ginar a surprêsa do zeloso. Borromeu, ao tomar conhecimen
to de que o Pontífice ordenara ao nôvo eleito de permanecer
onde se encontrava, afirmando não ser obrigado a partir
quem devia servi-lo".
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Apesar de tudo, pisando hoje e repisando amanhã sôbre
a obrigação da residência. Carlos conseguiu induzir o tio à in
flexibilidade. No consistório de 19 de março de 1564, Pio IV
proclamou que todos os bispos deveriam dirigir-se, como
bons pastôres, em meio da própria grei e que, a começar
dos sobrinhos, os cardeais-arcebispos seriam obrigados a
parar na diocese, ao menos por uma parte do ano. Era o
desejo que Carlos acalentava havia muito tempo, e, sem
rodeios, providenciou para partir o mais cedo possível rumo
a sua Milão.
Já se tem dito como trabalhara para reformar sua casa,
apesar das apreciações pouco benévolas que sobrevieram;
o que nos surpreende, porém, é ter sido o exemplo seguido
pela própria côrte papal. No dia 22 de julho de 1564, o
embaixador do duque de Parma comunica: "Nosso senhor
fêz a reforma de sua residência e dizem que eliminou qua
trocentas bôcas para construir a ponte do Espírito Santo".
E o legado do duque de Mântua precisa, uma semana após,
que os licenciados eram quatrocentos e sessenta e cinco, e
que outros seiscentos teriam somente pão e vinho, economi
zando assim vinte mil ducados por ano. Os cavaleiros se
cretos e os de capa e espada tiveram que renunciar às
grinaldas e às cavalgaduras, e "os palafreneiros e capelães
foram pelo Pontífice enviados a passeio. "
O mesmo aconteceu na cúria propriamente dita. Quem
no-lo afirma é ainda Soranzo: "Vive-se agora bastante sim
plesmente, em parte, sim, por falta de meios, mas talvez não
merios pelo bom exemplo que procede do Cardeal Borromeu,
pois é sempre verdade que os súditos se modelam no exem
plo do príncipe". Desaparecera certamente a balbúrdia car
navalesca das estradas romanas onde se viam, freqüente
mente, cardeais mascarados em companhia de damas; mas
agora apenas se deixam ver em carruagens, decorosamente
trajados com hábitos talares e sem a escandalosa comjtiva
de cortesãos. Nem por mudarem as côrtes e os Papas, reence
tar-se-ão os maus costumes. Segundo o informe de Alberi,
eliminaram-se banquetes, jogos, caças, librés e todo o luxo
exagerado e irritante. Tôdas essas inovações foram favore
cidas também por terem desaparecido os numerosos leigos,
mantidos unicamente para fazerem de janotas nas côrtes
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fictícias. E os príncipes estrangeiros tinham finalmente re
nunciado a procurar a amizade dos prelados mediante os
favores e o dinheiro.
6.
O DISCURSO DO CARDEAL
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parte em esmolas, especialmente às donzelas pobres e casa
douras, e parte em pagar os débitos, pois se assegura que
seja devedor de mais de trezentos mil escudos, gastos prin
cipahnente pelo Conde Frederico, seu irmão".
O embaixador de Veneza esquece, todavia, quanto Car
los despendia para embelezar Roma, cidade que cedo ou
tarde deveria deixar; nem lembra quanto doava a tôdas as
obras de piedade e de caridade, como o hospital de Santo
Ambrósio dos Lombardos, por êle visitado muitas vêzes
e sempre com generosos regalos. Interessou-se também,
de um modo todo particular, da redenção das mulheres de
vida licenciosa, instituindo a "Casa Pia" e confiando-a às
Irmãs de Santa Clara; sustentava-a com o próprio dinheiro,
continuamente e sem olhar aos gastos.
"Certo dia, - narra-nos o Avisador - atrás do paliácio
que pertence hoje ao Cardeal Borromeu, foi encontrado,
completamente despido, um homem morto, com um laço ao
pescoço e o rosto todo desfigurado; e por mais que se dili
genciasse, jamais se conseguiu saber quem fôsse; afligiu
se muito o cardeal pelo que sucedera em sua própria casa
e sob suas janelas". O palácio era o dos Santos Apóstolos,
adquirido pela família Colonna a conselho de Pio IV; seus
pátios estavam, em certas horas, repletos de pobres a quem
o jovem Secretário distribuía cotidianamente víveres, vestes
e dinheiro; descia, assim, em meio das misérias físicas e
morais; e dentro de não muito tempo encontrará a própria
alegria em passear, fraterno e prestativo, por entre os colé
ricos de sua Milão flagelada pela peste.
Concluiremos o capítulo sôbre a estadia de Carlos em
Roma, com o episódio significativo de sua primeira, e única,
prédica romana.
Transcorrendo a festa de Santa Praxedes, o Cardeal
Secretário de Estado teve o capricho, uma vez somente, de
pregar em público. Estavam presentes à cerimônia oito
cardeais e quatrocentos fiéis. Carlos cantou a missa, vestiu
a capa pontifical e, apoiando-se ao altar, falou por uma
hora e meia, comentando, em atitude de grande bondade,
o evangelho das virgens prudentes e das virgens insensatas.
A pratica não foi certamente muito breve, nem das me
lhores de alguém que se tornará dentro de pouco tempo
um dos maiores oradores sacros do século.
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O que tenham pensado os prelados presentes à função
e ao sermão do mais jovem dentre êles, não nos é dito.
Muito provàvelmente, segundo o que se julgava em Roma
dos cardeais pregadores, havia motivos de pôr-se a rir ou
de se escandalizar. E o efeito não se fêz esperar. Assim,
quando ocorreu a Carlos a idéia pouco peregrina de enviar
Sílvio Antoniano ao Cardeal Vitelli, Camerlengo da Santa
lgreja, para o persuadir a pregar em público, recebeu o
embaixador um "Não!" sonoro e redondo, ouvindo, como
motivos, quatro considerações, tôdas elas injuriosas ao Car
deal-Secretário.
Primeiro, os cardeais eram pouco firmes, todos, nin
guém excluído, em teologia e por isso havia perigo de sair
com um enorme disparate que teria feito rir qualquer vigá
rio de roça, sem contar também que a Inquisição dos jesuí
tas estava ali, pronta a apanhar em suas malhas o infeliz
que deixasse escapar algo duvidoso.
Segundo, homens de grande talento como Contarini, Sa
doleto e Cervini, luminares do Sagrado Colégio e até do
Augusto Sólio, jamais sonharam em semelhante desatino.
Terceiro, o Cardeal-Camerlengo tinha bem outras coisas
a fazer que pregar aos fiéis, obrigação esta dos oradores
excelentes, teólogos e curas. Quarto, e in cauda venenum,
parecia-lhe pouco útil que, para discursar a quatro frades
de Santa Praxedes em Roma, onde tais costumes foram abo
lidos há séculos, se abandonassem em Milão milhares de
pessoas mais necessitadas.
O golpe fôra bem acertado e o ousado intrometido de
veria estar bem contente com a resposta. O fato aconteceu
nos princípios de agôsto. Carlos não seguiu, quanto aos ser
mões, o conselho do camerlengo, pois discursou no mesmo
mês na basílica de Santa Maria Maior, e quanto a partir
para apascentar o próprio rebanho na arquidiocese que lhe
fôra confiada, insistiu tanto junto ao pontífice, que êste
acabou por consentir na viagem do sobrinho a Milão, ain
da que unicamente para uma visita pastoral.
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7.
PALESTRINA TRIUNFA
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tarde cardeais e respectivamente arcebispos de Bolonha e
de Verona, encontrou em Nicolau Ormaneto, escondido co
mo simples cura em uma vilazinha dos arredores de Verona,
o legado temporâneo e ideal para a diocese milanesa.
Nicolau Ormaneto, anteriormente vigário-geral de Ve
rona, estivera na Inglaterra com o Cardeal Pole e partici
para do Concílio de Trento; decidira agora fechar seus dias
em paz, no solitário cuidado de um pequeno benefício na
diocese a que pertencia. Chamado, contudo, para Roma pelo
Cardeal Borromeu, aceitou o pêso de mais uma tarefa pro
fundamente onerosa - preparar o terreno para o arcebispo
numa diocese acéfala havia quase um século, e em que vi
riam a se realizar tôdas as novas e importantes reformas
promulgadas pelo concílio. Tomou consigo, como pregador,
o Padre Pálmio, da Companhia de Jesus, pois os jesuítas
não possuíam casa alguma na Lombardia, e encetou um
trabalho que, dada a ausência habitual de qualquer autori
dade e prestígio, faria tremer o pulso do mais ousado
hatalhador.
Nicolau foi precedido, em junho de 1564, por um cor
po selecionado, guiado precisamente pelo Padre Pálmio;
levava cartas papais para obter o apoio do senado e do go
vernador, que era, ao mesmo tempo, conde, duque e vice-rei.
O Padre Pálmio começou a pregar na catedral com mui
ta eloqüência e entusiasmo. Estava cercado por todos os se
nadores, e a presença do próprio Chefe de Estado realçava
a importância mundana das reuniões. Mas bem cedo o pa
dre compreendeu que todo aquêle aparato e a freqüência
dos fiéis não eram outra coisa que mera curiosidade para
tudo o que tivesse caráter de novidade e de exterioridade e
que, no fundo, suas práticas nada produziam. No entanto,
em julho chegara a Milão Nicolau Ormaneto; Carlos Bas
capé nos diz, a respeito, que tal interregno foi um achado
feliz, porque o legado, enquanto tratava como vig.ário, isto é,
com menor responsabilidade do que um arcebispo, de cortar
abusos e fomentar os bons costumes, podia hàbilmente dis
simular e tolerar outras irregularidades que teria sido peri
goso afrontar logo com absoluta intransigência; irregula
ridades que um bispo não teria podido descurar, sem com
prometer para sempre sua autoridade.
Vida. de S. Carlos - 7 97
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E - sempre conforme o Cardeal Bascapé - Carlos
acompanhava de Roma seu representante com trepidação,
não lhe poupando conselhos e recursos. Nicolau, ajudado pe
las prescrições conciliares, que obrigavam precisamente os go
vernantes a ajudar os prelados na Renovação, conseguiu
fàcilmente convocar o sínodo. Quando, porém, os sacer
dotes que passavam a casa dos mil, tiveram conhecimen
to do que significavam tais inovações, aí é que começaram
as lamúrias! Mas também! Tratava-se, por exemplo, de pos
suir um único benefício e nêle residir, ter o dever de obter
a autorização de exercer o ministério da confissão, proscre
ver qualquer desconveniência no gênero de vida, na habi
tação e na conversação! Era necessária tôda a eloqüência
do Padre Pálmio para conseguir passar sem protestos e con
tendas tôdas aquelas reformas ...
8.
A GRADE DOS CONVENTOS
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a discordar das freiras? - havia-o advertido Pio IV -
isto significa pôr em erupção o Etna ... "
O arcebispo de Milão diligenciou para que, antes de mais
nada, se iniciasse a construção de um grande seminário
em Porta Ticinense. "E' meu dever - escreve - e responde
ao amor que sinto pelo povo que Deus me confiou, procurar
excelente educação não somente aos jovens destinados à
milícia eclesiástica, como também, apenas possível, a todos
os outros rapazes. Os bons filhos são a alegria dos pais, e
os meninos formados no temor de Deus, serão mais tarde
homens virtuosos, úteis à religião e ao mundo". E enviou
dinheiro e recursos. Mas quando soube haver sacerdotes
que, por amor do lucro, rezavam três ou quatro missas por
dia, ordenou que fôssem imediatamente encarcerados, a
menos que provassem serem obrigados a cumprir tão gran
de abuso por miséria.
Nicolau, porém, já não se sentia capaz de afrontar
tantas e tão diversas dificuldades sem a presença real do
arcebispo; encorajava-o êste a persistir intrépido por mais
um pouco: "Quanto seja grande em seus pensamentos o
zêlo pelas almas, deduzo-o de numerosas provas, mas prin
cipalmente do fato de que, tendo-se já consumido dia e
noite, não se concede trégua, nem mesmo quando parecem
faltar os últimos recursos da mais assídua vigilânc}a.
"O senhor se considera inferior a sua emprêsa; mas é
aqui que reconheço sua notável prudência disposta à mais
perfeita humildade. Proceda sempre virilmente, animado e
confiante em Deus; quanto menos confiar em si, tanto mais
Deus realizará por seu meio a salvação das almas. Não
gostaria mais de ver no senhor algum sinal de repugnância,
mas quisera que, entregando-se completamente à vontade
divina, se doasse com tôda a alma ao contínuo cuidado
daqueles que não são menos seus filhos muito amados que
meus".
A ânsia de alcançar a própria diocese fêz-se tão inten
sa em Carlos, que escreveu, impaciente, a Gonzaga: "No
que diz respeito à minha vinda para Milão, se a viagem
dependesse de mim, o senhor poderia estar certo de ver-me
lá sem demora, tanto me é vivo o desejo de empreendê-la;
mas ela não está em meu poder, nem mesmo posso dizer
quando será efetuada".
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Era preciso, no entanto, pôr-se em regra, porque Car
los não alcançara ainda a plenitude do sacerdócio. A sagra
ção episcopal foi-lhe conferida no dia 2 de dezembro na
Capela Sistina pelo Cardeal Serbelloni, e a 23 de março
de 1564 o Cardeal Farnese entregou-lhe o pálio arquiepis
copal.
Como já tivemos ensejo de notar em outras ocasiões,
quem mais lhe obstaculizava a partida era o tio. Carlos nun
ca estava seguro de seu consentimento. Um dia lhe conce
dia a permissão, e no dia seguinte, a retirava. Por três ou
quatro vêzes, desfez as bagagens. Assim, naquela manhã
do dia l 9 de setembro de 1565, quando Carlos deixava Roma,
em grande segrêdo e sem sequer a sombra do fausto, da
ocorrência popular e das honras que existiram somente
na cabeça de seus detratores, acautelava-se do perigo de pos
sível negação que viria após uma aquiescência arrancada
três dias antes ao descontente Pontífice. Diante dessa amea
ça, o Cardeal de Milão advertira que o sínodo se realizaria
igualmente e que seria, caso não estivesse presente, presidi
do pelo bispo mais idoso.
9.
ROMANTISMO E REALISMO
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vida. Milão enche-lhe o coração de entusiasmo e amor:
"Para a minha cidade, que desejo ardentemente rever e que
considero filha amada, confiada a mim por Deus, farei tudo
o que me fôr possível". Preocupa-se também pela dignidade
e título que deverá ter ao ingressar na própria diocese.
Será melhor como arcebispo ou como legado? "O nome de
legado - escreve a Nicolau Ormaneto - é completamente
acessório à minha dignidade de arcebispo, e apresentar-me
à catedral e à cúria com tal denominação seria ofender
a modéstia que decidi conservar".
Em Placência encontra os primeiros prelados e juris
consultos milaneses, vindos a seu encontro. Censura, cortês
mas firmemente, o bispo local, por não querer participar
do concílio, afirmando pertencer à outra diocese. Consegue,
por fim, convencer o rebelde a segui-lo. No rio Pó é home
najeado por sete nobres da capital lombarda, delegados
da cidade. Começam a crescer sempre mais as multidões
e as reverências; em Melegnano, em forma privada, chega
o governador do estado milanês Gabriel Cueva para ren
der-lhe homenagem. A 23 de setembro, dia de seus espon
sais com Milão, transpôs finalmente os umbrais da cidade.
As ruas, desde a Porta Ticinense até a catedral, esta
vam ornadas suntuosamente com tapêtes, quadros e tecidos
de sêda. Apenas os mais idosos dentre os habitantes podiam
recordar semelhante gradiosa ocasião, pois eram bém oiten
ta anos que a cidade não assistia ao ingresso de um ar
cebispo. A noite, o cardeal escrevia a Tomás Gallo: "Fiz
minha entrada como arcebispo com o pluvial e a mitra, mon
tado em cavalo branco; e não como legado. . . e Sua Exce
lência acompanhava-me debaixo do baldaquim, a alguns
passos de distância". Carlos Bascapé, que presenciava, ra
pazinho, ao triunfo fulgente como visão, repete, no tumulto
das recordações, que a voz corrente na bôca de todos, naque
la tarde, era uma só: "Chegou a Milão um outro Santo
Ambrósio!"
Os cônegos da catedral, os nobres e os burgueses agüar
davam, reunidos, enquanto os barbudos soldados da guarni
ção espanhola vigiavam o percurso, armados de pesadas es
padas e tendo nas mãos arcabuzes e alabardas. E atrás das
filas dos militares, esco·ndia-se a grande plebe anônima dos
esfarrapados e dos pobres, aquêles que Carlos Borromeu
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amará e preferirá dentre todos os fiéis. Em Santo Eustórgio,
onde permaneceram sepultados os Reis Magos ( !) até o dia
em que o chanceler de Frederico Barba-Roxa os transpor
tou para a catedral de Colônia, demorou-se para orar sôbrc
o túmulo do mártir veronense, o dominicano Pedro, truci
dado quando se aproximava de Milão; e abandonando a
capa magna de legado pontifício para a Itália, vestiu os
paramentos episcopais.
O ingresso volveu-se solene e majestoso como nunca se
teria imaginado; os soldados, a cavalo, precediam a caval
gadura do prelado, que passava abençoando à direita e à
esquerda; a multidão, ajoelhada e silenciosa durante a pas
sagem, prorrompia logo depois em intermináveis aplausos
e clamores. Seguia o governador, em suntuosa armadura
de aço marchetada de ouro, acompanhado, por sua vez, por
uma série de fidalgos espanhóis vestidos de prêto, com fa
ces de longas barbas a adornar os brancos colarinhos; logo
a seguir, vinham os senadores milaneses em togas, os nobres
italianos em ricas vestes, mais brilhantes e pitorescas que as
dos fúnebres estrangeiros e, por fim, o dero, os frades e os
cônegos. Na praça da catedral, o acompanhamento era des
medido; o arcebispo apeou e subiu lentamente a escadaria
fronteiriça à porta ocidental; e quando se voltou para aben
çoar os presentes, um único e imenso grito esgueu-sc do
povo: "Viva Santo Ambrósio!"
Afirma com acêrto Franceschi: "E' preciso deter-se ao
menos por uns instantes para contemplar êste espetáculo,
porque mais tarde virão as incompreensões, as desconfian
ças e os vendavais; essa é a hora de comunhão entre o povo
que há oitenta anos não via bispos, e seu jovem pastor que
lhe fala de amor e lhe promete a vida inteira; não é cerimô
nia de caráter oficial, nem momento de bela e comovida elo
qüência, pois neste tempo Carlos não resplandecia ainda
por dotes oratórios. E para compreender qual recordação
solene está vinculada ao primeiro contacto entre o pastor
e o rebanho, seria necessário observar a diocese dentro de
vinte anos, quando um núncio suíço escreverá de Milão
que o govêrno espiritual da cidade é tão perfeito, que lhe pa
rece nada menos que hierarquia angélica".
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10.
O SiNODO DIOCESANO
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nuto sequer. Os prelados ouviam as sutis disquisições sô
bre os tratados tridentinos, seus argumentos para um retôr
no às rigorosas regras do bom tempo antigo. Na base de
veriam encontrar-se a obra e o zêlo dos pastôres que, vi
vendo em meio à própria grei, salvaguardariam a sua fé,
animando os párocos a reavivá-la em tôdas as paróquias,
verdadeiras células do organismo eclesiástico. Os repre
sentantes da autoridade civil não realizariam nunca coisa
tão útil ao bem e à segurança própria e dos povos subme
tidos a sua autoridade, como sustentar a religião, favore
cendo a obra de seus ministros. ltsse, o sucesso da pregação
de Carlos.
Naturalmente, como sempre sói acontecer, os mais jo
vens entusiasmaram-se fàcilmente diante das perspectivas
de uma nova cruzada; os mais idosos, porém, acolhiam tô
das essas novidades torcendo melancolicamente o nariz. Era
principalmente o dever de residir no benefício donde lhes
provinham as rendas, que mais afligia os beneficiários.
Tanto mais que precisavam contentar-se, renunciando a dois
ou três benefícios, a conservar como próprio somente o que
lhes causava a tristeza maior, ou seja, a obrigação de nêle
residir.
Interrogavam-se mutuamente se o fato de haver feito
todos aquêles grandes e universais protestos para �onseguir
um arcebispo estável não tivera sido cair do caldeirão às
brasas. A delgada face barbuda, o saliente nariz aquilino, os
olhos agudos, castanhos e penetrantes, que pareciam tudo
ver e inquirir, não prometiam nada de bom. Tudo muito di
ferente dos bonitos e gordos prelados, tranqüilos e suave
mente indulgentes a tôdas as debilidades, com aquêle siste
ma de deixar correr e confiar tudo à Providência, sem
cooperar com a graça, - que era o modo habitual de agir
dos eclesiásticos do tempo! O lugar dos santos é o paraíso;
mas aqui na terra necessita-se de homens que saibam com
preender e compadecer as fraquezas humanas! �ste o pen
samento da maioria, após quinze dias de massacrante reunHi"o.
Os potentados, por sua vez, não compreendiam como
se pudesse governar sem a Inquisição. Carlos declarara aber
tamente que os métodos de então, mais favoráveis à políti
tica que à fé, não eram feitos para seu povo e jamais os
teria usado. Cabia ao arcebispo e ao bispo vigiar contra
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as infiltrações heréticas e, quanto às leituras, o índice dos
livros proibidos era suficiente para impedir a difusão de
idéias contrárias às aceitas e divulgadas pela Igreja. Nem
creiam os senhores pintores, escultores e arquitetos, de fugir,
com a desculpa da arte, às disposições vigentes em matéria
de austeridade na arte sacra! Se a arte está destinada a ser
vir à Igreja, deverá respeitar rigorosamente a verdade re
ligiosa e a dignidade dos lugares santos. Serão também
proscritas as vulgaridades grotescas nas sagradas represen
tações, e severamente perseguidas e impedidas as supersti
ciosas formas de magia e comércio com os espíritos demo
níacos, a blasfêmia e a profanação dos dias festivos. Havia
assunto e trabalho, como se vê, para todos e por bastante
tempo!
Para instituir os seminários - e grande era sua neces
sidade! - obter-se-ão os fundos das mesas dos bispos, de
cujas residências serão banidos o luxo e todos os gastos
inúteis. Em compensação, dever-se-ão ornar mais as igre
jas, tornar decentes e acolhedores os hospitais, e salvaguar
dar de tôda a mundanidade os mosteiros.
Que terremoto para a pacífica vida dos privilégios e
das cúrias tranqüilas e consuetudinárias! E, ao invés, que
alegria e gôsto para Carlos! itsses sentimentos transborda
rão do coração do arcebispo no último dia do sínodo: "Sin
to-me contente por ter retornado à tradição dos concílios
1:egionais, interrompidos há tanto tempo; todos sabem quan
to é penoso reexaminar as causas da decadência espiritual
existente até hoje; ponhamos mão à obra na renovação
geral e lancemos corajosamente os fundamentos, aceitando
os decretos tridentinos!
"Nas gangrenas, empreguemos o ferro e o fogo; mas
onde a ferida é cicatrizável, usemos o azeite do samaritano,
pois somos pais e não patrões. Retornemos às fontes da san
tidade, às almas apostólicas, que eram simples, castas, hu
mildes no vigiar o rebanho, e cultivavam com trabalho ár
duo e alegria apaixonada a vinha do Senhor. Nutriam os
cor<leirinhos com o tríplice alimento da palavra, do exem
plo e dos sacramentos; incitados por ricas lembranças, imi
tavam o Pastor Supremo que doou generosamente a vida
e o sangue por sua grei".
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ADEUS!
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liano, Bárbara e Joana, que desciam à Italia para desposar,
respectivamente, os duques de Ferrara e de Florença. E
acrescentava que, se não fôsse por aquêle motivo, ter-lhe-ia
ordenado de voltar sem demora para Roma, agora que o
concílio milanês acabara.
Para chamá-lo à cidade eterna esforçavam-se também
cardeais, como Gámbara e Pacheco, que o ameaçavam com
os raios papais, se não tivesse retornado imediatamente à
côrte pontifícia - o seu verdadeiro lugar. Mas desta vez
Carlos respondia sêca e brevemente: "Conquanto tenha ti
do sempre em consideração o parecer do Papa, hoje não
o faço; tenho a meu favor o concílio tridentino que prescreve
aos bispos residir nas próprias dioceses. E a mais, se o se
nhor soubesse com quanto agrado estou ligado a minha
Igreja, certamente não me perturbaria a felicidade!"
O Papa, porém, j.á preparara o motivo para o obrigar
a voltar. Tendo falecido o Penitenciário Maior Cardeal
Ranúcio Farnese, o Sumo Pontífice designou-o seu suces
sor, com bula datada a 3 de novembro. Seguiu junto a or
dem de pôr-se a caminho em companhia das princesas,
aproveitando da escolta e dos meios imponentes da viagem.
Foi forçoso ceder às intimações do tio. Em Fierenzuola re
cebeu a notícia de que Pio IV estava para morrer; abando
nou então as damas a seu destino e dirigiu-se para Roma
com a máxima celeridade possível.
Chegou a tempo para receber o último suspiro do tio.
No conclave ultimado a 20 de dezembro de 1565, dez dias
somente após a morte do Pontífice, predominaram três
personagens: Carlos Borromeu, Alexandre Farnese e Hi
pólito D'Este. A luta pela tiara foi renhida, sobretudo entre
os dois últimos, - sendo Carlos demais jovem para ser
elevado ao pontificado. Julga�a-se, contudo, que sua in
fluência como sobrinho do Papa anterior teria sido decisiva
na escolha final. Enquanto os cardeais ingressavam no Va
ticano depois da missa do Espírito Santo, um dêles volveu-se
para Carlos, pedindo-lhe conselho: "Quem devemos eleger
como Papa?" "Aquêle que Deus escolheu!" foi a certamente
não comprometedora resposta do arcebispo de Milão.
O conclave decorreu pacificamente, sem intrigas de po
tentados estranhos à Igreja. Filipe II compreendeu bem
que, para aplicar os decretos de Trento, era necessário não
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um Pontífice rico e amigo do fausto, qual teria sido Ale
xandre Farnese, ou tim diplomata como Hipólito D'Este,
mas sim, um santo. Carlos bateu-se pela nomeação de Antô
nio Ghislieri, canonista de primeira categoria, dominicano
de vida rígida, de pureza e integridade incontestáveis.
Os homens do mundo não estavam contentes com a
eleição dêsse inflexível defensor da Igreja que, como Gran
de Inquisidor e cardeal sob Pio IV, demonstrara tôdas as
qualidades essenciais para atuar a reforma. Informado da
decepção dos potentes da terra, Antônio exclamou muito
simplesmente: "Governarei, com a ajuda de Deus, de tal
modo que seu desagrado na hora de minha morte será
ainda maior do provado na eleição!"
Carlos ficou satisfeitíssimo pela opção e rapidez do con
clave, e preparou-se para seguir sem demora à própria
diocese, e dessa vez, para sempre. Ao invés, o nôvo Papa
concedeu-lhe logo provas da máxima benevolência e con
fiança, convidando-o a permanecer ainda, pelo menos, por
três meses na Cidade Eterna. Tempo necessário para entre
gar a Secretaria de Estado e concluir v.árias obras, como,
por exemplo, a igreja de Santa Praxedes; restaurou-lhe a
fachada, a abside, e reconstruiu por completo o altar, o
soalho, o claustro e a casa adjacente par.a os religiosos.
Finalmente, no fim de março de 1566, reduzida nova
mente a família cardinalícia a oitenta membros, - que
mal se adaptavam a sua vida austera - partiu ocultamente
de Roma e, após visitar com grande alegria de espírito, pe
la primeira vez, o santuário de Loreto, entrou, a 15 de abril,
em Milão, sem pompa, quase secretamente, mas, em com
pensação, com o firme propósito de nunca mais afastar-se
do rebanho amado.
Durante os cinco anos de permanência em Roma, o
cardeal, além da parte importantíssima efetuada no Concí
lio Ecumênico, reformara não somente Santa Praxedes e as
outras suas duas igrejas titulares, a dos Santos Vito e Mo
desto e a de São Martinho, mas muitas outras. Ajudara, eco
nômica e moralmente, os teatinos, os jesuítas e o Oratório
de São Filipe Néri - o amigo a quem mais amou em Roma
e durante a vida inteira, apesar da diferença de caráter e
método.
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Além de tudo isso, conduzira a têrmo o catecismo ro
mano, iniciara a revisão do breviário, do missal e da vulga
ta, a reforma do Penitenciário, promulgara os decretos tri
dentinos e tinha mantido vasta correspondência não somen
te com Trento, como também com todos os países da Europa
Ocidental. Mas, em confronto com tudo isso, o que produ
ziu melhores frutos foi o seu exemplo.
Jerônimo Soranzo, cínico e desiludido como a maior
parte dos astutos embaixadores vênetos de então, em 1565
escreveu a respeito de Carlos: "Sua vida é absolutamente
sobrenatural. Seu zêlo religioso é tão grande, que se pode
afirmar com certeza que êle é mais útil à côrte romana que
todos os decretos do concílio. E' verdadeiramente extraordi
nário ver êsse sobrinho do Papa, ainda em pleno vigor da
juventude, num ambiente repleto de tentações, ter conquis
tado a si mesmo e o amor do mundo!"
Os cinco anos romanos teriam podido representar, pela
profusão de empreendimentos realizados e pelo exemplo
proporcionado, passo decisivo e definitivo para muitas ou
tras pessoas que se julgariam muito bem recompensadas
com os resultados obtidos. Para os homens votados a um alto
destino de santidade edificante e de exemplo para deixar
aos pósteros, cinco anos vividos na côrte pontifícia não pas
savam de exercício para provar a verdadeira vocação.
Completava Carlos vinte e oito anos, quando empreen
deu a segunda parte de seu caminho, a mais árdua e a mais
decisiva. E lhe restavam somente dezoito anos para levar
a têrmo uma das mais prodigiosas lições de santidade que
o mundo moderno tenha conhecido. Enquanto saía de Roma,
recordou emocionado as últimas palavras do tio moribun
do: "Senhor, deixa agora que o teu servo parta em paz!"
O PASTOR
E O REBANHO
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1.
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eia e lenta no despertar do letargo em que há tanto vivia.
As próprias pessoas que deveriam acompanhá-lo lado a lado,
na grande obra de regeneração, estavam dispostas a abando
ná-lo ao sobrevirem as dificuldades, circundando-o quase sem
pre com a mais obstinada hostilidade.
C:arlos Bascapé comenta tais tempos com uma observa
ção. . . profundamente singular: "Não se deve considerar
infelizes aquelas cidades que causaram muitas tribulações
a seus bispos; o que devemos é congratularmo-nos com
elas por terem tido pastôres tão santos; apresentemos, por
tanto, nossos cumprimentos a Londres, que matou Tomás
de Canterbury, e a Florença, que espancou e feriu Santo
Antônio; e depois rejubilemo-nos com êsses bispos persegui
dos, por terem recebido tão valioso prêmio!"
Cândido Bascapé! Pedro Giussano, porém, que talvez
amasse as tintas fortes, mas que andava informado de como
se passavam as coisas, deixa-nos de Milão daqueles dias um
quadro pouco lisonjeiro que, considerado à luz dos even
tos políticos e do que outros narram da capital lombarda nos
vários campos de sua vida social e espiritual, não está lon
ge da verdade.
Naufragara, quase por completo, a jurisdição eclesiás
tica, devido a mais de meio século de total abandono por
parte de um guia esperto e de um clero que, renunciando
a todo o freio e privado de qualquer contrôle, vivia pior
que os leigos. Os sacerdotes vegetavam sómente, vadiando
noite e dia, munidos de tôda a espécie de armas, sem ne
nhuma preocupação pelas próprias igrejas, que decaíam de
maneira cada vez mais assustadora. Assistência religiosa,
direção espiritual ou conselhos para uma alma necessitada?
E quem poderia fazer tudo isso? Quem, sobretudo, possui
vontade de o fazer? Pense-se que certos curas já não re
cordavam nem sequer a fórmula da absolvição, e como não
administrassem o sacramento da confissão, estavam conven
cidos de que muito menos êles precisavam de tal sacramento.
O povo dirigia aos pastôres espirituais o mais irônico des
prêzo: "Se queres visitar o inferno, o caminho é o sacerdó
cio!" Imaginemos que espécie de estima!
E os conventos? Um pouco menos dissolutos os habita
dos por frades, mas quanto aos femininos!. . . O pobre ar
cebispo deverá lutar não pouco para reconduzir os institu-
118
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tos das monjas ao que foram nos tempos de fervor e torna
ram a ser durante o seu ministério; e encontrou continui
dade, por grande fortuna, no Cardeal Frederico, que cer
tamente teria subido à glória dos altares, se j.á lá não se
encontrasse Carlos!...
Os claustros, e principalmente as clausuras, não pas
savam de poeira para os olhos. Havia contínuas recepções,
e dava-se hospitalidade com a máxima facilidade a damas
que vinham esconder seus pecados - que eram numero
sos e escandalosos como os hodiernos; haviam-se tomado,
enfim, salões onde se dançava a mais não poder. A ignorân
cia de Deus tinha alcançado tal grau, que muitos já haviam
perdido o conhecimento de todos os sacramentos, e a po
pulação morria sem comunhão e confissão, com um des
cuido que fazia duvidar que se vivesse em terra cristã.
O povo, adormecido pelo govêrno que o dessangrava
continuamente com ladroeiras e taxas, e por um clero que
t•stava sempre do lado dos potentes, preocupado unicamen
te de viver. . . para engordar, jazia em estado miserável,
defendido por ninguém, espezinhado por todos e enganado
sempre que fôsse possível. Compensava-se, então, com bai
les, torneios, bacanais públicos e privados, caçadas e mas
caradas. E após o banquete que seguia à primeira missa do
neo-sacerdote - quanta diferença do pedaço de pão sêco
e prêto de certos santos! - vinham os festins de arrebentar o
estômago, com as conseqüentes procissões de penitência.
que se transformavam geralmente em grotescas e vergo
nhosas paródias!
Os templos tinham-se convertido em lugares de encon
tros para contratos e reuniões, não se respeitando nem se
quer as funções, que se desenrolavam em ritmo acelerado e
cerrado, pois os afazeres mundanos urgiam muito mais que
os divinos. E quantas vêzes, evaporado o perfume do incen
so diante do Santíssimo Sacramento, as igrejas tomavam o
aspecto de amplas salas de baile, ou senão, de tabernas
apropriadas para banquetes e borracheiras ! Quando - coi
sa sem dúvida muito menos indigna! - não eram usadas
para malhar o trigo ou a aveia, e o ribombo das pancadas
ecoava estrondosamente pelas naves da igreja!. ..
