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A TORTUOSA VEREDA DO MÉTODO:


GILBERTO FREYRE - LITERATURA OU CIÊNCIA
SOBRE O BRASIL?

I
muito comum nos en- gem que cria uma unidade

E saios acadêmicos dedi-


cados à compreensão
NILSON ALMINO DE FREITAS

RESUMO
entre técnicas distintas de
"desigri' para construção de
do pensamento de determi- imagens textuais, aproximan-
O presente ensaio pretende acompanhar a sinuosidade
nado autor uma preocupa- metodológica de Gilberto Freyre na compreensão da re- do-se dos livros de literatura.
ção do ensaísta com a alidade brasileira. Discute-se aqui tanto o estilo da es- Ao mesmo tempo, preocupa-
construção de classificações crita quanto a forma peculiar de fazer ciência do autor se em registrar de forma ri-
pernambucano, sempre contextualizando seu pensa-
relativas ao modelo teórico gorosa e metódica a história
mento no tempo em que escreve. Pretende-se também
seguido ou estilo de apre- refletir a sociologia do movimento histórico elaborada por social do Brasil. Ou seja, nes-
ensão da realidade habitu- Freyre que não está pautada em generalizações arbitrá- se livro, cuja primeira edi-
almente praticado pelo rias e caracterização importadas, mas sim em ção data de 1933, estão
detalhamento e explicitação da peculiaridade da "civili-
autor analisado. Uma pri- zação brasileira", sem perder de vista a situação do Bra-
presentes dentre outras coi-
meira leitura das obras de sil no conjunto das relações entre as diferentes nações. sas, uma singularidade e uma
Gilberto Freyre, entretanto, clareza própria de escritos li-
causa angústia para aquele • Professor de Antropologia da Universidade Estadual terários, sem deixar de ser
Vale do Acaraú e Doutorando em Sociologia pela Uni-
analista desavisado que bus- versidade Federal do Ceará. uma obra científica.
ca adjetivar seu estilo e sua A qualidade de escri-
forma de apreensão da realidade de forma tor estilisticamente típico do romance literário atri-
unívoca. Esta é uma tarefa difícil de ser buído ao autor é inclusive ressaltada por ele mesmo
implementada, principalmente quando direcio- em um de seus textos (FREYRE, 1968). O título do
nada a um autor que resvala em várias linhas de capítulo que ressalta suas façanhas de escritor já
pensamento de sua época, sem se entregar total- sugere esta nuance de sua forma particular de pro-
mente a nenhuma delas; "escorrega" em diversos duzir textos: "Como e porque sou escritor, sem
modelos de pensamento, sem cair completamen- deixar de ser um tanto sociólogo". A dimensão
te em suas "armadilhas"; evade a ortodoxia da "literária" de seu trabalho caracteriza, segundo ele
práxis científica, sem fugir de seu rigor; e utiliza próprio ressalta, um "escritor" curioso que usa como
inúmeros subterfúgios "performáticos" e "artísti- instrumental analítico a ciência sociológica. O au-
cos" originais para passar sua mensagem em for- tor, neste texto, não quer entrar no mérito se ele é
ma de texto, sem ser vago e pouco objetivo. ou não um bom escritor, e sim, compreender sua
Portanto, sua obra foge das classificações, ao própria forma de construção textual. Para isso,
mesmo tempo em que não as perde de vista. primeiramente, aborda as características do escritor.
Sua obra mais famosa, por exemplo, Casa-
Grande & Senzala, comentada e analisada larga- o FAZER CIÊNCIA: A VISÃO DO "ESCRITOR"
mente por diversos autores, é exemplo de um texto GILBERTO FREYRE
construído artesanalmente. Construção essa, exe-
cutada com todo cuidado e habilidade possível para Para Freyre, o escritor é aquele que nada
sua época. É um "mosaico", fruto de uma monta- tem de burocrático. Sua atividade é de pura aven-

