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Decifrar todas as implicações sociais contidas naquilo que os homens


denominaram de ciência, não é tarefa fácil. Vamos, portanto, estudar
aqui, apenas alguns aspectos que nos parecem mais relevantes para a
discussão da questão que pretendemos levantar. A nossa questão tem
uma função social, e esta função nem sempre é claramente formulada
ou considerada em todas as suas mais diversas manifestações. Uma
coisa parece certa: o próprio termo ciência foi ganhando ao longo da
história uma tal independência com relação à sua inserção nos fatos
humanos que parece, às vezes, ter pouco ou nada a ver com os
homens.

Palavras-Chave: Ciência; função social da ciência; história da ciência

Deciphering the social implications contained in what men call


science is not an easy task. Here, a study is made on a few aspects
which appear to us more relevant to the discussion we wish to raise.
Our question has enunciation of easy apprehension: science has a
social function and this function is not always clearly formulated or
considered in all its diverse manifestations. One thing appears
certain: the very term “science” has gained through history such na
independence in relation to its insertion in human facts, that it
appears, sometimes, to have little or nothing to do with men.

Keywords: Science; social funtions of science; history of science

102 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 102-114, 2002.
Ciência e História
Hipóteses de Trabalho

From what we have already observed on the general


Pedro de
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

characteristics of human nature, it has appeared,


Alcântara that man is not made for repose.
Figueira Adam Ferguson1

Historiador, Decifrar todas as implicações sociais contidas na-


ex-professor quilo que os homens denominaram de ciência, não é
visitante da UFMS
tarefa fácil. Vamos, portanto, estudar, aqui, apenas
alguns aspectos que nos parecem mais relevantes para
a discussão da questão que pretendemos levantar. A
nossa questão tem um enunciado de fácil apreensão: a
ciência tem uma função social, e esta função nem
sempre é claramente formulada ou considerada em
todas as suas mais diversas manifestações. Uma coisa
parece certa: o próprio termo ciência foi ganhando ao
longo da história uma tal independência com relação à
sua inserção nos fatos humanos que parece, às vezes,
ter pouco ou nada a ver com os homens.2

1
Adam Ferguson, An Essay on the History of Civil Society 1767,
edited,with an introduction, by Duncan Forbes, for the University
Press, Edinburgh, 1966, p. 210.
2
A insensibilidade para o fato humano é, às vezes, tão grave que
mesmo os percalços da vida de cientistas como Galileu, Descartes,
Giordano Bruno e muitos, muitos, outros não são levados em
consideração quando uma qualquer descoberta de um desses ho-
mens é referida.

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Não vai muito longe a época em que minador comum, ou a uma aproxima-
se pretendeu demonstrar, com argumen- ção razoável, também no campo das ciên-
tos objetivos – tão mais objetivos, é o cias da natureza a mesma dificuldade
que se pretendia, quanto mais estives- se apresentou. Necessário é entender que
sem fundados na eliminação das pai- as teses marxistas a respeito do conhe-
xões e dos interesses dos homens – vis cimento diziam respeito, genericamente
homens! – que a ciência humana era falando, também às ciências naturais.
tanto mais científica quanto mais dis- Para Lênin, por exemplo, a objetividade
dos fenômenos na-
turais é deturpada
Não vai muito longe a época em que se pretendeu pelos interesses dos
demonstrar, com argumentos objetivos (...) que a cientistas que se
identificam com os
ciência humana era tanto mais científica quanto mais interesses dos do-
distante dos fatos humanos ela fosse formulada... minantes.
Embora perten-
cendo a um passa-
tante dos fatos humanos ela fosse for- do recente, essas teses parecem ter se
mulada e estabelecidos seus critérios e perdido num longínquo passado, bem dis-
seus métodos. Não se pode negar que tante. Elas fizeram a glória do debate
este absurdo não tenha enriquecido a científico e acadêmico até a década de
discussão a respeito do conhecimento setenta e começaram a perder a sua
científico. Foi indubitavelmente um mo- força polêmica desde então, mesmo por-
mento muito mais interessante e rico que, entre os antigos weberianos mui-
do que o que agora vivemos em que não tos se passaram para o campo do mar-
se discute praticamente nada. O acirra- xismo, sobretudo quando começou o
mento dos ânimos quando da discussão desmanche do império soviético e o ca-
a respeito da ciência humana represen- pitalismo readquiriu um poderio que
tou, na verdade, um avanço incontestá- desde 1917 lhe escapara.
vel não só para o entendimento do que Curioso em toda esta história é que,
é ciência, como especialmente para o quando os marxistas tentaram fazer o
entendimento das inúmeras manifesta- inventário histórico das conquistas hu-
ções da ciência humana. Aquele debate manas, avaliar as vitórias humanas
esteve ligado sobretudo ao combate às sobre os elementos naturais, ou seja,
teses filosóficas defendidas pelos mar- quando se debruçaram sobre a história
xistas. Para estes, a ciência não é neu- da ciência propriamente dita, dificilmente
tra, mas, sim, comprometida com os in- conseguiram manter incólumes os prin-
teresses de classe. E mais ainda, a ciên- cípios filosóficos que norteavam as suas
cia é freqüentemente, para eles, um ins- teses, ou seja, os próprios fundamentos
trumento de manipulação da classe do- do marxismo. Ao tratar, por exemplo,
minante que pretende fazer valer os seus da ciência grega, os marxistas, levados
interesses como interesses de todos. Os por um irrefreável entusiasmo por tudo
que criticavam os marxistas ficaram o que diz respeito ao brilhantismo do
identificados com o famoso sociólogo e pensamento na Grécia, muito freqüen-
historiador da economia, Max Weber. De temente não conseguiam manter inta-
um lado estavam os marxistas, de ou- tas a pureza das suas teses. Esquece-
tro, os weberianos. ram até que a Grécia era escravista.
Se, com relação aos fatos humanos, Acabaram, na verdade, ficando com um
praticamente não se chegou a um deno- conceito de ciência pouco recomendável