Nem faltavam os espertalhões que fingiam confessar-se,
_embriagados como estavam, para ter o gôsto de ver o con-
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fessor fugir diante da ostentação de suas velhacarias e afir
mações licenciosas e sádicas. E quem se retirava quase
sem,pre o fazia para não estourar também êle em ruidosas
gargalhadas; não certamente por horror e devoção. Durante
o carnaval, no primeiro domingo da quaresma, acontecia,
freqüentes vêzes, que os sacerdotes, no entusiasmo de insen
sata estúrdia, entoavam o aleluia da Ressurreição... com
cert� antecedência! Não pareçam histórias narradas para
colorir o quadro! Giussano fala, é verdade, com aquêle seu
tom algo impetuoso e inclinado ao trágico, mas Ferragata,
Oltrocchi e Ormaneto, essas e outras alegrias as colocam em
pratos limpos a Carlos em suas cartas. Que de vêzes depara
ram com vigários que estavam governando uma paróquia
havia trinta anos sem jamais ter recebido as ordens sagradas,
e com certos bispos que, ao administrar o sacramento da
Crisma, tinham sido enxotados pelo povo que nunca os
vira uma vez sequer! ...
Oltrocchi nos relata, por exemplo, que o palácio arquie
piscopal já não possuía móvel algum, as mitras e o báculo
tinham sido vendidos, as janelas prestes a desmoronar, as
portas rachadas, e a imudície que se acumulava nos pátios
era tanta, que quando se pretendeu assear o casarão, fo
ram carregados cem carros de lixo.
Bem diversa era a condição das cidades governadas
por príncipes e reis italianos, como Turim, onde Emanuel
Felisberto e Carlos Emanuel I tudo fizeram pelo bem dos
súditos; a religião era defendida, também se algumas vê
zes o rei se intrometia, talvez excessivamente, para retifi
car algum êrro feito por pastôres muito zelosos ou por in
quisidores inflamados! Mas já é historicamente provado
que não existiram piores senhores que os espanhóis em to
do o mundo, tanto no nôvo como no velho; e que, de cá e
de lá do oceano, o fim do seu domínio é saudado com razão
como a libertação da mais execranda escravidão! '
1) A asserção do autor talvez não deva ser tomada ao pé da
letra. Houve, sim, excessos por parte de todos os colonizadores; não
sei, porém, se os mais culpados são precisamente os espanhóis ...
Nem é justo incriminar uma nação inteira por, causa de alguns indi
víduos. Compreende-se fàcilmente a indignação do autor, se lembrar
mos que o norte da Itália pertenceu por muitos anos à Espanha. E
afirmar que a causa da decadência � do ·relaixamento espiritual em
que viviam o clero e a população era unicamente a dominação
espanhola não espelha em tudo a verdade histórica (N. tlo T.).
120
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As autoridades, assim chamadas governamentais, eram
a expressão do século. E' o século das Majestades Católicas,
das Majestades Cristianíssimas e do Imperador do Sagrado
Romano Império; pululavam os Condes, os Duques, os Vice
reis, os Infantes, os Governadores, os Senados, as Juntas, os
Excelentíssimos, os Magníficos e os Reverendíssimos; é o
tempo das Academias, dos Doutíssimos, dos Ilustríssimos e
dos Digníssimos. O 1ssimo estava na moda; mas a miséria
que se ocultava sob o superlativo, era igual, senão superior,
ao grau máximo do qualificativo ...
As autoridades, excessivas que eram, acabavam por
destruir-se umas com as outras. E mandavam às favas a lei
e principalmente a justiça, sua guarda mais segura. A in
justiça e a negligência do método de govêrno exercido pelos
espanhóis, tornaram-se proverbiais; e apesar disso, nenhum
mau govêrno publicou tantas e tão disparatadas leis com
penas de fazer eriçar os cabelos! "Aqui cabe tudo; é como
o vale de Josafá", dizia o famoso advogado de "Os Noivos"
a Renzo. E acrescentava que "sabendo-as manejar, ninguém
é réu e ninguém é inocente". O que importava é que fôssem
salvos a forma e seus representantes - os gentis-homens,
os cavalheiros de capa e espada, as personagens de toga,
- eis o que se pretendia das prescrições e dos editais.
No resto, o que tenha sido a sociedade milanesa e ita
liana no tempo e lugar onde vigorava o predomínio espa
nhol, deixou-nos páginas imortais Alexandre Manzoni; e
por onde andou Dun Lisander, • ninguém mais pode passar.
2) Lisan.der é modificação dialetal de Alexandre. Em nosso caso
o autor refere-s,e a Alexandre Manzoni (N. do T.).
2.
REFORMAR-SE PARA REFORMAR
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do em que o sentido verdadeiro da religião desaparecera
quase por completo, para ser substituído pela negação da
fé, que é a superstição, começou a cultivar a idéia do dever,
colocada em germe no coração de todos os homens, e obteve
verdadeiros milagres. Ninguém, mais do que o arcebispo,
manifestava, profundo e universal, o sentimento de comi
seração pelos sofrimentos morais e físicos, que afligiam
um povo atordoado e inconsciente. Assim, volvendo as cons
ciências para Deus resoluta e corajosamente pôde consta
tar prodigiosas mudanças durante os dezenove anos de vida
pastoral.
No início, porém, quantos momentos de esmorecimen
to! Quantas vêzes foi visto esconder o rosto entre as mãos
e chorar as misérias daquela sua Milão que decidira nun
ca mais abandonar! Apenas chegado, fizera o firme pro
pósito, caso fôsse constrangido a abandonar a diocese ou a
renunciar à púrpura, de escolher o segundo caminho. Obri
gou-se solenemente a não olhar a comodidades de horários
no trabalho e repouso, no sono e alimentação. Ou supera
ria as dificuldades e daria à cidade o semblante de que ca
recia, ou morreria na emprêsa; a quem lhe fazia notar o
perigo em que punha a vida, respondia: "Oxalá fôsse verda
de! Podeis estar certos de que Deus enviará sem demora a
esta Igreja um pastor muito melhor que Carlos!"
E começou a reformar. . . inicial e novamente a si mes
mo. O luxo ofendia os pobres e a riqueza alheia insulta
va-os? Ei-lo então, em meio de tôda aquela pompa, aquela
insolência de insultante riqueza, a tornar-se o mais indigente;
em meio da inércia e lentidão com que se arrastavam as coi
sas mais necessárias para reparar o mal e emendar um
abuso, ei-lo a transformar-se no mais solícito, no mais incan
sável, e num ambiente de geral egoísmo, a converter-se no
mais generoso e no mais humilde!
Assim, segundo o testemunho de Giussano e de Oltroc
chi, concordes em referir as mesmas informações e no assina
lar as mesmas ações realizadas pelo santo, de tudo o que
trouxera consigo de Roma, doa os tapêtes do duque de Mân
tua à catedral desadornada, e vende tôda a argentaria, sa}.
vo poucos utensílios indispensáveis, em benefício dos neces
sitados; os quadros, as estátuas de prata e de bronze tor•
num-se propriedade dos institutos de caridade, e os objetos
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sacros, da Basílica Liberiana. Vigiava pessoalmente para
que tudo estivesse no devido lugar. Perguntando-lhe certo
eclesiástico se estava disposto a ceder-lhe um grupo mar
móreo representando Vênus e Cupido, teve uma resposta
talvez inesperada: "Satisfaria seu desejo se não fôsse um
homem de Igreja, a quem não convém semelhante obra!"
Principiou por desfazer-se das numerosas prebendas e
abadias que possuía, e chegou a despojar-se de tôdas sob o
pontificado de Gregório XIII. Somente não pôde transferir
a abadia de Arona, que teria desejado imensamente passas
se aos jesuítas - e foi Pio IV quem insistiu para que con
servasse o cargo de Penitenciário Maior, porque, dizia o
pontífice, "também se distante, tua administração é ótima,
e torno-me eu fiador diante de Deus". Os cem mil escudos
anuais obtidos dos benefícios eclesiásticos, reduziu-os bem
depressa para menos de vinte mil, presenteando com o du
cado de Romagnano· o parente Ferreri, e delegando aos tios
as rendas da terra natal.
Apartou-se ràpidamente de tudo o que fôsse humano
e esforçou-se para tornar a vida espelho de verdadeira pe
nitência. A residência tornou-se ninho de místico recolhimen
to; longe de recordar o ambiente de uma côrte quinhentista,
assemelhava-se ao oratório de Filipe Néri. Acercara-se, des
de o início, de uma centena de pessoas dispostas a viver
como seu arcebispo, cultas tôdas, sem dúvida, mas princi
palmente, bem preparadas a servir não a êle, príncipe da
Igreja, e sim à própria Igreja e aos fiéis. Tendo-lhe Nicolau
Ormaneto proposto um indivíduo muito hábil no desemara
nhar os labirintos das leis, mas delicado de saúde, ouviu
replicar: "Não! Se gozar de pouca saúde, não me convém,
pois dificilmente suportar,á as fadigas a que nós aqui, a
começar de mim mesmo, devemo-nos sujeitar!"
Amava homens como Ludovico Sudeno que, à proposta
de habitar com o cardeal, respondeu: "O que devo fazer
em sua companhia e com que métodos se viva ali, não sei
nem me preocupo por sabê-lo. Eu responderei à chamada
de Deus; em tudo o que me fôr confiado, demonstrar-me-ei
fiel e diligente conforme minhas fôrças; levarei comigo reta
intenção e muita boa vontâde".
Narra Pedro Giussano de um familiar, muito inteligente,
que gozava de pequeno e simples benefício, ao qual Carlos
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desejava que renunciasse. E como não fôsse obedecido, li
cenciou-o, colocando-o, contudo, a serviço de um nobre que
não era lá muito escrupuloso . . . Retribuía a justa mercê
segundo os ofícios ocupados, o trabalho e a responsabilidade,
mas ninguém devia aceitar regalos: "Vós não podeis com
preender quanto os dons, também os mais modestos, sejam
capazes de enfraquecer a vontade!"
Poucas pessoas de seu tempo conseguiram igualá-lo co
mo condutor de homens. E sabia pôr bem à prova os que o
cercavam! Acontecia ser-lhe alguém recomendado como no
bre cavalheiro ou grande intelectual? Experimentava-o, co
locando-o por não pouco tempo a fazer o caudatário, ou a
levar as bagagens durante as visitas pastorais. Se o candi
dato demonstrava muita ânsia por subir a escada das hon
ras, podia estar certo de que teria permanecido por longo tem
po sem nada realizar, ou pelo menos, seria destinado aos
ofícios mais humildes, para ver se resistia sem provocar
alguma tempestade.
Minucioso e atento como era, encetou, na desordem ge
ral, pôr em ordem a própria casa. Dividiu a família em
oficiais superiores, vigários, fiscais, escrivães, auditores, cô
negos e mestres de casa, que constituíram a cúria propria
mente dita, seguidos pelos clérigos privados de ordens sa
cras, e pelos leigos. A vida espiritual era presidida por um
diretor, que celebrava a missa para os não-sacerdotes, en
sinava-lhes a doutrina cristã em determinadas horas, e assis
tia-os na meditação. Os sacerdotes oficiavam em comum.
Nas refeições, tomadas juntamente, praticavam a leitura,
também se tivesse presente algum bispo.
No arcebispado não se encontravam armas de nenhuma
espécie, e os momentos de folga, bem como as conversas
familiares, eram governados por muita modéstia e majes
tade. Nas longas noites hibernais, fazia-se círculo em vol
ta do fogo, e o cardeal, se as ocupações lho permitiam, di
rigia os diálogos, que versavam sempre sôbre argumentos
de religião, filosofia e arte. Durante os primeiros anos, Car
los fêz as refeições com os domésticos; mais tarde, porém,
foi visto rarear sempre mais, pois havia inaugurado aquê
le. sistema de abstinências que o levariam a um jejum qua
se perene.
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Mostrava-se intransigente quando se tratava da disci
plina e do teor de vida; e também com seus parentes. Cer
to dia, passava por Milão o cunhado César Gonzaga e hos
pedou-se no palácio arquiepiscopal; Carlos encontrava-se
ausente no momento e enviou ao mestre de casa uma men
sagem: "Cuidai para que nessa ocasião não venha a sofrer
em nada a ordem da família; adverti outrossim a César que
seja pontual ao retornar antes das vinte e quatro horas, -
pelo anoitecer, segundo o cálculo do tempo, - porque é
nessa hora que se costuma colocar a tranca nas portas".
César, naturalmente, nunca esqueceu a lição, e quando
visitava Milão, esforçava-se para hospedar-se com quem
o deixava livre para regressar à hora que quisesse; vinha
sempre acompanhado de pajens que levavam lanternas
diante da liteira, e por um séquito de capangas a sustentar
tochas, coisa que o arcebispo não via de bons olhos, porque
havia muito abolira os cortejos de homens armados.
Apenas chegado à diocese, procurou inculcar em todos
os colaboradores desinteressado amor aos doentes e pobres,
pr.ática essa que foi sempre crescendo com o passar dos
anos. Narra-nos o bom Carlos Bascapé: "Recordo-me de tê
lo ouvido, freqüentes vêzes, suplicar e ensinar que não se
deixasse faltar algo aos doentes, fracos e hóspedes, afirman
do que jamais lhe teria dado satisfação o ministro que não
tivesse realizado êsse dever. Tais obras de caridade estavam
lhe de tal forma a peito que, entre as lidas e preocupações
diárias, recordava-se dos enfermos e os assistia, apesar de,
talvez, adoentados levemente". E continua o apaixonado
biógrafo a nos referir que, certa noite, em que se encontra
va em Bréscia com o cardeal, sentindo-se algo indisposto,
o "benigno pai" - como gosta de chamá-lo - visitou-o no
próprio quarto e, examinando-lhe a colcha, achou-a demasia
do leve e delgada; ordenou que fôssem imediatamente buscar
a própria e a pusessem sôbre o leito do jovem secretário
enfêrmo.
O passadio que se apresentava à mesa do cardeal era
simples mas abundante, exceto nos numerosos dias de abs
tinência e de jejum. Comiam escassamente nas quartas-feiras,
e jejuavam em tôdas as sextas-feiras e vigílias. Conforme o
rito ambrosiano, o advento começava no domingo sucessivo
à festa de São Martinho - 11 de novembro, - e a quaresma,
125
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no domingo de quinquagesrma. Ambos eram de jejum ri
goroso. Estavam proibidos os ovos, o leite, o queijo e a car
ne. Uma vez por mês reuniam-se as diversas congregações
para examinar as condições espirituais e financeiras da
família.
Como vemos, tratava-se de um regime extremamente
austero, de um rigor necessário para reagir contra o deslei
xo quase geral dos costumes e o luxo desenfreado dos ecle
siásticos que, naturalmente, taxavam o pastor de louco, ex
travagante e sequaz de uma santidade superior às fôrças
humanas. Carlos, porém, continuava impertérrito e sereno
seu caminho; diligenciava para aliviar o rigor de sua re
gra por meio de gentileza e solicitude no trato com os seus;
visitava as hospedagens e enfermarias cotidianamente para
certificar-se de que nunca escasseasse o necessano, e se,
por acaso, os domésticos precisassem de cuidados, êstes
nunca faltavam.
Em tais casos, nenhuma solicitação era mais importante
e urgente, e êle mesmo se interessava para que fôsse usada
a máxima generosidade com os enfermos e necessitados. Fa
lava freqüentemente com criados e palafreneiros, a fim de
assegurar-se pessoalmente se estavam contentes e, conse
qüentemente, se eram assíduos às práticas religiosa, sôbre
cujo cumprimento não admitia transigências.
3.
O CÉU TORNA-SE MAIS LtMPIDO
127
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Não transformava em frades todos os diabos que lhe caíam
nas mãos, mas Bascapé nos diz que grande número acaba
va por confessar-se, e deixava o arcebispo com o propósito
de fazer juízo. Se depois cumpriam o prometido, não nos
é referido. Talvez tenha existido sàmente um Padre Cristó
vão. Um só o Inominado. E muitíssimos os Dom Rodrigo . .
Grande era a abundância de produtos alimentícios que
entravam na cidade sob o nome do arcebispo e que, por
conseguinte, não pagavam as taxas; certa vez, os fiscais,
suspeitosos, quiseram inteirar-se do que acontecia e acha
ram bom seguir os carros até o palácio. O cardeal, ao per
ceber-lhes a presença, saiu e demonstrou pessoalmente aos
alfandegários como e por que tôda aquela mercadoria era
destinada aos pobres esfomeados dos bairros mais miserá
veis. E desde aquêle dia ninguém mais ousou interes
sar-se do que era endereçado ao cardeal-arcebispo.
Tôda essa prodigalidade, é evidente, comportava inú
meras despesas, e o ecônomo da casa fêz observar a Carlos
que, caso continuassem de tal modo, teriam ido passear
por Milão de barrete verde. ' O cardeal quis averiguar pes
soalmente os fatos e viu que realmente havia exageros. Pen
sou expor ao público vários cofres, nos quais os forasteiros,
gente boa e honrada, poderiam colocar alguma esmola.
Mas nada conseguiu. Julgou então oportuno acolher, sim,
no palácio os hóspedes ilustres, mas sem o séquito numeroso
que os acompanhava, composto de criados, cavalos, carrua
gens e carroças, que acabavam, além do mais, por trazer
confusão e desordem no desenvolvimento regular da vida
disciplinar.
E j,á que estamos no ambiente doméstico, assinalemos
outra paixão dêsse santo tão moderno em pleno século XVI.
Tinha verdadeira mania pelos registros. "Registros de qual
quer espécie, - escreve Franceschi; relativos ao clero, com
vida, morte e milagres de cada um, à fundação das paró
quias, às heranças e obras pias; breves e completas mono
grafias das igrejas e capelas, com hábil descrição particula
rizada dos altares, quadros e estilo arquitetônico, as dimen
sões precisas e mais cem particularidades e minúcias. Não
faltavam informações sôbre os conventos, frades, hospitais
1) Expressão italiana para significar que acabariam na mi
séria (N. do T.).
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Reformar-
se para
reformar ..
.
A primeira comunhão
do angélico parente
São Luís Gonzaga.
A 2 km de Arona, na margem
ocidental do Lago Maior, está a
famosa estátua de S. Carlos -
o San Carlone - a abe nçoar a
Borromeu
terra natal; te m 23 ms. de altura,
sôbre um pe de stal de 11,70 ms.
De ntro do livro, pode m e star três
homens.
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Pa1wl'tt11t
de
ll
Flm·e11ç
a.
A vasta dioce::;e de
São Carlos Borro111eu
compreendiíl
também os Alpes .. e
suas maravilhas .
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e easas de caridade. A vasta diocese estava reproduzida por
menorizadamente nos arquivos da cúria, e bastava breve
eonsulta e não muita inteligência para vê-la diante de si,
viva em homens e coisas".
Carlos escolhera dois religiosos para inspecionar um
a cidade e outro a campanha, sem embaraços burocráticos e
governamentais. Era-lhes de obrigação observar bem a si
tuação da diocese e referir sinceramente, sem frioleiras, co
mo estavam as coisas. Dividiu, em seguida, a cidade em seis
setores correspondentes às seis portas, e pôs como chefes
elos "prefeitos das portas", sacerdotes indicados por Nicolau
como os mais zelosos e dinâmicos. Reunia-os cada semana
para averiguar o comportamento e a atuação. Três vêzes
por ano avisava os vigários forâneos que lhe relatassem
por escrito o estado das paróquias colocadas sob sua juris
dição; de tal forma que o arcebispo, quando saía em visita
pastoral às mais remotas regiões da vasta diocese, podia es
tar a par de sua situação, sem fiar-se na descrição que, no
momento, davam os curas.
Para aplicar a reforma de modo completo, o arcebispo
sustentou também vários e porfiados choques com os cône
gos da catedral. Escolhidos dentre as duzentas famílias
mais notáveis da cidade, eram inamovíveis e gozavam do
canonicato com todos os anexos e conexos. Carlos encontra
va-se diante de duas graves dificuldades; além de ser o
mais jovem de todos, êle que devia presidi-los, via-se obri
gado a enfrentar os interêsses das duzentas famílias mais
importantes do ducado, respeitadas, protegidas e defendidas
pelo poder temporal.
Também aqui evidenciou-se a diplomacia do cardeal;
cm vez de insurgir-se imediata e afoitamente contra os pri
vilégios e benefícios, fê-lo pouco a pouco, com tacto, discri
ção e paciência, de modo a conquistar paulatinamente, não
somente a resignação, mas a estima e o afeto dêsses rígi
dos defensores dos direitos. Todos aceitaram de bom grado,
do cônego teólogo ao penitenciário, qualquer inovação, po
< lendo assim, mais tarde, o cardeal referir "que os cônegos
se tinham tornado senatores boni uiri, porque o senatus dei
xava de ser mala bestia".
Fazer e ensinar: esta a regra estabelecida desde os pri
meiros dias do ministério. Ainda menino, venerara Santo
Vida de S. Carlos - 9 129
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Ambrósio "o mais milanês de todos os santos e o mais san
to de todos os milaneses" e, quando prelado, escolhera-o co
rno patrono e defensor. "A imitação de Santo Ambrósio e
de Santo Tomás de Canterbury, - lê-se no processo de ca
nonização - esforçou-se para restaurar com suas fôrças,
e jamais deixou de defender a dignidade eclesiástica e a
disciplina cristã, uma e outra em plena decadência". Mas
o bispo inglês não era o único dos santos da Grã-Bretanha
a ser venerado por Carlos. Teve sempre diante de si um re
trato de João Fischer, pastor modêlo, cuja vida fôra exem
plo constante de caridade e pobreza; e sua morte represen
tou um protesto contra a usurpação, por parte do poder
civil, dos direitos da Igreja.
Duas passagens da Sagrada Escritura, de modo especial,
foram sempre para Carlos fonte de inspiração e meditação.
Um fragmento dos Atos dos Apóstolos: "Jesus começou a fa
zer e a ensinar", e outro, da Epístola aos Coríntios: "Casti
go meu corpo e o reduzo à escravidão por temor de que,
depois de haver pregado aos outros, eu mesmo pereça".
O campo para trabalhar era difícil e ilimitado. A cate
dral, as igrejas da cidade e dos arredores, a diocese inteira
reclamavam renovação e redenção. Dignidade e disciplina
estavam em decadência, e teria sido lógico reputar a tarefa
superior a qualquer vontade humana. E assim era real
mente! Carlos, porém, não se considerava por si mesmo ca
paz; somente o era enquanto operava em nome do Senhor:
"Não eu, mas Cristo que está em mim".
Seus dotes particulares de infatigabilidade no trabalho
e de metodicidade na organização, o raro dom de unir as
mais vastas perspectivas com minuciosa atenção aos parti
culares, tornavam-no o homem mais apto para a obra que
devia realizar, - uma reforma e uma renovação de tal
grandeza, que nos obriga a considerar Carlos e seu regime
episcopal como o modêlo de todos os bispos e de tôdas
as dioceses.
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4.
O ESPtRITO E A PEDRA
132
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tes para todos. Tão v1s1veis que os primeiros que haviam
aplaudido, ou por serem ordens de Roma e de Madri,
ou pelo fato de as novidades proporcionarem sempre certo
prazer, começaram a preparar-se e a temer que as reformas
fôssem de fato feitas séria e profundamente, e devessem
perdurar por muito tempo! E acharam mais conveniente re
voltar-se para que as renovações não lhes prejudicassem a
vida tranqüila. Mas o arcebispo, que não se desvanecera
com os primeiros fáceis entusiasmos, estava decidido a con
tinuar o caminho empreendido, a todo o transe.
E tanto menos confiava nos sucessos e promessas dos
primeiros resultados, que geralmente aparecem brilhantes,
mas acabam depois como perecem as obras realizadas mui
to às pressas. Para estar a par do funcionamento das tão
debatidas reformas, o cardeal gostava, a curtos intervalos,
de lançar um olhar de conjunto à amada diocese e à pro
víncia eclesiástica. E então completava as resenhas por meio
de sínodos diocesanos e concílios provinciais, coisa que ini
cialmente teria desejado efetuar de seis em seis meses, ou,
pelo menos, uma vez por ano. Mas as intermináveis ocupa
ções que sempre o atormentavam, e que algumas vêzes o
obrigavam, ainda que por ordem da Santa Sé, a permanecer
fora da diocese por semanas inteiras, obstaculizavam-lhe
aquela solicitude por êle reputada como o primeiro de todos
os deveres.
Durante certos concílios sucediam fato5 que revelavam
a que ponto tivesse decaído o sentido da piedade e da disci
plina em alguns organismos da Igreja. No sínodo de 1568,
por exemplo, realizado em Mântua, por causa da clamoro
sa pregação herética de um frade, que se dizia apoiado
pelo duque, verificou-se uma balbúrdia tal, que dois domi
nicanos foram massacrados. O Pontífice, alarmado, excla
mou: "Aqui se requer a ação de Carlos!" E lhe escreveu:
"O Senhor vos enriqueceu de dotes eminentes, e nós conhe
cemos tôda a vossa integridade, vossa prudência, vossa ha
bilidade e vosso zêlo pela Igreja, e temos firme esperança
de ver-vos corresponder plenamente a nossos desejos".
Adeus, problemas de -Milão!. . . E' preciso partir. Mas
os frutos que recolhe são deveras copiosos. Em Mântua,
persuade o duque a tornar-se extrênuo defensor da religião,
e ajusta tudo com plena satisfação dos adversários. Visto
133
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o sucesso, o Papa insiste para que permaneça na cidade;
o cardeal, porém, responde, devoto mas resoluto, que seu
lugar é Milão e que lá quer e deve retornar, porque, de ou
tra forma, onde acabarão as deliberações do Tridentino?
Pio V compreende e louva tão grande zêlo. Mas, além dos
obstáculos que as incumbências papais lhe suscitavam, qua
se a impedir o dever sagrado e efetivo das renovações, exis
tiam também as moléstias e a debilidade de saúde, que es
tavam a inquietar os amigos; não ao cardeal, certamente, que
não queria saber de sentir-se pouco bem...
Antes da morte de Pio IV, sofrera grave esgotamento,
e Nicolau Ormaneto já lhe havia escrito, aconselhando-o
a moderar-se e a atenuar sua atividade vulcânica com um
áureo intermezzo. "Poupai-vos, não sejais indiscreto!" e
"trabalhai menos se desejais resistir mais!" eram os es
tribilhos de suas cartas. O cardeal de Como escrevia igual
mente à cúria de Milão e a seu chefe: "Menos fadigas, caso
contrário vosso pobre corpo se romperá por completo. Vós
me repetis que canto sempre no mesmo tom. Provàvelmen
te também na mesma chave. Mas que importa! Eu digo
somente a verdade. Pelos deuses imortais, renunciai a parte
de vossas lidas, se quiserdes subsistir!" Palavras ao vento!
O jovem arcebispo emagrecia de maneira comovente,
e os olhos aprofundavam-se sempre mais. Sua face assumia
aspectos inquietantes. No esplendor da capa magna, ou na
magnificência da casula e da mitra recoberta de gemas, a
esquelética figura dominava o côro e a nave, do alto do
trono espiscopal. "O que impressionava, - escreve Marga
rida Yeo - não eram somente a face e a pessoa, mas, tal
vez ainda mais, o altivo e incansável entusiasmo pela reno
vação e reconstrução".
E quando os amigos lhe sugeriam nutrir-se mais abun
dante e regularmente, trazia o exemplo do Papa, cuja so
briedade, numa côrte onde a temperança havia muito de
saparecera, tornara-se logo proverbial. Ao meio-dia o Pon
tífice comia dois ovos e uma sopa com verdura; à noite, um
pouco de peixe, salada e frutas. �stes os seus grandes ban
quetes! Dormia algumas horas apenas, alçava-se mal des
pontava a aurora para celebrar a missa, e o resto do dia
era dedicado à oração e ao trabalho. E Pio V tinha setenta
e dois anos, "enquanto Carlos, conforme se apressava em
134
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referir a todos, completara apenas vinte e oito". Zombavam
dêle, portanto, querendo limitar-lhe a atividade ...
5.
SEMINARIOS E SACERDOTES
135
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zer ostentação de dramaticidade, sempre por um capelão
assalariado. Sôbre a multiplicidade dos benefícios de que
gozavam os conêgos já se falou; mas era mal comum de
tôdas as dioceses. E quanto à vida privada dêsses sacerdotes,
é melhor não insistir e nada mencionar.
Carlos reordenou, sem muitos rodeios, os benefícios e
privou muitos sacerdotes das rendas, apesar da série de
tormentas que agitaram o cabido, qual galera à mercê das
vagas excitadas pelo vento. Mas não cedeu. Obrigou, pelo
contrário, todos os cônegos a presenciar o ofício divino, que
devia ser cantado em horas determinadas, sem nunca re-
tardá-lo. Ao penitenciário e ao pregador, acrescentou um
doutor para funcionar de censor, superintender as funções
religiosas e anotar os nomes dos ausentes e os erros dos ce
lebrantes e do côro. Um mestre de cerimônias assistia às
solenidades para que homens e mulheres estivessem sepa
rados na Igreja, e para que os altares se encontrassem sem
pre em ordem, e se celebrassem as missas em horas estabe
lecidas. Naturalmente, todos êsses prepostos à ordem da ca
tedral, eram pessoas de confiança do cardeal e gente que
não condescendia com a corrupção e com os louvores.
Assim, pouco a pouco, pelas repetidas e solenes procis
sões, pelo canto das ladainhas, pelas boas e freqüentes prá
ticas, pelo esplendor das funções, - os cônegos andavam
sempre vestidos de vermelho, exceto nos períodos de peni
tência, quando trajavam de escarlate e eram pelo povinho
apelidados: "os senhores cardeais!" - a catedral tornara-se
meta de muitíssimos fiéis e de outros tantos curiosos. A maior
atração para o povo milanês, que desde vários anos não
via arcebispo algum na sede própria, era constituída prin
cipalmente pela presença do cardeal, quando se encontrava
em Milão, a tôdas as cerimônias religiosas.
Apresentava-se na catedral nas horas e funções mais
imprevistas. Um cônego recitava o têrço em uma capelinha
diante de duas dúzias de senhoras, e eis a aparecer a figura
característica do cardeal, que chegava inesperado, sem sé
quito, e rezava devotamente em meio às pobres e humildes
mulheres dos bairros. Não era raro ser a primeira missa
oficiada por êle, e não poucos eram os habitantes que vinham,
ao amanhecer, presenciar o recolhimento e a devoção do
arcebispo. Fizera construir uma passagem subterrânea que
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partia do palácio e chegava à catedral, de modo que podia
freqüentar o templo em qualquer momento do dia e da noite.
E quantas vêzes, sozinho na imensidade do templo, perma
necia horas e horas ajoelhado diante do altar, em profunda
adoração ao Santíssimo Sacramento!
Como é notório, o Concílio de Trento tornara seu o
princípio, convertendo-o em lei, que tôda a diocese possuís
se o próprio seminário. O primeiro a ser fundado, em obe
diência a essas ordens, foi o de Milão, quando Carlos se en
contrava ainda em Roma. Incumbira da missão a Nicolau,
que j.á pelo fim de 1563 enviara à diocese dois jesuítas, Pa
dre Pálmio e Padre Carvajal. Habitaram primeiramente
em pequena residência arrendada; mais tarde, o arcebispo
levou-os para o centro da cidade, na aprazível construção
de São Fidélis, e Pellegrini idealizou-lhes bela e singela ca
pela. Tomaram a direção do seminário desde a sua inaugura
ção em 1565, com uma centena de alunos.
Mas bem cedo seu número reduplicou, precisando le
vantar o edifício do atual seminário da Rua Veneza; er
gueu-se também outro grande prédio ao lado dos currais <lo
Palácio Sforza, adjacente à residência arquiepiscopal, e
unido igualmente à catedral por via subterrânea. O Car
deal Borromeu não se limitou a êsses seminários, mas cons
truiu vários em diversas localidades da diocese e, no fim
de seu ministério, também um para a formação de sacerdo
tes suíços.
Houve, porém, algumas oposições, e foram sobretudo
as formais, como, por exemplo, a que proibia o ingresso na
igreja às senhoras com a cabeça descoberta. E sendo que
o feitio do véu tinha dado motivo a 1.,una concorrência de
galanteio, o arcebispo fêz-lhe determinar pelo sínodo a es
pessura e o comprimento. Choveram os motejos, as zomba
rias e os impropérios contra um cardeal que se atarefava
com ninharias feminis; mas, por fim, o costume conseguiu
implantar-se, e certas mulheres acharam tão escolhido e
atraente o toucado, que passaram a usá-lo nos passeios e
excursões.
A disposição sôbre o véu foi publicada juntamente com
outra que impunha o corte das barbas dos sacerdotes. Muitos
eclesiásticos amavam a barba mais que o breviário, e lhe
dedicavam cuidados minuciosos, fazendo-a cair fluente sô-
137
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bre o peito, acariciando-a e conservando-a na linha a gol
pes de tesoura e de pente. Aqui também o cardeal foi o pri
meiro a dar o exemplo, e um belo dia apareceu em público
completamente barbeado. Imaginemos os gritos e as fúrias
dos bispos e dos cônegos solenemente barbudos! Moveram
se-lhe veementes repreensões.
"E' precisamente o cortar a barba, - sentenciavam os
barbilongos - que é costume efeminado. Olhai São Filipe;
proibiu a seus frades de barbear-se; o próprio Cardeal Sir
leto é da mesma opinião". E Carlos respondeu paciente, mas
arguto: "Quanto ao Cardeal Sirleto, - escreveu a seu agen
te romano que o informava da situação - o fato não me
surpreende; ocupou-se de práticas e ritos da Igreja Grega
e sabemos já que os gregos sempre usaram barba. Mas na
Igreja Latina, sempre foi costume cortá-la, excetuando-se
neste período de decadência, e para a Itália somente".
Com razão julgava que tal falta era de importância re
lativa perante outros vícios que se arraigavam bem mais que
os pelos ao queixo. . . "Prouvesse ao céu que pudesse arran
car com a mesma facilidade os defeitos que permanecem
escondidos! Porque então marcharíamos deveras, a passos
largos, na estrada de Deus. Desprezemos, pois, o que é or
dinàriamente julgado ornamento da face, renunciemos a tôda
fútil vaidade e esforcemo-nos, antes, por nos tornar menos
indignos de nosso ministério e, especialmente nós sacerdo
tes, do tremendo mistério que tratamos cotidianamente no
sacrifício da missa".
Mas o véu na cabeça das senhoras e a proibição aos
eclesiásticos de usar longas e ataviadas barbas, não eram
senão alguns dos aspectos da restauração radical imposta
por Carlos Borromeu.
Tratava-se, primeiramente, de restituir o respeito às igre
jas, que se conservavam em péssimo e deplorável estado;
de não profanar os dias santificados, e, principalmente, de
lembrar ao clero seus sacrossantos deveres. Por isso, proi
bira qualquer ausência do pároco da própria paróquia e
do capelão de sua capelania. Se era obrigado a pernoitar
em Milão ou fora da sede, o sacerdote devia demonstrar de
fazê-lo, ou de tê-lo feito, por motivos justos e graves. O car
deal desejava, a todo o transe, que o clero abandonasse a
ignorância bárbara em que descansava pacificamente, sem
138
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fazer esfôrço algum para livrar-se da indolência na qual
se abismava.
