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Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, ano 4, v.l, p. 5-16,jan./jun.

1995 5

Coelho, Schuchardt e Hesseling:


Encontros e Desencontros entre
Pioneiros dos Estudos Crioulos.

Tânia Maria Alkmim


Universidade de Campinas

Abstract
L'article en question fait un bref aperçu des rapports entretenus par Coelho,
Schuchardt et Hesseling sur la question des pidgins et créoles. Ces auteurs,
considerés comme les fondateurs des champs des études créoles et issus
de la linguistique du XIXeme siécle, présentent des ressemblances et des
différences, qu 'on peut déceler a partir de l'examen de quelques uns de
leurs textes.
ALKMIM 6

I -INTRODUÇÃO
,
E comum, na história da lingüística contemporânea, referir-se a Fran
cisco Adolfo Coelho, filólogo português, como o fundador do campo
dos estudos crioulos. Não que, antes dele, os crioulos e pidgins tenham
ficado sem registro. Presentes em relatos de exploradores, viajantes, re-
ligiosos, etc., as notícias sobre essas variedades lingüísticas refletiam, fun-
damentalmente, uma visão preconceituosa e desqualificadora. É Coelho,
entretanto, que, em 1878, em conferência na Sociedade de Geografia de
Lisboa, chama atenção ''para as formas dialectais particulares que al-
gumas línguas européias e particularmente o fráncês, o espanhol e o por-
tuguês tinham tomado nas colônias e conquistas da África, Ásia e América"
e observa que "Esses dialectos têm até hoje atraído muito pouco a atenção
dos lingüistas, não existindo nenhum trabalho geral sobre eles." (Coe-
lho (1880). p.3).
Em 1880, Coelho publica a primeira parte de seu trabalho que leva
o pretensioso título "Os dialectos românicos ou neo-Iatinos na África,
Ásia e América". É então que, da periferia da "cena lingüística, as línguas
crioulas se transformam em objeto digno de estudo, como fica claro no
próprio dizer de Coelho(l980): "Era nosso desejo reunir materiais para
um trabalho especial sobre os dialectos portugueses, e um trabalho ge-
ral comparativo em que tentássemos determinar as leis de formação que
se pode por assim dizer estudar no vivo por que um semelhante estudo não
poderia deixar de nos ministrar dados importantes sob o ponto de vista
glotológico, etnológico e psicológico." Consciente de seu pioneirismo, Co-
elho(1880), referindo-se à literatura lingüística da época, assinala que "em
vão se busca uma notícia desses tão interessantes produtos; as opiniões
expressas por alguns lingüistas sobre o caráter desses dialectos são, como
veremos, indecisas ou errôneas, ou não apontam os lados por que esses
dialectos são mais importantes para o observador." (pA)
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É a partir da iniciativa de Coelho(l880) que o importante filólogo