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para quem dizia prezar a ciência histó- conhecimento a respeito dos fenômenos
rica. No fundo, o que parece ter restado da natureza. Aproximo-me da concep-
do acirrado debate que então se travou, ção que encerra o nosce te ipsum, inse-
foi uma concordância sem grande rele- rindo explicitamente esta antiga sabe-
vância que reduziu a ciência à batida doria num contexto histórico em que
idéia de descoberta da verdade. Tudo está presente, na forma de forças so-
parecia se resumir à pobre idéia de que ciais, o conjunto todo da sociedade. Que-
existe uma verdade, e à ciência cabe ro com isto dizer ser quase impossível
descobri-la. Neste ponto, desapareciam falar de ciência se não consideramos,
em grande medida as divergências que em todas as suas múltiplas manifesta-
tornaram tão profícuo o debate a res- ções, as transformações que ocorrem
peito da natureza social do conhecimen- num determinado lugar, num tempo de-
to humano. Os marxistas sucumbiram terminado e numa determinada socie-
ao se mostrarem incapazes de reverem dade. Fico, neste aspecto, com a tese
as suas teses. Sucumbiram mais ainda baconiana segundo a qual a verdade é
quando foram incapazes de enfrentar a filha do tempo, partus temporis.
pesquisa que os novos embates sociais Poderíamos, neste ponto, considerar
exigiam. Quando se colocou a necessi- mais de perto as implicações que tem
dade de ver a ciência em seu contexto para a ciência histórica conceber como
social, sem as amarras das velhas te- idênticas ciência e verdade. Talvez seja
ses, corroídas pelas profundas modifi- o caso, para os propósitos deste traba-
cações sociais e políticas dos últimos lho, apenas dizer que uma identificação
tempos, não veio a resposta que se es- pura e simples de ciência com verdade
perava. O que aconteceu veio demons- pode prejudicar substancialmente a pes-
trar que as teses marxistas não eram quisa da natureza deste produto das
exceção à regra que subordina tudo e lutas sociais que chamamos de ciência.
todos às modificações históricas. Este produto é uma força cujo poderio
Quanto a nós, queremos dizer que não tem sido medido adequadamente por
não nos satisfazíamos com o papel atri- aqueles que têm se preocupado em es-
buído à ciência tanto pelos marxistas tudar a natureza da ciência. Quando cha-
como pelos weberianos e outras tendên- mamos a ciência de força social e políti-
cias científicas. Para nós, os conflitos ca, queremos dizer com isto que ela
sociais geram formas de conhecimento, exerce na sociedade uma função
que chamamos de conhecimento cientí- transformadora ímpar. É fundamental-
fico, cujo papel con-
siste em encami-
nhar soluções para Para nós, os conflitos sociais geram
esses mesmos con- formas de conhecimento, que chamamos de
flitos.
É deste último conhecimento científico, cujo papel consiste em
aspecto que quero
tratar aqui.
encaminhar soluções para esses mesmos conflitos.
Antes de tudo,
gostaria de dizer que considero o conhe- mente deste papel transformador que
cimento humano uma elaboração social. queremos tratar.
Isto vale tanto para a ciência humana Para o homem ocidental, o pensamento
quanto para as ciências da natureza. jamais poderia ser especulativo ou
Não faço distinção entre o conhecimen- contemplativo. Nascido das convulsões
to que os homens têm de si mesmos, e o sociais que moldam estes últimos qui-