Existiam, é claro, e felizmente, as exceções, que ser
viam de admoestação e de exempl'l. Não era fácil, sem dú
vida, remover de cômoda preguiça pessoas já avançadas em
idade, e habituá-las a viver segundo o nôvo método que
era, em última análise, nada mais que um retôrno às ori
gens. Muitos sacerdotes da campanha, - e não poucos da
própria Milão! - se haviam aprendido o latim, esqueceram
no depois por completo, e não somente ignoravam, como
Don Abbondio, quem fôra Carnéades, mas não sabiam nem
mesmo pronunciar corretamente as fórmulas do ritual, nem
tinham alguma vez ouvido falar de casos de consciência, ou
sentido a necessidade de confessar-se de tanto em tanto ...
Os sacerdotes dos distritos rurais, especialmente os re
sidentes nas regiões alpinas e nos vales afastados, viviam
em uma indigência que se aproximava da miséria; e, infe
lizmente, as pobres mulheres que acudiam aos poucos afa
zeres domésticos eram também suas amantes; os filhos nas
cidos destas uniões, ignorantes, sujos e seminus, esgarava
tavam ao redor das igrejas e das casas paroquiais, em si
tuação nada diversa da dos animais bravios. Ao considerar
tôda essa miséria moral e material, compreende-se o pranto
que freqüentes vêzes brotava dos olhos do jovem cardeal
em suas solitárias meditações; justifica-se também a inflexi
bilidade quase sôbre-humana que se impunha e impunha
a outrem quando se tratava de executar e fazer executar
suas disposições.-
Convenceu-se Carlos de que era necessário, antes de tudo,
instruir êsses padres rudes e incultos. Dividiu, portanto, os
sacerdotes em três categorias: os mais inteligentes obtive
ram o curso completo sôbre Santo Tomás de Aquino; aos
medíocres foi destinado um compêndio da Summa; e os mais
ignorantes foram doutrinados sôbre o simples Catecismo
Romano que, na maior parte dos casos, foi preciso tradu
zir, porque de latim aquêles pobrezinhos pouco entendiam.
Se numa paróquia houvesse pelo menos cinco sacerdotes,
o arcebispo decretou que se reunissem duas ou três vêzes
por semana para consultar-se mutuamente e ajudar-se no
estudo; dispôs também que recitassem o breviário não pela
estrada, distraindo-se, mas permanecendo na igreja ou na
139
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própria casa. Ordenou que o comportamento durante os fu
nerais e as procissões fôsse irrepreensível, seguindo sempre
e escrupulosamente a liturgia; pediu igualmente que fi
cassem de olhos abertos sôbre o perigo protestante, im
pedindo os próprios paroquianos de viajar pelas localidades
dominadas pela heresia, e vigiando a leitura dos livros, in
dicando claramente os que não deviam de modo nenhum
entrar nas famílias católicas. E, por fim, instituiu, primeiro
no mundo católico, o ensino da doutrina cristã ao povo.
Em Milão, a primeira escola elementar fôra aberta por
certo Castellino da Castello que vivia, quando Carlos in
gressou na cidade, havia sete anos cego e definhado qual
pobre mártir. O cardeal recolocara-o em forma. Valeu-se de
sua ajuda para ensinar àqueles que deveriam ser os instruto
res das crianças; entusiasmou pela obra tôdas as pessoas de
boa vontade, e conseguiu que ao redor das paróquias surgis
sem os primeiros focos de instrução primária; tornaram-se êles
numerosos e ativos, tanto que na morte do Cardeal Borromeu,
a Companhia pela Difusão do Ensino Catequético dispunha
de 740 escolas, com 273 oficiais superiores, 1726 oficiais de
pendentes e 3040 operários que se dedicavam à educação
de 40.000 almas. Um grande número também em nossos dias,
mas para aquêles tempos, algo deveras milagroso!
6.
O RITO AMBROSIANO
140
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poder muito bem ausentar-se das primeiras sessões e viajar
para Roma, a fim de prover a certos afazeres pessoais. O
arcebispo pediu e suplicou insistentemente que ficasse, tra
tando-o sempre com cortesia, ainda que cóm firmeza; mas já
que o teimoso não queria compreender e fixara o dia da par
tida, Carlos apegou-se ao Tridentino e vetou-lhe formalmen
te a saída da cidade; escreveu depois ao Papa, que en
viou ao desobediente severa repreensão, chegada às mãos de
Carlos quando o cardeal de São Jorge criara finalmente
juízo; pôde assim o arcebispo de Milão referir ao Pontífice,
por meio de Speciano, que tudo fôra acomodado otimamen
te, sem precisar recorrer aos raios da autoridade soberana.
Causa-nos admiração como, nesses sínodos, o cardeal
de Milão soubesse pôr logo o dedo nas chagas purulentas,
e o fizesse em modo tão preciso e manifesto! Conservam-se
ainda hoje muito ciosamente, na biblioteca de Trivúlzio, em
Milão, certas cadernetas, em que estão anotadas não pou
cas falhas dos eclesiásticos, reparadas por êle ou por ou
tros; e quando se lhe oferecia a oportunidade, utilizava-as
para emendar e corrigir, não sempre em forma dura, mas.
pelo contrário, com muita doçura e compreensão das mi
sérias humanas.
Governava Novara um ótimo bispo que o Cardeal Bor
romeu louvará quando lhe tecer belíssimo elogio fúnebre;
contudo, em um daqueles famosos livrinhos, deparamos
com o seguinte: " O bispo de Novara retém no quarto ro
bustos cachorros ornados de belos e luxuosos colares. A
mesa é demasiadamente apurada e florida. A baixela co
piosa e variegada, quase sempre comentada durante a ceia.
Iracundo. Celebrando a missa, ainda alguns esquecimentos.
Suspeito de ambição. O vigário das Irmãs aceita ofertas,
coisa muito lamentável. Multas aplicadas ao palácio epis
copal. Os secretários recebem dinheiro pelas cópias".
"Que santo homem, sim, mas que tormento!" teria ex
clamado o pobre bispo como dirá mais tarde, a respeito
do primo, o aflito Don Abbonldio! Ao ouvi-lo, porém, expri
mir-se com tanta doçura, e ao verificar que aplicava antes
a si mesmo as rígidas disciplinas que pretendia dos outros,
qualquer palavra menos conveniente devia desaparecer. Aos
bispos revocava continuamente as figuras de Santo Ataná
sio e de Santo Ambrósio, para lembrar as tremendas res-
141
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ponsabilidades que lhes haviam sido confiadas. Ai dos pas
tôres indolentes e mundanos! O Juiz ter-lhes-ia dito um dia:
"Se vós éreis a luz do meu povo, por que fôstes cegos?
Se éreis pastôres, por que deixastes precipitar-se a grei nos
despenhadeiros? Se éreis a bôca do Senhor, por que perma
necestes mudos?"
E a propósito de Santo Ambrósio, é preciso acrescentar
que São Carlos, bom milanês que era, amava intensamente
o rito ambrosiano.
Sua origem perde-se na antiguidade, apesar de não ser
conhecido até o século IX com o nome do grande arcebispo
de Milão. Sustentam alguns que seja de procedência orien
tal, provàvelmente importado da Capadócia por Auxêncio,
predecessor de Ambrósio na diocese lombarda. Pio XI, po
réJD, que à autoridade pontifícia açrescentava grande eru
dição qual ex-prefeito da Biblioteca Ambrosiana, pensa nao
ser outro senão o original rito romano.
O ritual milanês resistiu a muitas tentativas de supres
são; a de Carlos Magno e a do Papa Nicolau II, em 1060,
foram as mais notáveis. Veio mais tarde a tentativa do le
gado Castiglione, cem anos antes da vinda a Milão do Car
deal Borromeu; o infeliz inovador viu-se obrigado, contudo,
a renunciar à iniciativa, para não ser insultado pelo povo,
que demonstrava, assim, sua fidelidade ao antiquíssimo rito.
Carlos reviu e reformou o rito, para ajustá-lo aos decretos
de Trento, e ordenou que o usassem não somente o clero
da metrópole, mas todos os sacerdotes da diocese, em qual
quer capela que se houvesse celebrado antes com o rito ro
mano. Tal medida provocou os protestos e as iras do go
vernador espanhol. Como é conhecido, a missa, no rito am
brosiano, difere notàvelmente da forma romana, e nas pa
radas da côrte, quando o governador e a comitiva estavam
presentes, deviam achar-se algo embaraçados por não se
voltar o sacerdote para êles e para o povo, permanecendo
o Conde-duque sempre às costas do celebrante ...
"O diácono e o subdiácono, - narra-nos Margarida Yeo
em sua bela monografia sôbre São Carlos - quando se en
contram inativos, põem-se um de fronte ao outro nos lados
do altar. Além disso, organiza-se no interior da catedral so
lene procissão que se dirige do púlpito ao lado setentrional
do côro, onde se lêem a epístola e o evangelho. Uma delicio-
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sa cerimoma, tipicamente milanesa, verifica-se quando dez
velhos e dez anciãs, em hábitos especiais, e conhecidos como
a "Escola de Santo Ambrósio" ou, mais familiarmente, "Os
velhotes", desfilam em frente à grandiosa escadaria do al
tar, oferecendo pão e vinho aos clérigos, qual sobrevivência
do ofertório dos tempos primitivos. Depois do que, o capítu
lo inteiro passa ao lado extremo do altar, e todos beijam-no
devotamente. O Lavabo realiza-se em silêncio, imediatamen
te antes da Consagração; não se toca a campainha na
Elevação".
O Arcebispo Borromeu celebrava a missa com tal ceri
monial todos os dias e em qualquer lugar onde se encontrasse,
quase para afirmar e sigilar, com pacto sempre mais solene
e diuturno, sua doação total à diocese de que era o pastor.
Os sínodos, a quem submetia tôdas as decisões mais impor
tantes, tinham aprovado, não sem muito discuti-las, aquelas
renovações, e Carlos se arrimou rigidamente nelas.
Falando de sínodos, nem sempre as decisões encontra
vam a plena aprovação romana. Certas normas que pare
ciam demais audazes chocavam-se contra a burocracia curial,
e também então, como hoje, pensavam que o melhor re
médio contra os atrevimentos dos inovadores e seus proje
tos era deixar que dormissem nas estantes dos arquivos.
Com o cardeal de Milão, porém, conhecedor profundo do
ambiente e dos defeitos dos prepostos à remessa dos do
cumentos, a malícia não medrava. Com palavras fortes di
rige-se àqueles "senhores ilustríssimos que perdem tanto
tempo precioso! ... " Depois do quarto concílio, Carlos pre
parava o quinto, e quando estava para ser iniciado. . . não
tinham ainda sido aprovadas as deliberações rlo anterior.
Escreve, portanto, enérgico e decidido, a Speciano. Ri
gorosamente, não estava obrigado a obter a aprovação de
Roma, e somente o fêz por deferência à Santa Sé; mas, se
os encarregados da ex,pedição de instruções acreditavam
poder obstaculizar o caminho do cardeal milanês, engana
vam-se redondamente: ":i;:sses senhores ilustríssimos orga
nizam reuniões sôbre reuniões, perdem um tempo imenso,
e freqüentemente pretendem pôr reservas a disposições que
não são em nada contrárias ao Concílio de Trento. Obser
vem unicamente se nos decretos há algo ofensivo à fé, à
moral, aos cânones e às constituições apostólicas, e deixem
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aos bispos a liberdade de agir corno acham melhor no que
('Oncerne ao govêrno das almas que o Senhor lhes entregou!"
:f�, enfim, um pouco do descentralismo que, no término do
episcopado, Carlos haveria de usar em modo maciço.
Assim falava aos magnatas romanos aquêle homem que
mal completara trinta anos. Os grandes santos não foram
nunca e não serão jamais gente cômoda aos conformistas e
preguiçosos; mas também, guiados por seu espírito superior,
não serão nunca, em seu proceder, obstaculizados pelos em
pecilhos mundanos e formais! E então, visto que as cartas
nada conseguem, eis o "Bom Romeiro"' a partir para Roma.
Mas tàcitamente, porque, "se o soubessem, poriam o mundo
de pernas para o ar, para fazer triunfar sua autoridade,
e eu perderia todo o fruto de minha visita". Quem vivera
tanto tempo entre burocráticos e morosos empregados, co
nhecia-os profundamente ...
Energia e diplomacia, porque, caso em Roma se divul
gar alguma coisa, a conjuração contra o prelado extremis
ta, que já não se pode apoiar na autoridade derivada do
fato de ser sobrinho do Papa, desencadear-se-.á em aberta
rebelião. E para vencer as boas guerras, é preciso, algumas
vêzes, também saber guiar as posições ...
Desta maneira, Carlos continua a controlar tudo e a
ver tudo. Desde os cachorros mimados do bispo de Nova
ra. . até os senhores ilustríssimos que presidem as congre
gações e procuram seus interêsses particulares.
1) Na língua italiana a palavra romeo equivale a peregrino.
Borromeu, então, pode muito bem ser traduzido, conforme sua vida o
demonstrou e como veremos mais adiante: "Bom romeiro" (N. do T.).
7.
ZitLO DE PASTOR
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O ervo de Deus Dom João Ba
lis/a Scalabri11i, fundador dos
Jlfissio11ários de São Carlos.
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O Sc111i11ário iltaior João XXII/, em. São Paulo. Nêle residem os filâsofos
e 0.1 teólogos Carlislas do lfrasil.
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trei o governador mais religioso, bom e devoto do que te
ria podido imaginar!" Esta impressão perdurou por al
guns meses de 1566. E' que havia numerosas discussões
referentes à importantíssima questão das precedências, is
to é, se nas cerimônias oficiais na catedral ou nas procissões,
o primeiro lugar seria ocupado pelo governador ou pelo ar
cebispo. Hoje tais contendas nas funções estritamente reli
giosas, não teriam razão de ser, porque a precedência da
autoridade eclesiástica em lugar e campo seus, é natural
e a ninguém acode pô-la em dúvida. Naqueles tempos, po
rém, discutia-se teimosamente, pois o ocupante em nome de
um rei que se dizia e considerava tal por vontade de Deus,
não podia tolerar ser segundo diante do povo a quem
dominava.
O conde-duque importunou o próprio Filipe II, em
Madri, e êste último, que não sabia nunca, em tôdas as
coisas, tomar decisões precisas, respondeu que a melhor so
lução era não participar pessoalmente das funções que ha
viam provocado a divergência; mas que enviasse umcamen
te um representante. E um legado pode muito bem ficar
sem desonra em segunda fila.
No que tocava à sua pessoa, o arcebispo teria cedido
tôdas as primazias e preferências,. e se teria agregado de boa
vontade à turba anônima que rezava a Deus; mas era na
diocese o mais alto representante daquela Igreja, por quem
oferecera a vida e para quem era pastor de almas, e con
seqüentemente, a intransigência em tal caso tornava-se um
dever. Na ocasião, também Pio V e Filipe II estavam em
penhados em uma das tantas controvérsias entre a lgrej a
e o Império, que geralmente levavam a rupturas de graves
conseqüências. Tratava-se da publicação da bula: ln Coena
Domini, que o rei espanhol recusava divulgar na Espanha,
em Nápoles e na Sicília, por considerá-la lesiva à so
berania real.
Bem cedo, em Milão, a luta explodiu aberta e decidida.
Como temos visto, o cardeal não perdera tempo em aplicar
as reformas, com rigor que parecera a muitos, excessivo e
prejudicial aos direitos - quais direitos e por quem con
cedidos! - da personalidade humana. Rebelara-se com ra
zão contra a licenciosidade carnavalesca que chegava ao
cúmulo de introduzir na catedral, no último dia do carnaval,
Vida de S. Carlos - 10 145
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enorme cavalo de pau, todo revestido de salsichas e pão;
ao ser impelido no templo, precedia-o e seguia-o um popu
lacho esfarrapado, turbulento, que exaltava não certamente
a Cristo e a Maria.
As entradas da sé permaneceram fechadas à indigna pro
fanação, e o cardeal prometeu, caso fôssem forçadas, fazer
frente ao povo com o báculo e a cruz na mão, e afirmou deve
rem passar sôbre seu corpo se quisessem entrar. Muito con
trariado, o duque enviara grosso manípulo de soldados para
defender as portas da catedral, e o ajuntamento, vomitan
do imprecações e insultos contra o arcebispo, achou melhor
agarrar o cavalo e afogá-lo no Navíglio, não sem o ter an
1
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grêdo, ao presidente do senado a ordem de proceder con.:.
tra o capitão de justiça, sem esperar "provisão alguma de
Madri". �le já fizera muito mais caminho.
Existia antigo costume que autorizava o arcebispo de
Milão a dispor de um trôço de armados, guardas de polícia
eclesiástica, que intervinham somente na defesa dos direi
tos da Igreja e quando o braço secular não cumprisse sua
missão. Caíra em desuso o costume, e por isso pensavam
que tivesse desaparecido também o direito. Carlos, ainda
que augurando em seu coração nunca ter que recorrer a êle,
restabeleceu-o. Como era de prever, o governador e o senado,
composto em grande parte por milaneses cegamente de
votados ao dominador e por espanhóis, viram de maus olhos
os guardas realizarem prisões e conduzirem os reclusos aos
cárceres eclesiásticos, onde, por desejo do cardeal, se for
necia alimento, bebida e quanto era estritamente necessário
à vida dos detentos; os encarcerados eram ali tratados mui
to melhor que nos lúridos porões do castelo. Isso, porém,
não justificava o fato de que o "turbulento, imprudente e
obstinado sacerdote" - como era chamado o arcebispo -
usurpasse seus privilégios.
E quando um nobre da metrópole, de vida notoriamente
dissoluta e escandalosa, foi detido pela polícia episcopal,
a indignação chegou ao auge. Senadores, também lombar
dos, uniram-se para defender, com a habitual veemência
excessiva dos servos que desejam conservar o pôsto, os di
reitos do patrão, no caso, o rei da Espanha; e o exercício
de um direito, - não compete a nós historiadores julgar
se óbvio ou não, - foi definido "escandalosa usurpação";
como se o estrangeiro, que acampava armado nas regiões da
Itália, fôsse algo diverso de um refinado ladrão, que não
administrava nem bem e a seu proveito o que tinha roubado
e continuava a roubar! E o Cardeal Borromeu não tinha di
reito de prender os leigos que levavam armas - pistolas
e na igreja! - proibidas por lei!. .. Era uma vergonha e
infâmia suscitar o arcebispo contendas por um conceito
tão exagerado da própria autoridade e importância ...
O cardeal permanec�u rígido e impávido. Armas de
fogo não se deviam carregar nos templos, e todos aquêles
que houvessem transgredido esta precisa disposição emana
da dos editais e deliberações canônicas, cairiam sob ci ri--
10• 147
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gor das leis; ,faltando o braço secular, provia o braço ecle
siástico por meio de· seus agentes, que o cardeal tinha o di
reito de fazer agir na proteção dos privilégios da autoridade
eclesiástica, de quem era o único e legítimo chefe em Milão.
E nada mais houve a fazer, senão calar e obedecer.
8.
ENTRE OS TURBILHõES DA TEMPESTADE
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revestida de vestes de sêda e de colarinhos duros e ondula•
dos; gente licenciosa, que vivia à custa do povo, miserável
e infeliz, que, em vez de revoltar•se, j.á não tinha nem mais
fôrça para abrir a bôca, tanto era ultrajado e esfomeado 1 E
quanto a suas queixas pelas festas mundanas suprimidas e
às quais pouco ou nada participava, o cardeal as substituíra
com belas e pomposas procissões, sempre séria e numero•
sarnente concorridas, e se alguém tivesse que lamentar-se,
eram os comerciantes, que também não falavam. Por
que à pompa eclesiástica era convidada gente de outras ci
dades, que vinha a Milão como para uma festa e, portanto,
estava disposta a gastar . . . e gastava de verdade ...
E o governador, como se comportava? Carlos definira-o
gentil-homem, íntegro, leal, animado das melhores intenções.
Superado o escolho das precedências, Albuquerque mostra
ra-se favorável ao cardeal em várias ocasiões; mas não teria
podido empenhar-se com êle por muito tempo sem desa
gradar a tôda a nobreza milanesa, e principalmente à es
panhola, residente em Milão; como também não podia con
fiar no duvidoso e vacilante Filipe. Era preciso, numa pala
vra, não cair em Caribde e evitar Cila ...
Recorreu, por isso, ao uso fácil, sem dúvida, de deixar
aos outros a decisão das questões graves. E êsses outros,
quem poderiam ser senão o Papa e o govêrno de Madri?
Para obrigar o senado a reconhecer a legitimidade do proces
so eclesiástico, na repressão dos delitos contra sacerdotes,
religiosos e leigos em matéria de fé, far-se-ia necessário um
decreto do Papa; e contra sua autoridade ninguém ousaria
insurgir-se o que teria forçado o rei a intervir, dando ordens
precisas a êle, governador, que se apressaria a fazê-las
executar.
"Os senadores - disse Albuquerque a Carlos - estão
dispostos a inclinar-se, sem discutir, a qualquer disposição
do Papa". Mas o Pontífice ainda não podia resolver-se, e
contentou-se com lembrar ao arcebispo de "não se deixar
derrubar da sela". O cardeal não esperou a repetição do
conselho, e aprisionou um criado dos Rábias, surpreendido
a roubar numa igreja. (r senado reclamou, e a família ul
trajada, nobre em grau superlativo, com gente que servia
em Madri, ficou furiosíssima. O alcaide civil pediu a Carlos
que libertasse o servo ou o entregasse aos polícias do vig:á-
149
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rio de justiça. O imputado contentou-se com responder que
executara simplesmente uma ordem do Papa. "Mostrai-nos
essa ordem!" intimou o presidente do senado; o cardeal es
creveu imediatamente a Nicolau: "Enviai-me quanto antes
o documento!" Porque, por uma vez somente, o arcebispo
colocara realmente o carro diante dos bois ...
O senado voltou-se para o governador que, desta vez,
acertou em encolher os ombros: "Quisestes agir sem mim?
Continuai agora. Prefiro perder um pouco da autoridade do
rei a dar-lhe algo desta cansativa e comprometente ju
risdição eclesiástica". A forma, antes de tudo, no pomposo
século do gongorismo, e depois a s ubstância ...
A questão assumiu tom e cunho de controvérsia e se
transportou de Milão para Roma, diante de uma comissão
pontifícia que, ouvidas as razões das partes, - a do sena
do defendida pelo Cardeal Chiesa - publicou dois breves
ratificados pelo Papa, um para o governador e outro para
o senado. Em ambos, Pio V não ordenava, mas recomen
dava favorecessem as razões da Igreja; no entanto man
dava dizer a Carlos que procurasse ganhar para sua
causa algum bom e influente senador. Mas teve como res
posta esta profunda e inteligente reflexão: "No senado, co
mo em quase todos os estados dos homens, é maior o núme
ro daqueles que não amam as reformas!"
Todavia, não obstante o tom cauteloso, a sentença que
a comissão elaborara, com muitos giros e regiros de frases,
era favorável ao Cardeal Borromeu, que estava decidido a
aproveitar muito bem.
Nesse ponto, a tempestade estourou furiosa e precipita
da. Rompendo as indecisões, e também para conservar-se
na sela, o cardeal fêz aprisionar em Gallarate, certo nobre
de muito má fama, que, havia sete anos e unicamente por
amor ao lucro, vendia a honra da família; o senado res
pondeu capturando, na porta da catedral, um soldado do ar
cebispo, com a desculpa de que carregava armas proibidas -
sempre a pistola! - e, conseqüentemente, violava a imuni
dade eclesiástica. E na presença de muito povo, foi torturado,
expulso e ameaçado de galera por tôda a vida, caso retor
nasse; Carlos pediu satisfação do acontecido, sem contudo
libertar o prisioneiro.
150
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O senado recusou a reparação, e o ousado pastor exco
mungou todos os senadores; êstes, irritados ao extremo,
arrancaram a excomunhão da porta da catedral e das de
mais igrejas, e recorreram a Roma: "E' inútil ser condescen
dente com o Cardeal Borromeu; o .homem é inflexível e tei
moso; não se pode demovê-lo por razão alguma; não se
deve discutir com uma pessoa que nunca retrocede. E' um
ambicioso que anseia dominar; o rigor de vida, as abundan
tes esmolas não são que mera ostentação; procura desfrutar
sua fama de santidade para chegar a seus fins enganando
o povo".
Era necessário êsse tom insolente e agressivo para co
mover o Papa Ghislieri! ... Não dignou ao escrito nem sequer
um olhar a mais, além do primeiro lançado sôbre aquê
les atrevidos caracteres, para ter certeza de quem fôssem.
Enviou ao governador uma carta, certamente inolvidável,
tornando-o responsável de tudo o que estava para acontecer,
ameaçando recorrer a Madri e ordenando ao presidente
e aos mais influentes membros do senado, de comparecer em
sua presença para a justificação e correção. Diante de tal
atitude, caiu do presidente do congresso milanês tôda a
arrogância, e pensou ser melhor fazer-se recomendar em
Roma. . . afirmando ter sido caluniado pelo cardeal.
Carlos, sorrindo espertamente, referiu ao prefeito de
Milão, embaixador da assembléia, que estava convencido das
boas intenções formais do senado e de seus membros, e es
creveu a Nicolau: "O presidente não agiu formalmente com
más intenções; eu estava persuadido, baseado em sua bon
dade e retidão de vida; é que seguiu a imaginação e
uma exagerada confiança em sua maneira de ver. Por isso,
a viagem a Roma ser-lhe-á muito útil. Diga também ao Pon
tífice que êle o ama e o estima muito".
No entanto, as coisas permaneciam como estavam. E
até Filipe II, apesar ,de sentido por ter o Papa tomado
decisão tão séria sem antes consultá-lo, - sempre por aquela
bendita forma! - não pôde senão desaprovar a atitude do
senado nas relações com o cardeal. Agindo, porém, com
a duplicidade própria dos políticos, envia a Milão um em
baixador, o marquês de Ceralho, para emendar o arcebispo.
O legado soube usar de muita cautela e circunspecção
nos tratos com Carlos Borromeu: "O rei penalizara-se bas-
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tante por se ter o cardeal dirigido ao Papa e não a êle, que
nunca deixara de favorecê-lo". E como o arcebispo, anuin
do, não mostrasse grande comoção pelo imenso favor que
lhe fazia o rei, Ceralho pôs o punho de ferro na luva de
veludo: "Com sua dor e contrariedade, o rei será obrigado
a seguir outro método para defender sua jurisdição, acon
teça o que acontecer". Carlos continua intransigente e impá
vido. Chega-se então à moderação: "Por que não teria o
cardeal aproveitado de sua ida para Roma, - do embaixador
- para enviar ao Papa bonita carta e pedir-lhe que encon
trasse êle, em sua grande sabedoria, um modo de conciliar
as coisas, sem querer lembrar os infelizes coitados!?"
Nesse ponto tomou a palavra o Cardeal Borromeu: "No
que o Pontífice decidiu a respeito dos senadores, não deve
dar contas a ninguém, a não ser a Deus. Quanto a êle, avi
sara a tempo o governador para providenciar; e recorreu
depois ao Papa, que é o pai universal, sem pretender ofen
der o rei, a quem reconhece ser muito grato. Sim, re
cebeu muitos benefícios do monarca; mas se Sua Majesta
de crê que para ser grato a tais mercês, é forçoso prejudi
car as obrigações espirituais, êle, confessa-o, não pode cor
responder a tal desejo. E quanto às ameaças que andam por
aí, não pode esperar nada do rei, que não seja digno de um
príncipe tão católico e piedoso. Sua Majestade conhece mui
to bem qual o seu dever e não deve um pobre cardeal re
cordar-lho; cabe-lhe empregar suas fôrças para ajudar, e
não para oprimir a autoridade eclesiástica. Deseja Ceralho
levar uma carta dêsse teor ao Papa?"
Numa época de meias consciências e de tortuosas afir
mações, isso se chama certamente falar claro e redondo.
A Ceralho nada restou, senão recorrer a Roma, a fim de su
plicar que se deferisse a publicação da sentença, e de fato,
pelos esforços dos Cardeais Pacheco e Granvella, o julga
mento não foi tornado público. A ameaça de Filipe de apelar
para um concílio fêz suspender qualquer iniciativa papal;
e tudo se limitou a repreensões verbais e intimações ocultas,
próprias do tempo.
Carlos teve um momento de verdadeiro cansaço: "Quan
ta vergonha sinto - escrevia de Mântua a Nicolau - por
ter de contender tão mde e continuamente pela jurisdição
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da minha Igreja; todavia, onde o dever de estado me cha
ma, não posso deixar de opor-me às usurpações que lhe
são feitas".
Causa-nos deveras compaixão ouvi-lo invocar do Papa
uma justiça que estava no próprio fato das coisas: "Lem
brai também a Sua Santidade, com a humildade que se deve,
que, caso não constrangir os senadores e outros com a pu
blicação da resolução tomada há tanto tempo, e não se
mostrar inflexível na ordem de irem a Roma antes que se
jam obrigados pela censura, nunca essa Igreja poderá cum
prir sua missão, porque basta ter simplesmente esquecido
o processo criminal contra os senadores, para que ela fi
que imediatamente prejudicada".
9.
NÃO VIM TRAZER A PAZ
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mente que a concessão arquepiscopal fôra fabricada por
um grupo de interessados.
Por isso, um belo dia, o cardeal anunciou, depois de
obter a aprovação papal, que teria realizado a visita canô
nica àquele colégio como a qualquer outro da diocese. De
cidiu ir ao fundo da controvérsia; concedeu primeiramente
dois meses aos cônegos para que aderissem fàcil e e pacifi
camente; depois, tendo insistido o governador para que a
autoridade eclesiástica não precipitasse os acontecimentos,
concordou em outra prorrogação, e escreveu a Albuquerque:
"Não quereríamos que nos acusassem mais tarde de não nos
têrmos esforçado para manter a paz!"
Ao invés, foi como bulir em vespeiro, e um sacerdote
de Pavia, certo Barbésia, que sustentava ter sido êle a assinar,
como delegado executor, o decreto de Clemente VII, ful
minou, com cômica solenidade e violência, a excomunhão
contra o vigário e o procurador geral do arcebispo, por te
rem ousado prender um clérigo da Scala, que, bêbado, in
sultava o Santíssimo Sacramento.
Foi então que Mons. Moneta anunciou, muito solenemen
te, que, em obediência às ordens pontifícias e diocesanas, o
arcebispo viria visitar a corporação. Conta-se que na manhã
em que o cardeal, vestido pontificalmente, cavalgava devoto
em direção ao convento e chegara perto do Palácio Marino,
apenas construído, ter-se-ia encontrado com o Conde Maino
que, conhecendo a gravidade do momento, ter-lhe-ia dito:
"Cuide de não arruinar tôda a cidade, pondo-se em tão gra
ve perigo!" A que o cardeal teria respondido pronto e tranqüi
lo: "Defendendo a glória de Deus, nunca poderei prejudicar
a cidade!"
O nobre não estava completamente longe da verdade.
Com efeito, os cônegos da Scala tinham decidido agir se
riamente, e o demonstraram quando chegou Mons. Moneta.
Estavam, na ocasião, cantando no côro; mas deixaram lá
tudo com rapidez e raiva tremendas, e correndo à porta c;lo
templo, trancaram-na, enquanto um fogoso calabrês, cha
mado Pantanella, cônego e ecônomo régio, descarregava
um saco de impropérios e ameaças em Moneta, dando-lhe
o encargo de referi-lo"s oficialmente ao cardeal; em seguida,
a punhos e empurrões, fizeram-no rolar do átrio, dizendo
154
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que a mesma sorte caberia a Carlos, caso ousasse apresentar
se diante de Santa Maria da Scala.
Julgavam que o arcebispo aparecesse pelo menos no
dia seguinte. Mas qual não foi sua desilusão ao ver o Cardeal
Borromeu chegar logo depois de Moneta, acompanhado de
pequeno cortejo que levava a cruz e as insígnias! Deixemos
a palavra a Giussano: "A socorrer os cônegos, sempre ves
tidos de capa magna, acorreu grande número de soldados;
talvez para significar que os dois podêres se uniam contra
a prepotência arquiepiscopal; um dos armados agarra no
freio do primeiro cavalo que entra, e empurra o cavaleiro
com violência; o exemplo é imitado por outros e nasce ver
dadeira balbúrdia. Desce então Carlos da sela, segurando
bem alto a cruz, e avança calmo e resoluto. Pior que pior!
Origina-se uma cena selvagem, rápida como relâmpago;
ouvem-se gritos violentos de "Espanha! Espanha!"; lançam
se golpes à esquerda e à direita, e o cardeal é atirado fora
bruscamente".
"Houve um momento - escreveu mais tarde Carlos a
Nicolau - em que vi relampaguear a meu redor e ameaçar
me, mais de cinqüenta espadas". Graças a Deus, não se atin
giu o cardeal, mas a cruz hasteada foi quebrada, de modo
que se tornou necessário, logo depois, o trabalho de um
ourives.
E' supérfluo acrescentar que o decreto de excomunhão
dependurado na porta da igreja foi imediatamente destrui
do; o Padre Barbésia, para não ser inferior ao vigário geral,
lançou um interdito contra o arcebispo, que tinha ousado
<lesprezar a autoridade da Santa Sé; a notícia foi comunica
da pelos cônegos a tôda a cidade, não somente com a afixa
ção de cartazes escritos em letras garrafais, mas também
com o endiabrado e prolongado tocar de sinos.
A situação tornava-se tensa. O cardeal perdera por com
pleto o apoio do governador que, tendo-lhe sido levada a
relação dos fatos, escrita pessoalmente por Carlos, deixou-a
cair duas vêzes ao chão, e proibiu a um servo de recolhê-la,
como se tratasse com objeto infeto. Apesar de o arcebispo
ter enviado a Roma Mons. Speciano, testemunha ocular
dos fatos, para informar minuciosamente a Nicolau, seus
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munigos não lhe davam descanso; Albuquerque fazia sa
ber ao Pontífice qüe em Milão não haveria mais paz até o
dia em que na cidade ou na província aparecesse a figura
do cardeal. A resposta do perseguido é digna de um prínci
pe, e dos tempos melhores, quando essa dignidade não era
coisa vã: "Será preciso separar-me de minha Igreja; se fôr
forçado a ir ao exílio, teria um único perigo a vencer, a
vanglória!"
Por um momento também São Pio V duvidou da ação
de Carlos e lhe mandou dizer que, se haviam acontecido
fatos lamentáveis, era porque recusara diferir a visita por
três dias, e não podia aprovar quem os havia suscitado. O
cardeal respondeu calmo e sereno: "Vossa Santidade conhe
ce agora onde está o êrro; se a luta deriva de minha pessoa�
digo como Jonas: Atirai-me ao mar; e, cedendo o lugar a
outro, poder-se-ia remediar tantas desordens".