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tura, contrária a rotina metódica e tediosa de um O autor de Casa-Grande & Senzala, dizen-
tipo de literato muito comum na academia, que do-se modesto, e, ao mesmo tempo, afirmando
não consegue de seus escritos senão reproduzir sua postura estilística como escritor, ressalta que,
mecanicamente o que aprende. A distinção para o escritor pode correr o risco de ser criticado
a qual Freyre chama atenção, portanto, está entre por reduzir seu texto a um amontoado caótico
o escritor e o "... beletrista livresco ou do homem de imagens que tanto são inválidas cientifica-
de letras mesmo clássicas, que escreve livros ape- mente como não seriam sugestivas para uma
nas parasitários" CFREYRE, 1968: 167). análise investigativa. Neste sentido, afirma:
O escritor, segundo Freyre, está dentre os
que vivem do ofício, das artes ou de profissões Concordo em que haja, nos meus trabalhos,
liberais, e, ao mesmo tempo, não pertence parti- objetos dessas críticas, além de desordem e
cularmente a nenhum destes grupos. Sua ativida- repetições, de negação de virtudes conven-
cionalmente literárias, por um lado, e de con-
de é incerta e insegura. Tende a ser independente,
vencionalmente científicas, por outro, como
não se associando especificamente a nenhuma virtudes puras ou castiças em suas formas
classe, raça ou sistema ideológico exclusivo, sem acadêmicas ou ortodoxas. Não sou escritor-
abandona-los completamente. É múltiplo ou plu- se é que sou escritor - fácil de classificar; e
ral na expressão de suas experiências, recriando nisto talvez seja caricaturescamente ibérico.
o que vê. Seu estilo exprime "faculdades O estilo que, segundo alguns críticos, carac-
teriza os meus trabalhos, reconheço não ser
indisciplináveis" em forma de confidências de "im-
modelo de estilo científico- admitindo-se que
pressões hiperagudas" que parecem expandir a fosse estilo.antes científico que literário, que
força vital do assunto sobre o qual escreve. eu procurasse atingir. Mesmo porque o ideal,
Essas características estilísticas, segundo em trabalhospuramente científicos, parece ser
Freyre, são típicas, principalmente, do escritor a quase ausência de estilo. Confesso-me anár-
ibérico. Segundo ele, estes escritores são con- quico, um tanto personalista, um tanto im-
trários a requintes que tornem sua criação "uma puro, um tanto contraditório, um tanto
desordenado e, nestes defeitos, uma carica-
arte de escritor para escritores". O escritor his-
tura daqueles escritores ibéricos ainda hoje
pânico, muito mais que o português, é extre- inclassificáveis ... (FREYRE, 1968:179).
mamente realista, intenso em sua interpretação
da vida. Na caracterização de fatos, estes ga- O fato é que, segundo sua própria auto-
nham vida e movimento em seus escritos, ga- análise, ele procura ser escritor servindo-se de
nhando inclusive composições de frases sua formação, principalmente a antropológica,
inacadêmicas. Esse tipo de escritor passa a ser somando-se a ela a formação de sociólogo, de
"... um intérprete da vida sentida, sofrida, ex- historiador social e pensador vinculado ao meio
perimentada, interpretada, nos seus contrastes, acadêmico. Porém, ao mesmo tempo, não se
através de uma mais ou menos intensa partici- preocupa em ser antropólogo, sociólogo, histo-
pação do escritor nessa mesma vida" CFREYRE, riador social ou pensador institucional. Nesse
1968:174). a visão de G.F, neste aspecto, a sentido chega comparar-se a um Lawrence da
obra escrita aproxima-se da obra produzida por Arábia, segundo ele "esse inglês parente de es-
um tipo de sociólogo que pratica a análise par- panhóis até no seu modo empático de ser
ticipante. Este tipo de cientista social, para moçárabe" CFREYRE, 1968:179), ou a Euclides
Freyre, transparece em seu escrito uma possí- da Cunha. Ele argumenta que sente total liber-
vel intensa participação compartilhada na vida dade em expressar-se como escritor literário sem
cotidiana daqueles sobre os quais escreve, ten- ter que se afastar de sua condição de cientista. A
tando mostrar a experiência deles como se tam- espontaneidade é a chave para a inovação, crian-
bém as tivesse experimentado. do algo novo que foge ao adestramento das

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pencias do cérebro do intelectual. Isso gera a Desta forma, o ritmo imposto por Freyre
autenticidade da obra. favorece um alcance visual que vai além da
Neste caso, Freyre, pensando na sua obra, constataçào pura e simples dos fatos. O predo-
ressalta que a independência também é uma mínio e a insistência no aprofundamento senso-
característica estilística do escritor. Segundo ele rial imposto ao leitor faz do seu texto uma
próprio, como escritor, sempre tentou ser aves- extensão ou um suporte das reminiscências de
so a sistemas fechados e tirânicos que tendem a quem lê, prendendo sua atenção. Sua obra agu-
cobrar do intelectual uma filiação quase que ça os sentimentos e desejos fazendo com que o
partidária. O escritor autêntico, para G.F., tem leitor, principalmente o brasileiro, se veja no tex-
que fugir disso e nunca deve se submeter. A to. Neste sentido, em alguns momentos o ritmo
inclinação do escritor é pela angústia e desejo parece dispersar-se sobre coisas que parecem
constante de inovação, da renovação e da críti- divagações caleidoscópicas com apologias nos-
ca. A marca do estilo do escritor, para Freyre, é tálgicas e observações folclóricas dos tempos da
o inconformismo sugestivo, provocante, casa-grande.
evocativo, interpretativo e até epifânico. Além disso, principalmente no livro Casa-
Levando-se em consideração suas auto-aná- grande & Senzala, percebe-se em sua obra uma
lises estilísticas, pode G.F. ser incluído na listas das clareza de junção das partes que compõem um
caracterizações apontadas por ele, principalmente grande "quebra-cabeça" montado pelo autor para
quando se lê Casa-Grande & Senzala produzido entender o que é o Brasil. Há uma diferenciação
em 1933, a sua simplicidade e clareza na forma de direcional nítida quando o autor tenta se repor-
expressão textual, sem fugir totalmente dos ter- tar a temas adjacentes, mas o tema central conti-
mos e expressões usuais do campo das ciências nua sustentando a obra, sem que o leitor perca
sociais de sua época. Suas análises são nítidas, trans- uma consciência de movimento. As mudanças
parentes, sem rancores, mas sempre colocadas em de direção constantes, pelo contrário, fazem com
contraste com as diversas formas de apreensão da que o leitor tenha um "alcance visual" privilegi-
realidade social da época. Na evocação das obras ado sobre o assunto tratado. Ou seja, ele faz
de outros autores ele chega a ser exaustivo e até, com que o leitor brasileiro, principalmente, se
em certos momentos, repetitivo. torne sensível ao seu próprio movimento real
O seu texto também apresenta uma conti- ou potencial no contexto da cultura de que faz
nuidade "rítmica" próxima da oralidade evocan- parte. Isso porque está marcada uma série tem-
do imagens e sentidos, como diria Thomaz poral que tende a estimular a compreensão nes-
retomando a afirmação do antropólogo Ricardo te sentido. O passado é evocado como fundante
Benzaquen de Araújo (THOMAZ, 2001): do mundo vivido no presente, e não como uma
coisa "velha", "antiquada" e "obsoleta" que deve
...é a partir de uma escrita cujo referencial são ser esquecida por ser "um tempo que passou".
os termos da vida cotidiana que Freyre dialoga As séries temporais marcadas no texto de
com o leitor, transjormando-o num participe do
Casa-Grande & Senzala, por exemplo, que em
drama nacional; assim, Freyre nos introduz
um primeiro momento parecem ilógicas, de-
num universo profundamente sensorial, povo-
ado de cheiros, sons, sabores e imagens que, marcam de forma significativa uma existência
inevitavelmente, evocam a memória do leitor. e experiência entre pessoas e entre pessoas e
Memória não da experiência individual, mas objetos, sejam materiais ou imateriais (fantas-
aquela que diz respeito ao mito, às histórias que mas, mitos, lendas, fantasias, dentre outros) que
escutamos uma e outra vez na infância e ado- estimulam uma entrada do leitor no tempo des-
lescência, que não nos levam a um tempo pre-
crito, fazendo com que este que lê, principal-
ciso, mas a qualquer época da nossa história
coletiva e individualCTHOMAZ, 2001:13-14). mente o brasileiro, sinta-se como se estivesse