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nhentos anos de história, o pensamen- natureza humana? O homem terá com
to, nesta parte do mundo, é a expressão elas um dia mais tranqüilidade, felici-
mesma dos conflitos que se resolvem dade e prazer? Suas condições serão
gerando mais conflitos. A ordem que melhores ou ele só terá que mudar?”.3
prevalece no mundo ocidental é, desde o Outro pensador desta época, deste
século dezesseis, um equilíbrio incerto século exemplar em termos de mudan-
que resulta de lutas sociais permanen- ças que é o século dezoito, Ferdinando
tes. Isto gera dúvidas que vão desde a Galiani, um napolitano que viveu belos
mais simples inquietação do homem anos da sua vida entre a intelectualidade
comum até as questões a respeito do revolucionária francesa, os Iluministas,
próprio sentido da existência social. afirmava que a resolução dos proble-
Rousseau, quer concordemos ou não com mas humanos estava na mudança so-
as suas perplexidades, é uma referên- cial. “...as coisas desse mundo só têm
cia obrigatória para se entender melhor estabilidade se se renovam”.4
a trajetória conflituosa da sociedade que Uma coisa parece inegável, a ciência
se estruturava neste nosso mundo oci- e o comércio andaram de mãos dadas
dental. A dúvida expressa por Raynal, durante um longo período que começou
autor da magnífica História Filosófica e precisamente com o nascimento da épo-
Política das Duas Índias, este monumen- ca moderna. Depois foi a vez da indús-
tal manancial dos problemas que afli- tria. Esta é inseparável da ciência. Seu
giam o mundo inteiro neste agitado sé- nascimento foi acompanhado de gran-
culo dezoito, Raynal, repito, se pergun- des convulsões sociais.5 A todo progres-
ta se vale a pena mudar simplesmente so industrial corresponde necessaria-
por mudar. Reportando-se às grandes mente um avanço científico. 6 Dizer
transformações iniciadas com as desco- obviedades não é fazer ciência, e a ciên-
bertas marítimas, Raynal, refletindo cia da história é exigente. É preciso,
sobre a sua natureza revolucionária, portanto, explicar o nexo entre esses
indaga a respeito dos seus efeitos: dois aspectos – se é que se pode falar de
“Tudo mudou, e deve mudar ainda. um e outro aspecto – da realidade. Todo
Mas as revoluções passadas e as que progresso agrícola, industrial ou comer-
devem se seguir foram ou serão úteis à cial vem sempre vinculado a mudan-

3
Guillaume Th. Raynal, Histoire Philosophique et Politique des deux Indes, Avertissement et choix des
textes par Yves Benot, François Maspero, La Découverte, Paris, 1981, p. 13.
4
Ferdinando Galiani, Da Moeda, Edits. Segesta/Musa, S. P., 2000, p. 161.
5
O leitor tem em tradução brasileira talvez o maior manancial até hoje escrito sobre a Revolução
Industrial, é o livro de Paul Mantoux, A Revolução Industrial no Século XVIII, editado pela Ed. Unesp/
Hucitec, em tradução de Sonia Rangel. Todas as questões teóricas que essa Revolução suscitou estão
amplamente apresentadas e discutidas por Mantoux. Sob este último aspecto, é riquíssimo o clássico
Industrial Revolution de Arnold Toynbee, onde se discute sobretudo a validade dos princípios da
Economia Política. Esta obra é hoje em dia uma raridade mesmo nos países de língua inglesa.
A luta social por ocasião desse episódio histórico denominado revolução industrial atingiu tais propor-
ções e chegou a tais extremos que a ciência social, então, não raro assumiu a forma de gritos de guerra
de classe. Mantoux registra essa luta de opiniões extremadas e procura analisar todas as suas implica-
ções.
6
As empresas capitalistas encontram nas inovações chamadas tecnológicas meios de destruir os seus
concorrentes. Quem achar que essas inovações acontecem por acaso, ou caem do céu, e por acaso
servem para eliminar concorrentes, dá demonstração de profunda ingenuidade com relação ao movi-
mento do capitalismo. É a necessidade de eliminar concorrentes que leva o capitalista a financiar
cientistas para descobrir inovações industriais e comerciais. O capitalista perdedor sabe muito bem
disso. Aquele que ganha argumenta com os benefícios que o consumidor terá com a sua ousadia

106 científica.