A que valia sua pessoa? �te era o equívoco de seus ami
gos, o de fazer convergir sôbre êle, mísero instrumento da
bondade de uma fé puríssima, o que era ódio a um prin
cípio de autoridade e de retidão, ao qual precisava que todos
cedessem. Viesse também um outro a fazer respeitar os prin
cípios, êle se sentia feliz, porque isso teria demonstrado que
era indigno de exercer aquela autoridade que lhe fôra en
tregue. :ítsses eram os conceitos que repetia ao soberano,
escrevendo calmo, sim, mas firme: "Se Vossa Majestade
não intervier com um remédio pronto e eficaz, sua cons
ciência será responsável por todos os males causados pelo
edito do governador, que, além de ofensa a Deus, é causa
de desastres para muitas almas".
Chegara-se a tanto, e as partes estavam firmes em suas
próprias posições, o cardeal apoiado no consentimento do
Papa, e o governador e o senado no silêncio do rei, quando
aconteceu um fato deplorável, pior que o primeiro, que
ameaçou suscitar uma onda de conseqüências em tudo mais
desastrosas que as anteriores.
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10.
CRIME NO ARCEBISPADO
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Por fortuna, êsse outro problema que teria acabado mui
to mal, dando talvez ocasião a nôvo conflito, aplainou-se
tranqüilamente, porque o governador via de maus olhos
aquêles frades capitalistas, sobretudo por causa de certas
cobranças, ao som de pancadas, de dívidas contraídas por
súditos espanhóis! Assim, chegado o momento de impor e
sustentar a autoridade de Carlos, enviou duzentos arcabu
zeiros a desarmar os bandoleiros dos humilhados, intiman
do-os a seguirem as ordens do arcebispo, segundo a vontade
do Papa e do rei. Tudo parecia pacificado. Ao invés, no
silêncio do convento de Brera, tomava vulto criminosa
conjuração.
A 26 de outubro, uma quarta-feira, cantavam-se as vés
peras na antecâmara do arcebispo. As velas estavam tôdas
acesas. Havia já meia hora descambara o sol no horizonte;
grande era a afluência na capela, desde que o público fôra
admitido às devoções vespertinas. O cardeal, de murça e
roquete, estava ajoelhado diante do altar, tendo ao redor os
sacerdotes da casa. O côro apenas acabara o versículo: Non
turbetur cor vestrum neque formidet e a antífona conse
qüente de Orlando de Lasso; e iniciara o comentário às pa
lavras de Rafael a Tobias: "E' tempo de retornar a quem
me enviou!", quando se ouviu uma detonação atordoante.
O canto foi interrompido bruscamente. A figura genu
flexa do arcebispo, em branco e escarlate, vacilou. O ar
encheu-se de acre odor de pólvora e de fumaça. Reinou um
momento de pânico e de confusão, como se, por decreto
supremo, as palavras: "E' tempo de retornar a quem me
enviou", se tivessem realizado. Mas um gesto e um aceno
rápido de Carlos, ainda ereto sôbre os joelhos e muito calmo,
moderaram o tumulto e a perplexidade. A antífona foi re
começada, e as vésperas continuaram e acabaram, ainda
que com vozes um pouco mais trêmulas e vacilantes ...
O barulho reiniciou fora, depois.
O culpado conseguira escapulir inobservado. Os fami
liares do arcebispo depararam, na murça e na sobrepeliz,
fragmentos do projé_til; ordenaram a Carlos de subir ao pró
prio aposento e trocar as vestes; neste ínterim, encontra
ram-se outros estilhaços - tratava-se, sem dúvida, de arre-
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mêsso de bacamarte - quase em tôda a arcada, onde o car
deal ajoelhara devoto e inconsciente do perigo que o
ameaçava.
O lanço chegara a seu destino, mas obliquamente, e de
pararam-se realmente na pele do atingido sinais de leve
inchação, sem, porém, que a epiderme fôsse ofendida pro
fundamente. Quando Carlos percebera o golpe nas costas,
crera-se atingido e ferido de morte, e agradecera a Deus em
seu coração por tê-lo mimoseado com o martírio. "Não era
digno!", escreverá mais tarde melancólicamente a Nicolau.
Que o atentado tenha falhado, é algo maravilhoso, se
considerarmos ter sido o tiro desferido a poucos passos de
distância. A palavra: "Milagre, milagre!" ecoou por Milão
num instante. Recordaram-se logo e propalaram-se narrati
vas de estranhos acontecimentos. O cabeça da revolta dos
cônegos da Scala acabara miseràvelmente durante a viagem
para Roma. O leigo que abrira fogo contra a cruz episco
pal morrera improvisamente em Lambrate, poucos dias
após o horrendo sacrilégio.
Outros lembravam a missão do arcebispo em Mântua.
"Um ano antes, - narra Margarida Yeo - Mântua fôra tea
tro de eclosão de heresia e violência. O próprio jovem du
que, sobrinho do Cardeal Gonzaga, presidente do Concílio
de Trento, era suspeito de ouvir favoràvelmente as doutrinas
luteranas. Um pregador herético era de moda no tempo.
Vinte dominicanos tinham sido assassinados. Até os temidos
inquisidores estavam atemorizados. "Essa questão deve
ser confiada aos cuidados do Cardeal Borromeu!", disse o
Papa, cônscio de que fôsse o único homem capaz de resolvê
fa a contento. Carlos obedeceu, conversou amigàvelmente
com o duque, com os dominicanos e com os pregadores.
"O luteranismo desapareceu.. A heresia fôra rechaçada.
"Milagre, milagre!" bradaram os romanos: "Deus nos vi
sitou sob a forma de Carlos e nos salvou da ruína!" excla
maram entusiàsticamente os mantuanos; até os hereges,
ainda que irreverentes, uniram-se ao côro de louvores e
júbilos".
Os milaneses pensavam que o haver-se livrado do homi
cídio, em condições tão favoráveis à sua atuação, só podia
ser milagre, e dos grandes. E os ventos começaram a so
prar favoráveis a Carlos. Todos, a principiar do gover-
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nador, manifestaram-lhe solidariedade, prontos a defendê
lo e a ampará-lo. Albuquerque, que pouco antes desejara re
movê-lo da diocese, escreveu a Zuniga, embaixador da Es
panha em Roma : "Deus operou um milagre para não per
mitir mal algum a seu servo fiel". As congratulações pro
vinham de todos os lados; Tarúgi, íntimo amigo do cardeal,
associando o atentado falido contra Carlos à morte de Con
dé ocorrida naqueles dias, escrevia ao arcebispo de Milão :
"Evidentemente, Deus protege a Europa; na França, dis
persa os inimigos com a espada; em Milão, protege os ami
gos com o escudo!"
Corno sempre e em tôda a parte, houve também quem,
interessado, comentasse maldosamente o fato e, entre outras,
chegasse até a insinuação maligna de trapaça, com o fim
de valorizar a santidade de Carlos. Espalhou-se a voz de que
se fizera desfechar um arcabuz carregado com pólvora, ru
morosa, mas inofensiva, e, em Roma, o defensor dos cônegos
da Scala falava maligno e zombeteiro: "Sim, tentara-se
matar o cardeal, mas salvara-se casualmente, porque a bala
acabara numa tábua existente entre a vítima e o assassi-
no!". Portanto, não milagre, mas sim, caso fortuito e.
pilhérico.
Em todo êsse contrastar de opiniões, o mais calmo, in
diferente quase, era o arcebispo; escrevendo a Pio V, admi
tia, sim, ter sido salvo de modo fora do comum, mas acres
centava: "Certamente, Nosso Senhor não o fêz por meus
méritos, mas por respeito ao lugar onde nos achávamos, ou
pelo meu caráter episcopal, ou antes, para deixar-me mais
tempo a fazer penitência, de que tanta necessidade tenho!"
Pensamentos que contrastavam não pouco com os da
parentela, desejosa de reparação pública e solene. Escre
via, com efeito, o Duque César Gonzaga: "Se conhecesse
o autor de tão horrendo delito, não deixaria de vingar Vossa
Senhoria, pois o exige o dever do sangue. E enquanto tra
balham para descobri-lo, dê-me ordens, e ser.á em tudo
obedecido". As ordens que Carlos deu ao inflamado cunha
do foram de rezar pela salvação de sua alma e fazer o bem;
e aproveitou para retirar-se à cartuxa de Garegnano, re
construída naqueles anos por Galeazzo Alessi sôbre as ruí
nas do antigo mosteiro dos Viscontis; e lá, no silêncio e em
plena paz interior, entregou-se ao trabalho de reordenar o
material dos sínodos e concílios provinciais.
160
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Sem dúvida nenhuma, o atentado obtivera algum resul
tado positivo. Houve a intervenção do rei da Espanha, que
ordenou ao governador de manifestar ao cardeal seu des
gôsto pelas violências dos cônegos da Scala, e o desejo de que
a visita ao colégio fôsse realizada com tôda a majestade de
sua dignidade arquiepiscopal. O governador devia punir
os cúmplices e nada omitir para descobrir os autores da
agressão; mas, sobretudo, competia-lhe assistir e ajudar o
cardeal em tudo o que se relacionava com a conservação e
defesa da jurisdição eclesiástica. Maior vitória Carlos não
podia esperar obter.
Mas quanto prezasse sua pessoa e a segurança da vida
faz-nos saber Francisco AlciJati, que lhe escrevia : "O se
nhor não toma precaução alguma por sua pessoa; todos
podem ingressar em seus apartamentos, tanto durante o
dia, como à noite; o senhor cavalga com pouco ou nenhum
acompanhamento e, pior ainda, também de noite; isso é
provocar os delinqüentes, e nenhum de seus amigos pode
aprovar tais ações. Deveria recordar o exemplo do Redentor
e dos Apóstolos, que evitaram todos os perigos até chegar
sua hora".
Carlos sorriu diante desta e de outras solicitudes; to
davia, quando a exprobração partiu do próprio Papa, viu
se obrigado a recorrer à prudência, àquela a que estava
acostumado. "Mas eu não me descuido em nada, - res
pondeu ao Pontífice; é que não queria, trancando as portas,
negligenciar minhas obrigações. Sinto muito em afastar da
capela os forasteiros e privá-los de tantos bons frutos, so
mente por causa de minha pessoa; além de outras preven
ções, a capela privada foi transportada para a parte interna
do palácio; portanto, não há razões para inquietações e
temores!"
Verdadeiramente, Carlos pecava por otimismo. Se a
procela já passara, deixara, contudo, atrás de si vestígios
não muito insignificantes; com efeito, sôbre as relações
com os senadores, relatava o arcebispo ao núncio da Es
panha: "Minha ligação com cada um dos senadores é cir
cundada de benevolência; 1ratam comigo cordialmente, ape
sar de, quanto à jurisdição, terem as coisas permanecido no
ponto que j,á conheceis". Ou seja, não se haviam movido
de um passo, também pela inércia do Pontífice.
Vida de S. Carlos - 11 161
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11.
A HORA DE JUDAS
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selho de um pérfido amigo, voltou para Bréscia; raptou ali
um jumento, e o tornou a vender para comprar dois arca
buzes; reapareceu, logo depois, em Milão, onde se encon
trou com Jerônimo Legnano e com o nôvo cúmplice Bar
tolomeu Nassino.
"Insinuaram êstes que Carlos continuava na mesma,
que não se podia mais viver, e que precisava acabar com a
coisa; Farina decidiu então o golpe. Ocultou-se muitas vêzes
perto de São Barnabé, esperando pela passagem do cardeal.
No dia 25 de outubro, dirigiu-se à capela do arcebispado,
na hora das Completas; mas naquela noite estavam ao lado
do arcebispo, o Cardeal Crivelli e o bispo de Lódi; o assas
sino teve mêdo de errar o alvo; retornou na noite seguinte
e realizou com fria resolução o intento. Fugindo para jun
to do irmão, recebeu um bilhete de Legnano, que o acon
selhava a refugiar-se em Vercelli; as portas da cidade, po
rém, estavam fechadas. Quinze dias depois, pôde abrigar-se
no Piemonte, onde se alistou entre as milícias do Rei Ema
nuel Felisberto; e ali, não obstante o parecer contrário de
Carlos, foi prêso e entregue ao tribunal de Milão. Fôra
Nassino a revelar o refúgio de Farina, na esperança de
fugir da punição.
Agora, porém, era o Cardeal Borromeu quem não sa
bia como persuadir o Pontífice, o governador e o tribunal
a não recrudescer contra os infelizes delinqüentes. Ao ler
sua carta enviada a Nicolau, parece que chame a si tôda
a culpa, inocentando os assassinos, pois o primeiro em
quem haviam confiado tinha sido precisamente o arcebispo:
":ítsses desventurados, reconhecendo a própria culpa,
tornam-se em parte inocentes, e estão arrependidos; dou
tra parte, são menos culpados que os cônegos da Scala,
que se opuseram à autoridade com a fôrça armada e em ple
no dia. Farina foi um inditoso que esperava permanecer
oculto ... " Conseguiu somente obter que o Padre Nassino
fôsse condenado a cinco anos de prisão; e como insistisse
junto do Papa para que lhe perdoasse completamente, na
esperança de vê-lo melhorar, teve como resposta que era
mais f.ácil tornar branca a pele dos etíopes que atender ao
pedido; pouco depois, contudo, alcançou sua libertação e
a restituição do cargo que ocupara anteriormente".
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O braço secular castigou inexoràvelmente os outros
cúmplices do crime. Foram enforcados, na praça de São
Lourenço, em Bróglio. Somente dois, os párocos de Cara
vággio e de Vercelli, tiveram a distinção da decapitação ...
e mereceram tal privilégio - conforme as crônicas daque
les tempos - por serem nobres. Narra-se que Farina se
tenha comportado com muita dignidade diante do patíbulo.
Quando passou pelo arcebispado, ao se lhe amputar a mão
como parricida, teria dito ao carrasco : "Corte a mão cele
rada que com um só golpe arriscou a perder tôda a cidade!"
Suprimiu-se a ordem dos humilhados, e a casa e a igreja
de Brera foram entregues aos jesuítas que, em Milão, não
possuíam sede própria. A paz voltara a reinar na diocese;
as vésperas daquele Natal, cantadas na catedral, preanun
ciaram uma festa pacífica e triunfal, e resultaram especial
mente adequadas as palavras da primeira antífona: Rex pa
cificus magnificatus est, cuius vultum desiderat universa
terra. - "Exaltou-se o rei pacífico, por cuja face anela
tôda a terra !"
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PARTE IV
O PEREGRINO DE DEUS
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1.
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onde tomavam as refeições com o arcebispo e sua família. E
dado que Carlos se alimentava como os passarinhos e se nu
tria de alimento . .. quase simbólico, os convidados não es
tavam certamente obrigados a seguir-lhe o exemplo, mas,
pelo contr,ário, eram servidos com fidalguia. Os repastos,
é claro, eram tomados em pratos e louças de barro; havia
grande abundância de peixe, carne, legumes, pão branco,
frutas e vinho, - mas nunca mais de três iguarias em cada
refeição ... o que, para os banquetes do tempo, era conside
rado fazer penitência, e da penosa. . . Nem faltava, como
já tivemos ocasião de notar, a leitura da Bíblia e de outros
livros de devoção.
Naturalmente, o arcebispo recebia sôbre seus súditos
informações de tôda a parte, e freqüentes vêzes, malignas e
insidiosas. Mas não se contentava em julgar os prelados,
baseando-se nas palestras banais e nos encontros em há
bitos de gala. "Agia de maneira a conhecer antes do con
cílio - diz Possevino - não somente os defeitos comuns
dos provincianos e dos diocesanos, mas de cada um em
particular, quer fôsse leigo quer eclesiástico. Para tal es
copo, trazia sempre consigo uma caderneta, onde anotava,
de sua própria mão, os defeitos dos subordinados, para
corrigi-los no tempo e lugar devidos. Na verdade, sua ha
bilidade e gentileza eram tais, que obrigavam todos a do
brar-se diante de sua vontade".
No concílio de 1569, que se tornou famoso pelo menos por
um século, foi lembrada por muito tempo sua introdução:
"Faz três anos que começamos os trabalhos das reformas,
mas estamos bem longe da meta. Até hoje, oferecemos ao
povo somente leite; torna-se necessário agora, alimento mais
sólido. Não nos limitemos a ser sombras, mas tornemo-nos
a encarnação viva daquela disciplina cristã que, com o au
xílio de Deus, devemos regular com nossos decretos.
"Bem conheceis, veneráveis irmãos, quantas angústias
afligem o mundo cristão! Quantas violentas revoluções,
quantos massacres, quantas lutas! Destruíram-se igrejas, e
despojaram-se lugares consagrados de suas preciosas está
tuas e ornamentos! Com o mais insensato descaramento,
foram roubados vasos sagrados, assassinados muitos sacer
dotes e religiosas, dispersas as relíquias dos santos, violadas
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tantas virgens, profanados os templos. . . Tudo é ruína e
desolação!"
Palavras terríveis, sem dúvida, mas verdadeiras. Aque
la voz que apenas se elevava de tom para fazer-se ouvir,
atravessara os muros da catedral de Milão e se fizera es
cutar no mundo inteiro. O povo tem principalmente neces
sidade de alimento substancial... Não são sombras, mas, en
carnação viva da disciplina cristã.
E as palavras do cardeal-arcebispo ressoavam como
repreensão, estímulo e vergastadas.
Freqüentemente, especialmente nos primeiros tempos
do cardinalato, quando as lembraças da nobreza lhe sus
surravam ainda lisonjeiras ao ouvido, costumava firmar
se Buonromeo - Bom romeiro. A origem dêste nome não
era tão distante da piedade cristã mais eleita, que não pudes
se andar unida a um agradável sentimento de orgulho ca
ritativo, - se na pr.ática da caridade o orgulho tem razão
de subsistir.
Seu longínquo antepassado, Lázaro de São Miniato, que
viveu por volta do fim de 1.200, tivera a alcunha de Buon
romeo, precisamente pelo grande auxílio dispensado aos
peregrinos que se dirigiam para Roma a fim de lucrar o
jubileu do Papa Bonifácio VIII. Entre os romeiros de Flo
rença, havia também o obscuro e solitário exilado que se
chamava Dante Alighieri. Lázaro agradara-se do apelido,
a tal ponto de impô-lo a seu primogênito, que o legou aos
próprios filhos. Tôda aqui a orgulhosa história da família
Borromeu!
E Bom Romeiro quis ser Carlos quando empreendeu,
como dever de todos o mais sagrado, as excursões pastorais.
Havia dito, desde os anos do Vaticano, que as visitas pasto
rais são para os bispos de maior utilidade que as informa
ções dos vigários. . . Quando chegou a Milão, onde se fixou
para sempre, pôs no trabalho e na distribuição dos planos,
o ardor militar e a firmeza feita para manter a todos em
linha. As visitas pastorais de Carlos tornaram-se famosas.
Com seis cavalos somente, porque era necessário cuidar
de não gastar inutilmente-- nas paróquias pobres pensava
o cardeal com suas rendas pessoais, - sem o embaraço das
bagagens, pois todos deviam levar o estritamente necessário
como soldados no campo de batalha, a caravana percorria
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estradas abertas e infinitas, atalhos de montanha, e veredas
apenas traçadas; afrontava, com desenvoltura, os lugares
mais escabrosos, e quando as estradas se perdiam entre cha
padas e penhascos e as cavalgaduras recusavam avançar,
eis o Bom Romeiro a empunhar grosso e nodoso bastão de
montanhês, a subir em todos os montes, servindo-se das mãos
onde era necessário, e a colocar aos pés certos ferros . . . in
descritíveis, que deviam salvá-lo dos escorregamentos mais
perigosos e que, ao contrário, gerahnente os facilitavam...
Quando se devia transportar equipagens bastante pesa
das, repartia-se a carga um tanto para cada um, e também
Carlos carregava sôbre os ombros a própria, e não queria
saber de auxílio. Afirmando ser bela coisa gastar bem
aquêles longos dias que os outros dedicam ao repouso, fixa
va as visitas para os meses mais quentes e a viagem nas ho
ras mais ardentes. Nada o fazia recuar, nem o suor que lhe re
gava a fronte, nem a fadiga que lhe dobrava o pequeno
e delgado corpo. "O calor - afirmava - compensa pelo
grande frio que sofri nas igrejas e moradias dos pobres
vigários onde passei as longas horas do inverno... "
Durante suas peregrinações apostólicas, não havia jeito
de convencê-lo a tomar alguns momentos de repouso ou a
fazer as coisas por etapas. Apenas chegado ao lugar pre
estabelecido, ei-lo a correr à igreja para as funções, e nunca
omitia o sermão aos fiéis. Se alguma família rica lhe pre
parava confortável e bonito apartamento, ou também so
mente um quarto hospitaleiro com boa cama, recusava agra
decido, e enviava o mais cansado ou necessitado da comiti
va; jamais renunciava à casa paroquial, ainda que paupér
rima, contente por dormir sôbre enxergões de fôlhas ou
palha, quando não em simples tábuas.
Relata-nos, a propósito, Môntico: "Em Valsassina, ape
sar de estar completamente ensopado e encharcado pela
chuva, não quis de maneira alguma servir-se do único lei
to que havia na casa paroquial, e o cedeu prazenteiro ao
familiar Júlio Brunetto".
Também Giussano lembra como outro doméstico pu
dera vê-lo, pela fenda da porta, renunciar à cômoda cama
e retirar de uma gaveta velho cobertor todo remendado, se
melhante aos que os cavaleiros colocam sôbre a garupa dos
cavalos, e desdobrá-lo per terra.
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Repousava algumas horas apenas, pois entre preces,
meditações e anotações nos conhecidos livrinhos, passava
grande parte da noite, e ao amanhecer j1á se encontrava
de pé para recomeçar, com prodigioso ardor e entusiasmo,
o nôvo dia que lhe reservava trabalhos e viagens inúmeras.
2.
A BUSCA DA VERDADE
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nheiro com critério e sagacidade, e não com tanta prodigali
dade como teria sido do agrado de muitos; nessas jornadas
apostólicas interessava-se não em organizar festas, mas em
restaurar igrejas e hospitais, e distribuir esmolas a mãos
��
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chamadas que obrigavam os mais revoltosos a trabalhar
com afinco e entusiasmo na vinha do Senhor.
O que mais repercutia na imaginação e no coração
de todos era a maneira solene como se apresentava, e a es
tática suavidade de seu olhar sensibilizado diante da gran
diosidade litúrgica; em seu semblante, certamente não mui
to belo e atraente. . . humanamente falando, refletia-se gra
ça e luz nústicas que se expandiam por sôbre os presentes,
anciãos e crianças, nobres e humildes, apinhados nas rús
ticas ermidas alpestres ou nos suntuosos templos citadinos.
Algumas vêzes, para as funções nas igrejas .mais im
portantes, convidava-se, para falar ao povo, algum prega
dor de renome. Se, porém, o solicitado não chegava a tempo,
subia ao púlpito o cardeal e arrebatava a multidão. Aconte
ceu-lhe até, em certa quaresma, alternar na catedral com o
célebre orador sacro e caríssimo a seu coração, Padre Ma
tias de Saló, a longa preparação milanesa da P,áscoa.
Nem todos os pregadores quaresmais ficavam conten
tes com tal ingerência, e não eram poucos os que observa
vam mal-humorados: "Mas como, convida-nos para pregar
e depois nos deixa de lado?! Bonita figura fazemos diante
do povo!" As queixas chegaram até Roma. Carlos viu-se
obrigado a justificar-se com o Cardeal Speciano: "Mas não
compreendiam os ofendidos não serem senão adjutório dos
bispos? E se não o entendiam, era por culpa dos prelados,
que até agora consideravam a pregação como fumaça nos
olhos ..."
O povo, como que acordando de longo torpor e vendo
novidades também nas formas ordinárias do culto, tanto
estava desabituado, acorria às funções com entusiasmo e
freqüência que davam asas ao orador; e apesar da vas
tidão da catedral e da população de Milão não poder nem
de longe ser comparada com a de hoje, era difícil, algumas
vêzes impossível, encontrar um lugar nas funções presidi
das pelo arcebispo. E quando chegava às diversas igrejas
da diocese, as multidões surgiam de todos os cantos. Carlos
interessava-se então em suscitar novas formas de devoção,
fomentando tríduos, novenas, missões e tôda a espécie de
piedade, semelhante - diz Giussano - "aos comerciantes e
artífices ambiciosos que vivem continuamente preocupados
em descobrir novos modos de aumentar o lucro!"
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�ste contágio de admiração e devotamento não se pro
palava somente e:o.tre o povo miúdo, mais propenso às sedu
ções do fausto exterior que às práticas da verdadeira re
ligião, mas conquistava também as classes mais difíceis e
céticas, as dos senhores, dos nobres, dos magistrados e dos
próprios senadores que, esquecidos de tê-lo tão rudemente
ultrajado e combatido, procuravam-no agora para aconse
lhar-se; visitavam-no freqüentemente - quase demais! -
e participavam, ostensivamente, até das funções que se rea
lizavam na capela privada do arcebispado.
E' claro que tudo ia de vento em pôpa, até que se trata
va somente de assistir às cerimônias, desfilar em hábitos
aparatosos nas procissões, levar baldaquinos ou velas vo
lumosas e delgadas; mas quando Carlos entrou na vida
social dessa gente e pretendeu reformar os costumes e gol
pear as injustiças dos potentes contra os humildes, chove
ram as mais absurdas críticas e lamúrias! Tornaram a repe
tir que o cardeal desejava fazer mais do que lhe convinha,
que era necessário, sim, trovejar na igreja, mas que não
sE.· ocupasse de outros assuntos, e que entendia nada menos
que levar o povo à revolta contra a autoridade real. Isso,
porém, em nada abalou o ânimo do intrépido lutador que,
em plena tempestade jurisdicional, por exemplo, empre
endeu a visita aos três cantões suíços postos sob seu cuidado.
A viagem teve início no Cantão de Lucerna que, gra
ças à ação de Ludovico Pleiffer, prefeito da cidade, mais
se opusera a propaganda protestante. Ludovico conseguira
salvar o rei da França, ajudando-o a refugiar-se entre os
Huguenotes. O segundo cantão percorrido por Carlos foi
o de Unterwalden, onde Melchior Lussy, durante quarenta
e oito anos de fecunda atividade, foi, a começar do con
cílio de Trento, o homem de confiança da Santa Sé na
própria pátria.
Percurso semeado de aventuras, que patenteou e cor
roborou, não sem diminuir as físicas, as fôrças espirituais
dêsse gigante da fé.
li6
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3.
O MISTÉRIO DO AMOR
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mais rígida, o seu regime de vida, contentando-se com o
leite e com os alimentos mais comuns e grosseiros".
Foi certamente um mês de esgotantes fadigas sua per
manência na Suíça; mas os frutos foram consoladores. O
arcebispo nunca mais perdeu de vista aquelas distantes re
giões. Em 1579 fundará o Colégio Helvécio, onde serão aco
lhidos até quarenta jovens do belo e gentil país alpino.
Visitará pelo menos dez vêzes o Cantão Ticino, e em 1573
chegará até a Suíça alemã.
Certa vez, um dos embaixadores cantonais fizera claro
e preciso discurso na presença do cardeal: "Sim, é verdade,
os senhores dêsses lugares haviam mil vêzes usurpado os di
reitos da autoridade eclesiástica; o que teriam podido fa
zer, porém, com um clero daquela casta, que não se ocupa
ra dêles? Mas que tomassem cuidado agora os sacerdotes
e caminhassem no reto caminho, segundo as ordens do arce
bispo; porque os príncipes estavam decididos a fazer exe
cutar até o último todos os decretos do Concílio de Trento".
Carlos ouviu comovido e contente, mas quando os bons suí
ços afirmaram que agiam de tal maneira por respeito a
sua santidade, respondeu argutamente: "E se o fizessem
pela Igreja ou melhor ainda, pelo próprio Deus, não seria
melhor?"
Refere-nos Giussano: "O interessante era vê-lo retor
nar daqueles longos períodos de fadigosas ausências; pare
cia que regressasse das férias; punha-se logo ao trabalho
com grande fôlego, caso não empreendesse outras peregri
nações; assim, em novembro, no regresso da primeira visi
ta aos suíços, encontramo-lo, logo a seguir, em inspeção de
oito dias à paróquia de Varese, onde devia reprimir, além
do resto, grosseiras formas de usura que iam crescendo
dia a dia; aqui tomou conhecimento de que entre os cône
gos haviam sido admitidos dois jovens de quinze anos; mo
tivo pelo qual escreveu imediatamente a Roma com muita
franqueza, suplicando que não se dessem mais semelhantes
exemplos de imoralidade".
Entre as lidas e dores, não faltava o cômico das aven
turas, como durante a viagem que fêz a Valsassina, nas
montanhas. Caminhava ofegante por sendas ásperas, quando
esbarrou com volumosa torrente, que se tornara mais impe
tuosa e cheia devido à recente e torrencial chuva. Encontra-
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va-se aí, por acaso, certo Domingos Valinello, camponês ro
busto de corpo e. . . de espírito, que o tomou nos braços
para transportá-lo. Mas chegando ao meio do riacho, e sen
tindo as pernas vacilarem diante da furiosa corrente, dei
xou cair, ou talvez, atirou na água o pobre cardeal; nem quis
mais saber de nada, senão de salvar-se, atingindo a margem
e entregando-se depois a uma vergonhosa fuga.
Foi realmente milagre se, dado o embaraço das vestes
longas e largas, o arcebispo conseguiu salvar-se. E molhado
como estava, caminhou até o abrigo mais próximo; ali,
chamando seu herói, regalou-o com um escudo de ouro, dizen
do: "Isso servirá para afugentar-lhe o mêdo !" Quem sabe
se Domingos compreendeu a pilhéria; mas dizem que na
queles lugares o rio e o vale ainda hoje são conhecidos como
Torrente e Vale do Cardeal.
Coisa muito pior aconteceu-lhe em outro povoado, com
certas freiras assaz mundanas que, conhecendo as graves
medidas que o cardeal tomara contra a vida que levavam,
lançaram-lhe em rosto tantas e tais injúrias, quais nunca se
teria sonhado que pudessem sair da bôca de uma mulher
e ademais, religiosa. . . Pareciam verdadeiras fúrias. Mas
o arcebispo não proferiu palavra alguma ao nôvo. Vesú
vio em erupção. Contentou-se em calcar um pouco a mão
na repreensão, e em breve também aquêle desdouro foi
banido da diocese.
Bem diversamente agiram as irmãs do convento de
Monza; atormentadas havia anos pelo demônio que lhes
arrebatava das mãos os apetrechos de trabalho e as obce
cava em tôda a espécie de lúbricas visões, dirigiram-se sú
plices e desoladas a Carlos, pedindo-lhe que as livrasse de
tão grande flagelo. O bondoso pai condescendeu, visitou o
mosteiro, benzeu-o total e repetidamente, e as vexações de
sapareceram para sempre.
Em todos êsses reveses e esforços que realizava verda
deiramente "qual corpo sem carne e alma sem corpo",
como o descreveu o primo Frederico que lhe sucedeu no ar
cebispado milanês com igual santidade e viva inteligência,
quem merecia um pouco de compaixão eram seus familia
res. Se já alcançara tal grau de virtude pelo qual não neces
sitava impor-se mortificação alguma como penitência -
pois se tornara quase insensível às dores físicas - os ou-
180
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tros eram homens e não lá muito santos!. .. Carlos pare
cia não perceber nem o frio, nem o calor. . . Ensopado pelo
suor, - em certa cerimônia religiosa, tôdas as suas vestes
estavam reclamando enxugadouro! - impregnado de neve,
chuva ou granizo, dirigia-se diretamente à igreja e perma
necia por horas inteiras ajoelhado com tais trajes. Caminha
va a passos largos sôbre o gêlo e a neve com as mãos des
cobertas; jamais quis servir-se de luvas, salvo quando al
guma função as exigia. Suas mãos estavam vermelhas, in
chadas, repletas de frieiras, e se rachavam de maneira
assustadora, - mas Carlos de nada se importava quando se
tratava da própria pessoa.
Caiu em Milão, certo ano, tanta neve, que os tetos das
moradias desabaram; tornou-se necessário abrir nas ruas
passagens restritas aos pedestres, através da neve endure
cida, que atingia a altura de três metros. O quarto do car
deal, localizado precisamente sob o teto do palácio, conver
tera-se numa geleira. Ingressando, uma vez, improvisamen
te no aposento, viu um camareiro a aquecer-lhe o leito
com um esquentador de cobre, cheio de carvão aceso: "Por
que me esquentas a cama? perguntou ao servo, que pas
mava com tão estranha interrogação; não sabes que o me
lhor modo de não sentir o frio dos lençóis, é encontrar-se ain
da mais frio?"
O fogo devia somente ser acendido no corpo de guarda
do palácio e no salão, onde, pela noitinha, todos se reuniam
para aquecer-se e conversar amigàvelmente. Quando Carlos
estava presente, quase nunca se avizinhava da lareira, exce
to uma vez em que chegou de Arona, depois de ter percorri
do vinte e mais milhas através do lago e das montanhas, sob
uma chuva que parecia provir de um céu partido. Estava
ensopado até os ossos, mas também naquela vez recusou
trocar de roupa, a fim de poder juntar-se logo aos familiares
e recitar o têrço.
Mas se era insensível ao frio e ao calor, compreendia que
nem todos o eram . . . e tomava as providências necessárias.
Que de vêzes no inverno, em algum pobre presbitério, seus
servos, despertando durante a noite, perceberam, estupe
fatos, que o arcebispo lhes deitara sôbre o leito os cober
tores preparados adrede para êle!. .. Num gélido Natal,
durante o qual Milão se encontrava tôda ataviada por branco
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lençol de neve e gêlo, Carlos se lembrou de alguns velhos
e pesados capotes, em parte forrados de peliças, relíquias
de seus primeiros dias de Roma. Ordenou que fôssem pro
curados e, tendo-os encontrado, enviou-os ao Hospital dos
anciãos.
O Cardeal Frederico imortalizou a lembrança dessas
visitas, no discurso inaugural do vigésimo primeiro sínodo
de Milão: "Montes gloriosos, vales abençoados, veredas san
tificadas, que conservais ainda hoje tantos vestígios das obras
de Carlos, lá onde, com a ajuda do céu, conseguiu tão es
tupendas vitórias sôbre inimigos imortais. . . Como são ain
da graciosas essas casas que hospedaram, uma vez, um cor
po sem carne, uma alma sem corpo. . . e cuja pobreza foi
enriquecida pelos esplendores da púrpura!"
4.
NA TERRA DE JOÃO XXIII
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cio. Visita de formalidade? Talvez, se o arcebispo de Milão
não fôsse Carlos: "Sua excelência deve corrigir e suprir
com seu zêlo a tudo o que de mal se fêz nessa diocese por
causa de minha negligência; entrementes, eu que sinto
grande necessidade de ser corrigido por outros, sou obriga
do a viajar para indagar os defeitos alheios".