e romanista alemão Hugo Schuchardt entra em contato com o fenômeno
"línguas crioulas". Se, por seu lado, Coelho participava junto com outros
intelectuais e cientistas portugueses de projetos voltados para a realidade
das colônias portuguesas na recém-fundada Sociedade de Geografia de
Lisboa 1, Schuchardt reconhece no materiallingüístico dos crioulos uma
munição excelente para suas discussões com os neogramáticos 2• De fato,
pidgins e crioulos forneceram a Schuchardt base de argumentação con-
tra o princípio da regularidade das leis fonéticas e a favor da possibili-
dade da misrura de gramáticas. Mas, a partir de seu primeiro trabalho relativo
a crioulos - uma resenha de Coelho(l880), feita em 188 P, -Schuchardt
inicia uma atuação contínua e especializada: são mais de quarenta títu-
los voltados para o campo dos estudos crioulos4, em que os crioulos por-
tugueses ocupam uma parte importantíssima. Saudado por Coelho(l882)
como um aliado de peso, Schuchardt torna-se, efetivamente, a grande
referência da época para a questão das línguas crioulas.
Um trabalho de Schuchardt de 1890 sobre o malaio-português da
Indonésias despertou o interesse de um outro estudios06 : dessa vez, de D.C.
Hesseling, filólogo holandês, especialista em estudos clássicos. Segun-
do Muysken e Meijer(l977), Hesseling, voltado para a questão da formação
da koiné grega, perguntava-se se esta era um desenvolvimento direto do
dialeto ático ou era resultado de mistura dialetal. Tocado pela questão da
mescla lingüística, Hesseling deslocou seu interesse para o africâner, va-
riedade de holandês da África do Sul. Em 1897, Hesseling marca sua entrada
com um artigo em que levanta a hipótese de que o africâner seria o re-
sultado de um processo de crioulização, produzido pelo contato entre o
holandês e o pidgin malaio-português falado por escravos trazidos para
a região do Cabo, entre 1658 e 1685. A partir daí, Hesseling produz uma
série de trabalhos sobre crioulos 7 •
Formados dentro do mesmo contexto da lingüística do século XIX,
Coelho, Schuchardt e Hesseling representam, no entanto, posições originais
e particulares que os aproximam e os distanciam. Contemporâneos e portanto
familiarizados com a mesma literatura especializada, esses estudiosos ,
ao se tomarem ativos no mesmo e novo campo da reflexão lingüística, tor-
naram-se também leitores naturais e atentos dos trabalhos que cada um
deles produzia.
Se de um lado, Coelho se destacou como aquele que atribuiu aos cri-
oulos um estatuto de objeto científico, por outro lado, é o que menos produziu
sobre o assunto. Sua obra de crioulista se restringe basicamente às três
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publicações de 1880, 1882 e de 1886, que exibem muito mais um cará-


ter de compilação de fontes disponíveis sobre o tema do que o de um exer-
cício de reflexão sistemática sobre a questão das línguas crioulas. Em outras
palavras, Coelho, essencialmente, formula, em algumas páginas, sua
hipótese sobre a origem e natureza dos crioulos (apenas no texto de 1880),
apresenta dados relativos a diversos crioulos obtidos em fontes diversas
e analisa, de maneira bem genérica, crioulos portugueses (nos textos de
1880, 1882 e 1886). Mas são as referências bibliográficas, às vezes co-
mentadas, que ocupam o maior espaço.
Schuchardt trabalhou ao longo de trinta e três anos sobre o tema das
línguas crioulas. Estudiosos de sua obra apontam o caráter fragmentário
da sua produção, mudanças de posição sem apresentação de justificati-
vas e observações discutíveis e nem sempre confiáveis 8 • Mas é inegável
que Schuchardt, entre 1881 e 1920, dedicou-se profundamente aos estudos
crioulos, aliando seu talento de teórico às descrições de crioulos do português,
do francês, do inglês, do espanhol e do holandês.
Hesseling, com alguns períodos de pausa, manteve-se ligado à questão
das línguas crioulas, tendo publicado a respeito cerca de onze títulos, entre
1897 e 1934.
Muito pode ser dito sobre a obra dos pioneiros dos estudos criou-
los. Gostaríamos, aqui, de fazer uma breve apreciação sobre a relação aca-
dêmica que Coelho, Schuchardt e Hesseling estabeleceram entre si. Para
tanto, analisaremos a interlocução que esses estudiosos mantiveram através
de suas publicações e também focalizaremos alguns pontos de convergência
e de divergência entre eles 9 • .

II - ENCONTROS E DESENCONTROS: RELAÇÃO COM DADOS E


VISÃO DO FENÔMENO

Distintos pontos de partida podem ser assumidos para focalizar con-


vergências e divergências entre esses pioneiros. Apontaremos, aqui, apenas
dois aspectos que nos parecem significativos.
O primeiro aspecto diz respeito à relação que Coelho, Schuchardt e
Hesseling estabeleceram com os dados lingüísticos: nenhum deles colt~tou
diretamente o material sobre o qual basearam suas reflexões. Marcados
pela tradição filológica, esses estudiosos trabalharam seja com fontes escritas
de naturezas diversas (históricas, literárias, lingüísticas, etc.), seja com
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dados coletados ou reunidos por outros. Coelho(1880), por exemplo, ao