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ças, maiores ou menores, na estrutura quanto depende de nós, o bem geral de
da sociedade. Do meu ponto de vista, todos os homens”.7
essas mudanças implicam em colocar Galiani, um economista político ita-
para o conhecimento questões novas, liano radicado na França durante um
desafios inéditos e perguntas incômo- período de grandes lutas pela consolida-
das. Esta motivação exige que as idéias ção da sociedade capitalista na Europa,
sejam um conhecimento diferente daque- diz o seguinte a respeito da ciência como
le que o comum dos homens usa quoti- expressão de um compromisso social e
dianamente. Aí está o terreno em que se político:
faz necessário pre-
cisão, lógica, uni-
versalização na Em geral, se põe a necessidade de dizer uma única
exposição dos con-
ceitos. Neste mo-
coisa e de um único modo. Neste momento
mento, não é possí- não há que escolher os termos, a necessidade os impõe.
vel mais devanear,
especular, dizer
A ciência, então, se transforma em tarefa.
qualquer coisa. Em
geral, se põe a necessidade de dizer uma “Queira o Céu que possa tornar-
única coisa e de um único modo. Neste me tão útil que minhas infinitas obriga-
momento não há que escolher os ter- ções para com estas [para com a pátria
mos, a necessidade os impõe. A ciência, e a sociedade] venham a ser, pelo menos
então, se transforma em tarefa. em parte, satisfeitas”. 8
Para que o leitor possa ter uma Um grande pensador da época mo-
expressão concreta desta nossa última derna, Charles Darwin, expressa objeti-
afirmação, reproduziremos a seguir al- vo muito semelhante ao afirmar, resu-
gumas passagens de alguns pensado- mindo aquilo que ele entendia ser a con-
res deste período agitado da história tribuição maior de sua vida como pes-
humana. quisador atento ao que se passava no
Descartes, que pensava que a cons- mundo natural e no mundo dos homens:
trução da ciência estava ligada a uma “Algumas pessoas entre aquelas
tomada de partido, fala da sua determi- que admitem o princípio da evolução,
nação pessoal do seguinte modo: mas rejeitam a seleção natural, pare-
“Mas, logo que adquiri algumas cem esquecer, quando criticam o meu
noções gerais de física, e que, come- livro, que eu tinha em vista ambos os
çando a testá-las em diversas dificul- objetivos acima mencionados; portanto,
dades de ordem particular, percebi até se errei ao atribuir à seleção natural
onde elas podem nos levar, e quanto um grande poder, coisa que estou longe
elas diferem dos princípios de que nos de admitir, ou exagerado o seu poder, o
servimos até o presente momento, acre- que pode ter acontecido, mesmo assim,
ditei que não podia mantê-las escondi- espero, contribuí grandemente para der-
das sem pecar enormemente contra a rubar o dogma da criação de cada espé-
lei que nos obriga a procurar, tanto cie separadamente”.9

7
Discours de la Méthode, p. 84, GF Flammarion, Paris, 1966. Chamo a atenção do leitor para esta
expressão de Descartes, “a lei que nos obriga”. Que lei é esta? Uma lei moral que obriga aqueles que
tomaram consciência da necessidade de derrubar o velho edifício, como diz Descartes em outro lugar?
8
Ferdinando Galiani, op. cit., p. 50.
Descent of Man, “Great Books”, 1ª parte, capítulo II, pp. 284/5.

107
9

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Os três exemplos aqui arrolados Gutenberg. A nossa civilização não se-
mostram como é pequeno o espaço que ria a mesma sem os caracteres móveis
separa ciência e política.10 que se tornaram a base da imprensa e
Os conceitos que conformam o pensa- da publicação de tudo o que o mundo,
mento próprio de uma época nova que desde meados do século quinze, produ-
surge emergem dos embates de todos os ziu. Passados todos esses séculos, é quase
instantes. Numa época de profundas impossível contestar o caráter benéfico
que teve aquela in-
venção. Não é o caso
aqui de discutir a
Fazer-se intérprete das necessidades, primazia dos chine-

conjunto de idéias mereça o nome de ciência.


eis o critério epistemológico para que um ses também no caso
dos caracteres mó-
veis. No entanto,
seria o caso de per-
guntar: quantos
transformações sociais e políticas, as conflitos envolveram esta maravilhosa
idéias que defendemos pela manhã, às invenção e que dimensão eles tiveram?
vezes já se tornaram caducas ao meio Os benefícios que ela trouxe deve nos
dia. Fazer-se intérprete das necessida- calar a respeito dos seus efeitos sobre
des, eis o critério epistemológico para milhares de indivíduos que perderam
que um conjunto de idéias mereça o nome as suas ocupações e que certamente
de ciência. foram lançados na miséria? Ou deve-
A revolução comercial dos séculos mos nos contentar simplesmente com o
quinze e dezesseis provocou tantas e fato consumado, já que se trata de uma
tão grandes modificações de ordem história passada? Seja como for, as mi-
tecnológica que difícil é enumerá-las lhares de situações em que agrupamen-
todas. A náutica, a balística, são todas tos inteiros da sociedade tiveram que
ciências ou técnicas intimamente liga- se contrapor à ciência, ou ao que se
das à navegação marítima, e esta é um costuma chamar de inexorável resulta-
efeito direto das transformações que do do progresso, leva-nos a pensar so-
puseram abaixo as barreiras feudais que bre o papel social disto que denomina-
impediam o intercâmbio entre os povos. mos de ciência.
Que manual de história da civiliza- Monteiro Lobato nos conta que esta
ção, de história das invenções não exal- maravilhosa descoberta que foi o cine-
ta incondicionalmente a descoberta de ma falado provocou uma enorme agita-