Quando conseguiu colocar convenientemente o visita
dor e o viu ocupado em "verificar sua preguiça", em vez
de permanecer ali a . . . intimidá-lo com sua presença, diri
giu-se para Cremona.
Haviam já iniciado os grandes calores, que em nada,
porém, influíam sôbre o caráter enérgico do cardeal. Calor
ou frio, nenhuma coisa o impedia de ganhar tempo, ajus
tando inúmeras dissensões que desde muito tempo anuvia
vam as relações entre cônegos e bispos, moderando no povo
a fome dos espetáculos públicos, promulgando novas leis e
normas, quais ninguém teria ousado esperar, no dizer do
futuro Gregório XIV.
E ei-lo e retornar pontualmente a Milão, para celebrar na
catedral as grandiosas festas de Mariae Nascenti, e empre
ender, logo após, a visita a Bérgamo.
A notícia da chegada de Carlos a alguma diocese pro
vocava sempre certa confusão. Difundira-se já a fama de
sua santidade e intransigência, que não cediam diante das
adulações ou imponência das recepções. Seu ingresso em
qualquer cidade tomava aspecto triunfal, não tanto pela
pompa do espetáculo exterior, quanto pelo fervor extraor
dinário que suscitava em todos os habitantes. Bérgamo re
vestiu-se, naquela sua famosa visita, das glórias do milagre,
se dermos fé ao que o gentil homem Marcelo Viscardo ates
tou sob juramento ao Padre Grattarola. O nobre cidadão
afirmou ter visto o cardeal, enquanto se adiantava por en
tre o entusiasmo e a veneração dos fiéis, todo revestido de
resplandecente auréola. A visão foi vista e confirmada tam
bém pelo pároco de Bérgamo Zanfredo Maffei.
Mas os triunfos públicos, as festas e o aplauso dos gran
des não diminuíam nêle a vontade firme e resoluta de apli
car a reforma em tôda a sua plenitude, e agir para o bem
da Igreja antes de mais nada. Assim, em Bérgamo, por
exemplo, constatou ·que era pouco seguro, e menos ainda
conveniente, o arrabalde em que se estabelecera, havia mui-
184
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to tempo, um convento, principalmente por certas figuras
que circulavam ao redor, certamente não por nada. . . Orde
nou sua transferência, não obstante os protestos dos inqui
linos e de todos os moradores das vizinhanças, pois se de
viam transladar juntamente as relíquias dos santos Firmi
no e Rústico, glória do bairro.
Com efeito, os arrabaldeiros armaram-se, uniram-se e
entraram à viva fôrça na igreja, suplantando a débil resis
tência do sacristão, primeiramente, do sacerdote encarrega
do, em seguida, e puseram-se a guardar as relíquias, gritan
do que se afastassem, sim, aquelas inúteis monjas, mas as
relíquias dos santos não, ninguém haveria de as tocar. A
intenção pareceu muito honesta e boa a Carlos ao ser in
formado, mas o modo, não. Dirigiu-se para a igreja do con
vento, falou decidido àqueles homens resolutos, com tal
piedade e vigor que os mal-encarados serenaram o semblan
te sombrio, depuseram as armas e pediram perdão ao car
deal. Comparecera êste ao local não com os guardas do Vi
gário, como lhe fôra proposto pelo intendente de Sua Serenís
sima, mas com uma simples cruz e um têrço. Sic placantur
leones!
Narra-nos Pedro Giussano, outro fato acontecido tam
bém em Bérgamo, e que manifesta claramente a fôrça e a
tenacidade do arauto da fé.
A capela onde jazem os restos mortais de Bartolomeu
Colleoni, construída por Amadeu sôbre um terreno ocupado
à fôrça pelo célebre caudilho e que pertencia à igreja de
Santa Maria Maior, não obstante as belíssimas cenas e bai
xos-relevos da Paixão e das Virtudes, parecia transformada
em bazar oriental, tão numerosas eram as bandeiras e tro
féus que a sufocavam; a estátua eqüestre de madeira de
Bartolomeu, colocada no recinto pelo ano de 1501, cavalga
va vitoriosa entre as aparências de perpétuo carnaval.
"Eu então - escreveu Carlos ao Bispo Castelli - deci
di remover do mausoléu tôdas aquelas bandeiras flutuantes;
incumbi da tarefa a Monda, o homem que parecia mais idô
neo; ordenei que tudo desaparecesse no modo mais rápido
possível, e que tal inconveniência nunca mais se repetisse
para o futuro. Essa decisão improvisa e imediatamente
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atuada, impediu a reação dos espíritos que, por certo, eu não
teria podido evitar se o assunto se tivesse protraído por
muito tempo entre consultas e decisões".
Encontramos novamente o homem que rompeu com
tôdas as demoras e logomaquias, tão freqüentes na Roma
de então.
5.
A GUERRA FRIA DE MILÃO
186
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Essa primeira estadia continuou por um mês inteiro, e é
interessante verificar como organizou o trabalho da visita.
"Seu quartel-general - escreve Giussano - localizava-se
na cidade, precisamente no quarteirão dos dominicanos; e
lá quis demorar durante todo o tempo em que permaneceu
em Bréscia. Sete visitadores trabalhavam explorando a dio
cese, não sem ter recebido antes precisas instruções; deviam
indagar tudo e de todos, excitar, pesar bem, mas depois dei
xar cada coisa no próprio lugar, e consultá-lo para as de
cisões importantes. Eram, enfim, "olhos e ouvidos do rei",
como entre os antigos persas; a diferença estava no fato de
aqui, depois do temporal, nunca faltar a chuva benéfica, e,
se para alguém se tratava de granizo, era, de certo modo,
salutar também.
Seu trabalho na cidade tornava-se realmente exorbi
tante. A correspondência com os visitadores para encorajá
los e aconselhá-los, era incessante. Examinadas suas rela
ções, preparava o que teria sido o trabalho conclusivo da
visita, quando êle próprio passaria de povoado em povoado.
Somente nos casos mais graves de jurisdição eclesiástica,
recorreria a Roma.
Em Milão, no entanto, a guerra fria contra o cardeal
continuava ininterrupta. Alguns desconhecidos haviam cau
sado danos às reprêsas, de modo que a ,água não continu3-">se
a regar certos prados do domínio eclesiástico; outros indiví
<luos tinham penetrado, de noite, na tipografia arquiepis
copal do seminário, onde seqüestraram o tipógrafo e des
truíram vários manuscritos do concílio provincial, que ser
viam - conforme nos refere Giussano - "para a impressão;
felizmente Bascagli possuía outra cópia, caso contrário, a
edição teria sofrido grande atraso".
Carlos apresentou-se ao Palácio do Govêrno, não tanto
para dramatizar o acontecido, quanto para induzir o duque
a auxiliá-lo na obra insigne da reforma. Encontrou Albu
querque todo bondade, mas novamente receoso de ultrapas
sar as disposições régias, que lhe vetavam ceder um palmo
sequer no que se referisse às prerrogativas exigidas pelo
cardeal. O conde-duque -contentou-se em levantar os bra
ços e os olhos ao céu e exclamar: "E' já bastante pretender
dos milaneses o que não se consegue obter em outros
lugares!"
187
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Era a última manifestação do governador. Poucos dias
depois morreu assistido pelo arcebispo, vindo de Bréscia a
tôda a pressa para consolar as últimas horas de agonia do
gentil-homem espanhol. Infelizmente, o representante de
Filipe II expirou sem recobrar os sentidos, após longo co
lapso, e não deu a Carlos, que entrara no aposento de botas
e esporas, empoeirado pela furiosa cavalgada, a satisfaçjio
de morrer após a recepção dos sacramentos.
Mas a fortaleza de ânimo do prelado devia demonstrar
se novamente e, bem cedo, por ocasião da grave crise que o
acometeu poucas semanas depois da morte do conde-duque.
Na oportunidade, escreveu-lhe Speciano: "Deve ser verda
deiramente uma feliz disposição do Senhor essa doença;
assim é obrigado finalmente a tomar algum repouso. Nós
mesmos pedimos a Deus que lhe envie freqüentemente tais
dissabores - dado que, a não ser as enfermidades, nada
pode pôr freio a suas fadigas".
Palavras ao vento! Na procissão do "Corpo de Deus"
o cardeal, ainda convalescente e padecente, encontrava-se
já de pé.
E para restabelecer-se, achou bom veranear em Grop
pello, onde as precauções pela saúde se converteram em vi
sitas e mais visitas, sem jamais aceitar cuidados ou alimen
tos diversos dos que eram dispensados aos outros. Quando
chegava ao conhecimento, através da indiscrição de algum
seu familiar, que um pároco pretendia deixar as estritas nor
mas da habitual frugalidade, irritava-se realmente; coisa in
sólita em quem era - como já percebemos - paciente e
compreensivo. Encontrando-se em Groppello e vindo a sa
ber que o vigário de Orzinuovi, onde desejava chegar, es
tava preparando luxuoso banquete, pegou da pena e es
creveu: "Ouço, com profundo pesar, que me está aprontan
do uma ceia de príncipes. Com esta carta entendo tornar
inúteis seus trabalhos e adverti-lo que não se atreva a
transgredir meus cânones no que se refere às refeições do
arcebispo; portanto, nada na mesa, exceto sopa, uma igua
ria e frutas. Não me obrigue a puni-lo com exemplQ salu
tar. E passe bem!"
Mas se Carlos conseguia fugir dos banquetes requin
tados e dos manjares-delicados, não podia impedir as mani
festações que, nos pobres e então selvagens rincões, as popu-
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lações lhe preparavam pressurosas e carinhosas. Os mon
tanheses da Vai Camônica, da Sábbia e da Trômpia gasta
vam dias inteiros para tornar menos horríveis seus atalhos,
adornando-os com ervas aromáticas, a ponto de comover o
:eardeal, que encontrava, sim, corações simples e devotos,
mas vida religiosa quase nula. "Em tôda a diocese de Brés
cia - narrava a Speciano - nunca deparei com lugar tão
afastado da religião como Gardone; distante da cidade uns
vinte quilômetros, na prática da religião fica para trás de
qualquer outra localidade mais remota, também se situa
da a dois passos dos países protestantes; o clero então... "
Os senhores do conselho veneziano estavam tão con
vencidos da pouca ou nenhuma civilização moral e religio
sa daqueles povoados, que haviam esc;rito ao Papa, pedindo
que dissuadisse o cardeal de visitar tais lugares: "São lo
calidades - diziam - completamente arraigadas no mal,
e é mais fiácil que se originem desordens, que algum bem ,
sirva-se, antes, de nossos sacerdotes diocesanos".
Não precisava outra coisa para levar Carlos a fazer
precisamente o conh�ário daqueles conselhos que lhe pro
vocavam sempre novas e contínuas suspeitas; estava já per
suadido que a República dos Doges, naquelas regiões infes
tadas pela heresia, procurava ir à frente como e quando
podia, em nada preocupada senão com afastar complicações.
Os resultados superaram as expectativas mais otimistas.
Seu desinterêsse, o modo como suportava as mais ingratas
fadigas, o ímpeto e o zêlo missionários de que andavam in
flamadas as suas obras, o agir paterno e severo, conciliativo
e inflexível, cativaram-lhe todos os ânimos; povo e clero
renderam-se com alegria e o compensaram com entusiasmo
e amor que pasmavam a todos e, principalmente, os nobres
e notáveis que haviam zombado de suas afirmações categó
ricas em favor daqueles pobres infelizes.
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6.
O LtRIO DE UM MENINO
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sos, no íntimo do espírito permanece una, simples, radiosa
de luz e superabundante de alegria; nada tem de artificial,
mas é pura como é puro o próprio espírito".
Luminosos são dois fatos dessa sua missão triunfal nos
vales de Bréscia, sôbre que nos prolongamos por constituí
rem exemplo sem paralelo das viagens pastorais de Carlos.
Tôdas as outras serão repisadas naquilo que justamente
êle mesmo definiu: "O primado de meu apostolado na girei
dispersa e perdida".
Em Valtrômpia fôra-lhe apresentada uma menina, que
o compensou das muitas lidas e dores sustentadas em meio
daquela gente inculta e herética.
Era uma �istória, a da menina, que parecia provir das
ingênuas hagiografias dos primeiros mártires. Não quisera
acompanhar e alcançar o pai emigrado para regiões pro
testantes; fôra expulsa de casa pelo avô, e ela, errante mas
decidida, refugiara-se na companhia duma pobre mulher.
Chegara, porém, seu irmão maior, violento e prepotente, que
a viera buscar para a levar como prisioneira. Mas a menina,
perto de Gardone, conseguira escapulir e esconder-se entre
as rochas do Baldo; em tal estado, tôda recoberta por tra
ços atrozes causados pelas violências recebidas, encontrara-a
o cardeal; examinara-a profunda e demoradamente, e a en
viara a um mosteiro da cidade de Bréscia, para que a jovem
encontrasse a consecução de seus desejos e a paz que bem
merecia.
O encontro com Luís Gonzaga acorreu, ao invés, em
ambiente de serenidade grandiosa e senhoril, em Castiglio
ne delle Stiviere. O arcebispo chegara àquela localidade
passando por Manébio, Pontevico, Acquanegra e Azola, e
fôra recebido pelo príncipe Fernando e sua côrte com ex
trema solenidade. Era o dia 22 de julho, dedicado a Santa
Maria Madalena. Havia pregado na igreja e fôra convidado
a pernoitar no castelo, entre os esplendores da residências
dos Gonzagas.
"Fico-vos muito agradecido, mas prefiro a companhia
de meu cura!", respondeu. Seu cura não era outro senão
o arcipreste do lugar.
Foi ali que se apresentaram, para render-lhe homena
gens, os marqueses e a côrte; mas todo aquêle intenso mo
vimento de côches ·e roçagar de vestes nada valeram em
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comparação ao colóquio de Carlos com o casto Luís, jovem
de doze anos, que resplandecia na luz das pupilas e na
compostura. O diálogo prolongou-se por muito tempo e a
permanência do cardeal em Castiglione protraiu-se além do
previsto.
Teve a alegria e o p_rivilégio de dar ao angélico menino
a primeira comunhão, e o teria afervorado tanto no ideal
de uma vida tôda entregue a Deus que, ao menos pelo que
refere Giussano, "teria desabrochado nêle naquela ocasião a
maravilhosa flor de pureza imaculada e sequiosa de amor".
7.
NO COVIL DOS BANDIDOS
8.
O ESCANDALO DO PADRE
Se a visita a Bréscia e às regiões adjacentes foi para
Carlos quase triunfal e produziu frutos copiosos e duradou
ros, uma outra realizada nos Grigioni, três anos após, na
qualidade de visitador apostólico, não seguiu o mesmo es
tilo . . . Tornou-se necessário, para que pudesse penetrar e
permanecer no cantão, espalhar a notícia de que iria acolá
unicamente para um período de repouso no castelo de seus
parentes, os Hohenems.
As condições religiosas daqueles vales eram penosís
simas; havia-se repelido tudo o que lembrasse a fé dos an
tepassados. A penetração protestante fôra tão profunda e.
hábil, que já todos se riam das prescrições romanas e pe
nas eclesiásticas. Na Mesolcina, as superstições eram de tal
monta, que se acreditava nas feitiçarias, nas orgias notur
nas, nas danças das bruxas, nos homens e nos animais
que, de noite, se precipitavam misteriosamente nos pre
cipícios.
Constituiu Carlos uma comissão para as indagações ne
cessárias. E antes de fazê-lo pessoalmente, enviou como in
quisidor um homem apto, o jurisconsulto Francisco Borsat
to; o qual foi, est�dou homens e coisas e referiu depois ao
arcebispo: "O início fôra borrascoso; nas reuniões, todos
queriam falar e protestar, e a antífona, a de sempre: "Ai
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de quem atentar contra a nossa liberdade!" E quando to
cara a tecla das leis eclesiásticas, sucedera tremenda bal
búrdia, compreensível, aliás, numa assembléia de ignoran
tes obstinados. Sem dúvida nenhuma as coisas eram mais
sérias do que se pensava e, apesar do árduo trabalho, o re
sultado melhor devia provir da visita do c<irdeal".
Mas qual a causa de tantos malefícios, bruxarias e de
sordens? Simples e exatamente o arcipreste da região, que
residia no colégio de Rovereto. E quanto às gloriosas em
prêsas realizadas por êle e por seus aliados, é melhor nada
dizer. Também desta vez, Carlos partiu com três valorosos
sacerdotes; e, em vez de hostil e ameaçadora multidão, viu
diante de si um povo curioso que, às suas primeiras palavras,
aos seus primeiros atos, às primeiras práticas religiosas ce
lebradas com pompa imponente, - e sem melindrar-se pe
las vozes catastróficas que provinham do pregador, - dei
xou-se convencer para trilhar todos os caminhos da fé.
Foi tamanha a transformação, que um dos eclesiásticos
da comitiva do cardeal pôde escrever: "O que mais nos
surpreende, após tantas notícias sinistras, é observar que na
população, em grande parte, a fé se conserva viva, e o
acolhimento que fazem ao pastor e aos missionários é es
pontâneo e comovedor. Tem-se a ocasião de constatar que,
na verdade, o mal realiza mais barulho que fatos. Chegamos
a Tesseredo; sermões, intermináveis confissões, prolonga
das comunhões, discursos muito felizes do cardeal no dia_
de São Martinho. Mas onde estão as terras contaminadas?
A única explicação no-la dá o cardeal - sua santidade.
Contudo, não devemos esquecer o vigário do lugar, um santo
homem que nos d.á magnífico exemplo".
Portanto, onde existem sacerdotes realmente dignos e
santos, a fé não vacila e a lâmpada não se extingue.
E quando alcançou Rovereto, - o caminho foi longo,
e marchou através de intérmina série de triunfos da fé e do
espírito onde ambas as fôrças eram ou pareciam debilitadas,
- o centro de infecção de tôda_ a região, a causa do mal
foi encontrada e extirpada. Reduzia-se, nem mais nem me
nos, ao infeliz vigário da cidade, Padre Domingos Quattrino,
muito fiel, aliás, ao nome que levava. '
1) Quatil'ino, na língua italiana, significa quatrim, dinhell"l,
fortuna. Daí a alusão do autor (N. do T.).
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Com êle estavam comprometidas na tramóia de práti
cas <le muito duvidosa moralidade quinze mulheres de
vida fácil que, segundo as leis do tempo, deviam ser
cruelmente punidas. Sentença e condenação terríveis! A
nós, homens civilizados, repugna tal ação, e ficamos fran
camente perplexos pelo fato de o cardeal não ter consegui
do mitigar os desumanos costumes. Era preciso dar um exem
plo àqueles tempos ferozes e bárbaros, infelizmente não
muito diversos dos nossos; é que hoje a crueldade se apre
senta sob vestes coloridas, como filantropia, patriotismo, pu
rificação da espécie humana, eutanásia e superpopulação;
no fundo, porém, a ferocidade moderna é igual, senão su
perior, à da tão temida Idade Média. O próprio cardeal,
com o coração despedaçado, viu-se obrigado a despojar o
infeliz sacerdote de tôdas as insígnias da dignidade eclesiás
tica e, chorando, pronunciou a sentença condenatória, qual
pai forçado a sacrificar o filho para salvar tôda a família;
apesar disso, o coração seguiu angustiado o filho perdido.
Não obstante tôda a energia empregada e os severos
exemplos infligidos, Carlos encontrou-se na necessidade de
lutar extremamente contra a heresia. Em Mesolco, entre cen
to e dez famílias, encontrou cinqüenta contaminadas pelo
protestantismo, e vinte e duas denunciadas por sortilégio.
Procedeu com elas muito prudentemente, não esquecendo
nunca a persuasão como arma principal. E quando regres
sou a Rovereto, pôde escrever: "Os etíopes mudaram a pele
e os nazarenos tornaram-se brancos!" Mas não se ilude de
mais: "Muitas coisas há ainda a fazer em Mesolco; ouvi
dizer que existem ali reuniões secretas e perniciosas; por
isso, se chegarem a Coira - a carta era remetida a um
sacerdote que o precedera àquela localidade - notícias que
prejudiquem minha visita e meus planos, podeis dizer a
Gallésio - o pretor de Coira, muito dedicado a Carlos, -
que eu nada fiz sem cortesia e sem discrição; aliás, nunca
tive a mínima intenção de ofender pessoa alguma".
Mas o bispo daquela localidade conseguiu impedir a
visita de Carlos; causava-lhe enorme fastio, pois o car
deal teria descoberto suas poucas boas qualidades e solici
tudes demonstradas em defender a causa da Igreja; escre
veu, por isso, uma carta que é obra-prima de engenhosa
tortuosidade:
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"A noticia de que o arcebispo visitará Coira deixou-me
arrebatado em êxtase, e só quando aqui chegar poderei
exprimir minha alegria. Não corresponder a seu miraculoso
zêlo seria monstruoso delito. Se Sua Eminência tem inten
ção de passar por minha cidade para alcançar o Castelo
dos Hohenems, os cidadãos de Coira recebê-lo-ão com
grandes honras quando entrar e quando sair; naturalmen
te, estarão bem longe de se opor a que lhes visite a igreja;
mas o que jamais permitirão é que fale ao povo, e também
se o tolerassem, eu o dissuadiria; conheço muito bem os
pensamentos das autoridades locais, que julgarão suas san
tas palavras atentado contra as liberdades democráticas.
Eu e meu clero, porém, não saberíamos como manifestar
nossa alegria ... " Carlos compreendeu logo e respondeu,
também em tom diplomático, que se sentia feliz pelas re
cepções que o bispo e o clero teriam tido a intenção de pre
parar-lhe; mas vivia demais ocupado na Mesolcina, e para
a festa de Santo Ambrósio, contava estar em Milão ...
A viagem naquelas regiões, adversas pelas hostilidades
dos homens, inclemência do tempo e asperidade dos lu
gares, foi certamente uma das mais difíceis e menos profí
cuas. A aflição se reflete em suas cartas. O território era
infestado por lôbos famintos; no passo de São Bernardino,
alcançado durante a noite, perderam o caminho e desfale
ceram os cavalos; quando, no dia seguinte, conseguiram
arranjar alguns jumentos, levantou-se tal ventania, que foi
necessário abandonar as cavalgaduras, quase sepultadas pe
la tormenta; e, a pé, como fôlhas batidas pela tempestade,
depararam ao longe a meta suspirada - Coira.
&te episódio repetiu-se centenas de vêzes nas peregri
nações apostólicas de Carlos Borromeu; a natureza e os
homens hostis sob a máscara da cordialidade; no primeiro
dia, cumprimentos de nunca acabar e cortesias que pare
ciam sulcar o caminho de floridos tapêtes; mas depois sur
giam as oposições mais encarniçadas e, muitas vêzes, don
de menos se podia esperar.
Em Coira, a dieta, que reunia nada menos de setenta
delegados heréticos, levantou-se contra o arcebispo, quando
mal chegara a Milão; estigmatizou-lhe os fatos sucedidos na
Mesolcina, pois "sem terem sido interpeladas as autoridades
locais, um cardeal ousara desprezar as leis do lugar e en-
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tregar às chamas cidadãos suíços, - referiam-se talvez ao
castigo do infeliz Domingos Quattrino - espalhando o ter
ror por tôda a região". Nem sequer foi esquecido o motivo polí
tico; afirmaram ser sua secreta intenção entregar os can
tões suíços cisalpinos à Espanha. Era preciso, portanto,
declarar nulos todos os decretos do insolente intrometido,
e pôr-lhe na prisão os enviados; e começaram logo prenden
do alguns jesuítas, que não foram postos em liberdade se
não após ameaçadora e enérgica intervenção do próprio
cardeal.
9.
SAUDADES DE ROMA
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meditação e a preparação à missa. As seis, montávamos a
cavalo e, a bom passo, não par:ávamos senão à noite, e quem
sabe onde!"
Uma noite, durante a romaria a diversos lugares santos
- Camáldoli, Verona, Vallombrosa, Monte das Oliveiras,
- extraviaram-se, êle e o pequeno séquito, nos Apeninos
toscanos, e pouco faltou que se precipitassem num profundo
despenhadeiro. Somente pela manhãzinha ouviram ao longe
o canto de um galo e conseguiram assim alcançar um gru
po de pobres moradias, - tão pobres, que nada puderam
oferecer aos famintos peregrinos. Felizmente, daí a pouco
passaram quatro burrinhos guiados por dois mercadores,
levando um pouco de pão e queijo; dessa forma, ao menos
por algumas horas, saciaram a fomé' que há tanto os
devorava.
Quando chegou a Roma para o jubileu estabelecido
por Gregório VIII, foi acolhido pelo povo e pelo Papa com
igual entusiasmo. E' que sua fama de santidade e inflexibi
lidade na defesa da fé, precedera-o à capital da cristandade,
com a legendária narração de suas emprêsas. E César Ba
rônio - citemos um exemplo entre tantos - não ficou con
tente até conseguir apoderar-se dos sapatos do santo, gas
tos, rotos e miserabilíssimos, como se pertencessem ao mais
ínfimo pobrezinho, mas que haviam calçado seus pés du
rante a peregrinação! Era sempre o "Bom Romeiro" que
caminhava os caminhos do mundo, qual prelúdio das vias
do céu!
Perguntando o Pontífice ao Conde Gallarate por que
os milaneses tinham vindo tão numerosos a Roma para o
jubileu, respondeu o nobre terem sido arrastados pelo exem
plo de Carlos. Ao que Gregório não pôde deixar de excla
mar: "Mas quem pode aspirar a tão grande santidade?!"
A seus passos de peregrino, como o chamariz encantador
que não engana nunca, acorrem nobres e plebeus, e, por
quanto procure fugir, por quanto queira que tôdas as home
nagens sejam dirigidas a Jesus Cristo e não a sua pessoa,
quantos há que se arrastam no pó para lhe beijar as vestes!
Certo dia, uma mulher, vendo-o tão humilde entre os res
plendores da santidade, quase pronunciando os decretos da
Igreja, chamou-o santo e prostrou-se aos pés para beijá-los.
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Também nessa visita não lhe faltou o senso prático
que já percebemos desde a sua infância. Até que se tratou
de jubileu, não quis saber de outra coisa senão de orações,
visitas às igrejas, jejuns e meditações na própria cela; a
única distração que se permitia era observar e admirar o
estilo dos templos mais antigos, os púlpitos, os batistérios,
tendo por guia Otaviano Foréstio, desenhista de arquitetu
ra. E antes de retornar a Milão, exigiu do Pontífice muita�
indulgências para os diocesanos, mil escudos para o seu
semin:ário e outros mil para o colégio metropolitano; além
da faculdade de dispor de outros bens em obras de piedade,
e a licença de introduzir o rito ambrosiano em tôda a diocese.
Uma de suas maiores e contínuas paixões foi a das ro
marias. Em quantos santuários não estêve Carlos! E em
tempos que, como temos visto, tornavam o viajar desagradá
vel, quando não impossível. Da abadia de Polione à de
Camáldoli, de Verna a Loreto, de Loreto a Nossa Senhora
da Pedra de Locarno, da Senhora dos Eremitas em Ein
siedeln à Madona de Tirano, sem contar as freqüentes vi
sitas ao êrmo de Varallo, e aos lugares santificados da Itália.
Todos êsses itiner.ários constituíam sagrado empenho para
aquêle Romeiro de espiritualidade sempre ardente, qual
chama inextinguível.
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10.
O SUDARIO DE TURIM
203
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Encontrava-se ainda nessa cidade, quando Carlos, saído
apenas dos horrores da peste e todo inflamado pela lembran
ça da paixão de Cristo, decidiu visitar Chambéry para
prostrar-se diante da imagem viva e verdadeira dos sofri
mentos do Filho de Deus. Já dispusera tudo para realizar
o longo e fatigoso trajeto através dos Alpes, quando Ema
nuel Felisberto, duque de Sabóia, que muito admirava o
grande prelado milanês e via apresentar-se a feliz ocasiãd
de transportar o Sudário para Turim, presenteando-o à ca
pital de seus estados finalmente reconquistados, deliberou
fazê-lo imediatamente, convidando o arcebispo de Milão a
Turim como convidado de honra e hóspede da cal'!a
principesca.
Carlos aceitou o convite com muita alegria e preparou
se com particular zêlo e cuidado. Escolheu doze entre os
mais íntimos colaboradores que o acompanhassem, a fim de
tornar a romaria quanto mais possível semelhante às via
gens de Jesus Cristo com seus apóstolos pelas estradas da
Palestina. Reuniu-os na capela arquiepiscopal em presença
de tôda a família, explicou-lhes o escopo da romaria que
estavam para empreender, e comunicou o horário que de
veriam seguir - o calendário de marcha, dir-se-ia hoje; o
qual, como veremos, não era lá muito cômodo ...
Os piedosos viajantes deviam levantar às quatro horas
da manhã, celebrar ou assistir à santa missa em qualquer
lugar onde se encontrassem, e, a seguir, também se estives
sem na mais pobre igreja, recitar as primas e as têrças do
ofício; só depois de tudo isso, entoando as orações do Iti
nerário, punham-se a caminho. Durante a viagem, duas
horas de meditação sob a direção do Padre Adorno, um
especialista na matéria, e no fim recitavam o rosário com
pleto em voz alta e cadenciada, detendo-se em cada um dos
quinze mistérios; e se, para as refeições, não se houvesse
atingido a meta, acrescentavam a recitação dos salmos, ou
qualquer outro entretimento espiritual.
Chegados à etapa predeterminada, ingressavam na igre
ja paroquial, rezavam, ajoelhados, as sextas e as noas, e
finalmente era-lhes distribuída a frugal refeição, sempre
acompanhada por leituras espirituais. Punham-se a caminho
depois de ter orado RO templo e de ter recitado as vésperas;
e novamente, duas horas de meditação, os salmos peniten-
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dais e rezas até altas horas da noite. Nenhuma parada para
admirar as belezas da natureza. As viagens tinham por
finalidade um exercício de piedade, e não uma deleitante e
agradável distração. Alcançada o têrmo noturno, novas ora
ções na igreja e canto das completas; após a sóbria ceia,
vinham as diversas conferências sôbre as meditações do
dia seguinte. Por fim, o cardeal aspergia os companheiros
com 1água benta, e todos se retiravam ao quarto destinado,
com a licença de escolher a hora para as matinas e as lau
des; e é para crer que, depois de tudo isso, todos ador
mecessem ...
Com êsse programa, o cardeal partiu de Milão a 6 de
outubro de 1578, vestido de hábitos pontificais, após ter cele
brado a missa e benzido os cajados dos peregrinos e as mãos
que os deveriam empunhar. A seguir, ladeado pelos doze,
encaminhou-se para fora da cidade, seguido pelo capítulo
em pompa magna, pelo clero e por muito povo. Em Porta
Vercellina depôs os trajes pontificais e revestiu os violá
ceos, próprios dos peregrinos; beijou então a todos os cô
negos, e recebeu, por sua vez, o beijo fraterno; e tomando
de seu cajado, partiu em direção de Novara. Foi uma cena
deveras comovente; somente o arcebispo não tinha a face
úmida pelo pranto; a fortaleza de ânimo e o domínio de
si mesmo, confirmaram ainda uma vez a excelsa qualidade
de sua fé. O Arcipreste Fontana, lembrando aquela cena,
exclamava: "Estremece-me ainda o coração de enterneci
mento ao lembrar o dulcíssimo abraço que recebi em Porta
Vercellina, na hora da despedida. Houve talvez alguém de
coração tão duro e insensível, que não tenha chorado diante
do amor imenso de tão bondoso pai?!"
• •
O trajeto realizou-se etapa por etapa, conforme o de
sejo do cardeal. A primeira em Sedriano, a segunda em
Trecate, onde lhe veio ao encontro, realmente inesperada,
uma procissão - a primeira das tantas que encontraria na
ida e no retôrno - de religiosos e populares, levando círios
nas mãos, através das vielas iluminadas, como se fôra gran
de festa. "Julgava-se feliz - diz Giussano - quem conse
guia tocar nos trajes do grande santo e receber a bênção;
os pais e as mães corriam com os filhos nos braços para
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que fôssem abençoados, movidos pela grande fé que depo
sitavam em sua virtude".
A hospitalidade foi oferecida pelos frades do lugar, e o
cardeal, sem tocar em alimento algum, leu aos outros, du
rante a refeição, as vidas dos santos; somente depois de mui
tas insistências por parte do Padre Adorno, aceitou uma pe
quena maçã e um pouco de vinho. E' oportuno record9ir,
para reconfirmar o absoluto desprendimento de Carlos
nessa e noutras romarias, que tôdas as despesas estavam
a cargo pessoal do arcebispo, e não da diocese, donde pro
vinha a peregrinação; unicamente nessa vez, o conde de Ro
magnano, enviado por Emanuel Felisberto para receber
o cardeal de Milão em Vercélli, não permitiu que despen
desse coisa alguma, sendo êle e o séquito hóspedes da côr
te de Sabóia. A tais desvelos foi fôrça ceder.
Em Trecate passou tôda a noite em claro; as confis
sões prolongaram-se até o amanhecer, quando o cardeal
distribuiu a comunhão à imensa multidão de fiéis. Todos
pensavam que parasse em Novara, também por haver cho
vido a cântaros e por estar o arcebispo com os hábitos a
gotejar. Causava dó vê-lo em tão lastimável estado, total
mente encharcado e com as vestes pegadiças. Mas êle, ape
sar de assistir na catedral, levado pelo entusiasmo popular,
à solene função com cantos, músicas e homenagens do bispo
e do clero, quis prosseguir viagem até Camerlate. Já eram
as oito da manhã; nada aceitou como alimento; somente
aos companheiros permitiu sóbria refeição.
Vercélli acolheu o Bom Romeiro com festas, cantos e
luzes na tristeza do outono hibernal; aqui, além dos legados
do duque Emanuel, havia os bispos de Vercélli, Francisco
Bonôni, e de Casale, com a respectiva comitiva de cônegos;
e todos quiseram acompanhar os peregrinos milaneses em
sua viagem pedestre até Turim.
O terceiro dia de viagem foi o mais penoso, por causa
do péssimo estado das estradas alagadas que, por vêzes,
desapareciam sob as águas. Todos apareceram em Sigliano
em condições dignas de compaixão; quem, contudo, se en
contrava em pior situação era Carlos; tinha as pernas in
chadas de tal modo, que j,á não lhe era possível permanecer
em pé. E, como sempre, resolveu o problema ràpida e ener
gicamente - foi logo para a cama e em jejum; de manhã,
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foi o primeiro a levantar-se, robusto e vivaz, pronto a reco
meçar imediatamente o trajeto; os colegas não cabiam em
si de estupefação; sonolentos e friorentos, não conseguiam
compreender onde pudesse buscar tão grande resistência
física.