analisar o crioulo português de Cabo Verde, se baseia em três cartas "escritas
por pessoas instruídas que falam bem o português. Mas que conhecem
bem o crioulo rachado", e também em uma "série de adivinhações que
o nosso amigo Sr. Sá Nogueira nos ministrou"(p.5).
Schuchardt trabalha essencialmente com fontes escritas. Um bom exem-
plo é o seu famoso texto sobre o crioulo inglês do Suriname 10 em que ele
recorre a relatos de viagem, artigos de natureza lingüística, dicionários,
gramáticas, textos literários, traduções da Bíblia e correspondências com
outros estudiosos.
Hesseling não se comportou diferentemente. É assim que vemos, por
exemplo, que, em seu trabalho sobre o africâner, de 1897, ele se vale de
estudos lingüísticos, fontes históricas e etnográficas,. além de textos literários
em prosa e verso.
Presos ao testemunho do escrito, os estudiosos de crioulo, no entanto,
comportam-se diferentemente diante da realidade daí decorrente. Enquanto
Schuchardt e Hesseling mostravam-se bem cuidadosos em relação às fontes
utilizadas, sobretudo no tocante à qualidade dos dados lingüísticos, Co-
elho manifesta um atitude nada seletiva. Vemos, por exemplo, que Coe-
lho(1886), ao tratar do indo-português de Singapura, observa que "As frases
e outras indicações que reuni foram por ele ditadas de memória, e não
'posso, salvo com relação a algumasfrases, a um curto canto de cinco versos
(n° 72) e dois provérbios (nOS 73 e 74), asseverar a perfeita autenticidade
desses documentos. "(p.175).
O segundo aspecto tem a ver com o fato de que Coelho, Schuchardt
e Hesseling reconheceram semelhanças estruturais entre fenômenos
lingüísticos tradicionalmente vistos como tendo naturezas diversas. Mais
precisamente, os referidos estudiosos reuniram dentro do mesmo campo
de reflexão: variedades lingüísticas regionais de uma mesma língua, "fala
de estrangeiro" (foreigner talk), pidgins e crioulos. Coelho(1880) já sinaliza,
por exemplo, a partir d? título do trabalho - "Os dialectos românicos ou
neo-Iatinos na Africa, Asia e América" - que pretende discutir globalmente
todas as "formas alteradas" de línguas européias, produzidas no contexto
da expansão colonial. É assim também que ele utiliza a terminologia genérica
"dialectos românicos ou neo-latinos" para se referir não só a crioulos pro-
priamente ditos (p.ex. crioulo português de Cabo Verde, crioulo francês
da Martinica), pidgins (p.ex. Língua Franca), variedades geográficas (p.ex.,
português do Brasil, espanhol do Peru). Schuchardt, centralmente interessado
pela questão da mescla lingüística, dedicou-se ao estudo de fenômenos
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rotulados por ele como "línguas de urgência" ou "de necessidade", que


ainda incluía "fala de estrangeiro" (foreigner talk) pidgins e crioulos 11,
mas também discutiu questões envolvidas no uso de uma língua por fa-
lantes não nativos, como, por exemplo, nos casos dos trabalhos sobre o
domínio escrito do inglês por índios norte-americanosl 2 e sobre a presença
do inglês na Índia l3 . Hesseling destacou-se pelo estudo do africâner, que
é uma variedade geográfica do holandês l 4, interessou-se pelas questões
colocadas a partir do deslocamento do francês para o Canadá l5 , e da utilização
do holandês no antigo Ceilão (atual Sri Lanka) do século XVII16, além
dos trabalhos sobre crioulos do espanhol e do holandês.