10
Essa vinculação não escapou a Aristóteles. É bem conhecida a passagem da Ética a Nicômacos em
que ele discute a precedência da ciência política sobre todas as outras ciências. Tendo definido o homem
como animal político, Aristóteles não podia ter se perdido no emaranhado de fatos, acontecimentos e
dos infindáveis materiais fornecidos pela natureza a ponto de erigir uma ciência particular para cada
modalidade específica da ação humana. Ele sabia que a ação humana, dirigida a um fim, só podia ter
como parâmetro a organização social e que era esta que moldava as idéias que povoam a cabeça do
cientista. Não pode passar desapercebido ao leitor atento de Aristóteles que a sua Física tem como
ponto de partida científico a posição que o homem ocupa no universo e que o critério, ou método, para
definir a cognoscibilidade de um determinado fenômeno natural remete para a forma como o homem
atua sobre a natureza. Não seria demais lembrar aqui a passagem em que Aristóteles faz uma profunda
avaliação da ciência dos antigos. O que dela se destaca é precisamente a preocupação em pôr em
primeiro lugar a finalidade humana ao se pesquisar as leis da natureza: “Anaxágoras e Tales [...]
conheciam coisas extraordinárias, maravilhosas, difíceis e até divinas, mas inúteis, porque eles não
procuravam os bens humanos”. (Ética a Nicômacos, 1141a , p. 119, trad. de Mário da Gama Kury,

108 Editora Universidade de Brasília).

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ção nas cidades americanas. O descon- nematográfica não-sonorizada e fita
tentamento dos músicos que animavam sonorizada, fica muito pouco para o cien-
as sessões levou-os a declarar guerra tista social dirimir e lhe resta muito
ao que lhes tirava o emprego. Fizeram pouco além de saudar este maravilhoso
passeatas, comícios em que pediam o invento devido à engenhosidade huma-
apoio do público para as suas reivindi- na.
cações. Aos benefícios que a sonorização O que foi realmente a sonorização dos
do cinema trouxe, se contrapuseram os filmes?
prejuízos causados aos músicos e a ou- É lícito perguntar se a questão a ser
tras atividades ligadas ao cinema mudo revolvida não estava, antes, centrada
que era mudo. na existência de profissionais que, por
Quero insistir, no entanto, no fato de serem de certo modo estranhos à indús-
que entendo que esta dialética dos be- tria cinematográfica, causavam emba-
nefícios e dos malefícios é o aspecto mais raços ao seu pleno funcionamento? É
visível do problema. Há, contudo, algo certo que o cinema mudo não permitia
mais a considerar nesta fácil dialética ao espectador ouvir o som emitido pelos
que, em geral, faz, daqueles que se opõem atores e todos os sons ambientes, mas a
aos avanços tecnológicos, inimigos do verdade é que eles estavam lá e faziam
gênero humano. parte da produção do filme. Imaginemos,
Vamos pesquisar a natureza deste por exemplo, uma explosão que ocor-
fenômeno, que nos parece trazer luzes resse no filme e que fosse reproduzida
para o entendimento da natureza da pela bandinha que animava sonoramente
ciência e da história da ciência. a sessão de cinema. O ridículo ficava
O “caso” relatado por Monteiro Lobato evidente para os espectadores. Era na-
foi mais rumoroso do que se possa pen- tural que se quisesse, portanto, ouvir
sar. Os músicos, ameaçados de perder o os sons de uma produção cinematográ-
seu ganha-pão, foram à luta. Fizeram fica, digamos, o som original.
passeatas, apelos às autoridades, enfren- A primeira idéia que ocorre quando o
taram a polícia, tentaram mobilizar a cinema se sonoriza é que foi revolvido
opinião pública a favor da sua causa e um problema técnico e que assim acon-
da sua profissão. Sabemos, pelo resulta- teceu por se tratar de evidente lacuna e
do, que o cinema falado foi o vencedor. de uma necessidade inadiável. Mas cabe
Consumado o fato, não há mais o que perguntar: quantas necessidades igual-
discutir. mente evidentes e inadiáveis só tive-
Resta, no entan-
to, para o historia-
dor, investigar um Quantas necessidades evidentes só tiveram solução passados,
mundo de proble-
mas. Para o nosso
às vezes, séculos? A imprensa, por exemplo. A existência da
caso, interessa sa- monumental biblioteca de Alexandria não colocava já a
ber o que é a necessidade... inadiável dos caracteres móveis?
sonorização de
uma fita magnéti-
ca, o cinema falado. Partamos do que ram solução passados, às vezes, sécu-
era o cinema mudo no que se refere aos los? A imprensa, por exemplo. A exis-
músicos que animavam as sessões com tência da monumental biblioteca de
seus instrumentos musicais, pequenas Alexandria não colocava já a necessida-
orquestras. Se tomarmos a questão ape- de... inadiável dos caracteres móveis?
nas pelo lado da oposição entre fita ci- Se nos ativermos, então, ao fato de que