Finalmente, a 9 de outubro, os piedosos viajores descor
tinaram a Terra Prometida; desta vez, porém, não era se
não a pequena capital dos Estados Saboianos, elevada recen
temente à categoria de cidade. A oito milhas da metrópo
le, aguardavam Mons. Della Róvere e as altas personagens
da côrte. Giussano narra que, em Chivasso,. almoçou-se em
pleno campo; como fôssem poucas as cadeiras, suficientes
apenas para o cardeal, os bispos e os doze romeiros, todos
os cavalheiros da côrte permaneceram de pé, e tomaram
a refeição debaixo da chuva para que, sentados e abrigados,
estivessem somente os homens de Deus.
Pouco depois, cem cavaleiros fardados militarmente,
com grandes penachos sôbre os elmos, escoltaram, garbosos,
o cardeal. Mons. Della Róvere, entrementes, correra à capi
tal para advertir o duque da próxima chegada; retornan
do, colocara-se vizinho a Carlos, flanqueando-o com o clero
diocesano quando, juntamente com o Cardeal Guido Fer
réri, ingressavam na cidade. A quatrocentos metros da
Porta Palatina, ladeado por barões e dignitários, estava o
duque com o filhinho Carlos Emanuel, esperando a santa
comitiva. O vencedor de São Quintino ajoelhou-se devoto
na lamacenta estrada diante do grande cardeal, e pediu
para si e para o duquezinho a bênção. A seguir, entre no
bres de couraça e espada, cônegos em capa magna e cléri
gos jubilosos, Carlos Borromeu entrou na capital do Sudá
rio. A multidão, contemplando a face extenuada e emagreci
da do cardeal, deixou-se subjugar pelo halo de santidade
que o circundava. Prorrompeu em altos brados que exce
deram o próprio tiroteio das bombardas é as salvas dos ar
cabuzes; e sempre aplaudindo, ajoelhou-se reverente, como
quando ingressou, voltando dos campos flamengos, vence
dor o seu chefe.
Fôra destinado a Carlos, como habitação, um pequeno
palácio vizinho à residência do príncipe, esplêndidamente
equipado; mas o cardeal nem sequer quis saber de visitá-lo
para alimentar-se, ou repousar alguns momentos. Viera
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para adorar o Santo Sudário, dever êste que devia cumprir
imediatamente
A efusão e comoção que demonstrou diante da santa
face foi tanta que Giussano escreveu: "Quais orações te
nha feito e quais promessas o coração tenha cumprido, so
mente Deus o sabe; eu não me sinto capaz de descrevê-las!"
A cidade viveu três dias de solenidades e alegrias mís_.,
ticas, que foram lembradas por muitos anos. A multidão
que acorreu para contemplar a Sagrada Face, exposta sôbre
um palanque na praça do castelo, foi simplesmente enor
me; havia peregrinos até dos vales piemonteses, onde o
culto protestante ainda dominava. O cardeal pediu e obteve
do duque que um dia inteiro fôsse dedicado a essas ovelhas
transviadas, a quem não recusou palavras paternais e per
suasivas. A maior parte do tempo, porém, era empregado
por Carlos em venerar a preciosa Lembrança; deixava-se
levar, por verdadeiros êxtases que se refletiam no semblan
tE' sempre mais divino, e nas palavras ardorosas que co
moviam e convenciam.
Antes de Carlos deixar Turim, o duque Emanuel Felis
berto chamou a si os dois filhinhos, Carlos Emanuel e Ama
deu, ajoelhou-se aos pés do grande bispo de Milão e supli
cou que os abençoasse: "Espero agora que minhas coisas
prosperem verdadeiramente, pois fomos visitados por Vossa
Senhoria".
Assim, depois de um último e amoroso adeus ao querido
Sudário, os Bons Romeiros retomaram seus bastões. Todos,
menos um. Em vão, São Carlos procurou o seu. Não o encon
trou. Uma esperta dama da sociedade turinense, que tivera
por custódia todos os cajados dos peregrinos, havia-se apo
derado dêle. Nem o cardeal quis que se fizessem excessivas
indagações, afirmando esperar que o pobre bastão seria
útil a quem o possuísse na hora decisiva do grande passo
rumo à Eternidade.
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PARTE V
A IGREJA DA CARIDADE
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1.
A VINGANÇA DE DEUS
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"cavaleiro pálido", o mais belo e famoso entre os jovens
príncipes da Europa. E, principalmente, o airoso môço es
tava aureolado pela glória de campeão da cristandade, três
vêzes vencedor da Meia-Lua, em Apujarras, Lepanto e Túnis.
Dirigia-se agora para Flandres, a fim de assumir o
comando de um exército que perdera o chefe, após a der
rota infligida pelos inglêses às tropas de Sua Majestade
Católica.
Milão endoidecera de alegria. Carlos, ao invés, ocul
tou-se silencioso e como que ausente de tudo; pressagia
va já, ainda que obscuramente, que atrás daquelas festas,
nas quais a população parecia esquecer as penitências
pouco antes sofridas por amor de Cristo, vinha-se apro
ximando algo de tremendo e ameaçador para sua estreme
cida cidade.
Haviam começado a circular, desde os últimos dias do
jubileu, certas vozes de peste, tanto que o governador, mal
grado seu, houvera por bem suspender a chegada de gran
des multidões. Mas a vinda de Dom João da Áustria banira
repentinamente qualquer precaução. Viesse para Milão
quem quisesse, contanto que não faltassem alegrias, festas,
bailes e distrações! Somente o cardeal não alimentava mui
tas ilusões. Naquela espécie de forno sem ar que era seu
aposento sob o teto do palácio arquiepiscopal de Milão, re
zava e se penitenciava para afastar o perigo que percebia
vizinho. Em Monza tinham-se verificado casos de certa doen
ça "que os médicos chamam febre aguda, mas se enganam",
como escrevia com muita simplicidade o arcebispo. "Estarão
talvez os milaneses tão esquecidos das bênçãos com que
Deus os cumulou, a ponto de serem agora punidos? Os
magistrados reforçarão, sim, os guardas nas portas e as ron
das dos soldados, mas será demasiado tarde!"
Entretanto, nas festas para a recepção do príncipe, Car
los não estava presente. Encontrando-se o bispo de Lódi às
portas da morte e reclamando sua preciosa presença, não
podia deixar de socorrer o amigo. A meio caminho de Milão
a Lódi, porém, alcançou-o um mensageiro para anunciar-lhe
que o prelado falecera, podendo então retornar para assis
tir às solenidades. Não importa; iria rezar sôbre o féretro
do amado colega; assim, estaria longe de Milão a 11 de agôs
to de 1576, dia do ingresso de Dom João, e, de tal modo, as
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festas seriam suspensas. No fundo de tôdas aquelas exalta
ções entrevira o que teria acontecido - revoltas, assassínios
e imoralidades. Tanto para não se afastar das belas tradi
ções itálicas daqueles tempos, somente na capital lombar
da verificaram-se trinta homicídios! A cidade saíra havia
pouco de um dos tremendos flagelos do tempo, - um grave
período de carestia, de que perduravam ainda os vestígios
aqui e acolá.
Muitas tinham sido as causas que haviam provocado tal
período de escassez, mas a maior, sem dúvida, fôra a pas
sagem das tropas destinadas a uma das habituais guerras
endêmicas entre a França e a Espanha; e a conseqüência
sempre a mesma - saques vandiálicos por parte dessas hor
das mercenárias, sem fé nem lei que não fôssem as do rou
bo e da violência; os jovens acorriam sob bandeiras fictícias,
preferindo à vida tranqüila e fecunda dos campos a das
aventuras militares; outro motivo era a incúria do govêrno
espanhol, que arrancava dinheiro de qualquer fio de erva,
sufocando tôda a veleidade comercial. Nem se devem es
quecer a sêca, os grandes calores sem chuvas do verão, e os
rígidos invernos.
O inverno de 1570 fôra particularmente duro e frio, de
tal forma que, com a escassíssima colheita do ano anterior,
os agricultores se encontraram muito cedo em grandes apu
ros. E então, que restava a fazer aos pobres infelizes? Cor
rer para a cidade, pois ali havia muita gente, havia quem
mandava, havia os ricos que possuíam nos cofres o suspira
do dinheiro; como se êles tivessem o poder de extrair trigo
dos celeiros vazios. Naturalmente, a tanta gente faminta,
ninguém queria prestar ouvidos, e havia um passar de res
ponsabilidades do prefeito ao senado, do senado ao vigário
de provisão, do vigário ao alcaide. E quando se chegava ao
governador, êste tocava as raias da loucura, emanava de
cretos e mais decretos, ameaçava e estrepitava, mas as pro
vidências - quando fôssem tomadas! - eram tôdas tardias
e ineficazes; e os gritos não produziam outro resultado se
não acrescer a confusão.
Por tudo isso, o cardeal, talvez o único que não havia pro
vocado a carestia e que não era obrigado a prover, com o
sólito empenho, atirou-se à obra com tôda a fôrça e o en
tusiasmo que o coração lhe ditava; e sempre com aquela
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energia feita de zêlo e caridade que o distinguia. Entremen
tes, deu ordens ao esmoler da casa, propenso a apertar os
cordões da bôlsa, de alargá-la quanto mais fôsse possível;
e começou a recolher pão, arroz e legumes; beneficiou pri
meiramente os mosteiros e os lugares pios, onde, aumen
tando dia a dia a miséria, as irmãs e os recolhidos arrisca
vam perecer corno "passarinhos esquecidos no ninho".
Mas corno já não bastassem os recursos da cidade, re
correu a Pavia e a Parma; adquiriu ali sessenta alqueires
de cevada e duzentos de trigo; e para combater a desocupa
ção, começou mesmo então os trabalhos para a construção
do grande seminário. Bascapé e Giussano estão concordes
em afirmar que o mais pitoresco acampamento da miséria
estava situado ao redor do arcebispado. E era também o
mais vivo e animado, porque sob os pórticos fumegavam
deliciosamente as panelas. Pode-se pensar qual efeito produ
zissem sôbre tantos pobrezinhos entregues à graça de Deus,
aquêle fumegar e aquêle perfume. Giussano calculou tam
bém o número dos infelizes que eram socorridos cotidiana
mente pelo arcebispo; parece que superavam a casa dos
três mil. E isso por v,ários meses.
As provisões do cardeal, porém, apesar de grandes, exau
riram-se ràpidamente e o esmoler, certo dia, apresentou-lhe
a bôlsa completamente vazia, dizendo sem muitos rodeios:
"E agora quem proverá?" São Carlos, preanunciando Cot
tolengo de três séculos, exclamou: "A Divina Providência!"
No entanto, começou por contrair dívidas com tanta arte
e gentileza, que quem emprestava, sentia-se quase obriga
do a fazê-lo. Isso porque o arcebispo, rígido e altivo com
os potentes, sabia depois estender a mão com humildade
cheia de graça, diante da qual ninguém sabia resistir.
O próprio governador de Milão deu o exemplo, - que
em um espanhol sovina e ,ávido de ouro era algo milagro
so! - distribuindo um vintém por dia a cada necessitado.
Hoje, dadas as condições financeiras que nos cercam, a im
portância nos faz simplesmente sorrir; mas não nos deve
mos esquecer que é preciso multiplicar por mil ou dois
mil o valor atual do dinheiro, e compreenderemos fàcil
mente então que qualquer pobre podia adquirir muito bem
alguma coisa para vestir e alimentar-se. Mas o que en
chia os cofres vazios do arcebispado era a esmola secreta;
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chegava de tôda a parte, sem que se conhecesse a proce
dência, como aconteceria precisamente com São José Cot
tolengo - a oferta feita por puro amor de Deus e pela
excelsa virtude de seu servo.
O coração de Carlos - imagem do Coração de Cristo
- não podia permanecer indiferente ante os sofrimentos
alheios; via-se então o arcebispo socorrer a todos os po
bres, também os que viviam fora da cidade; e onde aparecia
sua emagrecida e cansada pessoa, sempre, porém, infla
mada de um fogo espiritual que lhe animava o andar, che
gava também a bênção de Deus.
Apesar de tudo, as provas maiores não haviam ainda
chegado. A carestia, a que bem ou mal se procurara reme
diar, seguiu um inverno rígido em extremo; nevadas espês
sas e contínuas ameaçavam derribar muitas das casas mais
pobres; nem foram poucas as que desabaram. A tanto es
trago, não puderam prover os magros recursos do cardeal.
Carlos ajudou um pouco, rezou muito, jejuou e ordenou
preces públicas. As neves findaram sem demasiados danos,
a colheita prometeu bem, e podia-se esperar que o pior ti
vesse passado. Ao invés! ...
Ao invés a carestia "não foi que a mensageira, - es
creve Franceschi - um pouco antecipada, da outra sua
terrível irmã de face purulenta que se precipitáva freqüen
tes vêzes, de asas abertas, sôbre a infeliz Itália, a peste de
1576. Ademais, dessa vez, para maior escárnio, entrou
na cidade tôda adornada, nos braços de gente folgazã e
irrefletida, enquanto rufavam os tambores, e os milaneses
se comprimiam ao redor da cavalgadura de um príncipe
ilustre; ingressou, e começou logo a ceifar e a recolher".
A 11 de agôsto de 1576, a peste, tétrica e negra, fêz
sua aparição exatamente no quarteirão da Porta Cornasina,
não longe do castelo e dos amenos jardins de Ludovico, o
Mouro. As festas para Dom João da Áustria haviam apenas
começado, e a morte apresentou-se terrível e ameaçadora;
alguns cidadãos caíram por terra a cem metros do lu
gar onde devia passar a cavalgada triunfal do vencedor
de Lepanto. As convulsões e a côr térrea do semblante, ime
diatamente recoberto por chagas purulentas, não deixaram
dúvidas sôbre a natureza do mal. Era a peste, e das piores!
O terror serpeou violento e desesperador.
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O jovem príncipe, advertido em tempo, não permane
ceu mais de trinta e seis horas na cidade tão severamente
castigada. Partiu logo no dia seguinte para Gênova, e não
quis ouvir razão alguma para demorar-se, nem que fôsse
a certa distância da infeliz metrópole. Aquêles mesmos que
apresentavam tais convites, temiam que Dom João os acei
tasse, tão grande era a vontade de cortar, por assim dizer,
a corda, e deixar rédeas livres à doença, contanto que sal
vassem a própria pele!
A fuga foi geral. Dom Antônio de Guzman, marquês de
Ayamonte, governador, conde, duque e vice-rei de Milão, o
grande chanceler, os senadores, os nobres, os burgueses, e
todos os que possuíam vilas na campanha, nos montes e nos
lagos, fecharam casas e palácios e fugiram da cidade con
taminada. Dom Antônio dirigiu-se para o famoso Castelo de
Vigevano, a bem trinta léguas de Milão, cujos arredores
ofereciam muitas possibilidades para a caça. Assim agiam,
em geral, os governadores espanhóis durante tôdas as ca
lamidades do povo paternalmente governa.do pelo Catoli
cfasimo Rei!
2.
NA LUTA PELA VIDA
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umca resposta um olhar creio de aflição e decisão, de tal
forma que não ousou mais replicar.
No palácio encontrou os decuriões e os oficiais espa
nhóis que não haviam tido a ousadia de fugir; e como não
tivessem recebido ordens precisas nem soubessem o que
fazer, todos em uníssono suplicaram a Carlos de assumir
êle a responsabilidade do comando!
"Há já muito tempo - respondeu - que resolvi jamais
deixar de fazer alguma coisa que pudesse servir ao meu
povo. Peço-vos, sobretudo, de não me tirar a coragem. Que
não me impressione com o exemplo daqueles que, nasci
dos e crescidos na cidade, a abandonam apressadamente no'
momento em que há mais necessidade de ajuda!" Palavras
severas, mas verdadeiras, que não suscitaram reação al
guma nos que as entenderam, senão a de realizar algo que
não se fizera antes. Alguns sugeriram de fechar as portas
aos estrangeiros. O arcebispo, não sem aspereza e ironia na
voz, replicou que já era tarde demais, e que as portas, caso
tivessem que ser cerradas, deviam tê-lo sido antes, ou seja,
às louca s companhias folgazãs aparecidas imediatamente
depois do jubileu.
Proibiram-se, sim, durante o período das festas reli
giosas, procissões e cerimônias públicas, a fim de que não
fôssem prejudicados, por ameaça de contágio, os dias de
dicados a Dom João; mas logo depois, haviam chegado
tropas de soldados e vagabundos que surgiam das mais di
versas paragens; foram êles, certamente, os portadores do
terrível mal. A única esperança estava agora em invocar a
Deus, com as orações mais ardentes e as mais fervorosas
penitências. E Carlos entregou-se logo a uma vida sempre
mais santa e severa. Seus bispos e sacerdotes que o seguiam
de perto, haviam conseguido que aceitasse, como leito, um
grande saco cheio de palha e grosseiros lençóis de cânhamo,
logo consumidos quando de sua lixiviação. Durante as pou
cas horas de repouso, estendia-se sôbre duas pranchas, ou
sentava-se em velha cadeira de madeira; seu alimento re
duziu-se somente a pão, legumes e água.
Ofereceu-se heroicamente como vítima de expiação pe
los pecados da grei � preparou-se à morte solenemente, fa
zendo testamento e pondo em ordem todos os afazeres. A se
guir, sem resguardo nenhum, começou a permanecer fora o
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<lia todo, em meio dos atingidos pela peste, no calor sufo
cante, que desenvolvia, agigantando-os, os germes da en
fermidade, sob o pesado céu esfogueado, caminhando des
calço nos vários hospitais a visitar os infelizes doentes. A
multidão amedrontada apertava-se-lhe ao redor, esperando
dêle quem sabe qual milagre; ajoelhava-se para receber a
bênção, procurava tocá-lo e beijar-lhe as vestes, que consi
deravam segura salvaguarda contra a infecção.
Perto da Porta Veneza, a nordeste da cidade, fôra cons
truída por Ludovico, o Mouro, a leprosaria. Tratava-se de
imponente edifício, percorrido na parte interna por longo
pórtico, no qual se abriam duzentos e oitenta e oito quartos.
O projeto remontava aos anos de 1466 e 1485, durante a
explosão de duas tremendas epidemias; mas somente em
1488 fôra colocada a primeira pedra, e os trabalhos pros
seguiram tão lentos, que na pestilência de 1524, foi neces
sário edificar muitos alpendres; providência que, diga-se
a propósito, foi tomada também para a mortandade mais
feroz que as anteriores, esta de 1576. Nesta ocasião introdu
ziram-se várias modificações. A primeira foi de dividir o
hospital em três grandes repartições - uma para os suspei
tos, outra para os atingidos e a terceira para os convales
centes. E Carlos, quando findar o morticínio, erigirá no
centro uma igrejinha, moderna diríamos hoje, - tôda aber
ta e octogonal, de modo a ser visível <le qualquer parte do
Lazareto.
O asilo para os enfermos - quando apareceu a peste
-- existia, e edificado com bastante critério, mas, no momen
to, não subsistiam senão os muros; pode-se, por isso, imagi
nar como se encontrassem os recolhidos, ali enviados pelo
Tribunal de Saúde! A decisão era óbvia e nada se lhe
podia objetar; uma vez, porém, abrigados naquele lugar
privado de tudo, quem, após terem sido transportados em
padiolas e abandonados na porta pelos coveiros, quem, re
petimos, os assistia?
Eram cenas simplesmente ·horrorosas! Quem não era
martirizado pela peste, era atormentado pela fome e pela
sêde. Pois ninguém podia- penetrar naquele inferno - nem
parentes, nem amigos. Além do mais, os sãos, pelo feroz
egoísmo que é a lei da conservação, pela qual: "pereçam
os outros contanto que me salve!", não se aproximavam
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daquele lugar de morte e dor. Deviam medicar-se entre si.
esperar que o socorro viesse dos poucos parentes corajo
sos, - quando vinham e quando estas pessoas estavam em
condições de poder prestar auxílios. E eram sepultados sem
o confôrto de uma palavra de esperança e de fé. Sem que
um sacerdote pudesse colar o crucifixo a seus liábios ardentes.
A medida mais bárbara que o Tribunal de Saúde tomou
na ocasião, - tanto cruel quanto, porém, inevitável - foi
que ninguém, a não ser os infectos, pudesse entrar no re
cinto da morte. Quando Carlos tentou violar o decreto, foi
imediatamente afastado, e não pôde por razão alguma criar
uma exceção à cruel regra. Narra-nos Bascapé, que o acom�
panhava naquelas visitas: "Viajando nós, por fora, ao redor
do hospital, os doentes bradavam desesperados e, aparecen
do nas janelas, choravam a própria sorte, quem pelas do
res que o atormentavam, quem por lhe haver falecido o vi
zinho ou por estar em agonia diante de seus olhos; ouvia
mos unicamente gritos comovedores e ferozes. Aqui e aco
lá percebíamos queixumes que cortavam o coração: "Pai,
todos nos abandonaram; dai-nos, ao menos, vossa bênção!"
Centenas e centenas de contaminados estavam aglome
rados juntos; os vivos com os mortos, sem cama, sem ali
mentos e sem enfermeiros. E como os coveiros não conse
guiam sepultar todos os cadáveres, êstes, em estado de pu
trefação e fétidos, atulhavam o terreno.
3.
A PRUDf:NCIA QUE NÃO E' COVARDIA
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Despojados de tudo, atormentados por muitíssimas tribula
ções, privados também dos confortos espirituais; e não há nem
sequer algum sacerdote que deseje socorrê-los; mas se a cle
mência divina não prover de outra maneira, sei muito bem
o que devo fazer".
Repetirá os mesmos conceitos numa carta escrita na
queles dias: "Parece que êstes pobrezinhos me considerem
a causa de todos os seus males. Seus clamores, e mais, seu
silêncio, me exprobram a indolência. Eu tardo em prestar
auxílio, enquanto deveria com o exemplo induzir os outros
à piedade. Não demorarei. Com a ajuda de Deus, cumpri
rei o dever até o fim". Bem pouca coisa restara de vendível
e de algum valor nos palácios arquiepiscopal e Borromeu;
tudo foi vendido sem demora ou trocado por alimentos,
cobertores e vinho, destinados logo à leprosaria. Um sacer
dote suíço, muito pr.ático em matéria de epidemia e peste,
foi chamado a Milão para organizar a assistência. Chama
va-se Padre Leonardo e era imune do contágio - assim,
ao menos, se dizia e se acreditava. Depois de seu utilíssimo
e profícuo trabalho na cidade, foi enviado para Bréscia,
tendo sempre sobrevivido a qualquer contaminação, e isen
to de todo o perigo. Certa manhã foi encontrado morto paci
ficamente, em prado atapetado de flôres, na margem de
um rio; nunca se veio a conhecer a causa de sua morte, mas
é certo que não foi de peste.
Carlos dirigiu, entrementes, um ardente apêlo aos sa
cerdotes milaneses: "Nós não temos duas vidas, mas uma só;
devemos, portanto, consumi-la por Jesus Cristo e pelas al
mas; não como desejamos nós, mas no tempo e no modo
queridos pela Divina Providência. Mostraríamos grande pre
sunção e negligência em nosso dever e no serviço de Deus,
se tal não fizéssemos, com a desculpa de que �le não nos
poderia substituir por outros mais capazes de trabalhar por
sua glória. Isso não significa que deveis menosprezar os re
cursos humanos, como preventivos, remédios, médicos e
tudo o que puder servir para manter afastado o contágio;
pois tais meios não são em nada contrários a nosso dever".
Prudência, sim, mas não_ a que se chama mêdo.
E dava o exemplo. A quem - e eram muitíssimos! -
o aconselhava a cuidar-se, com a desculpa, válida em tempos
de tranqüilidade, mas inútil em épocas difíceis, que "se o
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pastor fôr ferido, a grei será dispersa", Carlos respondia:
"Desde o início decidi pôr-me inteiramente nas mãos de
Deus, sem desprezar, contudo, os remédios ordinários -
uma esponja ensopada no azeite ... alguma erva aromáti
ca na bôca!" Paliativos que nos fazem sorrir, mas que cer
ta eficácia tinham. Os sacerdotes de Milão, porém, pensan
do antecipadamente com a cabeça de Don Abbondio - "se
alguém não tiver coragem, ninguém lha pode dar!" - não
correspondiam aos insistentes convites do arcebispo, como
teria sido seu desejo. "Encontro-me em graves angústias!"
exclamava abatido diante da má vontade da maioria. Uns
fugiram, outros permaneceram, mas se recusavam a acom
panhá-los nas inspeções aos doentes, principalmente ao L�
zareto. Esperavam que também êle, abandonado por todos,
não resistisse. E' que desconheciam êsse intrépido paladino
da fé e da dor. Finalmente seu exemplo conseguiu con
vencê-los.
Os capuchinhos foram os primeiros a se dirigir ao La
zareto. Outros, vencidos pela generosidade de Carlos, tam
bém os imitaram. E nenhum dos religiosos, entregue a obra
tão santa, foi golpeado pela terrível moléstia.
Frei Jaime, da mesma Ordem, que prestava serviços
no hospital, deixa-nos esta descrição dos dias de Carlos:
"Vem muitas vêzes ao Lazareto para consolar os enfermos;
entra nos tugúrios e nas casas particulares para falar aos
doentes, confortá-los e prover-lhes tudo o que é necessário.
Nada o amedronta, e é inútil tentar fazê-lo. Expõe-se demais
ao perigo; mas como, por graça especial de Deus, foi preser
vado do contágio, diz que não pode agir de maneira dife
rente. Na verdade, a cidade não tem outra esperança e
confôrto".
Em seu testamento, deixara como herdeiro de tudo o
que lhe restava, o Hospital Maior de Milão; e já então es
colheu um mísero lugar onde pudesse um dia ser sepultado
entre os estremecidos mortos de peste; e se tivese morrido
então, sua vontade devia a todo custo ser respeitada.
Naqueles tempos, Frei Paulo Bellintáni, dos Menores
Capuchinhos, chegou quase a alcançar a fama do cardeal.
222
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Primeiramente foi-lhe confiada somente uma autoridade es
piritual no Lazareto, com a ordem precisa de nunca mais
sair, senão quando se extinguisse a epidemia. A habilidade
dêsse organizador chegou a tal ponto, que lhe foram confe
ridos - com grande alegria de Carlos, que se via nêle bem
representado - os podêres mais amplos, com o seguinte de
creto: "Ordenamos a qualquer pessoa estabelecida ou que
vier a se estabelecer nesse lugar, que, sob pena pecuniária,
privação dos bens, fustigações, surras de cordas, prisão, ou
então pena maior a nosso arbítrio, preste obediência, ajuda
e favor a êste Reverendo Frei Paulo".
Quanto aos médicos, não havia jeito de encontrá-los
em parte alguma. Refere o próprio Frei Paulo no Diálogo
da Peste: "Os médicos não se atreviam a entrar, e iam ao
redor do Lazareto; eu então incumbira uma pessoa de con
fiança e de espírito de sacrifício, de percorrer, por dentro,
quarto por quarto, visitando todos os enfermos, verificando
como passavam, e referindo tudo, da janela, aos médicos;
estavam êstes sempre acompanhados por alguém que ano
tava as receitas, o nome, o sobrenome e o número do quar
to; é que eu determinara numerar, para tanto, tôdas as ja
nelas; e o algarismo, depois, era colocado sôbre os remédios
e xaropes, para evitar confusões".
A técnica hospitalar, é preciso confessar, não era Lá
muito moderna; mas foi fôrça adotá-la, caso contrário ne
nhum clínico se teria aproximado da fatídica casa; e a des
culpa era convincente - penetrando no foco da maior in
fecção, sem dúvida nenhuma, teriam-na trazido para fora.
Quando o mêdo é mêdo, reveste-se de todos os trajes e des
culpas para não aparecer tal; apesar de tudo, conseguiu-se
uma espécie de organização médico-hospitalar, também se
completamente sumária e primitiva, e apareceram alguns
resultados positivos.
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4.
CADAVERES VIVOS
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A oração era contí111w e
intensa.
Assist indo os
doentes.
O
Lazareto.
Vestindo os
nus.
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Não nos podemos furtar de lembrar um fato profun
damente comovedor e horroroso. Foram postos, certa noite,
perto da igreja de São Gregório, numerosos cadáveres para
serem sepultados na cova comum, depois de terem sido,
com uma única função, abençoados pelo sacerdote. Ao ama
nhecer, quando o cura da paróquia levava o viático aos ago
nizantes, eis que do aglomerado dos cadáveres, ouve-se uma
voz que implora: "Também para mim, também para mim,
pelo amor de Deus!" O sacerdote, dirigindo-se apressado ao
local, conseguiu distinguir no grupo alguma coisa que se
movia e uma bôca aberta, com a língua ressequida estendi
da num supremo pedido. O pároco pôs a Sagrada Hóstia
naquela bôca desconhecida, e o moribundo, com um "Deo
gratias !" infinitamente resignado, estendeu-se sôbre a pilha
humana e não se moveu mais.
O mesmo fervor que Carlos comunicara a seus sacer
dotes, propagou-se naturalmente nos leigos, que se apresen
taram para também fazer algo e agir finalmente unidos
para o bem comum.
O arcebispado transformou-se no quartel-general da pes
te. Carlos recebia a todos de semblante sereno, examinava
lhes as aptidões e capacidades, e registrava tudo diligente
mente em seus conhecidos livrinhos, para usá-los em tempo
oportuno. As reservas para a batalha final e as tropas de
primeira aplicação constavam de homens e mulheres gene
rosos, e dos que já haviam melhorado do contágio e que,
por triste experiência própria, sabiam como comportar-se
com os atingidos. Carlos entregava a todos uma veste escura,
de pouco valor comercial; fazia-o, porém, com tanto em
penho, solenidade e fervor, que parecia agraciar os volun
tários com uma condecoração de altíssimo significado. Acom
panhava a oferta com duas palavrinhas suas, benzia a di
visa e o recruta, e os enviava em nome do Senhor.
As resistências maiores provieram donde menos se es
perava, - de seus íntimos e amigos. Como a pestilência
prosseguisse e se alastrasse sempre mais, achou conveniente
escolher, dentre os familiares, um grupinho seleto, que o
acompanhasse sempre e em tôda a parte; um manípulo, en
fim, feito de pessoas seguidamente dispostas, em suas con
tínuas visitas aos doentes mais repugnantes, a desempenhar
Vida de S. Carlos - 15 225
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encargos de confiança naquele mundo desconfiado de todos
e de tudo, expondo também a própria saúde.
Manifestara apenas o desejo e já se ouviam perguntas
dolorosas: "Quais seriam os desventurados destinados ao in
falível sacrifício?" E foi maquinada a conspiração. Ninguém
teria seguido o cardeal em sua loucura. O esquadrão da
morte não encontraria nenhum aderente entre seus amigos;
todos - como já vários o haviam feito - teriam deixadti.
seu serviço. Em alguns, contudo, aquela maneira forte era
sugerida também pelo desejo de impedir que o cardeal se
expusesse sozinho a uma aventura que lhe teria roubado
a vida.
Apesar de inícios tão pouco promissores, Carlos não de
sanimou; falou primeiramente a todos juntos e, a seguir,
individualmente, persuadindo-os a desistir daquela oposição
preconcebida e a tornar-se, pelo contrário, bons soldados de
sua santa cruzada; e, ou pela comoção, ou pelos raciocínios,
ou pela persuação de que, oferecendo-se a Deus, teriam sido
poupados, todos acabaram por aquiescer a seus desejos; e
tornaram-se tão dóceis e fiéis, que foi preciso repreendê-los
freqüentemente para que moderassem o ímpeto e o ardor.
Já se fizera tudo o que era possível, mas a peste conti
nuava a ceifar centenas de pessoas, quase. diàriamente; com
a chegada do inverno, ao invés de abrandar, progredia, e
juntamente a miséria, a terrível companheira da dor. Em
frio dia invernal, aglomerou-se diante da catedral, grande
multidão a chorar; servos que haviam perdido o emprêgo
por terem os patrões fugido precipitadamente; artesãos e
oper,ários desocupados pelo falecimento dos empresários, ou
por terem sido arruinados pela suspensão total do comércio.
Em seguida, como que instintivamente, os demonstrantes di�
rigiram-se tumultuosos ao palácio arquiepiscopal, sua últi
ma esperança.
Carlos ouviu o rumor das blasfêmias e imprecações, en
quanto se encontrava na capelinha a orar por seu povo; des
ceu sozinho, e a alguém que se lhe aproximou armado para
defendê-lo em caso de agressão, intimou duro e enérgico:
"Não se vai com armas no meio de quem tem fome, mas
com o pão e com a cruz!" E demorou-se carinhoso entre a
multidão dos pobres· esfomeados, irritados, descalços, trêmu
los de frio. No palácio não sobrara nem ouro nem prata;
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somente dos muros pendiam ainda veludos e preciosas ta
peçarias. O arcebispo, sem um minuto de hesitação, despo
jou tudo e, com esta roupa sui generis., mandou fazer vestes
e cobertores para aquela grei miserável e morta de frio.
"Eu estava presente quando os tecidos foram cortados e
transformados em vestes", afirma o médico Luís Settála no
processo de canonização.
"Os milaneses, - naITa uma testemunha ocular - não
obstante as numerosas desgraças, não haviam perdido por
completo o espírito humorístico, e se divertiam não pouco
ao ver os mendigos que se pavoneavam pelas estradas em
estranhos hábitos em forma de saco, cortados de esplêndidas
tapeçarias, de belas fazendas vermelhas, de púrpura e de
veludo. Calcula-se que foram retirados e cortados de sete
centos a oitocentos metros de tecido escarlate, e outros tan
tos de roupa purpúrea". Mas nem tudo ficou resolvido;
restava a questão da habitação. Trezentos dêstes desventura
dos foram alojados em uma casa de campo pertencente ao
arcebispo; outros foram recebidos por famílias caritativas.
Nobres e ricos instituíram, encorajados pelo cardeal, abri
gos para donzelas que, em caso contrário, não teriam tido
outro futuro que a estrada.
5.
UM DISCtPULO DE CRISTO
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hora do dia e da noite, fêz colocar uma barra na sala das
audiências, para poder conversar com todos, sem o perigo
de alguém se lhe aproximar demasiado; preocupação seme
lhante tomou no côro dos cônegos; tendo o costume de fre
qüentá-lo diàriamente, também durante a pestilência, não
queria que os outros, vivendo mais acautelados, pudessem
receber dêle o temido mal.
Nem se creia que êle, tão indiferente quando se trata
va de tomar cuidados para si próprio, não publicasse seve
ras disposições e conselhos úteis; proibia, por exemplo, os
aglomerados inúteis, as conversas prolongadas e o comér
cio de trajes outrora pertencentes a infectas da peste; re
comendava, outrossim, que trouxessem sôbre si mesmos
certas orações e anéis, que passavam de pessoa em pessoa,
quais talismãs contra a peste.
Acêrca das normas ditadas aos párocos, minuciosas e
completas, para a administração dos sacramentos aos doen
tes, basta dizer que, poucos anos depois, o arcebispo de
Urbino afirmava que elas se teriam tornado a admiração
dos pósteros, por conterem disposições muito mais salutares
e eficazes que as emanadas pelos médicos.