III - A INTERLOCUÇÃO ATRAVÉS DE TEXTOS

Coelho, Schuchardt e Hesselling, em função do interesse que os uniu


e os singularizou no panorama da época, acabaram constituindo-se inter-
locutores privilegiados uns dos outros. Em termos concretos, o trabalho
de um representava uma leitura necessária para outros. E é seguindo a rota
de referências e citações contidas em alguns de seus trabalhos que podemos
identificar a natureza da relação acadêmica que os pioneiros dos estudos
crioulos estabeleceram enre si. Lingüistas contemporâneos têm-se dedicado
à pesquisa da obra desses estudiosos 17 , buscando destacar, entre outros
aspectos, o impacto da reflexão de cada um deles sobre o trabalho dos outros.
Pretendemos, aqui, partindo das alusões diretas feitas em trabalhos pu-
blicados, apontar como cada um dos pioneiros se relacionou com a produção
dos demais.
Coelho(l882) saúda Schuchardt pela resenha de 1881, feita sobre seu
texto de 1880 e, em um gesto de humildade pública extrema, informa que
se preparava "para tratar de modo tão completo quanto possível o assunto,
quando o douto e perspicaz professor de línguas românicas na universidade
de Graz, sr. Hugo Schuchardt, nos manifestou a intenção de se ocupar dos
dialectos crioulos, assunto que folgamos ver em tão boas mãos: em virtude
disso resolvemos limitarmo-nos a publicar, em forma de simples notas, os
materiais colhidos (...) aguardando a publicação da obra do ilustre glotólogo
alemão ... "(p.1 09). É verdade que ele acrescenta "não estar inteiramente
de acordo com o sr. Hugo Schuchardt "(p.1 09), embora não revele os pontos
de discordância. No terceiro e último trabalho, Coelho(1886) inunda seu texto
de referências a Schuchardt. Encontramos aí cerca de onze citações do liil-
güista alemão. Não seria excessivo inferir que Coelho tem uma enorme
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admiração por Schuchardt e se sente orgulhoso do contato que se estabe-


leceu entre eles. Seguramente, em função disso, Coelho(1886), logo no início
do texto, ao referir-se à nova resenha de Schuchardt(1883)ls ainda sobre o
trabalho de 1880, considera "valiosas as adições e correções " (p.183) feitas
aí. Mais uma vez, Coelho(1886) não se preocupa em identificar pontos de
conflito. Na mesma linha do raciocínio anterior, somos tentados a interpretar
a presença, nos textos de Coelho, de expressões do tipo "douto e perspi-
cazprofessor"(1882, p.109), "o meu amigo H. Schuchardt" (1886, pp. 161
e 174), "As minhas investigações e as de H. Schuchardt" (1886, p.174) como
uma preocupação em explicitar a existência de uma relação próxima e efetiva
com a figura renomada de Schuchardt. Como decidiu afastar-se da questão
das línguas crioulas com o texto de 1886, Coelho nunca chegou a manifestar-
se sobre Hesseling, que só aparece em 1897.
Frente à atitude francamente entusiasta de Coelho, Schuchardt se mostra
reservado e só faz poucas referências de natureza acadêmica a Coelho. É
fato que Schuchardt e Coelho se corresponderam por alguns anosl 9 . Mas,
se de um lado Schuchardt dedicou duas resenhas a Coelho, por outro lado,
foi bem parcimonioso no que se refere ao reconhecimento da contribuição
deste à questão das línguas crioulas. Um bom exemplo disso pode ser
encontrado em Schuchardt(1888), em que Coelho é citado duas vezes. Em
ambos os casos, Coelho aparece simplesmente como tendo sido o primeiro
a dar notícias sobre os crioulos portugueses de Cabo Verde e São Tomé.
Mas parece não ser casual o fato de Schuchardt(1888) não só qualificar
de cuidadoso e extensivo o trabalho de dois caboverdeanos2o sobre o crioulo
de Cabo Verde como informar ter utilizado o referido texto como base de
seu texto de 188721 • Considere-se, a propósito, que foi exatamente sobre
o crioulo de Cabo Verde que Coelho mais trabalhou.
A referência mais explícita a Coelho aparece no famoso texto de
Schuchardt(1909) sobre a Língua Franca - e esta não poderia ser interpreta-
da como elogiosa. Vemos aí que Schuchardt(1909) indica um ponto sobre o
qual está de acordo com Coelho (o fato de que os falantes "mutilam" suas
próprias línguas nativas em beneficio de aprendizes estrangeiros) e, em segui-
da, chama atenção para o que considera uma inconsistência do lingüista por-
tuguês.(o fato de Coelho sustentar também que os aprendizes estrangeiros sim-
plificam a língua em processo de aquisição, ao selecionarem as formas mais
freqüentes e gerais). Mais que isso, Schuchardt(1909) reclama uma palavra
final sobre a posição ambígua de Coelho. Indo ainda mais longe, ele observa
que Coelho publicou apenas um dos oito trabalhos que prometera22 •
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Entre Schuchardt e Hesseling transparece uma relação acadêmica muito