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os chineses muito provavelmente já te- trabalho provocou sempre e invariavel-
riam descoberto na Antigüidade aquilo mente uma reação contrária a sua uti-
que Gutenberg redescobriu no século XV, lização em substituição aos antigos ins-
aí mesmo é que se torna imperioso re- trumentos. Os portadores das velhas
ver a interpretação simplista que con- habilidades, consagradas desde longo
sidera os inventos como solução técnica tempo pela sua eficácia e por seu pro-
de dificuldades evidentes. Exemplos como fundo enraizamento nos costumes, ao
este não faltariam para ilustrar a ques- mesmo tempo que responsáveis por um
tão que estamos querendo introduzir longo período de equilíbrio social e polí-
aqui. tico, se vêem, de repente, ameaçados por
Não seria demais discutir aqui a na- engenhos que dispensam do processo
tureza social da tecnologia no Ocidente produtivo centenas e milhares de indi-
europeu, a partir do século quinze, como víduos.
algo muito diverso das motivações que A história que se conta a respeito
fizeram os chineses, por exemplo, che- dessas situações começa sempre as-
garem a descobrir coisas maravilhosas, sim: a invenção de um novo instru-
mas tão inúteis como tantas outras des- mento de trabalho permite substituir
cobertas e invenções realizadas por o trabalho, digamos, de cem indivídu-
outros povos da Antigüidade. os, que usavam anteriormente instru-
Prefiro, como hipótese, pensar dife- mentos rudimentares para fabricar tal
rentemente das consagradas interpre- ou qual coisa, pelo trabalho de apenas
tações. dez indivíduos. O resultado disso é que
Nossas atuais indagações são hipóte- o produto resultante dessa nova for-
ses de trabalho. Para os fins deste es- ma de trabalho custa muito menos do
crito, ficaremos circunscritos a lançar que igual produto fabricado pelos pro-
hipóteses que mais tarde servirão como cessos antigos.
fundamento de uma pesquisa de mais Eu me permito o direito de contar
largo alcance. essa história de um modo um pouco di-
Nossa hipótese mais geral, que abran- ferente. Concordo quanto ao resultado.
ge tanto o “caso” da sonorização do ci- Vejamos, no entanto, um pouco mais de
nema, quanto questões que marcaram perto o significado disto que se chama,
épocas inteiras de profundas transfor- sem mais, de um novo instrumento de
mações sociais, econômicas e políticas, trabalho. Muitas e muitas perguntas
abrange, a nosso ver, um campo imenso poderiam ser feitas a respeito da inven-
ção deste instru-
mento. Para não es-
A história moderna do mundo ocidental registra um fato corregarmos numa
incontestável. A invenção de um novo instrumento de metafísica que nos
levasse a indagar,
trabalho provocou sempre uma reação contrária a sua num raciocínio cir-
utilização em substituição aos antigos instrumentos. cular, sobre os fins
últimos das inven-
ções, fiquemos no
de propostas de revisão das interpreta- fato nu e cru que mostra o que acontece
ções mais correntes da história moder- toda vez que novos instrumentos de tra-
na. balho são inventados.
A história moderna do mundo ociden- Resumindo a questão, o que seria a
tal registra um fato incontestável. A nossa maneira diferente de encarar este
invenção de um novo instrumento de problema?

110 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 102-114, 2002.
O que é que temos nesta situação a trumentos de trabalho. Sua força
que acima nos referimos? Temos novos irresistível, capaz de derrubar velhas
instrumentos de trabalho e milhares de estruturas sociais, reside precisamente
indivíduos tornados inúteis para o pro- no fato de que esses instrumentos sur-
cesso de produção de riqueza. gem no momento em que essas velhas
Minha maneira diferente de ver este estruturas começam a se debater em
fato se resume na seguinte idéia: o con- contradições insolúveis.
flito entre forças sociais, em determi- A história, no entanto, se manifesta
nados momentos
históricos, se ma-
nifesta de modo Parece que quando a ciência não consegue vencer
radical e se expres-
sa na necessidade as resistências que lhe são opostas pelos
de eliminação de grupos abalados pelas modificações sociais,
um ou mais dos
contendores. Para a sua face política fica mais evidente.
tanto, existem as
mais diferentes formas políticas já cata- das mais diferentes formas. Parece que
logadas pela experiência de toda a hu- quando a ciência não consegue vencer
manidade. No entanto, nunca vimos a as resistências que lhe são opostas pe-
ciência ou a tecnologia catalogadas como los grupos abalados pelas modificações
possíveis formas políticas capazes de so- sociais, a sua face política fica mais
lucionar conflitos de ordem social e po- evidente. Os conflitos sociais que
lítica. Nosso empenho em introduzir ele- permeiam todo o período moderno de nos-
mentos novos nessa questão não fica sa história, e que no plano das idéias
apenas neste aspecto. Parece ser neces- têm sido impropriamente classificados
sário ir mais fundo ainda no entendi- de luta da razão contra o obscurantis-
mento da história nestes momentos em mo, contra a fé, são testemunhos desse
que o conflito se generaliza por toda a aspecto. O desenrolar da história deu
sociedade e os inventos parecem não razão a Galileu contra a Igreja. Mas as
tomar partido por nenhum dos lados, verdades astronômicas de Galileu, em-
mas resultarem em benefício de todos. bora elas próprias fossem resultado de
A astúcia da história é, realmente, algo abalos sérios na estrutura da sociedade
digno de profunda admiração por parte feudal, não foram suficientemente for-
dos frágeis mortais. Quando um dos tes para liquidar os grupos interessa-
contendores descobre a arma científica dos na persistência da ciência religio-
que vai lhe possibilitar derrotar o ini- sa. 11
migo, isto significa que ele descobriu as Os novos instrumentos de trabalho
fraquezas que minam as forças deste têm significado uma força quase sem-
último. pre poderosa quando se trata de vencer
Com muita freqüência, no curso da as resistências contrapostas por aque-
história moderna, essa “arma científi- les que se sentem prejudicados com os
ca” tem tomado a forma de novos ins- deslocamentos de interesses entre gru-