Resta a questão controvertida das procissões. Não era
mais oportuno, em vez de fazê-las, limitá-las ou suprimi-las
totalmente? Antes de mais nada, importa notar que, além
do cardeal, exigia-as também o povo. Reconhecia.:.as Carlos
necessárias entre tanto abandono e tão implacável angús
tia, de modo a se tornarem como que natural desabafo
para tantas almas oprimidas pela miséria, pelo abandono
e pela enfermidade; assim, ao menos, no verem-se juntas
e no elevar em comum as orações a Deus, encontravam on
das de confôrto vivificante para poder sofrer o pior que
existia para todos, e para cada um particular, em qualquer
cilada.
Além disso, tais procissões, às quais recorrerá, sessenta
anos após, o primo de São Carlos, o Cardeal Frederico, de
senvolviam-se ordenadas e não qual aglomeração exagera
da de fiéis; era um regulado afluxo que caminhava em
grupos distintos e separados uns dos outros. Vetava-se tam
bém o demasiado ajuntamento de gente na igreja, e levan
tavam-se altares nos _adros e nas encruzilhadas principais,
onde permaneceram erguidas aquelas notáveis cruzes cha
madas: "As cruzes de São Carlos".
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6.
A LEMBRANÇA DA CRUZ
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os cofres do cardeal havia muito tempo estavam vazios. E'
preciso reconhecer que as orações de Carlos eram recebidas
no céu com particular agrado e urgência, pois a salvação
veio donde menos se esperava - do governador.
O fujão tivera que se resignar a retornar a Milão, em
outubro, para discutir no senado certas leis urgentes; che
gara-lhe também de Madri tremenda repreensão que o
obrigara a regressar imediatamente à capital. Apenas che
gou ao palácio, o cardeal enviou-lhe uma de suas cartas api
mentadas: "Agira muito mal abandonando a cidade em tão
dolorosas circunstâncias; pensasse, ao menos agora, nas gra
ves necessidades da população, para a qual êle - o cardeal
- gastara até o último vintém. Se isso não acontecesse,
aguardasse de Deus os mais graves castigos!"
A missiva foi entregue ao senado por Mons. Sêneca. O
governador empalideceu. Tremeu diante daquele castigo de
Deus que, em plena peste, teria significado coisa não muito
boa. Suspendeu qualquer outra discussão em andamento, e
ordenou que se tratasse logo do financiamento aos necessita
dos. Compilou-se, em plena sessão um elenco das famílias
mais abastadas para lhes impor um contributo proporcio
nal; e foram encontradas bem numerosas e ricas, de tal
modo que os trabalhos prosseguiram sem interrupção até
sua total aprovação. Alguém ousou sugerir que também o
nome de Carlos fôsse incluído na lista; de tôdas as partes,
porém, ouviu-se bradar que o cardeal, havia já muito tem
po, estava gastando tanto que compensava a avareza dos
outros. "Não lhe outorguemos a permissão de dispor dos
fundos da família, pois está pronto a consumir todo o patri
mônio, para socorrer os pobres e desamparados".
.Por fim, a cidade decidiu custear os gastos; o governa
dor mostrou-se tão comovido pelas palavras e exortações
do cardeal, que, levando-se pouco tempo depois em procis
são o Santo Cravo, quis sustentar êle próprio o baldaquim.
"O Santo Cravo, - refere Margarida Yeo - uma das
relíquias mais preciosas da cidade, fôra retirado da cate
dral e colocado em grande cruz de cristal e prata. As estra
das apareceram tôdas ornamentadas. Ayamonte, agora que
o perigo da peste era menos alarmante, sustentou o balda
quim sôbre o cardeal, juntamente com outros senadores e
nobres bem conhecidos. A metrópole silenciosa, exceto pelo
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rumor das preces e rodar dos carros mortuários, assistiu
ainda a uma solene cerimônia quando transportaram a re
líquia da catedral ao Santo Sepulcro, e vice-versa.
"Milão acordou, naquela manhã, tôda inundada por um
nôvo dilúvio que parecia tudo destruir. A procissão disper
sar-se-ia necessàriamente ! Não seria possível realizá-la sob
tal chuva torrencial. Não havia dúvidas que o diabo gover
nava o tempo, como também ninguém desconfiava que os
espanhóis governavam a Lombardia ... Mas depois, aproxi
mando-se a hora determinada, a chuva cessou e apareceu
resplandecente o sol. O glorioso troféu foi levado entre as
duas alas mudas e devotas da multidão genuflexa.
"Conduzida novamente para a catedral, a Sagrada Lem
brança da Paixão foi exposta no altar-mor, por quarenta
horas, e mal a procissão acabara de ingressar, as nuvens se
adensaram e caiu um enorme aguaceiro. De hora em hora,
o arcebispo proferia um sermão diante do Santo Cravo;
quando, finalmente, foi recolocado no altar do relicário, le
vantou-se da multidão, soluçoso murmúrio de adeus; e
aquêles que se encontravam perto de Carlos ouviram-no ex
clamar: Non dimittam te, nisi benedixeris mihi.
7.
O REI SEM COROA
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tidão, ociosa e enredada com tôda a espécie de apertos, não
sabia fazer nada de melhor, que reunir-se para percorrer
as ruas de Milão, urrando contra êste e aquêle senhor; e
se é verdade que, talvez, nada de grave cometesse, não dei
xa de ser também verdadeiro que concorria, com o vozear
sem sentido e os cortejos desordenados, para a mais grave
confusão. As autoridades que, se existiam, eram somente
para remediar, a seu jeito, o mal feito, deixavam que as
coisas corressem corno quisessem; doutro lado, porém, que
teriam podido fazer? Enviar esquadrões armados? Pior que
pior. Teriam surgido perigosas revoltas; nem se devia esque
cer que no meio daquela multidão se encontravam infectos
de peste. Melhor deixar que os gravetos fôssern queimados
no fogo que sustentavam ... até que se tratasse somente de
gritos e ameaças.
Certo dia, a população pensou dirigir-se ao arcebispo.
Numerosos grupos partiram dos diversos bairros da esfo
meada cidade e chegaram à Praça da Sé. Do local ao arce
bispado, somente dois passos. "Vamos conversar com o ar
cebispo!" foi o único brado que se ouviu e que produziu nos
presentes alívio e esperança. Carlos foi advertido da vinda
de tôda aquela aglomeração pelo vozear longínquo e cla
moroso; os familiares precipitaram-se para fechar as portas
e resistir, armados, à turba faminta. O cardeal usufruía -
como tivemos ocasião de notar - de um trôço de soldados,
que se reduzira bastante durante os horrores da peste. Os
sete ou oito restantes desejavam afrontar a golpes de espa
da o povo, ou, ao menos, formar barreira ao redor do· pre
lado; mas êste, lembrando não ser com a fôrça e sim com
amor que se vencem os homens, despediu a todos; e somente
com o Padre Jerônimo Santagostino, homem de coragem
grande e de coração maior, aguardou ·a multidão.
O povo, tendo-se ali concentrado, encontrou tôdas as
portas do arcebispado escancaradas e nenhum guarda no
portão; ao invés de irromper tumultuosamente pátio aden
tro, ingressou devoto e em procissão, cantando as ladainhas.
Quando descortinou o cardeal na soleira da porta, caiu de
joelhos e começou a chorar e a suplicar humildemente.
Carlos teria podido, sem dúvida, dirigir-lhe pequena exor
tação, convidando-o a voltar para casa; podia ter-lhe dito
que haveria de providenciar, que passasse no dia seguinte,
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e teria sido obedecido. Desta vez, contudo, não usou do estra
tagema; acenou ao Padre Jerônimo, que trovejou um forte
"Aos pórticos de Santo Estêvão I" Empunhou uma grande
cruz e colocou-se à frente da multidão, qual general à testa
do exército.
Em Santo Estêvão, alojaram-se como puderam, e pas
sou-se ao alistamento; os mais sãos e robustos foram esco
lhidos para as incumbências de responsabilidade em postos
diversos; outros ocuparam-se em trabalhos de utilidade pú
blica; e todos aquêles que não pareceram hábeis aos ofícios
penosos, foram mantidos sob os alpendres até que o cardeal
lhes oferecesse refúgio seguro; e bem cedo também êste
foi descoberto e utilizado.
Tratava-se de grande casario situado na estrada de
Malegano, distante doze quilômetros da cidade; era deno
minado A Vitória, por ter sido construído por Francisco I
em lembrança da tremenda batalha de 1515 contra os suí
ços. Pertencia agora ao arcebispo de Milão que, tendo-se
tornado rei dos pobres, doava-o à sua côrte, - como gostava
de repetir. Depois da peste seria deixado, tanto para não
mudar de direção e de estilo, ao Hospital Maior, herdeiro de
todos os seus haveres.
"Aquêles infelizes, - refere Franceschi - rejeitados
por todos, encontraram um ambiente familiar,_ acalorado
pelo amor de Carlos; nunca escasseou o necessário, pois o
cardeal lhes enviou até a própria mobília; e, principalmen
te, nunca faltou a assistência espiritual; havia, para tanto,
os capuchinhos. Mas, como houvesse_ entre os abrigados tam
bém os velhacos, um juiz, de acôrdo com as autoridades go
vernativas, punia tôda e qualquer tentativa de desordem".
Pode-se acreditar que tudo corresse bem naquela ex
travagante comunidade, tanto mais que o arcebispo punha
sôbre ela tôda a atenção; nem se esquecia de, a intervalos,
aparecer, inesperado hóspede, naquela longínqua província
de seu reino da miséria. E assim, ao som dos terços, dos
cantos, dos sermões e - por que não? - das leves mas
irrevogáveis punições, em pouco mais de um mês o local
tornou-se nada menos que um convento modelar.
Como já temos deixado dito, entre os nobres remanes
centes - poucos mas bons 1 - acendera-se veemente con
corrência para ajudar o arcebispo. Não queremos negar
236
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que havia também certa vontade de distinguir-se e supe
rar-se mutuamente; mas, sendo emulação boa e proveitosa,
por que não aproveitá-la? E, tratando-se de pessoas que fo
ram íntimas ao cardeal, antes dos gentis-homens, recorde
mos o intrépido Frei Jaime, sempre fiel e generoso quando
o fim era o bem do próximo. Tendo contraído a peste, não
obstante os cuidados dos médicos e de Carlos, morreu san
ta e heroicamente; e foi o único do glorioso esquadrão da
morte. Faleceu no melancólico Natal daquele ano, chora
do pelo arcebispo, que escreveu: "Invejo-lhe a feliz sorte,
mas vejo que ainda não sou digno do prêmio!"
Logo após o santo religioso, é preciso recordar Litta,
o Conde Erasmo de Adda, os irmãos Cusáni, e principal
mente o grande amigo do cardeal, Jerônimo Mônti. Tôdas
ilustres figuras daquela nobreza milanesa que escreveu pá
ginas imortais na história do condado. Certo Conde Gallará
ti, um dia, regalou a Carlos doze frangos. O arcebispo, po
rém, enviou-os imediatamente ao convento da Vitória; nem
se esqueceu de advertir o ofertante do sucedido; escreveu
lhe humilde carta em que pedia escusa por não ter podido
conservar as aves para si, - pois em Milão havia muita
gente que morria de fome! Aliás, sendo tão generoso com
o cardeal que nadava na abundância, por que não enviar
tanto supérfluo ao pobres de Malegnano? E se possuísse
um pouco de prata e objetos preciosos, por que não remetê
los ao Lazareto?
Domingos Castelláni, decurião da cidade, f ôra encar
regado de vigiar, com duzentos soldados, as cabanas situa
das em Porta Romana; narra êle a respeito das visitas de
Carlos aos pobres tugúrios: "Estacava em cada choupana;
informava-se das necessidades, e distribuía dinheiro; cer
to dia, passando em sua companhia ao lado de um edifício,
vimos pender uma sacola, e lá também pôs umas moedas.
Em seguida perguntou-me quem o habitava; respondi serem
algumas pessoas que haviam conseguido safar-se da peste;
mas como suas vestes tinham sido queimadas por medidas
higiênicas, encontravam-se quase completamente despidas.
Tomou nota em sua caderneta e, antes da noite, chegaram
vestes, ainda que de bonito vermelho ou viola, mas quentes,
que serviram para cobrir os desventurados; com a condi
ção, porém, de que se procurassem êles de agora em diante
as esmolas e o sustento".
237
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8.
O ESTADO DE StTIO
O Palácio
Real de
Turim.
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Panorama de Lorelo.
A Virgem de Loreto.
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bém ingressar naquele aposento de morte; mas como opor
se ao arcebispo, todo tranqüilo, recolhido e sereno?
Um grupo de cavalheiros do Conselho Geral, informados
em tempo, correram a prostrar-se aos pés de Carlos, implo
rando que não expusesse tão simplesmente a vida. "Que
devo eu fazer, então?" "Mande um sacerdote. Não pensa,
Eminência, no que sucederia se viesse a faltar o senhor mes
mo agora? E todos os pobres? E todos os confortos espiri
tuais? Seria a desesperação da cidade. Não se quer preo
cupar com a própria vida? Cuide, ao menos, do rebanho que
Deus lhe entregou. "
O cardeal não se deixou convencer, e respondeu ainda
mais resolvido: "Enviar um sacerdote? Muito bem. Mas sou
eu diverso de qualquer sacerdote? Não resta dúvida, sou
muito agradecido ao vosso afeto; mas não pensais que assis
tir um pobre vigário já perto da morte, é dever imprescin
dível do arcebispo? Como poderia exortar os outros padres
à fortaleza, se eu mesmo, por primeiro, dou exemplo de re
ceio? E vós, por que confiais tanto em 'mim e tão pouco na
Providência? Se eu morrer? Não temais! Deus vos enviará
um pastor que fará empalidecer a minha lembrança. Dei
xai-me, portanto, porque quem realmente está morrendo,
não sou eu, mas o cura" E ingressou resoluto.
O pároco, apenas acabou de receber os santos sacra
mentos, expirou na paz do Senhor. Ninguém apanhou a
moléstia; nem mesmo um sacerdote, vigário de São Paulo,
que, imitando o exemplo de seu cardeal, lavou e vestiu o
cadáver do colega; não somente permaneceu ileso, como con
seguiu viver robusto por muitos anos, narrando êle próprio
o episódio a Giussano.
A coisa sucedeu um pouco diversa com o pároco de São
Pedro de Camminadella, enfêrmo também; quando soube
que o arcebispo se preparava para levar-lhe a unção dos
enfermos, encorajado também pelos outros, deixou o leito, e
dirigiu-se, como pôde, à igreja. Quando chegou, o cardeal
o repreendeu, obrigando-o a retornar logo para a cama após
ter recebido a Sagrada Hóstia. O fato repetiu-se na manhã
seguinte. Mas, desta vez, Carlos demonstrou-se inflexível;
forçou o moribundo a permanecer acamado; assistiu-o por
muito tempo, não obstante o cheiro insuportável do aposen
to; e persistiu ao lado do amado sacerdote até vê-lo exalar
o último suspiro.
Vida de S. Carlos - 16 241
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9.
O BOM SAMARITANO
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Ião, dirigiu-se pressuroso para as localidades atingidas do
ducado. Por economia de tempo e para simplificar as pre
cauções contra os perigos de infecções, costumava dormir
vestido, na primeira cadeira ou banco que encontrava. Com
terapêutica tão original, quando a peste ceifava quase dià
riamente dezenas de vidas em Monza, conseguiu atender e
socorrer a cidade todos os dias.
Naturalmente, - segundo refere Giussano - onde che
gava, o arcebispo mudava o ritmo de vida, porque acordava
logo a todos, a começar pelo clero. �le mesmo narrava, sor
rindo e bem-humorado, que topava com sacerdotes extre
mamente tímidos. . . quando se tratava de assistir os en
fermos; excitava-os, primeiramente, com quatro palavras
ardentes e, em seguida, tomava-os pela mão e os conduzia
à cabeceira dos moribundos; e demorava-se para ver o que
faziam ... como o coroinha aprendiz admira boquiaberto os
gestos estranhos do celebrante.
Aqui também os episódios são significativos e numero
sos. Houve alguns, porém, que se gravaram na memória de
quem os viveu, por muito tempo. Certo dia, Carlos encon
trava-se em Inzago, pequena cidade distante uns vinte qui
lômetros de Milão. O arcebispo visitava a localidade com
o consueto fervor e caridade, quando, por acaso, deparou
com uma mulher vestida e ornada como para um concurso
de beleza . . . falando em têrmos modernos. O contraste en
tre a mundanidade dela e o aspecto de morte que havia ao
redor provocou a cólera do cardeal; detendo-a no meio da
estrada, repreendeu-a severamente, e acabou por dizer:
"Infeliz, que não sabes nem se podes viver até amanhã!"
Fato está que a pobre beldade foi realmente encontrada
morta na manhã seguinte em seu leito, sem apresentar, no
corpo, vestígios mefíticos.
Naquele mesmo lugar devia o arcebispo consagrar o
nôvo cemitério, pois o velho já não podia conter todos os
mortos. Os cadáveres haviam sido amontoados confusamen
te, e o cheiro que dêles emanava era insuportável; todos os
presentes, feridos também pelos raios ardentes do sol, fu
giram horrorizados. Permaneceu somente o cardeal, de ca
beça descoberta "aos raios~ ardentes do sol, - diz Giussano
- como se estivesse em igreja florida e repleta de perfumes
odoríferos". E lá ficou até que o derradeiro cadáver fôsse se
pultado na última fossa.
16• 243
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Todos êsses fatos haviam confirmado a opinião que o
arcebispo não podia de maneira alguma ser tocado pela
peste. Mas, apesar disto, Carlos sabia tomar tôdas as suas
boas cautelas. Evitava, por exemplo, dormir em leitos nos
lugarejos infectos, e continuava a ser, com os familiares,
severíssimo no que se referia às normas higiênicas. Assim,
certa vez, em Viggiú, muito provada pela pestilência, estan
do para deixar a localidade, notou que um servo suspendera
a sela do cavalo na argola de uma porta; ordenou imediata
mente ao criado de não se unir à comitiva, e de queimar o
arreio.
Habituara-se, havia bastante tempo, a tomar as refei
ções enquanto cavalgava, em estradas e praças; era um es
petáculo verdadeiramente original e justificativo de sua po
pularidade difusa e profunda, ver como cidadãos e agri
cultores porfiavam em oferecer-lhe quanto possuíam de me
lhor. O Bom Romeiro recusava quase tudo e contentava-se
de leite fervido, pão, queijo e alguns ovos; destinava todo
o supérfluo - e para êle o supérfluo não era pouca coisa!
- aos pobres atormentados pela enfermidade e carestia.
Para os servos, porém, aceitava tudo: "Oferecei-lhes com
generosidade; fizeram muito caminho e, não obstante a pes
te, de apetite, graças a Deus, estão bem!"
Dêste modo, enquanto os cooperadores gozavam de jus
to descanso, Carlos, após alguns poucos bocadós e alguns
sorvos de leite, tomava as informações mais úteis sôbre a
situação sanitária da localidade, a assistência espiritual, e
sôbre tudo o que se fazia necessário. E quando as coisas já
estavam acomodadas, partia para outros lugares, - Bom
Samaritano a percorrer os caminhos da vida para socorrer
os irmãos necessitados.
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numerosos bispos. A notícia, apenas chegou a Milão, suscitou
desolação quase infinita; pareceu a todos que para a cidade
tudo houvesse realmente acabado; e que a mais completa
ruína caíra sôbre as casas de cada um, mas, principalmen
te, nas dos humildes e dos pobres.
Eis, porém, no meio do desespêro '.geral, aparecer, com
a comitiva, Carlos Borromeu em pessoa, vivo e radioso como
sempre; e, pressuroso, foi rezar na catedral. Os sinos bim
balharam entusiàsticamente como jamais antes houvera
acontecido; tôda a população saiu às ruas, e foi necessário
organizar logo uma espécie de procissão, para fazer ver
como Deus continuava a amar Milão, deixando-lhe o
arcebispo.
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de Metastásio, enfurecido com as estrêlas". Não, Carlos acre
ditava nas normas higiênicas, aplicava-as a si e aos outros,
mas pensava que era preciso também respeitar certos dita
mes da higiene moral, mais necessários que os físicos.
Penalizava-o por isso omitir certas funções propiciató
rias, como a bênção das casas. "O rito da bênção dos domi
cílios era antigo quanto a Igreja, apesar de ser desde muito
tempo descuidado, principalmente pela indolência do cle
ro; mas agora tornava-se muito oportuno; também porque
era combatido pelos hereges, excomungados e usurários.
Apenas a peste tivesse desaparecido, teria recomeçado êle
mesmo o belo costume, com tôda a pompa possível".
Quando apareceu a primavera, a moléstia diminuiu con
sideràvelmente; podia-se dizer que acabara seu curso exe
crando. O cardeal deixou então o arcebispado em grandio
so aparato, o que foi, para os habitantes, como se tivesse
aparecido nova e bela estação. "Aos milaneses não parece
verdade poder vê-lo assim, a cavalo, vestido pontificalmen
te e circundado por cortejo tão fastoso, êle que por tantos
meses fôra visto passar a tôda hora, modesto no traje, triste
no semblante e fraco de saúde. A peste findara realmente
e era preciso agradecer a Deus!" Aquela sua saída era pre
núncio do fim do atroz pesadelo.
Finalmente veio a tão suspirada comunicação oficial
que a pestilência havia por completo desaparecido. Mas,
para que o povo não perdesse a cabeça de alegria, Carlos,
infatigável como sempre, celebrou por três dias e com três
procissões ao dia, funções de agradecimento. E tanta foi
a acorrência da multidão a essas ações de piedade, tão gran
de o unânime entusiasmo por sua pessoa, que pouco faltou
para, na última procissão do terceiro dia, não ser arrastado
pelo ímpeto popular. A êsse povo o cardeal falou calmo e
sereno:
"Foi, amados filhos, a grande misericórdia de Deus.
Êle feriu e curou, flagelou e consolou, pôs mão à vara da
disciplina, mas ofereceu o bastão do apoio e do amparo.
Deo gratias, meus filhos!"
Neste ponto não nos resta senão subscrever o que 01-
trocchi deixou escrito: ''O' incrível homem, jamais abati
do pelas fadigas, nem vencido pela morte!" O vir ineffabilis,
nec labore victus, nec morte vincen'dus!"
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10.
A PREPARAÇÃO DO SUCESSOR
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neve e o gêlo, com os pés a sangrar, cheios de bôlhas, cica
trizes e frieiras, levava nos braços meninos retirados do
regaço de mães mortas e procurava-lhes alimento e asilo;
agarrava-se às janelas das casas visitadas pela enfermida�
de, para auxiliar e confortar os doentes e moribundos; admi
nistrava os sacramentos a criaturas repletas de pústulas e
infetadas pelo contágio; consagrou um cemitério abarrota
do de cadáveres em putrefação; gastou, enfim, tôdas as ener
gias físicas e espirituais a serviço dos outros. Assim Carlos
Borromeu apareceu a seu rebanho, e assim permaneceu,
relíquia preciosa, no coração e no pensamento de seus
descendentes".
Sua vida, contudo, exemplo de improvisas e dramáti
cas alterações de fortuna, não foi, após a peste e depois de
ter obtido tão unânime ardor de aplausos, tão fácil como se
poderia esperar. Ter-se-ia podido imaginar que a onda de
popularidade o tivesse tornado incólume de surprêsas de
sagradáveis e dolorosas. Ao invés, nada disso aconteceu.
Ayamonte regressara a Milão. E sob a pressão de Car
los, cumprira, em parte, seus deveres de chefe da adminis
tração civil. Como sinal de renovada amizade com o arce
bispo, chegara a levar o baldaquim na procissão do Santo
Cravo. Apenas, porém, a cidade ficou livre da peste e re
tornaram os usos interrompidos e as manifestações do poder
público, o conde-duque, com incrível misto de estupidez e
grosseria, somente admissível em um governador espanhol,
falou ao cardeal: "É-me muito doloroso ver como todos vos
amam! Vós sois aqui adorado, enquanto eu, ministro do so
berano mais potente do mundo, sou apenas tolerado!"
A rivalidade entre a autoridade civil e a religiosa, con
servava-se como fogo sob tépidas cinzas. Era costume que
o governador e seu séquito assistissem às funções sob um
baldaquim, perto dos degraus do altar-mor da catedral,
em meio ao clero. O grosso, pomposo e desproporcionado
pálio, demonstração da importância do governador, - repre
sentante do soberano mais poderoso do mundo... - esta
va situado na passagem dos celebrantes, e era de considerá
vel impecilho.
Certa vez, o governador, tendo chegado um pouco tar
de, ocupou, com dois de seus oficiais, os assentos reserva
dos aos sacerdotes. Em vista disto, o cardeal publicou um
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decreto, vetando aos leigos de sentar no côro entre o clero;
fêz também retirar o baldaquim e o colocou à direita da
nave. Ayamonte empinou-se, e desertou de tôdas as funções
até a festa patronal de 8 de setembro, quando entrou na igre
ja somente um instante, nas vésperas para conseguir as
indulgências.
Como conseqüência de tudo isso, originou-se. um perío
do de frieza mais que hostil por parte do conde-duque, que
chegou a solicitar do Rei Filipe a substituição do cardeal.
Quando foi advertido dessas traJI1óias, o arcebispo respon
deu: "Não esperava outra coisa!" Entrementes, escreveu a
Roma: "Se o rei fôsse informado dos problemas da cidade
por gente imparcial, estou convencido que suas idéias se
riam muito diferentes". E em outra feita exclamava: "Já
tenho grande experiência do modo como, aqui e em Roma,
os ministros espanhóis cuidam dos afazeres. E' muito di
verso do ânimo cândido e sincero do rei que servem!"
Se é verdade que o monarca não chegou a requerer a
substituição de Carlos, - coisa que o Papa não teria con
firmado - não deixou, contudo, de causar aborrecimentos
ao arcebispo, em mais de uma ocasião. Ordenou a restitui
ção da fortaleza de Arona, comandada pelo Conde Renato
Borromeu, irmão de Frederico, - o jovem primo que estu
dava filosofia e teologia no colégio fundado pelo arcebispo.
Frederico deixou muitas recordações a respeito do gran
de afim. Nascido em 1564, era ainda rapazinho quando, pela
primeira vez, foi conduzido a visitar o arcebispo de Milão,
pouco tempo antes da eclosão da peste. O preceptor que o
acompanhava, talvez para dar-se importância aos olhos de
Carlos, sendo interrogado sôbre o grau de maturidade do
menino nos estudos, respondeu que "seu aluno carecia de
dotes naturais e de inteligência; e era lento no aprender".
"Como eu, em seus anos!" respondeu logo o arcebispo.
"A seguir, - continua o Cardeal Frederico - olhando-me
demoradamente no semblante, prosseguiu: "Não sou da mes
ma opinião; parece-me que a configuração de sua cabeça
prometa muito mais". E fitando-o novamente, concluiu:
"Seus delineamentos são exatamente semelhantes àqueles
de meu pai, que não era em nada ignorante!"
"Carlos, que ·previra tão depressa os sinais da futura
grandeza do tímido rapazola, - escreve um biógrafo do
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sucessor de Carlos na sé milanesa - demonstrou-se pai
carinhoso com êle; aconselhou a mãe, que era viúva, a en
viá-lo à universidade de Bolonha e, em seguida, à de Pavia;
não lhe deixou faltar dinheiro e admoestações, no desejo de
combater a índole apaixonada, própria do pequeno . . . Na
verdade, Frederico era dotado de caráter suave, chegara
a ser bom cavaleiro, como o próprio Carlos, esperto jogador
de péla, ágil esgrimista, de grande inteligência, enamorado
pela natureza - terra, céu, estrêlas, - e tinha sempre sô
hre a mesa um vaso de flôres, que o ajudava a estudar. Gran
de privilégio foi para Frederico ter os paternos conselhos de
Carlos. E para Carlos, constituía profunda e celeste satis
fação guiar o jovem primo através das sendas do sacerdócio".
11.
COM OS GRANDES DO l\lUNDO
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de de espírito que Cristo nos concedeu e que nenhuma des
graça nos poderá arrebatar".
253
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pertinaz febre. Como sempre, não deu importância ao in
cômodo, que aumentou a tal ponto de obrigá-lo a se aca
mar. A casa paroquial, contudo, era realmente inabitável, e
foi forçoso aceitar o pobre leito de um camponês, - arma
ção que se mantinha em equilíbrio sôbre algumas estacas.
Ali o encontrou Dom Fontana quando lhe foi ao encontro;
vendo seu cardeal abrasado pela febre e tão pessimamente
acomodado, queixou-se amargamente com o cura do lugar.
E teve do próprio arcebispo uma resposta que não se esp.�
rava: "Fui eu mesmo a escolher tal cama, pois Jesus, na
cruz, estava muito pior, enquanto eu repouso otimamente
neste estábulo entre uma vaca e um burrinho. E pensai
que, além do resto, estou bem longe de ser o Menino Jesus
e vós um dos Reis Magos!. " E riu gostosamente sob a fe
hre que lhe martelava doidamente a cabeça.
E como reagia êste grande santo, êste prelado tão zelo
so de seus privilégios, diante dos potentes, quando sua pes
soa era ofendida? Valha o seguinte episódio por todos.
Havia em Milão certo vigário rebelde a tôda e qualquer
norma disciplinar, o qual já merecera diversas repreensões
do cardeal por sua atitude estouvada e revolucionária.
Fôra-lhe proibido, no dia de festa patronal, preparar um
suculento banquete na casa paroquial. Cansado e abor
recido ao extremo pelas contínuas censuras, respondeu ao
arcebispo dum modo talvez não muito delicado:. . Convi
dou os numerosos amigos para urna hospedaria do bairro,
onde, depois de ter comido bem e bebido melhor, começa
ram a ridicularizar o arcebispo, prodigalizando-lhe ditos
picantes e zombando dêle em meio a grandes risadas, por
todos os seus ares de beato, e pela sua ostentada humildade,
que pretendia mudar a face da terra.
A coisa que devia ficar secreta, correu ràpidamente por
tôda a cidade e chegou aos ouvidos de Carlos. �ste afligiu
se não pouco pela péssima figura feita pelo sacerdote; mas
não fêz aceno algum às ofensas que lhe tinham sido feitas por
aquêles grosseiros e vis comilões.
A admoestação movida ao pároco com voz paterna e
sem nunca levantar o tom, foi de tal eficácia que o infeliz
caiu amargamente arrependido aos pés de Carlos, invocan
do misericórdia e justo castigo. A primeira constituiu num
beijo fraterno, e o segundo foi a promessa de agir melhor
para o futuro.
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12.
AVENTURAS TAMBÉM NÃO FALTARAM ...
255
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:tsse pastor de um rebanho freqüentes v�zes rebelde, re
passava sempre de doçura e compaixão os seus colóquios;
também se nas audiências que concedia, algumas vêzes os
interlocutores fôssem tão violentos e insultantes, a ponto de
Giussano confessar que os teria pôsto no ôlho da rua com
muito gôsto. . . Em duas ocasiões somente, diz Oltrocchi, Car
los perdeu a paciência nos diálogos havidos com os dioce-
sanos. A primeira vez foi quando, numa viagem para Roma,
ao atravessar o rio, ouviu de certo barqueiro as mais ter
ríveis blasfêmias e imprecações: ":tste malvado - excla
mou justamente irritado - mereceria que lhe cortassem a lín
gua!" Mas quando alguém que o acompanhava estava para
pôr em prática, de alguma maneira, as palavras, o primeiro
a opor-se, foi precisamente o cardeal.
O outro fato ocorreu por ocasião do famoso decreto
que vetava aos sacerdotes o uso de barbas longas e apara
tosas. Estando todo o cabido metropolitano reunido, o car
deal notou que um cônego tinha uma bela e respeitável
barba. Ante suas observações, o repreendido retrucou,
arrogante, que tinha vergonha de barbear-se pois, sem bar
ba, assemelhar-se-ia a um barqueiro. "Sim, mas um bar
queiro santo, enquanto sua santidade é ainda muito discutí
vel!" respondeu imediatamente Carlos.
Homem culto como era, não lhe carecia o sal da saga
cidade pronta e segura. Incitara, em outra oportunidade, em
Mesolcino, a todos os homens de boa vontade a ajudá-lo
para restabelecer a disciplina na região. Apresentou-se-lhe
um indivíduo que, sob muita prosopopéia, ocultava colos
sal estupidez. O cardeal ouviu pacientemente a oferta, e
vendo de quem se tratava, respondeu-lhe bonachão e sor
ridente: "Tenho um conceito demasiado elevado a seu res
peito, para empregá-lo em afazer de tão pouca importância.
Eu desejo homens de valor discreto, e não conspícuo; por
que daríamos demais glória ao demônio, se lhe puséssemos
diante homens valorosos como o senhor ..."
"Mas o mais cômico, - escreveu Oltrocchi - foi o fato
sucedido a seu bravo Galensino, liturgista insigne, mas de
língua afiada. Um dia, decidido a burlar o regulamento da
casa, preparou no próprio aposento um banquete requinta
do. No melhor da festa, porém, ao pôr-se à mesa, o cardeal,
informado já de tudo, manda-o chamar e o entretém demo-
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radamente sôbre uma questão, provàvelmente de liturgia;
enquanto isso, em absoluto silêncio, alguns criados se en
carregam de limpar a mesa, e levam todo aquêle bem de
Deus a uns mosteiros pobres dos arredores. Quando Galen
sino retornou ao quarto, encontrou a mesa despojada de tu
do - até da toalha! - e sôbre ela, um simples pedaço de
pão e um jarro de água. Compreendeu então a trapaça em
que caíra, e começou a vomitar cobras e lagartos contra o
cardeal; sem notar que êste, espiando pela janela frontei
riça, estava gozando a cena e recolhendo todo aquêle ra
malhete de injúrias com o mais belo sorriso do mundo, e
aplaudindo às palavras: "Sovina, tratante, mal-educado!"
Como bravos diplomatas, contudo, ambos colocaram a brin
cadeira entre as lembranças e não mencionaram mais o
acontecido".
Apesar de tantos episódios algo originais, a figura do
cardeal não esmorecia nunca! Porque, no fundo, era verda
deiramente um príncipe.
"Nós estamos colocados - escreve ao Cardeal Tagliavia
-- na presença de todo o mundo, revestidos de hábitos magni
ficentes e ornados por altíssima dignidade, para que o nosso
modo de vida, que não pode permanecer oculto, seja um es
pelho de virtude para todos".
"Por isso sua pessoa se transfigura quando resplandece
na majestade da púrpura - assegura Franceschi - e as
multidões lhe percebem a fascinação. Já não parece êle, o
pobre peregrino, emagrecido e extenuado pelas penitências
e lidas, que não recusa para abrigo as mais pobres choupa
nas das montanhas, e divide com os humildes o pão prêto
e os últimos tostões; assemelha-se a uma criatura do céu
quando preside a um concílio de bispos e de sacerdotes, ou
celebra uma cerimônia pontifical".