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falando dele próprio e de sua experiência no sados enquanto tipos de estilos sociologicamente
mundo. Isso porque os nomes e significados e historicamente distintos que aparentemente
enunciados, exaustivamente descritos e defini- parecem se contrapor, mas concorrem para uma
dos, ainda estão muito vivos na memória dos estabilidade sociológica que caracteriza a pecu-
que hoje vivem no Brasil. liaridade social brasileira. Segundo Bastos (986),
este recurso aproxima-se muito do "tipo ideal"
weberiano, só que na obra de Freyre, os tipos
PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS DE GILBERTO compõem dualidades que se apresentam não
FREYRE PARA A COMPREENSÃO DA REALIDADE como personagens, mas símbolos espaciais nos
BRASILEIRA quais os personagens vivem e criam o seu coti-
diano. Em obras como Casa-Grade & Senzala,
Diante dessas características estilísticas do Sobrados & Mucambos ou Ordem & Progresso,
"escritor" Gilberto Freyre, pode-se também aqui o "&" sugere uma interpenetração, aglutínação
apontar algumas reflexões metodológicas com ou hibridação de termos que ilusoriamente pa-
relação a sua forma típica de compreensão da recem se contrapor. Os espaços representam mais
história brasileira, demonstrando que além de do que edificações ou idéias. Representam con-
todos os recursos estilísticos do escritor literá- dutas, práticas cotidianas, relação entre sujeitos
rio, o cientista também está presente em sua obra. sociais distintos e percepções ou mentalidades
O próprio Freyre (968) considera que o seu que parecem se opor, mas, ao contrário, se in-
trabalho diferencia-se do exercício analítico do fluenciam mutuamente.
historiador mais "cioso da pureza de seu ofício". Para perceber esta influência que se apro-
Procurando ser pouco ortodoxo em suas refle- xima de uma aglutínação, Freyre recorre a um
xões sobre a história, G.F. ressalta que à sua estudo detalhado e minucioso do cotidiano. Ele
condição como historiador tem que ser acres- procura apreender a historicidade do social,
centado o substantivo "social", que tem como descrevendo expressões da vivência e da convi-
fundamento os complexos socioculturais que vão vência entre diferentes sujeitos no dia-a-dia. Para
além dos "grandes fatos", dos "grandes heróis" e Bastos (986), G.F. desenvolve uma
da história dos governos.
Como lembra Bastos (986), a sua propos- ... Sociologia Genética que se especializa no
ta metodológica é a de desenvolver uma "história estudo das origens e do desenvolvimento no
sociológica" da realidade brasileira, na qual a for- tempo social, das instituições, sobretudo dos es-
tilos de vida e deformas de convivência que se
ma mais eficiente é a da abordagem por "empatia".
tenham tornado características do comporta-
Ou seja, a idéia de Freyre é a de construir uma mento de um grupo humano (Bastos, 1986:69)
história na qual o autor apresente uma imagem [grifo da autora).
textual que dê a idéia de uma participação do
autor nas vidas, não só materialmente, mas sim- Esta Sociologia Genética parece partir do
bolicamente também, de pessoas já desapareci- pressuposto de que os acontecimentos não são
das que encarnavam modos particulares de apenas vividos na realidade concreta, mas tam-
percepções, de práticas, de idealizações míticas, bém pensados, assim sendo, a ciência não pode
característicos de uma época ou de sua cultura. aprendê-Ios apenas pela sua exterioridade ou
Neste sentido, Bastos (986) chama aten- concretude material, mas também pela maneira
ção que o autor recorre a elaboração de símbo- como são interiorizados pelos indivíduos. O sim-
los quase míticos de diferentes períodos da bólico passa ser fundamental na compreensão
realidade brasileira. Estes símbolos compõem a da realidade nesta postura metodológica apon-
cena histórica da realidade nacional e são pen- tada por Freyre.