11
“Eu, Galileu Galilei, florentino, de setenta anos de idade, acusado veemente suspeito de heresia, isto é,
de haver sustentado e acreditado que o Sol está no centro do mundo e imóvel, e que a Terra não está no
centro, mas se move, abjuro, amaldiçoo e detesto os citados erros e heresias e juro que no futuro não
mais direi nem afirmarei, verbalmente nem por escrito, nada que proporcione motivo para tal suspeita
a meu respeito”. (Galileu Galilei) [Transcrito da Gazeta do Povo, Curitiba, 21.5.98].

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pos ou mesmo classes sociais inteiras. nos ensinou que o que o homem produz
Qualquer mudança não é senão uma é a si mesmo. Apesar disso, nenhum pen-
nova conformação das classes sociais já sador da Antigüidade ou da Idade Mé-
existentes ou o aparecimento de novas dia expressou essa realidade como o fi-
classes. No processo de luta pelo poder, zeram aqueles pensadores que, na Ida-
que pode significar uma reorganização de Moderna, se tornaram conhecidos
da sociedade, a inventividade das clas- como Economistas Políticos. Para estes,
ses quase não tem limites. Os instru- o trabalho é o ponto de partida e o ponto
de chegada de todas
as coisas. Para eles,
No processo de luta pelo poder, que pode significar todas as manifesta-
uma reorganização da sociedade, a inventividade das ções da sociedade
se explicam pelo
classes quase não tem limites. modo como os ho-
mens se organizam
para produzir a sua
mentos de trabalho são o foco principal existência. Esta diferença entre os pen-
das alterações quando se faz necessá- sadores da época moderna e os de ou-
rio uma nova organização da sociedade. tras épocas tem uma explicação históri-
Como o trabalho é quase sempre uma ca. A época moderna é aquela época em
escravidão – fatica, como dizem os itali- que desaparecem todas aquelas quali-
anos –, o alívio trazido pelos novos ins- dades que aproximavam e distinguiam
trumentos torna-se quase sempre uma os indivíduos uns dos outros e que tor-
força invencível diante das resistências navam a sua existência dependente de
das antigas classes. atributos os mais variados. Como nos
Vejamos a questão do trabalho um ensina Locke, o indivíduo que surge da
pouco mais de perto. Podemos, a rigor, demolição da servidão feudal é, ele pró-
afirmar que só a época moderna fala de prio e só ele, responsável pela sua exis-
trabalho enquanto tal. Esta afirmação tência. Ele tem, ao contrário do que acon-
precisa ser explicada mais detalhada- tecia nas épocas anteriores, uma potên-
mente. Em nenhuma época e em nenhum cia, que o iguala a todos os outros indi-
lugar os homens puderam atender as víduos, capaz de permitir-lhe prover-se
suas necessidades por outro meio que do que necessita para viver. Essa po-
não fosse por meio da atividade produ- tência é o seu trabalho.
tiva, o trabalho. Mesmo que possamos Essa é uma fase histórica magistral-
encontrar povos que tenham vivido, em mente estudada por Marx. Marx nos diz
parte, do saque, mesmo assim é de su- que esta qualidade apontada por Locke
por que o povo, ou povos, saqueado te- resultou de uma generalizada expropri-
nha tido que produzir para poder ser ação dos meios de trabalho e subsistên-
saqueado. Nenhum povo teve a felicida- cia que prevaleciam na Idade Média. Este
de de receber dos céus um maná já pronto indivíduo que resultou dessa impres-
e acabado que lhe dispensasse de algum sionante virada no rumo da história é o
tipo de atividade para torná-lo um ali- homem livre, categoria que não existiu,
mento capaz de satisfazer as suas ne- senão parcialmente, nas sociedades
cessidades. O povo romano viveu, em passadas.
parte, do que outros povos produziam. Quis fazer essa longa preparação para
Sabiam, no entanto, que o saque perma- que o leitor pudesse entender que, quan-
nente era inviável. Todo povo se organi- do a ciência moderna por excelência,
za organizando a sua produção. Marx que é a Economia Política, fala de traba-