mais orgânica. Vemos, por exemplo, que Schuchardt(1914a), em seu texto
sobre o crioulo inglês no Suriname, utiliza dados publicados por
Hesseling(1905)23 e até mesmo agradece pela ajuda deste em relação a
citações de autores holandeses. É certo que Schuchardt(1914b) aponta falhas
em Hesseling(1905)24, como, por exemplo, o fato de o lingüista holan-
dês não ter sido suficientemente crítico em relação a uma fonte ou ain-
da por não ter consultado três outras fontes, duas delas julgadas indispen-
sáveis. Mas Schuchardt(1914b) elogia abertamente Hesseling(1905)25 como
estudioso competente, crítico e criativo em relação ao tratamento de fontes.
Schuchardt(1914a) também manifesta claramente sua adesão a uma
postulação de Hesseling(l905)26 em relação à questão do papel das lín-
guas africanas na fonologia de crioulos 27 .
A trajetória de Hesseling esteve sempre próxima à de Schuchardt,
cujos trabalhos foram fundamentais para o conjunto da produção acadêmica
daquele. É interessante ver, por exemplo, que, em seu texto sobre o
papiamentu de Curaçao e o negro-holandês das Ilhas Virgens,
Hesseling(l933a) não só percorre as mesmas fontes utilizadas por
Schuchardt(l914a) como endossa as análises feitas por este. Quanto a
Coelho, principalmente pelo efeito deste em Schuchardt, Hesseling não
podia ignorar o lingüis~ português. E isso fica bem claro quando Hesseling
publica um artigo em 1933 - "How did creoles originate?" - em que, pela
primeira vez, as posições dos pioneiros são confrontadas de um ponto de
vista global. Em outras palavras, Hesseling(1933b) parte da questão central
da origem e formação dos crioulos e identifica aqui a posição de cada um
deles. Não caberia apresentar a totalidade do debate contido no referido
texto. Mas vale apontar que Hesseling(l933b) se opõe frontalmente a
Schuchardt e se aproxima de modo significativo da posição manifestada
por Coelho(1880). Vemos assim que Hesseling reproduz um pequeno trecho
de Coelho(1880)28e dirige toda a sua contra-argumentação à posição central
defendida por Schuchardt, em vários trabalhos, de que os falantes nati-
vos simplificam a própria língua na situação de contato com estrangei-
ros e estão, portanto, na origem da formação dos crioulos. De maneira não
muito explícita, Hesseling(l933b) se identifica com Coelho em pontos fun-
damentais:
• crianças e adultos não letrados aprendem uma língua estrangeira de
modo "intuitivo";
• os crioulos africanos representam uma aquisição imperfeita das línguas
européias..
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Mesmo manifestando sua forte oposição a Schuchardt, já falecido


na época da publicação do seu artigo, Hesseling(1933b) não deixa de se
preocupar em justificar tal atitude. É assim que ele se refere a Schuchardt
como "a man with whom one cannot desagree without feeling
insecure "(p.64). Mas, adequadamente, ele observa que silenciar, quando
se tem uma posição discordante, põe em risco a independência intelec-
tual.