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Para G.F. (968) o cotidiano deve ser apre- não ser este o determinante principal (FREYRE,
endido situado no espaço e no tempo. Dessa s/d). Para ele, o que ocorre no Brasil é uma plástica
forma é imprescindível a utilização de dois mé- contemporização entre as duas tendências. O meio
todos simultaneamente: o ecológico e o genéti- físico e bioquímica tende a "recriar à sua imagem
co. Assim, a análise sociológica fugiria do campo os indivíduos", porém a implementação de re-
da especulação e da generalização não ancora- cursos técnicos importados impõe formas aces-
da na realidade. A análise, portanto, não pode sórias estranhas de cultura. Ou seja, a imposição
fugir do campo da existência. Assim como, a de formas européias ao meio tropical foi
realidade social não pode ser explicada apenas readaptada a novas condições de vida e de
por argumentos causais ou abstrações genera- ambiente nos trópicos. O aspecto sociológico e
lizantes. O real demanda uma interpretação dos cultural, no caso brasileiro, foi adaptado às novas
significados atribuídos a ele pelos indivíduos. condições relativas ao meio ambiente.
Bastos (986) argumenta que, através des- Neste aspecto percebe-se a influência da
se método, Freyre busca captar o essencial atra- obra de Franz Boas no pensamento do autor
vés do existencial, negando a possibilidade de brasileiro. O próprio Freyre (s/d) chama atenção
uma aplicabilidade legítima de um método dessa influência. O autor pernambucano consi-
evolutivo que nega a diversidade, as diferenças, dera como fundamental as contribuições da obra
ou interpreta a história como linear e genérica do antropólogo alemão, principalmente no que
sem levar em conta as nuanças e particularida- se refere à diferenciação entre os efeitos de rela-
des do cotidiano que são cambiantes e ambí- ções genéticas e de influências sociais. Para Boas,
guas. Ao contrário, a Sociologia genética de um aspecto influencia o outro, não são
Freyre considera as particularidades e ambigüi- excludentes, devem ser compreendidos de for-
dades do cotidiano, contextualizando no tempo ma contextualizada como relação.
e no espaço. Coerente com esta influência, Freyre apon-
Diante desses pressupostos, não há como ta para a necessidade de articulação entre uma
definir precisamente a disciplina na qual Freyre Sociologia Genética e uma Ecologia Social. Apoi-
está ancorado de forma precisa e definitiva. Não ado em Boas, Freyre em seus textos sugere a
havendo unidade disciplinar em seu trabalho, sua não satisfação com a explicação que coloca
ele incorpora em seu pensamento formas de a proeminência na diferenciação cultural entre
"olhar" plurais, construindo um trabalho, ao os povos, o fator racial na acepção biológica ou
mesmo tempo, antropológico, sociológico, psi- genética. Além desta insatisfação, o autor apon-
cológico e psicanalítico, com reflexões inspira- ta a estreiteza da explicação do determinismo
das também na estética, na arquitetura, na geográfico. Ao mesmo tempo, revela que não
literatura e até na arte culinária brasileira. Seus dá para compreender qualquer cultura sem le-
textos seguem um movimento pendular entre as var em questão a relação homem e natureza,
várias disciplinas das ciências humanas, subsi- não mais como pensavam a tradição "socio-
diadas inclusive pela Biologia, principalmente biológica" que opõe natureza humana e cultura,
quando critica a visão dominante da época so- priorizando a dimensão da raça ou da herança
bre a questão das raças. genética, nem como oposição entre homem es-
Na obra Casa-Grande & Senzala, em alguns paço. Ensina o pensador brasileiro que só po-
momentos, apesar de considerar o contexto demos entender a cultura como relação
sociocultural como fundante do caráter de um contextualizada entre todas estas dimensões.
povo, aceita explicações climáticas para o com- Portanto, com relação às barreiras disci-
portamento típico do brasileiro, principalmente plinares, Freyre transparece em seus escritos que
no que se refere a moral sexual. Porém, ressalta não dá para compreender a realidade brasileira