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lho, ela está tratando de algo bem dife- considerar a ciência – falo, evidente-
rente daquilo que é a atividade produti- mente, do conhecimento que certos mo-
va de todas as épocas anteriores. mentos históricos produzem como ex-
Para que o leitor possa melhor enten- pressão de grandes transformações so-
der essa questão, tomemos a escravidão ciais – como uma argúcia que os confli-
antiga em comparação com a época em tos políticos engendram como forma de
que domina o trabalho livre. Para me- solucioná-los. Essa argúcia, ou astúcia,
lhor entender essa questão, talvez seja só ganha foros de ciência quando al-
necessário, antes de tudo, entender a guns indivíduos – os pensadores – a ela-
diferença entre fazer alguma coisa e tra- bora segundo uma lógica que dá conta
balhar. O ponto de partida do que cha- do atendimento de um conjunto de ne-
mamos trabalho é entender como está cessidades sem o qual a sociedade fica
organizada a sociedade. O indivíduo que ameaçada em sua existência e em seu
na Antigüidade greco-romana se torna desenvolvimento.
escravo, trabalhador escravo, só se tor- Para ficarmos, ainda, na questão do
na trabalhador se uma força externa, trabalho e permitir um melhor entendi-
digamos assim, o fizer produzir segun- mento do que acabamos de afirmar, ve-
do os meios e os fins estabelecidos soci- jamos como Adam Smith nos demonstra
almente. Essa força é o seu proprietário. a vantagem da divisão do trabalho so-
Sem este, aquele indivíduo procurará bre outras formas de trabalho. Quem lê
prover a sua subsistência com os meios os primeiros capítulos de A Riqueza das
que a natureza lhe fornecer e sem fins Nações logo se deixa encantar com a
claramente determinados, senão o de lógica irrefutável ali desenvolvida por
lutar contra a morte. A atividade pro- Adam Smith ao nos tentar convencer
dutiva que o escravo exerce não é, como como a divisão do trabalho é muito
se vê, a força que cria a riqueza da melhor e muito superior a qualquer
sociedade que tem no escravo a força de outra forma de executar uma tarefa.
produção. Como decorrência lógica des- Ele nos demonstra como, no exemplo de
se fato, o trabalho que o escravo realiza uma fábrica de alfinetes, um único tra-
não é o ponto de partida para explica- balhador, inserido na divisão do traba-
ção do conjunto da sociedade. O seu tra- lho, produz uma infinidade de alfinetes
balho nem sequer explica a sua exis- quando comparado com outro trabalha-
tência. dor que execute a mesma tarefa sozi-
Ao contrário do que vimos com rela- nho.
ção à sociedade
escravista, na so-
ciedade em que pre- Na sociedade em que prevalece o trabalhador livre,
valece o trabalha-
dor livre, o traba-
o trabalho se destaca como a força que é capaz de
lho se destaca como explicar todas as manifestações da sociedade.
a força que é capaz
de explicar todas as
manifestações da sociedade. O trabalho Onde, mesmo, se encontra a astúcia
livre tem em si mesmo a marca da so- do raciocínio irrefutável de Adam
ciedade, o que significa que ele não pre- Smith? Em primeiro lugar, ela se en-
cisa de uma força externa a ele próprio contra no fato mesmo de que o seu ra-
para se realizar socialmente. c i o c í n i o é i r r e f u t áve l . Po r q u e
Lancei anteriormente a idéia segun- irrefutável? Das vantagens da divisão
do a qual não seria uma extravagância do trabalho muitos outros pensadores

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trataram antes de Adam Smith. Essa alfinetes pudessem ser produzidos aos
divisão do trabalho de que trata Adam milhares, fazendo com que velhas e
Smith é a mesma a respeito da qual milenares ocupações cedessem o lugar
discorreram muitos outros pensadores a outros modos de fazer e ver velhas e
antes dele? Por certo que não. Que novas coisas, novas sobretudo. Adam
ambas guardam certa semelhança, não Smith não menciona senão as vanta-
resta qualquer dúvida. As delícias da gens, e quem é que pode contrariá-lo?
divisão do trabalho foram cantadas em A razão estava com ele, e mais uma
prosa e verso. É outra bem diferente, vez a mudança histórica se apresenta
no entanto, a questão que toma o nome como uma verdade irrefutável. A ciên-
de divisão do trabalho na obra de Adam cia não é muito mais do que isto. O que
Smith. Se um único indivíduo pode ago- não nos cabe fazer é procurá-la onde
ra produzir 4.800 alfinetes num único ela em geral não está.
dia, e antes da divisão do trabalho só Se a alguém pode causar espécie ter
produzia 20, é porque muita coisa acon- eu atribuído um papel não tão nobre à
teceu para que esses milhares de alfi- Ciência, que este alguém não se assus-
netes pudessem ser produzidos. te, mas a verdade é que os cientistas
Quantos personagens abandonaram o sociais estão sempre insatisfeitos com o
palco e deram lugar a outros para que fato consumado.

Bibliografia
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VOLTAIRE – Le Siécle de Louis XIV. Chronologie et préface par Antoine Adam. Paris, Garnier Flammarion,
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PONS, Alain – (Articles Choisis de la) ENCYCLOPÉDIE ou Dictionnaire Raisonné des Sciences des Arts
et des Métiers. Chronologie, introduction et bibliographie par Alain Pons. Paris, Garnier Flammarion,
1986. 2 vols.

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