IV - FINALMENTE

Schuchardt pode, efetivamente, ser considerado como a figura central


dos pioneiros dos estudos crioulos. Mesmo para os dias de hoje, suas
reflexões são uma referência indispensável. Coelho e Hesseling renderam
suas melhores homenagens a Schuchardt como reconhecimento de sua
autoridade. Hesseling mereceu um tratamento diferenciado por parte do
lingüista alemão. Coelho recebeu sempre alusões discretas de seus colegas
crioulistas. Mas não podemos negar-lhe um lugar particular no campo dos
estudos crioulos. Por pouco perseverante que tenha sido no papel de te-
órico e analista, a atitude inovadora de Coelho para a lingüística da época
é incontestável. No texto final de 1886, Coelho dá um bom testemunho
disso:
"Não são tantas as palavras amáveis dos mencionados filólogos que
me compensam do meu trabalho, como ver que contribuí para promo-
ver o estudo de um assunto interessante pelo primeiro lance dos olhos geral
sobre o domínio crioulo. Como disse acima, até entre nós se fala já de
dialectos crioulos e, conquanto por via de regra não se mencione o meu
nome, servem-se do que eujáfiz, aproveitam os meus extratos sem dizer
nada, reproduzem a terminologia que adotei, significando assim que os
frutos da minha investigação se tornaram bem comum." (1886; p.233).

NOTAS

'Cf. MORAIS, BARBOSA, 1967, Introdução.


2A esse respeito, consultar, por exemplo, VENNEMAN, T. E WILBUR, T.H. (1972).
3Publicada na revista: SCHUCHARDT, H.(1881). Zeitschrift für
romanische Philologie. 5,pp.580-1.
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4Cf. bibliografia completa de Schuchardt sobre crioulos e pidgins in


GILBERT,G.G.(1980).
5SCHUCHARDT,H (1890) Kreolisch Studien IX. "Über das
Malaioportugiesisch von Batavia und Tugu". Sitzungsbericht der
Kaiserlichen Academic der Wissenchaften zÜr Wien 122(9).pp.I-256.
6MUYSKEN,P. e MEIJER,G.(1979) levantam essa hipótese.
7Cf. bibliografia de Hessseling em MARKEY,T.L. e ROBERGE,P.T.(l979).
8A esse respeito, ver as Introduções de GILBERT,G.G. e de BICKERTON,D.
em GILBERT,G.G.(1980) e em MARKEY,T.L.(1979), respectivamente.
9Com relação à produção de Schuchardt e Hesseling, servimo-nos apenas
de textos publicados em inglês.
IOSCHUCHARDT(1914a).
IlCf. Schuchardt(1909).
12Cf. Schuchardt(1889).
13Cf. Schuchardt(1891).
14Cf. Hesseling(1897) e (1899).
IS Cf. Hesseling(1923).
16Cf. Hessiling (1910).
17v.,p. ex., MUYSKEN,P. e MEIJER,G. (1978) e 1977).
18Publicada na revista: SCHUCHARDT,H. (1883). Literaturblatt für
germanische und romanische Philologie.4,pp.279-82.
19Cf. GILBERT,G.G(1980)."Introduction".
2°COSTA,J.V. Botelho da e DUARTE,C,J.(l886)."O crioulo de Cabo Verde.
Breves estudos sobre o crioulo das ilhas de Cabo Verde."Oferecidos ao
Dr. Hugo Schuchardt in MORAIS-BARBOSA,J. (1967).
21Resenha publicada na revista: SCHUCHARDT,H.(1887). Literaturblatt
für germanische und romanische Philologie.8,pp.132-141.
22COELHO,F.A.(1901). Estudos sobre a influência étnica na transfor-
mação das línguas. Coimbra, Imprensa da Universidade.
23HESSELING,D.C.(1905)."Het Negerhollands der Deense Antillen". De
Gids.69,I,pp.283 -3 06.
24Cf. Nota 22.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, ano -t, v.1, p. 5-16,jan./jun. 1995 15

25Cf. Nota 22.


26Cf. Nota 22.
27Schuchardt(1914a), à p.119, afirma: "Hesseling(1905) is sure1y right when
he attributes to the influence of African languages the tendency of the
Negro creole to let words end in a vowel, especially to add a vowel to
a final consonant."
28Hesseling(1933b) reproduz o trecho de Coelho(1880), localizado à p.1 04
de MORAIS-BARBOSA,J .(1967).

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