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somente privilegiando uma disciplina acadêmi- motivo pelo qual "o Brasil não deu certo". Freyre
ca como instrumento de análise. Em um de seus busca, ao contrário, demarcar a posição singular
livros de 1968, já citado e comentado acima, ele que o país ocupa no cenário mundial, tendo em
chega a ironizar as barreiras disciplinares. O pró- vista sua particular síntese de antíteses culturais
prio título do livro: "Como e porque sou e não que se cruzam e se misturam formando uma na-
sou sociólogo", sugere esta idéia. os capítulos ção "tupinizada", "africanizada", "orientalizada" e
do livro, alguns deles seguem este movimento "ocidentalizada", ao mesmo tempo, diferencian-
pendular que imprime em seus trabalhos, nos do-se inclusive dos "latíno-amerícanos'" .
quais, em cada um deles, assume uma postura o método utilizado para expressar sua
disciplinar, variando entre o antropólogo, o his- compreensão sobre a singularidade cultural do
toriador social, o sociólogo e, como forma de Brasil, a vida cotidiana, a vida íntima das famíli-
sintetizar sua mensagem, finaliza como escritor. as, as técnicas de higiene corporal, a culinária,
Seu estilo oscilante é também ressaltado por as brincadeiras de criança, a sexualidade, den-
Menezes (2000). Para ele, Freyre é multidisciplinar, tre outras características culturais vinculadas à
constituindo um discurso intencionalmente sinu- vida íntima e privadas do povo brasileiro de dis-
oso. É autor de um texto que não tenta encontrar tintos segmentos sociais, são amplamente usa-
uma fórmula matemática explicativa e exata da das para construir um retrato de uma "nova
realidade, mas uma interpretação sinuosa, não nação" que permite um tipo ainda imperfeito de
pejorativa, exprimindo uma tortuosa história de "democracia social". Imperfeito na sua base po-
um povo. Para Menezes (2000), lítica e econômica. Ou seja, para Freyre, quan-
do a experiência brasileira é comparada a de
Seu estilo cognitioo é dominantemente estético habitantes de nações como, por exemplo, os
e se elabora num movimento metodológico do Estados Unidos que, do ponto de vista econô-
quase, do ta/vez e sobretudo do semi-, incli-
mico, vivenciaram uma situação semelhante, com
nação metodológica que se expressa na cons-
a escravidão, a monocultura agrícola e o latifún-
tância com que emprega esses termos, que são
os mais freqüentes de seu discurso intencio- dio, percebe-se no Brasil uma tendência à aco-
nalmente oscilante, sinuoso, nietzscbiano e modação de grupos humanos que aparentemente
talvez dialético. Uma dia/ética da medianiz, deveriam ser contrários e opostos. Oposição esta
pois, como sabemos, a medianiz é o espaço em que aconteceu de fato no caso norte-americano,
branco entre duas linhas ou duas páginas consubstanciando-se em espaços segmentados
impressas, aquele espaço em torno da costura.
e a formalização de um lugar social definido
Tomo pois a sugestão metafórica da costura
dos extremos para ilustrar esta capacidade de entre dominante e dominado.
Gilberto Freyre de se apropriar dos intersticios No caso americano, culturalmente falan-
do pensamento para construir sua própria in- do, ou o sujeito se define como negro ou bran-
terpretação (MENEZES, 2000:6)[grifo do autor]. co. Já no caso brasileiro, e Freyre já chama
atenção deste aspecto em Casa-grande & Senza-
Esta sinuosidade expressa na obra de G.F. la, percebe-se no cotidiano uma dificuldade ou
causa incômodo na intelectualidade de sua épo- indefinição na auto-classificação dos sujeitos
ca, "bagunçando" os territórios ideológicos deli- sociais que se relacionam em distintos espaços
mitados na academia. Até então, a historiografia sociais, institucionais ou não (escola, programas
brasileira, com algumas exceções, ao contrário em veículos de comunicação, trabalho, dentre
da perspectiva freyriana, era marcada por regis- outros), surgindo termos não muito precisos que
tros de "grandes fatos", "grandes heróis" e datas servem como marca de auto-caracterização
precisas, além de apresentar trabalhos caracteris- como: pardo, mulato, caboclo, etc. Este fato, para
ticamente céticos, buscando sempre encontrar o o autor pernambucano sugere uma forma dife-

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renciada de relação entre culturas que aparente-
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de bispos e pastorais; atas de sessões de Ordens
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mente parecem opostas, mas se cruzam forman- Terceiras, confrarias, santas casas; atas e o regis-
do, não só uma nova cultura, mas também uma tro geral da Câmara de São Paulo; Documentos
nova civilização. interessantes para a história e costumes de São
O sentido do termo democracia em Freyre Paulo de Afonso de Taunay, livros de assento
parece ser definido como sinônimo de tolerân- de batismo, óbitos e casamentos de livres e es-
cia, apesar de apontar em sua obra uma relação cravos e os de rol de famílias; autos de proces-
violenta sempre presente entre dominantes e sos matrimoniais; estudos de genealogia de
dominados, típica do regime escravocrata. Vio- diversos autores; relatórios de juntas de higiene;
lência e intimidade, apesar de parecer oposições documentos parlamentares; estudos e teses mé-
corriam juntas na formação do povo brasileiro, dicas; documentos do Arquivo Nacional, da Bi-
como sugere a obra do autor pernambucano. As blioteca Nacional, do Instituto Histórico
fontes organizadas e analisadas demonstram esta Brasileiro, além de cartas pessoais de famílias,
proximidade violenta e, ao mesmo tempo íntima livros de viagem de estrangeiros, cartas dos je-
dos grupos sociais que compõem a formação his- suítas, crônicas, romances, livros de etiqueta, de
tórica e social do brasileiro. receita, coleções de jornais, folhetins e
Apesar de muitas vezes os confessionári- iconografia da escravidão e vida patriarcal, den-
os terem absolvido os segredos pessoais e de tre desenhos, gravuras, aquarela e pinturas.
família, Freyre consegue encontrar, em fontes Segundo o autor, a riqueza do material é
não convencionais para a sua época, uma forma tanta que não deu para organizá-lo em uma só
para entender a história íntima da realidade bra- obra. Desta forma o autor compõe outras obras
sileira que deu origem a suas principais obras, que viriam a dar continuidade ao famoso e tão
particularmente Casa-Grande & Senzala. As con- comentado livro Casa-Grande & Senzala, como
fissões e denúncias registradas pelo Santo Ofí- Sobrados & Mucambos, Ordem & Progresso,
cio, em visitas ao Brasil, servem como material dentre outros. Todos eles tendo como eixo cen-
precioso para compreender, dentre outras coi- tral a tentativa de compreensão da formação
sas, a idade das moças casarem, os jogos, a pom- social e cultural do povo brasileiro.
pa das procissões, a vida doméstica e moral cristã Este ecletismo do autor pernambucano
das famílias, homens casados que se casam ou- romperia as barreiras do que se considerava fonte
tra vez, inclusive com mulatas, técnicas relativas de pesquisa na época, incluindo nesse rol inclu-
ao ato sexual consideradas pela igreja como sive sua memória pessoal e histórias que lhe
pecado, como a "felação" por exemplo, ete. haviam contado quando criança, transformando
Outra fonte preciosa usada por Freyre em tudo em fonte de pesquisa.
Casa-Grande & Senzala, são os registros escritos
dos "recolhedores de fatos". Estes eram perso-
nagens componentes da realidade social brasi- A SOCIOLOGIA GENÉTICA E A ECOLOGIA SOCIAL
leira dos séculos XVIII e XIX, e se preocupavam APLICADAS À COMPREENSÃO DA REALIDADE
em colecionar em cadernos, mexericos e casos BRASILEIRA
vergonhosos que poderiam depor contra as fa-
mílias mais ricas do Brasil na época. Conta Freyre É comum nos dias de hoje leitores, que
(s/d) que consegue encontrar alguns destes ca- não costumam situar a obra do autor no tempo
dernos na Bahia, Pernambuco e Minas Gerais. em que foi produzida, acusarem Freyre de "ra-
Além destes documentos, G.F. recorre a inven- cista" quando se deparam com essa idéia da
tários, cartas de semarias, testamentos, corres- "democracia social" construída pelo autor
pondências da corte e ordens reais; relatórios pernambucano. O "assombro" destes leitores