Pode-se pensar, talvez, que para alguém habituado a
viver sempre em tão altas esferas, fôsse coisa fácil cair em
enganos ou trapaças. Mas acontecia precisamente o contrá
rio! Um dia, em Roma, Speciano desejava pregar-lhe uma
peça, - é claro - bastante inocente: "Seria preciso com
prar um belíssimo quadro- artístico, de argumento sacro e
composto por célebre autor". Carlos, porém, esperto, sabe
que a obra artística é do próprio Speciano que a pretende
vender a preço elevado para satisfazer às exigências fami-
Vida de S. Carlos - 17 257
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liares, e responde: "Se fôr como presente, aceito-o; caso con
trário, gastar dinheiro em coisas não necessárias, seria rou
bá-lo aos pobres!"
Mais tarde, o mesmo Speciano, que devia encontrar-se
em condições pecuniárias não muito flóridas, - sempre
por causa dos sobrinhos 1 - pergunta a Carlos: "Não se
ria melhor que, sendo seu procurador, o cardeal me. esta
belecesse um estipêndio fixo?" E' preciso saber que o Arce
bispo Borromeu mantinha, sim, todos os familiares e mem
bros de seu serviço, mas lhes dava sómente gratificações de
tanto em tanto. "Parece-me um compromisso demasiado gra
ve - respondeu - dar um salário estável para trabalhos
que não o são ... "
Avareza? Não, pois quando alguma tarefa era levada
a têrmo com esmêro, o cardeal, além da compensação pe
los gastos, regalava com generosidade principesca a tal pon
to de deixar a todos de bôca aberta. E nesse homem que
parecia sempre arrebatado ao quinto céu, - habitante das
nuvens 1 - existia um senso prático e uma presença de es
pírito nas coisas temporais, que nos deixam maravilhados.
O Cardeal Gámbara, em cuja casa Carlos se hospedara
por dois dias ao regressar da viagem a Roma em 1580, pe
diu-lhe o adiamento do pagamento de uma pensão à cúria
milanesa, apresentando como desculpa que o granizo lhe
devastara algumas possessões.
"Fazem-me pouca impressão tais danos, - respondeu
gracejando o arcebispo de Milão; basta vender algum de
seus magníficos tapêtes ou algo de sua baixela para pagar
tôda a dívida". E prosseguindo no mesmo tom alegre, es
crevia-lhe mais tarde: "Sua Eminência sabe quanto amor
lhe dedico e como desejaria que partilhasse de tudo o que
possuo. Oxalá eu também pudesse fazer parte do que lhe
pertence I Se tal acontecesse, faria calar imediatamente tô
das aquelas estupendas fontes de sua residência de Bagnara,
e poria freio a tantas despesas, distribuindo o dinheiro
aos pobres ... "
258
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13.
OS SANTOS SÃO SEMPRE INSUPORTAVEIS...
261
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São certamente as mais falazes e passageiras. Mas quando
estamos empenhados em alguma ação que é conforme a
vontade de Deus, estou certo que é mais provável obter a
ajuda e a proteção divinas para um feliz resultado, estan
do privados de qualquer socorro e favor humanos. Deus,
freqüentes vêzes, socorre muito mais quem está abandonado
pelo mundo, e em tais ocasiões manifesta a sua máxima
graça e misericórdia!"
14.
O EMBATE DE DOIS SÉCULOS
263
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formidade com o Concílio de Trento". Sua presenç�. em
Roma desimpedira o terreno de muitas dificuldades buro
cráticas e jurisdicionais; porque era homem que se dirigia
firme e decidido ao escopo; e também dessa vez sua firmeza
e santidade levaram a melhor. O Papa, esperto canonista,
podia aprovar, sem as inúmeras reuniões cardinalícias, to
dos os decretos dos concílios diocesanos. Efetivamente, Gre
gório VIII, sob o impulso de Carlos, fêz em oito dias tudo o
que não se pudera realizar em dois anos.
Resolvidos a contento os problemas milaneses, Carlos
partiu de Roma, com a alma a transbordar de alegria. Seu
coração já pertencia todo a Milão, e seu espírito pairava
muito além, acima das coisas efêmeras da terra. Desejava
retornar quanto antes à diocese, mas devia cumprir primei
ramente algumas tarefas, confiadas a êle pelo Pontífice,
em Florença, Bolonha e Parma.
Estas visitas deixaram nêle péssima impressão: "Vi
em tôda a parte, luxo escandaloso e gastos inúteis; muitos
aviários, grandes aquários, estábulos para antílopes, cer
vos e outros animais raros; e nenhum asilo para os alemães,
húngaros e flamengos expulsos das próprias casas pelos
inimigos da Igreja".
Escreve Margarida Yeo: "Com o prin_cipesco palácio e
os trezentos familiares, com o luxo e os deleites exóticos da
residência campestre, Alexandre Farnese era um: supérstite
do renascimento, escola de principes da Igreja, mas que
deu mais glória aos príncipes que à Igreja. Carlos Bor
romeu, ao invés, de corpo descarnado, roquete e manto de
lã desbotados, mula velha e pachorrenta, acompanhado de
somente seis companheiros, era o condottiere do nôvo exér
cito: falange intrépida que bem compreendia não se poder
reconduzir o mundo a Cristo com as comodidades, o bem
estar, a tibieza, a indulgência para consigo mesmo; nem
mesmo com a proteção das artes, esquecendo-se do princi
pal - a vida interior e a salvação da própria alma".
Depois de dez dias de permanência em Florença, onde
os "homens pareceram-lhe razoàvelmente religiosos e as
mulheres irracionalmente adornadas e horrivelmente en
feitadas", dirigiu-se a Bolonha, hóspede do Cardeal Ga
leotto. Em Ferrara, a · côrte dos Estenses - não obstante ter
Afonso interrompido os divertimentos carnavalescos em hon-
264
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ra da ilustre visita - pareceu-lhe demasiado preocupada
com interêsses mundanos e pouco solícita por Deus. Partiu,
em seguida, para Veneza; não pôde evitar a pompa dogal
e restituí-la com igual solenidade; mas recusou visitar o.
famoso arsenal onde trabalhavam dezesseis mil homens ao
,)
15.
O CHAMADO DA MORTE
266
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Com efeito, nada foi mudado em sua vida episcopal;
e no dia 16 de janeiro realizou-se a reunião dos vigários,
que durou três semanas; o cardeal devia arrastar-se dià
riamente sôbre uma só perna, - imaginemos com quanta
fadiga 1 - pór;que a outra estava paralisada pela erisipela.
Apesar disto, não faltou a nenhuma sessão, e função algu
ma foi celebrada sem sua presença.
A loucura coletiva do carnaval, com tôdas as suas pân
degas e licensiosidades que haviam retornado desenfreadas,
- quem lembrava ainda os terríveis dezessete meses de
peste? - devolveram a energia de sua grande eloqüência :
"Também todos os demais milaneses batizados renunciaram
no batismo a Satanás, ao mundo e as suas seduções; e então
por que sou obrigado a ver tanta iniqüidade? Por que qua
se todos se deixam levar pela devassidão e libertinagem?
E' isto que prometemos quando recebemos o primeiro sa
cramento? Tais enormidades cometem-se sob nossos olhos,
ó excelentíssimo príncipe, e nós nada dizemos? Quem me
dera poder derramar o sangue para poder aplacar a justa
cólera de Deus! Por que não posso reparar a tanto mal
com minha morte?"
Interrogativos dolorosos, mas lúcidos, sínteses de um
apostolado que oferecia sua pessoa para a redenção das
culpas alheias, assumindo-as sôbre si, tal como fizera Jesus,
por tôda a humanidade passada e futura. Entregava-se,
pequena vida em comparação com a divina vida de Cristo,
para resgatar o povo imerso no êrro. E a oferta - podemos
acreditar 1 - era de uma sinceridade esmeraldina 1
Certamente, não haviam entendido isso certos frades
folgazãos que tiveram o descaramento de compor uma co
média desavergonhada, encenada com os contornos de um
drama completamente licencioso . . . e representada no tea
tro por uma súcia de libertinos. Quando chegou a seu co
nhecimento o acontecido, Carlos sentiu o coração despeda
çar-se, tanto mais que o familiar que lhe trouxe a notícia
acrescentou, comentando, que trovejar contra o carnaval
era tempo perdido. O desejo de gozar já entrara no sangue
do povo, e o govêrno não se opunha, os comerciantes saíam
lucrando, e então?
E então rezar. O cardeal opôs às despudoradas fúrias
errantes pelos caminhos, uma oração mais intensa e públi-
267
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ca, um ritmo de funções mais acentuado, em formâs tão
eficazes e populares, que sustaram a avalancha bacanal
e levaram à catedral grande número de fiéis.
Entrementes, reorganizou as antigas paróquias da cida
de e instituiu novas confrarias; a associação de Santa Ma
ria das Graças, do Santíssimo Sacramento e de Santa Maria
Coroada. Reordenou e aumentou a devoção das Quarenta
Horas. Era com esta prática que iniciava sempre o ano
nôvo. O amor do Santíssimo Sacramento estava unido ao da
Paixão. Tôdas as relíquias da Redenção constituíram para
Carlos um profundo sentimento de gratidão: o Santo Cravo,
na catedral, a coluna da flagelação, em Santa Praxedes, e a
Sagrada Face, em Turim.
16.
NA SOLIDÃO COM DEUS
268
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cardeal que retornasse para abençoar-lhe o próximo casa
mento com a filha do potente Filipe II. O arcebispo teve
um momento de hesitação; depois, abraçou o príncipe e lhe
falou tranqüilamente, sem sombra alguma de tristeza: "Creio,
filho, que nunca mais nos l\3veremos de ver!"
Assim, com a imagem da Redenção na mente e no cora
ção, São Carlos, ao invés de encaminhar-se para Milão, di
rigiu-se para Verna Valsesiana, onde pretendia retirar-se e
recolher-se no Sagrado Monte de Verallo.
"Esta montanha - recorda Franceschi - está estrei
tamente ligada ao nome de Bernardino Caími, um ardente
jovem patrício que na primeira metade de 1400 tornou-se
frade menor e, em seguida, núncio da Espanha, presiden
te dos Lugares da Terra Santa, e vigário provincial de Milão,
onde conquistou a benevolência de Ludovico, o Mouro. Na
Terra Santa, contemplando o Santo Sepúlcro, suspirou por
uma nova Jerusalém erguida nos confins da Itália, qual
místico baluarte contra as hostes heréticas. Perscrutou os
montes Biellese, óssola e Valsésia; até que lhe pareceu mais
apta, pela posição e comodidade, a colina que surgia próxi
ma de Varallo; e a lenda como de costume, adornou a
escolha.
"Enquanto o valoroso jovem percorria os arredores, tê
lo-ia guiado o canto suavíssimo de um passarinho a um
lugar conhecido como Sopra la pareie, que lhe pareceu
apto para realizar o sonho. Outros ainda narraram que cer
tos pastôres, ocupados no pastoreio, quinze dias antes de
chegar àqueles lugares o sacerdote, ouviram pelo ar cantos
suaves e misteriosos; enfim, um pouco como acontecera sô
hre as montanhas de Judá quando do nascimento do Reden
tor. Surgiu assim, ao pé do monte, com a aprovação dos
cônsules de Varallo, o convento franciscano e a igreja de
Santa Maria das Graças; e no cume, em 1491, a capela do
Santo Sepulcro e outras ermidas".
O Cardeal Borromeu quis, como diretor dos exercícios,
o Padre Adorno, e mandou-o vir de Milão.
Fêz, logo no início, a confissão geral, conforme o con
selho de Santo Inácio, passando em oração tôda a noite que
precedeu ao retiro e à comunhão. Noite de agonia em que
derramou rios de lágrimas; e o coração gemia transpassado
por profundíssima dor, como se houvesse cometido quiçá
quantas culpas.
269
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E assim começou novamente a reforma. . . a últ,ima. O
alimento? Pão. A bebida, Agua. O leito? Uma tábua. O sono
era brevíssimo e o silêncio ininterrupto. Quando descia a
noite, saía sozinho para fazer oração; e preferia, para maior
consôlo, a capela da Agonia ou o Santo Sepulcro.
A noite já ia alta e todos dormiam. Não todos. Ao lon
go da vereda que serpenteava a montanha, tremeluzia pe
quena claridade, semelhante ao fogo fátuo. Era Carlos que,
com a lanterna, no escuro, se dirigia para as ermidas pre
diletas. Ali passava horas inteiras, - longe de todos e uni
do com todos! - sem perceber o frio e a umidade, absorto
em Deus e todo de Deus. "Então - dizia - aparecia-me o
Senhor, e provava grande alegria por seu aspecto divino;
doutra parte, porém, vendo-o pregado numa cruz, experi
mentava amarguíssima pena e desmesurado desalento ..."
Bascapé nos refere que quando o cardeal falava dês
ses colóquios com o Eterno, suas palavras "pareciam pro
vir diretamente do céu!"
Carlos, que vivia como que separado do corpo e de
qualquer outro liame terreno, permanecia ajoelhado, ereto,
extasiado em oração por sete ou oito horas; e quando iam
chamá-lo, soía repetir que haviam adiantado o relógio para
interromper-lhe a meditação ...
Mas o suave encanto da mística Verna Valsesiana não
podia protrair-se por muito tempo; em Arona o bispo de
Vercélli aguardava-o para grave e indeferível colóquio. Car
los obedeceu ainda uma vez ao chamado do dever terreno
e disse a seus familiares: "E' chegado o momento de afron
tar um gênero de dificuldades que até agora não temos en
contrado". Era o sonho de penetrar a todo transe e risco
de vida nos cantões protestantes da Suíça.
No dia 10 estava em Arona, onde manteve o importan
te diálogo. Saiu desfeito em lágrimas, mas resolvido a tentar
o impossível. Escreveu a Milão para que lhe fôsse enviada
tôda a documentação relativa à longa luta existente entre
a comunidade e os frades acêrca da Santa Colina. Decidira
também visitar Bellinzona; no dia 20; porém, demorando-se
em Romagnano para restabelecer-se, regressou ao Sagrado
Monte. Aqui, no dia ·24, assaltou-o o primeiro ataque de fe
bre. l'.l:ste, aliás, era um retôrno mais cruento da acometida
270
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febril que o atacara precisamente no dia de sua chegada
a Varallo, e que conseguira ocultar para poder subir à co
lina tão amada.
Desta vez o assalto fôra tão violento, que o Padre Ador
no seu confessor, conseguiu impor-lhe, sob o vínculo da obe
diência, de abreviar as orações, mitigar o uso das disciplinas,
pôr um pouco de palha em seu enxergão, e conceder-se o
luxo de urna sopa de pão sem sal. Mas, apesar de enfraque
cido ao extremo pela febre, Carlos conseguia celebrar a
missa diàriamente, comungar os companheiros, despachar
afazeres e ditar numerosas cartas.
17.
ASSIM MORREM OS ELEITOS
271
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proviriam grandes preJmzos se não tivesse instituído o co
légio, por êle conduzido a bom têrmo e ao qual, antes de mor
rer, queria dar o regulamento e o diretor. Seu estado de
saúde tornava-se sempre mais alarmante.
A febre crescera tanto, que os companheiros o conven
ceram a partir na mesma noite e viajar de barco. Em Ca
uóbbio, dada a sua extrema fraqueza, viram-se obrigados
a transportá-lo a certa càsa situada à margem do lago.
Atingiram Arona a 30 de outubro; a luz do crepúsculo
era simplesmente maravilhosa; coloria de viola e rosa as
searas, as residências e o lago ... O primo Renato o estava
aguardando, tendo já providenciado tudo para levá-lo à
parte alta da cidade, no castelo natal. Mas ainda uma vez
venceu a vontade indomável de Carlos, vigilante até o fim.
Nada do palácio paterno que lhe recordasse os tempos da
juventude ... Queria beber o cálice da amargura até a últi
ma gôta. Fêz-se transportar à famosa abadia da meninice,
então noviciado dos Jesuítas.
Insistiu para ser acordado de seus sonos febris antes
da meia-noite a fim de fazer a habitual meditação e con
fissão antes da missa. Apenas capaz de suster-se de pé, ce
lebrou o Santo Sacrifício na capela, e distribuiu a santa co
munhão aos noviços e a um grupo de fiéis. Encontrava-se
cm sua antiga abadia beneditina, de quem fôra abade, -
primeiro degrau da grande escada hierárquica, :Óa idade de
doze anos, - e à sombra daquela fortaleza onde nascera
quarenta e seis anos e um mês antes.
Parecia que devia morrer no próprio torrão natal. Ao
invés, obteve permissão de partir para a suspirada Milão.
No dia 2 de novembro, estendido sôbre um leito preparado
pelo Conde Renato, encaminhou-se à capital, pela estrada
de Ticino e Navíglio. Ao chegar, foi carregado ao arcebis
pado nas costas das liteiras a passo lento e cadenciado, no
silêncio da noite e dos caminhos.
Afortunadamente, a notícia de sua gravíssima enfermi
dade não chegara ainda a Milão; assim ninguém veio a
seu encontro; na soleira do palácio arquiepiscopal não havia
senão o cunhado, Conde Aníbal Hohenens com o filho Gas
par, de viagem para Roma.
O cardeal reconheceu-os logo e saudou-os afetuosamen
te; e foi levado não a seu quarto, sob o teto da casa, ma'>
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a um salão onde fôra preparado um leito. O lugar era deno
minado, pelas pinturas que lhe cobriam as paredes: "Sala
das audiências da Cruz".
A férrea tenacidade do arcebispo quis impôr-se ainda à
matéria enfêrma. Pretendeu assistir, como sempre, às vés
peras e completas; mas havendo-lhe dito os médicos que
teria sido fadiga demais perigosa, exigiu o parecer do con
fessor. Padre Adorno dissuadiu-o, a que obedeceu pron
tamente.
Na manhã seguinte, porém, rebelou-se perante a ordem
de ouvir a missa no quarto.
"A casa de um bispo é sempre lugar santo!" disse o
Padre Adorno.
"Não!" respondeu severo o moribundo; e fêz-se car
regar para a catedral.
Também no leito de morte estava em sua frente, como
em Varallo, a imagem da paixão do Redentor; fizera colo
car diante de si, sôbre o altar, um quadro que representava
a sepultura de Jesus e, mais abaixo a tela "Agonia no hôrto"
de Júlio Cámpi, pertencente hoje à Ambrosiana. Estando
a sua cabeceira, o Padre Francisco Panigarola pediu-lhe
que conservasse o olhar na cena da sepultura. E enquanto,
tendo-lhe alguém erguido a luz, obedecia ao pedido, acres
centou que durante todos os sofrimentos, o único consôlo
era a meditação daquele quadro comovedor.
A febre diminuiu lentamente, mas o estado de fraqueza
chegou ao extremo. Bascapé, vendo-o de olhos fechados, nar
rou um episódio que sempre agradara ao cardeal; relacio
nava-se com um santo bispo de Módena, que, para não ser
perturbado em seu leito de morte, pretendia ser adormecido,
e sua morte - disse-lhe o futuro biógrafo - foi chamada:
"O sono do bispo de Módena!" Um leve sorriso iluminou
a face de Carlos Borromeu e demonstrou que ainda vivia.
O Padre Adorno avisou então ao Santo que o fim estava
próximo e perguntou se desejava o viático.
Ardentemente - respondeu o arcebispo.
Quando?
Quanto antes; agora mesmo.
Das mãos de quem?
Do arcipreste.
Foram suas últimas palavras.
Vida de S. Carlos - 18 273
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Os sobrinhos, chorando, suplicaram que os abençoasse!
Carlos tentou fazê-lo, mas foi preciso que um familiar lhe
erguesse o braço. O conde Renato, todo trêmulo de comoção,
inclinou-se sôbre o primo e lhe rogou que não se amedron
tasse se lhe anunciava que a morte estava bem próxima. O
moribundo sorriu com indefinível doçura.
Ao aparecer o Santo Viático, tentou alçar-se de pé e
deixar a cama. Mas a coisa se lhe tornou impossível. Foram
lhe postos o roquete e a estola, recebeu com grande piedade
a comunhão e, quase logo depois, a unção dos enfermos. A se
guir, deixou-se invadir por doce e solene calma.
Naquele momento eis aparecer Dom Carlos de Gusmão,
governador de Milão; ajoelhou-se confuso entre os demais e
prorrompeu em copioso pranto.
Durante a leitura da história evangélica da Paixão,
Bascapé impôs-lhe um cilício misturado com cinza benta,
conforme o antigo uso eclesiástico e segundo o desejo de
Carlos. E às nove horas da noite do dia 3 de novembro de
1584, expirou plàcidamente, sorrindo a um vôo de fulgores
celestiais.
E foi ainda o simples, piedoso e humilde Bascapé a cer
rar-lhe os olhos entre os gemidos dos familiares "que não
podiam deixar de beijar aquelas queridas e c�stas mãos".
18.
E NO FIM ... A GLóRIA
275
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E jamais, de tantos sofrimeritos que deviam crucificar
não pouco as carnes do santo, jamais uma levíssima men
ção ou queixa! O protomédico que procedeu à embalsama
ção, disse não ter encontrado senão um esqueleto todo pele
e osso; e afirmou que morrera qual lâmpada que se extin
gue lentamente por falta de azeite. O Borromeu dos últimos
tempos foi bem definido pelo Cardeal Serlítti: "Carlos Bor
romeu estava aprisionado num corpo, mas sua alma vivia no
céu. Nêle existia somente a aparência da carne".
únicamente no terceiro dia foi possível ao povo contem
plar os sagrados despojos; a multidão acorreu tão numero
sa e impetuosa, que houve até mortes. Carlos Bascapé cha
ma felizes estas pessoas: "Tornaram-se colegas daquela al
ma santa, quais vítimas fúnebres!"
Carlos manifestara a vontade de ter funerais modes
tíssimos; mas como impedir que o povo não participasse?
Conseguiram sepultá-lo de noite, aos pés do altar-mor da
catedral, precisamente no lugar indicado por êle logo após
a peste. E com estas simples palavras, testemunho da sua
humildade: "O cardeal de Santa Praxedes pede aos fiéis
orações por sua alma".
A imagem do estremecido pai penetrou .em tôdas as
moradias. Em seu nome e invocação, o milagre ocorreu com
uma freqüência inusitada. O processo de canonização cami
nhou a passos de gigante. Filipe III, rei da Espanha, Carlos
Emanuel, da Sabóia, Ranúcio Farnese, de Parma, o doge
de Veneza, o grão-duque da Toscana, o rei da Polônia invo
caram para êle as honras dos altares. Assim também tôdas
as ordens religiosas, nacionais e estrangeiras, que o haviam
tido como patrono.
A 1Q de novembro de 1610, Carlos Boromeu ascendeu
à plêiade dos santos.
"�le foi sempre doador de luz - diz seu panegírico;
nenhuma sombra de fraqueza ou de paixão ofuscou algu
ma vez aquela claridade. Nenhum obstáculo material pôde
anuviá-lo . . . Deixando êste mundo, Carlos não se extin
guiu, mas começou uma vida eterna no céu para oferecer,
lá de cima, luz à Igreja a quem amou sempre e tão pro
fundamente!"
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Diante da cadeira gestatória do Pontífice, no dia da
canonização, caminhava, curvo sob o pêso da cruz da peste,
o Cardeal Frederico, o digno sucessor. E será êle que do
púlpito da catedral pronunciará a coleta da primeira festa
do primo, no dia 4 de novembro : "Protege, Senhor, nós te
suplicamos, tua Igreja, pela perpétua intercessão de Carlos,
teu santo confessor e bispo. Por seu zêlo vigilante em prol do
rebanho, mereceu a glória; assim sua meditação possa sem
pre inflamar-nos de amor por ti".
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DOM JOÃO BATISTA SCALABRINI
<A sua memória não perecerá, e o seu nome será
repetido de geração em geração...> (Ecli 39,13)
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que mereceu alto reconhecimento do govêrno pátrio, obten
do a medalha de bronze".
Com 28 anos apenas, foi nomeado reitor do semmar10
onde estudara poucos anos antes. Após breve, mas fecundo
atividade neste estabelecimento, em 1870, foi transferido,
como vigário, para a paróquia de São Bartolomeu, urna das
mais vastas e importantes da cidade de Como. Era a Pro
vidência que, por diversos caminhos e experiências, prepa
rava o servo fiel aos futuros empreendimentos. O jovem
sacerdote entregou-se de corpo e alma ao bem do próximo.
Seus prediletos: os pobres e os doentes. Sua alegria : a admi
nistração dos Sacramentos da Penitência e da Eucaristia.
Seu ideal: o reino de Cristo nos paroquianos. Por ocasião
do Concílio Ecumênico Vaticano I, proferiu, na catedral de
Como, uma série de conferências sôbre o assunto; foram
julgadas tão importantes que, publicadas e divulgadas em
tôda a Itália, o próprio Papa Pio IX louvou seu autor.
Em dezembro de 1875, foi eleito Bispo de Placência, e
no dia 30 de janeiro do ano seguinte, o Cardeal Franchi
sagrou-o na capela da Propaganda Fide, em Roma. No mes
mo dia, endereçou a seu povo a primeira carta pastoral,
na qual traça seu programa, prometendo "de não poupar
esforços e sacrifícios para ser pai dos infelizes, mestre dos
que erram, guia dos sacerdotes, pastor de todós, para ga
nhar todo a Cristo". A respeito de sua atividade episcopal,
talvez seja conveniente repetir o que diziam os biógrafos
de São Carlos: "E' melhor nada falar, do que falar pouco ou
mal. " Tentaremos somente expor um breve resumo de
suas principais obras. Relembre-se, de antemão, que é Cris
to quem vive e age nos santos. E "tudo posso naquele que
me conforta ... "
A paróquia é aquilo que é o pároco. Tal princípio mo
tivou breve e ardorosa carta pastoral a todos os sacerdotes
da diocese, procurando infundir-lhes o zêlo e o amor que
lhe devoravam o coração. A Catequese, como já tivemos oca
sião de notar, foi sempre um de seus principais cuidados. Já
no primeiro ano de episcopado, publicou a carta pastoral
Instrução Catequética, e um ano após, fundou a revista
O Catequista Católico. Deu vida à Congregação da Doutrina
Cristã. Organizou o 1 9 Congresso Catequético Nacional. Bas
ta lembrar que o próprio Pio IX, admirado diante dos fe-
280
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cundos frutos que o Servo de Deus hauria na diocese me
diante o ensino e a vivência da Doutrina Cristã, enviando
lhe preciosa cruz peitoral, saudava-o como O Apóstolo do
Cate.cismo.
O ano de 1576 foi a prova de fogo do amor de Carlos
para o seu povo. E 1879 o foi para Dom João B. Scalabrini.
Um frio fora do comum e uma grande carestia haviam
lançado na miséria centenas de famílias de tôda a região
norte da Itália. O santo Bispo entregou-se inteiramente aos
outros, pela renúncia mais completa de si mesmo. E' que o
amor de Cristo não conhece barreiras . . . Tudo foi dado.
Chegou a distribuir diàriamente 4 mil sopas aos pobres fa
mintos, que, de tôdas as partes, acorriam a seu palácio
episcopal.
Dedicou-se à assistência dos surdos-mudos, à reorga
nização das paróquias, à reforma da catedral; interessou-se
pela solução cristã da questão social; lutou pela educação
cristã da juventude e pela formação dos seminaristas; so
freu os mais renhidos ataques da maçonaria, e até de mem
bros do clero. Na famosa Questão Romana, tão discutida
pelos prelados italianos do século passado, os pontos de vis
ta do Servo de Deus foram plenamente reconhecidos e rea
lizados por Pio XI no Tratado de Latrão, em 1929. Religião
e Pátria! era um de seus lemas. Foi, na verdade, como bem
disse São Pio X, um dos melhores bispos da Itália, e um
cidadão exemplar.
Um dos grandes problemas da Europa, no fim de 1800,
foi, sem dúvida, a emigração em massa de seus habitantes.
E as conseqüências decorrentes, inúmeras e graves. O bon
doso Bispo via as ovelhas partirem sem o pastor que as
acompanhasse. . Sem o sacerdote, o amigo, que as conso
lasse e socorresse em suas necessidades. E em 1887, aquêle
coração generoso fêz brotar a mais bela flor de sua admi
rável existência: a Congregação dos Missionários de São
Carlos, que tem por fim a assistência dos emigrantes. Não
contente com isso, com a colaboração de um seu missionário,
fundou uma Congregação feminina, a das Irmãs Missioná
rias de São Carlos, e visitou por duas vêzes os emigrantes
na América: em 1901, nos Estados Unidos, e em 1904, no
Brasil. Cooperou, outrossim, com a Serva de Deus Madre
Merloni na fundação da Congregação das Irmãs Zeladoras
do S. Coração, destinadas também a socorrer os emigrados.
281
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Quando da ascensão de José Sarto ao trono de Pedro,
os olhares de todos voltaram-se para o Bispo de Placência,
como o candidato mais idôneo para o Patriarcado de Vene
za. Dom João B. Scalabrini, porém, não aceitou. Talvez
previsse que o momento de comparecer diante de quem
tanto amava, estava próximo. Deus já estava contente com
o trabalho de seu servo. De fato, após breve doença contraída
pelas longas e estafantes cavalgadas em suas visitas pastorais
na Itália e na América, a 19 de junho de 1905, festa da As
censão, entregou sua nobre alma ao Criador.
A Congregação dos Padres Missionários de São Carlos
Borromeu, conhecidos no Brasil por Escalabrinianos ou Car
listas, acha-se espalhada em quase todos os continentes. De
dica-se à assistência dos emigrantes. Está a serviço da Igre
ja para qualquer necessidade. Em nossa pátria conta já
com diversos seminários, distinguindo-se, entre todos, o Se
minário Maior João XXIII, situado em São Paulo.
João Batista Scalabrini vive ainda em suas obras. Seu
processo de Beatificação já foi iniciado. Não se pode negar,
o Servo de Deus foi um grande e santo Bispo. Pio IX deno
minou-o digníssimo entre os sacerd-otes. Leão XIII definiu-o
orgulho do episcopado italiano. São Pio X proclamou-o pre
lado incomparável. Pio XI chamou-o: santo. Pio XII apre
ciou-o alma de excelsas virtudes, figura de grande· apóstolo.
Tudo isso porque se deixou dominar pelo Cristo. Como
São Carlos. E, como São Carlos, passará à história como um
dos maiores benfeitores da humanidade ...
Deus é admirável nos seus santos . . .
REDOVINO RIZZARDO
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., íN DICE
Parte I
O MUNDO DE CARLOS
1. Na Fortaleza de Arona . . .. . .. . . . . ..... . ... ...... 13
2. E Apareceu uma Grande Luz . . . . ..... . . .. . . ..... . 17
3. Preocupações de Abade .. . . ... . .. . . . . . ..... .. . .. 22
4. Milão em Duas Etapas . . . ... . ...... ... ... . . . . ... 26
5. Apuros de Estudante ..... . ..... ...... .. . .. ...... 33
6. Excomungado . . . . . . .. . . . . .. .. . . . . ... . .. .. . . ...... 38
7. Lágrimas de um Santo . . . . .............. .. . ..... 42
8. Pio IV .... . .. . . ...... .. . ... . .. . . . . . . .... .. .. . . ... 46
9. A Escalada da Glória . ....... . .. . . .. . ....... . ... . . 50
10. Surprêsas da Santidade . . ..... .. . .... .... . . . . . ... . 54
11. Trabalhos e mais Trabalhos ...... . . .. . . . ..... ... 58
12. O Demônio e a Morte . ... ...... ........ .. ..... . . 63
Parte II
A REFORMA DA IGREJA
1. Trento e o Concílio .. . .. . . .... . .. . .. . . . ... .. ..... 71
2. As Arrancadas do Ascender .................... .. . 75
3. Caprichos do Papa ....... ."... ... .. . ....... ... . . .. 79
4. A Política ·do Céu e a Política da Terra ... . .. . . .. . 83
5." Começar pela Cabeça .. . ... .. . .. . . . . . . . . . . ..... . . 87
6. O Discurso do Cardeal . ...... .. ....... .. . .. . ..... 91
7. ·Palestrina Triunfa .........................·... . . . 95
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8. A Grade dos Conventos . ..... . ... ............. . ... 98
9. Romantismo e · Realismo ............ ............ . 101
10. O Sínodo Diocesano ........... ................... 106
11. Adeus ............................................ 110
Parte 111
O PASTOR E O REBANHO
1. O General sem Exército ..................... ...... 117
2. Reformar-se para Reformar ....... .. . ............ 121
3. O Céu torna-se mais Límpido ....... ... .. . ...... 126
4. O Espírito e a Pedra ............................ 131
5. Seminários e Sacerdotes .......................... 135
6; O Rito Ambrosiano .............................. 140
7. Zêlo de Pastor ................................... 144
8. Entre os Turbilhões da Tempestade ............. 148
9. Não vim trazer a Paz . . . . . ..... ... ... ............ 153
10. Crime no Arcebispado ........................ ... 157
11. A Hora de Judas ................................. 162
Parte IV
O PEREGRINO DE DEUS
1. Conheço minhas Ovelhas ......................... 169
2. A Busca da Verdade . ... ........................ 173
3. O Mistério do Amor ... ... . ................. .... 177
4. Na Terra de João XX.III .......................... 182
5. A Guerra Fria em Milão ......................... 186
6. O Lírio de um Menino .... ... .... ........... . .... 190
7. No Covil dos Bandidos ........................... 193
8. O Escândalo do Padre . .............. . ........ ... 196
9. Saudades de Roma .............................. . 200
10. O Sudário de Turim ........ . ...... ............... 203
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Parte V
A IGREJA DA CARIDADE
1. A Vingança de Deus ..... .. .... . . ............... 211
2. Na Luta pela Vida ............................... 217
3. A Prudência que não é Covardia .............. .. 220
4. Cadáveres Vivos ..... ........................ ... . 224
,
5. Um Discípulo de Cristo ... . .... .... . ............. . 227
6. A Lembrança da Cruz ... . .. .... ................. 231
7. O Rei sem Coroa ................................ 234
8. O Estado de Sítio .... ... . . ... ... ................. 238
9. O Bom Samaritano ........... . .... ............... 242
10. A Preparação do Sucessor ... .... ... ... .. . . . . .. ... 248
11. Com os Grandes do Mundo ...... ..... ..... . . . .... 251
12. Aventuras também não Faltaram .... ......... ... 255
13. Os Santos são sempre Insuportáveis .............. 259
14. O Embate de Dois Séculos ....................... 262
15. O Chamado da Morte ........... .... ........ . .... 265
16. Na Solidão com Deus ............................ 268
17. Assim Morrem os Eleitos ......................... 271
18. E no fim... a Glória ........................... 274
Apêndice: Dom João Batista Scalabrini ............... 279
Bibliografia ...... ............... .................. .. . 283
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