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"distraídos", encontra-se na constatação da gri- europeização da cultura brasileira, como lembra
tante diferença no acesso de bens de consumo, bem Thomaz (2001), Freyre analisa o processo
dos cargos eletivos no campo da política de formação social do Brasil chamando a aten-
institucional, do emprego bem remunerado, sem ção que os diferentes grupos presentes na dinâ-
falar das piadas e termos pejorativos usados con- mica social do país não se isolam formando
tra os "negros" ou índios, ressaltando sempre a guetos, mas formam um amálgama como se es-
idéia da superioridade do "branco" no Brasil. tivesse sendo orientado por uma eficiente polí-
Diante desta constatação nos dias de hoje, a idéia tica social de assimilação. Essa assimilação não
da "democracia social" parece despropositada. se dava no plano jurídico, religioso, administra-
O problema deste tipo de leitura é que tivo ou a partir das instituições escolares, mas
sua obra passa a não ser contextualizada no tem- sim no ato sexual.
po e no espaço em que G.F. a produziu. Grande Freyre chama atenção em Casa Grande &
parte da produção intelectual brasileira do final Senzala, que as relações entre brancos e os "de
do século XIX e início do século XX, respeitan- cor" no Brasil, desde a primeira metade do sé-
do as diferenças e particularidades dos vários culo XVI, foram condicionadas pelo sistema eco-
autores da época, além de serem presas a res- nômico da monocultura latifundiária e pela
saltar grandes fatos e heróis, como dito antes, escassez de mulheres brancas entre os conquis-
ancoravam seus argumentos na idéia de o país tadores. Vencedores do ponto de vista militar e
não ter dado certo por causa da "irracionalídade" técnico sobre os índios nativos e povos africa-
dos povos "não civilizados" que fizeram parte nos - povos estes forçados a sair de suas terras
da formação do povo brasileiro, como é o caso e trabalhar como escravos para o português co-
das obras de Nina Rodrigues, de Oliveira Viana lonizador - o europeu e seus descendentes tive-
dentre outras. Casa-Grande & Senzala surge como ram de condescender, criando zonas de
contraponto desta idéia geral, levando ao extre- confraternização compostas por relações sexu-
mo a sua crítica, apontando inclusive aspectos ais e sociais, com seus dominados que não abo-
positivos na forma particular em que se deu a liam completamente a condição de escravo do
colonização no Brasil. índio e depois do negro, mas criava brechas que
Nesse aspecto G.F. deixa de buscar aquilo faziam com que indivíduos encravos se tornas-
que aponta para as carências da sociedade bra- sem não escravos quando os donos da Casa-
sileira, e passa a tentar chamar atenção para a grande assumiam, tanto a aliança com mulatas e
especificidade da nova civilização nascida nos caboclas, quanto a paternidade de crianças que
trópicos. Portanto, não se pode fazer uma leitu- nasciam da relação.
ra de sua obra transpondo automaticamente o O fator preponderante para esta transigên-
seu pensamento para a nossa época em que o cia do europeu foi a falta de mulheres brancas,
anti-racismo passa a ser considerado uma atitu- aproximando senhores e escravas. Aproximação
de de bom senso. Na época em que Casa-Gran- esta não muito ortodoxa com relação aos dogmas
de & Senzala foi lançado, apesar de já existirem católicos. A poligamia, apesar de não ser oficial,
alguns autores que trabalhavam na mesma pers- era comum dentre os donos da casa-grande. Além
pectiva, como Manoel Bonfim, Joaquim Nabuco, disso, o patriarcalismo era o regime político do-
Paulo Prado, dentre outros, a ideologia do "bran- minante, favorecido pela escravidão e a econo-
queamento" era dominante na intelectualidade mia da monocultura agrícola, aproximando,
brasileira. Ideologia esta muita bem descrita em segundo o autor pernambucano, nossa econo-
sua formação na obra Sobrados & Mucambos. mia do feudalismo, '0 que é contestável nos
Em seus argumentos, direcionados para a modelos de explicação da formação econômica
crítica do ceticismo, "branqueamento" ou do Brasil produzida nos tempo atuais.

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Para Freyre, a casa-grande venceu a igreja o argumento do autor só pode ser entendido
no Brasil. Vencido os Jesuítas que dominaram a quando se analisa primeiramente a sua compre-
colônia até meados do século XVII, quem passa ensão sobre a formação do povo ibérico. Para
a dominar logo após é o senhor de engenho. O ele, o processo de fusão e acomodação que acon-
autor demonstra esta passagem com detalhes em tece no Brasil é fruto da importação de um mo-
Casa-Grande & Senzala. O livro Sobrados & delo que pode ser mais bem entendido quando
Mucambos, como sugere Thomaz (2001), intro- se analisa a formação histórica do colonizador
duz a mudança e o movimento da urbanização, (civilização ibérica). Para ele, tanto Portugal como
do ciclo do ouro e da vida da corte para o Bra- Espanha, apesar de estarem situados geografi-
sil, favorecendo novas ambigüidades e novos camente na Europa, não se caracterizam como
antagonismos criando um novo processo países tipicamente europeus ou até mesmo se
civilizatório que tende à "europeização" do bran- diferenciam da doutrina cristã ortodoxa. Apre-
co no sobrado e a "reafricanizar" o negro no sentam-se de forma diferenciada parecendo um
mucambo. O mulato, produzido por nossa his- misto de Europa e África.
tória social, constrói um movimento plástico onde Portanto, a especificidade da sociedade
no mucambo se africaniza e o no sobrado se brasileira, segundo Freyre, é herança do não
europeiza, repondo a tendência para a constru- europeísmo da sociedade ibérica. Bastos (s/d)
ção de uma "harmonia" entre os contrários que lembra vários autores espanhóis que apontam
passam por um processo de mestiçagem. Ten- suas reflexões nesta perspectiva, chamando a
dência esta já presente no período colonial. atenção do fato de a Península Ibérica ser um
A mulher, principalmente as negras e mu- ponto de transição entre ocidente e oriente como
latas, apesar das mudanças históricas apontadas Ortega y Gasset ou Unamuno.
em Sobrados & Mucambos, ainda desempenham Partindo deste ponto de vista, Freyre pre-
nesta obra um papel fundamental. Como cozi- tende demonstrar outra transição em sua obra:
nheiras, amas de leite ou mucamas, trazem para entre Europa e América. Ou seja, o b i-
o sobrado as histórias do mucambo, amenizan- continentalismo étnico e cultural, que começa
do o antagonismo, sem dissipá-lo totalmente. em Portugal, ganha nova dimensão no Brasil. O
A mestiçagem que resulta na assimilação que permite, por exemplo, ao africano assumir
e criação de uma nova civilização, para Freyre, também o papel de colonizador, pois muitos
é uma peculiaridade luso-brasileira. A soma de deles vieram de regiões que eram mais avança-
amor e servidão, para o autor, no Brasil é forma- das do ponto de vista tecnológico e cultural, o
dora de uma sociabilidade específica que tende que repercutia na formação, principalmente, do
a evitar conflitos, aproximando a casa-grande filho do dono da Casa-Grande. Freyre aponta
da mata tropical e da senzala. Aqui no tempo da vários fatores que demonstram a influência da
colonização, segundo G.F., o mestiço ocupava cultura negra e até da indígena na cultura brasi-
um lugar social, sendo muitas vezes reconheci- leira no que se refere aos costumes, higiene do
do como filho do dono da casa grande, o que corpo, culinária, lendas e histórias contadas às
não acontecia em outros países com as mesmas crianças, dentre outros aspectos.
características do Brasil, do ponto de vista eco- Aqui se percebe uma tentativa do autor
nômico e das relações de trabalho. Para ele, a de afastamento da sensação de dualidade pro-
história privada transcorrida na casa-grande coin- duzida por boa parte dos autores de sua época.
cide com a história social de cada brasileiro. A idéia da tensão entre dois termos é refutada
A idéia da compreensão de quem é colo- pela da acomodação. Acomodação que não passa
nizador no Brasil, também é relativizada pelas só pela relação entre três povos diferentes, mas
reflexões de Freyre. Como lembra Bastos (s/d) , também entre o homem e natureza, formando

FR ElTAS, NILSON ALMINO DE. A TORTUOSA VEREDA DO MÉTODO: GILBERTO FREYRE - LITERATURA... P. 99 A 109 107
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um complexo único que justifica a afirmativa da postos do autor espanhol e distanciamentos. Para
formação de uma nova civilização. ela o método sensual superando a rigidez racio-
A dimensão do conflito na obra de Freyre nal e o encontro entre ocidente e oriente, mar-
não é substituída, mas vista com outros olhos. cam o pensamento dos dois autores. Mas, os
Não há na reflexão de Freyre a formação de dois distanciam-se quando apontam as conse-
blocos mais ou menos homogêneos, onde um qüência desta constatação analítica. Ortega pensa
caracteriza-se por ser o "bem" e outro o "mal". na manutenção de uma cultura aberta sujeita a
O que ele cria é uma leitura que apresenta uma transformações de seu caráter, enquanto Freyre
descrição densa e detalhada das peculiaridades afirma que a cultura brasileira crescerá consoli-
e diferenças próprias de uma cultura que se for- dando seus próprios elementos internos, o que
ma, não pela estratégia da desconfiança e sepa- segundo Bastos (s/d), o aproxima de Unamuno,
ração dos corpos e espaços sociais destinados a outro autor espanhol.
cada segmento, mas da mistura, mesmo que Fugindo da compreensão da percepção de
imperfeita do ponto de vista econômico e polí- Freyre sobre a política e a democracia, que não
tico. A intimidade passa a ser central em sua é objeto de estudo neste trabalho, percebe-se
reflexão. O percurso não aponta para uma aná- que esta idéia da tendência a consolidação en-
lise que pode ser concluída por uma simplifica- quanto civilização através do movimento e cru-
ção descritiva e explicativa dualista, mas sim, zamento cultural entre elementos particulares que
uma interpretação de uma realidade complexa, constituem a realidade cultural brasileira, tem
quase existencial ou até impressionista. Ou seja, uma conseqüência metodológica importante.
a busca não é por um conceito final, mas uma Para Freyre, os sujeitos da história passam a ser
impressão sensual que nos apresenta de forma exatamente aqueles que aparentemente situam-
comovente e envolvente, tentando sempre en- se fora da história: o homem comum que atra-
contrar a justa medida entre o pensamento me- vés de suas práticas cotidianas criam o mundo
tódico e a sensibilidade. em que vivem. Estes são os verdadeiros cons-
Mais uma vez, neste aspecto impressio- trutores da civilização brasileira, juntamente com
nista, Bastos (s/d) encontra uma aproximação a elite social. Ou seja, na articulação e conver-
entre o autor brasileiro e autores espanhóis. gência tipicamente brasileira entre o negro, o
Ortega é citado por ela como um dos exemplos. branco e o índio, é que se pode compreender o
Preocupado em compreender a cultura mediter- Brasil. A explicação, portanto, não está na sepa-
rânea, particularmente a espanhola, Ortega ten- ração, e sim, na convergência entre os três ter-
ta demonstrar que não existe uma configuração mos. Não dá para separar. Um se explica pela
cultural pura, e sim, um ecletismo historicamen- convergência com o outro. Desta forma em cada
te definido por misturas entre povos distintos. região e em cada tempo, a convergência se
Esta mistura, segundo a compreensão de Bastos complexifica, ao mesmo tempo em que se parti-
do autor espanhol, cria uma forma particular de culariza. E esta é a grande contribuição do pen-
apreensão do mundo que é o sensualismo. Esta sador pernambucano: a compreensão da cultura
forma sensual rompe com as cadeias que man- enquanto movimento, se contrapondo a visões
tém a cultura ibérica escrava de uma ética e es- estáticas, essencialistas, que buscam uma expli-
tética rígidas, declarando-se independente. Esta cação absoluta e definitiva.
atitude constrói uma cultura fronteiriça ou para- Assim, respondendo à pergunta inicial,
doxal que tende ao equilíbrio entre o particular percebe-se que sua obra é metódica, mas não
e o universal. rígida. Ou seja, sua leitura do Brasil é rigorosa,
No caso do autor brasileiro, Bastos (s/d) mas não é presa a modelos predefinidos que
encontra aproximação com relação aos pressu- devem ser seguidos de forma estritamente tensa

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e inteiriça. É sinuoso, tortuoso, as vezes até des- BASTOS, Elide Rugai. "Gilberto Freyre e a ques-
tão nacional". in.: MORAIS, Reginaldo, ANTUNES,
compassado, apesar de coerente, aproximando-
se de um tipo de literatura que libera a Ricardo & FERRANTE, Vera B. Inteligência bra-
criatividade. É também um texto em aberto e sileira. São Paulo, Editora Brasiliense, 1986,
não conclusivo, como deve ser todo e qualquer pg.43-76.
trabalho que pretende ser científico, pois, a ci- FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. São
ência se faz com perguntas, e não com repostas Paulo, Círculo do Livro, s/d.
definitivas demonstradas como fatos
___ oGilberto. Como e porque sou e não sou
pretensamente comprovados. O trabalho cientí-
sociólogo. Brasília, Editora da Universidade de
fico deve sugerir continuidades e não se fechar
Brasília, 1968.
em si mesmo. E isso Freyre faz com muita com-
Gilberto. Interpretação do Brasil. São
petência, fugindo da estreiteza de uma concep-
___ o

Paulo, Companhia das Letras, 200l.


ção de ciência rija e resistente à criatividade do
pensamento livre e estimulante típico de uma ___ Gilberto. Sobrados & Mucambos. ged.,
o

boa obra de literatura. Rio de Janeiro, Record, 1996.


MENEZES, Eduardo Diatahy B. de. A Invenção
NOTA do Brasil entre c/io e o mytbos: contraponto com
Gilberto Freyre de Interpretación de Brasil. Co-
1 Os termos aqui usados para caracterizar o que re- municação apresentada no Seminário Internaci-
presenta a formação da nação brasileira foram to- onal "Novo mundo no trópico", Fundação
mados de empréstimo de uma citação de José
Gilberto Freyre, Recife, 2000.
Honório RODRIGUES feita por Menezes (2000),
por expressar um pensamento presente nas análi- SCHWARCZ, Lilia Moritz & QUEIROZ, Renato da
ses de Gilberto Freyre. Silva (orgs.). Raça e Diversidade. São Paulo,
EDUSP, 1996.
THOMAZ, Ornar Ribeiro. "Introdução". in.:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FREYRE, Gilberto. Interpretação do Brasil. São
Paulo, Companhia das Letras, 200l.
BASTOS, Elide Rugai. Brasil: um outro ociden- WESTPHALEN, Cecília Maria. Gilberto Freyre,
te? Gilberto Freyre e a formação da sociedade historiador da vida material: os bichos, as cousas
brasileira. Disponível na Intenet no site httpll e as técnicas. Disponível na Internet no site http/
www.fundaj.gov.br/clacso, s/d. /www.fundaj.gov.br/clacso, s/d.

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